Revisada por: Polaris 👩🏻🚀
Última Atualização: Fanfic FinalizadaEle não se lembrava da última vez que teve uma conversa olhando nos olhos de seu pai, ele era o terceiro dos filhos, mais um número entre seus subordinados, alguém muito longe de herdar a liderança da família. Dispensável, ordinário, mais um filhote no grande canil que era a família Moreno chamado ao escritório para escutar latidos.
As mãos do homem apertaram seus ombros com força. Era estranho, o velho tremia, tinha receio em seus olhos e seu hálito cheirava a uísque, sua fala rosnada ecoando pela sala com preocupação. Estranho. Do que possivelmente Dario ‘O Carniceiro’ Moreno teria medo?
— O Chefe Dellariva tomou grande interesse em você.
Dellariva, ele já tinha ouvido esse nome antes, nos campos de treinos, durante as ordens gritadas enquanto seus músculos queimavam. Ah, sim, eram eles. Os donos de todos os cachorros, os mandantes, os sussurros que sopram ao vento quais mortes devem ser carregadas pelas sombras dos cães de caça.
A mão que segura sua coleira.
— É uma grande honra ter alguém da casa servindo a família principal. — O toque desconhecido de seu pai se foi. — Desde meu primo Conti, que alguém não chama a atenção dos magnatas. Arrume suas coisas, deve partir para encontrar Colter assim que possível.
O homem, a maior figura de autoridade que tinha por perto, se virou dando suas costas
— A partir de agora, suas decisões não são apenas suas, também afetam o nome Moreno e todos os que ficam para trás.
Olhos o encararam por cima do ombro com um brilho feroz, agressivo e a voz latida mudou o tom de aviso, para uma ordem.
— Um bom cachorro não morde a mão de seu dono, nunca. Somos protetores, matamos, morremos e se um Dellariva pedir… Latimos
Já fazia anos que tivera aquela conversa no velho escritório de seu pai, quatorze deles para ser mais preciso, e ainda se lembrava como se fosse recente. Naquele dia, passou a maior parte das horas com o restante dos garotos nos campos de treino e no fim da tarde, quando o céu começava a virar noite, ele foi chamado para receber a notícia de adoção.
Não houve uma despedida, apenas um aviso e uma silhueta iluminada na janela vendo o carro o levar para longe.
Moreno observou o céu escuro do pequeno banco de madeira posicionado numa via de pedras que cortava o jardim. A noite estava quieta, soturna, pesadas nuvens de chuva se reviraram escondendo a lua e seu brilho, apenas criando formas distorcidas com o brilho prateado atrás delas.
Interrompendo seu caminho de memórias, um farfalhar de folhas fez sua cabeça virar, embaixo do terno com cor de carvão, seus músculos se tencionaram reagindo para um possível ataque. Estava pronto para caçar qualquer um, ou qualquer coisa, querendo arrumar problemas na propriedade. Em silêncio esperou, a mão por cima da arma e a presença escondida nas sombras.
Nada. Era apenas a natureza brincando com seus sentidos.
Um único som chegava aos seus ouvidos, distante, uma melodia orquestral abafada pelas paredes da mansão. O terreno que abraçava um lago de águas frias no centro do país era uma morada tranquila e isolada, pouco apreciada pelo que havia da família Dellariva e seus associados. Geralmente as pessoas gostavam de passar uma época como essa em praias e grandes metrópoles repletas de distração, não numa área remota com um clima úmido onde o vento era frio e os dias nublados.
Ele já ouviu alguns dos outros soldados reclamarem, preferiam aproveitar as folgas nas noites de boêmia nas pernas de uma mulher, porém ali, não havia essa possibilidade. O que havia era silêncio e chuva.
Em algum momento, após deixar os terrenos em que cresceu, o sono veio o visitar. O levou para longe, para um mundo escuro de exaustão, um sono sem sonhos nem pesadelos. Um susto onde um breve piscar de olhos muda o cenário inteiro.
Ainda havia um pouco de luz quando deixou a propriedade Moreno, agora, olhar o céu era como encarar em um tinteiro de nanquim. Lá em cima o som de trovões ribombavam se arrastando atrás da chuva, cortando o céu com lâminas de luz. Pelo vidro, a paisagem estava distorça pelas gotas de água grudadas a ele, podia apenas dizer estar em uma estrada de terra. O carro balançava com a irregularidade da estrada e o farol que abria o caminho entre as sombras que se prostravam na frente do veículo, revelavam também as árvores nas laterais.
