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Codificada por Aurora Boreal 💫
Atualizada em: 16/05/2025

Tóquio, Japão, final de 2024:

Uma lágrima teimosa escorreu dos olhos de assim que ela terminou de reler a última carta trocada com há anos atrás. Ela segurou o papel com cuidado, como se a fragilidade daquela página pudesse refletir o peso das memórias que carregava. Por um instante, seus dedos hesitaram sobre as palavras escritas, deslizando pela assinatura no final. . Aquele nome ecoava no silêncio de seu pequeno ateliê como uma melodia nostálgica.
Com um suspiro profundo, dobrou a carta cuidadosamente, como sempre fazia, e a guardou novamente dentro de uma das caixas que abrigavam todas as correspondências. A caixa, desgastada pelo tempo, estava decorada com flores pintadas à mão, um dos muitos projetos que ela havia começado anos atrás, em meio à empolgação de trocar cartas.
Ela passou os dedos pela tampa da caixa, quase como se pudesse sentir os fragmentos da história que haviam construído juntos. Palavras sinceras, sonhos confessados, e até pequenos desenhos de sua autoria preenchiam os papeis que guardava como tesouros. No entanto, o vazio que sentia agora parecia tão grande quanto a distância que os separava.
fechou os olhos por um momento, tentando afastar a mistura de saudade e arrependimento que a invadia. Quando abriu os olhos novamente, encarou o ateliê ao seu redor. As ilustrações inacabadas na mesa pareciam tão solitárias quanto ela. Inspirou profundamente e sussurrou para si mesma, como se pudesse se convencer:
— É apenas uma lembrança.
Mas, no fundo, ela sabia que não era tão simples. O peso das palavras trocadas, da conexão que eles haviam construído, ainda estava ali.
Com um movimento decidido, fechou a caixa e a colocou de volta na prateleira. Seus olhos caíram sobre o calendário pendurado na parede, marcando o início de uma nova semana. Talvez fosse hora de seguir em frente. Ou talvez, apenas talvez, algo inesperado estivesse prestes a acontecer.
E pela primeira vez em muito tempo, permitiu-se imaginar o que seria encontrar novamente... Um pensamento que trouxe à tona uma emoção que ela não sabia se deveria temer ou acolher.

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Osaka, Japão, final de 2024:

iniciava mais um dia como de costume. O relógio ao lado da cama marcava 6h45, e o som do alarme ecoava pelo pequeno apartamento. Ele desligou o aparelho com um gesto rápido, levantando-se em seguida, sem perder tempo. A rotina era a única coisa que ele parecia ter controle ultimamente, e isso o confortava de certa forma. O apartamento era modesto, mas organizado. Cada item tinha seu lugar, refletindo o lado prático e metódico de . Após uma rápida ducha, ele preparou seu café da manhã: uma xícara de chá verde e um pedaço de pão tostado. Sentado à mesa, ele abriu o notebook e verificou os e-mails relacionados ao trabalho. Como editor e escritor em uma pequena revista literária, sua função era revisar e ajustar textos, muitas vezes perdendo horas mergulhado nas palavras de outros.
Seu trabalho, embora solitário, era algo que ele apreciava. sempre encontrara refúgio na literatura. Palavras escritas eram mais fáceis de entender do que as faladas, e ele preferia o silêncio das páginas ao barulho do mundo.
Quando terminou o café, pegou sua pasta de couro desgastada — a mesma que usava há anos — e saiu para o escritório. O caminho era sempre o mesmo: uma caminhada de vinte minutos pelas ruas movimentadas, observando as pessoas ao redor, mas raramente interagindo com elas. gostava de pensar que conhecia a cidade como a palma da mão, mas a verdade era que ele vivia em sua própria bolha, evitando se conectar profundamente com qualquer coisa ou alguém.
O escritório ficava em um prédio antigo, com uma fachada discreta e janelas grandes que deixavam a luz natural invadir o ambiente. Ao entrar, cumprimentou rapidamente os colegas com um aceno de cabeça antes de se sentar em sua mesa, cercada por pilhas de manuscritos e cadernos de anotações.
Era uma vida tranquila, mas havia uma inquietação constante que ele não conseguia ignorar. Às vezes, no meio do trabalho, ele se pegava olhando pela janela, perdido em pensamentos que não ousava compartilhar. Entre esses pensamentos, as cartas que trocara com frequentemente surgiam, como uma brisa que balançava as lembranças.
Havia tempos em que ele queria escrever para ela novamente, mas sempre hesitava. A razão? Ele mesmo não sabia ao certo. Além de claro, todo o tempo que havia passado, ele já não sabia mais se o endereço dela continuava o mesmo e outras infinitas coisas, talvez também fosse o medo de perceber que o vínculo que criaram no passado havia se dissipado. Ou talvez fosse o temor de que, ao reviver aquele contato, ele precisasse encarar sentimentos que cuidadosamente havia guardado.
sacudiu a cabeça, afastando as divagações, e voltou sua atenção para o manuscrito que precisava revisar. Mas, no fundo, ele sabia que aquele dia seria apenas mais um capítulo em sua rotina metódica... ou talvez o início de algo que ele ainda não podia prever.

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amarrou os cabelos em um coque desleixado enquanto segurava o copo de café com a outra mão. Ainda era cedo, mas o sol já iluminava as ruas movimentadas de Tóquio. Ela carregava sua pasta de couro repleta de esboços e seu tablet para ilustração digital. O café estava quente e doce, exatamente como ela gostava, e o aroma a ajudava a espantar o cansaço.
Seus passos a levaram ao estúdio de design da editora onde trabalhava como ilustradora de livros infantis. Era um espaço colorido e vibrante, com paredes cheias de quadros de personagens que ela e seus colegas haviam criado ao longo dos anos. adorava aquele lugar. As ilustrações eram sua forma de dar vida às histórias, e havia algo mágico em saber que seus desenhos poderiam encantar crianças em todo o Japão.
Ao chegar, ela cumprimentou os colegas com um sorriso educado e se acomodou em sua mesa. O trabalho daquele dia envolvia finalizar as ilustrações de um livro sobre animais do oceano. Com os fones de ouvido tocando uma playlist instrumental, ela mergulhou em seus desenhos. Traços fluidos e cores vibrantes preenchiam a tela do tablet enquanto ela trabalhava em uma cena de baleias nadando no fundo do mar.
A manhã transcorreu tranquilamente, interrompida apenas por risadas ocasionais entre os colegas ou pela entrega de um pacote de livros recém-impressos. se sentia confortável naquele ambiente, ainda que mantivesse uma certa distância emocional das pessoas. Ela preferia deixar suas emoções se expressarem nos desenhos e não em palavras.
No início da tarde, enquanto revisava os detalhes de um personagem, o diretor do setor apareceu na sala. Ele era um homem de meia-idade, com um terno impecável e um sorriso cortês que geralmente precedia notícias importantes.
, Takashi, Mai, vocês podem vir até a sala de reuniões? Gostaria de discutir algo com vocês.
Trocaram olhares curiosos, mas todos assentiram e o seguiram. A sala de reuniões era simples, com uma longa mesa de madeira e um quadro branco. Quando todos estavam sentados, o diretor começou a falar.
— Como vocês sabem, a nossa editora tem crescido bastante nos últimos anos. E, com esse crescimento, decidimos expandir nossos horizontes. Vamos abrir uma nova filial em Osaka.
Os três trocaram olhares surpresos, e o diretor continuou:
— Vamos precisar de uma equipe dedicada lá, especialmente no setor de ilustração. E, analisando os perfis dos nossos colaboradores, vocês três foram os escolhidos para essa oportunidade. Sei que é uma mudança grande, mas consideramos que, por não terem compromissos familiares como maridos, esposas ou filhos, vocês têm mais flexibilidade para aceitar o desafio.
sentiu o coração acelerar. Uma mudança para Osaka? Ela nunca havia pensado nisso. Tóquio era sua casa, o lugar onde cresceu e construiu sua carreira. Mas, ao mesmo tempo, a ideia de uma nova experiência a intrigava.
— Entendo que isso pode parecer repentino, então vocês terão uma semana para pensar e decidir. Quem aceitar terá um pacote de benefícios para a transição, incluindo ajuda de custo para moradia.
Assim que a reunião terminou, voltou para sua mesa, incapaz de se concentrar nos desenhos. O convite mexera com algo dentro dela. Era um novo começo? Uma chance de sair da rotina e buscar algo diferente?
Enquanto tentava processar tudo, sua mente voltou para a caixa de cartas. Por algum motivo, ela se perguntou novamente se ainda estava em Osaka. E, se estivesse, como seria vê-lo depois de todos esses anos?

