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Codificada por vênus. 🛰️
Atualizada em: 28.12.2024.

It's only love, it ain't official
No expectations, only here and now
Baby, we're in this thing together
You and I don't feel like the wrong thing, yeah


(POV )


— Emma, como se diz “vai pro inferno” em havaiano?
23:50, 31 de dezembro de 2024. Às margens do oceano Pacífico, num luxuoso restaurante à beira-mar da belíssima ilha de Oahu, minha melhor amiga riu da minha cara.
— Por que você não manda ele se foder como uma pessoa normal, ?
— Você sabe que eu não falo palavrão.
Eu não falava. E eu também não bebia, não usava drogas ou passava do meu horário de dormir — às 21 horas, religiosamente, salvo ocasiões especiais como a virada de ano. A única grande loucura que eu tinha feito na vida era ter me casado aos 23 anos e ter confiado num homem que jurou me amar e me respeitar até que a morte nos separasse.
Infelizmente, ele não morreu.
Eu também não, mas cheguei bem perto.
E acabou que nem foi a morte que nos separou, a não ser que a morte fosse uma secretária fácil que atendia também pelo nome de Sandra e enviava fotos sensuais com legendas de baixíssimo calão. O que aconteceu depois disso é fácil de deduzir: barraco armado, choradeira, perda de peso e tudo acabando numa audiência com o papel do divórcio assinado e cada um pro seu lado. Aí eu me dei três meses para chorar, para viver o luto na sua forma mais intensa e me afundar de corpo e alma no meu período de autoflagelação. Então, depois da vergonha e da enxurrada de pessoas saindo de todos os buracos para me perguntar o que tinha acontecido, eu enfim saí da fossa e fui começar a viver a minha vida.
Começar. Aos trinta e poucos de idade
Enfim, antes tarde do que nunca, certo?
A primeira atualização de sistema que eu instalei na versão 3.2 foi aprender a dizer sim. Sim para aquela entrevista de emprego numa contadora melhor; sim para aquelas aulas de polca que uma colega falou que eram a coisa mais divertida do mundo; sim para o show do System Of A Down; sim para a Emma me chamando para passar uns dias com ela no paraíso onde ela morava, Honolulu, no Hawaii…
Eu disse sim para todas as opções anteriores, mas a última veio acompanhada de uma risadinha — com todo o respeito, é que Honolulu era um nome engraçadinho de um jeito adorável — e uma dose maior de excitação. O convite tinha vindo em excelente hora, primeiro porque Emma, a colega de quarto de faculdade que o tempo transformou na minha irmã de outra mãe, era exatamente o tipo de personalidade intempestiva que eu estava precisando ter por perto, além de ser divertida, efusiva e ter um dom natural para me distrair das minhas remoídas dores de corna. Segundo porque eu enfim tinha pedido minha demissão e queria dar um destino mais “irresponsável” para a grana da rescisão que eu consegui no acordo. Meu apê era meu, todo equipadinho, meu carro era ok, meu plano funerário estava pago e eu tinha um seguro de vida. Podia arriscar uma passagem aérea e uma entrada no luau excêntrico do restaurante chique que Emma sugeriu (depois de fazê-la me garantir que o tal luau não era nenhuma seita ou ritual satânico para sugar minha alma).
Embora o rumo que a minha alma teria no além não fosse uma preocupação no momento, a ideia de tê-la tomada de mim justo na hora em que eu decidi viver de verdade era, no mínimo, assustadora. Eu não costumava pensar muito nesses assuntos, mas havia algo sobre o evento “final de ano” que fazia eu me questionar sobre tudo e mais um pouco, principalmente quando o dito evento acontecia no limite entre as águas clarinhas e o ar respirável e quentinho de Honolulu. O horizonte lá bem depois do mar, numa linha que ninguém sabia onde terminava, transmitia uma sensação revigorante, uma espécie de inspiração sobrenatural que me fazia vislumbrar os caminhos que eu poderia tomar no ano que estava para nascer. Faltando apenas alguns minutos para a meia-noite, alguma coisa parecida com esperança rebentou lá dentro de mim, incitada por aquela vontade coletiva e generalizada de mudança que começa a batucar junto com os fogos de artifício, um sentimento de congraçamento universal que faz a gente desejar um ano novo, literalmente.
Sim, um ano novo, por favor.
Não tinha estabelecido metas, mas de uma coisa eu sabia: eu estava farta de lamentar a minha situação e repassar todos os detalhes que poderiam apontar a causa da traição sofrida. Assim, a única promessa que eu fiz a mim mesma foi a de me lembrar que não valia a pena investir tanta energia em entender o que não tinha explicação. O que não tinha remédio, remediado estava. A pouca disposição que me restava, eu precisava concentrar em me refazer, porque depois de tanto tempo vivendo em função de outra pessoa, eu não fazia mais ideia de quem eu era.
Também não era como se eu tivesse que começar tudo do zero, eu já tinha feito algumas descobertas bem surpreendentes sobre mim mesma. Por exemplo, um dia desses eu mordi uma azeitona por acidente num pastel de carne e descobri que eu gostava de azeitona, coisa que eu rejeitava sem sequer provar simplesmente porque não ia com a cara dela, toda verdona e inchada com um caroço dentro. E também porque o falecido (vocativo inusitado que Emma achou para o meu ex-marido) era alérgico, o que barrou a entrada das azeitonas na minha vida por muito tempo. Até que, numa fila de pastelaria, contemplando a massa aberta com a marca dos meus dentes numa mão e uma latinha de Coca na outra, eu fui acometida de uma epifania e tive uma crise existencial: quantas azeitonas eu tinha perdido na vida? Quantas coisas eu recusei sem experimentar? Quantas outras eu achava que não gostava, mas, na verdade, só tinha sido induzida a não gostar? Quanto de mim era meu e quanto de mim foi ele que roubou?
Assim, com a grande azeitona catalisadora, começou a minha jornada de autoconhecimento. Aprendi que eu gostava da minha solitude, de dormir atravessada na cama, de fazer minha comida preferida só para mim, de escutar minha música favorita no volume máximo (Jaded, do Aerosmith, me esgoelando junto com o Steven Tyler). Só tinha uma atividade que precisava ser feita a dois (ou mais, mas uma coisa de cada vez) e, depois de alguns meses separada, eu comecei a sentir falta dela. Não que o sexo conjugal fosse a melhor coisa do mundo, era tudo sempre para ele e eu fazia todo o trabalho pesado, pois, quem diria, o homem errado conseguia transformar o sonho do casamento em mais uma invenção projetada para atender ao ideal da mente masculina derretida de tanto consumir pornô.
O fato é que a desilusão amorosa foi tamanha que me lançou num estado de preguiça e apatia que me impedia de ir à luta, marcar um encontro, tentar me dar bem. Para ser bem sincera, eu ainda não estava nem na fase de me sentir bonita de novo, o que era humilhante. Eu estava na fase de remoer cruelmente a maldição que meu ex-marido me lançou quando eu exigi o divórcio:
Quem além de mim vai querer você?
Ele estava certo? Quem ia querer aquele resto de mulher? Quem ia olhar pra uma moça velha nos seus 32 anos, seus óculos cada vez mais grossos e seus instrumentos de corda sem graça?
Ah, é. O adicional do combo entediante da contadora desempregada e divorciada era o hobby mais chato da face da Terra: eu tocava violoncelo.
Não lembro quando começou o meu encanto pelo instrumento pouco popular, lembro apenas que eu era muito pequena e achava o som fantástico. Meus pais estranharam, disseram que eu deveria escolher uma coisa menos parecida com um enxame de abelhas, mas a comparação só me fez achar tudo ainda mais legal, porque me levou a acreditar que realmente existiam lindos insetos listrados dentro do violoncelo esperando a ordem das cordas. Imagina reger um monte de abelhinhas, fazê-las zumbir harmonicamente a música que eu quisesse? Era o máximo. O piano tinha algum bicho dentro? Não. Bati o pé, quis o violoncelo, e o primeiro que eu ganhei depois de muita insistência era quase do meu tamanho.
Depois que eu cresci, o violoncelo já não era mais tão maior do que eu, e também não era mais tão mágico, uma vez que o senhor Davis fez questão de desfazer o meu equívoco quanto às abelhas musicais dentro dele já na primeira aula (coisa, diga-se de passagem, muito dura para se fazer com uma garotinha de 10 anos de idade). Felizmente, a descrença do meu instrutor na minha metáfora não me abalou e eu segui firme no meu propósito de desvendar aquele som, cada vez mais fascinada pelas possibilidades escondidas nas quatro cordinhas, testando todas as combinações entre elas, percorrendo com meus dedinhos pequenos o encordoamento e causando alguns pequenos acidentes com o arco, como o dia em que eu quase ceguei o colega que sentava perto de mim (onde quer que esteja, Dougie Smith, eu sinto muito, o tapa-olho ficou bem legal em você).
Demorou alguns anos, mas eu consegui manusear o celo e tirar dele minha primeira nota limpinha, aguda, firme... Depois outra, e mais outra, até juntar várias delas e tocar uma peça inteira. O senhor Davis fazia careta para algumas partes, me mandava “fortalecer o punho”, e meu cérebro em desenvolvimento entendia que aquilo significava que eu deveria esmurrar alguém (talvez Dougie Smith, que continuava ali do meu lado, mas agora com um bigode pré-adolescente que ele tentou por diversas vezes levar para conhecer a minha boca). Mais um engano rapidamente desfeito pelo professor, que largou o violoncelo dele no chão e correu para me tirar de cima do pobre aluno.
O episódio nostálgico me fez estalar os dedos e me trouxe de volta à realidade. Havia um acessório nas minhas mãos que não deveria mais estar ali. No meu anelar esquerdo, a aliança de ouro ainda brilhava, estúpida e inútil. Tive raiva dela. Tive raiva dele. Tive raiva da lambisgoia de lábios de silicone por quem ele me trocou. E tive raiva de mim também, por ter sido tão…
— Burra! — esbravejei de repente, chamando a atenção de Emma e de uma madame que estava por ali na beira da praia, segurando uma taça de champanhe caro.
— Pois não, querida? — a senhora embriagada demais para me entender achou que eu estivesse falando com ela.
— Nada não, mahalo aí pra senhora. — tirei meu colar de flores e coloquei no pescoço da desconhecida na tentativa de amenizar a gafe. Emma tinha me ensinado que o “lei” (nome havaiano do famoso colar) simbolizava acordos de paz entre as antigas tribos e eu andava distribuindo os meus por aí sempre que esbarrava em alguém. — Emma, vem. Eu quero entrar na água.
Recebi uma cara de ponto de interrogação em resposta.
— Água, ó. — repeti, chutando a cama fina da onda que quebrava mansinha sob meus pés descalços. — H2O e sal. E talvez outras coisas como xixi de outras pessoas e, sei lá, resíduos plásticos?
— Eu espero que não, a economia toda gira em torno do turismo, as pessoas vão parar de vir se a água ficar amarela de urina e cheia de sacola boiando.
— Tá, que seja, eu quero dar um mergulho. — tirei os óculos, estendendo-os para Emma com um pedido implícito para que ela cuidasse deles como se fossem a sua própria vida.
— E você vai ficar igual a um pinto molhado pelo resto da noite, gênia? — ela aceitou o objeto.
— A gente tá numa ilha tropical, é quase uma estufa natural aqui, eu vou secar rapidinho. — falei enquanto tateava por mim mesma, removendo dos meus bolsos todos os objetos de valor, que, no caso, eram apenas um celular, já que a bolsa estava sã e salva no lounge. — Eu te vejo em 2025.
— Doida. Vê se não morre, tá?
Caminhei em direção à água morna, que logo começou a cobrir meu tornozelo, chegando rapidamente às minhas coxas e à cintura. Quando o nível se igualou ao meu peito e o chão ficou um pouco mais difícil de alcançar, dei um empuxo para baixo e estiquei os dedos dos pés como garras, sentindo o atrito com a areia fininha no fundo mar. A camisa de seda colou no meu corpo e eu espalmei as mãos imersas, brincando com a forma da água e a força que ela exercia no sentido contrário aos meus movimentos. Começaram uma contagem regressiva com a qual eu não me importei muito, porque estava ocupada deixando o cheiro de maresia inebriar minhas narinas, e aquela sensação libertadora parecia muito mais digna da minha atenção. Foi como se eu tivesse acabado de aprender a respirar.
Eu entendia agora, Kelly Clarkson de Since U Been Gone
.
Mergulhei o tronco e a cabeça, ouvindo os sons das comemorações pela entrada do ano cada vez mais abafados e distantes, e o tão aguardado 2025 chegou pra mim ali, naquele imergir simbólico no mar calmo e translúcido, de onde eu esperava tornar como uma mulher refeita. Uma mulher nova.
Voltei à superfície aliviada, tomada de uma alegria confiante. Procurei Emma na faixa de areia, ciente de que ela estava preocupada comigo, e lancei uma sequência de beijos voadores para mostrar que eu estava viva. Viva e disposta a viver, a tentar novidades, a ter primeiras vezes.
E já que tinha uma primeira vez para tudo…
— VAI SE FODER, JOSH CARTER! — gritei para o oceano a plenos pulmões e atirei a aliança com toda a violência que pude.