— Finalmente acordou — o motorista disse o encarando no banco traseiro pelo retrovisor. — Estamos chegando, não está tão tarde, então deve se apresentar ao Mare assim que chegar.
— Mare? — perguntou. Sua voz soou desconhecida até para si, seca, baixa demais para um garoto de quinze anos.
Novamente o condutor o encarava pelo espelho, a estrada era reta e não precisava de tanta atenção. Talvez com pena de estar levando o menino para um futuro desconhecido, se ajeitou no banco e resolveu dar algumas instruções.
— Mare é como deve se dirigir ao chefe, algumas famílias usam Dom, o latim para sol, mas a família Dellariva é profundamente ligada à água, então há gerações usam Mare, ‘O mar’. — continuou. — Nunca o chame pelo nome, exceto se for autorizado.
O jovem olhou para a janela apenas para ver seu próprio reflexo, os cabelos que até horas atrás eram mais longos e desgrenhados foram tosados, suas vestes tinham um corte refinado, recebendo até mesmo uma fragrância sutil. Aquele que conhecia ficou no canil e ainda não sabia quem teria que ser nessa nova casa.
— Qual é a minha função?
Um momento de silêncio tomou o carro até a resposta.
— A filha do Mare está retornando para a casa pela primeira vez em algum tempo, você foi escolhido como guarda de companhia. A família Dellariva tem muitos inimigos, o normal seria alguém mais experiente, mas a jovem pediu por uma companhia próxima a sua idade, é um ano mais nova que você, até onde sei.
A conversa morreu e não muito tempo depois uma grande propriedade se abriu dentre as árvores. Era como ser transportado para outro mundo, outra época, apenas a entrada era impressionante. Grande colunas se erguiam como se parecesse um templo, cerca de três andares repletos de janelas se espalhavam para os lados. Havia uma fonte ornamentada com sereias na frente da entrada principal que pareciam brilhar como joias mesmo na escuridão.
O carro parou e ele logo foi puxado para dentro da casa, guiado por corredores serpenteantes até um escritório luxuoso. Mesmo sendo considerado um jovem, ele conseguia ler bem o ambiente e a pressão que o acertou quando pisou no local foi sufocante. Foi obrigado a engolir seco e travar os dentes na boca e as mãos ao lado do corpo.
— É esse o garoto? — perguntou sem tirar os olhos de alguns papéis em sua frente.
— Sim, Mare.
A caneta de pena foi colocada de lado e então foi a primeira vez que ele viu o rosto de Colter Dellariva, ele não era tão velho quanto esperava, tinha os cabelos escuros começando a receber alguns fios brancos, especialmente nas laterais. Olhos profundos, escuros, onde mal se podia ver a pupila. As mãos que se cruzaram na frente do rosto enquanto pareciam o escanear tinha adornando num dos dedos um anel grande quadrado, com uma pedra cor de mar ainda maior.
— Della honra, chama Riva. — Se curvou de leve, a voz soando muito mais fraca do que pretendia. Mesmo com ar enchendo seus pulmões se sentia afundando sobre a pressão do mar, engasgando com as próprias palavras.
O homem soltou um riso seco e curto.
— Dario te treinou bem. — Ele se levantou e andou para frente da mesa colocando ambas as mãos nos bolsos da calça do terno. — Não sei quais concepções têm da nossa família, e também não quero saber, mas é simples. Sou um empresário cujo negócio é o crime, não matamos primeiro, protegemos os nossos e vingamos aqueles que merecem para poderem descansar em paz.
Essa última frase soou mais baixa, quase como uma reafirmação.
— Eu mando você obedece, não questiona. Cumpra com seus deveres e sua existência será recompensada, falhe em suas funções e a consequências serão severas. Uma onda nunca quebra da mesma forma duas vezes, não existe segunda chance na casa Dellariva.
Moreno acenou e continuou escutando.
— Não gosto da ideia de colocar você perto de Neera, mas era a melhor das piores opções — o mais velho disse e se aproximou —, então se esforce para me fazer mudar de ideia. Nesse mundo, não existe nada acima da minha filha, para mim e também para você. Sua vida é minha agora e eu estou dando para ela.
Uma onda de calafrios passou pela sua coluna, mas ele preferia atribuir isso às gotas de chuva que começavam a cair, não à memória dos olhos sem fundo do falecido Mare. Nem mesmo os latidos do seu pai tinham esse impacto nele.