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O sol da tarde atravessava os janelões da cafeteria onde costumava se encontrar com os poucos colegas de trabalho que considerava próximos. O aroma de café fresco e o murmúrio de conversas preenchiam o ambiente, criando um contraste agradável com a seriedade de sua rotina no escritório. À sua frente, estava Junpei, um designer gráfico que trabalhava no mesmo prédio. Junpei era o oposto de : falante, espontâneo e, às vezes, um pouco desorganizado, mas era exatamente isso que tornava suas conversas menos entediantes.
levou a xícara de café à boca, absorvendo o calor do líquido enquanto Junpei falava animadamente sobre um novo projeto em que estava envolvido.
— Cara, você não vai acreditar — começou Junpei, gesticulando com energia enquanto mexia no cappuccino com a colher. — Acabei de saber que a Editora Yamazaki vai abrir uma filial aqui em Osaka.
ergueu uma sobrancelha, mais por cortesia do que por real interesse.
— Yamazaki? Já ouvi falar. Publicam livros infantis, certo?
— Isso mesmo! — Junpei confirmou com um sorriso largo. — Eles são grandes no mercado. E sabe o que é melhor? A nova filial vai ficar no nosso prédio!
apoiou o cotovelo na mesa e olhou para Junpei com leve curiosidade.
— No nosso prédio?
— Exato! No andar de cima, inclusive. Parece que vão trazer alguns ilustradores de Tóquio para cá. Imagino que a equipe de design deles deve ser incrível.
assentiu lentamente, desviando o olhar para a rua movimentada do lado de fora da cafeteria. A conversa era banal, mas uma parte de sua mente se deteve na ideia de "ilustradores de Tóquio". Ele não sabia muito sobre a Editora Yamazaki além do fato de que publicavam livros voltados para crianças.
— Interessante — disse, sem muito entusiasmo, antes de voltar a tomar um gole do café.
— Interessante? É mais do que isso, ! — Junpei insistiu, rindo. — Você deveria se animar. Quem sabe não acabamos colaborando com eles em algum momento?
deu de ombros. Ele não era do tipo que se deixava levar pela empolgação.
— Veremos.
Junpei continuou falando sobre a novidade, mas não prestava muita atenção. Seu pensamento havia deslizado, involuntariamente, para as cartas que trocara durante anos com . Ele ainda não sabia onde ela trabalhava, ou mesmo como estava sua vida nos dias atuais. Apesar disso, a ideia de encontrar algo familiar em meio às surpresas de sua rotina o deixou inquieto.
Junpei acenou com a mão na frente do rosto de , interrompendo seus devaneios.
— Ei, perdeu o foco?
— Não, só estava pensando em outra coisa — respondeu, recostando-se na cadeira.
Junpei riu, sacudindo a cabeça.
— Você está sempre pensando em outra coisa. Mas fique de olho nessa mudança, pode ser interessante.
apenas concordou com um aceno, mesmo que não tivesse certeza do que exatamente era "interessante" sobre aquilo. Ele não fazia ideia de que, no andar de cima, poderia estar uma das poucas pessoas capazes de balançar o mundo que ele mantinha tão controlado.

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Osaka, Japão, começo de 2024:

notou o burburinho assim que pisou no escritório. Aqueles dias de recesso em casa havia feito um em danado para ele, e ao retornar logo se inteirou das fofocas: a editora Yamazaki havia começado suas atividades no prédio.
Ele não conseguia entender muito bem porque aquele fato mexia tanto com todos da revista, afinal, empresas mudavam de localização o tempo todo, e uma editora de livros infantis não parecia algo que fosse causar tanto alvoroço. Mas, pelo jeito, a chegada deles tinha se tornado o assunto principal entre os funcionários.
— Finalmente um pouco de movimento por aqui, hein, ? — comentou Junpei, encostando-se na mesa ao lado da dele.
ergueu os olhos da tela do computador, franzindo levemente a testa.
— Desde quando um monte de ilustradores e editores virando seus novos vizinhos é sinônimo de "movimento"?
Junpei riu, cruzando os braços.
— Ah, você sabe como as coisas são por aqui. Qualquer novidade já vira assunto por semanas. E além disso, dizem que trouxeram ilustradores muito talentosos de Tóquio.
voltou sua atenção para o monitor, minimizando alguns arquivos antes de responder com desinteresse.
— Desde que não interfiram no nosso trabalho, tanto faz.
Junpei bufou.
— Você realmente não se anima com nada, né?
— Não com coisas irrelevantes — respondeu , sem desviar os olhos do computador.
Junpei riu de novo, mas antes que pudesse continuar a conversa, alguém chamou seu nome do outro lado da sala. Ele se afastou, deixando imerso na rotina que sempre preferiu.
Mas, por algum motivo, aquela sensação estranha de inquietação continuou pairando sobre ele.

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ajustou os óculos sobre o nariz e conferiu a última ilustração na prancheta digital. O traço delicado do personagem infantil estava quase finalizado, faltavam apenas os últimos retoques de cor. Ela mordeu o lábio inferior, analisando os detalhes antes de salvar o arquivo.
A nova rotina em Osaka ainda parecia um pouco surreal. Fazia pouco mais de uma semana que havia chegado, e mesmo que a adaptação estivesse sendo mais tranquila do que imaginava, o frio na barriga ainda a acompanhava. Assumir a liderança da equipe de ilustradores da filial era um passo enorme em sua carreira, e o reconhecimento de sua arte por autores locais a deixava orgulhosa. No entanto, as mudanças ainda pareciam assustadoras.
Ela se espreguiçou, sentindo os músculos das costas reclamarem do tempo prolongado na mesma posição. Olhou ao redor da nova sala, onde seus colegas de equipe também estavam mergulhados no trabalho. A Editora Yamazaki havia apostado alto na filial de Osaka, e queria corresponder às expectativas.
Enquanto arrumava os papéis espalhados sobre a mesa, seu pensamento voltou para a virada do ano. Em vez de festas ou encontros animados, ela passou o dia entre caixas de mudança, organizando suas coisas e tentando dar um ar mais acolhedor ao novo apartamento. As lembranças de Tóquio ainda estavam frescas, mas aos poucos Osaka ia se tornando seu novo lar.
Um barulho na porta interrompeu seus devaneios. Era um dos editores, chamando-a para uma breve reunião.
-san, o diretor quer revisar alguns detalhes sobre os novos projetos. Você pode vir?
Ela assentiu rapidamente, ajeitando a blusa e pegando um caderno para anotações.
— Claro, estou indo.
Respirou fundo antes de sair da sala. Seu novo começo estava apenas começando.

