Codificada por: Fer (Lyra)
Fanfic FinalizadaFechando o casaco grosso de inverno até o pescoço, Charlie deu uma última olhada para se certificar de que tudo o que precisava para o dia estava dentro da mochila. Depois de verificar se o freio de mão estava acionado, ela segurou na maçaneta preta e saiu do carro, respirando fundo. O sol de janeiro brilhava timidamente no céu enquanto ela atravessava o estacionamento em direção ao prédio principal da fábrica, o vento frio que soprava despenteando os cabelos castanhos.
Ela fazia aquele mesmo caminho para trabalhar há um ano, desde que tinha trocado a McLaren pela equipe de Lawrence Stroll. Depois de quase uma década em Woking, Charlie sentiu dentro de si que precisava de uma mudança de ares. O ano que ela passou na equipe de corrida de Daniel Ricciardo, assim como a vitória dele em Monza, a fizeram perceber que ainda havia vontade de vencer dentro dela, mas que o lugar para isso não estava mais lá.
A oferta da Aston Martin foi uma bela surpresa que veio no verão de 2021. Com um salário impressionante, bons benefícios e a perspectiva de trabalhar em um projeto de longo prazo, Charlie não deixou a oportunidade passar. No entanto, a emoção de iniciar uma nova etapa na vida não tornou menos melancólica a despedida do time que foi sua família por nove anos.
O ano seguinte foi exatamente como Charlie imaginou, cheio de desafios por conta da adaptação ao novo ambiente de trabalho e aos novos colegas. Porém, tudo valia a pena pela chance de trabalhar com Sebastian Vettel, tetracampeão mundial de Fórmula 1.
Havia algo nele que era diferente dos outros pilotos com os quais ela tinha trabalhado. Sebastian era gentil e atencioso. Ele não se importava em passar longas horas revisando dados e vídeos, além de nunca deixar de agradecer pelos esforços dela. Ela nunca esqueceria os pães frescos cuidadosamente embalados e os potes de mel com os quais era presenteada. Aquilo era o suficiente para Charlie se sentir feliz por estar fazendo o que amava.
Bem, até aquele fatídico dia de agosto.
Ela se lembrava claramente de como a garganta começou a apertar e os olhos se encheram de lágrimas ao ouvir o anúncio da aposentadoria de Sebastian. No entanto, Charlie mal teve tempo de digerir a notícia antes de saber quem seria o novo piloto da equipe no ano seguinte. E ela tinha certeza de que o universo estava pregando uma peça de mau gosto nela.
Seu novo colega era Fernando Alonso.
De novo.
Ao entrar no saguão da fábrica, Charlie lembrou-se de como estava determinada a largar o emprego e se mudar para outra cidade, condado ou até mesmo país. Ela queria se distanciar o máximo possível daquele piloto e de qualquer coisa que a lembrasse dele. No entanto, ela se lembrou de algo que ouviu num certo domingo no Canadá, vindo de alguém que o conhecia bem.
Era 2015. Ela estava escondida entre dois motorhomes no paddock do Circuito Gilles Villeneuve, finalmente se permitindo chorar depois de lutar contra aquela vontade durante todo o dia. Lágrimas escorriam pelo rosto dela enquanto os soluços faziam seu peito doer. Aquele tinha sido, definitivamente, o pior dia da carreira dela.
—Charlie? — ela ouviu uma voz masculina à direita dela — Você tá bem?
Enxugando o rosto com as mangas da camisa branca e fungando, ela olhou para o lado, encontrando Lewis Hamilton olhando para ela. Ele usava um boné preto sobre os cachos que vinha deixando crescer há algum tempo, bem como uma camisa preta da equipe e jeans cinza, estilizados para parecer destruídos, ambos molhados em locais onde seus colegas da Mercedes provavelmente o haviam atingido com champanhe. Porém, sua expressão estava longe de ser a de uma pessoa feliz com o resultado daquele dia.
— Tá tudo bem, eu tô bem, Lewis — Charlie respondeu com a voz embargada — Foi só um... Dia difícil.
Ela não tinha mentido. Aquele domingo tinha sido um dos dias mais complicados que ela teve naquele ano. A equipe tinha chegado confiante ao Canadá, principalmente por conta do pacote de upgrades trazido pela Honda para o MP4-30, carro daquela temporada. Embora tenha gerado alguma esperança, foi a principal culpa para Charlie considerar deixar o emprego como engenheira de desempenho.
Ainda no sábado, um dos carros teve problemas durante o último treino livre, com a equipe descobrindo uma falha no motor. Isso significou que ele não pôde participar nos treinos classificatórios, enquanto o outro carro conseguiu um mero 14º lugar, com a diferença de velocidade média para o carro mais rápido na casa dos 20 quilômetros por hora nas retas.
Porém, o domingo foi um verdadeiro show de horrores. Foram necessárias apenas quatro voltas para que as curvas de desempenho na tela de Charlie começassem a mostrar um sério problema com o consumo de combustível por parte do motor do carro. Charlie discutiu os dados com Mike, o engenheiro de corrida, e ambos chegaram à conclusão de que era necessário parar de lutar por posições para gerenciar o consumo de combustível até que ela encontrasse uma solução nos modos do motor.
Obviamente, a sugestão dela não foi bem recebida pelo piloto.
— Eu vi que o Fernando abandonou…
— De novo — ela murmurou, enxugando outra lágrima que tinha escorrido pelo rosto — A terceira corrida consecutiva, Lewis…
Ele franziu a testa.
— Charlie…
— E isso não é o pior, sabe? O pior é ouvir o que tive que ouvir durante o debrief — ela disse baixinho, a voz embargada com a recordação das palavras que Fernando cuspiu na sala de controle da equipe.
Após receber a orientação de Mike, Fernando explodiu no rádio. Afirmando que tinha “problemas maiores no momento” e que não podia dirigir “parecendo um amador”, ele praticamente ignorou os pedidos e continuou a corrida no mesmo ritmo. Buscando uma solução rápida para o problema, Charlie logo encontrou um modo de motor que reduzia significativamente o consumo de combustível, o que lhe permitiria pelo menos terminar a prova. Em teoria, pelo menos.
Na prática, um problema no sistema de exaustão do carro fez com que ele tivesse que abandonar a corrida, mas não sem expressar pelo rádio sua frustração e decepção tanto com o carro quanto com a equipe. Tirando os fones de ouvido da cabeça, Charlie sabia que teria outro debrief difícil pela frente. Ela só não imaginava que seria tão difícil quanto acabou sendo.
— Durante o debrief, o Mike disse pro Fernando que eu tinha identificado o problema e que diminuir o ritmo de corrida era apenas uma solução temporária até que eu encontrasse o modo de motor ideal para colocá-lo de volta em uma posição mais agressiva, mas ele não se convenceu disso. Ele continuou gritando sobre como era uma sugestão estúpida, que estava brigando por posições e que “Charlie tinha que ser um idiota para pedir algo assim naquele momento”.
— E você disse alguma coisa? —Lewis perguntou, cruzando os braços.
— Eu disse que, se ele não seguisse as orientações do Mike, ele teria abandonado na 25ª volta por falta de combustível, segundo as simulações. Mas ele continuou reclamando, dizendo que não adiantava, porque acabou abandonando mesmo assim, mesmo sabendo que o problema que encontraram no carro não tinha nada a ver com o combustível — disse ela, respirando fundo — Então, ele perguntou por que eu tava "defendendo o Charlie" e deu a entender que "ele não era homem o suficiente para se defender".
O piloto ergueu uma sobrancelha.
— Ele não…
— Fernando não se deu conta que eu era Charlie. E a reação dele — ela disse baixinho, a garganta dela se fechando novamente — Porra…
Lewis pegou as mãos dela enquanto ela tentava conter as lágrimas.
— O que ele disse?
— Que eu ser a Charlie “explicava muita coisa”.
Lewis franziu os lábios.
— Meu Deus…
— Sabe, Lewis, não é fácil ser uma engenheira em geral, mas aqui, é pior — Charlie disse, fungando — E não me refiro à carga de trabalho ou viagens. É a solidão. Quase sempre eu sou a única mulher na garagem, e isso vem com a ideia de que tenho que provar meu valor a cada segundo, que tenho que mostrar pra todo mundo o porque mereço meu trabalho. E aí chega um cara como o Fernando e me culpa por coisas que não consigo controlar. O carro é uma merda! Não fui eu que projetei ele e eu não posso fazer nada sobre aquele motor de bosta!
Ela continuou a soluçar enquanto Lewis a envolvia em um abraço. Ela se sentiu um pouco estranha ao ser abraçada por um ex-colega de trabalho que, por acaso, também era uma das estrelas do esporte. Ao mesmo tempo, no entanto, ela sentiu que precisava ficar vulnerável por alguns minutos. Tentar ser forte o tempo todo era muito cansativo.
Alguns segundos depois, ela se afastou dele, respirando profundamente enquanto tentava se acalmar.
— Olha, Charlie, se posso dizer uma coisa é que te entendo — disse o piloto, com os olhos castanhos demonstrando algo de empatia por ela — Eu também me sinto sozinho e, às vezes, isso me dá vontade de trabalhar ainda mais pra provar por que estou aqui. Mas, assim como eu, você não precisa provar nada a ninguém. Você é uma grande engenheira e, se posso dizer, uma das pessoas com quem mais gostei de trabalhar aqui.
— Fernando claramente não pensa assim — ela respondeu.
— Bem, você sabe por quê.
Charlie piscou.
— Por que?
— Porque o Fernando é um babaca, Charlie.
Ela não resistiu a dar uma risada.
— Não esperava ouvir você chamando outro piloto de babaca.
— Bem, Fernando é sempre uma exceção, e você sabe o por quê — Lewis respondeu, o canto dos lábios se curvando. Não era segredo que a relação entre ele e Fernando era caótica, fruto das disputas internas quando ambos estavam na McLaren, em 2007 — Mas o segredo aqui é se proteger dele.
— E como eu faço isso?
— Simples, é só não deixar ele entrar na sua cabeça, Charlie. Não fazer o que ele quer que você faça, que é desistir de tudo e pedir pra sair. Só então você vai ter a chance de vencer. E aposto que você não quer perder pra ele, não é?
— Não, não quero — ela respondeu, enxugando novamente o rosto — E eu não vou.
A conversa com Lewis deu forças a Charlie para resistir aos esforços de Fernando para irritá-la a partir de então. Ao contrário do que Fernando queria, ela não desistiu nem baixou a cabeça. Ela continuou trabalhando duro, corrida após corrida, lutando contra um carro teimoso e um piloto mais teimoso ainda. Ela continuou a ouvir os comentários desagradáveis e pedidos frequentes por parte dele para que ela fosse substituída por outro engenheiro. Felizmente ou não, esse pedido nunca foi atendido.
O dia em que Fernando anunciou a aposentadoria para o time, em 2018, foi provavelmente o dia mais feliz da vida de Charlie. Assim que ela chegou em casa, ela fez questão de abrir uma garrafa de vinho, saboreando a bebida enquanto ouvia sua playlist favorita, cantarolando uma música do Joy Division.
Ela finalmente teria paz.
E ela teve, até aquele dia frio de janeiro.
“Não deixe ele entrar na sua cabeça”, ela repetia para si mesma enquanto subia as escadas até o escritório de engenharia. Ao chegar em seu cubículo depois de semanas longe dele, Charlie não resistiu a dar um sorrisinho enquanto colocava a mochila na bancada.
Sobre a mesa, além do computador, havia um porta-canetas com alguns lápis, além de algumas pastas verdes, um diário de couro preto e uma caneta em cima, todos com as famosas asas da Aston Martin estampadas. Em uma parede do cubículo, junto com o calendário de corridas daquele ano, havia uma foto do gato dela, um Maine Coon laranja chamado Ron, bem como uma foto de infância dela com o avô, Jamie, posando com um motor de carro desmontado em cima da mesa da cozinha.
Ele era o responsável por ela estar naquele escritório, afinal, ele tinha levado ela desde cedo para a garagem de casa para montar e desmontar motores e outros componentes, explicando o que cada peça fazia. Aquela tinha sido a grande diversão dela durante a infância e a adolescência, a complexidade daquele mundo sendo muito mais atrativa do que as casinhas e bonecas. Tinham sido aquelas tardes com o avô que a fizeram seguir a carreira de engenharia mecânica, com todo o seu apoio e incentivo. E Charlie seria eternamente grata a ele por isso.
Ela tirou o casaco e colocou-o nas costas da cadeira antes de se sentar e ligar o computador. Alguns segundos depois, a tela se iluminou com a imagem do carro do ano anterior, o número 5 de Sebastian exibido com destaque no nariz do carro. Por um segundo, Charlie se perguntou onde ele estaria naquele momento. “Provavelmente tá cuidando das alpacas”, ela pensou, sorrindo enquanto pegava a caneca dela — que tinha um desenho de um gato laranja – e se dirigia à máquina de café.
No meio do caminho entre os cubículos vazios, um movimento vindo do corredor a fez parar por alguns segundos. Toda aquela comoção indicava que alguém importante tinha acabado de chegar ao prédio, como um piloto. Mas Lance, filho de Lawrence, nunca gerava tamanho rebuliço entre os funcionários, apesar de estar no esporte há quase dez anos.
Isso só poderia significar que o novo funcionário havia chegado e todos estavam se reunindo na recepção para recebê-lo.
Apertando o botão ‘duplo americano’, ela optou por ignorar o que estava acontecendo. Não fazia sentido para ela se juntar a todos e participar daquela espécie de cerimônia de boas-vindas a alguém que já tinha demonstrado inúmeras vezes não apreciar o trabalho dela, apesar do esforço que ela tinha feito ao longo dos quatro anos em que esteve na mesma equipe que ele.
Eles eram completamente incompatíveis e nada mudaria isso. Nada.
— Charlie? — uma voz familiar perguntou atrás dela. Respirando fundo, ela se virou e encontrou Raúl, um dos engenheiros de performance, sorrindo para ela — Vamos receber o Fernando na recepção antes da nossa reunião. Você vem?
Ela forçou um sorriso enquanto o estômago revirava de tensão.
— É, hum — Charlie hesitou — Não.
— Por que não?
Ela piscou.
— Preciso organizar algumas coisas pra nossa reunião. Tenho que revisar uns dados do novo motor que recebi de Brixworth…
— Vai ser só uma reunião introdutória, Charlie, nada mais...
— Olha, Raúl, preciso muito ver esses documentos — ela o interrompeu, tentando não demonstrar o próprio aborrecimento com a insistência dele — Pode ir, te encontro na sala de reuniões, ok?
O homem apenas encolheu os ombros antes de seguir pelo corredor em direção às escadas, acompanhando o fluxo de funcionários entusiasmados com a chegada do novo colega. “Vamos ver quanto tempo isso dura”, ela pensou enquanto voltava para a própria mesa, tomando um gole de café.
Depois de analisar os documentos enviados pela divisão de motores da Mercedes sobre as unidades de potência que seriam fornecidas à equipe naquele ano e imprimir os dados obtidos pela equipe de aerodinâmica durante as sessões no túnel de vento, Charlie reuniu tudo e dirigiu-se para a sala de reuniões, que ficava no mesmo andar.
Ela não conseguiu afastar a tensão nos ombros ao entrar na sala. O local, que não era dos mais espaçosos devido à grande mesa que ficava bem no centro, também estava cheio de gente. Lá dentro estavam alguns engenheiros e um aerodinamicista, além de Tim, o engenheiro-chefe de desempenho, e Lance, ambos conversando com Ben, o engenheiro de corrida dele.
Se sentando perto de uma das pontas da mesa, Charlie colocou os papéis com os dados sobre a superfície, tentando ignorar a sensação estranha que crescia dentro do peito. Então, ela percebeu que havia dois homens com câmeras nas mãos conversando com Joanne, a responsável pelo marketing da equipe.
“É claro que ele trouxe a porra da equipe da Netflix pra filmar isso”, ela pensou, olhando para a caneta que estava na mão dela, as asas prateadas brilhando. Se havia uma coisa que Fernando amava mais do que infernizar a vida dos outros, era estar sob os holofotes. Depois do caos que causou no verão anterior com sua ida para a Aston Martin, estava claro que ele tentaria atrair o máximo de atenção possível. Isso, de certa forma, deixava Charlie ainda mais desconfortável.
De repente, as conversas na sala diminuíram de volume, a atenção voltada para a porta. Porém, ela não se moveu, os olhos fixos na linha vermelha impressa no papel na frente dela, a respiração pesada. "Não deixe ele entrar na sua cabeça", Charlie repetiu mentalmente.
— Bom dia a todos — a voz familiar e com sotaque forte a fez olhar na direção da porta. Fernando não tinha mudado muito desde o dia em que deixou a McLaren para seu período sabático, já que Charlie se recusava a chamar aquilo de aposentadoria. O cabelo castanho desgrenhado e a barba curta ainda estavam lá, exceto por um pouco de cinza, salpicado de leve nos fios. Aquele era o sinal mais claro de que ele não era mais o mesmo jovem que tinha conquistado o mundo da Fórmula 1 vinte anos antes.
Depois de ser cumprimentado pelos presentes, muitos deles sorrindo, Mike Krack, o chefe da equipe, limpou a garganta. Ele havia entrado com Fernando e pediu que todos reunidos se acomodassem na mesa para darem início a reunião. Os homens com as câmeras se prepararam para registrar o momento, um em cada canto da sala, enquanto Fernando fazia algum comentário para Lance enquanto se sentava, fazendo seu novo companheiro rir. Com os lábios franzidos, Charlie olhou para os papéis à sua frente.
— Bem, antes de mais nada, bom dia — Mike começou num tom que parecia feliz. No entanto, ela não se preocupou em olhar para ele, a caneta na mão dela parecendo muito mais interessante — É um prazer estar reunido com todos vocês novamente para mais uma temporada. Dessa vez, com grandes novidades na nossa equipe.
Clicando a caneta, Charlie começou a rabiscar distraidamente no canto de uma das folhas de papel.
— Nos despedimos do Seb em Abu Dhabi, mas estamos muito felizes em receber um novo piloto na nossa equipe, um verdadeiro talento, Fernando — continuou o chefe de equipe. Charlie continuou rabiscando no papel, as linhas tomando forma — É uma alegria ter você com a gente e temos certeza que faremos um ótimo trabalho juntos.
— Tenho certeza absoluta disso, Mike — respondeu o piloto, à medida que os traços da caneta no papel ficavam mais pesados, as linhas se sobrepondo. A mandíbula de Charlie estava travada, a respiração pesada.
— E, como estão todos aqui, vou aproveitar pra confirmar as equipes que vão trabalhar com o Fernando e o Lance este ano. Na pit wall, estaremos eu, o Dan, o Tim e o Peter, e, do lado de Lance, manteremos o Ben como engenheiro de corrida e o Luke como engenheiro de desempenho.
Algo se agitou no estômago de Charlie, o movimento da caneta acelerando. Se Ben seguiria com Lance, isso só podia significar que...
— Fernando vai ter a Charlie como engenheira de corrida e o Raúl como engenheiro de performance — Mike disse. Charlie levantou a cabeça e os olhos dela encontraram os de Fernando. Ele a observava com um certo ar de curiosidade, bem como o sorriso de quem tinha conseguido o que queria nos lábios — Teremos também um rodízio de funcionários do setor de aerodinâmica, com o Mariano nos acompanhando nas primeiras sessões.
As palavras do chefe da equipe se perderam em meio à pulsação de Charlie, que rugia nos ouvidos dela. Algo queimava dentro do peito dela enquanto olhava para Fernando, praticamente sem piscar. A caneta ainda estava contra o papel, as palavras tomando forma. Ela queria tirar aquele sorriso presunçoso do rosto dele, queria colocar para fora tudo o que havia acumulado dentro de si desde aquela maldita tarde em Montreal.
— Alguma pergunta? — Mike perguntou, fazendo com que o piloto olhasse para ele. O silêncio reinou na sala, pois aparentemente ninguém tinha dúvidas sobre a escalação das equipes de corrida daquela temporada — Então, esta reunião tá encerrada.
Assim que ele terminou de falar, os colegas de Charlie já estavam se levantando e saindo da sala, assim como Lance e Fernando, acompanhados por Joanne e Mike. Mas Charlie ficou ali sentada, congelada, tentando lembrar como se respirava. Era ridículo se sentir tão afetada por uma pessoa, mas como Hannah, a terapeuta dela, já havia dito, aquela era a maneira que a mente dela tinha encontrado para lidar com o trauma daqueles anos trabalhando na McLaren.
E Charlie sabia que ele não era insignificante quando olhou para o papel à sua frente. No canto, acompanhado de rabiscos de relâmpagos, carinhas tristes e o número 14, estava escrito as palavras “eu não esqueci”. Ela sabia que jamais esqueceria o estresse, as lágrimas nem o esforço inútil que tinha feito para salvar a passagem de Fernando pela equipe de Woking.
Charlie pegou os papéis que tinha trazido para a reunião e saiu decidida da sala de reuniões. Caminhando com passos rápidos pelo corredor, ela tinha apenas um objetivo em mente naquele momento. Ela não sofreria de novo, muito menos toleraria os comentários rudes dele novamente. Ela não era mais aquela garota começando a carreira na Fórmula 1, assustada com todas as demandas e problemas. Ela tinha amadurecido, crescido. Ela tinha aprendido a se proteger emocionalmente dos egos inflados e da frustração e agora, era o momento para se proteger.
Batendo na porta com a placa escrita Mike Krack afixada, ela ouviu um som que parecia um convite para entrar. Quando ela abriu a porta, encontrou o chefe da equipe sentado na cadeira dele, olhando para a tela do computador. Acima dele, havia uma pintura em estilo abstrato do carro da equipe.
— Ah, Charlie, tudo bem? — disse ele, com um sorriso no rosto, enquanto clicava no mouse que tinha na mão direita — Algum problema?
— Sim — respondeu ela, secamente.
O homem olhou para ela, parecendo confuso.
— E qual seria?
— Fernando.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— O que?
— Olha, Mike, vou ser honesta com você — disse Charlie, colocando os papéis em sua mesa — Eu não quero trabalhar com ele.
— Mas… Por quê? Vocês já trabalharam juntos...
— Esse é exatamente o motivo, Mike.
Mike se remexeu na cadeira.
— Charlie...
— Você sabe quantas horas de terapia eu precisei pra me recuperar depois de trabalhar na McLaren com ele? Te garanto que foram muitas. E tudo por causa dele, e eu não vou jogar no lixo todo o progresso que eu fiz.
— Posso falar com ele, Charlie — ele disse num tom comedido — Podemos trabalhar pra entender o problema e garantir que não aconteça novamente.
Ela bufou.
— Você acha que ele escuta alguém? De verdade?
— Charlie, eu entendo que o relacionamento de vocês possa ter sido tumultuado no passado, mas todos que trabalharam com o Fernando dizem que ele é muito tranquilo e aberto a feedbacks. Até o Karel, o último engenheiro de corrida dele, disse que nunca trabalhou com um piloto tão educado e detalhista…
— E você sabe por que ele disse isso, não é?
— Como assim? — Mike devolveu a pergunta, confuso.
— Você sabe por que todos esses caras dizem que ele é engraçado, educado e prestativo, não é? — ela disse, apoiando as palmas das mãos na madeira clara e inclinando-se sobre a mesa.
— Ahm… Não?
— Bem, eu sei. Quer adivinhar por que ele é tão legal com eles? Dica, tá entre as minhas pernas.
Mike piscou.
— Você tá me dizendo que ele é machista? — ele perguntou sério.
Charlie pensou em dizer que sim, mas algo dentro dela a impediu. A dor daquela tarde em Montreal pareceu voltar dentro dela. Ela podia sentir o coração batendo forte no peito, assim como o nó apertando sua garganta.
— Você conhece ele, não é? — ela se limitou a responder.
— Charlie, me desculpe, mas ele parece ser muito educado e respeitoso com todas as mulheres ao redor dele.
Ela bufou de frustração. Ela não podia falar sobre o que tinha acontecido em Montreal. Ela simplesmente não conseguia falar.
— Mike, por favor — Charlie disse, tentando manter a voz firme — Você não pode simplesmente me tirar do time dele? Me colocar em outra posição, talvez com o Lance?
— Infelizmente, não posso fazer isso.
— Por que?
— É uma questão contratual.
Ela piscou.
— Contratual? Você tá falando do meu contrato? Não me lembro de ter nenhuma cláusula dizendo que eu tinha que trabalhar com um idiota.
— Eu falo do contrato dele, Charlie.
— Mas…
— Uma das cláusulas que ele insistiu foi que ele teria total liberdade pra escolher a equipe de corrida dele. Lawrence aceitou, afinal temos ótimos engenheiros aqui dentro e não teríamos problemas em contratar alguém de outra equipe ou categoria se fosse o caso.
Charlie ficou em silêncio, os olhos fixos nos de Mike, respirando pesadamente.
— Então, depois de tudo acertado, logo no dia seguinte ele pediu a lista de engenheiros para escolher a equipe dele. Cinco minutos depois de enviar ela, eu recebi um e-mail com os nomes que ele queria, o seu era o primeiro da lista.
— Você quer dizer que…
— Foi o Fernando quem escolheu trabalhar com você, não eu ou o Lawrence. Apesar que eu teria feito a mesma escolha que ele, mas esse não é o ponto.
— Inacreditável — Charlie murmurou.
— Na verdade, acho que faz sentido, já que vocês se conhecem e, gostem ou não, você é uma das poucas pessoas que podem dizer que já trabalhou com quatro campeões mundiais diferentes na carreira, além de… Quantos ganhadores de corridas? Cinco, seis? Você sabe o que é preciso pra vencer, Charlie, e ele quer vencer.
— Olha, Mike, eu não — Charlie começou a dizer, até que foi interrompida por uma batida na porta. Sem hesitar, o chefe da equipe respondeu com um convite para que a pessoa entrasse. Ao se erguer da mesa, ela sentiu um arrepio percorrer a pele ao perceber quem estava passando pela porta. “Isso só pode ser um pesadelo”, ela pensou, tentando se concentrar na própria respiração.
— Mike, eu queria conversar com você sobre — Fernando começou, parando ao encontrar o olhar severo de Charlie — Ah, eu não sabia que você tava ocupado...
— Não tem problema, na verdade estávamos justamente falando de você — Mike respondeu, fazendo com que Charlie se virasse para encará-lo, a indignação escrita em seu rosto.
— E o que você tava falando de mim? — ele perguntou, se aproximando lentamente da mesa.
— Eu não quero trabalhar com você — Charlie respondeu, olhando para ele de forma desafiadora.
— Por que não, Charlie? — disse Fernando, o sotaque evidente nas sílabas do apelido dela. Algo na maneira como ele dizia o nome dela a deixava irritada, a vontade de dar um soco na cara dele crescendo a cada segundo — Pensei que você ficaria feliz em trabalhar com um campeão mundial de novo.
Ela bufou.
— A idade chegou mesmo pra você.
— O que você quer dizer com isso?
— Não sei se você lembra, mas eu trabalhei com Sebastian Vettel no ano passado. Você deve se lembrar dele, já que ele fez você se arrepender de ter ido pra Itália em 2010 — Charlie disse, o veneno escorrendo de cada palavra — A propósito, Mike, eu não sabia que a Aston Martin tinha virado uma casa de repouso.
— Charlie, por favor — disse Mike, com a voz suave, como se estivesse tentando apaziguar a irritação de Charlie. Claramente ele não esperava lidar com isso no primeiro dia de trabalho do novo piloto dele, mas Charlie não se conteve. Ela queria retribuir todos os comentários desagradáveis que ele tinha feito ao longo dos anos deles na McLaren.
— Não, Mike, tá tudo bem — Fernando disse, colocando a mão sobre a mesa, a sombra de um sorriso no rosto — Eu tô acostumado com o senso de humor adorável dela. E, se posso dizer, mal posso esperar pra ver ele nos fins de semana de corrida.
— Só nos seus sonhos — ela respondeu entre dentes, antes de olhar novamente para Mike — Eu não vou trabalhar com ele, eu me recuso a trabalhar com ele.
— Charlie, você não tá em condições de se recusar a trabalhar com o Fernando...
— Então eu me demito — ela exclamou, jogando as mãos para o alto — Eu vou pegar minhas coisas na minha mesa, vou para o RH e saio daqui!
— Alguém tá fazendo tempestade em copo d’água, como sempre — Fernando murmurou num tom de voz arrogante, quase condescendente. Algo nas palavras dele fizeram com que a raiva de Charlie transbordasse, uma resposta saindo da boca dela antes que o cérebro desse o comando.
— Vai se foder, seu babaca! — Charlie gritou — Você não pode seguir a porra de uma ordem para te manter na pista sem reclamar, e ainda fala comigo como se eu não soubesse de nada! Você não sabe respeitar o trabalho de ninguém! Você é um idiota sem noção da realidade!
— Você tem ideia de como é tá dentro de um carro? Você sabe o quão difícil é? — ele respondeu, levantando a voz — Você fala demais pra quem não entende o que é ser um piloto de corrida, Charlotte.