🌸🌊🎻


Nas manhãs seguintes, a efervescência das festas foi esmaecendo em Manoa, o bairro residencial onde Emma vivia, lugar simpático e urbanizado que quebrava sutilmente o clima de férias eternas da ilha. A rotina foi retornando aos poucos, arrastada, esperando todos se recuperarem e se habituarem novamente aos dias úteis e aos horários comerciais.
Emma não gostou nenhum pouco do início do ano letivo ter chegado tão cedo, porém, considerando que ela fazia parte do Departamento de Física Aplicada da Universidade do Hawaii como professora, faltar às próprias aulas não era uma opção.
— Geralmente eu estou em casa lá pelas 16 horas. — ela explicou enquanto abastecia um copo térmico com café. — De vez em quando aparece algum aluno querendo monitoria, mas isso só acontece perto do final do semestre, quando eles ficam desesperados pra aumentar as notas. A gente pode sair pra jantar se você estiver afim.
— Não quero abusar da sua hospitalidade, amiga. — dobrei o edredom que cobria o sofá-cama, onde Emma insistiu que eu ficasse para não ser vítima dos preços abusivos dos hotéis na alta temporada. — Já foi de grande ajuda você me convidar e me deixar ficar aqui. — espirrei assim que ouvi um barulho de patinhas contra o piso. — Pena que o Felix não concordou.
Emma pegou o seu gato de estimação no colo e a simples visão dela enfiando o nariz no pelo do bichano fazia o meu coçar e arder.
— O que foi, garoto? O que você disse? — uma pausa dramática demonstrou que ela estava traduzindo o miau miau. — Hm. Felix falou pra você tomar um antialérgico e cancelar essa passagem pra ficar mais tempo com a gente.
De repente, fui nocauteada pela ideia de voltar para casa. A minha passagem estava agendada para o outro dia por causa de um ato falho, que me levou a programar aquela folga para acabar na primeira segunda-feira do ano por causa do trabalho. Só que eu não tinha mais um trabalho. Não desde que eu tinha deixado a pilha de comprovantes de pagamento que eu deveria registrar na mesa do meu chefe junto com a minha carta de demissão.
— Eu não tenho emprego. Eu não sei pra onde ir na segunda-feira. Eu não tenho nada pra fazer. — fui pensando e me desesperando em voz alta.
— Então... Por que você não encara isso como uma oportunidade e fica mais um pouco aqui? — Emma colocou Felix de volta no chão e ele correu para esfregar seu rabinho fofo e nada hipoalergênico pelo meu pé, me fazendo espirrar novamente. — Bom, não aqui, aqui, mas aqui em Manoa. Num lugar onde você possa respirar sem ter uma crise de asma e praticar o seu violão.
— Um: eu toco violoncelo. E dois: quê? — funguei.
— Você entendeu. Eu posso te mostrar a cidade, a gente fecha um Airbnb pra você em algum condomínio pela King Street... É perto de uns bares legais e, mais importante, da loirinha aqui. — minha melhor amiga imitou o gato dela e veio se esfregar em mim, disposta a me convencer. — Fica, vai! Por favor! Imagina que barato a gente juntas por um mês inteirinho?
— Deus me livre, você e essa sua mania de grude, eu vou acabar te estrangulando.
— Você teve quatro anos para me estrangular enquanto dividimos um dormitório minúsculo na faculdade. — Emma prolongou o abraço. — Acho que é seguro ter você a algumas quadras de mim.
— Não, não dá. — saí da agarração. — Eu não posso passar um mês no Hawaii.
— Sim para tudo, lembra, Taylor?
Droga. Eu lembrava.
Passar um mês longe de casa era mais um item na lista de coisas que eu nunca tinha feito. Na verdade, até bem recentemente, eu nem tinha coragem de tomar um avião sozinha, quanto mais ficar longe do meu apartamento e das minhas plantas por tantas semanas. Às vezes me preocupava que eu só fosse capaz de sobreviver naquela atmosfera, mas os dias em Honolulu provaram o contrário, e estava ficando bem difícil resistir ao charme praiano e às constantes chuvas de verão que deixavam um arco-íris no céu manhã sim, manhã não. Mesmo que eu estivesse com um estoque limitado de roupas, pelo menos o meu violoncelo estava comigo, e as minhas plantas, bom, eu poderia confiar na boa vontade da minha vizinha para regá-las. A senhora de 60 e poucos que ela era dispunha de bastante tempo livre entre o bingo e as aulas de hidroginástica, o que, não ironicamente, era um retrato do meu futuro próximo. E foi essa constatação triste e premonitória que me fez acender uma faísca de empolgação com a proposta de Emma.
Prolongar minha estadia em Honolulu não soava como o pior plano do mundo.
— Tá, digamos que eu fique. Não tô com tanto dinheiro assim. Eu vou fazer o quê? Dançar a hula em algum hotel?
— Com esse seu quadril travado de velha com reumatismo, definitivamente, não. — Emma voltou para a mesa da sala de estar e analisou distraidamente alguns papéis, arrumando-os na sua pasta junto com livros volumosos. Ao lado da pilha, a case do meu celo, encostada numa parede, foi notada por ela. — Você pode dar aulas de violino!
— Não posso, porque eu toco violoncelo. — corrigi.
— Dá no mesmo. — ela deu de ombros e voltou a ler os papéis.
— Não, não dá. O celo-
— Ia cair como uma luva na minha aula de hoje! — ela agitou uma folha no ar. — Olha o meu cronograma! — Emma me atropelou e meteu as letrinhas miúdas na minha vista míope, apontando com o cantinho da unha uma única linha. — Vamos estudar o capítulo sobre a propagação de ondas sonoras! É a desculpa perfeita pra você tocar seu violão!
— Violoncelo.
— Tanto faz! O importante é que você vai ter uma plateia e vai poder deixar um anúncio de aulas particulares no flanelógrafo! Você ainda tem aqueles cartões de contato?
— Devo ter uns dez, na minha carteira…
— Vai servir. — ela concluiu simplista, como se tudo pudesse se arranjar assim, num passe de mágica. — Se você conseguir ao menos um aluno, já está de bom tamanho.
— Duvido muito que a garotada cheia de festas de fraternidade pra ir e virgindades pra perder vá se interessar por aulas de violoncelo.
— Eles vão depois que te virem tocando na minha aula. — Emma bateu palmas, orgulhosa da estratégia que bolou. — Além do mais, é a turma do primeiro semestre, eles têm muita energia. Quem sabe a sua música pode acalmá-los.
— Eu não sou encantadora de crianças. — me ofendi. — Se você quer matar tempo na sua aula, chama uma babá, bota as crianças na brinquedoteca, sei lá.
— É isso que você pensa que eu faço? — foi a vez de Emma se ofender. — Eu sou professora universitária, . Todos os meus alunos são maiores de idade!
— E ainda assim você quer que eu vá dar um show para os baixinhos.
— Você mesma comentou que estava tentando se reencontrar, descobrir o que você gosta. Eu tô te oferecendo os minutos finais da minha aula e um público. E eles vão ser obrigados a te ouvir, se eles saírem de sala sem a minha autorização, perdem pontos por indisciplina.
Dizer que eu “comentei” que queria me reencontrar foi um baita eufemismo da parte da minha melhor amiga, porque o que rolou mesmo foi um discurso de mais de 4 horas via FaceTime que Emma ouviu e acolheu pacientemente, embora tenha bocejado em vários pontos que eu repeti. Agora era ela quem estava ali, fazendo o que só irmãs de alma sabiam fazer uma pela outra: confrontar em amor e desafiar a pôr em prática toda a falação feminista de autocuidado que a gente gostava de reproduzir, especialmente em momentos como o pós-chifre, que fervia dentro de nós mulheres o desejo genuíno pela morte de todos os indivíduos do sexo oposto. Ela estava usando meus argumentos e minha indignação como motor de ação para me obrigar a me mover.
Estava funcionando.
— Ok. — suspirei, derrotada. — Eu passo na creche.
— Eu trabalho na uni-ver-si-da-de. — Emma enfatizou.
— E eu toco vio-lon-ce-lo. — devolvi na mesma moeda e entrei no banheiro para me arrumar.