💌💌💌

O elevador parou no décimo quinto andar, abrindo sua porta para que mais dois passageiros pudessem entrar e então, afastou o corpo para trás, deixando mais espaço do elevador livre para que os dois homens pudessem entrar.
— Ah ! Qual é? Vamos, cara, vai ser legal! Você precisa se divertir um pouco, a vida não só trabalhar e cuidar de dois gatos idosos.
Junpei sacudiu os ombros dele que fez uma careta e então encarou a mulher que os acompanhava no elevador. Os olhos dela estavam saltados e cheios de água, e ela olhava diretamente para ele.
sentiu o ar falhar nos pulmões no instante em que ouviu aquele nome.
.
Era um nome comum, mas não para ela. Não depois de anos escrevendo e recebendo cartas de alguém que, por tanto tempo, existiu apenas em palavras no papel. Seu coração disparou, e por um momento, o burburinho no elevador desapareceu, sendo substituído por uma sucessão de lembranças. As madrugadas em que ficava acordada relendo suas cartas favoritas. A expectativa por uma nova resposta. O carinho escondido nas entrelinhas, nas frases escolhidas com cuidado.
Seus olhos subiram para o homem ao seu lado, sua mente recusando-se a acreditar no absurdo daquela coincidência. Não podia ser o mesmo . O destino não seria tão ousado a esse ponto, não colocaria aquele – o das cartas, o que morava em um lugar distante e inalcançável – bem ali, no mesmo elevador, no prédio onde sua editora acabara de se instalar.
Mas algo dentro dela insistia. Um pressentimento arrebatador, um frio na espinha que a fez continuar olhando. Seu rosto estava quente, seus olhos cheios d’água. Ela não sabia se era emoção, choque ou medo de que estivesse apenas se iludindo.
E se fosse ele?
percebeu o olhar fixo da mulher à sua frente e franziu a testa levemente. Algo na maneira como ela o encarava o deixou desconfortável, como se ele estivesse sendo reconhecido por alguém que ele mesmo não conhecia.
Ainda assim, mantendo sua postura reservada, ele fez uma breve reverência, inclinando levemente a cabeça em um cumprimento educado. Junpei, sempre mais extrovertido, seguiu o gesto com um sorriso simpático antes de voltar a falar sobre seus planos de convencê-lo a sair naquela noite.
O elevador continuou descendo. ainda sentia o coração pulsando forte. Seus dedos formigavam de nervoso. Ela queria perguntar, queria confirmar, mas sua voz parecia presa na garganta.
Quando o elevador chegou à recepção e as portas se abriram, e Junpei saíram primeiro, seguindo para o saguão. Foi nesse momento que ela tomou coragem. Se estivesse errada, no máximo passaria vergonha. Mas se estivesse certa…
?
Seu tom foi firme, mas hesitante ao mesmo tempo.
parou no mesmo instante. Junpei também se virou para ela, surpreso por ouvir o nome completo do amigo vindo de uma desconhecida.
O jornalista franziu o cenho, voltando-se lentamente para encará-la. Seu nome soou diferente na voz dela, como se carregasse um peso maior do que um simples chamado. Algo na maneira como ela disse aquilo o fez sentir um frio na espinha.
Ele a observou melhor dessa vez.
— Sim? — respondeu, mantendo a expressão neutra, mas com uma leve desconfiança nos olhos.
deu um passo à frente, a voz quase falhando enquanto tentava controlar a ansiedade. O coração dela martelava em seu peito, e a realidade de que o homem diante dela poderia ser, de fato, o , o de suas cartas, começava a se tornar avassaladora. Ela respirou fundo, mais uma vez tentando manter a calma.
? — ela repetiu, agora com mais firmeza, os olhos brilhando com um misto de incredulidade e expectativa.
, por sua vez, se manteve em silêncio por um momento, estudando o rosto dela com mais atenção. Algo em sua expressão, nos olhos dela, fez com que sua mente se convulsionasse por um segundo. Aquelas palavras, aquele nome… Ele tinha ouvido aquilo antes, de algum lugar. O silêncio se estendeu, um leve desconforto pairando no ar entre os três. Junpei olhou para o amigo e depois para a mulher, totalmente confuso.
— Você… — começou, mas as palavras ficaram presas. Não conseguia dizer o que estava pensando sem parecer completamente louca. Afinal, como ela poderia afirmar que aquele homem, ali na sua frente, era o mesmo das cartas que ela trocara por anos, sem qualquer certeza? Ela só sabia que algo naquelas feições, no jeito dele, despertava uma lembrança forte demais para ser ignorada.
, mantendo o tom polido, franziu um pouco a testa, respondendo com cautela:
— Isso mesmo. Eu sou . E você…?
A aparência dela não soou familiar para ele. Não havia nenhuma conexão óbvia entre a mulher que ele via em sua frente e ele... Ele também não lembrava de jamais ter trocado palavras com ela, mas, de alguma forma, ela parecia estar esperando algo dele, algo mais do que uma simples saudação.
hesitou por um instante, sentindo a ansiedade sufocando-a. Não queria parecer uma lunática, mas ao mesmo tempo, sua intuição a empurrava para arriscar.
— Eu… — ela começou, mas se interrompeu, sentindo o peso das palavras. Seu cérebro estava tentando processar o que estava acontecendo, enquanto as memórias das cartas, das palavras trocadas com tanto carinho, invadiam sua mente. — Eu… Eu só queria saber… Você, por acaso, escreveu cartas para alguém em Tóquio, há uns anos?
O silêncio se estendeu novamente, dessa vez mais longo. A mente de girou, tentando entender o que ela queria dizer. Algo estava começando a fazer sentido, mas ele não sabia o que era. Junpei, ainda completamente alheio ao que estava acontecendo, apenas observava a troca tensa entre os dois, sem entender as reações deles.
olhou para a mulher com um leve sorriso cético, mas também com um olhar curioso.
— Eu… — ele começou, hesitante. As palavras estavam ali, mas ele as escolhia com cuidado, como sempre. — Eu troquei algumas cartas no passado, sim, mas não estou certo de qual relação você está falando.
se permitiu um sorriso fraco, a esperança iluminando seu rosto. Ela estava ciente de que a realidade poderia ser bem mais simples ou mais complicada do que ela imaginava, mas a conexão que sentia naquele momento parecia inegável.
. Eu… eu acredito que nós trocamos cartas, muitos anos atrás. Você e eu, por meio de um programa de correspondência escolar. Não sei se se lembra, mas…
Agora, foi a vez de se dar conta do que estava acontecendo. O mistério, o alívio súbito, o reconhecimento no olhar dela — tudo se encaixava, como um quebra-cabeça que ele não sabia que estava montando. Ele ficou em silêncio por alguns segundos, os olhos fixos nela, tentando conectar as peças de uma história que ele fazia forças para esquecer, mas não conseguia.
— Você… Você é a , a garota das cartas? — ele perguntou, o tom baixo e incrédulo, ainda sem acreditar totalmente, mas com uma surpresa crescente na voz.
assentiu lentamente, o sorriso tímido se espalhando pelo rosto. Aquela sensação de ter encontrado alguém de um passado distante, alguém com quem trocara tanto, mas com quem nunca havia compartilhado uma única palavra pessoalmente, estava agora prestes a se transformar em uma realidade. Ela sentiu uma mistura de nervosismo e felicidade, com o coração acelerado, esperando pela reação de .
, por sua vez, não sabia o que sentir. Ele estava tão acostumado a manter distância das pessoas, especialmente de quem o tocava de forma tão íntima através das palavras, que a realidade de tê-la ali, bem na sua frente, foi como uma onda inesperada. Ele não estava certo de como reagir, mas sentiu um impulso de se aproximar um pouco mais, como se as palavras do passado estivessem pedindo para ser vividas no presente.
— Eu… não acredito que você está aqui. — murmurou, mais para si mesmo do que para ela, ainda tentando absorver a situação.
Junpei, que até aquele momento tinha estado em silêncio, olhou entre os dois e, com um sorriso travesso, brincou:
— Ah, então é isso! Vocês dois são como… uma espécie de amigos de correspondência de longa distância? Que interessante!
e trocaram um olhar breve, ambos cientes de que estavam prestes a entrar em um território que desafiava tudo o que eles haviam conhecido até então.
— Eu também não! Sonhei tanto com esse momento, que mal consigo acreditar que é real.
sorriu timidamente, as palavras quase escapando dela em um sussurro. Ela se sentia leve e, ao mesmo tempo, sobrecarregada pela intensidade do momento. A visão de , ali, diante dela, estava tão distante da figura idealizada que ela havia construído em sua mente ao longo dos anos. Mas, de alguma forma, ele também parecia real demais, como se finalmente ela estivesse fechando o círculo de uma história que nunca teve um fim.
, por sua vez, parecia em choque. Ele a observava, tentando juntar os pedaços da imagem da menina que ele tinha criado através das cartas e as que surgiam agora, naquele momento em que as palavras deixavam de ser apenas palavras. Havia algo nas feições dela, no jeito que ela o olhava, que parecia familiar, mas ao mesmo tempo tão distante. Ele estava começando a perceber que a idealização de um relacionamento através da escrita nem sempre se encaixa com a realidade do encontro ao vivo. E, no entanto, ali estava ela, com um sorriso frágil, com os olhos brilhando de uma emoção que ele não conseguia identificar.
— Eu… — começou, interrompido pela própria hesitação. Ele nunca foi bom com palavras quando se tratava de sentimentos. E, naquele instante, ele queria que tudo fosse mais simples, como nas cartas, onde ele podia pensar, escrever e revisitar suas palavras até que elas soassem da maneira certa. Mas agora, nada parecia ser tão claro quanto ele imaginara.
Junpei, tentando aliviar a tensão no ar, se aproximou e deu uma leve risada.
— Bem, parece que temos um reencontro épico aqui, hein? Eu fico só observando, não sou bom com esse tipo de coisa. Mas espero que, independentemente de como foi esse tempo todo, vocês dois se divirtam agora!
lançou um olhar de agradecimento para Junpei, que sorriu de volta, mas depois seus olhos se voltaram para , como se tentando decifrar todas as emoções que ele não conseguia organizar.
engoliu em seco, tentando dissipar a sensação de nervosismo que ainda dominava seu estômago. Ela se sentia dividida entre a vontade de continuar falando, de fazer tudo parecer menos inusitado, e a necessidade de absorver tudo o que estava acontecendo.
— Eu não sei o que dizer, na verdade. Eu pensei tanto sobre esse momento, e agora… — Ela fez uma pausa, rindo baixo, mais para si mesma. — Agora parece que tudo o que eu imaginava não faz sentido, mas de uma forma boa, sabe? Como se finalmente fosse real.
se inclinou levemente, cruzando os braços, agora mais relaxado, apesar da confusão interna.
— Eu sei o que você quer dizer. Também achei que esse momento seria… diferente. Mas acho que, no fundo, eu também sempre imaginei como seria… Nós, aqui, finalmente.
Ele deu uma pausa e, em um gesto quase automático, deu um passo à frente, seus olhos finalmente se suavizando um pouco.
— Eu não esperava que fosse assim. Eu não esperava estar aqui, neste momento, depois de tantos anos de cartas. Eu ainda não sei o que fazer com isso, para ser honesto.
sentiu uma leve tensão dissipando-se. Ela ainda estava um pouco nervosa, mas, de algum jeito, aquele confronto de expectativas estava quebrando o gelo.
— Eu… — ela suspirou, antes de se recuperar e olhar diretamente para ele. — Eu também não sei. Mas acho que a gente pode começar do começo, né? Não tem mais por que idealizar tanto, o que aconteceu nas cartas ficou no passado. Agora, é só o que somos aqui e agora.
a observou com uma leve expressão de surpresa. O que ela dizia parecia sensato, mas ele nunca foi bom com mudanças rápidas. Ele estava, de alguma forma, mais confortável com a distância emocional, com as cartas. Mas agora, diante dela, ele sentia a necessidade de ser mais aberto. Talvez fosse a hora de finalmente parar de se esconder atrás da escrita.
— Você está certa. — Ele disse, com um suspiro baixo, seu tom mais suave. — Acho que é hora de… começar de novo. Sem as cartas, sem o peso do que imaginamos. Só nós dois.
sorriu genuinamente. Algo dentro dela se acalmou, e uma sensação de alívio tomou conta dela. Esse reencontro, apesar de ser cheio de surpresas e momentos desconcertantes, parecia ser o início de algo novo. Algo real.
— Então, que tal tomarmos um café, ? Para ver até onde isso pode nos levar? — ela sugeriu, agora com mais confiança.
a olhou por um momento, ainda ponderando sobre as palavras dela, e então assentiu, seu sorriso surgindo lentamente.
— Acho que seria uma boa ideia, . Vamos descobrir juntos.
E, com isso, ambos saíram da recepção, rumo a uma nova jornada que estava apenas começando.