Ouvi-lo usar o nome completo dela trouxe uma lembrança dolorosa à mente dela. Dando dois passos à frente, Charlie ergueu o rosto para ele, sentindo os olhos arderem enquanto algo ficava preso na garganta.
— Nunca mais se atreva a me chamar de Charlotte! — ela gritou, com o dedo na cara dele.
— Então não levante a porra do seu dedo pra mim!
— Chega! — Mike gritou, batendo as mãos na mesa — Vocês dois, calem a boca!
Charlie se virou para o chefe de equipe um pouco assustada. Ela nunca o tinha visto bravo, ou até mesmo gritando, durante todo o tempo em que ele esteve à frente do time. Talvez isso fosse um sinal de que eles tinham ido longe demais.
— Primeiro, ninguém vai se demitir. Fernando é o nosso piloto e Charlie é a nossa engenheira de corrida, sem discussão — Mike continuou falando, olhando para eles por cima da armação escura dos óculos — Segundo, vocês vão trabalhar juntos e não só por causa do contrato, mas porque eu quero.
— Mas, Mike — ela tentou argumentar.
— Não me importa se o Fernando foi grosseiro ou se a Charlie sabotou ela mesma aquele maldito motor Honda, isso tudo tá no passado! Vocês não tão mais na McLaren ou em Woking. Vocês tão na Aston Martin, em Silverstone, e só adultos trabalham aqui, então ajam como tal.
— Mike, eu — Fernando tentou dizer.
— Ainda tô falando — ele o interrompeu, uma expressão séria no rosto — E, por fim, quero que vocês tenham maturidade para se olharem e pedirem desculpas por essa cena ridícula que fizeram aqui.
Charlie olhou para Fernando, percebendo o quão próxima ela estava dele naquele momento. Ela estava tão perto que podia ver detalhes que antes haviam passado despercebidos. Daquela posição, ela podia ver as manchas verdes se misturando ao castanho dos olhos dele, bem como as linhas finas que os emolduravam, além de uma pequena cicatriz no canto do lábio superior, bem disfarçada pela barba, salpicada de cinza.
— Eu sinto muito, Charlie — ele finalmente disse, fazendo-a piscar de volta para aquela sala. De repente, ela sentiu as bochechas esquentarem, o coração batendo forte no peito.
— É a sua vez, Charlie — Mike disse enquanto ela engolia em seco, tentando ignorar a pulsação forte em seus ouvidos.
— Desculpa — ela conseguiu dizer baixinho. A expressão de Fernando pareceu se suavizar com as palavras dela.
— Ótimo — disse Mike, recostando-se na cadeira — Espero que vocês continuem assim, sendo civilizados e respeitosos um com o outro. Tão dispensados.
Respirando fundo, ela se virou e caminhou em direção à porta.
— Charlie — Fernando disse atrás dela.
— Sim? — ela perguntou, olhando por cima do ombro.
— Você esqueceu isso — disse ele, segurando as folhas de papel que ela tinha trazido com ela.
— Eu imprimi pra você — Charlie murmurou enquanto abria a porta. Porém, antes de partir, ela ficou surpresa com a resposta dele.
— Ah, bem, ok. Obrigado.
Charlie se sentia um pouco desconfortável enquanto seguia os colegas dela pela rua de paralelepípedos. Não era por conta do fato que ela era a única mulher do grupo, ou que eles estavam saindo para beber em plena terça-feira; era por causa de quem tinha planejado ir num bar em Jerez de la Frontera.
O convite de Fernando não surpreendeu Charlie, dada a atitude dele nos últimos tempos. Ele, além de tratá-la com mais respeito do que nos tempos da McLaren-Honda, parecia interessado em desenvolver algum tipo de amizade com ela. A princípio, ela pensou que ele estava a provocando, pela maneira como fazia tantas perguntas. Isto é, até a quinta-feira anterior.
Ela estava no setor dela na fábrica, sentada no cubículo, bebendo uma xícara de chá de limão e gengibre e assistindo a um vídeo on board de Fernando no Bahrein quando ouviu a voz dele no corredor. Charlie sabia que ele andava vindo à fábrica quase todos os dias para captações de vídeos e fotos para o departamento de marketing, bem como para sessões de simulador.
Voltando os olhos para a tela, que mostrava Fernando fazendo uma linha de trajetória de forma a evitar a zebra elevada no apex da curva oito, Charlie tomou outro gole de chá, num esforço para ignorar a aproximação dele.
— Oi, Charlie — ele a cumprimentou, se recostando na parede do cubículo dela. Seu cabelo parecia úmido e espetado em ângulos estranhos. “Ele devia estar no simulador”, Charlie pensou.
— Oi — ela murmurou, tirando os fones de ouvido e pendurando-os no pescoço.
— O que você tá vendo aí?
— Sua corrida no Bahrein no ano passado — Charlie disse, colocando a xícara de chá sobre a mesa. Ele se agachou ao lado dela, com um braço apoiado na superfície.
— Gato fofo — Fernando disse. Ela virou o rosto para ele, completamente surpresa. Os olhos dele estavam fixos na foto de Ron, que estava colocada logo abaixo do calendário da temporada de corrida. — Eu tive um, uma vez.
Charlie ergueu uma sobrancelha.
— Você teve?
— Sim, o nome dela era Cleo. A Linda gostava de gatos e queria um pra companhia pra ela.
— O que aconteceu? Ela morreu?
— A Linda?
— Claro que não, eu tô falando do gato.
— Não, não, ela tá muito bem. Ela tá com Linda na — ele fez uma pausa por alguns segundos — Argentina, eu acho. A Linda levou ela depois que nós terminamos..
Houve um momento de silêncio constrangedor entre eles.
— Você sente falta dela?
— Da Linda?
Charlie lançou um olhar de soslaio para Fernando, deixando óbvio que ela não se importava com a ex-namorada dele.
— Ah, da Cleo. Bem, um pouco, mas no fundo sempre preferi cachorros. Mais ativos, você sabe.
— Sim…
Houve outro momento de silêncio constrangedor enquanto Fernando continuava olhando a foto do gato laranja. Através dos fones de ouvido de Charlie, o guincho do motor Renault abafava as outras conversas no escritório.
— Qual o nome dele? — Fernando finalmente quebrou o silêncio.
— Nome dele?
— Do seu gato. Qual o nome dele?
Charlie franziu os lábios, percebendo o que ele estava tentando fazer. Ele estava tentando se aproximar dela, criar alguma camaradagem, ou pior, iniciar algum tipo de amizade. “Isto é só um truque sujo”, ela pensou, se remexendo na cadeira.
— Não importa — respondeu ela, secamente.
— Mas eu te falei do meu gato.
— Você quer dizer o gato da sua ex-namorada, certo?
— Nós adotamos ela juntos, então ela também era minha gata.
Charlie suspirou, passando a mão pelo rosto antes de olhar para ele novamente.
— Olha, eu tava aqui preparando a sua primeira corrida da temporada, e você veio aqui me incomodar por causa do meu gato. Se você não tem nenhuma opinião sobre como correr no Bahrein, recomendo fortemente que você procure outra pessoa para importunar.
— Eu só perguntei o nome do seu gato…
— E eu sei muito bem o que você quer com isso, então, por favor, vai incomodar o pessoal de TI e me deixa trabalhar.
Fernando suspirou e se levantou. Os olhos dele ainda estavam na parede do cubículo, mas em um ponto diferente de antes.
— Você pode, pelo menos, me dizer o nome do seu pai? — ele perguntou apontando para a foto dela ao lado de um homem consertando um motor desmontado sentado em uma mesa
— O nome dele é Jamie. E ele não é meu pai.
— Não?
— Ele é meu avô. Agora vai embora.
Fernando franziu os lábios e se virou, murmurando um “até mais” ao sair. Charlie, porém, já tinha colocado os fones de ouvido novamente e se concentrando novamente no vídeo que estava assistindo. Porém, a frieza dela não fez com que Fernando desistisse, muito pelo contrário. Parecia que a relutância de Charlie em interagir com ele o fazia se esforçar ainda mais para se aproximar dela, para derrubar os muros que ela havia erguido contra ele. Mal sabia Charlie que eventualmente teria sucesso.
Aconteceu durante uma viagem de dois dias a Jerez, na Espanha, para os testes anuais de pneus da Pirelli. Fernando ficou com todo o primeiro dia de testes, enquanto Lance ficaria com o segundo. Era cansativo passar um dia inteiro no circuito, mas Charlie achava melhor do que alternar metade do dia, como a Mercedes havia planejado.
— Fernando — Charlie chamou, acenando para que ele se aproximasse do pit wall. Ele estava conversando com Edoardo, um de seus fisioterapeutas, e fez um gesto com a mão que parecia um telefone enquanto caminhava pelo pit lane. Ele amarrou as mangas do macacão verde de corrida na cintura, deixando visível a camiseta branca de Nomex. Charlie não pôde deixar de notar o modo como ela grudava na pele dele, deixando pouco para a imaginação.
— Sim? — ele disse, fazendo com que Charlie notasse onde estavam os olhos dela. Ela engoliu em seco e se esforçou para lembrar sobre o que queria falar com ele, deixando escapar uma pergunta.
— Algum problema?
Ele sorriu.
— Bem, minha irmã disse que estaria aqui pra assistir aos testes, mas ela perdeu o voo, então estávamos tentando remarcar a passagem pra ela conseguir chegar hoje a tarde.
Charlie assentiu, olhando novamente para a tela do computador na frente dela, tentando encontrar os dados que ela tinha lembrado que queria discutir com ele. Porém, Fernando tinha outras ideias.
— Você tem irmãos?
— Na teoria — ela murmurou.
— O que você quer dizer com “na teoria”?
Charlie suspirou e revirou os olhos.
— Tenho dois irmãos mais novos, mas acho que vi eles duas ou três vezes na minha vida, então…
— Você foi criada pelos seus avós.
Charlie olhou para ele, um pouco surpresa com a forma como ele tinha deduzido aquilo.
— Como você sabe disso? — ela perguntou baixinho.
— Foi mais um palpite, já que você tem uma foto com seu avô na fábrica — disse ele, apoiando o cotovelo na grade do pit wall — E o seu pai?
— Não sei quem é — Charlie respondeu.
— Mas como? — ele perguntou. Ele parecia quase indignado com a ideia — A sua mãe...
— Minha mãe nunca me falou quem é o meu pai já que ela não gosta de “lembrar dos erros da juventude dela” — disse ela, tentando conter a irritação em sua voz — Agora podemos nos concentrar na sua telemetria e não sobre quem fodeu minha mãe?
Fernando sorriu, como se estivesse tentando segurar uma risadinha.
— Como quiser — disse ele, apoiando a mão no quadril e voltando sua atenção para a tela.
O dia de testes parecia interminável, com os técnicos da Pirelli insistindo que eles testassem todos os compostos disponíveis e pedindo feedback sobre o desempenho deles. O fato de Fernando também estar em processo de adaptação ao carro não facilitou a tarefa de Charlie, pois ele também queria saber mais sobre os tempos que estava fazendo e onde poderia melhorar.
Porém, depois de 130 voltas e uma viagem bastante desconfortável de volta ao hotel, ela estava animada para tomar um banho, deitar na cama e ler o livro que trouxera consigo — uma autobiografia de uma atriz que discutia o relacionamento dela com a mãe. Tinha sido uma sugestão de Hannah, a terapeuta dela, como uma forma de começarem a explorar as questões relacionadas à criação de Charlie, e, pelo que ela tinha lido no voo para Jerez, era um ótimo lugar para começar.
Porém, Fernando achou que seria uma boa ideia levar a equipe a um autêntico bar espanhol, como forma de conhecer todos melhor. E, se ela bem conhecia os colegas dela, eles nunca recusariam uma chance de relaxar e beber, especialmente com um bicampeão mundial de Fórmula 1 pagando a conta.
— E você, Charlie? — perguntou o motorista, sorrindo — Você vem com a gente??
— Não, obrigada.
— Por que não?
— Acho que há maneiras melhores de aproveitar minha noite do que ver você ficar bêbado com seus mecânicos e ter que te arrastar de volta pro hotel no final da noite.
Ele riu.
— Primeiro, quem gosta de ficar bêbado é o Checo, não eu. Mas entendo a confusão, já que ambos falamos espanhol e pra vocês, britânicos, somos todos iguais.
Charlie abriu a boca para protestar, mas Fernando continuou.
— Em segundo lugar, tenho quase certeza de que não preciso de ninguém me arrastando de volta pro hotel, a menos que ela tenha um bom motivo pra isso. E, por fim, parece que você precisa relaxar. Esta é sua chance.
— Eu tô bem, obrigada — ela murmurou, olhando pela janela da sala de briefing, cruzando os braços.
— Tô vendo — disse ele. Ele claramente não estava convencido — Vamos nos encontrar no saguão às oito.
Enquanto o grupo caminhava pelas ruas atrás de Fernando, Charlie refletia sobre o fato de que o piloto parecia saber que ela mudaria de ideia e se juntaria ao grupo no saguão do hotel. Ela tinha preparado uma desculpa esfarrapada, o rosto corando de vergonha, mas, para a surpresa dela, Fernando não esfregou isso na cara dela. Tudo o que ele disse foi que estava grato por ter toda a equipe com ele.
A procissão abriu caminho pelas ruas estreitas, todos conversando e rindo enquanto caminhavam. Charlie se condenou mentalmente por não ter trazido uma jaqueta ou um suéter, sentindo frio com o vento nada acolhedor do final de fevereiro. Felizmente, não demorou muito para que Fernando conduzisse o grupo até uma porta de madeira escura, abrindo-a para deixar todos entrarem antes dele. Charlie olhou para a placa afixada na madeira ao entrar.
— Tabanco La Pandilla — ela disse suavemente. O aroma de vinho doce e algo que a lembrava do oceano encheu as narinas dela, e o interior do bar a fez lembrar dos típicos pubs ingleses, embora, sem dúvida, ele tivesse características espanholas na arquitetura e na decoração. As paredes estavam cobertas de pôsteres antigos de touradas e fotos em preto e branco dos arredores de Jerez, com letras elegantes nos cantos, indicando o local e a data em que foram tiradas.
— Charlie — alguém gritou. Ela desviou o olhar da foto que estava olhando e viu Raúl sentado num canto — Senta aqui!
Ao se aproximar da mesa, ela percebeu que não havia muitas cadeiras vagas para escolher, pois Mikey e os mecânicos já estavam ocupando a maior parte delas. Quase todas elas, aparentemente, pois a que ela escolheu já estava sendo ocupada por Jimmy, o administrador das mídias sociais da equipe.
— Aquela tá livre — um mecânico disse, apontando para a única cadeira vazia que restava.
Justamente ao lado de Fernando.
Soltando um suspiro, ela foi até a cadeira, acomodando-se silenciosamente com uma expressão séria no rosto. Charlie podia sentir os olhos de Fernando sobre ela, o que a deixou inquieta. Então, ela tirou o celular da bolsa e olhou para a tela em um esforço para se distrair.
— Você sabe que não é muito educado ficar no celular quando sai com os amigos, né? — uma voz masculina murmurou ao lado dela. Quando ela ergueu os olhos, encontrou Fernando com um sorrisinho no rosto.
— Eu tava verificando a hora.
— Você tem planos pra mais tarde?
— E se eu tiver? — Charlie perguntou.
— Fico feliz em ficar de olho no horário pra que você possa aproveitar sua noite — ele respondeu, erguendo o pulso esquerdo, mostrando o relógio azul royal que usava, com um grande mostrador quadrado, contornado em amarelo. No interior, havia três faixas nas cores vermelha, amarela e azul, que eram a base dos ponteiros, enquanto todas as engrenagens internas pretas e prateadas eram visíveis atrás do mostrador.
— Um Richard Mille? — ela perguntou. Charlie reconheceria aqueles relógios em qualquer lugar. Quando ela estava na McLaren, a marca assinou um acordo de patrocínio com a equipe, o que obrigou todos da equipe a usar os relógios cedidos por eles, um modelo especial com a pulseira laranja e o mostrador preto.
— Sim, RM 67-02 — Fernando disse com um sorriso — Richard desenhou exclusivamente pra mim, baseado nas cores do meu capacete. Até fizemos uma parceria no ano passado e desenvolvemos um modelo baseado na armadura usada pelos samurais…
— É horrível — Charlie disse secamente, interrompendo-o.
— O que? — ele disse, chocado.
— Sejamos realistas, Richard Milles são relógios terríveis. Eles são exagerados, você mal consegue ler o mostrador, são enormes e pesados no pulso, e muitos deles parecem brinquedos de criança, o que, considerando o quão caros são... Eles não têm nenhuma substância.
— Sinto muito, mas vou ter que discordar de você...
— Como sempre — ela murmurou.
— Os designs do Richard são bem pensados e nada confusos, além das cores serem muito bonitas e o tamanho me parecer ideal.
— Você nunca precisou usar aquele relógio horrível que ele fez pra McLaren — Charlie respondeu.
— Claro que usei. Todos nós ganhamos um desses em 2017, não lembra?
Ela estava prestes a responder quando um dos donos do lugar se aproximou da mesa. Ele era um homem de meia-idade, com cabelos grisalhos e um sorriso largo e animado no rosto.
— ¡Bienvenidos a nuestro tabanco! ¡Es un honor recibirlos aquí! — o homem disse. Fernando sorriu para ele educadamente.
— Les agradecemos por estar disponibles para recibirnos hoy — Fernando disse — Tenemos muchas ganas de experimentar lo que tienes para nosotros hoy.
— Oh, estoy seguro de que les gustará lo que tenemos para esta noche. ¿Podemos empezar con las bebidas?
Raúl traduziu para o homem — o dono, aparentemente — e todos começaram a fazer seus pedidos. Depois de anotar os pedidos de uma variedade de cervejas e de uma ou duas doses do famoso xerez andaluz, o homem olhou para ela.
— Y la señorita, ¿qué desea?
— Ele quer saber o que você quer — disse Fernando.
Olhando para o homem com o bloquinho na mão, Charlie sorriu.
— Um Moscow Mule seria excelente.
De repente, ela ouviu risadas ao lado dela.
— Um Moscow Mule? Charlie, você sabe que tá num tabanco, não é? — Fernando disse.
— Claro que sim, eu vi a placa.
— Então… Você deveria saber que eles não têm esse tipo de bebida.
— Esse tipo?
— Você sabe, bebida de mulher.
Charlie cerrou a mandíbula e franziu os lábios, sentindo a raiva subir pela nuca como uma onda quente sob a pele. “Não deixa ele entrar na sua cabeça”, Charlie se lembrou de Lewis dizer para ela. Era um mantra que ela repetia algumas vezes quando precisava lidar com Fernando, um apelo para que não perdesse o controle e desse um tapa na cara dele.
Mas, então, Fernando resolveu provocá-la uma última vez.
— Se você não sabe o que pedir, posso recomendar um bar que seja mais do seu gosto, que tem esse tipo de drinkzinho.
Antes que Charlie percebesse o que estava fazendo, ela se levantou abruptamente e saiu da mesa, os protestos dos colegas se tornando meros murmúrios distantes nos ouvidos dela. A garganta dela estava apertada e os olhos dela ardiam. Mais uma vez, ele a menosprezou, classificando de “coisa de mulher” as coisas das quais ela gostava, insinuando que eram menos importantes, sugerindo que ela não se encaixava ali.
Enquanto Charlie se afastava do bar, descendo a rua mal iluminada, lágrimas começaram a escorrer pelo rosto dela. Ela sentia a raiva a consumindo enquanto se condenava por não ter dado algum tipo de resposta para Fernando, por não ter colocado ele no lugar dele. Ela deveria ter dado um tapa nele. Ou melhor ainda, ela deveria ter ligado para Mike e largado o emprego imediatamente. Ela pensou no que seria necessário para que Fernando fosse demitido, percebendo que precisaria ser algo incrivelmente sério, nada menos que um crime, como um assassinato.
— Burra, burra, burra — Charlie murmurou, enquanto continuava andando pela rua. Ela já tinha percorrido uma boa distância antes de perceber que não tinha ideia de para onde estava indo. Em algum momento ela teria que chegar ao hotel. Ela resolveu pegar o telefone e abrir o mapa, até que esbarrou em alguma coisa.
Ela ergueu os olhos do celular e percebeu que havia esbarrado nas costas de um homem, de pé e conversando com outros dois homens. Eles pareciam ter vinte e poucos anos. Todos eles usavam jeans e jaquetas escuras e cheiravam a colônia barata, bebida e cigarro. Enquanto ela olhava para eles, o homem com quem Charlie havia esbarrado sorriu para ela, mas não de uma forma gentil — foi um sorriso que fez a pele de Charlie arrepiar e seu estômago embrulhar.
— Miren lo que tenemos aquí — o homem disse, tomando um gole da garrafa de cerveja que estava segurando — ¿Estás sola, princesa?
Charlie deu um passo para trás e tentou engolir o nervosismo. Ela não tinha ideia do que ele tinha dito ou do que dizer em resposta. Ela sabia muito pouco de espanhol, o conhecimento dela se limitando a algumas saudações e a contar até dez, que ela aprendeu com Carlos Sainz quando ele estava na McLaren. O homem repetiu enquanto Charlie hesitava visivelmente, aproximando-se dela.
— ¿Qué es, princesa? ¿El gato te comió la lengua?
— Debe ser sorda, Pablo — disse o homem da direita, de cabelos cacheados, rindo.
— No, ella puede oír. Me escuchas, ¿no? — ele disse, apontando para o próprio ouvido. Charlie entendeu que poderia ser uma questão sobre estar ouvindo, então ela assentiu, dando outro passo para trás — Ves, ella escucha.
— Pero no responde nada. Esa perra debe ser muda — disse o terceiro homem, com a voz profunda e rouca.
— Si es muda, mejor para nosotros — o garoto de cabelos cacheados disse, passando a língua pelo lábio inferior — De todo modo, es hora del postre.
Ela podia sentir a adrenalina entrando na corrente sanguínea, fazendo-a perceber tudo que estava ao redor dela. Ela queria fugir, mas se sentia congelada enquanto os homens se aproximavam, os olhos escuros e sinistros, murmurando coisas em uma língua que ela não entendia. Ela sentiu um dos homens envolver o pulso dela com a mão e entendeu o que eles queriam. Charlie sabia que não iria se livrar deles até que eles conseguissem.
— Vamos, princesa, no seas mala — o primeiro homem murmurou, apertando os dedos em volta do braço dela — Si no, tendremos que utilizar la fuerza.
O medo tornou Charlie incapaz de dizer qualquer coisa. Ela não conseguia gritar, não conseguia protestar, não conseguia pedir ajuda. Com mais lágrimas escorrendo pelo rosto, ela se deu conta exatamente do que estava prestes a acontecer com ela, numa rua escura de Jerez, tudo porque ela brigado com um colega de trabalho idiota.
Ela não esperava que aquela noite — e talvez a vida dela — tivesse um final tão ridículo e trágico.
— Cariño — ela pensou ter ouvido alguém dizer através da névoa de pavor que envolvia sua mente. A garganta dela estava ficando mais apertada a cada segundo, e ela podia sentir um suor nervoso escorrendo pela parte inferior das costas — ¡Espérame, cariño!
As palavras pareciam ter um efeito repulsivo nos homens que a cercavam, as expressões assustadas ao observarem alguém se aproximando por trás dela. "É uma armadilha, eu tô fodida", pensou Charlie, ofegando ao sentir uma mão no ombro dela. Ela estava prestes a tentar correr quando percebeu quem estava chamando seu nome. Fernando parou na frente dela, a expressão dele misturando alívio e preocupação.
— Por favor, mi amor, nunca vuelvas a hacer eso — Fernando disse, segurando o rosto dela suavemente nas mãos dele, os polegares acariciando as bochechas dela — Nunca, nunca más. Casi muero preocupándome por ti.
Ele a puxou para um abraço apertado, aninhando a cabeça dela na curva do pescoço dele, segurando a nuca dela com uma das mãos. Envolta nos braços dele, Charlie sentia um turbilhão de emoções. A confusão dela só aumentou quando ele sussurrou no ouvido dela, em inglês, para que ela seguisse a deixa dele e não dissesse nada.
Enquanto o homem que tinha segurado o pulso de Charlie se afastava ainda mais, Fernando voltou a passar a mão pelos cabelos dela, com ternura.
— Perdóname, mi ángel, realmente fui un idiota contigo. Pero no salgas así, sin rumbo. No sé qué haría si te hubiera perdido, mi corazón — ele disse, dando um beijo na testa de Charlie antes de abraçá-la novamente, com a mão apoiada na nuca dela — Gracias por encontrar mi novia. No sé qué sería de mí sin ella.
Se os três homens responderam alguma coisa, Charlie não ouviu. Enquanto Fernando a abraçava, enterrando o rosto dela no moletom branco que ele usava, ela se forçou a se concentrar no som do coração dele batendo contra o peito. Estar tão perto de alguém de quem ela não gostava era estranho. Mais estranho ainda era ela não estar se sentindo irritada, ou até mesmo enojada, com um contato físico tão próximo com ele. O que ela sentia ali, envolta pelos braços dele, não era raiva, mas segurança e alívio.
— Gracias, buenas noches — ele disse, antes de se afastar um pouco para olhar no rosto de Charlie. Ela podia sentir que as lágrimas dela tinham borrado o rímel que estava usando — Vamos, cariño.
Enquanto Fernando a conduzia pela rua, ainda segurando a mão dela, ela sentia como se estivesse tendo uma estranha experiência extracorpórea. Ela era apenas uma espectadora, incapaz de agir ou intervir. Caminhando ao lado dela, Fernando parecia estar falando ao telefone com alguém, mas a forma como a pulsação dela rugia nos ouvidos impedia que Charlie conseguisse identificar com quem ele estava falando ou o que exatamente eles estavam discutindo.
— Necesito que vuelvas al hotel ahora. Por favor, no puedo explicar por teléfono. Charlie está bien, dile esto al resto del equipo y que se queden al tabanco y disfruten de la noche. Si, te espero. Hasta luego — Fernando disse, antes de colocar o celular de volta no bolso de trás da calça jeans — Você tá bem, Charlie?
— Sim — ela respondeu num sussurro.
— Vou te levar de volta pro hotel, ok?
— Sim — Charlie disse, finalmente conseguindo encontrar a própria voz. Então, ela sentiu um calor estranho e agradável subindo por seus ombros, se dando conta que era o braço de Fernando. Aquele foi um toque bem-vindo, já que o ar frio da noite arrepiava a pele dela sob a blusa de lã fina que estava usando.
O resto da caminhada até o hotel foi um borrão. Nem ela nem Fernando falaram nada, afinal, não havia muito a dizer. Ela ainda estava processando o que quase tinha acontecido naquela noite, tudo porque não conseguia controlar a própria raiva, especialmente no que dizia respeito a Fernando. Porém, ao contrário do que esperava sentir, dada a situação, ela não sentia mais raiva dele.
A única coisa que ela sentia era culpa.
Ao chegarem ao saguão do hotel, Charlie avistou Edoardo parado na recepção, olhando para o telefone. Quando ele olhou para cima e viu os dois ali, a expressão de preocupação em seu rosto mudou para alívio.
— Graças a Deus vocês tão aqui. Você tá bem, Charlie? O que aconteceu? Eu posso ajudar?
— Edo, depois explico — disse Fernando. Ele se interrompeu assim que ela colocou a mão nos dedos dele, que ainda estavam em seu ombro.
— Eu tô bem — ela respondeu com a voz hesitante — Só preciso ir pro meu quarto.
— Você tá com sua chave? Aqueles caras não roubaram nada, certo?
— Tá na minha bolsa — Charlie disse, passando a mão pelo rosto, enxugando as lágrimas com a parte de trás da manga.
Os três pegaram o elevador até o quarto de Charlie em silêncio. Edo a ajudou a encontrar o cartão-chave e Fernando entrou no quarto primeiro, dando uma olhada superficial antes de sinalizar para os dois entrarem. Charlie caminhou até a cama e se sentou no colchão, ainda incrédula com os acontecimentos daquela noite. Aquelas cenas se repetiam de forma insistente na mente dela, o que a fez balançar a cabeça, como se aquilo pudesse expulsar fisicamente as memórias dos sorrisos sinistros dos homens e das mãos ásperas na pele dela.
— Aqui, bebe isso — ela ouviu Fernando dizer na frente dela. Ao abrir os olhos, ela o viu curvado, uma expressão suave no rosto enquanto oferecia uma garrafa de água para ela. Sem protestar, ela bebeu a água, percebendo o quanto os lábios e a garganta dela estavam ressecados. Então, ela apoiou a garrafa na perna e olhou para ele.
— Por que?
Fernando piscou, confuso.
— Desculpa, não entendi.
— Por que você veio atrás de mim?
Ele suspirou.
