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Codificada por: Cleópatra

Finalizada em: 01/08/2024
Mórbido.

É a única palavra que surge para descrever o cenário em que me encontro. Uma caverna profunda e com pouca iluminação. Das paredes escorre um líquido viscoso que preenche o ar, inevitavelmente úmido, com um cheiro mofado. Dentro dela corre um rio escuro que parece ser feito de piche e navegando por ele sem ter uma visão do que ficava para trás e seguindo para o mais absoluto nada… Eu.

Junto de uma figura esguia de braços esqueléticos que se faz de barqueiro para os mortos.

Esfreguei as mãos, não que fosse fazer alguma diferença, pois estavam frias como as de um cadáver deve ser.

Fechei uma delas e bati de leve na testa, de todas as mitologias, de todos os deuses que existem, quem diria que os gregos estavam certos e não era só uma base para filmes e livros infanto-juvenis.

— Me desculpe, Sr. Caronte — inclinei o corpo para o lado tentando ver a face do barqueiro —, eu não tenho nenhuma moeda de ouro comigo para pagar o… Transporte.

Silêncio, sem nenhuma resposta.

Abaixei a cabeça pressionando os lábios juntos e alisando os joelhos, a cada momento a situação fica mais estranha. Olhei para os lados procurando algo para desviar a atenção, batendo os dedos ritmadamente no colo enquanto o motorista das almas continuou fazendo o mesmo movimento repetitivo, forçando o barco a navegar para frente.

— É surpreendente a lugubridade do caminho, muito mais intenso do que os poetas descrevem no mundo real — comentei em voz alta —, não que seja ruim. Acho que é o esperado para o inferno, quero dizer, o Submundo.

O movimento dos braços de Caronte parou, a figura encapuzada se virou lentamente fazendo ranger as madeiras do barco. No lugar de seu rosto havia um espiral, ainda mais escuro do que o próprio nanquim. Infinitamente sem fim, contido apenas pelo véu de sombras surrado. Quanto mais olhava para aquele centro, mais me sentia perdida, como se a consciência da vida pós-morte estivesse sendo dissipada ali mesmo.

A mão esquelética de dedos longos e azulados entrou no meu campo de visão, quebrando o transe momentâneo, Caronte apontou para a minha direção. Instintivamente olhei para trás, nada havia. A figura se aproximou e com o indicador levantado encostou no meu colo.

Senti o corpo congelar e um puxão no pescoço, olhei para baixo e o barqueiro tinha o dedo curvado envolta um anel, ele tinha uma esmeralda brilhante no meio do filete prateado apoiado com uma pedra transparente de cada lado. Não me lembro de quem é, ou o que significa, mas o fato de estar preso a uma corrente parece um fator importante.

— Certo, o pagamento — minha voz falhou um pouco e foi necessário algumas tentativas para abrir o fecho do colar. — Imagino que moedas de ouro já seja uma coisa antiquada, existem tantas pedras preciosas nessa vida, não é?

— Quero dizer, aquela vida antes de eu morrer — tentei explicar, mas desisti logo depois —, é melhor eu só ficar quieta.

Entreguei a joia em sua posse, o anel sumiu em sua mão e o barqueiro retornou a sua posição original continuando o caminho. Agora, com um aparente fim.

Uma luz alaranjada surgiu revelando estar de costas para o destino final e não de frente. A própria jornada para o reino dos mortos era mais complicada do que o imaginado. Um labirinto de percepções e ilusões.

As paredes começaram a tomar forma, revelando pedras esculpidas. Meias colunas gregas, e as formas geométricas perfeitas que se esperava ver num gigantesco panteão. Escuras, em certo ponto pensei ser algum tipo de mármore, pois brilhava de maneira lustrosa e luxuosamente sombria.

O barco parou, fazendo soar um barulho incomum. Me inclinei e reparei que não era terra ou areia, e sim um amontoado de ossos brancos, de todas as formas e tamanhos.

Apoiei na lateral e coloquei uma perna para fora, sentindo a estabilidade do chão embaixo do meu pé. Não muito diferente de pisar numa pilha de conchas, passei a outra perna por cima da madeira e então soltei do barco.

Caronte se manteve virado na minha direção, segurei as mãos junto ao corpo sem saber realmente o que dizer. Não tem muitas descrições detalhadas sobre o transporte de almas.

— Obrigada, boa eternidade para você. Bom trabalho.

O barqueiro se manteve imóvel, e não querendo estender mais ainda o momento de estranheza, virei de costas e segui em direção ao portal que indicava o reino dos mortos.

Tenho potencial para ser a alma mais idiota que já passou pelo submundo.

Tochas estavam enfileiradas, praticamente serviam como uma seta indicando por onde devia seguir. Saindo da praia de ossos, o chão se tornou de pedras cinzas, me fazendo sentir menos culpada de pisotear o fêmur de alguém. Abracei meu corpo e continuei andando, a cada instante tinha mais certeza de estar caminhando para o centro de uma ruína antiga.

Desejei por um momento ter um pouco mais de interesse sobre os mitos gregos enquanto em vida, sei o básico, mas não me atentei sobre os tipos de eternidades possíveis. Deve ter um lugar para onde as pessoas boas vão, não necessariamente o céu, por ser domínio de Zeus ou algo desse tipo.

Havia também algo sobre um guardião da entrada, não é?

Um vento soprou, quente, acompanhando de um cheiro nauseabundo, fios de cabelo se soltaram e precisei virar o rosto para o lado desviando da corrente. Fechei os olhos por um momento, já tinha caminhado uma boa distância e o rio já não estava visível. Na verdade, parecia não ter nada, já que as tochas por onde passei se apagaram.

De novo o vento soprou das minhas costas, dessa vez com um odor mais forte. Ouvi o barulho de garras arrastando na pedra e a minha alma de morta temeu por sua não vida.

Lentamente me virei, presas gigantescas, um bafo quente, baba escorria da boca da criatura. Era tão enorme que uma simples mordida acabaria comigo, e se um não conseguisse, tinha mais duas bocas igualmente grandes para terminar o serviço.

O rosnado ecoou feroz acompanhado de um latido ensurdecedor, coloquei as mãos nos ouvidos. As pernas cederam e me fizeram cair no chão, curvada sobre os próprios joelhos, apenas aguardei para ser devorada pelo guardião do submundo.

Mais latidos soaram, dessa vez de todos os lados, um focinho bateu nas minhas costas enquanto os outros dois inspecionavam as minhas laterais. Ocasionalmente empurrando um pouco para o lado, de repente me senti mais como um brinquedo do que realmente um lanche.

Uma ordem foi lançada ao vento, fria como uma clara e cortante nevasca no inverno. Todo movimento cessou, e o que ecoou no recém-feito silêncio foram passos.

Ergui a cabeça para ver a barra de uma túnica preta e pés humanos. Levantando ainda mais os olhos, o que encontrei foi um rosto jovem e indiferente. Diria até com um certo desgosto pela minha presença. Seus olhos eram escuros como a noite e os cabelos pareciam ter sido desenhados com um pincel de nanquim.

— É com isso que você está brincando, Cérbero?

Isso, já é humilhação demais.

O homem cruzou os braços — Parece que o brinquedo fala, o que está fazendo no meu reino?

Meu reino…

— Hades! — exclamei surpresa — Senhor… deus?

— Todos eles — respondeu parecendo analisar meu rosto — que tipo de tola entra nos domínios de alguém sem saber? Como chegou aqui?