Osaka, Japão, começo de 2024:

Os dois andavam lado a lado, com Junpei logo atrás dos dois, os observando, apenas o som dos sapatos e dos carros passando podia ser ouvido. tinha os braços para trás, as mãos entrelaçadas e olhava fixamente para frente.
Por fora, ela parecia calma. Mas por dentro, era como se uma tempestade de pensamentos tivesse sido solta sem aviso.

“É ele. É realmente ele. .”

Ela repetia o nome mentalmente, quase como se precisasse reafirmar aquilo para acreditar. Anos de cartas, de palavras cuidadosamente escolhidas, de confissões disfarçadas em metáforas… tudo aquilo, agora, ganhava um rosto, uma voz, um silêncio compartilhado ao seu lado.

“Será que ele está tão nervoso quanto eu? Será que ele também pensava em mim de vez em quando? Ou só seguiu em frente?”

Ela queria perguntar tudo, queria saber se ele ainda lembrava dos pequenos detalhes, das histórias que dividiam como se fossem diários secretos. Mas não sabia por onde começar. E se parecesse desesperada? E se estivesse criando expectativas demais?

“E agora? Vamos ser amigos? Conversar mais? Sair de novo? Será que ele ainda escreve como antes? Será que ele ainda sente o que escrevia?”

Era tudo tão novo e ao mesmo tempo tão familiar que doía um pouco. Parte dela queria correr e dizer o quanto esperou por aquele momento. A outra parte estava apavorada com o fato de que tudo aquilo, que por anos havia sido idealizado nas cartas, agora precisava acontecer de verdade.

“E se isso tudo for só um encontro casual, e nada mais?”

Essa pergunta a pegou de surpresa. Ela não queria que fosse. Não depois de tudo.
Mesmo assim, forçou os pés a manterem o ritmo, forçou o olhar a continuar fixo à frente, como se aquilo pudesse ajudá-la a manter o controle. Seu coração parecia ter outra ideia — batia alto, forte, como se quisesse gritar:

“É agora. Depois de tantos anos… é agora.”

apertou os dedos entrelaçados atrás do corpo.
Ela não sabia exatamente o que aquele momento significava, mas uma coisa era certa: sua vida acabava de entrar em uma nova história — e, desta vez, não era uma ilustração nem uma carta. Era real.
caminhava ao lado de com passos firmes e ritmo constante. As mãos estavam nos bolsos do sobretudo, e os olhos atentos analisavam a rua à frente — mas, ao contrário dela, seu interior não era um furacão. Era um fluxo mais contido, quase metódico, de pensamentos organizados e racionais.

“Ela está nervosa.”

Notava pelos ombros levemente tensos, pelo jeito como entrelaçava as mãos atrás do corpo e mantinha o olhar obstinadamente fixo à frente. sempre foi bom em ler pessoas, especialmente nos pequenos gestos.

“É compreensível.”

Ele mesmo ficara surpreso com o reencontro repentino. Mas, ao contrário de , não permitia que a euforia o tomasse. Em vez disso, tentava entender — processar o que aquele momento representava. Não era apenas uma coincidência qualquer. Era o tipo de coisa que os romancistas chamariam de destino, mas que ele, mais cético, preferia chamar de estatística improvável.

“Foram anos de cartas. Tantas palavras trocadas, tantas versões nossas registradas em papel.”

Mas quem eram eles agora? Quem era ela, além da voz suave e do sorriso contido? Ele não esperava reencontrá-la, tampouco em Osaka, muito menos no mesmo prédio. Mas agora que isso havia acontecido, sentia que precisava observar antes de se entregar ao peso do passado.

“Ela parece ser a mesma. Ou, talvez, apenas carrega a mesma essência.”

E isso já era algo. , a garota das cartas — agora mulher feita, confiante e claramente mexida com a situação. Ele respeitava isso. Admirava, até.
Ao seu lado, ela estava inquieta. Ele podia sentir. Mas não a interrompeu, não comentou. nunca foi de apressar o tempo das pessoas. E, naquele momento, mesmo com a curiosidade coçando sob a pele, ele sabia que o melhor era apenas… caminhar.

“Talvez ela fale. Talvez não. E tudo bem.”