— Minha intenção inicial era pedir desculpas e levar você de volta pro bar. Mas, quando percebi que você tinha ido embora, eu — ele hesitou por alguns segundos — Eu sei que você não conhece a cidade e não fala espanhol, o que, infelizmente, te torna um alvo fácil para pessoas mal-intencionadas. Eu temi o pior, então perguntei pra um cara que tava na frente do bar pra onde você foi e eu segui na mesma direção.
— Por que você me defendeu deles?
— Porque eu não conseguiria viver comigo mesmo se algo ruim acontecesse com você.
— Mas a culpa foi minha...
— Não, não foi. A culpa foi minha, Charlie. Fui eu quem tava te perturbando e fiz você reagir daquela maneira. E eu peço desculpas por tudo o que aconteceu hoje.
Ela não podia negar que havia sinceridade na maneira como Fernando falava e olhava para ela. Seus olhos estavam cheios de culpa e arrependimento. “Talvez ele esteja realmente arrependido”, pensou Charlie, fungando.
— Tá tudo bem. Eu vou ficar bem.
— Você vai, eu tenho certeza — ele disse calmamente, antes de se levantar — Bem, vou deixar você descansar. Você volta pra Inglaterra amanhã de manhã com a equipe, certo?
— Sim.
— Excelente. Mas, se precisar de alguma coisa, me manda uma mensagem. Você tem meu número no Whatsapp, certo? Eu sei que você não tem mais Instagram desde que...
— Ah, eu ainda tenho. Eu só bloqueei você — Charlie murmurou.
Ele parou por alguns segundos.
— Você me bloqueou no Instagram?
— Depois do seu terceiro ou quarto pedido pra me seguir — ela respondeu, calmamente.
— Ah — disse Fernando, tentando disfarçar o desconforto dele com a confissão de Charlie — Bem, você sabe como entrar em contato comigo. Boa noite, Charlie.
— Boa noite e — ela parou por alguns segundos, os olhos fixos nos dele — Obrigada. De verdade.
Fernando olhou para ela por alguns instantes e depois sorriu.
— Era o mínimo que eu podia fazer — respondeu ele, colocando a mão no ombro de Edo. O fisioterapeuta dele também desejou boa noite para ela antes de seguir Fernando para o corredor.
Quando a porta se fechou, Charlie soltou um suspiro pesado, percebendo a tensão que estava acumulada em seus músculos. Talvez um banho ajudasse a limpar seu corpo e talvez sua alma de tudo o que havia acontecido naquela noite. Porém, havia uma coisa que ela precisava fazer antes de tudo.
Tirando o telefone da bolsa, ela o desbloqueou e entrou no Instagram. Indo para a barra de pesquisa, ela digitou um nome e encontrou a conta correta imediatamente. Então Charlie tocou no botão azul e depois na confirmação que apareceu na tela. Finalmente, ela clicou no botão ‘seguir’, largando o telefone na cama. “Talvez ele se sinta melhor agora”, pensou ela, enquanto caminhava em direção ao banheiro.
Naquela noite, o sono dela foi perturbado por pesadelos. Na manhã seguinte, Charlie acordou com o som do alarme do celular, se sentindo mais cansada do que quando foi para a cama. No entanto, ela não podia enrolar, pois teria que estar no aeroporto em pouco mais de uma hora.
A viagem de volta ao Reino Unido não teve intercorrências e ela aproveitou para dormir durante o voo. No caminho para Northampton, ela dividiu o carro com Mikey e três outros mecânicos de Fernando, todos conversando animadamente sobre os resultados dos testes e quais eram suas esperanças para a temporada.
No entanto, Charlie não conseguia pensar em setores, telemetria ou tempos de volta. Ela só conseguia pensar na noite anterior, em como Fernando apareceu de repente na escuridão e a abraçou como se ela fosse a coisa mais preciosa do mundo, e não alguém que ele odiava.
Ela suspirou, decidindo que isso era algo que ela precisava conversar com Hannah.
A sessão com a terapeuta estava marcada para aquela sexta-feira, no final da tarde. Charlie começou a fazer terapia no início de 2016, como uma forma de lidar com a ansiedade que ela começou a sentir depois de uma temporada miserável com Fernando, com as brigas constantes e pedidos para que ela fosse trocada por outro engenheiro.
No entanto, ela não tinha sido a primeira escolha de Charlie, pois acreditava que um psicólogo especializado em medicina esportiva poderia ajudá-la melhor. No entanto, uma sessão com o profissional que trabalhava na McLaren foi suficiente para que ele dissesse que os problemas dela eram maiores do que o escopo dele poderia trabalhar e que ele recomendaria uma colega dele. Felizmente, a recomendação dele provou ser a certa para ela.
— Charlie? — Hannah disse, com um sorriso. Ela estava parada na porta da sala dela, com os cabelos cacheados presos em uma espécie de coque e vestindo um terno laranja que contrastava com a cor escura de sua pele — Vamos?
— Sim.
Depois de entrar no consultório de Hannah e se acomodar na poltrona branca, Charlie largou a bolsa na mesinha lateral. Então ela respirou fundo enquanto a terapeuta se acomodava na cadeira à sua frente.
— Já faz algum tempo desde a nossa última sessão, não é? Uns 10, 15 dias?
— Sim.
— Então, acho que você tem muito para me contar. Vamos começar com o livro que recomendei?
— Na verdade — Charlie disse — Eu queria falar sobre minha última viagem.
— Ah, certo, você fez uma viagem a trabalho, certo? Para onde mesmo?
— Jerez — ela respondeu baixinho.
— Isso é na Espanha? — Hannah perguntou, e Charlie assentiu — Ah, imagino que isso tenha sido bem interessante considerando seu relacionamento com...
— Não tenho certeza se interessante é a palavra certa, Hannah — Charlie falou calmamente.
— Aconteceu alguma coisa, Charlie?
— Bem, não durante os testes. Tudo correu como esperado. Mas, depois, durante a noite, o Fernando convidou todos pra irem num bar.
— Todos menos você?
— Não, ele me convidou também e eu fui. Era um daqueles pubs tradicionais espanhóis que parece um porão, não consigo explicar direito. Mas ele e eu acabamos discutindo porque eu pedi um Moscow mule, então eu fui embora.
— Vocês discutiram por conta da sua escolha de bebida?
— Ele disse que era uma bebida de mulher, que não tinha aquele tipo de coisa naquele tipo de bar, e ficou me provocando, então perdi a paciência com ele. Mas, depois que saí do bar, eu acabei me perdendo na rua e topei — ela parou por alguns segundos — Com uns caras.
Hannah assentiu, esperando que ela continuasse.
— Eles tavam bêbados, falando espanhol, mas dava pra perceber o que eles queriam. Eles me encurralaram e eu não consegui gritar ou pedir ajuda — a voz de Charlie falhou, seus olhos se encheram de lágrimas.
— Eles fizeram alguma coisa com você?
— Não, eles não conseguiram porque... O Fernando me seguiu.
A terapeuta ergueu uma sobrancelha.
— Mas…
— Ele disse que perguntou pra um cara que me viu sair do bar por onde eu tinha ido e ele foi atrás de mim. Ele chegou, colocou as mãos no meu rosto e depois me abraçou. Aí ele falou alguma coisa pros caras e conseguiu me tirar de lá.
— E depois, o que aconteceu?
— Fomos pro hotel, onde encontramos o fisioterapeuta dele, Edoardo. E os dois foram comigo pro meu quarto. Aí, o Fernando me deu água e disse que se eu precisasse de alguma coisa poderia mandar uma mensagem que ele faria o possível pra me ajudar. Agradeci e ele disse que era o mínimo que podia fazer, porque não conseguiria viver consigo mesmo se algo ruim acontecesse comigo.
Hannah abriu a boca, como se fosse dizer alguma coisa, mas depois fechou-a novamente, com uma expressão pensativa.
— E o que você acha disso?
— Sobre o que?
— Sobre a atitude do Fernando.
Charlie apertou a boca numa linha fina, tentando organizar seus pensamentos.
— Bom, os meus sentimentos são meio contraditórios. Eu tô surpresa, já que ele me abraçou, beijou minha testa, ficou com o braço em volta de mim enquanto caminhávamos de volta pro hotel e tentou me acalmar o tempo todo. Eu percebi também que ele não tá sendo tão desagradável como costumava ser. É como se ele tivesse se esforçando para tentar ter um relacionamento cordial comigo.
— Então, você percebe uma mudança na atitude dele em relação a você?
— Bem, um pouco? — Charlie respondeu, um pouco incerta. Percebendo a expressão de Hannah, ela se corrigiu — Ok, sim, a mudança é considerável.
— E como você se sente com isso?
— Ainda tô desconfiada, não acredito que alguém possa mudar assim...
— Charlie, você não o vê diariamente há quase cinco anos. As pessoas podem mudar nesse período, ainda mais em um ambiente volátil como o do seu trabalho. Você mesmo me disse que percebeu como o Daniel Ricciardo mudou do primeiro pro segundo ano na McLaren e como isso afetou a equipe como um todo.
— Mas o Danny nunca deixou de ser educado conosco.
— E o Fernando não tá sendo educado?
— Bem, ele tá, mas...
— Charlie — Hannah a interrompeu — Você já pensou que, talvez, a sua percepção sobre o Fernando possa tá mudando?
— O que você quer dizer?
— Quando iniciamos as nossas sessões, uma das primeiras coisas que exploramos foi a sua relação com ele. Você tinha 27 anos, tava começando a se firmar na sua carreira e tava particularmente decepcionada porque o piloto com quem você tava animado pra trabalhar e que também achava bonito era um idiota. Mas, acho que você nunca parou pra pensar que talvez ele também estivesse desapontado.
— Hannah…
— A questão é que vocês não são mais os mesmos agora. Você tem 33 anos e ele tem mais de 40, certo? Vocês dois cresceram e amadureceram. Vocês se dedicaram a outros projetos e sonhos, bem como a objetivos pessoais.
Charlie permaneceu em silêncio, tentando se concentrar na respiração.
— Assim como, às vezes, você não reconhece aquela mulher de 2015, que chorou escondida no paddock depois que o Fernando disse alguma grosseria, talvez o Fernando não reconheça o cara que estava berrando sobre motores de GP2 e sobre parecer um amador — disse a terapeuta — E tá tudo bem. O que quero dizer é, você é capaz de reconhecer que ele não é mais o Fernando da McLaren? Você tá aberta a conhecer o Fernando da Aston Martin?
Charlie olhou para as próprias mãos, pensando na pergunta de Hannah. Era verdade que o Fernando que ela conhecia agora não era o mesmo Fernando que tinha conhecido em Woking. Ele não era mais o piloto em busca de uma segunda chance em uma equipe tradicional, nem o veterano frustrado que não tinha as ferramentas adequadas para atingir seus objetivos, mas alguém mais maduro, com mais experiência e, mais do que qualquer outra coisa, ainda com fome de vencer.
Assim como ela.
— Eu acho que sim.
Charlie suspirou enquanto se apoiava na pit wall, observando os mecânicos reunidos em torno do AMR23. A asa dianteira tinha sido removida para que alguns reparos pudessem ser feitos após problemas nos sistemas eletrônicos do carro terem sido encontrados durante a sessão de testes matinal. Felipe, o piloto que substituía Lance nos testes, teve que parar o carro no meio da sessão por não conseguir mudar de marcha.
Os trabalhos de reparo já tinham consumido uma parte considerável da manhã e estavam prestes a reduzir o tempo de pista de Fernando. E, pelo que a conversa dos mecânicos indicava, o carro não ficaria pronto tão cedo, o que era um verdadeiro balde de água fria na cabeça dela. E Charlie não tinha dúvida de que Fernando sentia o mesmo.
Fernando parecia mais entusiasmado com os testes de pré-temporada do que qualquer um. Enquanto estava em Jerez, ele comentou que estava surpreso com as melhorias no carro em relação à temporada anterior e deu muitas sugestões sobre onde a equipe poderia continuar a melhorar. Ele passou o que pareceram horas conversando com os engenheiros e testando configurações no simulador.
Durante o shakedown em Silverstone, após o lançamento do carro, Charlie não pôde deixar de notar o quanto os olhos de Fernando brilhavam ao compartilhar o feedback dele com os outros engenheiros e mecânicos. Mas agora, com os testes de pré-temporada indo completamente fora do planejado, Charlie não pôde deixar de sentir que a equipe não estava correspondendo às expectativas.
Olhando para dentro da garagem, Charlie percebeu que Fernando não estava ali. Ela achou estranho, porque ele parecia estar sempre por perto. Fernando sempre teve um fascínio pelo que os mecânicos faziam — ele gostava de ver o carro sendo montado e ajustado, e até mesmo consertado, às vezes. Ela balançou a cabeça e tirou os fones de ouvido, pegou a garrafa de água que estava na pit wall e atravessou o pit lane em direção à saída dos fundos da garagem.
Ao chegar à porta que dava para o paddock, ela encontrou Fernando sentado em uma pilha pequena de pneus cobertos, de cabeça baixa, lendo alguma coisa no celular. Com a parte superior do macacão aberta e pendurada na cintura, Charlie podia ver o contorno dos músculos abdominais dele se movendo sob o Nomex, fazendo com que todo o seu corpo esquentasse.
Ela se sentou na pilha de pneus ao lado dele sem dizer nada, tomando cuidado para não deixar a saia do uniforme verde que usava subir demais. Não era sua opção favorita, mas fazia calor demais para usar calças no Bahrein, e os shorts do uniforme não eram confortáveis nem lisonjeiros para ela. O silêncio entre eles persistiu por alguns momentos até que um deles teve coragem de quebrá-lo.
— O carro tá pronto? — Fernando murmurou.
— Ainda não.
— Quanto tempo?
— Não sei. Ainda tá desmontado. É um problema eletrônico
Fernando soltou um suspiro, passando a mão pelos cabelos.
— Isso é uma merda — ele disse baixinho.
— Sim, é realmente uma merda.
O som dos motores ecoava pelo paddock. O lugar não estava muito movimentado no momento, com a atenção de todos focada no que estava acontecendo na pista. Olhando para os pés, Charlie teve uma sensação de déjà-vu, como se estivesse assistindo ao mesmo filme pela quinta vez. A animação em torno de uma nova temporada e de um novo carro sendo frustrada por algum problema nos testes de pré-temporada era um ciclo familiar naquele momento da carreira dela.
— Posso te fazer uma pergunta? — Fernando disse calmamente.
— Você acabou de fazer — Charlie respondeu, olhando para ele com um sorrisinho no rosto. Fernando riu, balançando a cabeça — Pode sim.
— Você já teve dúvida?
— Fernando, isso é completamente…
— Profissionalmente, quero dizer — disse ele, interrompendo-a — Você já fez uma escolha de carreira e se arrependeu?
— Você já tá arrependido de ter vindo pra cá? — Charlie perguntou, erguendo uma sobrancelha.
— Não, não. Eu tenho plena consciência das minhas escolhas e das consequências dela. Mas, em quase todas as entrevistas que dei até agora e em todos os artigos que li, eles sempre falam que minha escolha de vir pra a Aston foi uma aposta, que foi muito arriscado. Isso, ou dizem que foi um erro e que só fiz isso pelo dinheiro.
Charlie olhou para as próprias mãos, pensativa.
— Embora eu saiba que eu fiz uma boa escolha, não consigo deixar de sentir que poderia ter feito outra coisa... Como se pudesse ter evitado um possível erro, sabe?
— Bem, pra começar, acho que tem muito pouco que você poderia ter feito de diferente na sua carreira — disse Charlie, olhando para ele novamente — Acho que, de todas as suas trocas de equipe, a mais questionável foi sua primeira passagem pela McLaren. Porém, assim como suas passagens pela Ferrari e pela Renault, ir pra McLaren naquele momento foi a escolha lógica, o que fez sentido pra você na época.
— Todo mundo parece discordar…
— Porque todo mundo sabe agora que não deu certo. Mas eles sabiam que não ia dar certo em 2007? Em 2010? Em 2015? É fácil olhar pra trás agora e dizer que você tomou algumas decisões de carreira questionáveis, mas eles nunca param pra considerar o que te levou a tomá-las.
— É verdade — disse Fernando. O olhar de Charlie mudou para as mãos dele, observando enquanto ele traçava o contorno de uma tatuagem de uma cruz em seu pulso com o dedo indicador.
— E no final, isso importa? Olhar pra trás vai mudar alguma coisa?
— Não, não vai.
— Então não adianta ficar pensando nisso agora.
Ele olhou para ela, o canto dos lábios se curvando em um sorriso.
— Isso me lembra uma frase que li uma vez. “O samurai deve ser como uma libélula, sempre avançando e nunca recuando”.
— Bem, acho que isso responde à sua pergunta.
— Apenas uma delas. Você não me disse nada sobre arrependimento.
— O que você quer dizer com arrependimento?
— Você já se arrependeu de uma escolha de carreira?
Charlie franziu os lábios, olhando para os joelhos.
— Houve um tempo em que eu me arrependi de estar na McLaren. Mas, percebi que não poderia condicionar a minha satisfação profissional à satisfação profissional de outras pessoas — ela respondeu, lançando um olhar de soslaio para ele — Depois que eu percebi isso, foi difícil sentir arrependimento.
— Você se arrepende de ter mudado de equipe?
— Não. Gostei dos meus anos na McLaren, mas era hora de mudar de ares. E aqui tem tudo que eu procurava, pelo menos profissionalmente. Foi num bom momento essa mudança, tipo… Eu sinto que era pra ser.
— Era pra ser?
— É, você sabe, como se fosse o destino. Como se eu estivesse destinada a usar esta camisa verde.
Fernando soltou uma risada, balançando a cabeça.
— Só você mesmo pra acreditar nessas coisas, Charlie.
— Você não acha que é destino estarmos trabalhando juntos novamente?
— Não é destino. Isso não existe.
— Claro que existe, Fernando.
— Não existe.
— Agora você vai dizer que Deus também não existe — Charlie disse, tentando reprimir um sorriso.
— Bem…
Ela se virou para olhar para Fernando, surpresa.
— Você não acredita em Deus?
— Não — respondeu ele — Eu nunca senti essa presença ou o que quer que as pessoas dizem que sentem quando falam de Deus. Se um avião cai e as pessoas morrem, é porque houve um problema mecânico ou um erro humano, e não porque uma entidade superior pensa que a sua hora chegou.
— Esperava algo diferente de um homem que vem da terra dos “reis católicos”.
— Só porque a maior parte do meu país é católica não significa que eu deva ser.
Charlie sorriu.
— É, isso faz sentido.
— E você? Acredita em Deus?
— Sim. Não sigo nenhuma religião em particular, mas acredito que existe um ser superior que intervém em nossas vidas de algumas maneiras. Na verdade, é a única explicação que consigo encontrar pra algumas coisas que eu vi na minha vida.
— Como o que?
— Você ter saído andando daquele seu acidente na Austrália, em 2015.
O rosto dele mostrou surpresa com a resposta. No entanto, antes que ele pudesse dizer alguma coisa, alguém disse o nome dela na porta. Ela se virou e viu Mikey, o mecânico-chefe de Fernando, enxugando o suor da testa.
— Sim? — ela respondeu.
— O carro tá pronto. Podemos ir pra pista.
— Excelente — Charlie respondeu, levantando-se e tentando ser sutil ao puxar a saia para baixo. Depois, ela se virou para Fernando — Vamos?
— É, vamos — ele disse, suspirando ao se levantar.
O resto da tarde foi dedicado à verificação da confiabilidade dos componentes e ao recolhimento de dados aerodinâmicos para correlacionar com o que já tinha sido observado no túnel de vento. Aquelas voltas também ajudaram Fernando a se acostumar com o novo carro e a trabalhar com Charlie enquanto ele estava na pista.
Nos dois dias seguintes, a equipe trabalhou no ajuste do desempenho aerodinâmico e na otimização das configurações do carro. Em algumas ocasiões, também fizeram algumas simulações de corrida e qualificação com os compostos que seriam utilizados na primeira prova da temporada, o que Fernando classificou como a melhor parte dos três dias de testes.
Porém, para Charlie, a melhor parte foi quando ela chegou ao quarto do hotel no final do terceiro dia, tomou banho e desabou na cama com o ar condicionado ligado no máximo. Ela dormiu como uma pedra naquela noite.
Os dias seguintes foram bastante tranquilos para Charlie. Ela não voltou para casa após os testes, para economizar tempo, dinheiro e energia, afinal a primeira corrida seria na mesma pista onde aconteceram os testes. Então, ela desenvolveu uma rotina nos dias seguintes, que consistia em acordar, se arrumar, tomar café da manhã no hotel e depois trabalhar no quarto pelo resto do dia. Não era muito emocionante ou divertido, mas, pelo menos, as coisas ficaram um pouco mais interessantes na manhã de terça-feira.
O alarme do celular dela tocou pontualmente às 7h, como acontecia todas as manhãs. Charlie se levantou e se espreguiçou um pouco antes de ir ao banheiro escovar os dentes e arrumar o cabelo. Enquanto decidia que roupa vestir, ela decidiu abrir as cortinas da porta da varanda, só para permitir que entrasse um pouco de sol no quarto.
Ao afastar o tecido grosso, Charlie se deparou com a vista do Golfo Pérsico se estendendo à sua frente, as palmeiras movendo-se suavemente com a brisa do mar. Porém, não demorou muito para que a atenção dela se desviasse da vista para outra varanda do hotel, que ela podia ver claramente devido ao formato do prédio.
Havia um homem sentado em uma varanda especifica, uma faixa de resistência de silicone amarrada na grade e enrolada na cabeça, movendo o pescoço contra a tensão. Ela estava perto o suficiente para ver a forma como os músculos dele se contraíam e relaxavam a cada repetição, bem como a forma que o esforço o fazia suar e respirar pesadamente.
Era Fernando.
Não era como se ela nunca tivesse visto ele malhando. Ela já tinha visto ele usando as academias dos hotéis em que estavam hospedados, especialmente depois que ele voltou para a Fórmula 1 com a Alpine. Aquilo nunca tinha chamado a atenção de Charlie, mas aquilo era diferente. Aquilo parecia mais pessoal, quase íntimo, ele se exercitando sozinho na varanda de sua suíte apenas com ela na plateia.
Charlie se virou rapidamente e voltou para o quarto, sentindo o próprio rosto corar furiosamente, uma sensação estranha descendo na direção da barriga dela. Ela não estava acostumada a se sentir daquela forma por causa de Fernando. Na verdade, o procedimento padrão com Fernando era sentir aborrecimento, repulsa, nojo, raiva... Não as sensações confusas que formigavam logo abaixo do umbigo dela.
Charlie olhou novamente para a varanda, tomando cuidado para se manter escondida atrás das cortinas. Ela percebeu, então, que ele não tinha mais a faixa de resistência em volta da cabeça e estava de pé, apoiado no parapeito da varanda enquanto bebia água de uma garrafinha. O coração dela deu um pulo quando ela percebeu que conseguia ver as gotas de suor que escorriam pela curva de sua garganta e faziam seus braços definidos brilharem na luz do sol da manhã. A lembrança do momento em que ele a envolveu num abraço naquela rua de Jerez, quando ele veio ao socorro dela veio a mente de Charlie. Ela se recordava de se sentir confortável e tranquila quando ele a abraçou e… Ela precisava experimentar aquilo novamente.
“Isso é loucura, Charlotte, para com isso”, ela pensou, balançando a cabeça e se afastando da janela, tentando dissipar qualquer pensamento sobre Fernando enquanto trocava de roupa e descia para tomar café da manhã.
No entanto, a manhã seguinte foi ainda pior. Charlie estava acordada antes mesmo do alarme do telefone tocar, a ansiedade e a expectativa impedindo que ela dormisse. Assim que ela se levantou e abriu a cortina, viu que Fernando estava ali novamente, fazendo os mesmos exercícios do dia anterior.
Só que, desta vez, ele havia dispensado a camiseta.
De repente, a sala ficou quente demais. O tecido da camiseta azul que Charlie usava de repente ficou desconfortável contra a pele dela. A boca dela estava seca e os músculos tensos. E, por mais que ela quisesse desviar o olhar, ela não conseguia.
Pior ainda, ela queria tocá-lo.
Uma cena se desenrolou quase automaticamente na mente de Charlie. Ela estaria parada na porta da varanda dele, observando-o enquanto mordia o lábio inferior. Depois, lentamente, ela se aproximaria de Fernando e se acomodaria em seu colo, com os olhos fixos nos dele, as pupilas dilatadas.
— Charlotte — ele murmuraria, uma mão no rosto dela, o polegar roçando levemente a bochecha dela. Charlie odiava quando alguém a chamava pelo nome completo, mas, havia algo em ouvir o modo como Fernando o dizia, com seu sotaque, que a fazia mudar de ideia. Na voz dele, aquele se tornava o nome mais lindo do mundo.
Com os dedos emaranhados no cabelo escuro dele, Charlie não teria coragem de dizer nada. Qualquer palavra estragaria aquele momento. Ela o beijaria lentamente, sentindo o sabor levemente salgado dos lábios de Fernando. Ela sentiria uma das mãos dele apertando a coxa dela enquanto ela pressionava o corpo contra o dele e perseguiria as gotas de suor pelo pescoço dele com a língua. Naquela posição, Charlie seria capaz de desafiar qualquer lei da física que afirmasse ser impossível dois corpos ocuparem o mesmo lugar no espaço.
Claro que era possível. Tudo era possível quando havia desejo envolvido.
Charlie despertou do próprio devaneio ao perceber que Fernando havia tirado o elástico da cabeça e se levantado da cadeira. Caminhando de volta para a suíte dele, ela mordeu o lábio com força enquanto estudava a tatuagem na parte superior das costas, a vontade de vê-la de perto fazendo a pele dela ficar mais quente.
Então, Charlie ouviu o som familiar de notificações em seu telefone. Ao pegar o aparelho sobre a cama e desbloqueá-lo, Charlie sentiu as mãos gelarem e o estômago embrulhar. Fernando havia mandado uma mensagem para ela.
“Eu não costumo ter plateia quando eu malho”.
Ele sabia que ela estava lá. Ele sabia que ela estava observando-o, absorvendo cada detalhe e permitindo que a mente criasse os cenários mais eróticos possíveis. Ele sabia que ela estava aproveitando cada segundo daqueles momentos, desejando que nunca acabassem.
Charlie nunca quis tanto sumir quanto naquele momento.
Ela só viu Fernando novamente na quinta-feira, durante o media day. Quando ele entrou na sala dos engenheiros, no motorhome, Charlie sentiu os ombros tensionarem. A miríade de possibilidades do que ele poderia dizer encheu a mente dela. Porém, ele se limitou a dizer um “bom dia” ao sentar ao lado dela para discutir e traçar estratégias para o final de semana.
Foi só no domingo que Charlie sentiu o verdadeiro peso daquela corrida. Era a primeira de Fernando pela Aston Martin, a primeira dos dois juntos de verdade, como uma dupla de engenheiro e piloto. Considerando a quantidade de vezes que ela tinha visto Mike, o engenheiro de corrida durante a segunda passagem dele pela McLaren, tentando aplacar Fernando quando ele explodia no rádio, Charlie não conseguia afastar a sensação de que ela não era a melhor pessoa para controlá-lo.
“Mas alguém tem que fazer isso”, ela pensou, enquanto voltava da garagem depois de informá-lo sobre a situação do grid. Ela já havia tido uma rápida conversa com Fernando sobre a escolha dos pneus de Russell e Sainz, bem como a estratégia que Lance tinha escolhido, considerando a condição física dele — que ainda estava se recuperando de dois pulsos quebrados — e sua infeliz posição no grid, logo atrás das duas Mercedes. Ela se acomodou no pit wall com o fone de ouvido dela e respirou fundo antes de abrir o canal de rádio com Fernando.
— Testando o rádio, um, dois, três.
Silêncio.
— Não tô ouvindo, Fernando — Charlie disse, enquanto verificava a conexão deles pelo computador.
— Um, dois, três, oi? — ela finalmente conseguiu ouvir a voz dele — Um, dois, três, quatro, cinco, seis…
— Ok, agora eu ouço você. Parece que você tá com um pequeno atraso no rádio, mas mensagens curtas servem, ok?
— Entendido.
— Então, Fernando, assim que eles começarem, o Matty vai ligar o limitador, aí você pode seguir em frente — Charlie disse, enquanto conferia as anotações dela — Lembrando que queremos é alvo mais nove. Alvo mais nove.
— Temperaturas?
Os olhos dela encontraram os indicadores na tela.
— Estamos satisfeitos com a temperatura dos freios e dos pneus. Eles estão boas. Repito, as temperaturas dos freios e dos pneus estão boas.
— Entendido.
Nas telas, ela podia ver as equipes se afastando dos carros no grid. Quando todos os vinte pilotos iniciaram a volta de formação, os olhos de Charlie se fixaram no carro verde escuro que estava à frente dela. Assim que Fernando parou novamente no grid, ela o instruiu a colocar o carro em modo start.
— Último carro do grid agora — disse ela — Primeira marcha.
As cinco luzes de partida acenderam, uma por uma. E então elas se apagaram.
