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Codificada por: Fer (Lyra)

Fanfic Finalizada

Fevereiro de 2019.
— Então você não tem nenhum arrependimento?
— O que é se arrepender, afinal? — a voz rouca de reverberou no fundo do meu ventre. Essa era a resposta que eu ansiava há algum tempo (a física, no caso). — O que foi? Disse algo que te deixou desconfortável, senhorita Cafrey?
— Sim. — fui sincera, desligando o iPad e o colocando em cima da mesa ao lado de minha poltrona, junto com o óculos que tirei. — Receio que não posso mais ser sua médica, senhor .
Ele estreitou o olhar, mas ainda assim continuava impassível de qualquer leitura minha.
— Desculpe, não entendi.
— Você entendeu bem, . — suspirei. — Não banque o sonso comigo. — cruzei os braços. — Primeiro me seduz, depois me convence de um café e quando vejo estamos em Paris, porque você não gosta de terapia por vídeo chamada.
— Você se esqueceu do bom vinho, Cafrey... — ele cruzou os braços também, com um sorriso presunçoso.
Senti um arrepio percorrer por todo o meu corpo e voltei a cruzar uma perna em cima da outra, um reflexo de contenção dos anseios libidinosos que meu corpo insistia em exprimir.
— Sim, o bom vinho. — o arrepio não sumiu, claro, pois a lembrança era muito vívida. Mas eu precisava manter um certa dignidade, se ainda me restasse alguma. — De qualquer forma, você entendeu. Nós nos envolvemos, . Isso não é ético em uma relação profissional como a nossa deveria ser. E devo lembrar que quebramos uma grande cláusula do nosso contrato...
— Esqueça essa baboseira de contrato, . — revirou os olhos. — Ninguém vai bater em sua porta exigindo um dote por mim.
— Que bom para você não ser necessário tanta formalidade, porque eu não teria cacife para tanto. — ri fraco e ele me acompanhou.
— Eu entendo. — voltou a um tom neutro e respeitoso, completamente maduro. — Vou pedir que encontrem uma nova ou um novo psiquiatra.
— Ótimo. — sorri satisfeita (em até meio período) e levantei, sendo acompanhada por ele. — Então acabamos por aqui.
— Você está se referindo às nossas consultas, certo? Ou tem algo anti ético sobre você tomar outro vinho comigo agora que não é mais minha terapeuta?
Ali estava: o tom sorrateiro de um alguém muito calculista, somado ao sorriso em entrelinhas formadas por lábios nada grossos, mas que possuíam tal voracidade, um pacote completo do que havia me conquistado entre consultas periódicas. Foi quando parei de conseguir ler que eu entendi o porquê de tanto disparate em meu coração nos nossos encontros.
— Eu fujo para a primeira colina no instante que me interrogarem por um dote. E negarei tudo! — me dei por vencida. Essa batalha há muito já contava com minha derrota.
sorriu me entregando um brilho malicioso em seu olhar, ao mesmo tempo que o sorriso mais adorável, adocicado, que sua infinita bondade guardava a muitas chaves. O beijo veio em seguida, é claro, me tomando com suas mãos e colando nossos corpos. Algo que não era mais tão incomum.

