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Revisada por: Pólux

Última Atualização: 17/02/2025
AS COISAS SE TRANSFORMARAM. Porém, antes de virar adulta, muitos acontecimentos e possíveis tragédias com a pessoa que amava vieram inesperadamente. Ela não mais se encontrava naquele lugar tão cheio de vida, sentindo saudades de todos os momentos que ambas viveram: andar a cavalo, tocar violão, brincar nos balanços altos e fazerem de conta que eram duas aventureiras vaqueiras.
Deitada em sua cama, viu a fotografia antiga meio manchada de quando criança, abraçada com sua melhor amiga de infância: Carolyn Meyer Redfield. Ambas de chapéus de caubói atrás de uma árvore, numa foto que foi registrada pela velha polaroid do patriarca da amiga: John Meyer.
John fora para ambas as garotas um herói de humor e personalidade ácida, que infelizmente faleceu por fugir das autoridades por ter matado inúmeros criminosos em busca de recompensas e anistia. Meyer era um justiceiro; queria parar de matar pessoas, entretanto o destino não brincou com ele quando bateu em sua porta.
Elizabeth sentia um tormento em seu coração não conseguindo esquecer que aquele trágico ocorrido aconteceu justamente em seu aniversário. O patriarca de alguém importante para ela faleceu — a belíssima alma da menina tornou-se vazia.
Os Meyer enfrentavam situações arriscadas e rixas. Carolyn conhecia e sabia muito bem que John — além de bom pai —, havia sido um pistoleiro sanguinário durante toda sua vida, mas era nova demais para ter aceitado facilmente que ele se fora. Já a matriarca, Charlotte Redfield, queria poder desistir de viver, no entanto, precisou se importar com sua única filha de seu primeiro casamento.
Sua esposa e filha o amavam eternamente, embora todos os pais tenham seus defeitos, John soube construir boas histórias. Um valente homem que não temia absolutamente nada. Carregado de sensatez, ironia, coragem e honra.
A aparência de um senhor rebelde na casa dos trinta e oito anos, possuía longas madeixas castanhas de pontas douradas indo quase ao fim dos ombros largos; pele cor-de-mel e olhos escuros. Usava trajes clássicos de motoqueiro — jaquetas calorosas, coturnos de couro marrom, calças jeans e óculos escuros — além de ser tatuado, mostrando uma clássica figura do sudoeste norte-americano.
O que Carolyn faria algum dia seria se vingar dos desconhecidos covardes que executaram seu pai. Bom… quiçá Elizabeth deva estar pensando demais no passado invés do futuro que teria. Passaram-se oito anos quando John partiu, voltar não mudaria nada – por enquanto.

•••


Era meados de 2006, no final de uma tarde de julho, no interior do estado do Arizona. Naquele local existia uma cidade chamada “Crystal Eyes”. Foi onde se deu origem ao fatídico dia em que pôde acontecer – pelo menos para ela – o seu aniversário e o momento mais aguardado: a meiga garotinha de ondulados cabelos castanhos, Elizabeth Aidan Grayson, faria finalmente os seus treze anos.
Amigos e parentes tiveram a chance de comparecer àquele momento especial. Sua inocência, juntamente a um sorriso cordial, soprou as velas acima do bolo de morango e chantilly. Assim que apagou as chamas, de repente uma lágrima percorreu o rosto de sua melhor amiga. Seus pais discutiam no canto mais isolado dos fundos da residência Grayson.
Elizabeth a viu desaparecer sem sequer se despedir da aniversariante. O balançar dos cachos emaranhados chamou sua atenção e, quando a menina mais nova deu um passo à frente, os olhos azuis encaravam seus passos. De repente, a garota estava prestes a entregar o primeiro pedaço do bolo para sua mãe. Em um instante, Grayson chamou pelo seu nome, alcançando sua destra. Os toques chocaram as duas, e, antes da despedida, Elizabeth esperou que ela falasse:
Preciso ir embora! — a mais nova chamava-se Carolyn. As últimas roupas que ela vestia consistiam em um vestido azul farfalhante de verão e um cordão dourado com um pingente de cavalo dado pelo patriarca John. Os olhos verdes e o rosto triste reprovaram sua aparência delicada; aquelas palavras deixaram a aniversariante chocada. — Meu pai está com problemas, preciso saber o que aconteceu com ele!
Você não pode ficar mais um pouco? — ansiosa, ela juntava suas mãos uma na outra com a chance de vê-la dizer o motivo de ter chorado quando viu seus pais desesperados do lado de fora. A menina de cabelos claros só revirava os olhos para cada direção, assustada e insegura. Carolyn queria poder ficar e estar feliz ao lado dela, mas não tinha opção. — Estou tão feliz em te ver aqui.