Havia algo silenciosamente bonito em compartilhar um momento assim, onde nenhuma palavra era necessária. A conexão ainda estava ali, mesmo que em silêncio. Ele só precisava esperar para ver o que diria — ou mostraria — a seguir.

💌💌💌

Junpei deixou os dois olhando a vitrine da cafeteria sozinhos, e foi direto ao caixa fazer seu pedido, já sabia o que queria. Ele achou melhor pegar para viagem e voltar para a empresa, aquele momento precisava ser apenas de e e ele entendia aquilo, por mais que a curiosidade estivesse remoendo por dentro.
Enquanto ele esperava pelo seu pedido, viu os dois se aproximarem, ainda em silêncio do caixa, como se fossem dois completos estranhos e desconhecidos, e Junpei não deixou de pensar que de fato, naquele momento, os dois fossem mesmo.
Enquanto esperava o pedido ficar pronto, viu pela lateral os dois finalmente se aproximarem do caixa. Estavam lado a lado, os ombros quase se tocando, mas sem dizer uma palavra sequer. O silêncio entre eles não era desconfortável, mas carregava algo… denso. Intenso. Como se cada passo ali fosse um teste de equilíbrio entre o passado idealizado e o presente palpável.
Junpei observou com atenção. Era estranho, pensou, como duas pessoas que sabiam tanto uma da outra podiam parecer tão... desconhecidas. Tinham se conhecido por palavras, mas nunca por gestos, vozes, expressões. Agora, precisavam aprender tudo do zero, com o peso da memória nas costas.
, finalmente quebrando o silêncio, se aproximou do amigo e olhou para o pacote nas mãos dele.
— Foi de muffin de novo? — perguntou com aquele tom calmo de sempre, como se estivesse apenas retomando a conversa onde havia parado antes.
Junpei ergueu uma sobrancelha com um meio sorriso.
— Você acha que eu seria capaz de escolher outra coisa? — respondeu, sacudindo levemente a sacola de papel. — E você? Já sabe o que vai pedir ou vai travar aí na frente do cardápio?
deu um pequeno sorriso de lado, discreto como tudo nele.
— Acho que vou de café preto. Nada adoçado. Algo que eu conheça.
Junpei entendeu a indireta na fala — como se pedir um café simples fosse a única coisa segura naquele dia repleto de surpresas — e apenas assentiu.
— Boa escolha. E você, ? — perguntou, se virando para ela com gentileza. — Recomendo o muffin. Cura até ansiedade de reencontro inesperado com gente que você só conhecia por carta.
Ela riu, um riso leve e nervoso, mas verdadeiro.
— Acho que vou arriscar, então. Muffin e um chá de jasmin, por favor — disse, virando-se para a atendente com um sorriso mais confiante.
Junpei pegou seu pedido assim que foi chamado, deu um último olhar para os dois e fez uma reverência rápida com o corpo, como se dissesse: Boa sorte, vocês vão precisar.
— Vou deixar vocês à vontade. A empresa me espera — falou, já se afastando. — Se vocês não se perderem em um mar de silêncios dramáticos, depois me contem como foi.
fez uma careta discreta diante da provocação, e sorriu mais uma vez. Eles se olharam, finalmente, com um pouco mais de leveza. E, com o som do sininho da porta anunciando a saída de Junpei, restaram apenas os dois... e as palavras que ainda não tinham coragem de dizer.
esperou que recebesse o número do pedido antes de fazer um gesto discreto com a cabeça, indicando uma mesa no canto da cafeteria, próxima à janela. Ela assentiu em silêncio e o seguiu até lá, os dois caminhando como quem ainda se acostuma à ideia de dividir o mesmo espaço real — não mais linhas num papel, não mais frases pensadas por horas, mas agora silêncios e olhares ao vivo.
A mesa era pequena, redonda, com duas cadeiras de madeira clara e almofadas verde-musgo. A luz suave da tarde entrava pela vidraça, aquecendo o ambiente com um tom acolhedor que contrastava com a tensão silenciosa que pairava entre eles.
puxou a cadeira para ela antes de se sentar, num gesto quase automático, mas gentil. agradeceu com um leve sorriso e se acomodou, apoiando as mãos sobre o colo, enquanto observava a rua pela janela por alguns segundos — precisava de um ponto fixo para ancorar os pensamentos.
sentou-se à sua frente, recostando-se de leve, os braços cruzados diante do peito. Ele não era do tipo que quebrava o silêncio com qualquer coisa só para preencher o vazio. Estava confortável ali, observando-a. Não com intensidade, mas com atenção. O tipo de olhar que capta nuances — o jeito como ela mexia os dedos, o movimento discreto dos olhos como se buscasse coragem em algum lugar da paisagem.
— Você parece diferente. — Ele falou, por fim, a voz baixa e tranquila, quase como quem fala para si mesmo.
desviou o olhar da janela e o encarou, surpresa pela quebra de silêncio.
— Faz sentido, né? Faz tempo. A gente muda… ou pelo menos tenta.
assentiu lentamente, os olhos ainda fixos nela.
— Eu acho que imaginei esse momento tantas vezes, que agora não sei se estou vivendo ou sonhando acordado.
Ela riu baixo, o som suave quebrando um pouco a tensão.
— Eu pensei a mesma coisa. Só que no meu sonho… eu sabia exatamente o que dizer.
— E agora?
— Agora… não tenho ideia.
Os dois riram juntos, pela primeira vez, e naquele breve instante, a rigidez do reencontro começou a se dissolver.
O número de foi chamado no balcão, e ela se levantou para buscar os pedidos. a acompanhou com o olhar, e enquanto ela se afastava, ele respirou fundo.
Talvez começar de verdade significasse simplesmente isso. Sentar. Esperar. Escutar.
Talvez as palavras viessem com o tempo.