Quando Moreno chegou à residência principal Dellariva, ainda não havia retornado. Ele aproveitou os dias para conhecer as salas de treino e também um pouco da propriedade. A casa ficava no topo de uma encosta, com uma vista para o mar. Ele não reparou quando chegou por conta da chuva, mas com os dias limpos a brisa quente e salgada que vinha do horizonte preenchia os corredores da mansão.
Conti, o primo de seu pai, o encontrou no dia seguinte e deu um breve tour pelos prédios e salas que ele tinha permissão para circular e também uma série de conselhos sobre como sobreviver. Hora ou outra ele pegava um olhar distante e pesaroso em seu parente, ele não sabia na época, mas descobriu quando se tornou mais velho ser preocupação. A verdade é que o velho Conti não tinha uma personalidade que parecia ideal para aquele mundo, ele se importava demais, era gentil, mas a sua qualidade o manteve por perto. Conti sabia fazer seu trabalho como ninguém e também era o melhor farejador da família, não é à toa que conseguia até mesmo compreender os pensamentos do Moreno mais jovem.
O som de carros ligando chegou aos seus ouvidos, o fazendo pensar que a festa de associados da noite estava para acabar. Ele encontrou com antes de começar, naquela noite ela vestia um vestido de veludo escuro, vermelho como sangue e também o batom em sua boca. O tecido abraçava seus ombros pela lateral deixando todo o colo exposto, o único adorno era um colar de diamantes em volta de seu pescoço. A saia da vestimenta caía em curvas após se agarrar na cintura, terminando apenas um pouco depois do joelho.
Não importa o que era, uma roupa de grife ou uma roupa roubada em segredo do seu guarda-roupa. Ela sempre parecia ser da realeza.
Aquela altura já pensara diversas vezes que tipo de garota sua protegida era, tinha visto algumas fotos na mansão, mas quando ela era pequena. As únicas imagens que havia na casa eram quadros pintados à tinta óleo contemplando a imagem da antiga esposa do Mare e sua filha.
Ouviu conversas de outras pessoas esperando alguém mimada e esnobe, crescendo num internato longe de todos, mal voltando para casa uma vez por ano. A maioria dos seguranças com quem falou esperava que fosse alguém extremamente desagradável e cheia de acessos de raiva por bobeiras. Moreno estava preparado para lidar com a pior das situações, mas não foi isso que encontrou.
Nunca havia visto uma princesa, mas se tivesse que dizer, com certeza seria exatamente como Neera Dellariva. Mesmo aos quatorze anos andava com confiança e queixo erguido, tinha um sorriso gentil no rosto, mas adagas no olhar. A força do mar, preso numa pérola.
— Então... — Ela começou o circular enquanto na pequena sala de estar, as mãos juntas atrás das costas e um olhar curioso que a fazia ocasionalmente se inclinar em sua direção. Vestia um vestido xadrez de tons verdes e marrons com longas mangas brancas. Os cabelos presos num rabo de cavalo faziam cachos e se moviam conforme ela também andava. — Como devo te chamar?
— Como preferir — respondeu ainda mantendo a postura.
Neera fez algo parecido com um bico, desaprovando sua resposta.
— Mas você tem um nome não tem? Qual é?
Fazia muito tempo que alguém não perguntava seu nome, parecia até estranho falar em voz alta. ‘Ei’, ‘você’, eram mais comuns em sua rotina.
— Alessi — disse — Alessi Moreno.
A garota deu um passo para trás e cruzou os braços o olhando de cima a baixo
— Alessi.
Sua voz o chamou de certa forma doce, forçando a mudar o peso de perna pelo desconforto. Geralmente ele era bom em ler pessoas, mas não sabia dizer se ela estava brincando com ele ou sendo genuinamente sincera. A garota pareceu ponderar e então sorriu.
— É bonito, eu gosto. Então vamos combinar assim. — Ela levantou o dedo. — Vou te chamar de Moreno, assim nenhum dos associados ficará gastando seu nome. — Um passo foi dado à frente. — Quando te chamar de Alessi, entenda que algo aconteceu, bom, ruim ou que você precisa fazer algo para mim. É como um código, um segredo nosso.
Essa última frase foi dita num sussurro, em seguida sua mão se levantou estendo o mindinho inclinado.
— Combinado, Moreno?