Por um segundo me senti tímida pela intensidade do seu olhar, não consegui responder, pois me perdi nos próprios pensamentos. O senhor do submundo que eu me lembrava era mais esquelético, completamente coberto de ossos e outras coisas mortas. E esse, de certa forma deslumbrante, não chega a ter o corado de sol de uma pessoa viva, mas também não é cinza cadáver. Os braços se cruzaram na frente do peitoral largo semi-coberto pelas vestes, destacando os músculos cheios de vigor e definidos.

Dois estalos de dedo na minha frente e então voltei aos sentidos.

— Certo, bem… Eu morri, e Caronte me deixou aqui.

Novamente a cara de desgosto — Não é possível.

— Achei que fosse o caminho natural, já que é assim que são contados os mitos.

O cachorro atrás dele parecia bem mais calmo, se não fosse seu tamanho até acharia fofo a maneira que estava balançando o rabo sem parecer uma arma mortal.

— É o caminho, mas não para você.

Abaixei a cabeça, pressionando os lábios juntos — Isso doeu um pouco, é porque eu não sou grega?

— Pareço com alguém que faz distinção entre os mortos? — rebateu ácido, o tom de voz ficando mais rígido do que os usados anteriormente, não que fossem particularmente gentis também. O deus do submundo deve ter ficado com pena e respirou fundo antes de se abaixar para ficar com os olhos na minha altura.

— É uma presença estranha — ele resmungou franzindo a testa e aproximando o rosto do meu.

— Obrigada por apontar isso.

Hades, pegou meu braço e puxou para levantar em seguida — Venha comigo.

— Espera um pouco — ele me olhou completamente desgostoso — seu cão… Vai me deixar passar?

— Por que não deixaria?

Me escondi atrás da sua figura — Parecia estar pronto para me comer.

Incomodado, ele se virou para o cão e em seguida para mim — Cérbero não come almas. Seu propósito é evitar que partam do meu reino, não que entrem.

Olhei para o animal, não é como se realmente fosse assustador. Mas o tamanho faz sua parte em toda a composição, as cabeças deitaram no chão e Cérbero lambeu o nariz mirando minha figura com antecipação.

— Até que ele é fofo, quando não está rosnando e babando para todos os lados mostrando os dentes.

Hades fechou os olhos por um segundo, colocou a mão no meu ombro, me guiando pelo caminho. Bati a mão na lateral da cabeça da direita de Cérbero num afago antes de seguir o senhor do submundo pelo caminho.

Quanto mais avançava para o interior, mais sentia o caminho se estreitar, e então depois de passar por um arco ornamentado, um cenário se abriu. Sombrio como esperado e ainda assim deslumbrante.

O céu parecia uma nebulosa, um universo inteiro, no centro dessa galáxia uma estrela brilhante se fazia de sol iluminando — mesmo que de maneira suave —, o reino de Hades. De cima quase parecia uma cidade, incrustada no solo com pequenas crateras luminosas. No centro dela uma montanha que se erguia em direção ao céu e então esculpida em suas pedras, um imponente templo.

Parece que o submundo tem algum tipo de organização, porque nem todas as almas pareciam condenadas a uma vida de sofrimento. Uma boa parte parecia estar trabalhando para manter o lugar funcionando, principalmente no templo.

— Me traga os relatórios dos últimos acidentes mundanos — Hades disse assim que entrou no que parecia ser seu escritório, já na montanha.

Diferente de mim que ainda pareço ter uma forma, o que estava andando pelo lugar não passavam de espectros. Formas nevoentas, quase humanas com um par de olhos brilhantes, sem rosto, mas com distintas pernas e braços.

Chegavam a gesticular, mas nenhum som saia de sua boca. É impressionante como consigo saber que o espectro está reclamando apenas por seus movimentos corporais.

Hades se sentou na luxuosa poltrona atrás de uma mesa o ignorando — Os mortos encontram seu caminho, ela não.

— Desculpe — levantei a mão chamando atenção de ambos —, tem algo de errado com a minha morte?

O deus do submundo deu um estalo e o espectro se dissipou no ar, Hades cruzou os dedos na frente do rosto e me olhou diretamente nos olhos — Sente-se.

— Estou bem de pé, não tem necessidade de…

Novamente ele deu um estalo e uma cadeira apareceu me forçando a sentar bem em sua frente.

— Como você morreu? — perguntou.

— Eu — minha língua travou não me deixando continuar a falar. Tudo que saia eram murmúrios, coloquei a mão na boca.

— Esse é o problema — Hades apontou —, você não pode responder por que não morreu em primeiro lugar, não por completo.

— Isso é ruim?

— Sua alma não vai ficar entre os vivos, no seu corpo, e nem entre os mortos. Fica vagando pela eternidade porque se perdeu no meio do caminho — respondeu sem tirar a expressão entediada do rosto.

Levantei a mão para a cabeça massageando de leve as têmporas — Parece horrível, tem alguma maneira de voltar?

— Não sei, nunca aconteceu antes.

Respirei fundo — Você é bem direto, não é?

— Não tenho motivos para florear assuntos. Me perguntou, respondi.

É uma divindade da mitologia grega, não posso esperar ter uma conversa fácil com alguém desse tipo. Entre suas muitas bênçãos, ainda são pintados como orgulhosos e egoístas. Ainda que fosse com palavras beirando o rude, senti alguma esperança nascer em mim. Então não é o fim da linha, porém, Hades parece não ter uma resposta para minha presença no submundo.

— Tem algo de errado com meu rosto? Parece estar contemplando em silêncio por tempo demais.

— Com o rosto não, mas confesso estar esperando um fogo azul no lugar dos seus cabelos — respondi antes mesmo de saber o porquê das palavras.

Sempre o silêncio acompanhado de uma feição de julgamento — Ficará no meu palácio enquanto descubro o que fazer com sua alma. Os espectros vão cuidar de você, não saia, não faça nada estúpido, se possível não se mexa. Terei problemas se as outras almas se aproximarem de você.

— Parece mais um cativeiro do que uma medida protetiva.

— Sinta-se em casa.

De um círculo no chão surgiram dois espectros, fizeram uma mesura e indicaram a porta para eu sair. Os acompanhei uma vez que não tinha outra opção, olhei para trás uma última vez vendo que Hades já tinha os olhos grudados nos pergaminhos em sua mesa. O local estava meticulosamente organizado e as pilhas de trabalho pareciam estar acumuladas, deve ser o motivo das olheiras que o senhor do submundo tinha envolta dos olhos.

Suponho que até os deuses não podem escapar das suas obrigações legais.

Luxo é uma das palavras para descrever, apesar de ser dentro da montanha escura, o interior do palácio de Hades é claro como o dia. Adornos de ouro e mármore branco estavam em todas as partes, apesar de toda a riqueza não machucava os olhos visualmente, é incrivelmente limpo.

Me levaram para um quarto, havia uma grande e fofa cama junto de uma janela enorme com longas cortinas brancas que se abriam para uma sacada. Tinha também uma lareira junto de um conjunto de poltronas e uma mesa de centro, para completar uma mesa de estudo com alguns armários.

— É impressionante — comentei.

Os espectros indicaram uma porta que a princípio não vi e descobri ser uma espécie de banheiro com uma piscina de chão.

Um dos servos de Hades indicou o local e o outro segurou um vestido pelas alças.

— Está pedindo para me limpar? — perguntei e eles acenaram — Vai fazer alguma diferença? Já sou uma alma mesmo.

Os dois seres se olharam, um deles levantou dois dedos na minha direção em sinal de ‘V’ e em seguida juntou a mão como se fosse a boca de um boneco.

— Mímica? — perguntei recebendo um aceno e logo depois os mesmos gestos — 2 palavras.