Carolyn suspirou, balançando seus braços. Processava alguma resposta sincera, contudo, somente negações e dúvidas surgiram de suas palavras, algo que perturbou a mente da aniversariante.
Em uma fração de segundos, após nenhuma das duas se explicarem, Meyer finalmente respondeu sem hesitar ou ter medo do que diria logo em seguida.
Lizzie… Me desculpa, mas eu não posso! — ela correu para o lado de fora da casa. Seus sapatos ecoaram pelo chão, e a partir desse momento, ambas nunca mais se encontraram. Elizabeth só queria poder dizer que também não estaria mais ao seu lado.
Carolyn se arrependia profundamente. Foi uma situação estranha, todavia, complicada de entender na época. Sua mãe andou em passos rápidos, desesperada atrás do seu marido. Tentou impedi-lo da decisão, mas o homem parou e encarou a família – não foi uma escolha justa abrir mão de quem amava. Charlotte, ao lado da pré-adolescente, notou o semblante atordoado de John depois de toda a discussão.
John, você não pode fazer isso! Você pode morrer! — exclamava, implorando para que o criminoso se rendesse. — Essa vida que você escolheu é arriscada e pode nos colocar também em perigo!
Não se preocupem comigo, vou sobreviver! Longe… Mas, irei, prometo para vocês! — afirmou, beijando a testa de sua esposa chorosa antes de partir. — Quero que me encontrem no rancho Dickens e entrem no carro. Leve a Carol contigo, e deixe que eu mesmo lute contra isso.
Pai? Você tem certeza que vai ficar bem? — a menina abraçava o patriarca, o seu último abraço. Olhou diretamente para aquele rosto e não deixou de tocar em seus cabelos. — Eu ainda posso ficar na casa da Lizzie, não se preocupem comigo.
E por que essa garotinha tão corajosa deixaria sua própria mãe sozinha? — John sorriu sem humor. — Saiba que nada nesse mundo te condenará enquanto eu estiver aqui! Sei que vocês queriam uma vida melhor, mas infelizmente a vida não é tão justa quanto parece. Acredito que algum dia você vai orgulhar a sua mãe, confie em mim. Papai estará bem e vivo!
Você promete?
Eu prometo! Agora vá e proteja a sua mãe no caminho.
Tome cuidado, querido — avisou Charlotte. — Nossa filha estará sob o meu controle.
Digo o mesmo para vocês!
O homem subiu na Harley Davidson, encostou as luvas de couro no guidão e jogou o cabelo para trás. Suas botas encostaram no chão áspero ele aproveitou para jogar seu último cigarro pisoteando no maço já usado.
John beijou os lábios da esposa e disse seu último “eu te amo”, antes do sol desaparecer. A mulher afastou-se do parceiro e a filha do casal andou até o velho Chevrolet, sentando-se no banco do passageiro. Charlotte virou a chave e pisou no acelerador com muita força para percorrer mais rápido o ponto de encontro.
Carolyn visualizou pelo retrovisor a imagem do patriarca desaparecer, no mesmo momento em que a mulher acelerava o carro e cortava o caminho para o velho rancho.
A adolescente sentiu o peito doer e suas mãos esfriarem. Estava completamente gélida, e uma sensação ruim veio à tona. Torcia para que seu pai ficasse seguro, todavia, aquilo infelizmente não aconteceu. Apenas as clássicas músicas de The Rolling Stones a faziam se preocupar menos, com boas lembranças de seu pai tocando violão sentado na entrada da casa rústica em que passavam as férias.
O senhor Meyer na beira da estrada estava pronto para seu destino, sem olhar para trás. Auxiliando as mãos na moto, indo diretamente ao local isolado e tentando se esconder dos policiais. Não estavam o perseguindo, até o momento em que o clima ficou mais intenso.
Passando próximo ao deserto, tiros e sirenes deixaram John assustado. Mais e mais acelerava a sua moto, estava pouco se importando para as multas que pagaria. As pessoas tentaram atacá-lo, nada foi páreo para o seu revólver. A bala percorria, atingindo o peito de cada inimigo. Sentia-se como um pistoleiro no faroeste controlando seu cavalo. Matar pessoas não era novidade, e salvar sua própria pele não era mais um problema preocupante.
Desviando dos tiros e enganando seus respectivos perseguidores, acabou ficando sem gasolina, mas mesmo assim a polícia não desistiu.
John se deparou com o rancho, correu sem pausas e atravessou todas as plantações que o cercavam. O criminoso tentava novamente não olhar para trás, até que sua única defesa caiu de seu bolso: a arma havia sido derrubada.
O homem encarou as autoridades, prontas para dar o seu fim. John tentou pegar o revólver e sacá-lo, puxando o gatilho para todos aqueles homens; porém, o que ganhou foram doze tiros atravessando seu peito, o corpo enfraquecido caiu fechando os olhos lentamente, estirado no chão.