O garoto levantou a mão, com incerteza, mantendo-a fechada num primeiro momento, mas em seguida curvando o dedo em volta do de Neera Dellariva.
— Sim.
Ela balançou os braços e sorriu pegando sua mão entre as delas e o puxando.
— Perfeito! Vou te apresentar a mansão, é bem grande, tem muito o que fazer, mas geralmente meu pai não me deixa ficar andando. Agora com você ao meu lado, posso praticamente ir onde quiser.
Moreno não sabia dizer se a sua função permitia que ela pegasse a sua mão, não era desrespeitoso? Afinal, ele ainda era um cão de guarda. De igual forma ele não podia soltar sua mão ou sugerir, ele era dela e Neera podia fazer o que quisesse com ele, como seu pai dissera, se pedisse para que latisse, teria que o fazer.
Seu toque era suave, para um garoto de 15 anos que apenas tinha tido contato com a aspereza e a sujeira, aquela era uma sensação diferente. Um lado dizia para soltar, mas o outro egoistamente desejou ter a mão na sua por mais algum tempo.
Neera era no geral uma garota quieta, os dias passados ao seu lado, também. A maior parte do tempo, Moreno a acompanhava em suas atividades engajando em pequenas conversas sem sentido. A princesa Dellariva parecia de certa forma interessada na sua vida de treino, sempre o perguntava sobre sua rotina e nos últimos dias estava realmente investida em descobrir o que ele gostava.
Alessi nunca teve que fazer escolhas, então não sabia dizer seus gostos e desgostos, tudo era escolhido por seus superiores. Num lugar como o que cresceu, personalidade simplesmente não era uma opção.
— O que você achou desse? — Neera apontou para um pedaço de bolo escuro de chocolate, também com uma calda de chocolate espessa e pequenas nozes caramelizadas no topo.
— Doce demais — respondeu prontamente.
— Certo, e este? — Seu dedo viajou pela mesa apontando um tortelete de limão, massa dourada, topo de marshmallow tostado e meio cremoso. Apenas de mover os olhos seguindo a mão, sua boca se encheu com um sabor doce. — Bom, só de olhar para você já sei que gosta. — A garota sorriu e se curvou sobre a pequena mesa montada no jardim, colocando mais uma das sobremesas no prato da sua companhia. O tema do dia era comida, os funcionários montaram todo tipo de delícias, salgadas e doces para que eles pudessem provar. Ou melhor, que Neera, pudesse forçar Moreno a experimentar enquanto anotava num pequeno caderno suas reações como se ele fosse uma experiência.
— Muito doce é um grande não, mas chocolate meio amargo e sobremesas com frutas parecem agradar — comentou em voz alta o progresso do seu relatório. — Gelatina foi agressivamente rejeitada.
Ela pareceu circular um ponto do papel com vontade.
— Por que você não gostou?
— É estranho — respondeu. — Trêmulo, artificialmente doce ao mesmo tempo aguado. Não dá para sentir nos dentes, mastigar. Parece algo que não deveria existir nesse mundo.
Uma risada melodiosa e alta ecoou, os olhos de Neera se fechando a ponto de trazer lágrimas aos cantos enquanto a mão se levantou para fazer mais anotações.
— Surpreendentemente falante quando comentando sobre algo que não gosta, é um avanço já que antes só aceitava qualquer coisa.
— Neera — a voz do Mare da casa ecoou pelo jardim. Moreno imediatamente se colocou de pé em respeito ao mais velho enquanto a garota apenas se virou na cadeira para olhar para o pai. — Até que hora pretende ficar brincando?
— Até onde puder — ela respondeu emburrada. — Não é como se eu tivesse muito o que fazer mesmo, já que não me deixa sair da mansão.
— Para sua segurança. — O chefe da casa, que estava acompanhado de Conti Moreno, deu um estalo de dedo e então, tudo que estava em sua frente foi rapidamente retirado. — Vá se arrumar, teremos visitas hoje. Acredito que não precise falar para que se comporte.
Sem esperar uma resposta da filha, o Mare se virou as costas e foi embora a deixando de pé no jardim apenas com o pequeno caderno de anotações nas mãos. Santina, que era alguém próxima a uma babá de Neera, se aproximou indicando que elas deveriam entrar.
A mais velha era uma mulher de aproximadamente uns 40 anos, baixa, de bochechas rechonchudas rosadas, cabelos curtos ondulados de tom avermelhado e relativamente simpática. Logo no primeiro dia ajudou Alessi a se acomodar e também a organizar o punhado de roupas que tinha.