🌸🌊🎻


Esperar que Emma terminasse de explicar todos os conceitos físicos que passavam nos seus slides equivaleu a assistir a grama crescer. Do lado de fora do auditório, eu, meu All Star e meu violoncelo aguardamos o anúncio da nossa grande estreia, procurando enganar o nervosismo jogando Candy Crush no celular — mas sem o som das pedrinhas explodindo, porque a capacidade de concentração das crianças era baixa e qualquer atividade no mundo exterior era um pretexto para dispersar os filhotinhos de humanos.
Alguns deles pareciam mesmo filhotinhos, aproveitando o banho de sol que se estendia graciosamente por todo o campus, cercado de montanhas e cheio de áreas em comum ao ar livre. As árvores altas e as flores vibrantes se misturavam aos salões modernos onde aconteciam as aulas e aos edifícios estudantis, onde certamente aconteciam coisas mais interessantes, como beijos trocados, filmes assistidos numa tela de notebook debaixo de um cobertor e fofocas sobre professores e líderes de torcida sendo espalhadas pelos corredores. O lugar todo efervescia juventude pelos quatro cantos e o simples contato com aquele ambiente cheio de futuro me fez um certo bem.
Eu podia até dizer que estava animada para tocar música clássica para uma plateia de 40 pessoinhas.
— Ei, Chopin! — Emma me chamou baixinho, escorada na porta do auditório e com metade do corpo ainda lá dentro. — Sua vez de derreter mentes. Eu vou te apresentar agora.
— Eu não preciso falar nada, né? — levantei, atônita. — Só colocar eles pra dormir e ir embora, certo?
Emma, ou como ela era tratada na universidade, senhorita Williams, meneou a cabeça e sorriu, fazendo um gesto com as mãos que autorizou a minha entrada. Todas as cabecinhas curiosas se levantaram ao mesmo tempo assim que apareci e eu fui estudada pela pequena multidão, que cochichava e fazia suposições sobre o que uma mulher com cara de instrumentista estaria fazendo no meio de uma aula de física avançada.
— Pessoal, esta é minha amiga, a senhorita Taylor. — ela me anunciou com a voz formal de professora que saía quando ela estava na personagem. — A senhorita Taylor aceitou meu convite para demonstrar empiricamente a propagação das ondas sonoras através de uma pequena peça musical que ela preparou para nós. Peço que durante a apresentação procurem observar os aspectos da acústica que discutimos e como eles se aplicam às cordas da viola.
— É violoncelo!
Oh-oh. Falei alto demais.
Risadinhas tímidas explodiram, mas não deu tempo de me envergonhar pela mancada, pois um discreto som de aplausos encobriu o “tanto faz” típico de Emma. As palmas fizeram mais que aliviar o clima e acabaram acordando um aluno na última fileira, que saltou do assento desnorteado, aplaudindo junto sem saber o quê.
O rapaz olhou para os lados como se esperasse um trem e precisou entender sozinho quem eu era e o que eu estava prestes a fazer, o que, para a sorte dele, ficou bem óbvio quando eu abri a caixa forrada e tirei o violoncelo de lá. Emma puxou uma cadeira sem braços e posicionou ao meu lado, e eu precisei sentar depressa para conter minhas pernas bambas, fenômeno que acontecia sempre que eu era o alvo de muitos olhares, especialmente o do moço dorminhoco, que agora estava completamente desperto e parecia bem interessado, descendo alguns degraus para me ver mais de perto.
Muito de perto. Tipo, na primeira fileira.
Talvez tivesse resto de pasta de dente na minha cara ou outra coisa que o fizesse querer filmar e mandar para os amigos rirem junto.
Passei as mãos pelo rosto mesmo sem saber se havia algo errado com ele e joguei os cabelos para trás dos ombros. Uma mudez generalizada de expectativa preencheu o local e foi quebrada pelo meu primeiro acorde. Que eu toquei errado.
— Desculpem. — balbuciei. — O celo é um pouco temperamental, leva um tempinho pra afinar.
— Tudo bem. — o soneca murmurou pequenininho, em tom de incentivo. — A gente espera.
Meus olhos foram direto para as mãos que ele usou para coçar os joelhos, expostos por um jeans rasgado, e eu até queria reparar em mais coisas (por exemplo, ele também estava de All Star, o calçado clássico e atemporal, e usava uma camisa de banda por baixo do blusão xadrez que eu achava que era do HIM), mas as mãos enormes e brancas pairando ali nas pernas compridas já eram desafio suficiente para a minha capacidade de concentração. Felizmente, minha miopia não me deixou enxergar muito mais além daquilo, então eu abandonei a fisionomia borrada que prometia ser muito bonita e voltei a encarar a haste do violoncelo.
Deslizei o arco novamente pela corda média e, a partir daí, a sinfonia se desenrolou sem maiores problemas. Emma tinha me pedido “qualquer clássico aí” e eu aproveitei a indiferença dela para surpreendê-la tocando a abertura da sua série favorita: Game Of Thrones.
Não foi o que se podia chamar de um estímulo ao desenvolvimento do córtex pré-frontal, como as peças de Mozart faziam nos bebês, mas serviu para deixar o berçário inteiro investido e cativado pela música.
— Fogo e sangue! — um entusiasta da casa dos Targaryen gritou ao final do solo e puxou mais aplausos.
— Vibração e ondas transversais, na verdade! — Emma arrematou, também batendo palmas. — Como podem ver, a física está em todas as coisas. Inclusive no artigo que vocês vão ter que ler para a próxima aula. Obrigada, senhorita Taylor, pela sua valiosa contribuição. — mais algumas palminhas. — Classe dispensada!
Os alunos foram saindo como formiguinhas, alguns deles me cumprimentanto com acenos, outros, mais afoitos para se verem livres da Emma, passavam direto, e ainda mais uns que, por mais incrível que fosse, queriam saber mais sobre ondas e amplitudes, tirando dúvidas com a minha melhor amiga. Enquanto ela cumpria seu nobre papel de guiar cérebros fresquinhos sedentos por conhecimento, eu me peguei perguntando onde andaria o cochileiro das galáxias.
Ri sozinha do meu trocadilho ridículo. As piadas infames eram uma prova incontestável de que eu tinha mesmo 32 anos.
— Você foi brilhante! — Emma enfim se livrou dos seus pupilos e me deu mais um abraço. — Conseguiu até acordar o Huening Kai!
— Quem?
— Meu pequeno gênio. — ela começou a juntar suas coisas. — É um dos meus melhores alunos, mas tem o péssimo hábito de dormir durante as aulas.
— É porque as suas aulas são chatas pra dedéu. — coloquei o violoncelo de volta no estojo. — E isso vindo de mim!
— É porque ele tem uma banda. — Emma esclareceu. — Uma banda de punk rock indie, eu sei lá o quê. — ela foi arriscando. — Ensaiam em uns horários malucos e fazem o Kai acabar dormindo quando não deve.