Ele estava morto, e a promessa de sua filha não foi cumprida. Seu cadáver ficou exposto, morto a diversos tiros enquanto o sangue escorria sob os buracos de bala.
Sua família saiu do carro; a esposa e filha tiveram de acreditar que ele se foi. Charlotte gritava pelo seu nome, Carolyn estava sem reação. Ela chorou quase em lágrimas de sangue.
Desde então, o aniversário de Elizabeth fora um momento tenebroso. E ela nem sequer tinha culpa, mas assim como Carolyn, foi marcada também pela morte do herói imperfeito e sua redenção.
“Eles vão pagar! Eu juro que algum dia irei me vingar dos homens que te entregaram pai!” A adolescente pensou furiosa, apertando os punhos. Charlotte pediu para que se acalmasse, e no final daquele dia, ambas foram embora acreditando que John agora pudesse descansar em um lugar melhor.



ELIZABETH ACORDOU COM A LUZ SOLAR REFLETINDO EM SEU ROSTO. Ela estava feliz dentro do avião, pois com muito esforço conseguiu a tão esperada bolsa de estudos na melhor universidade intitulada “Harvey State”.
Agora com seus vinte e um anos, Lizzie estava livre e disposta a realizar seus sonhos; viver com os pais em Portland. No início foi estranho e embaraçoso depois de ter saído da cidadezinha natal que tanto adorava. Apesar dos momentos inesquecíveis, algo não saía de sua cabeça: como estaria Carolyn nesses oito anos que se passaram? Ela não respondia mais seus e-mails ou ligava para o seu telefone desde a morte do pai.
A moça acabou ouvindo dizer que ele foi morto a tiros justo em seu aniversário.
Enquanto lia as últimas páginas de um livro romântico qualquer, o avião enfim pôde pousar no destino. Em suas costas levava a mochila; nas mãos uma mala tiracolo preta com roupas e utensílios pessoais.
Os coturnos acharam o chão – Lizzie já não aguentava mais ficar sentada tendo a visão do céu como sua única fonte de distração. Pelo calor, tirou seu casaco e o pendurou pela cintura, ficando com sua regata verde musgo à mostra. Dali em diante, partiu em destino à faculdade.
Durante os estudos, pensou sim a respeito do que iria realmente cursar, e a literatura inglesa parecia mesmo uma boa opção. Porém, não estava preparada para ter uma colega de quarto na trajetória.
Imaginou como seria uma nova amiga: líder de torcida? Chefe gastronômica iniciante? Ou só uma mulher metida e superficial? As dúvidas não paravam de crescer.
Foi quando alcançou um táxi na saída do aeroporto de Phoenix – aquele estado continuava com seu mesmo estilo rústico e tradicional, principalmente as pessoas que pediam cheeseburgers no Jollibee ou só andavam em dias normais. Elizabeth, saindo dos devaneios repentinos, ouviu o taxista chamar sua atenção. Distraída, ela notou e pôde entrar no carro, arrumando sua postura no banco de trás.
— Qual o destino, senhorita? — um idoso de aparentemente cinquenta e seis anos perguntou à moça de rosto sardento. Era asqueroso o ambiente cheirando a café puro e cigarros.
— Universidade Harvey State! — ela respondeu, ligando o celular que estava nos bolsos da frente de sua mochila, um dos objetos no qual era difícil não sair do vício. As mensagens de seus pais, amigos e família a deixavam fora de controle.
— Certo… É sua primeira vez aqui? — o homem decidiu puxar um assunto comum para não ficar em silêncio. Gostava de satisfazer seus passageiros, inclusive turistas. — Ou já esteve neste estado?
— Morei e nasci aqui com muito orgulho! — afirmou, dando uma risada descontraída. — Era de Crystal Eyes, acho que o senhor deve conhecer.
— Ah, sim, a cidade dos forasteiros? Que interessante! — falou, intrigado, curtindo um pouco a música mais tocada do rádio. — Você sabia que atualmente continuam vários ranchos e passeios a cavalos por lá? Meus netos amam visitar fazendas. Dizem que tem umas boas lojas de armas, mas gosto de ir pelas praias, por assim dizer.
— As praias são mesmo os lugares mais bonitos daqui — concordou com o taxista quase em frente ao local destinado. — O senhor poderia mudar a estação de rádio, por favor?
— Claro! Não sou muito fã dessas músicas jovens. Nada melhor que um bom e velho country!
Então, procurando a estação ideal, o homem relaxou no percurso ao som de Hurt, justo aquela música… a favorita do pai de Carolyn.
Lizzie não entendia exatamente quais as novas sensações aquele lugar poderia trazer. Ela refletia e fechava seus olhos sem preocupações, só ouvindo a música de Johnny Cash pacientemente, e mais as velhas lembranças se libertavam de sua mente.