As mãos novamente começaram a se mexer, primeiro a palma esticada com a outra fazendo um movimento de serra.

— Meio? — chutei e recebi uma afirmação, em seguida um clássico movimento de morte passando o indicador no pescoço — Meio-morta, você tem um ponto. Isso significa que meu corpo é mais humano do que o resto dos mortos que vagam por aqui?

Mais um acerto.

Até fazia sentido, não sabia se ia sentir alguma diferença, mas aceitei a oferta. Com alguma surpresa senti um alívio a temperatura do meu corpo pareceu esquentar, o que me levou a acreditar que a friagem anterior foi por estar perto do rio e vagando pelas cavernas.

Durante o momento com os espectros descobri que não tinham nomes, que eram 108 no total e que trabalhavam a total comando de Hades. Foram almas um dia, mas por algum motivo se destacaram aos olhos do rei do submundo e agora o serviam pessoalmente. Entre mímicas e perguntas de sim ou não até que consegui algumas informações.

— Não é transparente demais? — questionei me olhando no espelho que ia do chão ao teto. A túnica era linda, dois broches dourados prendiam as alças uma em cada ombro, havia um decote generoso em forma de ‘v’ e o tecido tinha um caimento reto depois de se prender na minha cintura com um cinto.

Os dois espectros negaram levantando o polegar em seguida, tombei a cabeça para o lado ainda incerta de toda aquela vestimenta. Ao menos pareço parte da ambientação e não uma peça solta.

Apesar de Hades ter dito para não me mexer, resolvi andar por seu palácio, afinal ele não devia estar falando sério. Foi apenas um aviso para impedir de eu fazer algo desnecessário… Certo?

Parece que se passaram horas, além dos corredores longos com sensação de infinito havia muitas salas fechadas e quartos. O porquê não sabia dizer uma vez que Hades não parece ser do tipo hospitaleiro e os espectros pelo que entendi não tem nenhum tipo de necessidade.

Internamente o lugar que mais me chamou a atenção foi a biblioteca, nunca vi tantos livros, relíquias e obras de artes reunidas num mesmo lugar. Nem mesmo se passasse as 24 horas do dia lendo pelos próximos 100 anos conseguiria ler todos os livros dispostos ali, além dos pergaminhos e outros documentos. Entre os corredores, estátuas de mármore e pinturas magníficas ficavam expostas.

Acompanhada das duas figuras nebulosas, atravessei o local, acabando numa espécie de jardim, grama verde se estendendo até onde podia correr os olhos. Flores e arbustos perfeitamente alinhados em volta de uma grande fonte de água cristalina, usei o caminho de pedras para me aproximar e sentar na beirada da fonte.

— Essa é uma grata surpresa — mergulhei as mãos na água fria, e me deitei na base de pedra olhando para o céu falso, fechando os olhos em seguida.

Meio-morta.

Mesmo que tentasse puxar na memória, não consigo me lembrar de uma única coisa sem que fosse uma luz intensa e o barulho de pneus. Nem mesmo sobre a minha vida, tudo parecia confuso e borrado, como olhar para um espelho embaçado.

De repente da escuridão, surgiu um rio, dominado pelo barqueiro que leva as almas, essa é a primeira lembrança clara que tenho.

— Que parte do não fazer nada, não entendeu?

Quando abri os olhos, o próprio senhor do submundo tinha o rosto sobre o meu. O céu parecia mais escuro e o que antes era o sol, se fazia de lua.

— Não estou fazendo nada — rebati me sentando.

— Faça o seu nada dentro do palácio — Hades disse olhando envolta.

— Você é sempre tão charmoso desse jeito? — Sarcasmo pingava da minha voz, aparentemente uma meia-alma também pode dormir e acordar de mau-humor.

Minha recém-chegada companhia manteve os olhos no meu por um instante, e em seguida se virou apontando para o rio que corria não muito distante do jardim — Aquele é o Cócito, rio das lamentações. Um dos cinco grandes que correm o submundo, almas geralmente se juntam nele para lamuriar, pode virar uma morta por completo se for descuidada.

Balancei a cabeça — Era mais fácil ter me dito algo como isso desde o começo.

Sem um pedido de desculpas, ou reconhecimento. Hades apenas mudou de assunto me questionando o porquê de estar no jardim em primeiro lugar.

— É bonito, é impressionante que o submundo tenha um lugar como esse.

Surpreso, se virou — Pensa mesmo isso? Ainda que esteja rodeado de mortos?

— Mas as flores estão vivas — dei risada me levantando e batendo as mãos no vestido — é um bom jardim. Quem cuida dele, deve ter certo apreço.

— É apenas um hobby ficar cuidando de tarefas administrativas por éons é cansativo — respondeu em seguida se virando para retornar ao palácio —, não pareça tão surpresa, é ofensivo.

Os espectros balançavam os braços indicando para eu o seguir.

— Desculpe, é uma informação inimaginável. Achei que desse a sentença para todos os mortos que aparecem por aqui.

— É demorado e contraproducente, tenho juízes para isso. Osíris tem essa aproximação mais… Individual, comparar cada coração humano com uma pena é trabalhoso.

Parei de andar — Espera, Osíris? Existem outros deuses?

— Uma verdade pode ser distorcida e continuar sendo uma verdade, enquanto pessoas acreditarem, outros como eu existem.

— Então, porque vim parar aqui? — questionei — Sem ofensa, não acho que tive alguma relação muito próxima com gregos.

— Alguma ligação deve ter.

— Honestamente, não me lembro. Na verdade, não me lembro de nada.

Hades deu um passo em minha direção, se aproximando. Sem aviso, colocou os dedos no meu queixo, forçando-me a levantar a cabeça. Intensamente olhou nos fundos dos meus olhos por alguns instantes.

— Estranho —, resmungou e aproximou o rosto do meu, quase a ponto de encostar nossos narizes. Orbes brilhantes como duas joias de obsidiana, sua respiração bateu em minha pele causando calafrios.

— Tem usado bastante essa palavra para se referir a mim — engoli seco e me afastei esfregando os braços para me livrar da sensação desconhecida.

O deus do submundo ponderou por um segundo — O que mais você está sentindo?

— Frio, calor, sono, e agora confesso que poderia aproveitar uma refeição.

Ele colocou a mão no queixo ainda pensativo — Deve ser um reflexo do corpo vivo.

— Foi o que os espectros disseram.

— Não devia ser possível se comunicar com eles — apontou olhando para as duas figuras que levantaram os braços em rendição.

— Na verdade, foi mais algo como ‘Imagem & Ação’ , sabe? — seu rosto novamente ficou inexpressivo — É como um jogo de mímicas, sem falas.

— Estranha de fato — Hades pareceu respirar fundo e se virou continuando a andar, os espectros apontaram na direção em que ele saiu indicando para eu o seguir —, uma humana como você nunca apareceu nos meus domínios.

— E isso é bom, ou ruim? — perguntei dando alguns passos mais rápidos para me aproximar. Nesse instante Hades parou me fazendo bater em suas costas.

Coloquei a mão no rosto, sua cabeça se virou e os olhos escuros me fitaram intensamente por cima do ombro.

— É inesperado.





Honestamente não sei dizer se estou surpresa pela quantidade de comida servida, ou por ela ser realmente deliciosa apesar de estar no dito mundo dos mortos.

Nem o olhar intenso de Hades em cima de mim tirava a vontade de continuar comendo, enquanto isso ele mal parecia ter tocado em seu prato.

O único som era o dos meus talheres, de resto o que nos rodeava era silêncio. Tão constrangedor que eventualmente precisei me forçar a iniciar uma conversa, mesmo quando não é uma ação do meu feitio.