— Moreno, me espere aqui — disse Neera, não tão feliz quanto poucos minutos atrás. A mão livre segurou a de Santina e as duas desapareceram do jardim para dentro da mansão.
Com as mãos juntas atrás das costas como um soldado, ele aguardou, como ordenado. O fim da tarde passou, ocasionalmente Moreno dava um passo para o lado para movimentar o corpo, mas eventualmente voltava para a posição exata de quando Neera se afastou. A tarde virou noite e o céu, antes levemente nublado, foi tomado por nuvens de chuva.
Parado, no quase escuro, Moreno ainda se mantinha na mesma posição, encharcado dos pés a cabeça, sem ter onde se proteger, sem ter um guarda-chuva, suas mãos estavam geladas e gotas se juntavam escorrendo por seu rosto. As vestes estavam pesadas e tudo que parecia conseguir sentir era o cheiro ao seu redor de terra molhada. Seus músculos tremiam pelas condições extremas e ainda que no frio sua pele parecia quente. Pequenos redemoinhos brancos se faziam quando respirava, mas parecia ficar cada vez mais difícil o pulmão se enchendo num ritmo descompassado.
Seus olhos estavam quase se fechando quando sentiu a chuva cessar, não porque o céu terminara de chorar, mas porque alguém se aproximou dele com um guarda-chuva. Moreno tentou forçar a olhar quem era, sem sucesso. Uma toalha que parecia aquecida, envolveu seu rosto o fazendo inclinar ainda mais sobre o tecido.
— Disse para me esperar aqui e assim você o fez. — A toalha se moveu envolvendo seu pescoço e cabelo. Um cheiro doce envolvendo sua mente de uma forma quase intoxicante. — Bom garoto. Obedecer é vital, mas não faça nada que coloque sua vida em risco a troco de nada, isso é uma ordem Alessi. É meu guarda, e precisa de permissão até mesmo para morrer.
Quando seu nome foi chamado, seus olhos se abriram para encontrar Neera, a imagem perfeita com a alma feita de caos. Tolo aqueles que a tomam como ingênua, mesmo por pequenas palavras jogadas nos corredores, Neera conseguia descobrir todos os segredos que “crianças” supostamente não deveriam ouvir. Bastava um sorriso, uma palavra boba e todos estavam dançando na palma da sua mão. Articulada, nenhuma das suas ações eram impensadas, ele sabia disso, quase podia sentir o cheiro da sua ambição na ponta do nariz.
— Entendido.
Ela suspirou e puxou seu braço pela manga molhada, quando chegaram aos degraus da mansão, onde o teto alto os protegia, a mais nova soltou o guarda-chuva usando ambas as mãos para esfregar a toalha em sua cabeça e tirar um pouco da água que tinha nos fios.
— Será muita sorte se não ficar doente — reclamou. — Santi! Preciso de ajuda.
A babá não respondeu, mas Moreno escutou os sons de seus sapatos se aproximando.
— Ajude Moreno a se arrumar — pediu. — O jantar vai acontecer em breve e finalmente consegui permissão do meu pai para ter companhia. Essa é uma noite importante.
— Perfeito, senhorita. Venha jovem. Vamos te livrar dessas roupas molhadas e tomar um banho quente.
Com a toalha ainda sobre os ombros, Alessi tomou um momento para olhar para trás, Neera apenas fez um gesto com a mão indicando para ele ir logo. Sua garganta estava arranhando, pareceu por um momento até ter dificuldade para falar. Porém, mesmo com voz baixa, perguntou à mulher ao seu lado com curiosidade.
— Por que hoje é uma noite importante?
Santina olhou para ele com certa surpresa e em seguida segurou em ambos os ombros o guiando pelos corredores. Um breve, e ligeiramente triste sorriso apareceu em seu rosto.
— É seu primeiro Natal.
Igual aquele dia, essa noite é Natal e suas vestes também estavam encharcadas. A diferença é que dessa vez, ele escolheu deliberadamente ficar na chuva. Já não era um garoto franzino sem carne nos ossos, um pouco de água fria não faria nada.
Sua cabeça pendeu para trás, as pequenas lâminas geladas batendo em seu rosto como pequenas agulhas, mas ele não ligava. Precisava daquilo, daquela dor, para se lembrar de si e de tudo que passou ao longo dos anos, podia estar ao lado da “Mare” de diversas formas e interpretações, porém ainda era um cão de guarda.