•••


Embora não soubesse o que de fato aconteceu anos atrás – e o porquê de ter sido justamente no seu aniversário –, a imaginação de Elizabeth sabia criar um meio em que seus sonhos lúcidos tornavam-se significativos, só tendo imagens e flashbacks do passado, presente e futuro, como uma rápida viagem dentro de uma máquina do tempo.
Ela, de repente, entrou em um outro universo.
Estava vestida com roupas diferentes, menos habituais das quais costumava usar. As cores leves se transformaram em um conjunto de jaqueta xadrez marrom, camisa branca, calças rasgadas nos joelhos e tênis All Star. Lizzie ficou presa em uma plantação de trigo.
Sem entender nada, começou a andar em passos rápidos pela triticultura; às vezes se perdia e dificilmente encontrava uma saída, pois o que estava em sua frente era apenas aquele plantio, nenhuma casa ou celeiro por perto. Elizabeth se manteve ciente quanto àquilo e só correu pelo meio do nada.
Abaixando as plantações para conseguir correr mais rápido, a garota sentiu o chão tremer. Cavalos correram no final da triticultura. Ela encontrou um rancho, e de lá notou uma voz gritar o seu nome.
Depois daquilo, Lizzie acordou no mesmo lugar que se encontrava antes. Não tinha sido nada além de um sonho maluco – ou visão? – arrepiante.
Ela acordou afobada, e a única coisa que viu foi ter chegado finalmente em Harvey State. Se recompôs e saiu do táxi, pagou o motorista em dinheiro e enfim tirou seus pertences do porta-malas.
“Viajar de avião não foi realmente minha melhor forma de escapar do sono”, pensou enquanto bocejava, esticando os braços para o alto e pisando no chão áspero da entrada.
O clima ensolarado de 23°C no fim do último dia de verão até deixava o lugar mais bonito, diferente de Portland, onde ela nem saía direito do quarto a não ser para levar o lixo ou ler embaixo do pé de limão suíço nos finais de semana.
Olhando para cima, viu diretamente imensos muros alaranjados e enfeitados por diversos tipos de cactos em volta de cada um. Curiosa e animada, a garota atravessou o portão aberto e foi em direção à secretaria para confirmar o registro de sua matrícula.
Caminhando pela paisagem de enormes palmeiras, prestou atenção nas pessoas e estudantes sentados na grama, conversando assuntos comuns do dia a dia.
Elizabeth segurava firme suas bagagens e percebia diversas campanhas de alunos desesperados por atenção. Assuntos e doações para a caridade eram os demais comentados, mas ela não havia trazido nenhum trocado. Se realmente tivesse, ajudaria quem precisasse do dinheiro. Afinal, usou o que tinha para conseguir viajar tranquilamente.
Sua família sobrecarregou muito suas decisões, por mais que tivessem tentado consertar as coisas do seu jeito. Ser adulta não era nada fácil quando o assunto era relacionado a família.
O lazer não era mais como simples férias escolares, a tendência era trabalhar forçado para sobreviver todos os dias.
E tudo pôde se resolver e estar novamente nos eixos quando Elizabeth decidiu partir para onde era realmente feliz. Ao receber e abrir sua carta de admissão, foi como ter aberto diversas portas de oportunidade.
Claire e George exigiam as profissões e escolhas da primogênita o tempo todo, um casal de pais conservadores composto por médico e consultora de imóveis, e essas profissões não interessavam Elizabeth nem um pouco. Seu amor por livros nunca morria. Seus pais, por outro lado, nunca conseguiram entender seu sonho. Nem tudo era dinheiro em primeiro lugar.
Antes, perguntava-se: qual era o tipo de filha que queriam ter, a garotinha mimada de treze anos ou a que só obedecia e fazia as obrigações sem reclamar?
Todavia, nunca desistiu daquele objetivo, nunca parou – apesar de não ter cortado os laços com quem se importava com ela embora as discussões. O esforço valeu a pena, e estar naquele espaço que conquistou foi a melhor forma de buscar sua própria felicidade.
Após ver os arredores do imenso campus, Grayson apareceu batendo na porta da secretaria. Uma mulher alta de cabelos loiros presos em um coque fixo, vestindo camisa e saias sociais lhe deu boas-vindas e boa sorte. Lizzie respondeu com um sorriso e adentrou a sala, tirando seus documentos da bolsa e os colocando sob a mesa do diretor.
— Seja muito bem-vinda, senhorita Grayson! — um homem de terno e gravata borboleta pouco acima do peso levantou-se para entretê-la com um aperto de mão. — Ouvimos muito a seu respeito e estamos encantados em vê-la aqui.
— Muito obrigada — respondeu nervosa, pois era a sua primeira experiência. Não parava de encarar ao redor do salão. — Trouxe toda a documentação necessária para confirmar minha matrícula também.