— Seu palácio é muito bonito — limpei a boca e apoiei as mãos sobre o colo.

Hades olhou para mim, feição séria e completamente livre de sentimentos — Eu sei.

Então minha pequena chance de levantar o constrangimento se foi, lavada por um grande balde de água fria. Desiludida por não conseguir criar uma boa atmosfera, apesar do meu esforço, deixei escapar outros sentimentos, aqueles que deviam ficar selados na boca.

— Você não tem muitos amigos, não é?

Imediatamente levantei as mãos para o rosto, tapando os mesmos lábios descontrolados que cuspiram as palavras antes de eu pensar seu significado. O medo que subiu a espinha foi descomunal, congelei no mesmo instante com os olhos arregalados, não apenas pelo absurdo cometido, mas pela emoção que enfim vestiu o rosto do deus.

Indiferença. Depois disso, algo que pareceu um suspiro.

— Sou um deus, não preciso de amigos, preciso de adoradores e fazer bem o trabalho me incumbido.

— Parece uma vida solitária — comentei um pouco mais segura por não ter sido repreendida.

— Depende do ponto de vista — sua mão ficou apoiada na mesa, a haste da taça de vinho entre os dedos —, existe diferença entre isolamento, infelicidade e o simples gosto por ficar sozinho. Além disso, com todos os espectros e almas por aqui, dificilmente posso dizer estar só.

Não pude deixar que um riso escapasse. Todo aquele momento foi agradável, Hades tinha respostas sinceras e bruscas. Porém, não o tornava essencialmente ruim, apenas alguém sem filtro e facilmente mal-interpretado. Quando perguntei sobre o submundo em geral, se propôs a responder todas as minhas perguntas.

Independente das respostas atravessadas, certo momento ou outro me peguei olhando para Hades, sua presença era confortante e conhecida. Algo, no fundo da minha mente, pulsa acusando boas lembranças esquecidas.

— Me desculpe — parei o assunto repentinamente —, mas existe a chance de termos nos conhecido antes? Em outra vida?

Hades me acompanhou por parte do caminho, com a explicação de que eu poderia me perder novamente. Ele parou os passos e se virou para mim, os olhos intensos fixos nos meus, as pequenas curvas de seu cabelo pendendo para frente quando se inclinou.

— Provavelmente eu me lembraria, então penso ser pouco provável — seu rosto se aproximou ainda mais. Seus dedos frios se levantaram para colocar alguns cabelos atrás da minha orelha e em seguida escorregaram pela lateral do meu rosto segurando meu queixo em seguida.

— Se tivesse, nunca a teria deixado partir. Tenho a impressão que faria da minha vida eterna muito mais agradável — ele se afastou —, os espectros vão a acompanhar a partir daqui.

Os dois estiveram na minha companhia durante o dia voltaram a se aproximar, guiando o resto dos passos de volta para os aposentos e então se foram. No centro do submundo, a bola que se fazia de sol pareceu trocar sua luz, de radiante para um azul pálido de reflexo prateado, indicando a noite que começa.

Olhando fixamente pela paisagem além do balcão, andei para fora arrastando os pés no mármore liso da varanda. Tudo parecia irreal ao mesmo tempo que estava ao alcance das minhas mãos, completamente tangível.

As sensações podem estar fracas pela situação, mas o nervosismo quando Hades me segurou fez um redemoinho ansioso no meu estômago. Posso entender porque dizem que pessoas bonitas são deuses gregos, é o cúmulo da beleza e da sedução. Ele não precisa fazer muito para me prender no par de joias escuras que eram seus olhos. Frio e quente ao mesmo tempo. Intenso e também surpreendentemente suave.

Encostei na parede e escorreguei até me sentar no chão frio, abraçando os joelhos e encarando a paisagem que se mostrava dentre as frestas dos balaústres, tal como um preso encara a liberdade de sua cela.

Poderia eu ter desenvolvido em tão pouco tempo sentimentos pelo senhor do submundo?

É uma fantasia parva que me permiti imaginar. Sem memórias de quem deixei para trás, com a alma presa entre a vida e a morte, me pergunto se tem alguém para derramar uma única lágrima por mim. A maioria de nós passa a vida inteira buscando a felicidade, aquele único sentimento quente que parece dissipar todo o desespero.

Agora, sequer consigo dizer se fui feliz ou não. Se tive alguém parar amar, ou se fui amada. Uma tela branca, sem histórias para contar.

Um turbilhão de pensamentos desordenados, me fez sair do palácio de Hades. Minha vontade real era chegar até a biblioteca, já que seguindo suas instruções eu devia fazer nada do lado de dentro. Porém, contra a minha vontade, acabei parando no jardim, numa parte diferente da que estive na parte da tarde.

Não tão glamorosa, mais simples, com diversos arbustos verdes que ainda haviam de florir.

O rio passava na distância, não tinham almas por perto, porém havia alguém.

Parecia ser uma mulher, ajoelhada na beira dele, completamente imóvel. Ela era diferente das outras almas que vi vagando. Até mesmo diferente de mim, e dos espectros, me aproximei dela ainda incerta, e à medida que meus pés me levavam em sua direção escutei seu choro intenso e murmúrio.

— Meu marido… Meu precioso marido…

— Você está bem? — perguntei me inclinando.

As mãos magras escorregaram do rosto, revelando o crânio descarnado e um pouco de pele podre que se desprendia dos ossos.

— Meu marido, você pode trazer meu marido?

— Desculpe, não — me afastei.

Rapidamente a criatura, que eu não sabia dizer se era uma alma ou alguém morto, segurou meu pulso com força, impedindo de fugir. O buraco dos olhos virados na minha direção — Por favor, meu marido… Você tem que trazer ele de volta. É sua obrigação!

Os dedos se prenderam a mim como uma algema, e uma força nascida da tristeza profunda puxou meu corpo me fazendo cair direto no rio.

A sensação era estranha, não era água. Congelante, sim, mas por conta das almas. Diversas vozes surgiram na minha cabeça enquanto outras mãos se agarravam à pele, pediam por suas famílias, dinheiro, choravam pelos assuntos inacabados e principalmente clamavam pela vida.

De repente, vi uma sombra escura surgindo na margem, já distante demais para conseguir me alcançar.

Fechei os olhos…

Dessa vez…

Esperando…

Ser para sempre.











Repentinamente, senti um puxão. O corpo saltando como se tivesse acabado de acordar no susto. Um cheiro estranho fez meu nariz arder, o corpo pesado parecia não responder às minhas vontades. Tudo que pude fazer foi abrir os olhos e encarar o teto branco embaçado. Aos poucos um som constante começou a soar, se aproximando à medida que o foco voltava a visão. Constante e agudo, acompanhando meu coração.

Um hospital… Por quê?

A porta abriu e por instinto virei a cabeça, a enfermeira levou um susto a ponto de deixar o que tinha nos braços cair no chão. Ela falava, conseguia ver sua boca se mexendo, mas não entendia uma única palavra.

Logo o quarto foi invadido por um médico junto de duas outras profissionais, ele se aproximou e pegou minha mão pareceu medir algo. Em seguida, uma luz clara nos meus olhos, um estalar de dedos e então as palavras começaram a se organizar.

, consegue me entender?

Acenei positivamente com a cabeça.

— Os reflexos estão bons, foi uma recuperação mais rápida do que esperávamos — ele disse —, vamos conduzir alguns exames. Tudo bem para você? Enquanto isso avisamos seus familiares aguardando permissão para fazer alguns outros testes, tudo bem?