💌💌💌

ainda a observava quando levou a xícara com o café aos lábios depois de esfriar um pouco o líquido e então ela levou o muffin até os lábios mordendo o mesmo.
— Eu imaginava você morena… — balançou a cabeça e depois riu.
Lentamente ela, levou as mãos até as pontas do cabelo avermelhado, agora solto sobre os ombros, e acariciou os fios com os dedos, como se os visse pela primeira vez sob o olhar de .
— É… já fui morena, na verdade. — respondeu, com um sorriso tímido, os dedos ainda brincando com as pontas. — Mas um dia achei que precisava mudar. Aí comecei com um tom acobreado… e quando vi, já estava assim.
— Combina com você. — disse, com naturalidade, antes de dar outro gole no café. Seu tom era simples, sincero. Ele não era do tipo que fazia elogios gratuitos — quando falava, era porque realmente achava.
Ela o observou por alguns segundos, como se ainda estivesse tentando decifrar o homem por trás das cartas. O que escrevia era denso, introspectivo, poético. O ali, à sua frente, parecia igualmente contido, mas com uma firmeza serena. Ele a fazia sentir que estava pisando em terreno novo, mesmo depois de anos de conexão.
— Engraçado… — ela disse, agora com o muffin entre as mãos. — Eu também imaginei você diferente.
— É mesmo? — ele arqueou uma sobrancelha, interessado. — E como exatamente?
— Mais… velho, talvez. E mais sério. Mas éramos novinhos quando começamos as correspondências…
soltou um riso baixo, pousando a xícara sobre o pires.
— Velho e sério? Parece a descrição de um professor de história.
— Ou de um escritor recluso. — brincou, mordendo mais um pedaço do muffin.
— Bem… não estou tão longe disso. — respondeu, com um meio sorriso.
O riso dela foi leve, quase aliviado. Aos poucos, o gelo entre os dois parecia derreter. Havia algo confortante em perceber que, apesar das mudanças, eles ainda conseguiam se provocar, rir, se encontrar nos pequenos gestos e palavras.
— Sabe… eu fiquei com medo de te ver. — ela confessou, olhando para a xícara de chá antes de encará-lo de novo — Medo de que você fosse muito diferente do que eu conhecia. Ou pior… de que eu não reconhecesse nada de você.
Ele a olhou com mais atenção agora. Os olhos escuros e serenos revelavam pouco, mas sua voz foi mais suave quando respondeu:
— Eu também tive esse medo. Mas… — fez uma pausa, como se pensasse bem no que ia dizer. — Você é diferente, sim. Mas não menos familiar. Parece que… eu ainda te reconheço, de um jeito estranho.
O silêncio que se seguiu não foi constrangedor. Pelo contrário. Era um silêncio confortável, cheio de camadas que palavras ainda não podiam alcançar.
Era como se eles estivessem começando a ler um novo capítulo — desta vez, não escrito à mão, nem assinado no final. Apenas vivido, ali, um café e um muffin de cada vez.
— Então você é um escritor? — ergueu as sobrancelhas, parecendo genuinamente interessada, os olhos brilhando com aquela curiosidade sincera que se lembrava de ter sentido nas cartas dela.
sorriu de leve, mas balançou a cabeça, apoiando os cotovelos na mesa e entrelaçando as mãos à frente.
— Não exatamente. Sou editor de uma revista literária. Pequena, independente, nada muito glamouroso. — disse com seu tom tranquilo, quase modesto — Passo o dia lendo textos de outras pessoas, ajustando, cortando, às vezes salvando boas histórias que ninguém notaria se passassem direto.
inclinou levemente o rosto, interessada de verdade, como se cada palavra dele fosse um parágrafo que ela precisava acompanhar atentamente.
— Isso soa muito como escrever, só que em silêncio. — comentou. — Como se você estivesse entre as linhas, mas sem assinar no fim.
deixou escapar um pequeno riso nasal. Aquilo… era algo que ele nunca tinha colocado em palavras, mas que fazia completo sentido vindo dela.
— É. Talvez seja isso mesmo. Nunca pensei dessa forma, mas você tem razão. Estou sempre ali… só não sou o autor.
— E nunca quis ser? — ela perguntou, apoiando o queixo na mão, o cotovelo descansando na mesa.
Ele hesitou, olhando pela janela por um instante antes de responder.
— Já quis. Já tentei, até. Mas… tem algo em mim que resiste à exposição. Escrever exige mais do que habilidade. Exige entrega. E eu não sou muito bom em me entregar.
o observou em silêncio, absorvendo cada palavra. Ele parecia vulnerável por um segundo — mas não de um jeito fraco. Era uma vulnerabilidade discreta, contida, como quem abre uma pequena fresta numa porta sempre fechada.
— Mas você se entregava nas cartas. — disse suavemente, os olhos firmes nos dele.
manteve o olhar. Por um momento, ele não respondeu. Apenas a olhou, como se estivesse reconhecendo, de novo, a garota com quem dividira tantos pedaços de si mesmo, mesmo sem saber exatamente quem ela era.
— Talvez porque eu soubesse que você não podia me ver. — respondeu enfim, num sussurro. — Escrever pra você era… seguro. Livre. Real e irreal ao mesmo tempo.
Ela sorriu, um pouco triste, um pouco tocada.
— Agora eu posso te ver.
Ele assentiu.
— Agora eu sei.
E mesmo sem dizer, ambos entendiam: isso mudava tudo.


A cafeteria já não parecia tão cheia quanto antes. O movimento lá fora continuava constante, mas entre aquelas quatro paredes, tudo parecia suspenso no tempo — como se o mundo tivesse diminuído de tamanho para caber naquela mesa de dois.
girava vagarosamente a xícara entre os dedos, os olhos pousados no chá que esfriava. Ela havia relaxado. O sorriso não era mais nervoso, e os ombros estavam mais soltos. Ainda assim, algo a fazia manter a atenção no passado, como se as lembranças que compartilhassem pudessem construir um novo presente.
— Você se lembra daquela carta em que você descreveu o cheiro do inverno na sua cidade? — ela perguntou, com um sorriso nostálgico nos lábios. — Eu nunca esqueci da forma como você escreveu aquilo. “Cheira como papel envelhecido e vento gelado que morde, mas sem machucar.” Aquilo me marcou tanto.
franziu um pouco a testa, tentando puxar pela memória, e então soltou um riso leve, como quem se reencontra com um pedaço antigo de si mesmo.
— Eu lembro. Escrevi aquilo enquanto esperava o ônibus. Estava tão frio que meus dedos doíam, mas eu precisava registrar aquilo. Você sempre dizia que eu escrevia de um jeito que fazia o mundo parecer mais bonito do que era.
— Porque fazia mesmo. — respondeu, os olhos fixos nos dele. — Em muitos dias, suas cartas eram a parte mais bonita do meu mundo.
desviou o olhar por um instante, como se engolisse devagar aquela verdade. Não era que ele não soubesse da importância que aquelas cartas tinham tido para ela. Mas ouvir assim… ao vivo, com os olhos dela dizendo tanto quanto as palavras, era outra coisa.
— Eu ainda tenho todas elas. — ela continuou. — As suas. Estão em uma caixa, bem cuidadas. Leio algumas quando as coisas ficam pesadas.
Ele ergueu uma sobrancelha, surpreso.
— Achei que só eu fazia isso.
Ela riu, cúmplice.
— Então você também guardou?
— Claro que guardei. — disse, quase ofendido de brincadeira. — Aquelas cartas… eram mais sinceras do que muitas conversas que tive com pessoas ao meu redor. Eu me revelava para você de um jeito que nunca consegui fora do papel.
assentiu lentamente, mordendo o lábio inferior.
— Acho que a gente era mais íntimo nas palavras do que muita gente é na vida real.
— Porque escrever era mais fácil. — concluiu, olhando para ela agora com mais firmeza. — Mas estar aqui, agora, é mais difícil… e ao mesmo tempo, mais verdadeiro.
Ela sentiu o estômago revirar, não de desconforto, mas daquela sensação doce e intensa de perceber que, mesmo com o tempo e a distância, algo entre eles continuava intacto — ou talvez estivesse apenas esperando para acontecer de verdade.
— Você chegou a escrever uma última carta que não me enviou? — ela perguntou, a voz baixa, como se fosse um segredo.
permaneceu em silêncio por um instante, depois pousou a mão sobre a xícara vazia.
— Cheguei. — confessou. — Mas nunca consegui terminar.
Ela sorriu, triste e tocada ao mesmo tempo.
— Eu também.
O silêncio que veio depois foi carregado de significado. Não precisava de palavras. Eles estavam ali, finalmente, não apenas se vendo — mas se reconhecendo.
E dessa vez, não haveria papel para guardar o momento. Só o agora.

💌💌💌

O silêncio confortável que havia se instalado entre eles começou a se transformar em algo mais denso, mais carregado. mexia no chá já morno, os dedos deslizando pela borda da xícara, como se estivesse tentando encontrar coragem entre os gestos pequenos.
a observava em silêncio, e percebeu a mudança antes mesmo dela falar. A tensão nos ombros, o olhar que hesitava em encontrá-lo de novo.
— Posso te perguntar uma coisa? — ela disse, sem levantar os olhos.
— Pode. — respondeu com calma, mesmo sentindo um pequeno aperto se formar no estômago.
— Por que você parou de escrever?
As palavras foram ditas com gentileza, mas não sem dor. não o acusava, mas havia ali uma frustração guardada, um vazio que nunca fora preenchido. O fim das cartas — abrupto, silencioso — tinha deixado nela uma marca.
ficou em silêncio por alguns segundos. Poderia dizer muitas coisas: que a vida ficou corrida, que ele perdeu o ritmo, que teve receio de continuar algo que parecia fantasioso demais. Mas nenhuma dessas justificativas parecia suficiente agora.
— Eu… — começou, olhando para as próprias mãos. — Não sei se tenho uma resposta certa. Às vezes penso que parei porque estava ficando real demais. Porque eu estava começando a esperar suas cartas como quem espera por algo que talvez nunca se torne concreto.
Ele respirou fundo, depois a encarou.
— E no fundo, eu sou péssimo com o que não sei controlar. — Agora que nos encontramos… você ainda tem esse medo?
desviou o olhar por um breve instante, encarando a rua além da janela.
— Tenho. Mas agora não posso mais fugir.
O silêncio que se seguiu foi diferente do anterior. Não era leve, nem reconfortante. Era pesado, necessário. Os dois estavam frente a frente com o que havia ficado mal resolvido entre eles.
passou as mãos nos cabelos, respirando fundo.
— Eu também tive medo. Mas eu vim mesmo assim.
a encarou. Seus olhos se encontraram de novo — e dessa vez, havia algo mais cru entre eles. Menos encantamento, mais verdade.
E talvez fosse exatamente por isso que, naquele momento, o reencontro finalmente começasse a acontecer de verdade.