Abri a boca num semicírculo. O anjo adormecido tinha uma banda, claro. A atitude subversiva de cochilar durante uma aula que custava milhares de dólares anuais só podia vir de um espírito adolescente atormentado pelo rock n roll. E explicava também porque ele estava tão empenhado em ouvir o celo de perto: ele gostava de música.
— Aposto que os pais dele estão muito felizes em pagar rios de dinheiro numa universidade cara para o príncipe ter seu soninho da beleza. — levantei a case pela alça lateral e começamos a andar para fora do auditório.
— Aí é que está, eles não pagam. O Kai é bolsista por honra ao mérito. Ele faz dormindo o que metade dos meus alunos não faz acordado. — Emma foi me mostrando as direções até o flanelógrafo do campus. — O menino é um prodígio.
— Tá, tá, você descobriu o próximo Stephen Hawking. — paramos na frente de um quadro enorme de avisos e eu pus o celo no chão, visualizando um espaço para os meus cartões de contato. — É melhor você aprender direitinho qual o estilo musical da banda dele, pode ser que alguém te procure pra escrever uma biografia quando ele ganhar o Nobel.
— Hilária. — Emma acusou. — Eu preciso reservar o laboratório para a próxima aula, é rapidinho. Me espera aqui e vê se não fura o olho de ninguém com a sua varetinha.
— O nome técnico é arco. — ajustei meus óculos na ponte do nariz. — Mas eu vou perdoar a sua implicância porque eu sei que você só está com ciúme dos seus alunos terem gostado mais de mim.
— Eu não posso te mostrar o dedo do meio agora, então imagine que eu estou fazendo isso. — Emma começou a se afastar.
Suspirei para o quadro na minha frente, lendo no modo dinâmico todos os meus “concorrentes”: audições para o time de futebol, panfletos de festas, avisos de “procura-se colega de quarto” e uma pessoa ou outra oferecendo revisão de trabalhos acadêmicos e monitorias — ou seja, ninguém pensando em dar aula de instrumento nenhum. O mais perto disso era o comunicado sobre o local de ensaio da turma de artes, o que significava que a lei da oferta e da procura poderia funcionar divinamente, pois ninguém tinha anunciado o mesmo serviço que eu; ou desastrosamente, porque, fala sério, quem ia querer pagar pra ter aulas de uma coisa que tinha som de abelha? Emma e seu otimismo incurável beiravam a ingenuidade às vezes.
Apesar de achar ridículo pendurar meus tristes cartõezinhos com a palavra “contadora” riscada de caneta e “aulas de violoncelo” escrito por cima de um jeito muito torto e pouco apresentável, foi o que eu fiz. Tirei um bolo com doze unidades da carteira e fui colocando no bolso de plástico do flanelógrafo um por um, sem a menor fé de que aquilo ia dar certo. Minha vontade era riscar também o “Carter” do lado do “” e corrigir para “Taylor”, mas a poluição visual já estava grande demais e outra rasura anularia os 10% de credibilidade que os cartões ainda tinham.
Restava um único cartão a ser depositado quando uma voz grave foi ecoando ao longe, trazendo junto uma figura esguia e familiar.
— Ei! Moça!
Moça?
Virei na direção da voz e reconheci o emblema do HIM estampado, revelado pelo vento batendo contra o blusão. O rapaz veio até mim correndo, com a mão direita ocupada por duas baquetas e um cabo de som enrolado, uma case de baixo na esquerda e mais uma, de guitarra, pendurada transversalmente nas costas com a alça marcando o meio do peito. Um peito bem extenso. E um rapaz bem alto. Muito alto. Por que os jovens agora eram tão altos? O que estavam colocando no leite das crianças?
O cabelo preto e comprido parecia não ver um pente há vários dias, mas ainda assim, caía graciosamente pela testa alva, causando um contraste surpreendente entre a cor negra dos fios e a tonalidade pálida da pele. A boca, sobressalente e rosadinha, arquejava curto, acertando a respiração acelerada pela corrida. Soneca estacionou a si mesmo a poucos passos de mim e ficou parado por uns bons segundos, me recompensando por tudo que eu não consegui ver da primeira vez e me causando uma admiração instantânea. O garoto tinha vindo direto do olimpo, era esculpido pelos deuses.
Quis responder um oi, mas mudei de ideia no caminho e decidi dizer “olá”, então os dois acabaram se embolando e viraram um “oilá” que fez ele sorrir dentes perfeitos. Aliás, tudo nele era perfeito. Até as marcas de olheiras ficavam charmosas no rostinho de porcelana, conferiam aquele quê de rebeldia de quem não respeitava o horário de dormir, uma indiferença blasé e charmosa, como se nada no mundo fosse digno da sua atenção.
Mas ele prestou atenção em mim.
— Oi! — ofegou. — Eu sou o Kai. Eu vi você na aula da senhora Williams. Você foi incrível!
— Oh, obrigada. — enrubesci. — Espero não ter atrapalhado o seu cochilo.
Kai deu um meio sorriso labial enigmático.
Eu perderia algumas horas de sono por você.
Aquilo foi… um flerte?
O carinha que nasceu ontem flertando comigo? Não podia ser. Eu tinha sutiãs mais velhos que aquele menino!
Das duas uma: ou eu ainda tinha sex appeal ou era algum trote. Tipo aquelas missões idiotas que os veteranos passam para os calouros em troca de uma falsa aceitação. Era a opção mais crível, no entanto, por algum resquício de vaidade delirante, eu resolvi acreditar que, sei lá, de repente o garotão tinha achado a titia ajeitadinha.
— Você pode me dar o seu cartão? — ele chegou perto o suficiente para a case do baixo roçar na minha perna. — Eu fiquei interessado. Muito interessado.
Optei por ignorar o quanto aquilo tinha soado ambíguo.
— Parece que você está todo enrolado no momento. — inclinei a cabeça, olhando para o tanto de coisa que ele carregava. — Você pega depois, tenho certeza de que ainda vai ter quando você voltar.
— Aqui, ó. — ele entreabriu a boquinha linda e bateu os dentes um no outro. — Coloca aqui.
Claro. Não seria nem um pouco estranho enfiar um cartão na boca de um adolescente.
Era inapropriado, inapropriadíssimo, no entanto, minha nova filosofia de dizer sim para tudo foi a desculpa que eu me dei para não resistir ao impulso. Em vez de mandá-lo passear ou dizer para ele procurar alguém do seu tamanho, eu encaixei o cartão na brecha mínima que ele abriu entre a arcada superior e a inferior, sentindo o ar quente que ele exalou no ato e a pontinha dos lábios resvalando sutilmente pelos meus dedos quando ele mordeu o cartão.
— Obrigado. — ele falou com dificuldade. — Eu vou te ligar. Pode esperar.
E piscou pra mim. De um jeito que me deu palpitações.
É claro que ele não ligaria. E é claro que ele não estava tentando me cantar.
Mas era bom saber que eu não estava morta por dentro.