Os carros aceleraram na reta, uma briga entre Red Bulls e Ferraris fazendo as faíscas voarem pela pista. Porém, Charlie não estava interessada naqueles carros, mas sim em Fernando, que tentava se manter longe do caos da primeira volta, seguindo pelo lado de fora das primeiras curvas. Até que, na última curva do primeiro setor, ela ouviu algo que temia.
— Fui atingido na curva quatro, checa pra mim.
— Entendido, Fernando, entendido — ela falou, olhando para a tela do computador, percebendo que havia algo errado com o pneu traseiro direito do carro. A pressão estava instável — Vimos e estamos verificando. Até agora tudo bem. Você tem o Russell na sua frente e o Bottas atrás.
— Sim, mas, quer dizer, eles não podem fazer isso — Fernando reclamou, enquanto o replay do momento aparecia logo acima dela. O estômago de Charlie se revirou quando ela percebeu que tinha sido Lance quem havia o tocado. “Não posso falar isso pra ele, ele não vai conseguir se concentrar em mais nada”, ela pensou.
— Sim, entendido, estamos verificando. Cuida dos pneus por enquanto, se puder — ela respondeu, tentando manter a voz calma. Após fechar a comunicação com ele, Charlie respirou fundo, tentando se concentrar. Aquele não era o momento para entrar em pânico, especialmente com uma corrida inteira pela frente.
— Charlie — Raúl disse, fazendo com que ela se virasse para encará-lo — Vamos precisar parar. O traseiro direito tá com a pressão muito instável.
— Não dá pra segurar? — ela perguntou, escaneando as informações na tela à sua frente.
— Não com toda essa variação. É muito arriscado deixar na pista, mesmo que ele tome cuidado com as zebras.
Charlie passou a mão pelo rosto enquanto olhava para os pontos coloridos que percorriam o circuito. Então, ela apertou o botão de rádio novamente.
— Agora Lance é o carro atrás de nós, 1,3 atrás. Russell ainda tá 1,4 à frente.
— Entendido. Nível um. Dez, quero dizer.
— Sim, entendido — ela disse, olhando novamente para a pressão dos pneus, algo pesado dentro do peito dela. Depois de confirmar a decisão com a equipe que faria o pit stop e os outros membros da pit wall, ela começou sutilmente a configurar a parada dele — Então, Russell 1.8, Lance 1.4. Considere o botão amarelo na curva 10.
— Entendido.
Duas curvas depois, Charlie encontrou o momento ideal para atualizá-lo sobre a situação.
— Então, Fernando, os três carros da frente não tão escapando, estamos bem na gestão do ritmo, mas precisaremos parar nesta volta.
— Os pneus estão bons, acho que devemos continuar.
— A pressão no traseiro direito tá instável. Então, box nesta volta, box, box, box.
— Entendido — ele respondeu, parecendo irritado.
Depois de um pit stop relativamente rápido para um jogo de pneus duros, Charlie o atualizou sobre a posição dela na corrida, um oitavo lugar nada encorajador, considerando a boa largada que tinha feito.
— Russell tá atrás de você e Magnussen na frente dele. Você tem potência de sobra se precisar — disse ela, enquanto olhava para a tela, observando a Mercedes preta ultrapassar a Haas — Russell acabou de ultrapassar Magnussen agora, ele tá logo atrás de você, 0,9 atrás, 0,8 atrás, ele tem DRS.
A expectativa naquele momento era que Russell diminuísse a distância para Fernando, mas estava conseguindo mantê-lo fora do alcance do DRS. Dessa forma, a atenção dela poderia se voltar para o carro na frente dele. Porém, a mente de Fernando estava em outro lugar.
— Eles investigaram o incidente? — ele perguntou.
— Eles anotaram o incidente, mas sem nenhuma ação — Charlie respondeu, sentindo os ombros tensos. Ela não gostava de mentir, especialmente considerando que era a única fonte de informação externa que ele tinha no carro. Porém, não era hora de incomodá-lo com aquela informação, principalmente porque o incidente tinha sido causado pelo próprio companheiro de equipe dele.
— Entendido — Fernando respondeu, sua voz não revelando nenhuma emoção.
A corrida continuou, os dados se acumulando na tela na frente de Charlie, que conferia as anotações que havia feito no dia anterior, logo após a classificação. Com uma parada muito antes do planejado, ela precisaria mudar o plano, considerando que o stint seria mais longo e que o desgaste dos pneus de Lewis, que estava à frente, crescia em ritmo acelerado.
— Estamos diminuindo a diferença pra Hamilton, dois décimos por volta — disse ela pelo rádio — Estamos felizes com o gerenciamento dos pneus, por enquanto tá bom.
— Sim, eles têm mais degradação, temos que pensar em como aproveitar isso.
— Entendido, Hamilton 2,6 à frente.
— Vamos nos aproximar e ver o que fazem.
Aquele plano durou cerca de cinco voltas e dependia de Lewis forçar os próprios pneus a se desgastar ainda mais antes de sua segunda parada, que aconteceu na volta 30. Charlie alertou Fernando para permanecer na pista, aproveitando a ida de George e Lewis para os boxes.
— Atrás de você, Lance e Russell pararam e estamos de olho nessa diferença. Hamilton e Sainz na sua frente também pararam, vamos abrir vantagem neles com os pneus — disse ela — Por enquanto vamos ficar fora, vamos ficar fora.
— Entendido — Fernando respondeu, enquanto os olhos de Charlie procuravam a diferença entre ele e Hamilton, os números mudando constantemente e fazendo com que sua mandíbula apertasse.
A parada final de Fernando aconteceu duas voltas depois, com um novo jogo de pneus duros colocados no carro dele. Mais duas voltas e ele estava tentando ultrapassar Lewis, falhando na primeira tentativa depois de uma escapada na saída da curva quatro, mas garantindo a posição na curva 10.
— Isso! Vamos lá — exclamou o piloto pelo rádio, fazendo Charlie sorrir.
— Bom trabalho. Hamiltontá 0,5 atrás. Sainz é o próximo, mas cuidado com Hamilton também. Ele tem DRS, está na zona de DRS.
Porém, apesar do esforço de Lewis, estava claro que faltava algo para ele se aproximar, provavelmente devido aos problemas aerodinâmicos do carro que dirigia. No entanto, se a diferença para Lewis estava aumentando, a diferença para Carlos Sainz, que estava logo à frente, não estava diminuindo como ela esperava.
— Hamilton tá 1,0 atrás. Ainda temos 15 voltas, 15. Sainz tá 1,4 à frente.
— Os pneus dele são muito mais velhos?
— Três voltas mais velhos que os nossos. Três voltas.
A vantagem parecia estar do lado deles, já que Sainz parecia ter problemas nos pneus. Porém, sempre que Fernando se aproximava da chance de abrir o DRS, Carlos conseguia escapar, volta após volta. Era extremamente frustrante.
— Faltam quatro voltas. Todas as janelas do safety car tão fechadas.
— Entendido, quatro voltas. Alguma preocupação? Algum conselho? Estou evitando as zebras e a escorregada na curva 12, mais alguma coisa?
A pergunta pegou Charlie de surpresa. Dando uma olhada geral na tela que estava na frente dela, tudo parecia dentro dos parâmetros esperados. O carro respondia perfeitamente e o cuidado que o piloto estava tomando já era suficiente. Mas havia algo naquela pergunta que a fez sorrir ao responder.
— Não, tá tudo muito bem, Fernando, tá tudo bem, estamos felizes com tudo.
— Ok, entendido.
Enquanto ela observava o carro verde escuro passar pela bandeira quadriculada, o alívio tomou conta do peito dela. Ela tinha conseguido. Ela tinha sobrevivido à primeira corrida.
— E isso é um P5 — disse Charlie — Muito bom, Fernando.
— Incrível! — ele exclamou — Isso é incrível, tô muito orgulhoso de todos vocês.
— Uma corrida de limitação de danos depois da colisão na primeira volta, mas, mesmo assim, um ótimo resultado.
— Ótimo. E o Lance?
— Sexto, saindo da curva 10 agora — respondeu ela — Quando parar, estacione o carro bem do lado da Ferrari, ok? Então você pode ir pra a pesagem.
— Entendido, Charlie — Fernando disse — Aliás, você foi incrível hoje.
Ela sentiu as bochechas esquentarem.
— Ah, bem — ela falou, tentando não sorrir — Obrigada. Vejo você no debrief, ok?
— É, até logo — ele respondeu, em um tom calmo, o que fez Charlie soltar um suspiro. Geralmente a pior parte dos fins de semana com Fernando eram os debriefs. “Talvez hoje não seja tão ruim”, ela pensou, enquanto subia as escadas do motorhome para a reunião.
Ela estava redondamente enganada.
O piloto entrou na sala com uma cara séria, se acomodando na cadeira ao lado dela com os braços cruzados. Quando a reunião começou, ele permaneceu em silêncio, ouvindo o que Mike e Dan tinham a dizer. Até que, quando o chefe da equipe perguntou se havia alguma dúvida antes de começarem a dissecar os dados, Fernando levantou a mão.
— Eu queria saber por que a Charlie não me contou que foi o Lance quem bateu em mim na primeira volta — disse o piloto, olhando para ela.
Charlie olhou para ele um pouco surpresa. Não apenas porque ele tinha descoberto o culpado antes mesmo do debrief, mas pela forma como ele tinha questionado. Ela esperava que Fernando enfrentasse a situação de forma mais casual, afinal, eles tinham contornado o problema com maestria durante a corrida e tinham conseguido um bom resultado diante do contexto.
Além disso, porque Fernando tinha dito que ela tinha feito um trabalho incrível.
— Não era a informação que você precisava naquele momento — ela começou a responder, mas Fernando a interrompeu.
— E que só descobri quando eu fui falar com o George, que era quem eu tinha pensado que tinha batido em mim e ele não tinha ideia do que eu tava falando.
Charlie franziu os lábios, tentando ignorar a dor no peito.
— Eu só tava tentando manter seu foco na corrida e não em questões externas…
— Questões externas podem afetar meu desempenho, Charlie.
— O que você queria que eu fizesse? Você queria que eu dissesse que foi o Lance que bateu em você, que seu pneu furou e que sua corrida tava fodida? Por que? Pra você reclamar por 56 voltas que ele fodeu sua corrida e deveria ser investigado?
— Melhor do que dizer que tava tudo bem, não é?
Ela respirou fundo, antes de passar a mão pelo rosto. Não era bom deixar com que ele a irritasse.
— Meu trabalho é te manter informado e focado durante a corrida — Charlie disse, tentando manter um tom comedido — Iríamos discutir isso aqui, aliás, eu tava planejando perguntar ao Ben se foi algum problema com o carro do Lance ou se foi apenas um erro no apex da curva, mas você parece incapaz de manter uma conversa madura sobre isso.
— Eu? Você tá dizendo que sou incapaz de manter uma conversa? — Fernando riu.
— Sim, você é incapaz de conversar e já demonstrou isso inúmeras vezes.
— Pelo amor de Deus — murmurou ele — Eu sempre tentei ser razoável com você.
— Ah, sim — Charlie respondeu, em tom irônico — Me lembros daquelas vezes em que você conversava comigo, ou melhor, você ficava dizendo que eu era uma idiota por pedir pra você economizar combustível e ainda dizia que o fato de eu ser uma mulher explicava o por que eu estava te pedindo aquilo.
Fernando olhou para ela, seu rosto deixando claro que ele não tinha ideia do que ela estava falando.
— Você não se lembra, não é? — ela disse, sentindo os olhos arderem. Mas ela não podia chorar, não ali. Não naquele momento. — Claro que não. Por que eu ainda achei que você se lembrasse disso? Não tem espaço na sua cabeça pra lembrar do dia em que você gritou com uma engenheira em 2015...
— Espera, você tá dizendo que isso foi em 2015? — perguntou ele, antes de soltar uma risada incrédula — Pelo amor de Deus, supera.
Charlie se levantou, o sangue fervendo nas veias.
— É você quem tem que superar isso! Ninguém aguenta mais você sendo um idiota autoritário o tempo todo, porque é isso que você é. Você é só um cuzão, um pirralho mimado!
Ele sorriu.
— E você acha que agir como uma pirralha mimada é a melhor maneira de lidar com isso, Charlotte?
— Eu já falei pra você não me chamar de Charlotte, seu babaca! — ela gritou.
— Esse é o seu nome, não é?
— Eu não te dei permissão pra me chamar assim.
— Preciso da sua permissão pra te chamar pelo seu nome?
— Sim, você precisa!
— Não dou a mínima pra sua permissão, Charlotte — Fernando respondeu, enfatizando cada sílaba do nome dela.
— Calem a boca vocês dois — Mike gritou, batendo com a mão no topo da mesa. Os dois olharam para o chefe da equipe, ambos parecendo um pouco assustados — Essa é a cena mais ridícula que já vi em todos os anos trabalhando no automobilismo. Mais ridícula do que a que vocês fizeram no meu escritório em janeiro.
— Em janeiro? — ela ouviu Lance perguntar para Ben em voz baixa.
— Mike, você viu que ela — Fernando começou, mas parou quando Mike ergueu a mão para ele, sinalizando para que ficasse em silêncio.
— Fernando, entendo sua frustração em não ter sido informado, mas Charlie fez a coisa certa neste caso. Avisar que tinha sido o Lance quem bateu em você durante a corrida só tornaria a situação mais tensa e queríamos que você mantivesse o foco em dirigir.
Charlie sentiu algum alívio com o apoio de Mike. Ela sabia que informações como aquelas não deveriam ser compartilhadas pelo rádio. No entanto, sua satisfação por estar certa naquele ponto durou pouco.
— Porém, isso não justifica sua reação, Charlie. Eu entendo que você tá numa posição difícil e que vocês dois têm uma história, mas seguir discutindo a relação de vocês assim em todos os debriefs desta temporada não vai ser produtivo.
— Não estamos discutindo nossa relação, só tô perguntando...
— Charlie, por favor — disse Mike, com a voz calma — Só seja razoável.
— Sim, Charlotte, seja razoável — Fernando murmurou ao lado dela, provocando-a.
— Cala a boca — ela sibilou na direção de Fernando antes de olhar novamente para Mike, que não pareceu nem um pouco satisfeito com isso.
— Só quero que vocês deixem suas diferenças de lado. Vocês não precisam ser amigos nem nada, apenas tentem trabalhar juntos de uma forma minimamente civilizada. Acredito que todos nós aqui ficaremos felizes com isso.
— Eu definitivamente ficaria feliz — Lance murmurou, enquanto Ben lhe dava uma cotovelada nas costelas — O quê? É verdade! Ele não consegue calar a boca sobre ela!
Charlie olhou para o lado, onde Fernando ainda estava sentado, de braços cruzados. Depois de uma longa troca de olhares, que pareceu durar mais do que qualquer conversa civilizada que eles tinham até então, ela finalmente cedeu.
— Tudo bem — disse ela, recostando-se na cadeira — Eu vou tentar.
— E você, Fernando?
— Já tô tentando.
— Espero que sim — Mike disse — Agora, vamos falar sobre a corrida, de verdade agora.
— Charlie, não acha que deveríamos fazer nossas voltas rápidas agora?
— Não, você pode fazer mais uma volta de aquecimento — respondeu ela, com os olhos no relógio no topo da tela. Faltavam pouco menos de dois minutos para o fim da qualificação para o Grande Prêmio de Miami, tempo suficiente para ele fazer mais uma volta lenta antes de outra volta rápida para perseguir a pole position e terminar com pouco menos de 20 segundos para o fim. Era uma estratégia ideal, cuidadosamente desenvolvida pela equipe, tudo para roubar a posição que estava com Checo.
Mais uma volta. Mais alguns segundos.
Ela observou atentamente enquanto Fernando seguia em velocidade baixa, dando espaço para a Ferrari de Charles Leclerc ultrapassá-lo na curva 9 durante a volta rápida dele. Então, ao tirar os olhos do mapa para ver a transmissão, ela sentiu o coração bater mais forte.
A Ferrari estava deslizando fora de controle em direção à barreira da curva 16, e o acidente fez com que todos no pit wall soltassem um grunhido coletivo.
— Atenção, bandeira amarela, bandeira amarela na curva seis — disse ela, antes de suspirar ao ver a cor mudar de amarelo para vermelho — Bandeira vermelha, devagar.
Sem resposta de Fernando, Charlie teve que confirmar que ele tinha seguido a orientação com o que diziam os dados vindos do carro, que indicavam que ele estava reduzindo drasticamente a velocidade. Ela sabia que era uma aposta deixá-lo ir tão tarde para a pista para fazer as últimas voltas dele no Q3. Ela suspirou, sabendo que deveria ter previsto que algo aconteceria com a pista escorregadia e a batida de Leclerc durante o treino do dia anterior.
— Devagar, mantenha o delta positivo — disse ela, enquanto olhava para o nome de Fernando na tela de cronometragem — A sessão não vai ser reiniciada. Então, é um P8 pra nós hoje.
— É, vamos ter que ficar com isso — ele murmurou. Ele parecia nada satisfeito.
E, dados os últimos resultados, ele tinha todos os motivos para não estar feliz.
Depois do quinto lugar no Bahrein, eles partiram para a Arábia Saudita com algum otimismo. Após o debrief, a equipe descobriu, em todos os dados coletados durante o fim de semana, que o carro tinha cumprido todas as expectativas e, nas condições certas, havia ainda mais desempenho a ser desbloqueado.
Jeddah foi como um sonho. Em todos os treinos livres, Fernando ficou entre os três primeiros, com tempos de volta tentadoramente próximos dos Red Bulls. Na qualificação, problemas com a caixa de câmbio de Verstappen e uma penalização para Leclerc garantiram que Fernando largasse da segunda posição no domingo.
A corrida teve suas próprias frustrações, com Fernando recebendo uma penalidade pelo carro estar fora de posição na área de largada e outra por cumprir incorretamente a penalidade durante o pit stop na corrida. No entanto, a equipe apresentou uma boa defesa perante a FIA e conseguiu anular a penalidade pela infração no pit stop, o que significava que o terceiro lugar de Fernando tinha sido restaurado. Charlie estava saindo do paddock quando Fernando fez uma videochamada com ela para contar a boa notícia. Vê-lo sorrindo e satisfeito com o resultado fez algo quente encher o peito dela.
Outro pódio veio na Austrália, depois de uma corrida com duas bandeiras vermelhas e uma colisão envolvendo o carro de Fernando, que fez o estômago de Charlie embrulhar. Porém, felizmente, o carro acabou conseguindo continuar.
No final de abril, um bom fim de semana em Baku solidificou o terceiro lugar de Fernando no campeonato de pilotos, juntamente com a Aston Martin subindo para o segundo lugar no campeonato de construtores.
Mas Miami estava se preparando para ser diferente. A qualificação em P8 em uma pista onde as ultrapassagens após a largada seriam difíceis não foi muito encorajadora, mas uma sólida estratégia de pit stop envolvendo dois longos trechos com pneus médios e duros seria fundamental para Fernando conseguir pontos valiosos naquele domingo. A previsão era de chuva durante a noite, o que inviabilizaria a largada com pneus macios devido à alta degradação durante as sessões de sábado.
Charlie anotou algumas coisas em seu caderno antes de sair do pit wall para voltar ao paddock. No caminho, ela tentou pensar em como contar a Fernando por que atrasou as voltas rápidas dele e a razão por não ter considerado a possibilidade de bandeira vermelha. Se ela dissesse a ele que Verstappen também teve que abortar a volta rápida dele, talvez pudesse apaziguar os ânimos dele…
“Como se ele se importasse com isso”, ela pensou consigo mesma enquanto passava a credencial no leitor da catraca de entrada do paddock. Todos os motorhomes da equipe tinham sido montados no campo do Hard Rock Stadium, o que tornava aquele um paddock único. Depois de passar por um grupo de mecânicos da McLaren e acenar para Lee, um engenheiro com quem tinha trabalhava há alguns anos, ela entrou no prédio de hospitalidade da Aston Martin, indo direto para o segundo andar, onde ficava o escritório de engenharia, local onde se reuniam para o debriefs.
Ben e Lance já estavam na sala, o que não era surpreendente, visto que Lance tinha sido eliminado no Q1. Os dois estavam discutindo a decisão de não colocar pneus novos no carro dele, o que prejudicou sua tentativa de conquistar uma posição melhor no grid. Em silêncio, Charlie se sentou na frente deles e abriu o caderno, verificando as anotações que havia feito durante a qualificação e tentando ignorar a tensão que crescia nos ombros dela.
Quando Fernando entrou com Dan, Charlie percebeu claramente o descontentamento no rosto dele. Ela estava se preparando para outra explosão, da mesma forma que acontecia na época de McLaren-Honda. A espera pelos comentários dele sobre as decisões estratégicas erradas e como o plano dela tinha sido muito arriscado faziam com que ela se sentisse no meio de um déjà-vu arrepiante e particular doentio. No entanto, ele não estava conversando sobre aquilo com Dan mas sobre a eficácia relativa do DRS do AMR23.
"É isso. A calmaria antes da tempestade”, Charlie pensou, rabiscando algo no caderno dela sobre fatores a serem considerados antes de sugerir o plano B durante a corrida, fazendo de tudo para evitar olhar para Fernando.
O debrief terminou sem explosões ou acessos de raiva de Fernando, e Charlie deu um suspiro de alívio. Ao se levantar para sair, os pensamentos dela se voltaram para o que ela faria quando chegasse no hotel, que provavelmente seria pedir serviço de quarto para o jantar e talvez assistir a corrida do ano passado para fazer mais anotações.
— Charlie? — ela se virou e viu que Fernando estava de pé, ajeitando o boné verde na cabeça. Ele ainda estava de macacão, mas a gola estava aberta e o zíper puxado até o meio do peito.
— Sim?
— Podemos conversar?
— Claro — Charlie respondeu, tentando esconder o nervosismo — Do que você precisa?
— Vem comigo — disse ele, passando por ela e saindo da sala. Enquanto seguia atrás dele, Charlie não conseguia se livrar da sensação nauseante de que sabia o que estava prestes a acontecer, ainda mais quando Fernando abriu a porta da sala dele e gesticulou para que ela entrasse.
Ela já tinha entrado na sala de vários pilotos ao longo dos anos, mas aquela era a primeira vez que entrava na sala de Fernando desde que ele tinha ido para a Aston Martin. E a sala dele era uma das mais simples e básicas que ela já tinha visto. Havia uma pequena escrivaninha com seu laptop, uma cadeira, um sofá e uma espécie de pequeno guarda-roupa aberto no canto, com a mochila e as roupas normais dele dentro. A única coisa na parede era um pôster do AMR23, o que a deixou surpresa já que, a sala dele quando estava na McLaren era um pouco mais decorada, com as bandeiras da Espanha e de sua província natal, Astúrias, adornando as paredes.
Quando Charlie ouviu a porta se fechar atrás dela, ela sentiu os ombros tensos. Fernando passou ao lado dela, tirando os braços das mangas do macacão para poder despí-lo.
— Bem, sobre o que você quer conversar? — ela perguntou, pensando em quão ingênua ela tinha soado naquele momento.
— Você sabe sobre o que eu quero conversar, Charlie — respondeu Fernando, pegando uma garrafa de água que estava sobre a mesa. Se recostando contra ela, ele abriu a tampa e tomou um longo gole, tudo sem tirar os olhos dela.
— É sobre sua volta rápida?
— Se é que você pode chamar aquilo de volta rápida — ele disse, secando a boca com as costas da mão.
— Era uma volta de aquecimento.
— A terceira consecutiva, quando eu podia ter feito uma volta rápida e melhorado meu tempo — ele falou, secamente.
Charlie suspirou.
— Era uma estratégia...
— Uma estratégia que não funcionou.
— Por causa do Charles — ela respondeu imediatamente.
— Você devia saber que ele ia fazer algo errado, Charlie. Ele tava com problemas na traseira do carro, eu vi quando ele passou por mim.
— Você poderia ter me falado isso.
— Por que você não viu no meu onboard? Você não tava prestando atenção?
Charlie riu, incrédula.
— Sim, eu tava prestando atenção, mas também tava olhando a telemetria dos freios, as temperaturas, os tempos de todos os outros pilotos, as leituras do motor, o estado do seu carro e conversando com você ao mesmo tempo.
— Bem, você deveria ter prestado atenção no meu onboard pra poder ver o que eu vejo.
— Eu poderia dizer o mesmo de muitas coisas, Fernando, mas sei que você tá fazendo várias coisas ao mesmo tempo...
— Mas você pede as coisas do mesmo jeito — disse ele.
— Porque, se eu não pedir, seu carro quebra e quem tem que ouvir você choramingar sou eu.
Ele bufou, passando a mão pelo rosto.
— Bem, de qualquer maneira, isso não importa, porque o fim de semana acabou, Charlie. Sua suposta estratégia fez todo esse fim de semana ser uma perda de tempo pra todo mundo.
— Você quer que eu peça desculpas? — ela perguntou, tentando manter a calma — É isso? Você tá fazendo todo esse discurso porque quer que eu peça desculpas pra você?
— Não, Charlie. Suas desculpas não servem de nada pra mim agora. Suas desculpas não vão me levar pro pódio amanhã, nem mesmo me fazer marcar pontos. Suas desculpas não vão me fazer campeão de novo.
— Quem disse que você vai ser campeão de novo, Fernando? — Charlie murmurou. Foi reflexivo, quase automático.
Os olhos de Fernando se voltaram para os dela, a expressão ficando rígida.
— Eu. Eu disse isso. Eu vou ser campeão de novo — ele respondeu — Mas só se você parar de fazer coisas que me atrapalham em vez de me ajudar.
— A única coisa que te atrapalha, Fernando, é o seu ego. Se você não controlar isso, você nunca mais vai levantar aquele troféu no final do ano em Paris.
As narinas dele se dilataram. Charlie havia encontrado seu calcanhar de Aquiles, o que a fez sentir uma sensação de imensa satisfação. Ela sabia que não deveria continuar cavando mais fundo, mas uma voz no fundo da mente dela implorava para que ela não perdesse a oportunidade de acertá-lo onde doía, como justiça pelos anos de miséria que ele lhe causou.
— Não é uma questão de ego, Charlie, e você sabe disso. Eu sou o piloto que mais trabalha em todo o grid…
— Isso é o que você pensa, certo? Já ouvi todos os outros dizerem isso — ela o interrompeu, cruzando os braços — Mas você não é melhor que ninguém.
— Sou melhor que todos eles. Eu sou o piloto mais completo de todos os vinte, eu…
— Você é? Se você é tão bom, então por que perdeu pra um novato em 2007? — ela perguntou. Agora que ela tinha colocado as garras para fora, parecia que seria difícil parar.
— Todo mundo sabe que aquele idiota do Dennis preferia o Hamilton…
— E depois? Quando você voltou pra Renault, por que não conseguiu vencer? Por que o Flavio precisou subornar seu companheiro de equipe pra que ele batesse em Singapura pra te colocar no pódio?
A lembrança do escândalo de 2008 o fez cerrar os dentes visivelmente. Agora, Charlie estava apenas jogando sujo, mas era inebriante. A voz no fundo da cabeça a incentivava a dar uma dose do próprio veneno para ele, fazê-lo sentir o mesmo que ela tinha sentido naquela tarde fatídica em Montreal.
— É muita ousadia sua dizer que você é o melhor enquanto divide o grid com o Lewis — ela continuou, dando um passo à frente para enfrentá-lo — Ele é o melhor piloto de todos os tempos, mas não só isso, ele é um companheiro de equipe melhor do que você. Ele é melhor que você em tudo!
— Charlie...
— Ele é melhor que você dentro e fora do carro, é melhor no simulador, é melhor que você como pessoa e como profissional. Ele é melhor que você até na cama! — ela exclamou, sem pensar, antes de se xingar mentalmente. Ela tinha ido, definitivamente, longe demais. O desejo dela de ferir o ego de Fernando tinha sido maior do que o autocontrole dela, e ela soube que tinha falado o que não devia quando viu a expressão de Fernando mudar de raiva para surpresa.
— Como você sabe disso? — Fernando perguntou, a sombra de um sorriso surgindo no rosto dele.
Ela piscou, paralisada. Não era como se ela realmente soubesse como Lewis era na cama, afinal, ela nunca tinha tido nada além de um relacionamento profissional com ele. Ela nunca tinha tido nada com nenhum piloto, e era por um bom motivo, especialmente sendo uma mulher em um ambiente dominado por homens.
Ao mesmo tempo, no entanto, ela não era surda aos rumores que corriam pelo paddock. Não era como se Charlie gostasse de fofoca, mas era quase impossível ignorar as conversas sussurradas que as caterers e a equipe de limpeza tinham fora dos horários de pico no motorhome, mas admitir isso para Fernando seria o fim do que restava da credibilidade dela.
— Você não deveria falar sobre coisas que você não sabe, Charlie — ele disse baixinho, diante do silêncio dela.
— Mas eu... Sei — ela respondeu, tentando esconder o nervosismo ao perceber o quão próximo ele estava dela.
— Quer dizer que você fodeu com ele? — Fernando perguntou. A maneira como ele perguntou era claramente um desafio.