Janeiro de 2023.
Estava com dificuldades de me manter inquieta enquanto aguardava finalizar sua atenção em Namjoon. Minhas mãos trêmulas suavam frio, mas eu não me arrisquei a importar que isso fosse molhar o papel que ainda lutava para se manter preso entre meus dedos. O nervoso e a ansiedade era muito maior.
, está tudo bem? — Dami me cutucou, trazendo minha atenção de volta ao presente. Virei o rosto para encará-la. — Você está pálida e parada aí tem um tempão.
— Estamos falando com você há minutos! — Aylee estava do outro lado. Eu não tinha visto ela e Jungkook chegarem. — O que é isso em sua mão? — ela observou.
— Um e-mail que eu pedi para o estagiário imprimir e fechar como carta. — suspirei, sentindo o suor escorrer pela lateral do meu rosto. — É a resposta.
— Espera, você pediu para o menino novo imprimir e-
— E entregar a ela como se fosse uma carta de Hogwarts. — finalmente se juntou a nós, sendo acompanhado pelos outros dois. — Desculpa, meu bem, eu me perdi no assunto com o Namjoon.
— Você sempre se perde. — ri fraco, recebendo um beijo na testa.
— Não mais do que com você. — ele sorriu galanteador como sempre. — E aí, quer ir para casa agora?
— Não sei se consigo esperar até chegarmos lá. Será que podemos fazer isso na Genius Lab?
— Mas isso com toda certeza deste mundo! — a malícia acompanhou seu tom.
— Vocês dois ainda vão vazar o isolamento acústico daquele estúdio. — Jungkook, ao lado da namorada Aylee, comentou enquanto mastigava algum salgadinho.
— O dia que isso acontecer me coloquem no Guiness Book.
— Vai fazer live pedindo aos fãs que ganhem esse #1 para você? Quanta depravação! — Namjoon zombou dele.
— Podemos voltar a falar sobre e seu lado romântico do século XV? Carta? Sério mesmo? — Dami voltou para mim.
Revirei meus olhos pela presença do julgamento tão comum dos meus amigos. , que mantinha sua mão em minha cintura, carinhosamente se fazendo presente, me ajudou a desvencilhar-me desta discussão e, por mais que eles estivessem curiosos, me escoltou até sua sala.
Meu corpo todo estava tomado por um tipo de ansiedade daquelas que podemos dizer ser “boa”, se é que existe alguma a esse nível. Há exatos quatro anos eu me vi dentro de um labirinto em minhas próprias convicções, um certo dia tive a torrente de uma descoberta fundamental para o curso da minha vida inteira: descobrir que estava nutrindo uma imensa paixão por um dos meus pacientes foi assustador ao mesmo tempo que libertador.
A liberdade veio como uma consequência ao descobrir que a psiquiatria não era bem uma área exata da qual eu me via atuando para o resto da minha vida na medicina. Foi um grande desafio, pois a princípio eu pensei que apenas tivesse sido feita de boba pela minha própria mente e que meus sentimentos por não podiam se tornarem maiores que os meus sonhos, que toda a minha batalha para ter me formado havia sido jogada fora por uma aventura. Mas a verdade é que durante nossas consultas eu aprendi mais com ele e muitas coisas em minha vida começaram a tomar outro sentido.
Sentido este que eu estava em curso para descobrir qual seria.
Assim que entramos dentro de sua sala, fechou a porta e eu segui para sua cadeira de rodinhas em frente a enorme mesa de equipamentos, ignorando completamente o aviso expresso que tinha de descalçar os pés — e ele conseguia ser muito ranzinza com isso.
— Vai, abre. — ele se ajoelhou em minha frente, ficando entre minhas pernas.
— Eu não sei se consigo. — hesitei. — Você sabe que o que tem aqui pode decretar uma distância absurda entre nós dois.
, não existe oceano no mundo que seja maior ou mais profundo do que meus sentimentos por você! — sorriu e fez um carinho em minha perna. — Estaremos tão atarefados que será o período mais rápido de nossas vidas.
— Estou muito nervosa… — suspirei e encarei o papel. — Abre você! — estendi a ele e o vi revirar os olhos. — Por favor…
Hesitante, mas não o suficiente para me negar um pedido, fez o que pedi.
Seu olhar se ergueu da carta aberta para os meus e, marejados, ele sorriu acalorado para mim.
— Você vai para a África, meu amor! Eles te aceitaram!