Tentei responder que sim, mas minha voz saiu falha, imediatamente a enfermeira correu para fora, voltando em seguida com um copo e um canudo — Não fale por enquanto, querida, e não force o pescoço.

Mais pessoas do que eu podia contar entraram e saíram do quarto, apesar de aparentar estar deitada a um longo período, meu corpo ainda estava pesado. As pálpebras se fechando sem a minha vontade, pareceu ser um segundo, porém quando voltei a abrir já parecia estar no fim da tarde. Minha cabeça estava tombada para o lado, o ar mais frio e a luz que entrava da janela era num tom laranja pálido. Os últimos momentos de sol antes de dar lugar para a noite e a lua.

Um suspiro longo deixou meu corpo, e quando olhei para o outro lado havia uma figura vestida de preto parada na porta. Imóvel e em silêncio, pareceu deslizar para dentro após verificar que eu estava acordada, no momento em que se aproximou consegui reparar no longo casaco e o rosto jovem. Apesar de ter uma máscara cobrindo parte de seu rosto, seus olhos eram escuros como a noite e os cabelos pareciam ter sido desenhados com um pincel de nanquim. No ombro havia a alça de uma bolsa igualmente sombria, uma pasta de documentos em uma mão enquanto a outra segurava uma garrafa de água.

Lentamente ele se aproximou da cama e depois de deixar os pertences numa mesa.

— Eu poderia começar questionando porque você nunca me escuta — disse, mesmo sem ter certeza de quem era, o peso das palavras me fizeram sentir culpada.

O tom da sua voz despertou alguma lembrança, porém sem imagens, apenas uma sensação. Apesar da dureza, o sentimento que surgiu no meu peito foi de conforto.

Ele parou ao lado da minha maca respirando fundo, sua mão se ergueu segurando a minha com delicadeza.

— Mas por enquanto vou só ficar feliz de você estar bem, e viva.

Logo após sua confissão, mais uma vez a porta abriu, dessa vez com um estrondo grosseiro e indigno de um hospital. Senti um afago vindo do homem ao meu lado, o polegar esfregava as costas da mão enquanto o rosto endurecido estava virado para a nova figura que entrou.

— Você! Saia de perto dela — ela apontou o dedo em sua direção. Os cabelos castanhos eram longos e caíam em cachos largos, ao contrário daquele que me segura a mão estava trajada de branco da cabeça aos pés e com joias douradas que cintilavam com resto de sol.

Eu sabia quem ela era, o rosto envelhecido em relação ao que me recordo, porém, o olhar duro e severo é exatamente como me lembro.

— Estamos num hospital, deve manter sua postura apropriada, Juno — respondeu sem piscar ou alterar a postura — pelo bem-estar da sua filha.

Minha mãe ergueu a mão até a boca e em seguida se virou para onde o médico estava parado, o mesmo que me acompanhou durante o dia. Com uma prancheta em mãos, ele deu um olhar significativo para minha mãe e se aproximou.

— Senhorita segue sensível, apesar dos bons reflexos e súbita melhora — explicou —, não me importa o tipo de problema familiar que tenham. Que resolva isso longe da minha paciente, e do hospital, com um terapeuta qualificado de preferência.

Juno, como o homem a chamou, travou os dentes e se sentou calada numa das cadeiras de acompanhantes, cruzando as pernas, exibindo os saltos de bico fino e com sola vermelha.

O médico a ignorou se virando para mim — Como está? Sente alguma dor, algum incômodo?

— Não — minha voz saiu falhada, limpei a garganta e respondi de novo —, fora os machucados, não tem nada me incomodando.

— Natural, deve estar curiosa para saber o porquê de todos os exames, certo? — ele sorriu gentilmente. — Você sofreu um acidente e uma concussão, houve uma fratura no pulso e diversas escoriações externas. Você se lembra de qualquer momento como esse?

Neguei.

— Acidente é o que eles dizem — resmungou minha mãe, mirando o homem que ainda segurava a minha mão. Apesar dos olhares cortantes, ele não mostrava nenhuma intenção de soltar. — Meu marido, meu pobre marido, a morte já levou um e agora você está tentando levar o que me resta.

— Se quiser me acusar de algo, fale com a polícia — rebateu —, espere. Você já o fez, e não foi descoberto absolutamente nada.

— Senhora Sayano, se continuar. Vou ser obrigado a pedir que se retire.

— Doutor, eu sou apenas uma mãe preocupada com o bem-estar de sua filha. Esse — ela olhou para o homem com desdenho —, psicopata sequestrou a minha filha. Fez a cabeça dela.

— Pelo que eu me lembre, foi que me pediu em casamento — respondeu.

Puxei o ar surpresa, e sem realmente querer, apertei sua mão — Somos casados? Mas… Quem é você?

O doutor suspirou audivelmente levantando a mão para os cabelos — Teria dito se vocês não começassem a discutir antes, está com um aparente caso de amnésia, não sabemos dizer se é permanente ou não. O indicado é fazer alguns estímulos para recuperar a memória gentilmente, não jogando informações dessa maneira.

— Me desculpe, mas o horário de visita acabou — uma enfermeira disse —, apenas o acompanhante pode ficar. O registro está marcando Sakusa Kiyoomi.

— Sou eu — respondeu meu… Marido?

— Espera sou a mãe dela, ele não pode ficar aqui! , pense no que seu pai diria!

— Desculpe senhora, mas são os protocolos — a enfermeira, que é mais forte do que aparenta, retirou a mulher e fechou a porta.

O mais velho respirou fundo — Temos alguns exames e tomografias agendadas para amanhã, precisamos da sua autorização.

— Claro — foi o primeiro momento em que ele soltou minha mão, assim que seu calor se foi senti como se de repente estivesse incompleta. — Devo ter algum cuidado especial nos dias de visita?

— Nenhum em particular, mas fotos ou lembranças que possam servir de gatilhos podem ser úteis, conversa também. Estou de plantão hoje, me avise se precisar de qualquer coisa.

— Obrigado.

Assim que ficamos sozinhos, ele tirou a máscara e puxou a cadeira para se sentar ao meu lado. Pronto para ver a pasta de documentos que trouxe, sem a máscara e vendo seu rosto por inteiro, ponderei como eu acabei com alguém como ele.

O casaco grosso foi dobrado cuidadosamente e colocado sobre a mesa de canto, ele mantinha de vestes uma camisa de gola alta preta justa ao seu corpo e um colete também da mesma cor. Seus ombros eram largos e os braços maiores do que imaginei, o tecido marcava os músculos conforme tencionados.

Enquanto tomava meu tempo o observando de repente sua cabeça se levantou, o olhar se prendendo ao meu como um ímã.

— Não somos casados — disse —, somos noivos

— Certo — voltei meu olhar para o teto —, desculpe.

— Pelo quê?

Esfreguei as pontas dos dedos juntos, incerta do porquê o pedido de perdão repentino — Não sei ao certo, mas senti que devia dizer.

— Se é por ficar aqui, somos um casal, faria o mesmo por mim — respondeu olhando os papéis no colo novamente —, agora se for seu subconsciente se desculpando pela sua teimosia, é outra conversa.

Ele disse assim que chegou que eu não escutava, e me fez ponderar — Nós brigamos, no dia do acidente?

Sua postura pareceu travar, e então os papéis foram colocados de lado para poder me olhar. Dessa vez seus olhos que pareciam inexpressivos estavam repletos de pesar.

— Não, eu disse pra você não sair, se tivesse insistido um pouco mais, talvez não estivéssemos aqui.

— Pode me contar o que aconteceu?