— Sim — Charlie mentiu, tentando manter a voz firme. Porém, ela não pôde deixar de notar o quão rápido o próprio coração batia dentro do peito, ou como os olhos insistiam em descer até os lábios dele — E ele é muito bom.
— Ah, ele é? Então me conta mais.
Ela sentiu a mente congelar por alguns segundos.
— Não vou falar sobre isso com você.
— Por que não? — ele perguntou sorrindo.
— Porque não te devo nenhuma explicação sobre a minha vida sexual.
— Considerando que você tá fazendo suposições sobre a minha vida sexual, acho que tenho o direito de saber o que você considera uma boa foda.
Charlie sentiu as bochechas esquentarem.
— Ele é bom — ela respondeu de forma curta.
— Ele fez você gozar? — Fernando perguntou, sem hesitar. Uma onda de calor percorreu a pele de Charlie assim que a palavra saiu dos lábios dele.
— Como eu disse, ele é muito bom, diferente de você.
— Você nunca me fodeu pra saber se sou bom ou não.
— E eu nem preciso…
— Ah, acho que precisa sim, Charlotte.
Naquela fração de segundo, foi como se uma fita de vídeo tivesse sido rebobinada na mente dela. Olhando nos olhos dele, Charlie se lembrou da primeira vez que falou com ele, numa manhã fria de janeiro, oito anos antes. A imagem dele, com um terno cinza bem cortado e os cabelos escuros penteados para trás, estava gravada na mente dela. Ela se lembrava perfeitamente do que havia pensado quando o viu entrar no setor, com um largo sorriso no rosto ao apertar a mão dela enquanto Ron Dennis os apresentava.
“Lindo”, ela pensou. E ali, parado a poucos centímetros dela, com as mangas do macacão amarradas nos quadris e o boné verde-escuro sobre o cabelo castanho, ele parecia da mesma maneira.
Lindo.
Outra voz sussurrou no fundo da mente dela, dando uma sugestão nada sutil do que ela deveria fazer naquele momento.
Então, Charlie fez.
Colocando as mãos no rosto de Fernando, ela puxou o corpo dele contra o dela, os lábios deles se chocando em um beijo ríspido, completamente desprovido de qualquer delicadeza. O toque percorreu o corpo dela como um choque elétrico, aguçando os sentidos dela de imediato. O leve cheiro da colônia que ele havia colocado antes de ir para o circuito parecia ter se misturado com algo que Charlie só poderia classificar como dele, deliciosa e exclusivamente dele.
As mãos dela deslizaram do rosto dele até a nuca, enquanto os lábios se separaram para permitir que ela sentisse o gosto de Fernando. Ele era doce, salgado e azedo, tudo ao mesmo tempo, como se todas as facetas dele tivessem se combinado nos lábios dele. Os pensamentos dela eram uma verdadeira confusão irracional, Charlie percebeu, mas não havia nada de racional na situação.
Com a pulsação acelerada nos ouvidos, ela mal percebeu quando as costas bateram na parede e muito menos quando as mãos de Fernando desceram pela cintura dela em direção à saia que ela estava usando. Puxando o tecido verde de qualquer jeito, ele pressionou os dedos na pele do bumbum dela, puxando os quadris de Charlie contra os dele. Sentindo as unhas cravarem na pele dele, ela continuou aquela exploração faminta, quase desesperada. Era como se um fosse o ar que o outro precisava respirar, a superfície daquele mar de discussões e sentimentos não resolvidos deles.
Charlie só percebeu que estava sem fôlego quando sentiu os lábios de Fernando deixarem os dela, descendo pela mandíbula dela, mordiscando a pele. Ele não a estava tocando como alguém que queria provar algo, mas como alguém que tinha alcançado o próprio objetivo. Alguém que finalmente tinha conseguido o que queria.
— Ele fez isso com você, Charlie? — Fernando perguntou, em voz baixa, o hálito quente fazendo a pele dela se arrepiar — O Lewis beijou você assim?
— Não — respondeu ela, suspirando ao senti-lo morder o lóbulo da orelha dela.
— Ele te tocou assim?
— Não — disse Charlie, as mãos deslizando pelos cabelos dele, o boné do Aston Martin há muito tempo caído no chão.
— Então ele não te fodeu — ele disse, enquanto os lábios dele desciam pelo pescoço dela — Ele não te deu nada perto do que você merece.
— O que eu mereço — ela murmurou, reflexivamente. Não havia espaço para qualquer pensamento coerente na cabeça dela. Só havia uma coisa que Charlie conseguia ver nas pupilas dilatadas dele, quando ele ergueu o rosto da curva do pescoço dela.
Desejo.
— Uma foda de verdade — murmurou Fernando, seus lábios roçando os dela — Com alguém que sabe exatamente como te tocar, como te beijar, como te fazer gemer, como te fazer gozar. Alguém como eu, nena.
Charlie parou de repente, os olhos fixos no rosto dele. A mente dela era um turbilhão de pensamentos, a culpa se misturando à adrenalina que percorria o corpo dela. “O que eu fiz?”, ela pensou, enquanto ele roçava levemente o nariz no dela, murmurando algo que ela não entendia.
— Puedo hacerlo todo. Puedo hacer lo que quieras. Sólo dime que sí, nena.
Fernando, o homem que havia dito de várias maneiras que não a suportava, estava dizendo que sabia como tocá-la, como beijá-la, como fazê-la gemer, como fazê-la gozar. De todas as pessoas, ele. O homem que ela odiava, o homem que quase a fez desistir do sonho de uma carreira no automobilismo. O homem que ela tinha acabado de beijar, porque não resistia ao próprio desejo de ter ele para si, de experimentar aqueles lábios e sentir aquele toque.
Ele. Por que ele?
Levando as mãos aos ombros de Fernando, ela o empurrou de leve, num gesto para que ele se afastasse. "Eu não podia ter feito isso", Charlie repetiu mentalmente, enquanto tentava ajustar a saia verde, que agora estava terrivelmente amarrotada por ter sido levantada até os quadris dela.
— Charlie? Você tá bem? — ele perguntou.
— Me deixa em paz — ela rosnou, antes de sair rapidamente da, ignorando os protestos dele e batendo a porta atrás de si. Alguns passos depois, Charlie parou no meio do corredor e se encostou na parede, respirando fundo e tentando acalmar o próprio coração que batia acelerado em seu peito.
Charlie não conseguia entender o que tinha acabado de acontecer. Ela não conseguia entender como aquela discussão sobre ganhar ou não o campeonato se transformou em sussurros sensuais sobre como ele a faria gozar como ela merecia, com ele mordendo e beijando seu pescoço.
A ideia de fazer sexo com Fernando, algumas semanas antes, parecia um absurdo. Porém, naquele momento, não parecia mais algo impossível ou ridículo, mas algo que Charlie desejava. Ela queria tocá-lo, queria senti-lo dentro dela, queria ouvir ele sussurrar que a faria gemer e ver a expressão no rosto dele quando ela alcançasse o objetivo dele.
Colocando a mão no rosto, Charlie grunhiu de frustração. “Para com isso, Charlotte, para com isso, para com isso!”, ela se condenou. Ela não podia e não deveria pensar nisso. Eles se odiavam. Ela o odiava. Ela o odiava profundamente. Ou deveria odiar.
— Joder! — ela ouviu Fernando gritar, seguido de um som alto e pesado, como um punho batendo em uma mesa. Era o sinal que Charlie precisava para voltar ao escritório de engenharia e pegar as próprias coisas antes de voltar para o hotel. Ela não disse nada para ninguém e ignorou o aceno de um conhecido. Ela caminhou pelo paddock com pressa, a cabeça em outro lugar. Ela só conseguia pensar no que havia acontecido minutos antes, em como ela estava coberta pelo cheiro e pelo sabor de Fernando. “Preciso de um banho urgente”, Charlie pensou, enquanto pedia um Uber pelo celular.
Se ela esperava dormir naquela noite, estava redondamente enganada. A ansiedade manteve os olhos dela abertos, colados no teto do quarto do hotel. Charlie tinha milhares de perguntas na cabeça. Por que ela tinha puxado Fernando contra ela? Por que ela tinha beijado ele? Por que ela tinha permitido que ele a tocasse? Por que ela não tinha recuado? Por que ela tinha gostado?
Enquanto ruminava sobre o beijo, Charlie viu o sol nascer em Miami Beach.
O domingo passou como um borrão. Ela estava fazendo tanto esforço para ficar acordada e concentrada na corrida daquela tarde que praticamente se isolou mentalmente de tudo ao seu redor. Charlie não viu nada relacionado ao início do dia, nem mesmo a tão comentada entrada dos pilotos no início da cerimônia de abertura.
Enfrentar Fernando foi a parte mais estranha. Eles se encontraram por acaso na porta do escritório de engenharia. Encontrando os olhos dele, Charlie sentiu o coração pular no peito, um arrepio percorrendo a pele.
— Bom dia — ele murmurou, parando na frente dela.
— Bom dia — ela conseguiu responder, antes de desviar do piloto e seguir em direção à garagem.
Depois de uma boa largada de Fernando, o que permitiu que ele ganhasse algumas posições, a corrida não teve mais emoções. Na verdade, foi tão chata que Charlie ouviu o piloto comentar sobre a ultrapassagem de Lance que tinha visto em uma das telas ao lado da pista. Enquanto Lance estava lutando por uma posição que rendesse pontos, Fernando terminou em terceiro depois de uma corrida sem intercorrências. Quando ele cruzou a linha de chegada, ela sentiu como se um peso tivesse sido tirado dos ombros.
— Sim, P3 hoje. Muito bom — disse ela, com a voz monótona.
— Muito bem, pessoal. Foi uma corrida solitária, mas podemos ficar com isso.
Ela não assistiu à cerimônia do pódio nem se juntou ao grupo para as fotos da equipe com o troféu. O debrief foi rápido e mais focado em Lance do que em Fernando. Assim que a reunião terminou, Charlie se levantou e saiu da sala, sem olhar para trás, mesmo quando teve a impressão de ter ouvido alguém chamar o nome dela.
De volta ao quarto do hotel, ela se deitou na cama e soltou um suspiro pesado. Parecia que ela estava prendendo a respiração desde que tinha deixado o circuito. Charlie se sentia sufocada, como se estivesse se afogando nas próprias dúvidas e medos.
E, sempre que ela se sentia assim, ela sabia que havia uma pessoa a quem ela poderia recorrer.
Charlie pegou o telefone e digitou o nome na lista de contatos. Ao ouvir os toques insistentes, ela fez um cálculo mental do fuso horário e se condenou mentalmente. Já passava da meia-noite no Reino Unido, não era uma boa hora para uma ligação. Porém, alguém devia estar acordado, pois, segundos depois, ela ouviu uma voz doce do outro lado da linha.
— Boa noite, minha querida — disse Amanda, a avó dela. Charlie percebeu pelo tom que ela estava sorrindo, mesmo que parecesse cansada — Como você tá?
— Oi, vó, boa noite. Eu tô bem, e você?
— Eu também tô bem, só com um pouco de sono.
A culpa cresceu no peito de Charlie.
— Desculpa por ligar tarde, esqueci da diferença de horário…
— Tá tudo bem meu amor, tava esperando você ligar. Você sabe que eu não durmo sem falar com você primeiro.
Ela sorriu. A avó era a mulher que ela sempre considerou como mãe. Tinha sido Amanda quem sorriu junto com ela nos momentos felizes e enxugou as lágrimas nos momentos difíceis. Tinha sido Amanda quem ensinou Charlie a amar matemática e quem a incentivou a se candidatar a vaga de estágio na McLaren enquanto ela estava na universidade, embora Charlie achasse que as chances dela conseguir eram mínimas.
— Seu avô assistiu a corrida hoje — continuou a avó — Ele disse que aquele seu piloto se saiu bem, apesar de largar atrás no grid.
Algo nas palavras de Amanda fez os lábios dela franzirem.
— Sim, ele se saiu bem hoje — Charlie se limitou a dizer.
Ela não conseguiu pensar em nada para preencher o silêncio por alguns segundos.
— Querida, aconteceu alguma coisa? — sua avó perguntou.
— Não, vó, não aconteceu nada — ela se apressou em dizer.
— Tem certeza?
— Sim, só tô cansada — disse ela, tentando parecer convincente.
— Charlotte Elaine, conheço você há tempo suficiente pra saber quando você tá mentindo e, neste momento, tenho certeza de que tá mentindo pra mim. Aconteceu alguma coisa?
Charlie soltou um suspiro longo e frustrado. Ela não gostava de discutir assuntos pessoais por telefone. Porém, sua avó nunca a deixava terminar a ligação sem dizer o que estava incomodando ela.
— Querida, por favor — Amanda insistiu.
— É que — ela hesitou por alguns segundos — Eu beijei um cara.
— Oh, é sério? — disse a avó. Ela parecia interessada — E foi bom?
Charlie sentiu o coração pular no peito. Ela não sabia que palavra escolher para descrever o que havia acontecido naquela sala. Não tinha sido uma simples ficada que poderia acontecer em qualquer canto do paddock ou em qualquer boate de Miami, mas algo diferente. Havia emoção ali. Havia sentimento. E ela não sabia como lidar com isso.
— Foi normal, eu acho.
Amanda riu do outro lado da linha.
— Claramente não foi normal, considerando que você tá agindo de forma estranha.
— Não tô agindo de forma estranha, vó...
— Falando de forma hesitante, com cuidado — continuou a avó — O rapaz tá aí com você agora? Diz pra ele para cuidar bem de você, hein?
— Vó — exclamou Charlie, sentindo suas bochechas esquentarem — Ele não tá aqui comigo, na verdade, nem sei onde ele tá agora...
— Como você não sabe onde ele tá? Você não foi pra uma festa em um fim de semana de trabalho, não é? Você sabe que essas viagens são de trabalho, certo, Charlie?
Ela pressionou a mão no rosto.
— Não, vó, eu não fui numa festa. Ele só foi embora depois da corrida no jatinho dele, nada demais.
– Jatinho? Ele é rico assim?
Charlie suspirou. Não havia como escapar daquilo.
— Vó, eu beijei o Fernando.
— Fernando, qual Fernando?
— Alonso.
— O piloto?
— Sim.
— Espera, o seu piloto?
— Sim.
O silêncio reinou na linha por alguns segundos.
— E como isso aconteceu? — Amanda perguntou.
“Se eu soubesse”, pensou ela, sentando-se na cama.
— Estávamos na sala dele no motorhome, começamos a conversar e aconteceu de forma meio inesperada.
Charlie ouviu a avó rir.
— Bem, ele é bonito, pelo menos?
— Você já viu na televisão.
— Você sabe que esses pilotos parecem todos iguais pra mim, o único que se destaca é o Lewis e por motivos óbvios.
— Ok, vó — Charlie respondeu — Ele é bonito.
— Quão bonito?
— Tipo, um pouco mais alto que eu, tem barba e cabelo escuros — ela descreveu, tentando ignorar o arrepio que percorreu a pele — Os olhos dele são castanhos, com umas manchas verdes perto da pupila. São os olhos mais lindos que eu já vi...
— Entendi — disse Amanda — E ele beija bem?
— Vó! — ela exclamou.
— Eu só quero saber, Charlie! Mas algo me diz que ele beija...
— Por favor, vó...
— Vamos, me fala. Foi bom?
Ela apertou os lábios, apoiando a cabeça na mão livre.
— Sim, vó, ele é bom. Muito bom.
— Nossa, então é uma coisa séria!
— Não é, vó. Foi só uma coisa casual, nada demais...
— Considerando que você tá me ligando tarde assim, não acho que tenha sido tão casual — Amanda respondeu, o sorriso voltando à sua voz. Ela estava definitivamente mais animada com aquilo do que Charlie.
— Mesmo que eu pensasse que não foi casual, ele provavelmente acha que foi, então não adianta ter muita esperança.
— Você tá dizendo isso pra mim ou pra você mesma?
— Eu tô dizendo pra você, vó — ela respondeu, tentando esconder o próprio aborrecimento — Aliás, você não deveria tá dormindo?
— Talvez, mas é muito mais interessante ouvir você contar suas aventuras pelo mundo. A propósito, você vem para casa esta semana? Ron tá sentindo a sua falta.
Charlie sorriu com a menção do gato. Ele sempre ficava com os avós dela quando ela viajava, principalmente nas rodadas duplas e triplas, quando era impossível voltar para a Inglaterra entre as corridas. Felizmente, Ron gostava de Jamie e Amanda o suficiente para se sentir confortável na casa deles.
— Sim, vó. Saio amanhã no meio do dia, mas só chego na terça à tarde, se não tiver atrasos.
— O voo é longo assim?
— Não, não é muito longo, mas vou pegar duas conexões, uma em Montreal e outra em Frankfurt. Depois, uma hora de carro de Birmingham e finalmente vou estar em casa.
— Quer jantar com a gente, já que vai ter que passar aqui pra pegar o Ron?
Charlie sorriu.
— Ah, seria excelente, vó. Sinto falta da sua comida.
— Achei que você gostasse da comida americana — Amanda disse.
— Eu gosto, mas nada se compara a sua — respondeu ela, fazendo a avó rir. Aquele era um dos melhores sons do mundo para Charlie.
— Posso fazer aquele cozido que você gosta, de carne bovina com muita batata.
A lembrança do cheiro da cozinha de Amanda fez Charlie sorrir com ternura.
— Eu adoraria, vó — respondeu ela.
— E, em troca, você pode me contar mais sobre esse Fernando Alonso, o que você acha?
— Você tá me chantageando?
— Só estou tentando me manter informada sobre os seus relacionamentos, minha querida.
Ela riu, sem acreditar naquilo.
— Não é um relacionamento, vó, e nunca vai ser.
Encostada na porta do carro branco, Charlie sentiu uma sensação estranha no peito ao olhar para a ponte sobre o rio Santerno, que estava completamente inundada. Definitivamente não era algo que ela esperava ver tão perto do circuito.
— Acho que não vou conseguir passar, senhorita — disse o taxista, um marroquino que falava um inglês com forte sotaque.
— Não tem como atravessar?
— Não posso arriscar, senhorita, sinto muito.
Ela bufou de frustração. Era a última coisa que ela precisava naquele dia, considerando o quão infernal ele tinha sido até aquele momento. Charlie havia deixado a Inglaterra naquela manhã, após uma batalha com Ron, que se recusou a entrar na caixa de transporte para ser levado para a casa dos avós dela. Depois de chegar no último minuto ao aeroporto, ela teve que esperar quase duas horas até que o avião decolasse com destino a Zurique.
Houve outro longo atraso na conexão entre Zurique e Bolonha, que transformou uma escala de uma hora em uma espera de quase três horas até o embarque no avião. Depois, mais uma hora de espera na pista para o avião obter autorização de decolagem. Parecia que o universo estava pregando uma peça de mau gosto nela.
Já estava anoitecendo quando Charlie chegou a Ímola, depois de passar ainda mais tempo no controle de imigração do aeroporto. “Obrigada, Brexit”, pensou ela, enquanto guardava o passaporte na bolsa e sorria para o agente que finalmente tinha carimbado o documento dela. Porém, em vez da charmosa cidade que havia visitado diversas vezes, ela encontrou lama e destruição, resultado das intensas chuvas que atingiram a região.
— Sinceramente, nem sei se vai ter corrida se continuar chovendo assim — disse o taxista, enquanto seguiam pela rodovia em direção à cidade.
Podia parecer um desejo egoísta no momento, mas a última coisa que Charlie precisava era que a corrida fosse cancelada. Ela tinha passado por tantos problemas para chegar à Ímola que isso parecia uma injustiça. Porém, depois de ver a ponte cheia de água bem ao lado do autódromo, a possibilidade parecia real.
— Senhorita? — perguntou o motorista — Gostaria de ir pra outro lugar?
Charlie suspirou, tentando organizar os pensamentos.
— Me deixa dar uma olhada no meu telefone, só um segundo — disse ela, enquanto se recostava no táxi e vasculhava a bolsa em busca do aparelho. No entanto, Charlie teve outra surpresa desagradável quando percebeu que a bateria estava descarregada.
— Tá tudo bem?
— Tô sem bateria — Charlie disse com um sorriso frustrado no rosto — Tá tudo ótimo.
— Bem, se você quiser, posso te levar no centro da cidade. Eu sei que tem alguns hotéis e albergues lá. Não sei se eles tem vagas, mas alguém vai poder te dar alguma ajuda, tenho certeza — disse o homem, dando um sorriso simpático.
“Não tenho muita escolha”, pensou ela, antes de aceitar a oferta.
Depois de chegar ao centro de Imola, Charlie pagou o homem e agradeceu pela ajuda. Então ela partiu pelas ruas com a mochila nas costas, arrastando a mala atrás de si, tentando identificar nas placas algo que indicasse que ali havia um hotel.
Depois de caminhar quatro quarteirões e não entender nada que eles disseram além de "não há vagas" em dois hotéis que tinha encontrado, Charlie não conseguia tirar da cabeça a ideia de que teria que dormir na rua, uma perspectiva assustadora, considerando o quão nebuloso estava o céu sobre a cidade.
No entanto, o peito de Charlie se encheu de esperança quando ela virou uma esquina.
Estacionado perto da praça da cidade, estava uma SUV cinza que ela reconheceu como uma Aston Martin. “Um DBX 707”, ela pensou, caminhando em direção ao veículo, pensando que talvez nem tudo estivesse perdido, mesmo quando descobriu que o carro estava vazio. Porém, talvez, o dono do carro estivesse por perto.
Soltando a alça da mala, ela deu a volta no carro, avistando uma placa suíça no para-choque dianteiro. “Talvez o dono fale inglês”, pensou ela, sorrindo para si mesma.
— Charlie? — uma voz familiar e com sotaque disse atrás dela. Quando ela se virou, sentiu o sorriso desaparecer e a tensão aumentar nos ombros. Parado perto da traseira do carro, vestindo um moletom verde escuro e segurando uma garrafa de água, estava Fernando Alonso — O que você tá fazendo aqui?
— O que você tá fazendo aqui? — ela perguntou de volta, erguendo uma sobrancelha.
— Eu tenho uma corrida aqui no domingo, não sabia?
— Claro que sei, mas — Charlie hesitou — É terça-feira.
Ele sorriu.
— Vi na internet que poderia ter problemas pra chegar aqui por causa do tempo, então decidi vir mais cedo. E você, o que tá fazendo aqui?
— Venho pros circuitos sempre nas terças-feiras.
— Ah, entendo — disse ele, tomando um gole de água — Você vai ficar por aqui?
— Não, na verdade eu pretendia ficar perto do circuito, mas…
— A ponte tá alagada — disse Fernando — É, eu sei.
— Você ia ficar no La Fondazza? — Charlie perguntou, ao que Fernando assentiu — Você já encontrou outro lugar pra ficar?
— Eu tava conversando com o pessoal do café sobre isso e eles me falaram sobre um lugar que poderia ter um quarto. E você?
— Eu tava procurando um lugar por aqui — ela murmurou, olhando para o céu ao som de um trovão distante. Isso fez algo apertar dentro de seu peito — Já tive em dois albergues perto daqui, mas eles não têm vagas disponíveis. Já não sei onde procurar...
— Bem, se eles têm espaço pra mim, devem ter espaço pra você. Você quer vir comigo?
Ela não conseguiu esconder a surpresa com a oferta dele. Depois de sentir que estava em guerra com ele há anos, Charlie ainda não estava acostumada com ele a tratando com gentileza. Ela temia que esse Fernando novo e gentil desaparecesse a qualquer momento para dar lugar ao Fernando que ela conhecia e odiava.
— Sim, pode ser.
Ela colocou as malas ao lado das dele no porta-malas do carro e se acomodou no banco do passageiro de couro preto e branco. Ao afivelar o cinto de segurança, ela não pôde deixar de notar o painel e o console central do veículo, cujo design era fortemente inspirado nos carros esportivos.
— Você já conhecia o 707? — Fernando perguntou.
— Só por fora, nunca tinha entrado em um — Charlie respondeu, com os olhos grudados no painel — Que motor ele tem?
— É um V8 biturbo de quatro litros, todo montado à mão. Produz 707 cavalos de potência e mais de 90 kgfm de torque. Possui turbinas de rolos e uma calibração diferenciada para aumentar as rotações do turboalimentador.
— Fantástico — ela murmurou enquanto o piloto apertava o botão para ligar o carro. O som baixo do motor fez Charlie olhar para ele, com um largo sorriso no rosto. Ela estava completamente encantada — Vai de zero a 100 em cerca de 3 segundos, não é?
— 3.3 — ele corrigiu, enquanto manobrava o carro para fora da vaga — Como você sabe disso?
— Eu calculei na minha cabeça.
— Tão rápido?
— Você sabe que sou formada em engenharia mecânica e pós-graduada em engenharia automotiva, certo?
— Isso não significa que você seja necessariamente boa em cálculos mentais.
— Mas eu sou. Minha avó era professora de matemática, então cresci aprendendo a amar números.
Fernando sorriu ao virar à esquerda.
— Então, sua avó era professora e seu avô era mecânico?
— Bem, mais ou menos. Meu avô serviu na Força Aérea Real por muito tempo e trabalhou com motores de aviões. Ele sempre foi fascinado por motores e tudo sobre eles. Ele conheceu a minha avó durante uma visita dela com os alunos no museu que tinha junto do hangar.
— E onde os carros entram nessa história? — ele perguntou.
— Ele sempre gostou de carros e corridas. E, considerando que tinha uma mulher e uma filha em casa pra cuidar, assim que ele deixou a Força Aérea, ele começou a trabalhar numa oficina em Birmingham. Ele ainda faz isso hoje, embora hoje em dia o foco esteja em carros mais antigos. Eu ajudo de vez em quando quando visito ele.
— E isso significa que você sabe trabalhar com motores? — Fernando perguntou, parecendo um pouco surpreso.
— Claro que eu sei! — Charlie respondeu, indignada — Se lembra que eu tenho um diploma...
— Charlie, ter um diploma não significa que você saiba montar e desmontar um motor — disse ele, olhando para os dois lados antes de passar por um cruzamento. As calçadas estavam sujas de lama.
— A questão é que eu sei trabalhar com motores. Na verdade, eu sei mexer com toda a unidade de potência. Isso me ajudou muito durante o ensino médio, quando precisei juntar dinheiro pra universidade.
— Você trabalhou numa oficina?
— Não, num circuito de kart.
Fernando olhou para ela, surpreso.
— Você consertava karts?
— Sim, eu consertava. Por que a surpresa?
— Porque eu também consertava karts quando era mais novo — disse ele — Eu precisava de dinheiro pra correr, então cuidava dos karts dos meninos mais novos, já que tinha força para apertar as rodas e ajustar o motor. Foi assim que conheci Alberto.
— Você era mecânico dele?
— Sim — respondeu Fernando, enquanto reduzia a velocidade do carro — Acho que este é o lugar que me falaram no café. Ziò, eles disseram.
Olhando pela janela, Charlie viu que havia uma placa cor de vinho com essa palavra, junto com o contorno de uma lua e três estrelas. Com certeza parecia um hotel.
— É, acho que sim — ela murmurou enquanto Fernando estacionava o carro entre um Twizy e um Volvo.
Eles desceram do carro e Fernando se ofereceu para levar a mala de Charlie. Ela recusou, e eles entraram no saguão e viram um homem sentado no balcão de madeira, aparentemente distraído por algo na tela à sua frente.
— Buonasera — disse Fernando, fazendo o homem erguer os olhos.
— Buonasera, mi chiamo Riccardo, como pode aiutarvi? — ele disse, sorrindo.
— Siamo del team Aston Martin e siamo venuti alla gara, ma la strada per l'hotel che abbiamo prenotato è allagata. Volevo sapere se avevi delle stanze dove stare per la notte — disse o piloto, num italiano praticamente perfeito. Charlie, por um momento, se perguntou como ele sabia italiano tão bem, até que se lembrou dos cinco anos em que ele tinha pilotado para a Ferrari.
A lembrança de vê-lo pela primeira vez, passando por ela com uma tropa de funcionários da Ferrari ao redor dele em Melbourne, fez a pele de Charlie se arrepiar. “Ele deveria usar vermelho mais vezes”, ela pensou, enquanto Fernando discutia algo com o funcionário, a expressão em seu rosto parecendo pouco feliz com o que ouvia.
— Nessun'altra opzione, magari con due letti?
— Purtroppo ci rimane solo questa stanza — Riccardo respondeu.
Fernando suspirou, antes de se virar para ela, parecendo nada satisfeito.
— Eles só têm um quarto disponível, pra duas pessoas.
Charlie franziu os lábios, pensativa. Numa situação ideal, ela nunca consideraria dividir um quarto de hotel com Fernando Alonso. No entanto, aquela estava longe de ser uma situação ideal. Toda a região estava um caos, alguns hotéis não conseguiam receber hóspedes e outros estavam lotados. A maioria das pessoas que deveriam estar na cidade para a corrida ainda nem havia chegado. Um quarto era melhor que nenhum.