— Perfeito! Creio que a senhorita vá cursar literatura inglesa, eu suponho.
— Sim. Na verdade, não escrevi uma simples redação à toa — riu, descontraída. — Para ser sincera, passei dias trabalhando nela.
— Isso é admirável, disso não tenho dúvidas — espontâneo e benevolente, o homem levantou-se da cadeira e viu a estudante fazer o mesmo. — Enfim, senhorita Grayson, bons estudos e quero ver a dedicação de sua parte amanhã.
— Certo! — ela balançou os cabelos para trás e concordou com a cabeça logo em seguida. — Onde fica meu dormitório?
— Nossa representante de turma, Tracy, pode mostrar para você onde será seu novo dormitório. Ela quem tem todas as chaves — afirmou o diretor, direto ao ponto. — Tracy está no corredor leste da entrada depois da biblioteca, e aqui está sua chave do armário também! — ele entregou a chave de número 409 para a estudante, que o agradeceu educadamente.
— Obrigada! — Elizabeth, então, se retirou.

•••


O tamanho do campus era um pouco intimidante, e Lizzie sentia-se mudada quanto àquilo. Quando estava em busca da representante, a de cabelos castanhos claros seguiu até a biblioteca. Saberia o quanto havia uma forma de escapar de um perigo evidente por ali, o curso não mostrava dúvidas. Até que, de repente, notou uma ruiva elegante e excêntrica passar de braços cruzados.
Ela vestia clássicas roupas de animadora de torcida, que aparentavam ser peças brancas e confortáveis. Seus lábios eram belos e rubis; os cabelos ruivos estavam presos em um impecável rabo de cavalo. Tracy observou a novata de cima a baixo, e, sem perder tempo, Grayson se pronunciou sobre sua chegada:
— O diretor me pediu para entrar em contato com você — disse ela de queixo erguido, por mais que a ruiva quisesse não notar sua chegada. — Você é mesmo a representante de turma?
Com um semblante de reprovação, Tracy respondeu:
— Infelizmente sou obrigada a cumprir esse trabalho de mostrar esse lugar chato para os calouros — cruzou os braços, depois revirou os olhos insatisfeitos. — Você vai cursar o quê?
— Literatura inglesa — respondeu, inocente.
— Que triste! — debochou em um riso escárnio, e Elizabeth preferiu ignorar a arrogância dela. — Enfim… me acompanhe! Vou te levar até o salão B, você pode ficar com o B25! Virou quarto vago depois que Shannon Boswell desapareceu.
Shannon Boswell? Aquele nome não era estranho nem familiar, porém a deixou intrigada mesmo não conhecendo quem era. E por quê ela desapareceu? Elizabeth não parava de pensar naquele nome.
— Como assim desapareceu uma pessoa? Está me dizendo que nada neste lugar é seguro? — indagou quase ríspida. Não conseguia deixar a insegurança de lado.
— Para uma garota certinha como você, provavelmente não aconteça isso. Eu não entendo nada do povo daqui, fui obrigada a conviver com esses caipiras depois de meus pais terem me tirado da Califórnia — Tracy a guiou até o dormitório. — Shannon foi uma pessoa teimosa desde que a conheço em minha vida toda, mas depois de ter namorado uma aluna que foi expulsa do campus, começou a ser pior.
— Sério? Então alguma coisa muito ruim deve ter acontecido com ela, ou talvez o relacionamento dela estava com problemas — Elizabeth não conseguia entender por que se interessava tanto sobre o assunto. — Ou não é isso?
— Ela desapareceu misteriosamente depois de uma noite no clube da Delta Iota Ômega. Enfim, vamos logo com isso! — a ruiva deslizou a chave dos bolsos de sua blusa de moletom na porta e abriu o dormitório de duas camas com uma mesinha pequena. — Pronto, chegamos no seu quarto. As coisas dela serão retiradas em breve, pode decorar como quiser!
E foi ali que os olhos de Lizzie começaram a viajar pelo quarto pequeno. E mais: ela pensava que estava em um espaço onde não a pertencia, e sim a outra pessoa. Sua atenção despertou com o lado coberto de cartazes de música e filmes antigos que ela nunca ouviu falar; a cama com o lençol dobrado e o cobertor perfeitamente arrumado. Tudo estava organizado demais para um dormitório vago.
Os objetos traziam um pouco da energia caótica de Shannon: diversas camisetas coloridas e listradas, jeans rasgados, jaquetas xadrez, coturnos, colares e gargantilhas. Elizabeth imaginou que se ambas conhecessem-se pessoalmente, provavelmente não seriam amigas comuns.