💌💌💌

A conversa silenciou aos poucos, mas desta vez sem peso. Era como se, depois de abrir algumas feridas, ambos tivessem encontrado uma pequena ponte para continuar — não sobre o passado, mas sobre o agora.
pegou o resto do muffin, que já estava frio, e o enrolou no guardanapo. terminou o último gole de café, repousando a xícara com cuidado no pires. Quando ela olhou pela janela da cafeteria, viu que o céu estava límpido, com nuvens esparsas e um vento leve balançando as árvores da praça logo à frente.
— Quer caminhar um pouco? — ela perguntou de forma espontânea, ainda com aquele traço de incerteza no olhar, como se estivesse testando as águas.
hesitou por um segundo, mas logo assentiu, se levantando junto com ela.
— Vamos.
Saíram juntos da cafeteria, caminhando lado a lado pela calçada de pedras que levava até a pequena praça a poucos quarteirões dali. O sol filtrava entre os galhos, criando desenhos de sombra no chão, e o som da cidade parecia mais distante ali.
Havia crianças correndo, um casal dividindo um sorvete no banco de madeira, e um senhor alimentando os pombos com pacotinhos de biscoito. O mundo seguia em seu ritmo, mas para eles, cada passo parecia parte de uma redescoberta.
— Essa cidade ainda é nova pra mim. — comentou, abraçando o próprio corpo contra a brisa leve. — Tudo aqui me parece familiar e estranho ao mesmo tempo.
— Eu nasci aqui. — falou, com a voz baixa, quase como se estivesse confessando algo íntimo. — Mas mesmo assim, às vezes me sinto deslocado. Acho que isso não tem tanto a ver com o lugar.
— E sim com a gente? — ela completou, olhando de lado para ele.
Ele assentiu, discreto.
Pararam próximos a um lago pequeno, onde algumas folhas boiavam na superfície. se agachou por um instante, pegando uma folha e girando-a entre os dedos antes de jogá-la de volta na água.
— Sabe o que é estranho? — ele disse, ainda olhando para o lago. — É como se eu estivesse conhecendo você pela primeira vez… mesmo já tendo te conhecido de tantas formas antes.
sentou-se no banco de madeira mais próximo, o sorriso se formando devagar.
— Eu pensei nisso também. Você é igual ao que escrevia… mas ao mesmo tempo, completamente diferente. É confuso. Mas bom. Eu acho.
se sentou ao lado dela, mantendo uma distância respeitosa, mas próxima o suficiente para que o silêncio entre eles voltasse a ser confortável.
Ficaram ali por um tempo, apenas observando o movimento do parque, os sons suaves da cidade passando ao redor como um pano de fundo discreto. A caminhada não foi longa, mas naquele instante, não parecia importar. O reencontro agora era real — não mais idealizado, não mais perfeito, mas possível.
E isso, para os dois, já era mais do que suficiente.

💌💌💌

Ainda sentados no banco da praça, com os últimos raios de sol dourando as folhas das árvores, cruzou as pernas devagar e olhou para o céu. O silêncio entre eles já não era estranho — ao contrário, parecia necessário.
Ela brincava com a borda do guardanapo de papel amassado, as palavras se formando dentro dela antes de sair.
— Eu não sou muito boa em falar sobre mim. — disse, com a voz baixa. — Não pessoalmente, pelo menos. Por isso gostava tanto de escrever pra você. Nas cartas, eu conseguia respirar.
virou levemente o rosto na direção dela, atento. Não a interrompeu.
— Às vezes, acho que passo a imagem de alguém muito no controle de tudo… mas a verdade é que eu sou um turbilhão por dentro. — Ela soltou um riso abafado. — Eu desenho para manter as coisas no lugar. É a única forma de colocar pra fora o que eu não consigo nomear.
demorou um segundo antes de responder, absorvendo cada palavra.
— Nunca imaginei você no controle de tudo. — falou, com honestidade. — Na verdade, eu sempre achei que você era cheia de sensações, e usava o desenho como um escudo. Ou uma ponte, talvez.
Ela virou o rosto devagar, encarando-o com surpresa.
— Você sempre entendeu as coisas de um jeito meio assustador. — murmurou, sorrindo com o canto dos lábios.
— É que eu li você por muito tempo, . — disse, com os olhos fixos nos dela. — Nas suas cartas, nos seus silêncios.
Ela respirou fundo, sentindo um nó na garganta que não sabia de onde vinha. Talvez fosse o acúmulo de anos sem falar de si com tanta clareza. Ou talvez fosse o fato de que ele ainda conseguia vê-la com tanta nitidez, mesmo depois de tanto tempo.
— E você? — ela perguntou, quase em sussurro. — O que faz quando sente que vai desmoronar?
pensou por um momento. A resposta não veio rápida — como tudo nele, foi pensada, pesando cada camada.
— Eu silêncio. — respondeu, enfim. — Me afasto. Finjo que estou ocupado demais. Mas no fundo, fico esperando que alguém perceba.
o olhou por um longo momento. E naquele instante, não havia cartas, não havia passado. Só duas pessoas tentando, do jeito mais humano e imperfeito possível, se reconhecerem no agora.
Ela esticou levemente a mão entre eles, deixando-a ali, repousando sobre o banco. Não o tocou, não forçou. Só ofereceu presença.
olhou para a mão dela, depois para o rosto. E sem dizer nada, apenas pousou os dedos sobre os dela, com delicadeza.
A conexão não era mais feita de tinta no papel. Era feita de silêncio compartilhado, de memórias que ainda estavam sendo construídas.
E talvez, naquele toque simples e quase tímido, estivessem os primeiros traços de uma história nova — uma que, enfim, os dois poderiam escrever juntos.
O toque entre eles permaneceu por alguns instantes. Não era um gesto grandioso, mas bastava para preencher tudo que as palavras ainda não conseguiam. Quando recolheu lentamente a mão, o fez com cuidado, como se aquele breve contato tivesse significado mais do que qualquer frase dita até ali.
também voltou a se sentar mais ereta, respirando fundo e deixando o olhar vagar pelo lago à frente. A luz do fim da tarde começava a dourar o céu com tons suaves de rosa e laranja, tingindo o momento com uma quietude quase cinematográfica.
— Está tarde. — ela comentou, sem pressa, apenas reconhecendo o tempo que tinham deixado passar sem perceber.
assentiu, olhando para o céu também.
— É.
Um novo silêncio surgiu entre eles, mas agora não havia peso, nem urgência. Era um espaço confortável, de quem sabe que ainda há muito para ser dito — e tempo suficiente para isso.
— Amanhã vai acontecer um evento pequeno na livraria da esquina da editora. — disse, repentinamente, os olhos ainda voltados para o horizonte. — Lançamento de um autor novo, nada muito formal. Mas vai ter café de graça e livros por todo lado. Achei que… talvez você gostasse.
o olhou com surpresa. Um convite. Espontâneo. Simples. Mas partindo dele, significava mais do que parecia.
— Eu adoraria. — respondeu com um sorriso, sem hesitar. — É perto da editora?
— Do outro lado da rua. Posso passar lá antes, te encontrar no térreo.
— Combinado. — ela disse, guardando o momento como se fosse uma nova carta, só que escrita com voz e presença.
Ambos se levantaram ao mesmo tempo, como se tivessem ensaiado. Começaram a caminhar em direção à rua principal, onde cada um tomaria uma direção diferente.
? — ela o chamou, antes que ele se afastasse.
Ele virou o rosto, atento.
— Obrigada por hoje.
Ele fez que sim com a cabeça, os olhos fixos nos dela, sérios e suaves ao mesmo tempo.
— Obrigado por ter perguntado meu nome.
E então, com um último sorriso, ele se afastou. ficou ali por alguns segundos, vendo-o desaparecer entre as pessoas.
Naquela noite, não haveria cartas para reler. Mas o que tinham vivido seria lembrado como um novo começo — e, desta vez, a história não precisaria ser escrita sozinha.