🌸🌊🎻


Contrariando minhas próprias expectativas, Huening Kai me ligou no mesmo dia. E no dia seguinte. E no dia seguinte ao dia seguinte, até chegar o dia em que eu finalmente tinha um lugar para dar as aulas.
Consegui um apartamento pequeno num condomínio perto da casa da Emma, indicação de uma colega dela da universidade, que deixou o lugar sublocado para morar na casa própria, prêmio que veio com a sua promoção à professora catedrática. O contrato de um mês foi acertado diretamente com a proprietária, vantagem que agilizou a mudança, e em questão de dias eu, minha mala e meu celo já estávamos instalados no flat mobiliado. Segundo Emma, o edifício não tinha muitos moradores, então eu poderia dar as aulas sem ser xingada pelos vizinhos e, o mais importante, acertar o aluguel com facilidade de pagamento.
Ainda não tinha dado tempo de decidir se era uma boa ideia ou não ficar a sós com o garoto de 22 anos que me fez sentir que ainda tinha sangue correndo nas minhas veias, contudo, eu precisava do dinheiro e não houve outros alunos interessados. Kai foi o único, fez perguntas, pagou adiantado, insistiu e comemorou com uma risadinha adorável quando eu enfim marquei a primeira aula. E à medida que o horário que combinamos se aproximava, mais meu coração pulava dentro da caixa torácica. Eu nunca tinha dado aulas. E se o garoto não aprendesse nada? Ele ia pegar o dinheiro de volta e eu teria mesmo que dançar a hula para poder pagar a minha temporada muito louca em Honolulu?
Sacudi a cabeça, arrependida por ter tomado uma xícara tão grande de café quando eu já estava ansiosa, e procurei me ocupar pelos 30 minutos que antecediam a aula justamente preparando o repertório e as noções básicas para iniciantes. Escolhi algumas músicas, afinei as cordas e arrumei a pequena sala do flat do jeito mais “sério” que consegui, entretanto, a cama em que eu dormia bem visível no cômodo sem paredes e minhas calcinhas secando no varal minúsculo da sacada menor ainda tornavam a minha tentativa de manter o ambiente neutro quase impossível.
Espalhei as partituras pela mesa de centro e arrastei a poltrona para perto do micro sofá, delimitando ali o perímetro para a aula prestes a começar. O interfone tocou, anunciando a chegada pontual de Kai, e o simples mencionar daquele nome pelo porteiro me fez achar que a história de dizer sim para tudo estava começando a ir longe demais. Ou talvez eu estivesse apenas sendo neurótica e dando muita importância a uma cantada barata que ele nem deveria se lembrar que tinha feito.
Autorizei a entrada e deixei a porta aberta para ouvir quando o elevador chegasse, o que não demoraria tanto por se tratar de um prédio com seis andares. O barulho ferroso da máquina se movendo foi se aproximando e terminando num bipe que abriu as portas metálicas e revelou mais uma calça jeans rasgada e mais uma camiseta de banda. Dessa vez, do One Direction?
Não ia ser nada fácil decifrar Huening Kai…
— “Oilá”. — ele sorriu e acenou com a mão livre. A outra, ocupada como de costume, segurava um amplificador pequeno, provavelmente para conectar ao baixo pendurado nas costas.
— Oilá. — cumprimentei, mortificada por ele referenciar a minha confusão. — Você precisa de ajuda aí?
— Na real, preciso sim. — ele saiu do elevador e eu me adiantei para levar a caixa de som. — Não, não com isso. — fui delicadamente detida, um toque ínfimo no pulso, mas suficiente para me causar algo. — Eu queria saber como devo chamar você. Seu cartão dizia Carter, mas eu acho que ouvi a senhorita Williams te apresentar como...
— Taylor. Taylor. — coloquei as mãos nos bolsos de trás, concedendo a licença para que ele entrasse. — Carter é meu nome de casada. Aliás, era. Era meu nome de casada. — fechei a porta.
— Não é mais? — Kai deu outro de seus sorrisos ilegíveis, deixando o amplificador no chão da sala e removendo de si a alça transversal do baixo.
— Não, não. — quase soltei um “graças a Deus na sequência”, mas ele ficou implícito no meu suspiro de alívio. — Mas eu estava casada quando os cartões foram impressos, vou ter que aguentar esse sobrenome mais um pouco.
— Sinto muito. — foi o que a boquinha dele disse, mas os olhos diziam outra coisa. — Faz muito tempo?
Aquela pergunta era traiçoeira. Eu poderia encará-la como uma tentativa inocente de puxar uma conversa ou eu poderia ouvir a minha intuição, uma grande aliada minha que não costumava falhar. E naquela hora minha intuição me dizia que o “faz muito tempo?” na verdade significava “quão sozinha e carente você está, hein?
A resposta que eu tinha era patética, porque quando Kai sentou-se na poltrona, apoiando o baixo de pé no braço do móvel e sustentando o rosto com a mão grande e venosa, eu percebi que estava carente a ponto de sentir borboletinhas com o contato visual inquebrável que ele mantinha.
22 anos, . É um garoto de 22 anos. Um garoto lindo, lindo, mas de 22 anos.
Esperei que ele se acomodasse e achei meu lugar no sofá, procurando manter uma certa distância entre nós e um meio de encerrar aquele assunto.
— Bom, eu estou separada há uns seis meses agora, mas isso não importa.
— Tudo sobre você me importa. — ele manteve a expressão impenetrável e eu não conseguia discernir se ele estava brincando ou não. — Pode me contar o que houve?
— Coisa de gente grande. — bati nas coxas, cortando as asinhas dele antes mesmo do voo. — E não estamos aqui pra isso, estamos aqui pra ver se você é bom de dedilhado.
Kai torceu os lábios num prenúncio de risada e somente aí eu entendi o que ele pensou quando eu falei em “dedilhado”. Apertei as têmporas, me dando conta de que além de gênio, o garoto era metido a engraçadinho e eu nem podia culpá-lo: era o humor típico da idade. O que eu precisava fazer era canalizar aquela curiosidade toda dele para o violoncelo, entreter a criança, fazê-la gastar energia. Depois, era só colocá-lo num Uber e deixar a mágica acontecer, afinal de contas, Kai já tinha fama de dorminhoco e bebês sempre pegavam no sono quando passeavam de carro.
— Então, vamos começar. — posicionei o violoncelo entre as pernas. — Estou assumindo que você tem familiaridade com instrumentos de corda, certo?
— Baixo, guitarra, violão, piano… — enumerou.
— Uau. A maioria das pessoas não sabe que piano tem cordas. — puxei o notebook para mais perto, digitando na aba de busca uma das músicas que selecionei. — Bem que a Emma disse que você era um gênio.
— Ela disse, foi? — Kai recostou-se no assento e coçou o queixo pontudo. — Então você andou perguntando sobre mim?
Céus. O menino tinha mais manobras que um skatista profissional.
— Eu só fiz uma suposição. — limpei a garganta, iniciando a aula oficialmente e virando a tela para ele. — Você já ouviu falar em Chris Isaak? Bom, é claro que não, porque você é um feto. — antecipei a resposta. — Mas o HIM fez um cover de uma música dele, Wicked Game, e essa eu tenho certeza que você conhece. — apertei o play.
Kai reconheceu a batida com poucos segundos, já balançando a cabeça e marcando o tempo da bateria com o pé. Ritmo ele tinha. Os olhos cor de mel foram fechando devagarinho conforme ele se deixava envolver pela música, que ficava ainda mais melancólica com os arranjos da guitarra pesada da banda e o timbre intenso de Ville Valo, uma das melhores vozes do clássico love metal. Agitando-se feito um cachorrinho, Kai imitou todos os instrumentos, uma cena fofíssima de se assistir, e eu esperei um momento de pausa no seu pequeno show para diminuir a música e prosseguir com a aula.
— Ville Valo deixa é uma das melhores vozes do love metal. — Kai deu sua opinião, surpreendentemente, igual à minha. — A propósito, eu não sou um feto e eu conheço a versão do Chris Isaak. Ela foi lançada em 1989, no álbum Heart Shaped World, mas só fez sucesso quando apareceu na trilha sonora de um filme do Nicolas Cage. — um relance de triunfo atravessou os olhos dele. — Você faz muitas suposições sobre mim, mas nem todas estão certas, .
. Nem Taylor, nem Carter, muito menos senhora. Para o Kai, eu já era somente .
A ausência de um sobrenome no meu tratamento me fez reviver a epifania da azeitona. Muita gente me chamava de o tempo todo, mas Kai fez com uma naturalidade e uma presença que me atingiram de um modo inesperado. Havia algo na voz dele que o fez desenrolar todas as sílabas do meu nome numa cadência única e inédita para mim. Não era indiferença, porque o tom que ele usou foi quente, também não era desrespeito, porque a nuance ao fundo tinha um quê de brandura, era mais uma sensação agridoce e novinha em folha. E, assim como a azeitona, eu descobri que eu gostava do jeito que ele me chamava.
A diferença é que a azeitona eu podia morder. Já o Kai, por mais lindinho que ele fosse, não.
— Certo. De agora em diante, sem suposições. — prometi, sorrindo sem jeito. — Vamos fazer o seguinte, eu vou tocar Wicked Game com o celo e eu quero que você me acompanhe no baixo fazendo a base, ok? — Kai foi em busca do instrumento assim que acabei de falar, abrindo a case e posicionando-o no colo. — Tudo bem se você não conseguir de primeira, isso é só pra eu saber qual o seu nível de domínio. — expliquei enquanto ele plugava o baixo na caixa e ajustava o volume. — Pronto?
— Prontinho. — confirmou, trazendo o corpo para a beira da poltrona.
Deixei a postura ereta, repousando o topo do violoncelo sobre o peito e a clavícula e arrumando o corpo entre as pernas. Apertei as cordas e toquei as notas iniciais, que reverberaram pelo flat provando a acústica favorável do lugar. Kai fixou os olhos na motilidade dos meus dedos, observando a pressão responsável pela vibração das cordas, e a sua feição se aguçou na espera do momento certo de intervir.
Ele calculou impecavelmente o tempo da introdução e se juntou a mim, assumindo uma expressão compenetrada demais para alguém tão jovem. Sua entrega ao instrumento era quase devocional, de modo que ele tocava em sinergia com o baixo numa troca mútua, demonstrando não só uma afinidade, mas uma conexão. Em momentos de vibrato, os dedos dele faziam movimentos precisos e ele se inclinava para frente, respirando junto com o som grave que produzia, transfigurando o semblante para uma visão angelical. Era como se uma aura tomasse de conta dele.
Lindo. Absolutamente lindo.
Minhas mãos governaram a si mesmas, continuando a melodia no automático, e meu cérebro ficou livre para apreciar a técnica e a paixão do rapaz. Mas, por mais que ele tivesse habilidade profissional e por mais que fosse hipnótica a dança das mãos dele sobre o traste do baixo, era muito melhor admirar o modo como o perfil afilado se erguia sutilmente e seguia o ritmo do solo. E foi melhor ainda o que veio a seguir.
Huening Kai começou a cantar.