— Duas camas? — ela perguntou, de forma quase ingênua.
— Só uma — Fernando respondeu — Olha, por mim não tem problema, você pode ficar com o quarto e eu procuro outro lugar pra dormir esta noite...
— Não — ela disse categoricamente — Você encontrou esse lugar, é justo que você fique aqui.
— Charlie, você vai ficar aqui, eu vou procurar outro lugar. Isso, ou, posso dormir no meu carro, o assento é confortável e…
— Você não vai dormir no carro, Fernando. Você precisa dormir bem pra ter um bom desempenho.
— Então, o que você sugere?
Olhando nos olhos castanhos de Fernando, Charlie hesitou por alguns segundos. Ela sabia que iria se arrepender. “Uma noite não vai fazer mal”, pensou ela.
— Nós podemos dividir.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Dividir?
— Sabe, quando você distribui algo proporcionalmente entre duas pessoas. Imagino que você não esteja muito familiarizado com esse conceito, mas é o que as pessoas normais fazem, principalmente quando tão em situações como essa.
Fernando revirou os olhos.
— Eu sei o que é dividir, só não esperava que você dissesse que queria dividir um quarto comigo. Principalmente depois de — ele hesitou por alguns segundos — Tudo.
— Pra ter uma ideia do esforço que eu tô fazendo.
Ele sorriu.
— Não se preocupa — disse o piloto, antes de olhar de novo para o funcionário do hotel — Prendiamo questa stanza.
Depois de se instalarem no quarto, uma pequena suíte com paredes cor de menta e piso de madeira, os dois foram a um restaurante próximo que Riccardo havia sugerido para jantar. Quando eles voltaram, Charlie tomou banho e vestiu um short e uma camiseta velha para dormir.
— Gaivotas? — ela ouviu Fernando dizer, olhando para sua camiseta com um pequeno sorriso no rosto.
— Sim.
— Por que?
— É o mascote do meu time.
— Time? De futebol?
— Sim. Brighton.
— Sério? Você não é de Northampton?
— Sim, eu sou, mas meu avô é de Brighton, então cresci torcendo pro Brighton. De qualquer forma, estamos tendo um bom ano. Acho que vamos jogar a Liga Europa na próxima temporada. Vai depender do jogo deste domingo.
— Contra quem eles vão jogar?
— Manchester City — disse ela, fazendo-o rir.
— Boa sorte pra eles — disse Fernando, colocando o celular na mesinha de cabeceira — Equipe difícil de enfrentar.
— Eu sei. Já perdemos para eles nesta temporada, mas só precisamos de um empate — Charlie respondeu enquanto se sentava na cama.
— Também precisávamos de um empate — Fernando murmurou — Mas era no estádio deles…
— O jogo é no Amex, não no Etihad — ela disse, enquanto puxava o edredom — Vai dar tudo certo.
— Veremos — Fernando falou — Boa noite, Charlie.
— Boa noite — ela respondeu baixinho. Então, o quarto ficou escuro.
Charlie pensou que, com o cansaço da viagem, seria fácil adormecer. No entanto, ela não levou em consideração o clima do lado de fora. A chuva começou a cair com mais força na cidade na hora em que foram jantar, o que a deixou apreensiva. Fernando até notou o desconforto dela, mas Charlie conseguiu disfarçar a ansiedade com um sorrisinho e um comentário sobre a comida.
Porém, na escuridão e no silêncio do quarto do hotel, com as gotas batendo nos vidros da janela e os trovões que faziam as paredes tremerem, ela sentiu o medo e a ansiedade crescerem. Ela se lembrou daquela fatídica manhã de sexta-feira, anos antes, quando Northampton foi atingida por uma enorme enchente no fim de semana de Páscoa. Ela se lembrava de coisas em flashes — a textura das roupas encharcadas, o frio do vento que fustigava o rosto dela, a avó gritando enquanto as duas viam o avô ser derrubado pela corrente de água e desaparecer sob a superfície lamacenta.
“Isso não pode tá acontecendo de novo”, pensou Charlie, lembrando quando finalmente viu o avô na cama de hospital, coberto com uma manta térmica e com os cabelos ainda molhados. Mesmo que ele estivesse bem, o sorriso dele não conseguiu apagar o terror que ela tinha sentido por quase perder Jamie, o homem que tinha a amado incondicionalmente e a acolheu quando Deborah decidiu que não queria mais ser mãe.
— Charlie? — ela ouviu Fernando perguntar.
Quando tentou abrir os olhos, ela teve a visão ofuscada pela lâmpada acesa. Depois de piscar algumas vezes, Charlie sentiu uma mão quente no ombro dela, o polegar roçando o tecido da camiseta dela. O toque a fez congelar, a mente demorando alguns segundos para se dar conta de que não estava sozinha. “Ele não pode me ver assim, ele não pode me ver assim”, ela repetia para si mesma.
— Você tá bem, Charlie? — Fernando perguntou, a mão puxando-a suavemente, fazendo-a virar para o outro lado, encontrando expressão preocupada dele — Por que você tá chorando?
Ela piscou novamente, sentindo os olhos úmidos. Charlie não percebeu que estava chorando, mas também não conseguiu responder à pergunta dele. Ela começou a chorar com soluços altos e agudos, que a faziam engasgar. Tudo o que ela conseguia sentir era o cheiro pútrido da água da enchente agitando a terra e se misturando com o que quer que estivesse saindo dos bueiros. Ela se sentia como uma garotinha de novo, com medo do frio, da água turva, dos trovões — com medo de perder novamente as pessoas que amava.
De repente, o frio se dissipou. O cheiro da enchente foi substituído por algo fresco e familiar. O som do trovão diminuiu, dando lugar a algo calmo e constante, uma pulsação rítmica.
— Tá tudo bem — Charlie ouviu Fernando sussurrar — Nada vai acontecer com você.
— Mas… A água tá subindo muito rápido. Vai inundar tudo de novo...
— Tá tudo bem, fica calma. Você tá segura. Eu tô com você, nena.
Os dedos dela se fecharam no tecido da camisa dele e Charlie deixou que ela a abraçasse. Com o peso dos braços de Fernando ao redor dela, as lembranças dolorosas da enchente tornaram-se distantes, tanto no espaço quanto no tempo. Foi como se, naquele momento, envolta no calor do corpo e no aroma fresco e persistente da colônia dele, ela estivesse finalmente protegida de tudo aquilo — do frio, da água, da dor do passado. Ela estava protegida do turbilhão que crescia dentro dela.
Ela gradualmente conseguiu se acalmar enquanto Fernando acariciava suavemente as costas dela com a mão. E, com o som calmo da voz dele sussurrando no ouvido dela, Charlie finalmente conseguiu adormecer.
A luz do dia entrava pela fresta da cortina quando ela acordou e esfregou os olhos. Ela tinha dormido terrivelmente mal, graças aos pesadelos horríveis que tinha tido.
Charlie sonhou que estava na ponte inundada perto do circuito com o avô. Jamie estava determinado a resolver a situação, principalmente depois que uma espécie de sirene soou pela cidade. Os apelos para que ele não a deixasse sozinha não foram suficientes para impedi-lo de pular na água lamacenta e desaparecer. Ela até tentou pular atrás dele, mas sentiu um par de braços segurando-a com força, dizendo que ela “não ia a lugar nenhum”.
— Bom dia — ela ouviu alguém dizer.
Quando ela virou a cabeça para cima, Charlie percebeu que ela ainda estava nos braços de Fernando.
— Bom dia — ela respondeu, tentando disfarçar o nervosismo na voz.
— Se sentindo melhor?
— Um pouco, sim.
— Que bom — Fernando disse, passando a mão pela cabeça dela, parecendo arrumar os fios do cabelo dela — Eu tava preocupado com você.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos.
— Por que?
— Porque você teve um ataque de pânico, Charlie, e dos grandes.
Charlie desviou o olhar para o abajur, tentando evitar os olhos dele.
— Desde quando isso acontece? — ele perguntou baixinho, os dedos afastando a franja dos olhos dela — É frequente? Alguém sabe sobre isso? Você já conversou com alguém sobre isso?
Algo naquelas perguntas a deixaram desconfortável. Era como se Charlie tivesse permitido que Fernando visse muito do seu lado vulnerável, algo que ela normalmente não mostrava às outras pessoas no paddock. Ela tinha se esforçado muito para garantir que tudo o que todos vissem fosse a mulher inteligente e decidida, e não a garotinha assustada que ela era.
Mas, no meio do pânico, ela tinha deixado a máscara cair.
Se sentando na cama, Charlie tentou pensar em algo para dizer. Talvez ela mentisse, dissesse que era sonâmbula ou que aquilo era efeito colateral de algum medicamento. Talvez ela dissesse que ele estava completamente louco e que ela tinha dormido profundamente a noite toda. Talvez ela...
— Charlie, você tem medo de chuva?
Ela olhou por cima do ombro para ele.
— Por que a pergunta?
— Porque você disse que tudo ia inundar de novo ontem à noite. Que a água tava subindo muito rápido.
Charlie olhou para os próprios pés e os imaginou submersos na água lamacenta.
— Não tenho medo de chuva. — ela sussurrou — Só não gosto de tempestades. Ou de inundações.
— Por que?
— Porque eu vi o meu avô quase se afogar numa enchente quando eu tinha nove anos — Charlie disse com a voz embargada — Tinha chovido muito na noite anterior. Pra ajudar a evitar um alagamento na rua, ele se juntou com uns vizinhos pra tentar limpar os bueiros. Mas, o nível do rio perto da nossa casa subiu demais e ele perdeu o equilíbrio na corrente forte, caiu na água e foi arrastado por algumas centenas de metros antes de conseguir se segurar num poste.
Ela havia discutido o incidente com Hannah há muito tempo, mas parte dela ainda lutava com situações semelhantes, como no Grande Prêmio da Bélgica em 2021. Charlie nunca soube como agradecer a Daniel Ricciardo por emprestar seus fones de ouvido e distraí-la com histórias bobas enquanto a chuva caía sobre o circuito durante as horas de bandeira vermelha.
— O que — ele murmurou.
— Eles encontraram meu avô segurando num poste de luz e levaram ele pro pronto-socorro. Ele tava bem, no final, só com hipotermia e uns cortes que precisaram de pontos. Ele teve muita sorte, segundo os médicos. Mas ver ele sendo levado embora foi o suficiente pra me fazer odiar tempestades — completou ela.
— Foi por isso que você me pediu pra não sair esta manhã?
Charlie se virou para encará-lo, confusa.
— Eu não pedi...
— Você pediu. Eu ia sair pra correr agora de manhã e você me pediu pra ficar, e disse que era perigoso. Então eu fiquei.
— Por que?
— Porque você precisava de mim.
— Eu — Charlie começou a dizer, mas se deteve. Ela odiava admitir aquilo, mas ela tinha precisado dele. Fernando tinha sido o porto seguro dela na noite anterior, sem sequer questioná-la ou provocá-la sobre aquilo. Soltando um suspiro, ela passou a mão pelo cabelo - Eu agradeço a sua ajuda, realmente agradeço. Mas você não precisava desistir dos seus planos por minha causa.
Fernando se sentou na cama e colocou a mão no ombro de Charlie.
— Não desisti de nenhum plano. Tá tudo bem.
— Imagino que você tenha coisas melhores pra fazer do que ficar aqui comigo.
— Não me importo de ficar aqui com você. Na verdade, fico feliz que você se sente confortável comigo — Fernando disse, fazendo-a virar o rosto para ele. Charlie sentia o coração disparado dentro do peito, os olhos subitamente atraídos para a boca dele. Talvez ela devesse beijá-lo.
“Não, Charlotte”, ela se repreendeu.
— Acho que vou escovar os dentes e me vestir — Charlie finalmente conseguiu dizer.
— Claro — respondeu Fernando — Então vamos tomar café da manhã?
— Pode ser — ela falou, dando um sorrisinho.
Os dois desceram e tomaram café da manhã praticamente em silêncio, algo que Charlie apreciou, principalmente com a confusão que os próprios pensamentos estavam provocando na cabeça dela. Porém, no final da refeição, o dono do hotel se aproximou da mesa deles, claramente encantado por ter um piloto de Fórmula 1 lá.
— Vorrei ricevere te e la tua ragazza in modo più adeguato, ma purtroppo la situazione non è delle migliori. Mi scuso per questo — disse o homem, sorrindo. Olhando para Fernando, ela teve a impressão de que ele estava corando.
— Nessun problema, la camera è ottima, così come tutto il servizio.
Assim que voltaram para o quarto, Charlie começou a revisar os dados da sessão de simulador feita por Stoffel na semana anterior, enquanto Fernando estudava uma corrida antiga. Em seguida, ele perguntou a Charlie se ela se importaria se ele fizesse uma videochamada rápida com Alberto. Ela não pôde deixar de observá-lo tagarelando em espanhol com o amigo, os olhos brilhando enquanto Alberto lhe mostrava algo.
— Déjame mostrarle esto a ella, un segundo — Fernando disse, enquanto se levantava da cama. Virando a tela do iPad, ela percebeu que havia alguns desenhos de bonés — Charlie, olha isso e me diz o que você acha.
Ela sorriu, olhando para ele.
— Legais.
— Qual você gosta mais?
Charlie olhou para o iPad novamente. Ambos os designs eram bonitos, mas havia algo no padrão camuflado que lembrava das fotos na casa dos avós, da época de Jamie na Força Aérea Real
— Este — ela fise, apontando para o modelo camuflado laranja.
— Ótimo, muito obrigado — respondeu Fernando, sentando-se novamente na cama — A ella le gusta el camuflaje, sigamos con ese, ¿de acuerdo?
Eles estavam voltando para o hotel depois do almoço quando Fernando recebeu uma ligação de Mike confirmando que a corrida havia sido cancelada. Não era uma surpresa, especialmente depois de Nyck De Vries ter enviado uma mensagem ao grupo de Whatsapp dos pilotos afirmando que estava preso num vilarejo perto de Faenza, incapaz de chegar a Imola.
No entanto, se chegar lá era um problema, sair também seria, e Charlie descobriu isso da maneira mais difícil à tarde. Ela enviou uma mensagem para Sophie, especialista em viagens da equipe, perguntando sobre seu retorno ao Reino Unido. Ela recebeu uma resposta somente horas depois, enquanto assistia ao primeiro episódio de LOST com Fernando — ele tinha insistido, dizendo que aquela era “a melhor série do mundo”.
— Ótimo, exatamente o que eu precisava — ela murmurou, colocando o celular no colo.
— Qual é o problema? — Fernando perguntou.
— Sophie disse que os voos que saem de Bolonha tão todos lotados e que a melhor opção no momento é ir pra Milão e pegar uma conexão em Frankfurt.
— Parece razoável — disse o piloto. Charlie olhou para ele, que estava recostado na cabeceira da cama.
— Claro que parece razoável pra você, você tem um carro. Eu não.
— Eu posso te levar — ele respondeu calmamente.
— O voo só é amanhã.
— E?
— Você vai embora hoje mais tarde, não é?
— Posso ficar mais uma noite, sem problema.
Charlie olhou para ele.
— Você pode?
— Claro.
— Mas, por que?
— Porque eu quero, Charlie — ele respondeu, colocando um braço atrás da cabeça enquanto dava um de seus sorrisos provocantes.
– Isso não é resposta.
Fernando ficou olhando para ela, parecendo pensativo, até soltar um suspiro.
— Olha, não vou deixar você sozinha aqui. E se você tiver algum tipo de problema e não souber uma palavra de italiano...
— Eu sei um pouco de italiano, Fernando.
— Saber pedir um spaghetti ala carbonara com água não é saber falar italiano.
— Mas é alguma coisa.
Ele bufou, se inclinando pra frente na cama.
— Não é suficiente, e esse não é o ponto.
— E qual é o ponto, exatamente?
— O ponto é, você esqueceu o que aconteceu da última vez?
Ela piscou.
— Você quer dizer… Em Jerez?
— Sim. O pior quase aconteceu lá — Fernando parou por alguns segundos — E eu jamais conseguiria me perdoar se algo ruim acontecesse com você.
Eles permaneceram em silêncio por alguns segundos, os olhos fixos um no outro, como se ambos procurassem as palavras certas. Charlie tentou encontrar coragem dentro de si para finalmente fazer a pergunta que a atormentava há meses.
— Por que você se importa tanto comigo?
Passando a mão pelos cabelos, Fernando suspirou.
— Porque eu gosto de você, Charlie — disse ele.
— Gosta? Mas, tipo, você gosta de mim como colega de trabalho? Como amiga? Você sabe que estamos longe de...
— Gosto de você como a mulher linda que você é — disse ele, fazendo o coração dela bater mais forte — Gosto de você como a mulher inteligente e extraordinária que você é. Eu simplesmente gosto de você.
— Mas eu achei…
— Achei que tinha deixado claro o que penso de você em Miami.
— Quando você disse que eu era uma pedra no seu sapato?
— Quando eu coloquei as mãos por baixo da sua saia e apertei sua bunda enquanto você me beijava — ele sorriu — Aliás, você deveria usar aquela saia mais vezes, suas pernas são lindas.
Charlie não conseguia acreditar no que estava ouvindo.
— Você tá flertando comigo? — ela perguntou, quase ingenuamente.
— Bem, você poderia dizer isso. Embora eu preferisse fazer outras coisas com você — ele falou, se aproximando dela — Coisas muito mais interessantes.
— E por que você não tá?
— Porque você não me pediu.
Um arrepio percorreu a pele.
— E o que tenho que dizer?
Fernando sorriu enquanto segurava uma das mãos de Charlie, examinando a pele cuidadosamente antes de olhar nos olhos dela.
— É só dizer ‘por favor, Fer’ — ele disse, dando um beijo gentil nos dedos dela — E eu vou fazer o que você quiser.
A mente de Charlie estava em curto-circuito. O coração dela batia forte.
Antes que ela percebesse o que estava dizendo, as palavras já haviam saído de sua boca.
— Se for pra me beijar, faz isso direito.
— E quais são as palavras mágicas?
Charlie sorriu.
— Por favor, Fer.
— Muito melhor, nena — Fernando murmurou, se inclinando na direção de Charlie e levando os lábios macios e quentes contra os dela.
Em Miami, o beijo deles tinha sido febril e desesperado, mas aquele era exatamente o oposto. Não havia pressa, não havia raiva, não havia desejo de provar que o outro estava errado, mas não faltava paixão. Charlie sentiu os dedos de Fernando deslizarem pelos cabelos dela enquanto guiava os movimentos da cabeça dela, a língua saboreando-a cuidadosamente, como se quisesse gravar na memória o sabor dela. No entanto, ela não precisava. Ela se lembrava exatamente do gosto dele.
"Doce, salgado, azedo", Charlie pensou, enquanto as mãos deslizavam pelo peito dele até a bainha da camiseta dele. A dica nada sutil fez Fernando recuar um pouco, jogando a peça em algum canto do quarto. Depois foi a vez dele fazer o mesmo com ela, deixando-a apenas com o sutiã confortável de algodão que ela estava vestindo.
— Hermosa — ele sussurrou sem fôlego, as mãos em concha no rosto dela enquanto roçava os lábios nos dela — Tan hermosa, nena. La más hermosa.
Charlie não tinha ideia do que Fernando estava dizendo, mas isso a excitou. Ela não sabia o que havia na voz dele que fazia com que tudo soasse delicioso, sublime. Então, ela puxou o corpo dele contra o dela e o beijou com força, pois tinha certeza de que não havia resposta melhor do que essa, pois era impossível colocar em palavras tudo o que ela estava sentindo.
Desejo, felicidade, alívio, excitação, tudo se misturando maravilhosamente logo abaixo do umbigo dela.
Fernando se inclinou sobre ela, fazendo Charlie se deitar no colchão. Ela fechou os olhos e os lábios dele começaram a descer pela pele dela, beijando e mordiscando, enquanto as mãos trabalhavam para se livrar da calça e da calcinha dela. A sensação do ar ameno do quarto contra a boceta dela, que já estava molhada, a fez ofegar.
— Você tá bem? — Fernando sussurrou, fazendo-a abrir os olhos. Ele estava logo abaixo do esterno dela, a barba por fazer em seu queixo roçando suavemente na pele dela. Ela sentiu a pele formigar de excitação.
— Sim, só… Tá frio.
Ele abriu um sorriso, os olhos escurecendo de desejo.
— Tudo bem, eu vou te esquentar — Fernando respondeu, dando um sorriso travesso antes de beijar o ponto logo acima do umbigo antes de continuar sua jornada pelo corpo dela.
Charlie sentiu um frio na barriga ao sentir as palmas das mãos de Fernando nas coxas dela, abrindo ainda mais as pernas para que ele pudesse ter acesso à boceta dela. Então, ela se apoiou nos cotovelos e o viu analisando o ponto entre as pernas dela antes de levantar os olhos para ela.
— Você tá completamente molhada, nena — ele disse, baixinho — Tudo isso pra mim?
— Sim — Charlie murmurou, ao sentir os dedos dele tocando-a, como se quisesse se familiarizar com cada ponto e cada dobra dela. Ela mordeu o lábio inferior e sentiu as pernas ficarem tensas.
— Mas eu nem comecei — Fernando sussurrou com um sorriso.
Ela respirou fundo, o coração batendo forte no peito. Se ele nem tinha começado e Charlie já estava daquele jeito, ela não conseguia imaginar o que seria dela quando Fernando realmente começasse a tocá-la.
— E o que você tá esperando? — ela perguntou, ao sentir o polegar dele deslizar facilmente pelos pequenos lábios dela.
— Calma — Fernando disse — Que coisinha impaciente que você é. Eu vou te dar o que você quer, não se preocupa. Mas, primeiro, eu quero brincar um pouco. Posso?
— Claro…
— Então… Vamos brincar, nena — ele murmurou, antes de mergulhar entre as pernas dela, atacando o clitóris dela com a língua.
A cabeça de Charlie caiu para trás, os cotovelos cedendo com a onda quente que percorreu o corpo dela. Os olhos se fecharam e o corpo ficou tenso, o ar preso nos pulmões dela. Então, a língua de Fernando encontrou um ponto mais sensível e ela gemeu, alto o suficiente para ele rir. A vibração fez os dedos de Charlie agarrarem o edredom embaixo dela na tentativa de ficar parada.
Não demorou muito para ela sentir que já estava chegando no limite, os olhos fechados com força enquanto ele lambia e provocava cada centímetro da vulva dela. Apesar de não se lembrar de ter estado tão sensível antes, havia algo na maneira como Fernando a estimulava que tornava as sensações mais potentes, uma certeza crescendo dentro dela: ele definitivamente sabia usar a língua, exatamente como ela tinha imaginado quando a percebia no canto da boca dele enquanto estava concentrado em alguma atividade.
— Que garota bem comportada que você é — Fernando disse baixinho, enquanto usava o polegar para desenhar círculos sobre o clitóris dela. Fazendo um esforço gigante, ela conseguiu abrir os olhos, encontrando-o com a boca brilhando com a lubrificação dela, os olhos escuros de desejo — Eu esperava que você fosse mais difícil. Mas parece que cão que ladra não morde...
— Fernando — Charlie sussurrou, enquanto ele dava beijos na parte interna da coxa dela, a barba roçando a pele sensível.
— Vamos, nena, me fala o que você quer — disse ele, as palavras se arrastando naquele sotaque delicioso — Me fala e eu vou te dar.
— Eu quero você.
— Mas eu tô aqui — Fernando respondeu, se abaixando um pouco e dando uma lambida caprichosa na boceta dela. O estímulo repentino a fez soltar um gemido, cravando as unhas nas palmas das mãos — Eu tô aqui pra fazer o que você quiser. É só me pedir.
A mente de Charlie levou alguns segundos para formar uma frase coerente. Ela realmente não sabia o que queria. Ela queria tudo e nada ao mesmo tempo. Ela queria que Fernando a fizesse gritar, mas também que ficasse ali, entre as pernas dela, a encarando com aqueles olhos lindos.
— Me faz gozar — ela conseguiu falar — Por favor, Fer.
Ele sorriu.
— Boa menina — Fernando disse. Depois de se reposicionar na cama com as mãos apoiadas nos quadris dela, como forma de mantê-la parada, ele começou a mover a língua contra o clitóris dela de forma implacável.
Charlie tinha certeza de que iria derreter ali mesmo. Ela segurava os pulsos dele com força, arqueando a coluna a cada lambida, sentindo como se fosse um rojão de Ano Novo, subindo cada vez mais alto no céu rumo à explosão iminente. Era delicioso e enlouquecedor, tudo ao mesmo tempo. Mas, se era para enlouquecer, que o motivo fosse aquele homem cuja cabeça estava entre as pernas dela.
Charlie abriu ligeiramente os olhos, encontrando Fernando olhando para ela, quase como se estivesse intoxicado ao vê-la ali, se contorcendo de prazer que ele estava dando a ela e que só ele poderia dar a ela. E foi naquela fração de segundo que o céu dentro dela se iluminou, a explosão de prazer fazendo Charlie gemer alto, para o deleite de Fernando.
— Isso mesmo — ele murmurou, enquanto movia um dos dedos sobre o clitóris dela, tentando prolongar a sensação pelo máximo de tempo possível, enquanto os músculos dela tremiam incontrolavelmente — Essa é a minha garota...
Se ele disse alguma coisa depois daquilo, Charlie não ouviu. A mente dela tinha sido completamente dominada pelo prazer, que fez com que os dedos dos pés dela se curvarem e a coluna dela arqueasse. Era delicioso, sublime, diferente de tudo que ela já havia experimentado. E ela só conseguia gemer, alto o suficiente para que todos em Imola ouvissem.
Então, a sensação começou a se dissipar lentamente. Ela estava tentando recuperar o fôlego quando sentiu algo quente perto do umbigo. Depois entre os seios e depois no pescoço. Charlie só descobriu o que era quando finalmente sentiu o calor nos lábios.
Fernando.
Ele a beijava suavemente, o gosto do prazer dela na língua dela, tornando tudo aquilo muito mais erótico. “Como eu consegui resistir a você?”, Charlie se perguntou, enquanto passava os dedos pelos cabelos de Fernando, puxando-o para ela.
— Você tá bem? — Fernando perguntou baixinho, roçando o nariz no dela.
— Sim — disse ela, num fio de voz. Ele sorriu para ela.
— Você é linda, sabia disso? — Fernando disse, levando uma das mãos ao rosto dela, afastando alguns fios de cabelo. Ela riu e puxou-o para mais perto para um novo beijo, desta vez com um pouco mais de intensidade, as unhas arranhando a nuca dele. Sentindo ela mover os quadris sob o corpo dele, Fernando sorriu contra a boca de Charlie.
— Você quer mais?
— Sim, Fer — ela respondeu, mordiscando o lábio inferior dele.
— O que você quer?
Era uma pergunta boba, especialmente quando Charlie estava se remexendo embaixo dele, obviamente excitada. Deslizando as mãos até o rosto de Fernando, ela passou a língua pelos lábios, o polegar tocando levemente a cicatriz no canto da boca dele.
— Eu quero que você me foda.
Ele sorriu, uma mão apoiada na cintura dela.
— Eu também, Charlie. É o que mais quero agora — respondeu Fernando, dando uma pausa desagradável em sua frase.
— Mas?
— Preciso ver se tenho uma camisinha.
Charlie piscou. Ela estava um pouco surpresa com a preocupação dele, mas de certa forma, fazia sentido. A última coisa que Fernando provavelmente queria na vida eram filhos, principalmente com uma carreira tão perigosa como a dele, e ele precisava tomar precauções.
— Não tem problema — ela respondeu — Eu tenho.
— Você tem? — ele perguntou, erguendo uma sobrancelha.
— Sim, na minha bolsa.
— Por que?
— Para usar, ué — Charlie disse — Gosto de estar preparada.
— Você tá sempre preparada pra transar?
— Talvez, mas não adianta de nada quando o cara que tá em cima de mim prefere fazer perguntas idiotas do que me foder — disse ela, com alguma irritação na voz. Fernando sorriu maliciosamente.
— Você é realmente uma coisinha impaciente — ele murmurou, dando-lhe um beijo delicado nos lábios — Espera aqui.
Ele se levantou e foi até a bolsa de Charlie, encontrando rapidamente os dois pacotinhos metálicos vermelhos. Enquanto isso, ela se sentou e tirou o sutiã que ainda estava, passando a mão pelas marcas que a peça havia deixado em sua pele. Um movimento no colchão fez Charlie olhar para o lado, encontrando Fernando nu e vestindo a proteção no próprio membro. No entanto, em vez de se concentrar no que ele estava fazendo, os olhos dela foram atraídos para a tatuagem entre as omoplatas dele. Era a primeira vez que ela a via de perto e ela não resistiu à vontade de se inclinar para ver melhor.
— Um samurai? — Charlie murmurou, o dedo traçando uma das linhas escuras que formavam a espada. Ver a pele dele explodir em arrepios ao toque dela a fez sorrir.