— Para isso, preciso voltar um pouco à história, até quando você se lembra? — questionou.

— Acho… Até quando meu pai morreu.

Seus olhos se abriram um pouco, um certo desapontamento — Foi pouco antes de conhecermos, literalmente.

— Como assim?

Kiyoomi pareceu pensar, seus olhos se abaixaram — Minha família tem uma funerária, a primeira vez que nos vimos foi para resolver as questões do enterro.

Não soube como reagir aquela informação, tinha o comparado como um deslumbrante ceifador momentos antes. Porém, não fazia ideia que essa afirmação tinha algum fundo de veracidade.

— Posso te contar a história do meu ponto de vista se quiser — Kiyoomi sugeriu, deixando completamente de lado as folhas de trabalho —, mas pode demorar um pouco.

Me acomodei na cama e sorri, aproveitando sua companhia — Não se preocupe, tenho tempo.


— Onde estão os mortos do dia? — pedi assim que entrei no escritório, tirando o casaco pesado dos ombros e pendurando cuidadosamente no apoio.

— Será que você consegue ser menos indelicado? — Motoya respondeu erguendo os olhos da própria pilha de documentos — Contratos Kiyoomi, contratos, as pessoas já perderam seus entes queridos, não precisam ficar lembrando a todo instante que estão mortos.

— É a verdade, evitar falar não vai fazer eles levantarem do caixão — rebati abrindo as cortinas, só porque estamos numa funerária não quer dizer que precisamos trabalhar nas sombras. Quando os panos foram empurrados, a luz do sol iluminou as partículas de poeira e também a soleira da janela completamente marcada com o acúmulo delas.

— De quanto em quanto tempo estão limpando o escritório? — questionei mantendo os olhos fixos nas manchas.

— Duas vezes na semana, por completo e todos os dias o básico — respondeu.

— Faça quatro — alcancei a última gaveta de minha mesa, tirando de dentro dela um pano para me livrar da aparência horrorosa da janela. — A funerária Shikusa não pode ficar mal apresentada.

— Nosso avô estaria se revirando de alegria ao ver como você cuida dos negócios da família. Antes de sentar para revisar os contratos, preciso de aprovação neste aqui.

Motoya colocou uma pasta em cima da minha mesa — A família quer fornecer por conta todos os arranjos.

Puxei a cadeira me sentando em seguida e empurrando a pasta de volta para ele — Negado, não fazemos esse tipo de serviço. É feito completo, que procure outro lugar.

Meu primo voltou a empurrar na minha direção — Ao menos olhe seu idiota, não querem redução de valor. A filha que está responsável pelo contrato disse que iria trazer algumas amostras agora de manhã.

Puxei a pasta com um dedo e em seguida abri para revisar a proposta, o que meu parente disse era verdade. Inclusive eles já tinham feito uma parte do pagamento, o morto era um homem de 68 anos que faleceu de um problema de coração. E aquela que estava querendo quebrar as regras de funcionamento da funerária era a mesma que assinou no fim.

Sayano.

— Podemos ao menos ver os arranjos — Toya tentou intervir para o lado da cliente —, se não atingir seus padrões, diremos ser impossível.

— Por que está tentando ajudar? — questionei fechando a pasta em seguida, erguendo os olhos para o rapaz.

Ele colocou as mãos no bolso da calça social, desviando os olhos para a janela. Geralmente nem eu e ele cuidamos do fechamento dos contratos, temos um setor comercial exclusivo para isso. O ver tão empenhado em discutir algo que para começo nem devia ser cogitado, me fez pensar que algo aconteceu enquanto estive fora.

— Ocasionalmente nos deparamos com esse tipo de família, mesmo no velório de um familiar, querem usar o nome Shikusa para mostrar status. A viúva exigiu falar diretamente com um dos responsáveis, já que o falecido é um magnata da indústria de energia. Como você não estava aqui, eu as atendi.

Explicou, e continuou.

— Uma queria tudo do mais caro, enquanto a outra estava levando em consideração as preferências do morto. Você pode pensar por eliminação qual é qual — ele levantou uma das mãos para o cabelo —, fiquei com um pouco de pena. Foi o único pedido que a filha fez, parece ser uma boa garota.

— Se abrir exceção para todas as pessoas que chegarem aqui com lágrimas e problemas familiares, vamos falir.

Um longo suspiro — Posso lidar com as suas retaliações depois, pode até me demitir se quiser. Mas seja um pouco mais humano, apenas dessa vez, rei dos mortos.

O apelido que ganhei pelo modo de tratar os negócios me forçou a fazer uma careta. É verdade que depois que herdei o posto de diretor, os negócios prosperaram a ponto de se tornar uma franquia, com serviços cobrindo todo território do país. Porém, o nome não é particularmente agradável.

— Se for uma perda de tempo, vou descontar do seu salário.

— Que assim seja.

Não muito depois, como combinado previamente, a secretária que atendia na recepção e guiava os potenciais clientes bateu na porta, avisando que havia chegado uma senhorita com diversos arranjos e que tinha uma reunião. Motoya me olhou, quase dando um pulo quando percebeu que tinha o rosto completamente virado em sua direção.

— Leve-a para a sala de mostruário, aquela que está vazia. Já vamos a encontrar.

— Claro. Sr. Komori.

A velha pareceu deslizar no chão como um espectro, silenciosamente, atendendo os pedidos como ordem suprema.

Meu primo ajeitou a gravata nervosamente enquanto sob meus olhos — Pare de me olhar dessa maneira. Está me dando calafrios.

— Não estou olhando de nenhuma maneira em particular, só estou achando estranho que antes estava tão confiante na boa ação e agora parece preocupado. — disse me levantando e em seguida ajeitando o colete e as mangas da camisa social preta. Com passos calmos, andei até onde o paletó estava pendurado e o vesti, pronto para cumprir a promessa com meu primo de ao menos avaliar.

O mármore branco e quase espelhado do chão ecoava com meus passos ritmados, completamente liso, imaculado, contrastando com as paredes de cores frias defendendo nosso ramo de atuação. Nas laterais do corredor principal, a vista para o jardim externo e a capela, onde os clientes podiam chorar suas tristezas enquanto assinavam um contrato para garantir que o enterro seria bem executado.

Morte não é um tabu, é mais natural do que podemos imaginar. Existe uma frase que diz que começamos a morrer no momento em que nascemos, e nada define mais a vida do que isso.

Quando contratei as floriculturas responsáveis pelos arranjos, as visitei individualmente, escolhi a dedo os melhores profissionais. Sabia ter exclusividade com os mais experientes artesãos de flores, mas o que encontrei quando abri as portas duplas do recém-reformado e vazio mostruário foi algo que nunca havia visto.

Era como uma visita da própria primavera.

Não tinham muitos arranjos, mas eles se complementam de maneira única, as rosas que eram as flores mais comuns e conhecidas foram colocadas de lado e os arranjos de cores branco e vermelho foram tomados por flores de cravo e margaridas.

Mostrava a qualquer um com bom conhecimento dos significados das flores que a pessoa que partiu era respeitada, amada e que deixou para trás boas lembranças. O arranjo parece que foi manejado por um profissional, perfeitamente equilibrado e disposto.

— Senhorita Sayano, obrigado pela visita, como disse vamos avaliar os arranjos e se possível-

— Quem fez? — interrompi me aproximando das flores —, nossos contratos de exclusividade não permitem que ninguém faça arranjos por fora. Não existe maneira de ter sido feito por alguém que não é nosso funcionário.

— Desculpe, mas… Fui eu que fiz.