A estudante universitária pediu licença para que a ruiva se retirasse e, antes de ela ir, fez o seguinte convite:
— Espero que goste do novo quarto. Hoje à noite teremos uma festa de boas-vindas aos novatos, se quiser vir, fique à vontade para fazer novas amizades — entregou-lhe um convite. Elizabeth não queria recusar, mas pelo cansaço, queria poder tomar um banho e descansar.
— Obrigada pelo convite, Tracy! — a garota trouxe as malas para dentro do lugar. — Vou pensar mais a respeito. Geralmente não sou muito fã de festas, cheguei de viagem e preciso descansar também.
— Tá bem, nos vemos por aí — Carlson se despediu. “Que garota sinistra”, pensou perversa ao sair do corredor dos quartos.
Durante suas preciosas horas no banho e finalizar o dia desfazendo as malas para se deitar na cama, não foi como se acabasse tão cedo as obrigações habituais.
Lizzie já se sentia sozinha e cheia de dúvidas, pois quem seria sua nova colega de quarto era uma desaparecida que nunca mais voltou. Criou-se um mistério junto a uma sensação de desconforto e exaustão em Elizabeth. Aquela ruiva metida também deu uma pista: disse sobre ela ter sido rebelde e irresponsável ao longo da vida. Porém, e se isso não fosse verdade?
Antes de anoitecer, a estudante permaneceu de pé, andando ao redor do quarto com o objetivo de conhecer mais a fundo o novo espaço. Grayson retirou os últimos pertences da mala, dentre eles um relógio dourado fechado.
A garota abriu a tampa e notou ele funcionando normalmente; o tinha desde criança e sequer sabia o porquê daquele presente especial ganhar um significado importante para a trajetória de sua família.
Era o relógio do falecido bisavô materno.
Quando criança, Elizabeth ouvia histórias sobre ele ter sido um grande viajante do tempo e que acreditava na ciência de adentrar em qualquer realidade alternativa, mudando pequenos detalhes do passado.
Talvez fosse alguma mentira ou as clássicas histórias que o povo contava; outrora a fama de Crystal Eyes, além dos celeiros e plantações, tinha algo mais a se explicar sobre as origens de seus habitantes e quais trajetórias tiveram ao longo dos anos.
Seu bisavô Roger viveu anos e anos por ali sendo considerado louco; todavia, antes de sua morte, havia diversos blocos de notas com registros de cada acontecimento futuro na cidade: onde um suposto tornado atacaria e destruiria casas e todos os habitantes morreriam. Roger cismou que alteraria a tragédia através de poderes sobrenaturais.
A esposa e filhos se preocupavam com aquele problema; porém, Roger não desistiu de salvar todas as pessoas com o seu poder. Muitos diziam que ele era capaz de mudar pequenas coisas do passado. Provou através de feridas e manchas no corpo que nunca sequer apareceram ou tinham significado.
Sua mulher não suportou toda aquela loucura, pediu diretamente ao manicômio para cuidar de Roger; o homem implorou por misericórdia que precisava dar um basta naquilo tudo e salvar a cidade, por mais que tentasse provar expectativas fora do comum e seus argumentos não resultaram em nada mais. Até que, de repente, tudo o que ele previu realmente aconteceu.
Tudo se estremeceu, o chão rachou e o lustre de vidro desabou contra a mesa; ele estava certo e a cidade consumiria caos e trevas se não tomasse iniciativa. Quando os doutores chegaram em frente ao seu portão, o relógio acelerou e o tempo não estava normal. Roger não tinha mais opção, o que restou foi seus filhos fugirem para longe e a mulher correr para se salvar.
No final dessa história, Roger então correu e impediu os doutores, estendeu as mãos para o exato momento que corriam e os deixou parados. Foi como se tivesse pausado uma cena de filme. Ele andou lentamente e não entendeu o fato de ter sido o único a mexer-se em meio a um mundo parado.
Encontrou no fim um plantio de girassóis, e lá de longe lia e relia suas anotações sobre o passado. O mundo começou a tremer, mas apesar de muito esforço, Roger infelizmente faleceu. O que sobrou foi seu relógio, a única herança valiosa. O vento pareceu levar toda sua esperança, mas viu que voltar no tempo causou desastres.
Por um lado bom, a cidade foi salva, o tornado não mais existiu. Roger salvou todos, inclusive sua família, que atualmente não estava mais entre os Graysons.
Elizabeth achava a história uma piada, não acreditava realmente na possibilidade daquilo ser real. Todavia, preferiu deixar o relógio em seu devido lugar, em cima de uma escrivaninha. Posteriormente aos seus devaneios, voltou à terra enfim tirando os livros preferidos da mochila, de autores ingleses: William Shakespeare, Thomas Hardy, Jane Austen, Virginia Woolf, Oscar Wilde. Eles seriam bem úteis no semestre, e apresentar dificuldades em resenhas seria algo negativo em sua lista.