The world was on fire and no one could save me but you
It's strange what desire will make foolish people do…”


Errei a respiração e por pouco não perdi o acorde. Físico, multi-instrumentista, o rosto mais afiado que uma navalha e agora, cantor.
Eram muitas camadas.
Kai abriu os olhos depois de muito tempo, certo de que me encontraria adorando a sua doce voz. Demorou um pouco no meu rosto, saboreando o encanto que estava exercendo sobre mim, e seguiu para a próxima estrofe sem vacilar em nota alguma.

“I never dreamed that I'd meet somebody like you
And I never dreamed that I'd lose somebody like you…”


A letra se desenhava como um aviso que ganhava força e perigo a cada vez que ele repetia o refrão. Minha cabeça girava mais rápido que as xícaras do parque de diversões e os sintomas eram exatamente os mesmos que eu tive depois de andar no brinquedo: tontura, confusão mental e uma vontade inexplicável de ir de novo. Ele cantou alguns versos, mas eu queria mais. A voz de Kai surtiu em mim um efeito semelhante ao de um viciado em adrenalina, que se expõe a grandes riscos apenas pelo gosto de um momento instintivo, e do meio para o final da música eu me sentia como um trapezista saltando sem rede de proteção.
O baixo dele seguia o meu violoncelo com uma harmonia e fluidez tão grandes que eu já não sabia mais quem estava conduzindo quem naquele concerto. Comecei a pensar que os papéis estavam se invertendo, pois parecia que era o meu aluno quem estava me ensinando alguma coisa ali, enquanto cantava e me encarava daquele jeito meio céu e meio inferno. E a primeira lição já estava em andamento, coincidindo com as linhas que Kai cantou divinamente:

No, I don't wanna fall in love
This world is only gonna break your heart
No, I don’t wanna fall in love… with you.


🌸🌊🎻


Depois de 28 dias em Honolulu, os reflexos da ilha começaram a aparecer em mim, na minha pele, no meu cabelo, e até no meu jeito de andar, que Emma definiu como “tão leve que o chão não parecia importante”. De fato, muita coisa que antes me causava preocupação e atacava minha gastrite passou a não importar desde que eu tinha chegado ao Hawaii. Se a culpa disso era da presença constante da minha melhor amiga, da praia, do céu sempre azul, da liberdade de não estar trancafiada num escritório ou do garoto que me fazia companhia todo fim de tarde para aprender violoncelo, eu não sabia dizer. O que eu sabia era que Huening Kai havia se transformado numa espécie de escape diário, uma hora inteirinha de conversas e troca de experiências de vida que me fizeram pensar que eu teria saudades dele quando eu fosse embora, dali a exatamente dois dias.
A vida não era apenas tocar violoncelo e tomar banho de mar com Emma, embora eu tivesse aprendido o valor e o poder curador dessas pequenas coisas. Era por causa delas, na verdade, que eu me sentia pronta para retomar minha rotina de Carter contadora e mãe de plantas. Só que, dessa vez, com uma pitada a mais de gosto pelas coisas e, por que não dizer, um pouco mais de alegria. Era irônico e delicioso como eu, aos 32 anos, nunca tinha me sentido tão nova. Tão refeita. Tão… minha.
Durante a minha última semana em Manoa, as aulas de Kai passaram a ser mais longas a pedido dele, coisa que eu aceitei apenas em agradecimento pela ajuda financeira e pelo tempo de qualidade que ele passou comigo. Não restava muito mais o que ensinar, o pequeno gênio já tinha absorvido tudo o que eu podia lhe passar sobre o celo e agora era só uma questão de praticar mais e de limpar alguns detalhes, como a mão que ele sempre posicionava no ângulo errado.
— O que o seu punho tá fazendo aí em cima, hein, Huening? — censurei, como havia feito diversas vezes durante as nossas aulas. — Quantas vezes eu vou ter que te mostrar essa posição?
— Você não me mostrou nenhuma das que eu queria ver de verdade… — ele brincou. Felizmente, àquela altura, eu já conseguia revirar os olhos para os seus trocadilhos de duplo sentido.
— Não tô afim de ir parar no xadrez por seduzir um novinho. — segurei o pulso dele, ajustando os dedos longos nos lugares certos, e me ocorreu o pensamento de que ele errava só para eu poder tocá-lo.
— Eu sou maior de idade. Eu já te disse isso. — ele ficou me observando enquanto eu o corrigia.
— Sim. Uma ou duzentas vezes.
— Então por que você não topa sair comigo um dia desses?
— Porque você tá muito ocupado assistindo Teletubbies e tomando seu leitinho de morango. — meu comentário fez Kai relaxar a mão e arruinar a posição de propósito. — Huening!
Ele gargalhou e franziu o nariz. Eu odiava. Era a coisa mais gracinha e eu não conseguia ter raiva dele.
— Pronto. — finalizei. — Agora mantenha a coluna reta e-
— Espera, deixa eu só arrumar esse belo pedaço de madeira entre as minhas pernas.
Soltei a mão dele, em completo estado de pânico.
— O violoncelo, . — Kai riu, descarado. — Eu estava falando do violoncelo.
— Você é muito engraçadinho para um futuro físico. — acusei. — Começa logo a tocar antes que a polícia apareça pra me prender.
Obviamente, deixar um rapaz em idade legal frequentar o meu flat e ouvir as insinuações sexuais de quinta que ele fazia não se enquadravam como crime de assédio de menores, mas eu precisava pensar naquela situação como a iminência de um delito, porque, do contrário, eu pensaria em coisas que eu não deveria pensar. Por exemplo: como seria bom soltar aquele coque bagunçado no cabelo dele no meio de um beijo. Ou como seria incrível ter mãos tão ágeis passeando pelo meu corpo. Ou como o rosto delicado dele se torceria de prazer na hora de…
Não, . Aterrissa, pelo amor de Deus.
— Tudo bem aí? — Kai percebeu meu devaneio e largou o celo, desfazendo a posição que eu tanto lutei para acertar. — Você ficou vermelha de repente. Tá sentindo alguma coisa?
Sim, o jejum de mais de seis meses e você impregnando a minha sala com esse perfume de adolescente com tesão.
— O clima da ilha é meio maluco. — sentei no sofá. — Às vezes eu tenho umas crises de garganta, é isso.
— Tem febre? — Kai ajoelhou-se na minha frente, mas como ele era muito mais alto do que, isso apenas igualou o nível dos nossos olhos. — Deixa eu ver.
Kai espalmou uma mão macia e cheirando ao aço das cordas na minha testa, conferindo a temperatura, no entanto, mesmo depois de não constatar nada grave, a mão dele permaneceu ali, como se quisesse prolongar o contato para além da verificação. Não satisfeito, ele apoiou as duas palmas nas laterais do meu pescoço, pressionando suavemente a região, e aquela manobra sim espalhou um calor por todas as minhas extremidades.
— Você tá um pouco quente, mas não parece febre. Parece só... você. — ele soprou uma risadinha baixa.
— Que bom que eu estou viva. — foi tudo o que eu consegui dizer, presa nos olhos e nas mãos dele.
— É, é bom... — Kai afastou meu cabelo para trás. — Seu cheiro é bom também… É óleo de baunilha?
Era.
— Kai…
O nariz pontudo encontrou a curva do meu pescoço antes que eu pudesse dizer mais que o nome dele, aspirando a extensão descoberta e arrepiada. Os segundos que ele levou se aventurando por ali foram como uma fenda temporal se abrindo e me engolindo, me deixando indefesa e sem a menor possibilidade de fuga. Kai me exercia uma atração tão forte e irresistível quanto as leis físicas que ele estudava, mas não havia nenhum conceito capaz de abranger a gama de sensações que aquele leve roçar estava me causando. A pele despertou por completo quando ele plantou um beijo proibido atrás da minha orelha e o grau de perigo foi aumentando à medida que ele trilhava outros, mais molhados e demorados, por todo o caminho até a minha boca.
Parti o selar empurrando o peito dele.
— O que você tá fazendo?
— Menos do que eu gostaria. — ele sorriu.
— Eu não sei onde estava com a cabeça quando aceitei te dar essas aulas. — apertei as têmporas, trêmula. — Como foi que a gente chegou nisso? Você é só um garoto!
— Por que você fala isso assim? — Kai tomou minhas mãos, levando-as ao encontro da boca.
— Assim como?
— Como se você fosse um dinossauro. Você tem 32 anos e está divorciada, não é um fóssil.
— Um fóssil não. — me soltei e me levantei finalmente, catatônica. — Só 10 anos mais velha que você.
— E daí? — ele se levantou junto comigo, me seguindo. — Eu me sinto atraído por você, , não pela sua idade. Qual é a surpresa? Você é uma mulher muito linda. É brilhante, é talentosa. E é gostosa pra caralho.
Fazia muito tempo desde que alguém tinha me achado gostosa pra caralho.
Mas um de nós precisava ter o juízo perfeito.
— Você é um adolescente fantasiando com a professora. — sentenciei, repreendendo mais a mim do que a ele.
— Tem um motivo pra eu não perder nenhuma das suas aulas. — Kai ergueu uma sobrancelha
— Isso é loucura. — balancei a cabeça, percebendo que ele já tinha diminuído a distância entre nós outra vez, me puxando pela cintura e colando meu corpo ao dele.
— Eu sou maior de idade e você não está vinculada à universidade. — ele segurou a haste do meu óculos, removendo-o do meu rosto cheio de segundas intenções. — Me dá um bom motivo pra gente não fazer isso.
— E o que que você tá achando que a gente vai fazer, Vila Sésamo? — tomei a armação dele, que riu do meu desespero. — Eu, hein, garoto, por que você não vai brincar no parquinho?
Porque eu prefiro brincar com você.
Eu nunca tinha entendido a tara em beijos roubados.
Até Huening Kai me roubar um.
O cerco em minha volta diminuiu drasticamente, numa aproximação segura e inesperada que juntou minhas mãos sobre o peito adornado por uma correntinha prateada e gelada, a única coisa gelada ali. As mãos de Kai se espalharam pela base das minhas costas e subiram pela minha nuca, puxando os fios para trás com uma tração delicada que me obrigou a inclinar a cabeça para que os lábios dele fossem ao encontro dos meus. Eu nunca tinha sido beijada daquela forma. Tudo foi diferente, espontâneo, inflamado. Kai era todo vontade, todo paixão, e a boca dele me devorou sem as formalidades conjugais e sem o tédio de um marido, apenas um desejo forte e visceral que me amoleceu as pernas e me fez sentir com 20 anos de novo.
— Pensa nisso. — ele encerrou o beijo mordendo meu lábio inferior. — Eu sei que eu vou.