💌💌💌

O retorno ao prédio foi mais silencioso do que a saída. Caminharam lado a lado pelas calçadas já tomadas pela brisa fria do início da tarde, agora envoltos em um silêncio diferente — não desconfortável, mas contemplativo.
Ao entrarem no saguão, cumprimentaram o segurança com um aceno discreto e seguiram até o elevador. A luz amarelada iluminava os rostos dos dois, e apertou o botão do 15º andar. , com um pequeno sorriso, apertou o 12º.
O elevador começou a subir, num silêncio em que apenas o som suave da máquina preenchia o ar. Nenhum deles parecia saber o que dizer ali, entre quatro paredes espelhadas. Mas, ao mesmo tempo, também não parecia necessário. As palavras estavam sendo processadas por dentro.
olhava para o painel digital com os andares subindo lentamente, mas seus pensamentos estavam longe. O reencontro, o toque de dedos, o convite inesperado — tudo parecia surreal. Ela se perguntava o que exatamente estava sentindo, mas talvez ainda fosse cedo demais para nomear. Sentia um calor no peito, uma mistura de alívio e antecipação. Talvez, pela primeira vez em anos, algo realmente estivesse começando.
Quando o elevador parou no 12º, ela virou-se para ele com um sorriso suave.
— Boa tarde, .
Ele assentiu, com aquele mesmo olhar firme e sereno.
— Boa tarde, . Até amanhã.
Ela saiu e, quando a porta se fechou novamente, soltou o ar que nem sabia que estava prendendo.
Restaram três andares em silêncio.
Foi estranho. Inesperado. Intenso. Mas, acima de tudo… real.
O som do elevador anunciando o 15º andar o tirou do devaneio. Ele saiu, caminhou pelo corredor e mal teve tempo de colocar a chave na porta antes que a voz de Junpei surgisse por trás dele, entusiasmada e cheia de malícia.
— E aí? Vai fingir que nada aconteceu ou vai me contar o que rolou?
suspirou, girando a chave e entrando. Junpei o seguiu sem cerimônia.
— Nada "rolou", Junpei. A gente conversou, só isso.
— Só isso? — Junpei fechou a porta atrás de si e cruzou os braços, encostando-se na bancada da pequena cozinha. — Você sumiu por quase duas horas, voltou parecendo que viu um fantasma, e vem me dizer que “só conversou”?
tirou o sobretudo e o pendurou com calma, depois se sentou no sofá, a expressão ainda distante, como quem ainda não havia voltado completamente para dentro de casa.
Junpei entrou logo atrás, sem cerimônia, largando sua sacola com o muffin sobre a mesa de centro antes de cruzar os braços e encará-lo com um sorriso curioso.
— Tá, agora me conta. — disse, direto. — O que foi aquilo?
não respondeu de imediato. Passou a mão pelo cabelo, depois se recostou no sofá, olhando para o teto por um momento.
— Foi intenso.
— Isso eu percebi. — Junpei riu. — Mas o que vocês conversaram? Como foi? Você tava parecendo uma versão silenciosa de um protagonista de dorama romântico naquela cafeteria. E ela também. Vocês pareciam em transe.
soltou um suspiro e desviou o olhar para a janela, onde as luzes da cidade começavam a piscar.
— A gente se reconheceu. Mas… ao mesmo tempo, não. É difícil de explicar. Foi como falar com alguém que você conhece profundamente — mas só pelas entrelinhas.
Junpei se sentou na poltrona à frente dele, agora mais interessado do que provocativo.
— Vocês falaram das cartas?
— Falamos. Relembramos algumas. Ela ainda guarda todas. Eu também. E ela me perguntou por que eu parei de escrever.
Junpei arqueou as sobrancelhas, atento.
— E você respondeu?
assentiu, devagar.
— Disse a verdade. Que parei porque tava ficando real demais. Que tive medo de virar só uma versão idealizada na cabeça dela… e dela virar uma na minha.
Junpei ficou em silêncio por alguns segundos, processando.
— E depois?
olhou para as próprias mãos.
— Depois… a gente andou, sentou num banco da praça, conversou mais. E por fim, eu a convidei pra ir comigo amanhã num evento na livraria.
Junpei abriu um sorriso lento, satisfeito.
— Olha só você, fazendo planos. Não imaginei que ia viver pra ver esse dia.
bufou, mas um leve sorriso surgiu no canto de sua boca.
— Nem eu.
Junpei pegou o muffin da sacola, deu uma mordida e falou com a boca meio cheia:
— Se isso virar romance, vou querer estar nos agradecimentos, só avisando.
apenas balançou a cabeça, mas não disse nada. Ainda estava digerindo tudo — não o muffin de Junpei, mas o reencontro, a troca de olhares, o silêncio cheio de história que haviam dividido.
No fundo, sabia que algo havia mudado. E, talvez, pela primeira vez em muito tempo… ele estava curioso pra ver onde aquilo ia dar.

💌💌💌

O som da porta se fechando ecoou suavemente pelo apartamento, abafado pelos tapetes e pelas paredes recém-decoradas. tirou os sapatos com cuidado, os dedos ainda meio dormentes do frio da rua — ou talvez do reencontro.
Deixou a bolsa sobre o aparador e caminhou até a cozinha, ligando a chaleira elétrica por instinto. Não estava com sede. Não queria chá. Mas precisava ocupar as mãos, fingir alguma rotina, algum senso de normalidade que, naquele momento, simplesmente não existia.
Encostou-se no balcão e, por fim, deixou o corpo escorregar até sentar-se no chão. Abraçou os joelhos e fechou os olhos.
Ele estava mesmo ali. .
O mesmo das cartas.
O mesmo que descrevia o céu da cidade como se fosse uma aquarela viva.
O mesmo que, anos atrás, preenchia páginas com palavras que ela lia e relia até decorar.
Mas também…
Não era o mesmo.
Agora havia uma voz, um cheiro, um ritmo de passos.
Agora ele ocupava espaço.
Agora ele olhava para ela — com os mesmos olhos das cartas, sim, mas com silêncios mais profundos do que qualquer linha que já haviam trocado.
apertou os joelhos com mais força. O coração ainda batia num compasso estranho, entre ansiedade e encanto.
"Ele se lembrava de mim."
"Ele me convidou pra um evento."
"Ele é real."

Esses pensamentos rodavam na cabeça dela como uma música suave, mas incômoda de tão repetitiva.
Ela passou anos se perguntando como seria esse encontro. Idealizou gestos, falas, sorrisos. Mas nada daquilo havia acontecido como nos devaneios.
Tinha sido melhor. E pior.
Mais difícil, mais denso.
Mais humano.
E, por isso mesmo, mais bonito.
Levantou-se devagar quando a chaleira apitou, pegou a caneca de cerâmica favorita — a que tinha pintado à mão, com um desenho de um casal pequeno sentado num banco de praça — e preparou o chá de jasmin, o mesmo que tomara horas antes, ao lado dele.
Enquanto a infusão coloria a água quente, ela encostou-se à pia e olhou pela janela. Lá fora, as luzes da cidade tremeluziam, e o reflexo no vidro devolvia a imagem dela mesma: ainda com os olhos brilhando, o rosto corado, o coração meio bobo.
Amanhã. Ela sussurrou a palavra, sorrindo sozinha.
Amanhã eles teriam um segundo encontro — ou talvez, o primeiro de verdade. Sem cartas.
Sem filtros.
Só eles.
E, estranhamente, isso não a apavorava.
A assustava mais a ideia de não tentar.
De perder, outra vez, a chance de descobrir o que poderia ter sido.
bebeu um gole do chá e, pela primeira vez desde que se mudou, sentiu-se realmente presente em Osaka.Porque agora, havia algo — ou melhor, alguém — que a ligava àquele lugar.




Continua...


Nota da autora: Olá meu anjo! Se gostar, não se esqueça do comentário.

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