A universitária finalmente pôde descansar e tirar seus calçados; amanhã seria um novo dia com novas pessoas para conhecer. Porém, uma dúvida a ser esclarecida seria saber sobre quem foi a tal Shannon, desaparecida. Curiosa, Lizzie queria saber mais sobre o lado do quarto cheio de pertences dela.
No início, soube como era invasão de privacidade vasculhar objetos de outras pessoas, mas não adiantava. Lizzie queria saber mais sobre aquela garota e estava muito preocupada sobre ela ter sumido de repente. Sem olhar para frente, ela encarou o closet aberto, tocando nas camisetas de bandas, nos casacos e nas guitarras penduradas na parede, bem em frente à cabeceira de sua cama.
Shannon era uma clássica mulher rebelde que talvez gostasse de ser vaidosa e estilosa demais, alguém que amava cantar ou ir em shows de rock desrespeitando horários. Depois de Elizabeth analisar o estilo e preferências da jovem, mais à frente em cima de gargantilhas, colares e brincos, um retrato chamou sua atenção.
A garota ergueu os pés e tomou cuidado para que a foto não caísse. Esticou seu braço o máximo que pôde e conseguiu alcançar o retrato, revelando um casal de duas garotas: uma moça de cabelos ondulados e volumosos, pele escura, usando uma regata branca, cordão de penas azuis e jaqueta de couro preta. Sua maquiagem era perfeitamente detalhada – um batom vermelho nos lábios, sombra cinza e, delineado preto.
Lizzie deduziu que fosse mesmo Shannon Boswell sorrindo. Ao seu lado, uma outra garota exótica, de cabelos roxos, piercing no septo e uma camiseta da banda Led Zeppelin. Ela mostrava a língua e o dedo do meio. Seu visual de fato deixou Elizabeth menos interessada, até notar um cordão familiar no pescoço dela. Um idêntico ao de Carolyn, o mesmo pingente de cavalo dado por John aos seus sete anos.
“Carolyn? É Você? Não entendo…”, pensou em voz alta. Impossível aquela pessoa ser Carolyn Meyer. Ela não teria uma borboleta tatuada no peito ou algo assim.
A estudante universitária sentia-se estranha. De repente, sua visão se tornou trêmula e os ponteiros do relógio voltaram em sentido anti-horário. Elizabeth não sentia seus pés tocarem no chão; seu quarto girava sem parar e seus cabelos voavam.
O que estava acontecendo? Ela não fazia ideia. A garota fechou os olhos e tentou deixar a cabeça voltar para o lugar.
Contudo, ao novamente abrir seus olhos, ela estava em um lugar onde não podia imaginar: acordou presa dentro de um armário. Em outro lugar, em mais outra presença desconhecida.
— Onde estou? — perguntou para si mesma, virando a cabeça para os lados.
Abriu a porta do armário vazio e por fim encontrou um quarto de paredes também cheio de pôsteres e garotas conversando. Lizzie escondeu-se em um lugar fechado e lá pôde encontrar semblantes tristes e a mesma moça de cabelos coloridos ao lado da garota negra, que colocou seu braço esquerdo em volta dos ombros da garota que aparentava ser sua namorada.
Sei que o seu pai não queria isso — ela dizia paciente para sua parceira. — Mas os tempos mudam. Sua mãe casou com outra pessoa, e Sean pode ser o padrasto mais merda que for, mas continua sendo da sua família.
Ela foi covarde em ter mudado o sobrenome do homem que ela dizia amar para o filho da puta do marido novo — falava aos prantos. — Desde quando se chamar agora de “senhora Marston” muda alguma coisa?!
Claro que não muda nada, mas é assim a vida de alguém quando se casa com outra pessoa. Sua mãe não seria viúva a vida inteira, né? — a cacheada indagou, vendo o sorriso da moça surgir. — Seu pai foi mesmo um cara muito foda pelas histórias que me conta! E sei o quanto ele deve tá lá em cima te vendo e se orgulhando do que você é capaz.
Você tem razão. Mesmo ele não estando comigo, ainda posso descobrir o que ele passou. Mas depois de sua morte, eu não esperava tudo isso! É muito estranho andar a cavalo, tocar violão e andar por aquele celeiro sem me lembrar dele — suspirou, apertando as mãos da cacheada. — Foi tudo tão rápido. Aqueles fodidos oito anos passaram e não deixaram de ser uma eternidade.
Entendo como você se sente, Carol! — beijou sua bochecha. — Ainda vamos descobrir quem matou seu pai, e o cara vai pagar caro por tudo o que ele fez.
Quem dera se fosse possível voltar no tempo para descobrir quem foi — riu sem humor, abraçando a garota. — Posso não ter meu pai aqui, mas nada vai me fazer se livrar de você, por mais que minha mãe não aceite nossa relação.