🌸🌊🎻


Aproximadamente 12 horas se passaram desde que Kai tinha me sugado feito um aspirador de pó e me deixado no meio da sala sem entender absolutamente nada. Ele flertou comigo durante todo o tempo que convivemos, mas eu não esperava que as coisas fossem sair do nível platônico. E nem era como se eu tivesse dado muita abertura pra isso. Quer dizer, eu comprei mesmo o óleo de baunilha, e aplicava toda vez que tomava o banho antes da aula, além disso, eu deixei minhas camisas enormes de botão um pouco mais de lado, preferindo umas regatas de alças finas, e eu também comecei a soltar o cabelo e usar maquiagem… Mas isso tudo era porque eu estava me sentindo eu mesma, olhando no espelho e gostando do que via, como naquelas propagandas de lojas de departamento em que a mulher finalmente acha a sua melhor versão e resolve abraçá-la.
Eu me sentia bem. E eu não precisava da validação de ninguém.
Mas eu estaria mentindo se dissesse que ser cobiçada por um rapaz bem mais jovem que eu não tinha aumentado a minha auto-estima.
Desliguei a chave do chuveiro, torcendo o cabelo molhado e me enrolando na toalha felpuda. Tive preguiça de me enxugar, estava amolecida e lânguida desde o beijo, poupando todo e qualquer esforço físico porque o simples ato de pensar no que tinha acontecido me consumia, mas me consumia de uma forma deliciosa. Larguei a toalha num canto, deixando que a natureza fizesse o trabalho de me secar por mim, e comecei a andar pelo flat na liberdade nua que estar sozinha conferia.
Deitei na cama ainda úmida, tocando meus próprios lábios distraidamente, buscando ali algum resquício do beijo, algum gosto remanescente preso na sensação de formigamento que vinha e voltava como uma onda. Minha mente logo me sugeriu cenários, me lembrou do perfume atalcado que Kai usava, da corrente dançando pelo espaço mínimo entre nós, das mãos dedilhando pelo violoncelo com maestria e, principalmente, das últimas palavras que ele disse antes de sair.
Nada me proibia de pensar nele, certo?
A almofada em formato de rolo bem ao meu alcance e meu completo estado de nudez eram as únicas variáveis que eu precisava para montar aquela equação com todos os cálculos a meu favor. Agarrei o travesseiro com pressa, antes que a culpa ou a falsa moral me alcançassem, e encaixei o objeto entre as minhas pernas deslizando do óleo de baunilha. Meu ventre baixo esquentou conforme eu me insinuava sobre o acolchoado e o atrito gostoso contra a minha intimidade fazia um único nome escapar da minha boca.
Apertei o topo da almofada com mais força, torcendo o corpo molhado em cima da cama, disposta a me satisfazer. Uma fisgada fina se arrastou por toda a minha extensão, tremulando a carne da minha coxa, e eu gemia pelo Kai como se ele pudesse me ouvir. O ápice foi se aproximando, dominando todo o meu corpo, e um suspiro sôfrego anunciou o orgasmo que manchou a almofada do meu prazer solitário.
Eu precisava me lembrar de jogar aquela almofada fora.
Joguei os braços para trás, exausta, deixando os últimos espasmos percorrerem meus músculos relaxados e satisfeitos, mas não tive tempo de me recuperar por completo porque ouvi duas batidas apressadas na porta. E mais outras logo na sequência, insistentes e mais altas.
Eu não tinha escutado o elevador se aproximando e o interfone não tinha tocado, então, tarde da noite como era, só poderia ser a Emma com alguma urgência. Como eu não estava afim de ser flagrada em posições ginecológicas, apenas me enfiei na primeira camisa de botão que vi jogada em algum lugar e fechei somente as casas de baixo, segurando as que deveriam cobrir meus seios com uma mão ainda dormente.
E então eu abri. Eu abri a porra da porta.
— Oi, . — Kai sussurrou com cara de quem não deveria estar ali.
E lamentavelmente para mim, aquela mistura perigosa de risco e desejo reprimido era ainda mais excitante do que o que eu tinha acabado de fazer. Além do mais, o modo como a camiseta branca e a calça esportiva da Adidas que ele estava usando marcavam certas regiões do corpo dele que não estava ajudando.
— Eu esqueci a minha palheta aqui. — ele deu a desculpa mais esfarrapada de todas antes que eu formulasse a pergunta óbvia.
— E você lembrou da sua palheta às 3 da manhã?
— Na verdade, eu lembrei que você vai embora em algumas horas e eu queria te ver de novo. — ele me mediu de cima a baixo e eu recordei que estava seminua.
Éramos apenas eu, alguns botões e uma porcentagem minúscula de autocontrole contra uma clara investida de Huening Kai.
Me afastei da porta o suficiente para que ele entrasse, indicando o caminho da sala que ele já conhecia. Os olhos dele varreram todo o apartamento e não demorou muito até a cama ainda suada e o travesseiro amassado em cima dela arrancarem um sorriso ladino e convencido da boca aveludada.
— Você pensou em mim? — ele apontou a almofada.
— O quê? — fechei mais a camisa, invadida.
— Foi divertido? — ele avançou um passo e eu não recuei.
— Do que você está falando?
— Eu tenho 22 anos, lembra? Eu sei o que você estava fazendo. Eu faço isso também. — novamente, as mãos enormes de Kai já estavam em volta da minha cintura. — E ultimamente, tem sido em homenagem a você.
— Eu… — perdi a força no meio da frase. — Eu ainda não entendi…
— Sua respiração está ofegante, sua pele está morna e vermelha e seus seios estão marcados na sua camisa. — Kai olhou para baixo e umedeceu os lábios. — Me fala, vai. — ele esfregou o nariz no meu. — Era eu, não era?
— Por que você assumiu que era isso? — fui me deixando vencer. — Como você não sabe que eu estava, sei lá, me exercitando?
— Nua e gemendo meu nome? — os lábios dele rasparam pelos meus.
— Há quanto tempo você está aí fora, hein?
— Tempo suficiente pra saber que eu sou melhor que o seu travesseiro.
Aceitei o beijo inevitável, e aceitei também que Kai me guiasse timidamente até a cama onde até bem pouco tempo ele me fez gozar sem me tocar. Quando minha panturrilha bateu na ponta do colchão e a mão dele passou por baixo da minha blusa e apertou a minha bunda, tudo ficou real demais.
Mas também meio borrado, meio molhado, meio arriscado e totalmente irresistível...
— Kai… — balbuciei no meio do beijo. — E se a gente estiver cometendo um erro?
— Então é melhor a gente errar de uma vez. — ele enroscou a língua na minha e eu senti sua rigidez na altura do meu umbigo. — Se entrega, .
Um filme inteiro passou pela minha cabeça em meio segundo. Ser a fantasia de alguém era novo e estimulante, além disso, o garoto estava febril de tesão, e não um tesão qualquer, o tesão de quem tinha 22 anos e muito amor para dar. Ele devia conhecer coisas das quais eu só tinha ouvido falar, era uma oportunidade boa demais para não ser aproveitada.
Que seja. Eu vou embora amanhã.
Afundei os dedos no cabelo dele, intensificando o beijo, e ele deslizou as mãos pelos meus quadris procurando os botões que ele abriu num movimento brusco que fez dois deles soltarem e rolarem para longe. Kai me empurrou sentada na ponta da cama e tirou a blusa de uma vez, e eu descobri ali mais curvas e músculos do que as roupas enormes que ele usava deixavam transparecer. Espelhei o movimento dele, me livrando da camisa já aberta, e deixei que ele me adorasse, me olhando totalmente despida e me elevando a uma posição de poder na qual eu nunca havia estado.