Até aquele momento, a presença da tal cliente foi insignificante. Porém, quando ela disse que havia feito com as próprias mãos, a situação mudou um pouco.

Virei para a figura, ela pareceu se encolher sob meu olhar, porém não desviou dos meus olhos. Consegui ver nesse momento as marcas de olheira envolta dos olhos, e a pele pálida junto da feição cansada. As mãos que estavam juntas na frente do corpo tinham alguns curativos, provavelmente por manusear as flores apressadamente durante a madrugada.

— Você tem uma floricultura? Trabalha com arranjos?

Ela balançou a cabeça — Não, eu só gosto. Eram as favoritas do meu pai, mas não tinha no catálogo proposto, por esse motivo pedi ao Sr. Komori para fornecer por conta.

Certo, esse era o principal motivo. Meu primo olhou para mim com um sorriso semi-vitorioso no rosto. Ele me conhecia bem o suficiente para entender que quando me interesso em algo, vou até o fim.

— Vou abrir a exceção dessa vez — disse —, com uma condição.

O rosto dela se iluminou, trocando um breve olhar com Toya, que foi o intercessor do seu pedido.

— Trabalhe para mim.



— Então quer dizer que trabalho para você? — perguntou enquanto deitada na cama de hospital. Alguns dias após acordar, nosso primeiro encontro foi apenas uma das muitas histórias que contei dentro daquele quarto de paciente.

— Não exatamente — respondi analisando os balanços financeiros —, no papel somos sócios. Depois de algumas reuniões eu consegui te convencer a abrir uma floricultura, exclusiva da Shikusa, o que é provavelmente o motivo da sua mãe me odiar.

Silêncio, se ela lembrava até o acidente do pai, os sentimentos divididos comigo naqueles primeiros dias ainda eram bem recentes. A chamavam de herdeira, mas no fim ao invés de ajudar no império do pai, ela queria uma vida bem mais simples e florida. O que conforme as vontades da mãe não seria possível, em seus olhos era a substituta dele.

— Posso imaginar o tipo de coisa dita — ela suspirou alto olhando para o teto — desde criança meus gostos eram mais terrenos. Diferente da minha mãe, que sempre esteve no luxo, eu achava um par de botas com lama e uma pá de jardim a coisa mais maravilhosa do mundo. Ela dizia ser lixo, que meus gostos eram ruins e que eu precisava abandonar logo aquelas bobagens.

Fiz uma careta, parece com o tipo de coisa que já presenciei sendo dito nos três anos que estamos juntos.

— Infelizmente não posso afirmar que ela ficou particularmente feliz com a decisão.

Um riso seco escapou da sua boca, a cabeça tombando para o lado a fim de olhar para mim, ainda havia diversos machucados do acidente. Fora a memória que aparentemente levaria algum tempo para retornar, o restante das feridas pareciam estar se curando bem.

— E a sua família? — ela perguntou.

— Indiferentes, enquanto os negócios vão bem. Não interferem — expliquei —, exceto Toya, quando convém.

— Eles… Gostam de mim?

Voltei a olhar para os papéis — Meus pais já são velhos demais para ter vontade de opinar em algo, e meus irmãos estão mais interessados em gastar sua fortuna. Se por bem, quer dizer juntar-se nas festas obrigatórias de família para tirar sarro de mim, então, sim.

— Parece que vocês tem uma competição de Imagem & Ação acontecendo, não sei dos detalhes — apontei —, Motoya deve ser capaz de dizer melhor já que ele mantém o placar.

— Espero poder lembrar logo, devem ser memórias preciosas — comentou com um sorriso tenro.

Por um momento, me lembrou dos sorrisos que recebia depois de um longo dia no trabalho. Apesar de ser um serviço feito para os mortos, lidar com os vivos que ficavam para trás não fazia da profissão exatamente fácil. Contudo, tudo parecia se dissipar quando chegava em casa e tinha aquele mesmo sorriso me recebendo de volta.

É inimaginável pensar que todos os momentos coletados nesses anos vivem apenas na minha cabeça. é ela, apenas isso. Eu não sabia o que era a vida antes de aparecer.

Conhecia o dever, as obrigações, sabia lidar com as expectativas que os outros colocavam em mim e seguir com suas decisões. Mas não pensar por mim mesmo, e tomar ações puramente para atender os desejos do meu coração.

— Me diga algo, Kiyoomi — chamou fazendo meu próprio nome soar desconhecido — disse que eu te pedi em casamento. Como foi?

Seus olhos estavam repleto de curiosidade, porém as lembranças me fizeram levantar os ombros. Uma funerária passa longe de ser o lugar ideal para um pedido desse tipo, principalmente quando se está na presença de dezenas de caixões.

— Peculiar.

Uma gargalhada rompeu no quarto em seguida para ser interrompido repentinamente. colocou a mão na cabeça, em seguida fechando os olhos e fazendo uma cara de dor, imediatamente me levantei pronto para chamar o médico.

Porém, antes de completar a ação, a senti segurando meu braço.

— Suponho que eu não deva fazer reações tão bruscas — apesar da feição dolorida, ela sorria — estou bem. Para minha condição no caso.

— Ao menos seu terrível senso de humor continua intacto — respirei fundo e me sentei na beirada da cama. Ela ainda tinha a mão no meu braço, incerto coloquei a mão por cima da sua, sentindo seu calor contra a pele.

— E isso é bom, ou ruim? — ela perguntou.

Levantei os olhos para seu rosto — É inesperado. Porém, tende a ser mais para o bom.

— Tem alguma coisa te incomodando, o que é? — perguntando, como sempre vendo direto através das minhas barreiras.

Não foram, uma ou duas vezes que ouvi de pessoas próximas sobre a minha sinceridade desmedida. Já me coloquei em algumas situações complicadas por responder o que penso e não encobrir as palavras com açúcar. Motoya costuma dizer que nunca encontraria alguém como novamente, disposta a me entender, com falhas e tudo.

— O que vai fazer se não recuperar suas memórias?

olhou para o teto novamente — É uma pergunta que eu também gostaria de ter a resposta, porém ainda não cheguei a uma conclusão.

Que tipo de pessoa acorda de um coma, descobre que está noiva de alguém que não se lembra e fica bem com isso? Se eventualmente ela quisesse que nossa história tivesse um fim, nada faria além de a ver andar para fora da minha vida com uma profunda tristeza.

— Suponho que seria apenas um pouco mais de trabalho para você — disse dispersando todos os pensamentos enevoados da minha mente —, vai precisar fazer eu me apaixonar de novo. Se bem que com esses dias de companhia, garanto que já teve uma ótima largada.

Deixei espaço para ela continuar, pois sabia que sua fala não iria parar ali.

— Deu para perceber na primeira visita que não é alguém que fala muito, se eu tivesse que chutar também não é do tipo de pessoa com dezenas de amigos. Mas colocou algum esforço em preencher todas as lacunas do que esqueci e veio me visitar diligentemente todos os dias. Conversa comigo mesmo quando está cheio de papéis para revisar — levantou a mão livre para o colo. — Meu coração lembra, mesmo que a cabeça não, ele acelera toda vez que passa pela porta.

— Sei disso, dá para escutar — acariciei as costas de sua mão com o polegar. Apontando para a máquina que media seus batimentos, a mesma acusou a aceleração provando meu ponto de imediato.

— Minha mãe diz que me sequestrou, então tome responsabilidade por suas ações e continue cuidando de mim.

Soltei os ombros olhando para a janela e o fim de tarde — Primeiro, é um delírio da sua mãe. Como pode ser um sequestro quando você mesma me pediu para tirar da casa?