Uma risada seca deixou sua boca com tons de sarcasmo.
— O que você diria se me visse agora, Dario? Esse filhote que você criou fez muito mais do que latir a pedido da dona.
O antigo chefe Moreno faleceu quando Alessi completou dezoito anos, ao contrário do esperado pelos anos de fumo e envolvimento com o crime, faleceu de um mal súbito enquanto nas Maldivas durante as férias com sua quinta esposa, vinte cinco anos mais nova. Parecia piada como ele costumava ter tanta vontade de ser aceito por um velho arruaceiro como ele, sempre querendo raça quando não passava de um vira-lata.
De repente o caminho de pedras se iluminou e nas costas da residência uma luz acendeu iluminando uma silhueta de curvas conhecidas. Alessi levantou, andou até a porta dos fundos apenas para ser recebido pela própria dona de seus pensamentos.
— Eu já não disse para você se cuidar? — Apesar da careta, provavelmente por ele estar molhado, havia um tom jocoso que puxou o canto de seus lábios para cima. Nas mãos a mulher tinha uma toalha que foi jogada por cima de sua cabeça, o trazendo para perto pelo pescoço. se manteve em silêncio tirando o excesso de água dos fios de cabelo.
— Acredite ou não, é uma forma de terapia. — Ele fechou os olhos por um momento, o cheiro do perfume dela invadindo seu sistema quase como um entorpecente.
A Mare riu batendo a toalha de leve em seu rosto.
— Você sempre foi um pouco estranho, posso saber que tipo de terapia é?
Era uma ordem, escondida numa pergunta. Moreno colocou as mãos por cima das dela, sentindo a pele quente contra a sua, tirando dos dedos o tecido felpudo a mantendo apoiada no pescoço enquanto arrumava os fios bagunçados. A chuva ainda caia além da varanda com raios desenhados em luz iluminando os céus, e criando uma sinfonia de sons do lado de fora.
— Me lembra quem eu sou. — respondeu sem ser uma completa mentira, ou verdade.
Com aquela resposta ele viu a sobrancelha de se levantar, de leve, em questionamento, em seguida a língua viajou pelas curvas dos seus lábios enquanto seu corpo deu um passo à frente espalmando as mãos na camisa molhada. Seu toque parecia queimar mesmo através do tecido, como se a pele fosse forçada a brasa.
— E quem você é?
Sua voz baixa aveludada, carregada de uma luxúria latente, acariciou seus ouvidos como pequenas garras, correndo pela sua nuca e levando arrepios para a base da sua coluna. Foi difícil engolir e recuperar sua voz com ela tão perto, também parecia incapacitado de sair da prisão que eram seus olhos.
— Seu cão de guarda, Mare. — respondeu.
Um sorriso e então uma risada.
— Bom garoto, mas sabe que é mais que isso. — As pontas dos dedos dela se rastejavam subindo pela sua camisa até segurar as pontas da toalha e o forçar para baixo com a boca praticamente sobre a sua — Vamos livrar você de toda essa roupa molhada, Alessi.
o beijou como sempre fazia, dominante querendo mais de sua boca e Moreno retribuiu sua intensidade sentindo na língua o gosto de vinho. “O mar”, era a definição perfeita para ela, com todas as ondas presas nas curvas do seu corpo, dias de calmaria em maré baixa, uma força arrebatadora em tempestade e segredos tão profundos que ele sequer se atrevia querer desvendar. Completamente imprevisível e ainda assim uma das visões mais lindas que já tinha visto.
— Feliz natal. — Ele não ousou dizer o nome dela.
— Para você também.
O paletó carregado e pesado pela chuva caiu ali mesmo e, pela toalha, a chefe da família Dellariva o puxou para dentro. Não resistiu, não tinha esse desejo, como desde o primeiro dia, o tinha envolto na mão uma alça de coleira, onde Alessi Moreno estava preso na outra ponta. Em certos dias ele clamava por mais, outros se achava um tolo por sonhar. Naquela noite de festividades estava apenas preso numa amarga realidade.
Ele tinha um coração faminto.
Alguém que conheceu do início apenas a indiferença, obediência e servidão – como ele –, anseia, mesmo que inconscientemente, por afeto. E quando o encontra, não importa se é verdadeiro ou não, se devota, se entrega e se alimenta do que estiver à sua frente, mesmo que isso seja um veneno.