Outubro de 2023.
Meu coração estava inquieto, muito confuso e bastante assustado, ainda que eu já tivesse enfrentado um tipo de preparo e soubesse que o mundo era muito além da minha bolha, que existia uma crueldade terrivelmente tão conhecida quanto todas as outras coisas ordinárias de um cotidiano exaustivo. Enquanto o carro passava em uma velocidade torturante pelas ruas, me fazendo enfrentar a realidade banhada em miséria.
Por mais que eu não quisesse levar todos os socos no estômago aos quais fui submetida desde o momento em que desci do avião e passei a andar pelas ruas de Gitega, capital de Burundi, o país mais pobre no continente atricando que, além de tal pobreza, tem inúmeros outros grandes problemas com infraestrutura e corrupção, eu não podia simplesmente abandonar todo o choque. Quando tomei a decisão de me doar para encontrar onde eu me encaixaria com o meu sonho de viver a medicina, a ideia da minha mãe sobre ir onde eu talvez jamais pensasse que pudesse encontrar respostas acabou me levando para o voluntariado do médico sem fronteiras — o salário que eu receberia pelo programa, decidi converter em mais doações; se tratava de uma busca por uma verdade menos falsa que eu não iria mesmo encontrar na minha bolha.
Quando o carro parou em frente a unidade de atendimento que eu teria residência pelos próximos 18 meses, eu senti uma vontade absoluta de repensar e voltar, mas meu senso de dever falou mais alto. Alguma mudança já estava começando, afinal. Também não era como se eu estivesse descobrindo um novo mundo, como alguém que entra em um guarda roupa e sai pelo outro lado no meio de uma nova história, eu sempre entendi as diferenças que formam todo um globo com bilhões de habitantes, a diferença, porém, era sobre viver isso além de apenas “saber” por informação.
E uma coisa eu sempre tive convicção: a informação não é nada se ela for apenas algo que entra por seus ouvidos, caso contrário nós não teríamos olhos, e para aqueles que não conseguem enxergar, o tato, e assim por diante. Temos todos os sentidos para que não seja perdido nenhum detalhe, nenhuma nota sobre o que é viver. Sem meias verdades.
Assim que desci do carro, por fim, fui recepcionada por uma mulher de, provavelmente, idade igual a minha.
— Senhora . Seja bem-vinda! — ela sorriu para mim. — Sou Cassie Artemis, responsável por este centro médico. — ofereceu sua mão a mim e eu a apertei.
Ela era, de longe, a mulher mais linda que eu já havia visto em toda minha vida. Mas seu sorriso me transmitiu um desespero, uma sensação de cansaço.
— Muito prazer, senhora Artemis. Obrigada por sua hospitalidade!
— Que isso! Me chame de Cassie. Não precisamos de toda essa formalidade. — seu sorriso acolhedor, carregado de tantas outras coisas, me abraçou. — Como foi sua viagem?
— Ocorreu tudo bem. Como esperado.
— Perfeito! Fico feliz. Podemos?
— Oh, sim! Claro. — entendi que ela queria entrar.
— Por favor, me siga. — assim o fiz. — Eu gostaria de lhe oferecer uma recepção mais calorosa e menos corrida, senhora . Mas você chegou justamente no dia de admissões…
— Admissões?
— Sim. Nós também somos um centro de recolhimento, senhora , aqui recebemos semanalmente crianças e adolescentes em situações precárias, que, de alguma forma, se tornaram órfãs.
Conforme ela foi me explicando eu observei o longo corredor que estávamos cruzando, e que, na verdade, era o único. A estrutura era muito mais do que simples. Dos dois lados haviam salas e ao final um salão grande, tendo uma parte como um refeitório e a outra um tipo de espera. As duas partes estavam cheias.
— Eu vi pelo seu perfil que fez residência em cirurgia pediátrica, mas seguiu como psiquiatra em atendimento clínico. — tive minha atenção retomada por ela.
— Sim.
— Certo. Aqui as coisas são simples em todos os sentidos, ou quase todos. A única parte não simples é a realidade destas pessoas que nos procuram. — havia o peso na voz dela. — Aqui é feito uma triagem e aquilo que for necessário nós encaminhamos para outro centro que tenha uma estrutura maior.
— Entendi. Que bom que tem respaldo…
— Nem sempre, senhora . Nem todos.
— Como assim? — me arrependi no momento em que perguntei.
— Bem, aqui nós apenas fazemos a triagem. Como disse. Mas não é garantido que todo pedido é atendido… Se fosse assim, não precisaríamos de pessoas com as mesmas intenções que as suas.
Foi como um grande e nada leviano tapa com farpas em minha face.
Para mim estava sendo como uma jornada de descobertas pessoais, mas talvez eu estivesse enxergando tudo com um grande egoísmo.
Senhora Artemis continuou falando algumas coisas, mas eu perdi total foco nela no instante que vi um rapaz loiro, talvez médico, tentando reanimar um bebê. Um pequeno e tão indefeso bebê. Ali mesmo no meio de outras crianças que estava sozinhas (fazendo as peças do quebra cabeça se juntarem em minha mente).
Meu coração bateu como se fosse um metal estivesse reverberando a resposta de um imã àquela cena.
Eu achava que viver noites polares seriam pouco prováveis em minha vida, já que é impossível habitar os polos terrestres. Mas no momento em que aquela bebê entrou em meu caminho, mesmo aquecendo o meu coração com uma doçura quase nunca vista por mim, eu senti no meu mais íntimo que os rumos da minha vida estava me levando direto a um polo não muito distante.
Talvez eu devesse me camuflar de urso polar para conseguir me acostumar com tamanha frieza e lidar com tudo à minha volta.
Talvez eu estivesse confiante demais que não doeria enfrentar uma realidade tão dura e amarga.
Talvez eu pudesse me camuflar para enfrentar a minha própria dor, embora ela estivesse sendo alimentada pelas diversas faces de dores alheias dentro daquela sala.