— Sim — respondeu Fernando, enquanto a unha dela seguia lentamente a linha da faixa que subia pelo pescoço dele, os ideogramas em vermelho destacados contra a tinta escura — É um símbolo do Bushido, uma filosofia que estudo, que tem como base os samurais japoneses e o código de conduta dele. Pra muitas pessoas, é muito semelhante ao cavalheirismo ocidental, mas eu acredito que esteja mais próximo do conceito de honra.
— É muito bonito — ela disse, colocando as mãos no ombro dele e aproximando o rosto do dele — Mesmo que você pareça um nerd falando disso.
Fernando virou a cabeça na direção de Charlie, dando um sorrisinho.
— Um nerd, é?
— Sim, um nerd. O maior nerd do mundo.
Fernando colocou a mão no rosto dela, com ternura.
— Vamos ver, nena — disse ele, antes de se reposicionar na cama, as costas apoiadas na cabeceira de madeira e uma das mãos segurando o próprio pênis, bombeando-o até ficar totalmente ereto mais uma vez. A visão fez uma onda quente percorrer a pele dela — Vem aqui.
Charlie sorriu e rastejou na direção dele. Ela jogou uma perna sobre o corpo de Fernando, apoiando-se em seus ombros e posicionando-se acima do membro dele. Um arrepio percorreu o corpo dela quando ela o sentiu roçar levemente a cabeça de seu pênis contra seu clitóris, provocando-a. Encontrando os olhos dele, a antecipação percorria seu corpo como choques elétricos.
— Posso? — ela perguntou baixinho.
— Sim, nena.
Ela baixou os quadris, sentindo o membro dele entrar lentamente. A sensação fez com que um longo suspiro escapasse dos lábios dela, enquanto Fernando soltava um grunhido baixo, jogando a cabeça contra a cabeceira da cama. Uma vez que ela estava completamente acomodada, Charlie levou um segundo para respirar e processar as sensações que percorriam o corpo enquanto ela o acomodava dentro de si. A pressão e o calor que a enchiam pareciam demais e, ao mesmo tempo, não eram suficientes.
Era elétrico. Doce. Enlouquecedor.
— Tudo certo? — ele perguntou, a voz tensa.
Charlie assentiu quando as mãos de Fernando pousaram nos quadris dela, o pomo de adão balançando enquanto ele engolia em seco, os olhos presos nos dela numa tentativa de se concentrar em não se perder na sensação. Vê-lo assim, extasiado pelo corpo dela, pelo toque dela, pelo calor dela, era delicioso, e ela queria mais.
Levantando ligeiramente os quadris, ela sentiu os polegares do piloto pressionarem a pele dela, um sibilo escapando de seus lábios. Charlie sorriu, aproximando o rosto do dele.
— Tudo isso pra mim? — ela perguntou, num tom provocante.
— Sempre pra você, nena — Fernando respondeu, antes de beijá-la lentamente enquanto a puxava para baixo novamente.
Não demorou muito para que ela acelerasse o ritmo, subindo e descendo no comprimento dele, enquanto os gemidos enchiam o quarto. Com o rosto próximo ao dele, ela podia ver na expressão dele que Fernando estava gostando, com os lábios entreabertos enquanto Charlie quicava em cima dele. E aquela sensação de ser a pessoa que estava dando prazer para ele era algo incrível, poderoso.
— Você é tão boa pra mim, tão boa — Fernando murmurou, as mãos na bunda dela numa tentativa de controlar o ritmo de Charlie. Com as mãos nos cabelos dele, ela se deixou guiar por ele, sentindo a bolha de prazer crescer abaixo do umbigo. O movimento era preciso, fazendo o clitóris dela esfregar contra o osso púbico dele.
— Meu Deus — ela gemeu, enquanto o calor se espalhava pelo corpo — Porra, sim, sim, assim...
— Então você gosta disso? — ele perguntou em tom baixo, os lábios roçando os dela — Você gosta de ter meu pau dentro de você enquanto eu brinco com seu clitóris?
— Mhm — Charlie assentiu, enquanto as unhas raspavam o couro cabeludo dele, como se ela conseguisse fazer com que ele se aproximasse ainda mais dela. Como se pudesse fazer com que se tornassem um só naquela cama, naquele quarto, naquela cidade. E não havia nada que ela quisesse mais do que isso.
E então, Fernando parou.
Um protesto escapou dos lábios de Charlie, os quadris tentando se mover sob as mãos dele, sem sucesso.
— Fer — ela choramingou, com o rosto próximo ao dele.
— Deita na cama, nena — o piloto praticamente ordenou, fazendo com que um arrepio de excitação percorresse a pele dela. Saindo de cima dele, Charlie não teve tempo de se sentir desconfortável com o vazio dentro dela antes de sentir ele puxando-a contra o próprio corpo, as costas dela contra o peito dele. Com um dos braços envolvendo o torso dela, um suspiro de prazer escapou dos lábios dela quando Fernando a penetrou novamente.
O ritmo era lento e provocante, as estocadas eram longas e acompanhadas de beijos e mordidas no pescoço. Levando as mãos ao braço que envolvia a cintura, Charlie se sentia como massinha de modelar nas mãos de Fernando, completamente à mercê do desejo dele.
— Era isso que você queria? — ele sussurrou contra a pele dela — Era isso que você tava imaginando quando me viu na varanda naquele dia?
Um suspiro baixo escapou da garganta dela quando sentiu os dedos dele beliscarem o mamilo de leve, o corpo ficando ainda mais tenso. Ele iria enlouquecê-la, ela tinha certeza absoluta disso.
— Você não imagina o quanto gostei de ver você ali, me observando, me devorando com esses seus olhos lindos — Fernando continuou, cada estocada arrancando um gemido alto da garganta de Charlie — Bem, não apenas seus olhos. Sempre achei você linda, Charlotte. Tão linda…
— Fer — ela gemeu, jogando a cabeça contra o ombro dele, o corpo inteiro implorando por mais dele.
— Sua boceta é tão macia, tão quente, tão molhada, perfeita pro meu pau — Fernando continuou, enquanto sua mão apertava seu seio esquerdo — Queria que você pudesse ver o quão bem você fica assim. Da próxima vez, vou te foder na frente dum espelho, pra você entender o que quero dizer.
Charlie gemeu. Ela havia esquecido completamente todas as palavras que sabia, exceto “Fer”, porque era a única coisa que ela queria naquele momento, naquela cama. Ele, só ele, estocando com força contra a boceta dela enquanto a mão massageava os seios dela, beliscando os mamilos até que ficassem rígidos.
E, quando ela pensou que aquele momento não poderia ficar melhor, Charlie sentiu os dedos dele alcançarem seu clitóris. Um gemido escapou de seus lábios, os músculos de suas pernas ficando cada vez mais tensos.
— Você vai gozar, nena? — ele perguntou, sem esperar uma resposta para mover os dedos ainda mais rápido — Goza pra mim então, me mostra como você gosta do meu pau em você.
Descansando as mãos no braço dele, Charlie continuou a mover os quadris contra os dedos dele, numa busca desesperada pelo ápice. E então, sem aviso, ele chegou.
— Porra!
O orgasmo a atingiu como uma onda repentina. Enquanto ela gemia, o corpo se arqueava para frente involuntariamente. A pulsação dela rugia nos ouvidos e a visão dela ficou completamente preta quando fechou os olhos com força. Só havia prazer, puro e cru, capaz de lançar uma pessoa para fora do espaço-tempo, para um estado de êxtase completo.
— ¡Coño, Charlotte! — Fernando grunhiu atrás dela. O fato de ela ter atingido o orgasmo devia ter colaborado para o dele. Ela queria abrir os olhos e virar para trás, de forma a vê-lo atingir o próprio clímax e apreciando a expressão de prazer no rosto dele, mas Charlie estava exausta demais.
Ela permitiu que o corpo relaxasse contra o dele, aninhando a cabeça na curva do pescoço de Fernando, tentando se concentrar na própria respiração. Ela era a única coisa que ela ouvia até Fernando começar a murmurar coisas que ela não entendia contra seu pescoço. Por mais que estivesse curiosa, ela não tinha energia para perguntar o que ele queria dizer.
— Eres la mujer que me volverá loco, nena — ele disse baixinho, enquanto acariciava o torso dela — Y te dejaré hacer eso. Vuélveme loco, por favor. No te arrepentirás de esto, te lo prometo.
Eles passaram cerca de dez minutos, pelo que Charlie viu no relógio na mesa de cabeceira, na mesma posição, sendo que nenhum dos dois queria se mover. Charlie pensou que havia algo profundamente íntimo em senti-lo relaxar dentro dela. Ela nunca tinha feito isso com nenhum outro homem com quem tivesse transado. Mas, para a surpresa dela, aquilo a fez se sentir confortável. Segura, até. Era um mistério para ela a razão de ter resistido por tanto tempo.
Fernando deu um beijo suave na têmpora dela antes de fazer um movimento para se levantar.
— Fica aqui — ele disse, se levantando. Ela apertou as coxas para tentar se livrar do estranho vazio que sentia sem o membro de Fernando dentro dela. “Isso é horrível”, concluiu ela, olhando para o teto do quarto.
O som de água corrente e passos a fizeram olhar para a porta do banheiro, onde Fernando voltava para a cama. Ele tinha recolocado a cueca e tinha uma toalha pequena na mão. Se sentando na beira da cama, ele colocou a mão no joelho dela.
— Posso te limpar?
Charlie piscou, sem perceber o que estava perguntando por um momento. Então, ela sorriu.
— Ah, sim, pode — disse ela, abrindo um pouco as pernas.
Fernando passou a parte úmida do tecido na parte interna das coxas dela, limpando cuidadosamente os restos de sexo da pele. Quando ele roçou a toalha contra a boceta dela, Charlie sibilou.
— Sensível? — ele perguntou, afastando a mão.
— Sim, um pouco.
— Tudo bem, vou tomar cuidado — Fernando disse, voltando a limpá-la, o toque gentil contrastando fortemente com a maneira como ele tinha feito Charlie gozar antes.
Ele se levantou novamente, deixando Charlie sozinha novamente, mas voltou segurando a calcinha descartada dela, bem como uma camiseta limpa.
— Achei que você ia querer colocar alguma coisa... Pra usar na cama, você sabe.
Charlie olhou para as roupas na mão dele.
— Sim, obrigada.
Ela pegou as peças e vestiu, parando quando percebeu que a camiseta que Fernando tinha dado para ela era grande demais. Ao olhar para baixo, Charlie viu um logotipo colorido da Kimoa, a empresa de roupas que ele havia fundado.
Fernando sorriu para ela, claramente satisfeito com aquela visão.
— Você me deu uma camiseta sua?
— Sim. Algum problema? — ele perguntou, enquanto pegava uma garrafa de água.
— Não, mas tenho umas camisetas na minha mala…
— Mas você fica mais bonita usando a minha — Fernando respondeu, se aproximando da cama — Água?
Ela aceitou a garrafa e abriu-a, tomando um gole enquanto ele se sentava na cama.
— Obrigada — Charlie disse, devolvendo a garrafa. Ele a colocou na mesa de cabeceira e finalmente se acomodou no travesseiro ao lado dela, apoiando a mão nas costas dela.
— Deita aqui — ele sussurrou.
— Por que?
— Porque eu quero te abraçar.
Charlie não conseguia acreditar no que estava ouvindo.
— Desde quando você é romântico assim?
— Desde sempre.
— Você nunca me pareceu do tipo romântico.
— Mas eu sou. E eu quero te mostrar.
Ela sentiu o coração batendo forte dentro do peito.
— Fernando…
— Vem aqui, nena. Por favor.
Deslizando para baixo do edredom, Charlie se deitou ao lado dele, permitindo que ele envolvesse o corpo dela em um abraço firme e pousasse um beijo suave na testa dela. Cercada pelo calor que emanava do corpo de Fernando e sentindo os dedos dele acariciando levemente a pele, ela caiu em um sono profundo e tranquilo.
Ela acordou com algo quente tocando o rosto dela de forma delicada. Quando ela abriu os olhos, Charlie encontrou os olhos dele, o marrom suave misturado com o verde, como se fossem a própria imagem da primavera, cheios de vida e esperança. “Talvez seja por isso que ele fica tão bonito naquele macacão”, ela pensou.
— Bom dia, Charlie — Fernando disse baixinho.
— Bom dia, Fer.
— Dormiu bem?
— Sim, como uma pedra — ela respondeu, sorrindo — E você?
— Sim, por um tempo. Mas acabei acordando de madrugada com chuva e não consegui mais dormir.
— Por que?
— Tava com medo que a tempestade te acordasse e te deixasse assustada.
Charlie não conseguiu esconder sua surpresa.
— Achei que você não se importava tanto comigo.
Fernando colocou a mão em sua bochecha.
— Mas eu me importo. Mais do que você pode imaginar.
Colocando a mão sobre a dele, Charlie não pôde deixar de sentir um frio na barriga. A paz que ele a fazia sentir era estranha, mas boa. Ela se aproximou dele e deixou Fernando abraçá-la. Eles se aconchegaram por mais um tempo, a serenidade do momento sendo interrompida apenas quando o telefone de Charlie tocou, o nome de Sophie piscando na tela. A mulher deu detalhes rápidos sobre o voo dela em Milão, fazendo com que ela desligasse com um suspiro.
— Alguma coisa errada?
— Sophie disse que tenho que tá em Milão duas horas antes do voo, mas que posso encontrar problemas na estrada e devo sair mais cedo.
— Você quer sair logo? Podemos arrumar as malas, comer alguma coisa e ir.
— É isso que você quer fazer?
Fernando riu.
— Você é quem tem um vôo para pegar, não eu.
Charlie balançou a cabeça.
— Ok, podemos fazer isso.
Os dois se levantaram, tomaram banho — juntos, por insistência dele — e se vestiram. Depois de fazerem as malas, eles tomaram café da manhã juntos e fizeram o check-out. Charlie até tentou agradecer à equipe em italiano, mas Fernando considerou a tentativa dela como “terrível”. Depois de colocarem as malas no carro, os dois saíram de Imola pela E45 em direção ao norte da Itália.
A viagem de quase cinco horas foi tranquila e agradável. Charlie e Fernando conversaram sobre diversas coisas, inclusive como ele começou a correr aos três anos, depois que o pai dele adaptou um kart para a irmã dele, Lorena, que tinha oito anos e decidiu que não queria usá-lo.
— Tenho o kart até hoje — disse ele — Tá em Oviedo, no meu museu.
— Você tem um museu?
— É, resolvi abrir um depois que o Flávio me deu o carro de 2005 de presente pela conquista do campeonato. Tentei deixar ele na minha garagem, mas como todo mundo queria ver, achei melhor criar um lugar para expor tudo relacionado à minha carreira. Tem até uma pista de kart lá.
— Deixa eu adivinhar, você desenhou o layout da pista.
— Sim — Fernando sorriu, olhando para Charlie — Coloquei todas as minhas curvas favoritas nela. Aliás, acho que você gostaria de pilotar lá, já que você gosta tanto de kart.
— Gosto de kart, mas não sou uma boa piloto. Não sou muito rápida.
— Posso te dar aulas se quiser. Gosto de pensar que sei uma ou duas coisas sobre correr.
Charlie revirou os olhos, rindo.
— Seria uma honra — disse ela, sarcasticamente.
Ele chegaram ao aeroporto pouco menos de duas horas antes do voo, o que foi impressionante considerando o trânsito na rodovia, os desvios causados pela chuva e a longa parada em Verona para o almoço. Enquanto Charlie descia e pegava as malas, Fernando passou a mão nervosamente pelo cabelo.
— Acho que esta é a minha parada — Charlie disse, fazendo um grande esforço para tentar parecer calma.
— É, eu acho que sim.
— Sim…
— Você precisa de ajuda com as suas coisas?
— Não, eu consigo levar — ela respondeu, dando um sorrisinho.
— Ah, então tá bem.
O silêncio pairou sobre eles. Charlie não sabia o que dizer. Ela se despedia e ia embora sem dizer mais nada? Ela dava um abraço e desejava uma boa viagem para casa?
“Pelo amor de Deus, Charlotte, ele fez você gozar duas vezes ontem à noite. Fala alguma coisa!”, ela pensou.
— Bem, acho que nos vemos em breve. Mônaco, certo?
— Sim, Mônaco — Fernando respondeu, olhando-a atentamente nos olhos.
Mais silêncio.
— Isso é ridículo, né? — ela sussurrou, um pouco envergonhada.
— Bom, é diferente, não é ridículo — respondeu o piloto, dando um sorrisinho — Você nunca seria ridícula pra mim.
Charlie olhou para ele novamente, percebendo o quanto as coisas haviam mudado entre eles. Eles definitivamente não eram inimigos, muito menos rivais. Porém, há muito tempo eles deixaram de ser apenas colegas de trabalho.
Ela poderia contemplar o que quer que eles fossem no voo para casa.
— Posso te beijar? — Fernando perguntou.
— Pode — Charlie respondeu, sorrindo.
Ele aproximou o rosto do dela, colocando a mão na bochecha dela. Então, os lábios deles se tocaram levemente, quase como se ele estivesse com medo de quebrá-la. Alguns segundos depois, ele se afastou, ainda perto o suficiente para que os narizes deles se tocassem.
— Tchau, nena. Eu vou sentir sua falta.
— Também vou sentir sua falta — disse Charlie, antes de dar outro beijo na bochecha dele e fechar a porta do carro.
Ao entrar no terminal, puxando a mala atrás de si, ela sentia o coração leve. Tão leve que ele era capaz de levá-la de volta a Birmingham, sem nem precisar de um avião..
Percebendo a maneira como o pé balançava insistentemente, Charlie não conseguia se lembrar de estar tão nervosa para uma sessão de terapia, pelo menos não desde que começou a frequentar a terapeuta dela, Hannah. Na verdade, as sessões com Hannah eram os momentos mais aguardados da semana dela, porque era hora de falar sobre o que ela quisesse, sem medo de ser julgada. Mas, considerando tudo o que tinha acontecido nas últimas semanas, Charlie sentiu que aquela sessão seria completamente diferente.
— Charlie? — disse uma voz feminina alegre. Charlie virou a cabeça e viu a terapeuta parado na porta do consultório — Vamos lá?
Ela assentiu enquanto se levantava e caminhava até Hannah, cumprimentando-a com um abraço rápido antes de passar por ela e sentar-se na poltrona confortável e familiar.
Hannah fechou a porta de seu escritório e se sentou na cadeira na frente de Charlie enquanto pegava o bloco de notas que sempre estava presente durante as sessões. Ela passou a mão pela frente da camisa de botão azul sob medida que estava usando, antes de olhar para a paciente dela com um sorriso.
— Como você tá, Charlie?
— Eu tô bem — respondeu ela, tentando conter o nervosismo — E você?
— Ah, eu também tô bem. Então, se bem me lembro, já faz cerca de um mês desde a última vez que nos encontramos, então provavelmente temos muito o que conversar, certo?
— Certo.
— E por onde você quer começar? — perguntou a terapeuta.
— Fernando — Charlie deixou escapar. Era como se a resposta estivesse na ponta da língua dela, só esperando o momento para ser dada.
Hannah se limitou a descansar as mãos no colo, com um sorrisinho no rosto.
— Não sei por que pensei que nosso primeiro assunto seria outra coisa, na verdade — disse ela — Aliás, eu vi a corrida de Mônaco. Vocês dois foram muito bem.
— Sim, nós fomos — Charlie respondeu, sentindo o nervosismo crescer. Ela cruzou as pernas e tentou canalizar a própria ansiedade balançando o pé novamente. No entanto, Hannah conseguiu enxergar através da imagem de calma e confiança que ela estava tentando projetar.
— Aconteceu alguma coisa entre você e o Fernando?
— Sim — Charlie murmurou.
— O que aconteceu? — Hannah perguntou, sua voz calma e séria.
— Nós — Charlie disse, hesitante — Fizemos as pazes.
— Bem, isso é bom. E como foi essa conversa?
— Não teve conversa.
Hannah piscou.
— Não? Mas…
Charlie respirou fundo, olhando para as mãos.
— Nós não conversamos. Nós transamos — ela murmurou baixinho.
— Desculpe, eu não entendi.
— Fernando e eu transamos — Charlie disse mais alto. Talvez muito alto. Ela sentiu o estômago embrulhar. Era a primeira vez que ela dizia aquilo em voz alta e, mesmo assim, ela não conseguia acreditar.
A expressão no rosto de Hannah indicava que ela também não conseguia acreditar.
— É uma piada? — ela perguntou.
— Não. Parece, mas não.
— Você tá me dizendo que transou com o homem do qual reclamou provavelmente uma centena de vezes nos últimos cinco anos? O homem cuja aposentadoria você comemorou? O homem que você disse ter sido seu motivo pra começar a fazer terapia? — Hannah perguntou, algo parecido com indignação permeando suas palavras.
— Desculpa — Charlie murmurou, sentindo o constrangimento aumentar. Ela não pôde deixar de se sentir uma hipócrita, principalmente quando se olhava no espelho e encontrava as marcas roxas que Fernando tinha deixado na pele dela como lembrete. Ela havia dito tantas coisas sobre ele ao longo dos anos, e agora estava tendo de engolir cada uma daquelas palavras cheias de veneno.
— Não, não, você não precisa se desculpar, Charlie.
— Mas… Você tá chateada comigo.
Hannah balançou a cabeça.
— Charlie, já conversamos sobre isso, eu não tô aqui para te julgar, mas pra te ouvir e te orientar em relação às suas próprias emoções — disse ela — Na verdade, lembro de ter dito que a melhor maneira de lidar com as suas questões com ele era falando de forma direta, mas eu não esperava que você lidasse com isso tão diretamente assim.
Charlie manteve os olhos fixos nas mãos, sem saber o que dizer.
— Quer me contar como isso aconteceu? — Hannah perguntou com um pequeno sorriso no rosto. Aquilo bastou para que Charlie começasse a falar sobre tudo o que havia acontecido em Ímola, quase sem respirar, desde a ponte inundada até o momento em que eles se despediram no aeroporto. A terapeuta ouviu atentamente, fazendo anotações ocasionais no bloco de notas dela.
— E como você se sente em relação a isso?
— Sinceramente? — Charlie disse — Perdida.
— Perdida?
— Sim. Eu tenho a impressão de ter me traído a mim mesma, como se tivesse feito a escolha errada, sabe? Sempre achei que não aguentaria conviver de novo com ele. Eu o odiava, e agora não consigo parar de pensar nele, e em como ele é incrível, e...
— Charlie, você já parou pra pensar que você pode tá dando importância demais pra, desculpe a palavra, mas, uma foda?
Charlie estremeceu.
— Não foi só… Uma.
Hannah piscou.
— Bom, ok, sexo oral conta como sexo, então foram duas...
— Mais do que isso.
— Você transou com ele… Várias vezes?
— Sim.
— Quantas vezes?
— Contando sexo oral?
— Sim.
— 14.
As sobrancelhas de Hannah se ergueram de surpresa.
— Quando… Onde isso aconteceu?
— Em Mônaco, em Barcelona, em Lugano...
— Lugano?
— É uma cidadezinha suíça, ele tem uma casa lá — Charlie respondeu, fazendo Hannah levantar a mão, pedindo para ela parar. Então, ela respirou fundo e fechou o bloco, antes de olhar para ela novamente.
— Vamos fazer uma pausa aí. Eu realmente acho que perdi alguma coisa entre o que aconteceu em Imola e agora.
— Você quer que eu te conte?
— Por favor, Charlie.
— É bastante coisa.
— Bem, temos pelo menos uma hora pra isso — Hannah respondeu, sorrindo.
Charlie respirou fundo.
— Bem — ela começou — A gente se viu de novo em Mônaco…
Com os olhos fixos no Mediterrâneo, a franja de Charlie balançava com a brisa costeira. Ela se apoiou no parapeito da varanda e tentou afastar a sensação de que era uma intrusa no elegante apartamento em que estava, mesmo tendo sido convidada para estar lá.
Ela não teve opção em relação a estar ali. As instruções que ela tinha recebido eram claras, nada de fazer o check-in no hotel com a equipe, mas sim ir diretamente para o apartamento, que ficava próximo ao Jardin Japonais. “Pede a chave pro porteiro na recepção, ele foi informado da sua chegada e não vai fazer perguntas”, dizia a mensagem. Ela leu as palavras várias vezes enquanto estava dentro do táxi, indo do aeroporto de Nice para Mônaco.
O nome nas informações de contato do remetente dizia “Fernando Alonso”, mas Charlie não o chamava assim há muito tempo.
Desde a noite em Ímola, ele se tornou “Fer” para ela. Ela já tinha ouvido outras pessoas chamando-o assim, quase sempre as pessoas de que ele mais gostava, como o empresário, Alberto, e o fisioterapeuta, Edoardo, que também era cunhado dele. Quando ela começou a chamá-lo assim nas inúmeras mensagens de WhatsApp que eles tinham trocado ao longo daqueles dias, pareceu um grande avanço no relacionamento deles.
Eles não eram mais inimigos, nem eram apenas colegas de trabalho. Eles eram amigos. Definitivamente amigos. “Mas somos amigos… Com benefícios?” ela imaginou. Sexo com Fernando era definitivamente um benefício, no qual Charlie estava definitivamente interessada.
— Apreciando a vista?
O coração e o estômago de Charlie saltaram. Ela bateu com a mão no peito e se virou, levando alguns segundos para perceber quem estava atrás dela. Fernando estava encostado no batente da porta da varanda, as mãos nos bolsos da calça preta e o botão de cima da camisa branca desabotoado. Ele tinha um sorriso travesso nos lábios e vê-lo substituiu o medo de Charlie por aborrecimento.
Charlie odiava ser assustada.
— Nunca mais faz isso — ela rosnou, se aproximando dele para dar um tapa no braço — Nunca mais!
— Eu só fiz uma pergunta — Fernando disse, tentando conter uma risada.
— Você me assustou — Charlie exclamou, enquanto o piloto a segurava pelos pulsos, impedindo-a de desferir mais golpes — Você sabe que eu odeio isso!
— Desculpa, só queria fazer uma surpresa pra você.
Charlie sorriu timidamente quando Fernando soltou os pulsos dela, apertando as mãos dela de forma afetuosa.
— Achei que alguém tivesse invadido o apartamento.
— Ninguém vai invadir. As únicas pessoas que entram aqui são as pessoas que eu quero.
Charlie sentiu as bochechas esquentarem, um sorriso tímido nos lábios.
— Você queria que eu entrasse então?
— Claro — ele murmurou, passando os braços em volta dela, puxando-a para perto — Você tem passe livre.
A proximidade deles fez o calor florescer no peito de Charlie. Ela fechou os olhos e se permitiu saborear a sensação do tecido do blazer dele contra a pele, enquanto os braços dele a envolviam. Então ela fechou os olhos e beijou-o suavemente, apreciando o calor dos lábios de Fernando e como contrastava com a barba por fazer dele. Alguns segundos depois, ele se afastou um pouco, o nariz roçando o dela.
— Oi — Charlie sussurrou.
— Oi, nena — ele respondeu sorrindo — Como foi seu voo?
— Foi bom. E a sua festa?
— Uma merda.
Ela afastou o rosto para vê-lo melhor, uma sobrancelha levantada.
— Achei que você gostasse de ir nesse tipo de coisa.
— Porque você achou isso?
Charlie sentiu o rosto esquentar. “Ótimo, agora ele sabe que sou insegura”, ela pensou consigo mesma, apertando a boca em uma linha fina.
— Ah, não sei, esses lugares costumam ser tão cheios de… Gente — ela gaguejou — Gente interessante, sabe?
— Não.
Ela suspirou.
— Mulheres bonitas, Fer. Eu pensei que… Você sabe, caras como você gostassem desse tipo de coisa. O Carlos gosta, pelo que me lembro. Sempre tive um pouco de pena da namorada dele, mas...
Fernando riu.
— Sim, o Carlos gosta muito de mulheres bonitas, isso não mudou — ele disse, colocando o cabelo de Charlie atrás da orelha — Mas a festa foi uma merda porque eu só conseguia pensar em você.
Charlie poderia ter derretido e virado uma poça ali mesmo, na frente de Fernando.
— Em mim?
— Sim, nena. Eu não conseguia prestar atenção em nada do que tava acontecendo, porque tudo que conseguia pensar era em você esperando aqui, sozinha, por mim. Então, inventei uma desculpa pro Lawrence...
— O que você disse pra ele? — ela perguntou, interrompendo-o.
— Que eu tinha um problema pra resolver pessoalmente.
— E ele acreditou em você?
— Sim. Ele não se importa com o que eu faço, desde que eu esteja no carro na hora da corrida.
Ela balançou a cabeça.
— Isso vai ser um problema pra nós, você sabe disso, né?
O piloto sorriu, colocando a mão na bochecha dela.
— Bom, então temos que aproveitar enquanto não é, não acha?
Charlie suspirou. Ela não pôde deixar de se sentir culpada.
— Não quero atrapalhar você, Fernando...
— Você nunca me atrapalha — ele respondeu, dando um beijo na testa dela — Nunca, nena.