Ah, manda o foda-se pra tudo isso — respondeu debochada. — Quem liga para o que os outros pensam de nós?! Teremos sempre o nosso próprio momento.
Sim, você nunca vai deixar de ser incrível — beijou os lábios da morena. — Eu te amo, Shannon Boswell!
Eu também te amo, senhorita Meyer!
Elizabeth realmente não estava errada, mas o que ainda estava fazendo naquele lugar? Ela ao menos nem podia falar, sua cabeça estava doendo.
E só então percebeu que voltou para o mesmo lugar. A estudante acordou assustada, deitada no tapete do quarto. Tinha voltado para o mesmo lugar, havia anoitecido e suas coisas ainda ficaram no mesmo lugar.
Como assim? Ela não tinha organizado?
Elizabeth ficou confusa. Pingos de sangue surgiram em seu nariz, estava tendo uma hemorragia. Correu para limpar e se olhar no espelho – estava com a franja longa quase cobrindo seus olhos, a garganta estava seca. Não estava nada bem.
Novamente tomou outro banho e organizou as coisas de seu quarto, tirando seus sapatos. Pareceu que tudo havia voltado, até os livros ainda dentro da mochila. Então, ela voltou alguns segundos no tempo.
Talvez a história de seu bisavô pudesse mesmo ser verdade.
Aquilo não podia ser um sonho. Shannon tinha alguma ligação com Carolyn, e Lizzie só saberia daquilo futuramente.


Continua...


Nota da autora: Essa história não é apenas um romance. É nessa história que vocês irão descobrir do que sou capaz de criar! Ela é sobre um lado incógnito, sensível, doloroso, falto. As minhas lembranças estão aqui. Os meus sentimentos jamais reconhecidos permanecem escritos discretamente; nela eu me revelei; eu me achei, chorei!
"Lizzie & Carolyn: o fim do verão de 2014" é dedicado á todas as minhas ex melhores amigas e amigos, também dedicado aos meus erros e perdas. É uma releitura sobre os pequenos erros e mentiras vindas de um relacionamento tóxico; este livro é a minha visão das minhas ações do passado.
Se eu pudesse voltar no tempo, mudaria a pessoa ignorante e agressiva que um dia fui. Não estaria sozinha, não estaria vazia. Viveria ao lado das minhas colegas outra vez! Confessaria ao meu primeiro amor que estava apaixonada por ela antes de mudar pela trigésima sexta vez. Acho que se eu voltasse no tempo, jamais faria ou agiria daquela forma tão infantil e humilhante. Me assumiria sem contar para minha família. Receberia um abraço.
Eu retornaria a pequenos lugares não mais visitados, aproveitaria metade da minha infância novamente, evitaria conhecer todos os rapazes e garotas que destruíram meu psicológico e emocional.
Socorreria os meus pais da pobreza, me dedicaria mais aos estudos. Faria mais amizades; não causaria problemas na escola. Eu tomaria decisões e obedeceria mais a minha mãe para ter a chance de amadurecer. Não afastaria ninguém que se importava comigo ou me respeitava.
No fundo, provavelmente devo ter trazido felicidade, gargalhadas e sorrisos para essas pessoas. Houve momentos lindos e inesquecíveis, e essas pessoas até hoje não ficam à beira do esquecimento.
Minha imaginação foi escrava de todos esses personagens; os entrevistei e anotei o que cada um sussurrava em meu ouvido. Cada reclamação, desabafo, problema familiar. Não me segurei! Tive que entrar em ação. Assim foi feito todo o processo de criação por todos os arcos.
No fundo, provavelmente devo ter trazido felicidade, gargalhadas e sorrisos para essas pessoas. Houve momentos lindos e inesquecíveis, e essas pessoas até hoje não ficam à beira do esquecimento.
Carolyn (protagonista secundária) foi a razão de toda essa aventura ter se iniciado; essa personagem com certeza me perturbou do início ao fim. Carol é sensata, confiante, teimosa, ignorante, rebelde. Mas no fundo, é insegura e deprimida, assim como eu sou hoje.
O amor de Lizzie por Carol é puro; traz um afeto relativamente bem-aventurado. As duas garotas criam tranquilidade e conforto quando se trata de tristezas. Se você possui ou queria ter uma amizade assim, sugiro imaginá-las como suas melhores amigas. Imagine Grace, Marie, Camila. Imagine-as como seu trio favorito.
Muitos irão se identificar com a irmandade de Elizabeth e Carolyn; ambas são opostas e combinam muito bem — assim como diversas amizades tradicionais. A energia é linda, sincera, engraçada, confiante. O esforço de Lizzie sempre se torna uma prova amorosa, enquanto Carolyn sofre.
Essa é minha cortesia para meus caros leitores! Viajem no tempo e invadam as memórias mais importantes de vocês.

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