Março de 2024.
— Devo chamar Hoseok para iniciarmos um leilão por seus pensamentos?
Me assustei com a chegada repentina de e abaixei a cabeça, estava muito distraída olhando para o céu. Sendo intensamente levada por tantos pensamentos, podendo a quantia deles ou o peso serem facilmente comparados com o tanto de estrelas em cima de nossas cabeças.
— Acho que seria um desafio e tanto. — ri fraco com a piada interna sobre o melhor amigo dele gostar tanto de gastar dinheiro facilmente e sem preocupações.
se sentou no sofá atrás de mim e eu me mantive sentada no chão, ficando entre suas pernas.
— E o que tanto você pensa? Estou te sentindo distante desde que chegou. — ele insistiu.
— Acho que esses meses mudaram algumas coisas em mim. — suspirei.
— Não era este o objetivo de você ir para a África?
— Eu não sei mais. Existe uma coisa muito séria acontecendo. — fechei os olhos para que as lágrimas não saíssem. — Conheci uma pessoa que balançou tudo dentro de mim e tem movimentado um panapaná de borboletas no meu estômago.
A massagem que ele fazia em meus ombros cessou.
— Você odeia borboletas. Eu não te causei borboletas. — a voz dele saiu robotizada, embora eu soubesse, mesmo de costas, que ele estava tentando se manter neutro usando de auto controle.
— Essa pessoa mudou isso, . — me virei, sentando de frente e curvando um pouco do corpo para enxerga-lo. — Ela mudou minha vida.
— Ela?
— Sim. — peguei o celular na mesinha de frente com o sofá e mostrei a foto para ele de Elie, a bebê que chegou no meu primeiro dia de voluntariado e foi reanimada por Bento no salão principal. — Lá é um lugar sombrio demais, . Existem outras crianças e adolescentes em condições precárias também, como um polo tão frio de realidade, sabe? Eu quero fazer muito por eles, sim. Mas… Mas com a Elie o sentimento é diferente. Eu não queria vir e deixar ela, mesmo que por poucos dias só pra comemorar o seu aniversário.
— Quantos meses ela tem?
— Agora está com cinco. Ela nasceu no dia que eu cheguei à Gitega. A mãe faleceu e os avós a abandonaram. Sequer foi acolhida pelo pai… — senti meu rosto molhado em lágrimas. — Quando eu vejo ela, quando pego ela para amamentar com o leite que consegui sob muita luta, eu sinto esse coletivo de borboletas. Eu sinto meu coração vibrar em uma ideia que já estava muito bem definida na minha vida. Na nossa vida.

— Sei que essa incompatibilidade do nosso fator RH deixou de ser um mártir no nosso casamento. Eu sei, , que aceitamos o fato de não podermos gerar os nossos filhos. Mas… Eu tô disposta… A tudo… Por ela. Pela minha filha. Porque eu sinto, eu sinto que era ela a verdade que eu fui buscar em Gitega.
Não consegui segurar o choro, os soluços barulhentos de tanta dor e desespero que meu peito estava suportando. Porque era isso que me acometia com o tormento de enxergar minha vida em detalhes: o voo de volta para Seul feito na primeira classe, o luxo, a abundância de prosperidade enquanto Elie estava lá, ainda abandonada em uma sala fria, com a infraestrutura refletida do egoísmo humano em sua mais pura forma.
Me destroçada.
E isso só me fazia acreditar mais ainda que o imã que puxava meu coração em direção à ela na primeira vez que a vi era o reconhecimento de uma maternidade.
— Eu posso conhecê-la em minha licença. O que acha? E aí trazemos ela pra casa. — me afastou lentamente depois de eu chorar em seu colo e ele me ouvir com todo seu amor.
— Pra casa? Com a gente? — funguei o nariz, limpando o rosto.
— Tenho certeza que a nossa filha merece tudo o que temos para dar a ela.
O sorriso compreensivo dele, seu toque em meu rosto para arrumar a desordem que meu desespero me levou, somados ao sentimento genuíno do amor que eu sentia por ele me fez repousar em um alívio, embora eu tenha voltado a chorar.
Um choro de alívio, porém.


Fim


Nota da autora: Espero que tenha gostado.

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