Ela deu um sorrisinho enquanto se perdia na primavera que florescia nos olhos dele. Charlie sabia muito bem que o que eles estavam fazendo poderia causar problemas com a Aston Martin, mas tentou se convencer que muitos relacionamentos tinham começado no circo da Fórmula 1. Não havia realmente uma regra que proibisse isso, nem mesmo na política da Aston Martin, a menos que fosse entre um supervisor e um subordinado direto. Mas, pelo que ela sabia, um relacionamento entre um piloto e sua engenheira de corrida certamente levantaria algumas sobrancelhas. No entanto, era difícil dizer, visto que ela era a primeira, e até agora, a única mulher naquela posição na Fórmula 1.
— Você tá bem?
Charlie piscou.
— Sim, só tô — ela hesitou por alguns segundos. Aquela não era a hora de refletir sobre os detalhes da política de RH – Cansado.
— Você quer tomar um banho? — Fernando perguntou baixinho — Posso lavar seu cabelo se quiser, e depois podemos pedir algo pra comer. Comida japonesa talvez, o que você acha?
— Perfeito.
Ao relembrar aqueles pequenos momentos com Hannah, Charlie não pôde deixar de sentir no peito o mesmo calor que sentiu quando o beijou. Era um calor que se espalhava por todo o corpo dela, fazendo o mundo inteiro parecer mais bonito, como se ela estivesse vivendo um sonho.
— Bom, parece que ele é bem romântico — disse a terapeuta.
— É.
— Aconteceu mais alguma coisa durante o fim de semana de corrida?
Charlie sorriu.
— Bem, eu vi Sebastian de novo — ela respondeu — Eu não via ele desde Abu Dhabi, então foi uma boa surpresa ter ele de volta na garagem.
— Ah, que bom — disse Hannah, sorrindo — E vocês conversaram? Me lembro de você dizer que gostava muito de trabalhar com ele e que ficou muito triste em saber que ele iria parar de correr.
— Sim, nós conversamos um pouco, ele disse que eu tô fazendo um trabalho excepcional e que espera uma vitória este ano. Mas também aconteceu uma coisa engraçada…
— O que aconteceu?
— O Fernando chegou depois e me perguntou sobre o que Sebastian e eu conversamos. Em seguida, ele me perguntou se eu sentia falta de trabalhar com o Seb, e eu disse que sim, já que ele me dava pão caseiro, e então — Charlie falou — Aí Fernando me disse que não mudou muita coisa, já que ele também me dá uma coisa. Orgasmos, no caso.
Os olhos de Hannah se arregalaram antes de começar a rir, o que fez Charlie rir também.
— Ele disse isso alto?
— Não, não, foi baixinho — Charlie respondeu — Mas eu acabei rindo alto, e meus colegas de trabalho perguntaram o que o Fernando tinha dito de tão engraçado.
A terapeuta assentiu, anotando algo em seu bloco de notas.
— Bom, sabemos que o final de semana em Mônaco foi bom, com um resultado muito satisfatório pra vocês dois. Agora, o que aconteceu depois disso?
Charlie colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha antes de colocar as mãos no colo. Os olhos estavam fixos nas unhas, que ela havia roído no voo de volta para a Inglaterra. Era um hábito antigo dela que parecia impossível de abandonar.
— Ficamos uns dias em Mônaco, sozinhos... Juntos, sabe? Depois fomos pra Barcelona e… Eu conheci a família dele.
Assim que Charlie avistou Edoardo no paddock, acompanhado por um homem de cabelos brancos, duas mulheres e duas meninas, ela soube que estava fodida. Ela caminhava em direção ao motorhome da Aston Martin ao lado de Fernando e o estômago dela ficava cada vez mais agitado a cada passo, o pânico tomando conta da própria mente ao reconhecer o grupo de pessoas conversando com Edo. Ela já os tinha visto antes, nos poucos quadros que Fernando tinha no apartamento dele em Mônaco. Era o pai, a mãe, a irmã e as sobrinhas. A família dele. As pessoas mais importantes da vida dele.
— Charlie? — ela ouviu Fernando dizer. Piscando, ela se deu conta de que havia parado no meio do caminho, como se, de repente, as pernas tivessem ficado pesadas demais para continuar — Você tá bem?
— Lembrei que precisava verificar uma coisa na garagem — Charlie murmurou, tentando parecer convincente — É muito importante…
— Você nunca vai pra garagem antes de ir no escritório de engenharia — disse o piloto, se aproximando dela — O que houve? Aconteceu alguma coisa?
— Não, não — ela disse rapidamente, tentando aumentar a distância entre eles, os olhos vasculhando o paddock em busca de fotógrafos — Eu acabei de lembrar de uma coisa que tenho que fazer, te vejo mais tarde...
— Nena — Fernando murmurou, antes de ser interrompido por uma das garotas que estava ao lado de Edo.
— Tío, tío! — disse a garota, dando um salto para abraçá-lo. Fernando desviou o olhar de Charlie para a menina, com um largo sorriso no rosto.
— Cuidado, Bianca, no soy más tan joven para que hagas estas cosas — ele falou, passando a mão pelos cabelos escuros da garota — ¿Cómo estás?
— Estoy bien, te estaba esperando ahí en el motorhome. Papá está muy entusiasmado con la carrera de hoy — disse ela, antes de olhar para Charlie, sorrindo — Hola!
Charlie forçou um sorriso e acenou timidamente. Ela não tinha mais de 12 anos.
— Bia, esta es Charlie, mi amiga — disse o piloto, colocando a mão no ombro da garota — Charlie, essa é a Bianca, a filha da Lorena e do Edo e a minha sobrinha.
— Prazer em conhecê-la, Bia — disse ela, tentando parecer simpática.
— Ella dijo que está encantada de conocerte — Fernando traduziu. A garota sorriu amplamente e respondeu algo para ele — Ela disse que tá feliz em conhecer você também, Charlie. Ela também disse que você é muito bonita.
Ela sentiu as bochechas esquentarem.
— Ela realmente disse isso? Você não tá inventando, né?
— Sim — disse ele, com um sorriso malicioso no rosto — Vem comigo, vou te apresentar pro resto da família.
A caminhada com Bianca e Fernando foi estranhamente torturante. Ao se aproximar do motorhome, Charlie teve certeza de que os olhos da mãe de Fernando estavam fixos nela, examinando-a atentamente, quase como se estivesse tentando ler seus pensamentos. “Tá tudo bem, Charlotte, tá tudo bem”, Charlie pensou consigo mesma, antes de colocar um sorriso falso no rosto.
— ¡Buenos dias, hijo! — disse o homem mais velho, colocando a mão no ombro do piloto, sorrindo. Em seguida, Fernando foi cumprimentado pela mulher mais jovem, a irmã dele, que disse algo e riu enquanto se abraçavam. Depois foi a vez da mãe, que colocou as mãos no rosto do filho e deu um beijo carinhoso em sua bochecha. Isso fez com que Charlie se lembrasse da avó.
— ¿Podría presentarme a esta joven que está a tu lado? — Ana, pelo que ela conseguiu entender ao ouvir o pai de Fernando, perguntou. Fernando sorriu e colocou o braço em volta dos ombros de Charlie.
— Esta es Charlie, una vieja amiga mia — ele respondeu. Algo sobre estar tão perto de Fernando na frente da família dele a chocou, mas ela tentou afastar aquele sentimento para cumprimentá-los com um 'hola' tímido.
— ¿Os conocéis de algún sitio?
— Charlie era mi ingeniera de rendimiento en McLaren, ¿no te acuerdas, mamá?
De repente, a expressão da mulher se tornou uma máscara impassível.
— No recuerdo nada de ese lugar, sobre todo después de lo que te hicieron, Fer.
Fernando riu, enquanto o pai dele comentava algo que ela não conseguia entender, mas a expressão do rosto da mulher não precisava de tradução. O nervosismo que Charlie sentia devia ser evidente, considerando que o piloto pressionou levemente os dedos sobre os músculos dos ombros dela, que estavam tensos.
— Algum problema? — ele perguntou baixinho.
— Fiz alguma coisa errada?
Ele riu.
— Não, você não fez nada de errado.
— Por que sua mãe parece tão chateada, então?
— Eles não gostam da McLaren — Fernando sussurrou.
— Por que?
— Te explico mais tarde — ele respondeu, antes de continuar conversando com a família na lingua materna, permitindo que a mão descesse até a parte inferior das costas de Charlie. Normalmente, ela achava o gesto reconfortante, no entanto, naquele momento, o gesto só deixou ela mais nervosa.
Mais tarde, na garagem, a sensação piorou.
Enquanto todos se organizavam para os procedimentos pré-corrida, Charlie se viu ao lado de Edoardo. Pelo que Charlie sabia, ele trabalhava com Fernando desde que ele tinha começado na Fórmula 1, cuidando da saúde e do preparo físico dele. Porém, o relacionamento deles deu um grande passo quando ele se tornou namorado e, depois, marido da irmã de Fernando, Lorena. Isso, junto com o nascimento de Maria e Bianca, tornou o relacionamento deles muito mais profundo do que outros pilotos teriam com seus fisioterapeutas.
Além disso, Edo sempre foi educado com Charlie, muitas vezes pedindo desculpas pelo comportamento do cunhado após suas explosões de rádio durante a corrida durante a segunda passagem de Fernando na McLaren.
“Ele passou por muita coisa com Fer”, Charlie pensou consigo mesma, cruzando os braços.
— Tudo certo pra hoje? — Edoardo perguntou a ela num inglês carregado de sotaque.
— Sim, tudo certo — Charlie respondeu, dando um sorrisinho.
— Bom, muito bom — disse o homem, retribuindo o sorriso e colocando as mãos nos bolsos.
Em seguida, se estendeu um silêncio constrangedor entre eles, como se ambos estivessem fazendo o possível para ignorar o elefante de dez toneladas que pendia entre eles. Não que eles tivessem algo mal resolvido, muito pelo contrário, mas havia uma tensão que ela não conseguia afastar ou compreender.
— Lorena me falou uma coisa engraçada no almoço — Edo murmurou, com os olhos fixos nos pés.
— Falou? — Charlie disse, erguendo uma sobrancelha. Ela tinha almoçado com a família de Fernando, mas não se lembrava do que havia comido, muito menos do que haviam conversado, afinal, ela não conseguia entender quase nada do que estava sendo dito. Tudo o que ela conseguia pensar era em não vomitar ou desmaiar de nervosismo.
— Sim. Ela me disse que não via o Fer tão feliz desde 2006.
— Ah, sim. Quero dizer, ter um carro decente de novo deve ser ótimo pra ele.
— Ela disse que parece até que ele tá apaixonado — Edoardo falou, as palavras atingindo ela como um soco no estômago.
Hannah coçou o queixo pensativamente.
— Você concorda?
— Com o que?
— Que o Fernando tá muito feliz?
Charlie apertou os lábios.
— Bem, ele parece feliz quando tá no circuito, correndo. Nas entrevistas, ele sempre parece muito animado…
— E quando ele tá sozinho com você, como ele age?
Os olhos de Charlie desceram para as mãos, que estavam no colo novamente. Ela não conseguia olhar para Hannah.
— Ele parece feliz quando tá comigo também.
— Mas é uma felicidade semelhante à que você vê no trabalho ou é outro tipo de felicidade?
— Existe outro tipo?
A terapeuta suspirou, largando o bloco de notas por um momento. Charlie olhou para ele e percebeu que a página inteira estava cheia de anotações na caligrafia elegante de Hannah.
— Essa é uma pergunta interessante, Charlie. Existem inúmeras teorias sobre a felicidade e como classificar ela, do ponto de vista psicológico, mental, espiritual, material e assim por diante. Mas, acho que aqui podemos usar uma classificação puramente biológica.
— Biológica?
— Nosso cérebro libera hormônios, você sabe, não é? Dopamina, oxitocina, serotonina e endorfinas.
— Mas, o que isso tem a ver com a situação?
— Tudo o que fazemos e que podemos classificar como bom pra nós, pode ser um gatilho pra liberação desses hormônios pelo nosso cérebro. Por exemplo, a dopamina é nosso hormônio do prazer e da recompensa e é liberada após uma vitória na pista, ou até mesmo depois de algo pequeno, como terminar uma tarefa diária.
Charlie assentiu, mostrando para Hannah que estava ouvindo.
— Mas também existe a oxitocina, que chamamos de ‘hormônio do amor’. Ela é liberada quando há uma ligação emocional entre as pessoas, e tende a aumentar em momentos de contato físico, como em abraços, beijos e relações sexuais — a mulher continuou — Depois temos a serotonina, que é basicamente um regulador do humor, e a endorfina, que é um analgésico natural, liberado em situações de estresse e desconforto.
— Ok, e o que isso tem a ver com o Fernando?
— Você disse que acha que ele tá feliz, tanto no trabalho quanto na vida privada. Considerando o trabalho dele, posso concluir que ele libera muita dopamina, principalmente durante as corridas. Mas, quando ele tá com você, sozinho, posso concluir que tanto ele quanto você liberam ocitocina.
— Você tá me dizendo que ele tá apaixonado por mim? — Charlie disse, num tom indignado.
— Bem, é só uma ideia. Mas, dado o que foi dito por pessoas que o conhecem e o fato de vocês terem fodido como dois coelhos nas últimas semanas, acho que você pode concluir por si mesma que ele tem muito carinho por você.
A observação de Hannah fez o estômago dela embrulhar. A teoria dela sobre a felicidade fazia sentido para aquela situação. A alegria de fazer uma boa corrida ou de uma boa refeição era completamente diferente do que ela sentia quando estava com Fernando. Sentir o toque dele, olhar nos olhos dele, saborear os lábios dele, tudo aquilo fazia com ela sentisse uma felicidade inexplicável que a fazia flutuar toda vez que estavam juntos.
Aquilo era realmente felicidade? Sim, o fato deles serem duas pessoas que se sentiam mutuamente atraídas e que gostavam de se divertir juntas deixavam ambos felizes. Mas, talvez fosse algo mais profundo... Talvez fosse... Amor. Um arrepio percorreu o corpo dela. Ela amava os avós. Ela amava Ron. Ela amava o automobilismo, ela amava o trabalho. Mas fazia muito tempo que ela amava outra pessoa, pelo menos da maneira que Hannah tinha descrito. Tanto que aquilo tinha se tornado algo desconhecido e a ideia, assustadora.
Não era como se Charlie tivesse um coração de pedra e nunca tivesse se permitido gostar de ninguém antes. Ela chegou a ter alguns relacionamentos sérios, alguns casos aqui e ali e um bom número de encontros casuais ao longo dos 33 anos da vida dela. Porém, nada se comparava à ligação que ela tinha com Fernando. Nada comparado ao quão parecidos eles eram e ao mesmo tempo completamente diferentes. Nada comparado ao desejo de Charlie de estar com ele em todos os momentos, mesmo quando eles deveriam estar separados.
— Você disse que foi na casa dele, certo? — Hannah perguntou, tirando Charlie dos próprios pensamentos.
— Sim, eu fui.
— E quando foi isso?
— Depois da corrida em Barcelona. Não foi a melhor corrida pra nós. Tivemos alguns problemas com o carro e terminamos só em sétimo. Quando voltamos pro hotel pra pegar as malas e ir pro aeroporto, ele disse que queria que eu fosse com ele.
— E presumo que você concordou com isso.
— Sim, eu concordei.
A luz do sol entrava pela porta da varanda do quarto, iluminando o piso de madeira. Abrindo os olhos lentamente, Charlie ainda se sentia um pouco confusa, graças à bela noite de sono que tinha tido. Porém, ao olhar para o abajur ao lado da cabeceira, ela percebeu que não se parecia com o que tinha em casa.
Alguns segundos se passaram antes que ela se desse conta de que não estava no apartamento dela. Ela não estava em Northampton, nem em nenhum lugar do Reino Unido. Ela estava em uma villa luxuosa, de frente para um enorme lago, no sul da Suíça. Rolando na cama, Charlie olhou para o teto por alguns segundos.
“Isso é loucura”, ela pensou consigo mesma.
A ideia de ir lá foi de Fernando. Ela já estava fazendo as malas para fazer o check-out do hotel quando ele começou a soar carente.
— Eu queria que você ficasse comigo — ele murmurou, se sentando ao lado da mala dela.
— Eu também queria, Fer, mas não posso.
— Por que não?
— Eu já tô há duas semanas fora de casa e meu gato tá começando a ficar chateado em ficar longe de mim.
— Eu também ficou chateado em ficar longe de você — ele murmurou, com uma expressão taciturna no rosto.
— A diferença é que você entende que vamos nos ver de novo, ele não.
— Isso não me deixa menos chateado — Fernando respondeu — Se eu pudesse, eu te levava pra casa comigo.
Charlie ergueu uma sobrancelha.
— Levaria? — ela perguntou, se virando para ele.
— Sim — disse o piloto, passando as mãos pela cintura dela e puxando-a contra o próprio corpo, fazendo com que ela caísse em cima dele na cama, rindo — Eu queria passar uma semana inteirinha com você.
— E o que a gente iria fazer?
— Bem, a gente poderia cozinhar, assistir uns filmes, fazer exercício juntos — Fernando respondeu calmamente, levando a mão ao rosto dela — Sabe, um pouco de cardio.
— Na sua cama? — Charlie sorriu.
— Se você quiser — disse ele, antes de dar-lhe um beijo rápido nos lábios — Vem comigo.
— Fer...
— Uma semana, só uma.
— Não posso ficar tanto tempo longe.
— Ok, então… Cinco dias.
— Um.
— Quatro.
— Dois.
— Três, e saímos em uma hora.
Passando a mão pela testa dele, Charlie afastou os fios macios do cabelo dele.
— Uma hora?
— Ok, talvez duas. Tenho que ver no aplicativo se tem algum jato disponível.
Ela piscou, absorvendo as palavras dele por alguns segundos. Apesar de trabalhar com pilotos de Fórmula 1 durante anos, as diferenças nos estilos de vida que eles levavam em relação ao dela ainda surpreendiam Charlie de vez em quando. O fato dele ser rico o suficiente para alugar um jato particular por meio de um aplicativo ainda parecia um pouco surreal.
— Tem certeza disso? — ela perguntou baixinho.
— Do que?
— De me levar pra sua casa.
— Sim, nena — respondeu o piloto, beijando-a novamente.
Uma hora e meia depois, eles estavam no ar, rumo à Suíça. Fernando morava lá há mais de dez anos, numa pequena cidade chamada Lugano, que ficava às margens do lago de mesmo nome. Ele escolheu o local após uma conversa com Sebastian, que tinha se mudado para lá enquanto trabalhava na Sauber, mas ficou porque gostava da tranquilidade e das belezas naturais do local. Porém, ao contrário do colega, que tinha se instalado com a mulher e os filhos no norte, Fernando optou por viver no sul, perto da fronteira com a Itália.
— Mais perto de Maranello — ele explicou, sorrindo.
Após um pouso suave e uma viagem de vinte minutos, ele anunciou de forma triunfante que haviam chegado. O lugar em que ele tinha se instalado era uma villa elegante, com exterior branco e cinza, projetada para parecer limpa e moderna.
Fernando a convidou para entrar e fez questão de apresentar cada cômodo. Charlie ficou surpresa ao ver que a casa inteira era bem decorada e parecia aconchegante, como se alguém morasse lá em tempo integral, ao contrário do apartamento em Mônaco, que tinha parecido frio demais para o gosto dela. Havia quadros nas prateleiras das paredes, almofadas no sofá e até mesmo um relógio moderno montado na parede da cozinha. E todos aqueles detalhes ofereciam uma espécie de vislumbre do homem que morava ali.
— E este é o meu quarto — disse o piloto, largando a mochila na cama — Bem, o nosso quarto, enquanto você tiver aqui.
— Achei que eu fosse dormir no quarto de hóspedes — Charlie murmurou.
— Minha mãe sempre disse que eu devia oferecer o melhor pros meus convidados — Fernando respondeu, caminhando até Charlie e tomando o rosto dela nas mãos — E, considerando que esta é a melhor cama da casa…
— Eu vou dormir aqui?
— Ah, não. Não vamos dormir, nena — disse ele, antes de beijá-la delicadamente e conduzi-la até o colchão. Se o cansaço de um dia de corrida e viagem tivesse batido neles, ambos ignoraram. Eles estavam muito mais focados em gozar, o que fizeram antes de caírem em um sono profundo, nus e enrolados um no outro.
Quando ela começou a se sentir mais desperta, Charlie se sentou na cama, puxando o edredom para cobrir o corpo. Olhando ao redor, ela percebeu que estava sozinha no quarto e, a julgar pela temperatura dos lençóis ao lado dela, já fazia algum tempo. Depois de algum tempo sentada, sem saber o que fazer, ela julgou que usar o banheiro seria um bom primeiro passo.
Depois de um banho quente e de escovar os dentes, ela foi até a mala, que estava guardada num canto do closet de Fernando, para pegar algo para vestir. Depois de colocar um short, ela pegou um dos poucos moletons limpos que restavam na bagagem quando olhou para cima e viu uma coisa interessante na prateleira, algo com o desenho de um carro velho em um fundo colorido.
Ela pegou a peça da prateleira para olhar, passando os dedos pela serigrafia na frente. O design tinha sido feito para as 500 Milhas de Indianápolis, com um desenho de um IndyCar laranja, o logotipo da Kimoa e o número 66.
“Vai servir”, ela pensou, enquanto puxava o tecido azul-marinho pela cabeça.
Charlie seguiu pelo corredor em direção à sala, mas parou quando sentiu um cheiro estranho e ouviu a voz de Fernando falando num italiano particularmente animado. Ao se aproximar da cozinha, ela viu o piloto em frente ao fogão, totalmente concentrado em uma frigideira. O MacBook dele estava aberto no balcão ao lado dele.
— Cosa stai cucinando lì? — uma voz masculina que ela não reconheceu perguntou.
— Una frittata con il tonno — ele respondeu — Ottimo per iniziare la giornata con un sacco di proteine.
— E ti servono due piatti per mangiare una frittata?
Houveram alguns segundos de silêncio antes que ele falasse novamente.
— Questo importa?
O homem deixou escapar uma risada.
— Hai qualcuno a casa? È una donna?
— Fabri — Fernando disse, com um toque de advertência em sua voz.
— Cosa, ho appena fatto un'osservazione. Sei con una donna a Lugano, proprio dove hai detto che non avresti portato più donne dopo Linda.
— Non parliamo di Linda.
— Quindi parliamo della donna che ti stai scopando. Chi è? Io la conosco? Lei è famosa? Quella è bionda?
— Fabri, per favore…
— Fer, dopo Linda, hai appena messo la faccia al lavoro. Andrea ti ha lasciato proprio per quello. E ora c'è un'altra donna in casa tua e non vuoi dirmelo? Pensavo ti fidassi di me.
Fernando suspirou, desligando o fogão. Então, ele pegou a frigideira e colocou seu conteúdo em um prato, mas a frustração no rosto dele desapareceu quando ele avistou Charlie encostada no batente da porta, os lábios se curvando em um sorriso.
— Ci sei, Fer? Lei arrivò? Fammi vedere lei! Ciao, ragazza di Fer! — Fabri continuou falando, até que Fernando largou a espátula e fechou o laptop com um clique alto.
— Desculpa por interromper a sua reunião matinal com o… Fabri? — Charlie disse, caminhando lentamente até a ilha no meio da cozinha.
— Sem problema, não era nada importante mesmo — ele sorriu, enquanto os olhos desceram até o moletom que ela estava usando — Você andou mexendo no meu armário, pelo que vejo.
Ela olhou para a estampa do carro no tecido e ergueu os olhos novamente, dando um sorriso tímido. Aquele comportamento não era de todo apropriado para alguém que estava ali pela primeira vez. Porém, Charlie não resistiu à vontade de ter uma pequena parte dele, mesmo que fosse apenas uma peça de roupa.
— Sim, acabei colocando um dos seus moletons — disse ela, baixinho — Espero que não se importe.
Fernando largou a frigideira e caminhou até ela, apoiando as mãos nos quadris dela. A proximidade fez a pele de Charlie arrepiar.
— Eu não me importo. Eu nunca me importaria. Na verdade, acho que é a coisa mais sexy do mundo.
— Ah, é?
— Sim. Por mais que eu ache que tudo que você faz e tudo que você veste é sexy.
— É sério?
— Sim. Você é sexy quando tá vestindo o uniforme do time, quando tá nua, quando tá usando aquele seu top ridículo do Brighton...
— Ele não é ridículo — ela falou, fingindo indignação.
— É um pouco ridículo, Charlie.
— Não, não é.
Fernando sorriu ao levar uma das mãos ao rosto de Charlie., o polegar deslizando levemente sobre a pele dela.
— Você é sexy até quando discorda de mim, nena — ele murmurou, antes de dar um beijo gentil nos lábios dela. Ao se afastar, Fernando sorriu — Bom dia.
— Bom dia. O que você tá fazendo?
— Me perguntando se não devia te levar de volta pra cama.
— Pro nosso café da manhã — ela completou, fazendo com que ele risse.
— Ah, sim. Eu tô fazendo minha especialidade.
Ela olhou para o conteúdo do prato. Havia um círculo disforme, amarelo-claro e pontilhada com pedaços de algo branco que ela não conseguia identificar.
— Omelete?
— Com atum — Fernando disse, triunfante. Charlie ergueu uma sobrancelha.
— Atum?
— Sim, atum.
— Você fez molho de atum às oito da manhã?
— Não, é atum enlatado.
Ela não conseguia disfarçar seu desgosto diante da ideia de comer uma omelete com peixe enlatado quente.
— Você pode fazer o meu sem?
— Sem atum?
— Sim.
— Mas é ele o que dá todo o sabor...
— Fernando, atum enlatado quente é ruim.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Como você sabe que é ruim? Você nunca experimentou.
— Por favor…
— Tenho certeza que você vai gostar. E é proteína! Fiz isso no café da manhã todos os dias durante o Dakar…
— Vou ficar com a minha omelete normal, meu querido.
Sua expressão de repente se iluminou, como se ele tivesse acabado de conquistar uma vitória depois de uma corrida difícil, do tipo que tornava o champanhe do pódio ainda mais doce.
— Seu querido, é?
Foi ali que Charlie percebeu o que havia dito. A palavra tinha saído dos lábios dela com tanta naturalidade que a assustou um pouco.
Querido. O querido dela.
— Ah, bem — Charlie gaguejou, sentindo as bochechas esquentarem — É força do hábito, você sabe...
— Já era hora de você me chamar de algo mais carinhoso do que o meu nome.
— Não é como se você tivesse algum apelido pra mim!
Fernando colocou a mão no rosto dela com ternura, permanecendo em silêncio por alguns segundos, como se refletisse sobre o que iria dizer.
— E quando eu te chamo de ‘nena’, não te soa carinhoso? — ele perguntou, tirando algumas mechas da franja dos olhos dela.
— Eu nem sei o que isso significa.
— É uma forma carinhosa de se referir a uma garota na Espanha. Acho que é semelhante a chamar alguém de querida. E você é minha nena. Só minha.
Ela não sabia nada de espanhol, mas não precisava entender o que ele estava dizendo. Aquela palavra era universal.
Mi. Mia. Minha.
Ela era dele.
— E o que você disse sobre isso? — Hannah perguntou, parecendo ansiosa.
— Eu não disse nada na hora. Eu não consegui pensar em algo pra dizer. Então, eu só beijei ele e tomamos o café da manhã.
Hannah pareceu um pouco chocada. Talvez ela estivesse esperando uma grande conclusão, uma catarse, omomento da história em que Charlie olharia profundamente nos olhos de Fernando e abriria o coração, dizendo tudo o que queria dizer, como se estivessem no clímax de um filme romântico.
Mas aquilo não era um filme, nem mesmo uma minissérie. Aquela era a vida real, e aquele tipo de coisa nunca acontecia na vida real.
— E depois, o que aconteceu?
— Bem, nós aproveitamos os nossos dias juntos. Cozinhamos, comemos, assistimos uns episódios de LOST e dormimos…
— Transaram…
— É, isso também — Charlie respondeu, sentindo as bochechas queimarem — Mas também saímos algumas vezes. Fomos numa padaria, num café que ele gosta. Também fizemos uma caminhada perto do lago.
— Só?
Ela hesitou por alguns segundos.
— Quando estávamos caminhando na beira do lago, o Fer pegou minha mão. Eu olhei pra ele e pensei em me afastar, já que havíamos concordado em evitar fazer coisas como ficar de mãos dadas enquanto estivéssemos em público. Mas…
– Você cedeu.
— Eu cedi.
Hannah sorriu.
— Que romântico — disse ela, com a voz travessa.
— Aí ele pediu pra tirar uma foto minha. E então uma de nós dois juntos. E tiramos várias fotos. E…
— Sim?
— Ele disse de novo que eu era dele.
— E? — Hannah perguntou ansiosa — Você disse alguma coisa dessa vez?
Charlie sorriu.
— Sim.
— O que você disse?
— Eu sou sua.