Aquilo era loucura. Mas eu tinha crédito para cometer loucuras.
Baixei o cós da calça dele, que pressionou meu rosto contra a barriga quente e ondulada, tensionada em antecipação. Ele parecia forjado em mármore e eu beijei todo o caminho indicado ali, descendo os lábios em direção ao volume apertado contra uma boxer preta que ele mesmo desceu, deixando o membro bater na minha cara. Massageei o comprimento com as duas mãos, tentando assimilar como aquilo tudo caberia dentro de mim, e resolvi percorrê-lo com a língua antes de testar como ele ficaria na minha boca.
Kai soltou um “ah” prolongado que arranhou a garganta completamente exposta pelo pescoço arqueado e o queixo apontando para cima. Ele encaixou as palmas no meu perfil e moveu meu rosto ao seu deleite, empurrando a si mesmo na minha boca e sem vergonha alguma de gemer enquanto se aliviava. Aos primeiros indícios de tontura, ele retirou-se de mim, zonzo, os olhos me comendo e brilhando de um jeito infernal, e meteu a mão no bolso para tirar de lá um preservativo que ele jogou no meu colo.
Peguei o pacote metalizado e puxei Kai pelo braço, fazendo com que ele ficasse de joelhos na minha frente.
— Ninguém pode saber que nós vamos fazer isso. — segurei a camisinha na frente dele. — Você entendeu?
Kai balançou a cabeça, entorpecido de pré-gozo.
— Então diga que você entendeu.
Meu tom soou como uma ordem e isso fez ele sorrir ébrio e revirar os olhos.
— Sim, senhora. — ele murmurou.
E eu gostei de estar no controle.
A embriaguez do domínio rapidamente se apossou de mim, reduzindo minhas respostas ao instinto puro. Minha única reação foi agarrar o rostinho inebriado e enfiar minha língua na boca entreaberta, explorando todos os cantos ao mesmo tempo, com a sede de quem sabia que aquilo só aconteceria uma única vez e nunca mais. Kai me bebeu com a mesma voracidade, me lambendo e chupando o pescoço até chegar aos meus seios sensíveis, circundando-os alternadamente com o auxílio das mãos para encaixá-los na boca, e minhas paredes internas clamaram para senti-lo dentro de mim.
— Sabe usar isso? — busquei a camisinha que a pegação me fez deixar cair. — Você já fez isso, certo?
— Sim. — ele sofreu para conseguir falar, ainda se esfregando no meu busto. — Mas antes, eu quero fazer uma coisa que eu nunca fiz. E eu quero que seja com você.
Kai pressionou meu pescoço levemente e me obrigou a me deitar na cama. Ele desceu pelo meu tronco beijando a minha barriga e encaixou os dedos nas minhas coxas, puxando-as firmemente para a beirada e, com isso, para mais perto do peito brilhando de suor. Descansei as pernas, permitindo que ele as afastasse uma da outra, e pelo jeito como ele umedeceu os lábios, previ o que ele planejava fazer ali.
Ele só não sabia que aquela parte seria a minha primeira vez também.
Meu sexo vibrou apenas com a promessa e Kai mergulhou entre as minhas pernas, me provando sem pudor e sem reservas. Minhas entranhas aqueceram, agradecendo o estímulo, e movi os quadris enquanto puxava o cabelo dele, afogando-o no meu prazer escorrendo. Kai levantou minha perna trêmula, arrumando-a no ombro definido, e meu calcanhar se arrastou pelas costas largas conforme ele se enterrava mais fundo. Ele não pretendia parar enquanto eu não chegasse lá. Ele não vacilou nem por um minuto. Ele me colocou na condição de musa e eu transcendi com aquilo. Pela primeira vez, alguém fazia alguma coisa para mim. Pela primeira vez, eu senti que eu bastava. Que eu era suficiente.
Eu me senti desejada.
Venerada.
Engrandecida.
E saciada.
— Goza pra mim, . — ele pediu com os lábios latejando. — Eu tô com sede de você.
Abafei um grito no travesseiro, aquele mesmo travesseiro, e foi assim que Kai soube que eu tinha acabado de ter o segundo orgasmo da noite. Orgulhoso de seu sucesso, ele saiu da calça e da boxer completamente e vestiu o órgão pulsante, cobrindo as veias aparentes com o preservativo que ele colocou habilmente. Enfraquecida no melhor sentido possível, deixei ele me arrumar no colchão bagunçado e me penetrar centímetro por centímetro, até minha intimidade sofrer gentilmente para acomodá-lo. Kai gemeu mais alto quando se viu inteiramente imerso dentro de mim, torcendo o rosto numa expressão de satisfação violenta e linda. Ele começou a me invadir, devoto, com o prazer de demorar e com a ousadia de me encarar enquanto fazia o que estava fazendo, sem o menor sinal de cansaço ou queda de desempenho.
Ah, o vigor da idade…
Huening seguiu incansável até que eu visse estrelinhas e deixasse no ouvido dele o mesmo pedido que ele me fez, bem baixo e doce, acompanhado de um carinho na nuca que fez a pele dele se arrepiar sobre a minha.
— Goza pra mim, lindinho. — mordi o lóbulo alheio. — Eu tô pronta.
Kai se derramou no meu interior e eu segui seu ápice, atingindo com ele o êxtase da carne. Respiramos juntos o ar que cheirava ao nosso sexo e ele caiu ao meu lado sorrindo todos os dentes que ele tinha.
— Eu tô… com muito sono agora… — ele confessou, envergonhado.
— Acontece quando você gasta muita energia. — beijei o peito dele, sentindo o coração acelerado. — E você gastou um bocado agora.
— Valeu a pena.
As palavras saíram quase inaudíveis, o que tirou dele mais uma risadinha fraca e deliciosa de ouvir. Amoleci assistindo o homem lindo que ele era, penteando o cabelo dele para trás na esperança de conseguir mapear todos os sinais que ele tinha pelo rosto e pelo pescoço. Eu queria decorar todos os detalhes perfeitos do anjinho que tinha mudado a minha vida, e alguma coisa me dizia que deixar um beijo em cada um deles era um ótimo meio de fazer isso — começando pelo pontinho fofo que ele tinha no nariz arrebitado. Eu queria enchê-lo de carinho para que ele soubesse, sem que eu dissesse nada, o que ele tinha significado para mim.
Eu queria que ele soubesse que ele foi a primeira coisa que eu senti quando eu achei que não podia sentir mais nada.
— Eu posso ficar aqui com você? — Kai pediu com ternura, ainda de olhos fechados. — Eu fico quietinho, noona.
Noona? — beijei mais um dos sinais que eu namorava em segredo, no cantinho acima do lábio superior.
— Coisa do meu lado coreano. — ele fez um gesto vazio, sem forças para explicar. — Você deixa?
— Claro. A noite inteira de babá? Eu vou ganhar muito dinheiro com isso.
— Eu vou sentir falta das suas piadinhas com a minha idade. — ele enfim abriu os olhos e se moveu preguiçosamente, se aninhando nos meus braços. — Eu vou sentir falta de você.
— Por um dia ou dois, sim. — o abracei com alguma dificuldade para ajustar o tamanho dele ao meu, acariciando as costas branquinhas quando consegui arrumá-lo. — Mas depois você vai achar uma garota legal. Uma groupie, tatuada… E mais nova que você.
— Se eu não achar, posso te levar pra jantar daqui a alguns anos?
— Até lá você já vai ter me esquecido.
— Eu nunca vou esquecer de você, Taylor.
Kai caiu no sono sem me dar tempo de responder. Mas eu também nunca o esqueceria.




Continua...


Nota da autora: Olá! Essa história está sendo escrita por três autoras e as atualizações podem demorar um pouco. Esperamos que você goste e comente sempre que possível. Com carinho e com loucura, Daphne M, Ilane CS e M-Hobi.


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