— Fiz isso?

— Sim, e ainda ameaçou andar a pé até minha residência caso não o fizesse — nunca fiquei tão surpreso numa madrugada como aquela. — Segundo, eu continuaria cuidando de você enquanto me quiser por perto, independente da situação.

Me inclinei em sua direção beijando o topo de sua cabeça, não soltando a mão que segurava a minha.

Dia após dia, por pouco mais de duas semanas, aquela promessa se provou ser verdadeira. Não houve um único dia em que não estive na companhia de minha noiva com problema de memória. Fosse respondendo suas perguntas ou conversando sobre notícias mundanas e passando o máximo de tempo juntos.

Até que enfim chegou o dia em que recebeu a alta.

Depois de uma ordem restritiva da polícia, um processo por difamação, sua mãe se manteve quieta. Provando que a preocupação era apenas uma fachada. Seu interesse real era na herança do falecido marido magnata, que estava todo no nome da filha.

Ter de volta em casa, fez meu coração se acalmar de uma maneira que não imaginei que aconteceria. Assim que ela colocou os pés no caminho de jardim, três grandes e redondas manchas pretas vieram correndo em sua direção, os rabos abanando e mais animados do que a hora de comer.

Estalei a língua para os manter controlados, tentando evitar que pulassem nela com euforia demais. Imediatamente eles se acalmaram.

— Você tem cachorros! — disse animada olhando os três que nos rodeavam choramingando e pedindo por atenção. — Nunca pensei se fosse um cara de animais, parece tão certinho.

— Eles são treinados, apesar de estarem agindo como filhotes, são menos bagunceiros do que aparentam — respondi a chamando para continuar andando.

Levava sua bolsa em uma mão, o outro braço estava dobrado enlaçado com o seu, servindo de apoio. Abri a porta de madeira escura e indiquei para que entrasse.

Por estar no meio do dia, a iluminação natural do sol deixava o ambiente claro, apesar da maioria dos acabamentos serem escuros. No primeiro andar havia um pequeno lobby com sofás fofos junto a uma sala de jantar e uma cozinha completa com balcão. Um corredor levava para os fundos onde ficava uma grande e confortável sala de estar com visão para o jardim extenso da casa, e além dele a estufa de .

Escritório e quartos ficavam no andar de cima, além do principal, haviam dois hóspedes que geralmente ficavam para Toya ou qualquer um dos meus parentes que vinha visitar.

— Eles não entram na casa? — minha noiva perguntou vendo os três cães sentarem comportados na porta.

— Aqui não, tem acesso à sala de estar pelos fundos, mas não costumam visitar outros cômodos. Preferem ficar no seu jardim.

Juntos andamos pela casa, os olhos explorando cada canto, as mãos leves de toque delicado acariciavam os móveis, sentindo as texturas das paredes como se fosse a primeira vez. Sua feição, repleta de realização, pareceu incrédula quando avistou o jardim atrás da grande parede de vidro que separava a sala de estar do quintal.

Haviam corredores de flores, de diferentes tipos e cores. Bailando suave com o vento soprando fraco no meio-dia. soltou meu braço, andando com passos incertos em direção à divisória de vidro.

— Tudo isso é meu? — sua voz soou falha quando virou a cabeça para me encarar por cima do ombro. Todas as estrelas do universo pareceram brilhar dentro dos seus olhos, mesmo sendo de dia.

— Sim — coloquei a bolsa apoiada na mesa de centro —, e muito mais. Tem uma fazenda inteira de cultivo.

— É como um sonho…

A voz soou distante, talvez um pensamento que não devia ser dito em voz alta.

— Temos algum tempo para gastar — comentei — o que quer fazer? Está com fome? Posso pedir algo.

Ela segurou a mão no peito, andando até o sofá e se sentando nele devagar, mantendo as mãos no joelho após bater no estofado, me convidando a se juntar a ela — Que tal um filme, e almoço? Mal posso esperar para comer algo de verdade, comida de hospital é tão insossa.

A careta que surgiu em seu rosto foi quase infantil, causando um riso sincero para puxar os cantos dos meus lábios.

O pedido foi feito no restaurante favorito, e na hora de escolher um filme… Só havia uma opção.

— Hércules? — ela pareceu surpresa — A animação?

— Já perdi as contas de quantas vezes assistimos juntos — me sentei ao seu lado —, não porque eu pedi.

A música característica do desenho animado começou a tocar, as musas dançavam na tela contando a criação do mundo pelos olhos dos gregos. parecia vidrada, ao menos aquela cena era familiar. Inconscientemente ela resmungou junto, e seus dedos também tamborilaram no ritmo.

Porém, algo inesperado aconteceu.

“Tão comovente.”

Bastou uma frase, soltou um grito estridente que fez até mesmo os cachorros na varanda latirem.

— O que foi? — me virei para ela, procurando qualquer indício de dor. Seus olhos estavam completamente abertos apontando para a figura de pele cinza e cabelos azuis de fogo que apareceu na tela.

— O Hades! É você!

— É um dos apelidos que você me chama mas-

Cessei minha fala quando senti seu corpo se juntar ao meu, um calor desaparecido há algum tempo, mas nunca esquecido. tinha cada perna de um lado do meu corpo e antes mesmo de pensar minhas mãos seguraram sua cintura com firmeza. Lábios suaves, doces junto aos meus, provando que aquilo era, sim, a vida e não um sonho.

— Eu me lembro — a voz chorosa soou —, céus. Kiyo, eu…

Um soluço de choro rompeu sua fala logo depois do apelido familiar, a segurei ainda mais próxima do corpo.

— Se eu soubesse que tudo que eu precisava era desse desenho, teria a feito assistir antes — seu rosto se afastou do meu pescoço, os caminhos de lágrimas lavando as bochechas coradas.

— Desculpe, aquele dia eu devia ter te escutado — esfreguei seus braços trêmulos —, foi uma bobagem. Era só um buquê, eu não tinha que sair num dia de chuva naquela noite. Não ia fazer nenhuma diferença entregar na manhã seguinte.

— Pare — pedi —, não vai fazer diferença. Já aconteceu, ter você de volta depois de uma experiência de quase morte. É mais do que qualquer coisa que posso pedir ao universo. A culpa de um, ou de outro, não importa, se tem um culpado é o bêbado que dormiu ao volante e bateu no carro aquele dia.

— Isso também — ela acariciou meus cabelos —, sabe que agora tenho memórias do hospital também. Eu sabia que tinha odiado o jeito que eu te pedi em casamento.

— Odiar é uma palavra muito forte — respondi tentando esconder meu próprio riso —, tem outras alternativas que me pareciam mais apropriadas. O que me lembra…

Coloquei a mão dentro do bolso da camisa, puxando o anel — Isso pertence a você. Um dos motoristas da funerária o encontrou no assoalho do meu carro.

Tomei sua mão, voltando a joia para seu lugar original, o anel de noivado comprado depois do pedido de casamento, ele tinha esmeralda brilhante no meio do filete prateado apoiado com um diamante de cada lado. Beijei as costas de sua mão antes de voltar a fechar meus braços envolta da sua cintura. Encostei a cabeça em seu colo, escutando o coração batendo com vigor.

Enfim, minha primavera retornou.

— Qual o nome do motorista? — ela perguntou — Preciso agradecer, ele sempre parece cair do meu bolso quando vou para a fazenda.

Sorri contra sua pele, correndo a mão pela extensão da sua coluna e me afastando para poder olhar nos seus olhos e responder.

— Caronte.



Fim.


Nota da autora: Obrigada por ler até aqui!
Até mais, Xx!!

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