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Revisada por Nyx 🌙

Última Atualização: 12/06/2025


Pelotas, outono de 2023

O que os jovens mais anseiam quando fazem maior idade?

Alguns dizem ser a carteira de motorista, outros uma vaga na faculdade, os corajosos viajar pelo mundo, contudo, o fato é que em todos os desejos há uma palavra que os conecta: liberdade. E foi exatamente isso que conquistou ao receber a benção dos pais e sair de casa para morar quilômetros de distância, para viver a oportunidade de trabalhar como estagiária na agência de publicidade e marketing, Cria Criativa.

Foi emocionante para ela a despedida dos pais.

O senhor e senhora Oliveira, como bons mineiros, acompanharam a filha até a rodoviária em lágrimas já sentindo saudade da caçula que trocou a histórica cidade de Ouro Preto, para morar no litoral de Pelotas. Além da diferença cultural entre as regiões, ela também enfrentaria a diferença de clima e culinária. Não foi à toa que sua mãe, Márcia, lhe comprou dois queijos no mercado central, para que a garota tivesse algo de casa para se lembrar nas primeiras semanas. Como se o alimento realmente fosse durar tanto tempo, diante de um mineiro saudoso.

— Se eu não gostasse tanto de você, não teria vindo comigo. — reclamou do peso que estava sua mochila.

Ajeitando no ombro, voltou a puxar as duas malas até a entrada do prédio que continha dois apartamentos por andar, sua estadia seria na cobertura. E foi pura sorte ela conseguir encontrar um aluguel barato na parte mais cara da cidade, que lhe proporcionava uma boa vista da Floresta Fuscamérica. Por mais que a localização fosse atrativa, o prédio em si estava em péssimas condições de conservação, a não ser por sua estrutura que ainda se mantinha forte e resistente para um imóvel de quatro andares construído nos primórdios de 1920, as paredes estavam descascadas com a presença de teias de aranha, além do barulho de goteira ao longe.

Fizeram a jovem se sentir em um clássico filme de terror.

— Senhor Miller? — chamou, enquanto adentrava o hall do prédio — Senhor Miller? Está aí?

Uma onda de silêncio pairou pelo lugar.

Seu estado estético já não ajudava muito, logo começou a se arrepender da escolha pelo aluguel mais barato que encontrou. Contudo, não podia voltar atrás, pois seu orçamento apertado de estagiária não lhe permitia gastos adicionais, menos ainda uma locação com o valor acima do permitido.

— O jovem Miller está no centro de Pelotas agora. — a voz de uma senhorinha soou atrás dela, fazendo-a dar um pulo de susto.

Com o coração acelerado, ela se virou tentando fingir normalidade.

— Oh, minha jovem, está tudo bem? Você parece pálida. — disse a senhorinha de cabelos grisalhos sendo amparada por uma bengala de madeira.
— Está tudo bem… Eu aluguei o apartamento na cobertura. — explicou, sentindo-se acalmar internamente — Estou procurando o senhor Miller para pegar as chaves.
— Bem, terá que esperar um pouco, pois ele geralmente demora quando vai à cidade comprar ferramentas. — contou, enquanto ajeitava o casaco de tricô nos ombros.
— Eu vou esperar por ele lá fora então. — disse sua solução para o momento.
— Por que não aproveita e já leva as malas lá pra cima? São muitos degraus. — aconselhou ao apontar a direção da escada — E não se preocupe, eu sou a única inquilina que sobrou nesse prédio velho e não subo escadas, então você não será roubada.

Um minuto de paralisia por não esperar aquelas palavras de alguém que acabou de conhecer.

— Oh, eu não achei que a senhora… — as palavras pareciam fugir da sua mente, deixando-a sem argumentação.
— Não precisa se explicar, tive um marido que era mineiro, e sei que os mineiros são desconfiados. — seu tom demonstrou propriedade.
— Como a senhora sabe que sou mineira? Eu nem disse nada demais. — confusa por estar sendo o mais normal possível em seu dialeto.
— Seu sotaque é inconfundível. — relatou enquanto se afastava tranquilamente — A propósito, se precisar de alguma coisa, meu nome é Celeste, eu moro no apartamento 12 desde que me entendo por gente.

ainda perplexa com a cena, observou a senhora entrar pela sua porta. Minutos sem conseguir reagir, tentando absorver as informações, ela ouviu um barulho próximo e avistou o senhorio entrando no prédio. Um suspiro de alívio, pois não queria ficar muito tempo esperando.

— Senhor Miller? — indagou assim que o homem parou diante dela.

Estava com uma caixa de ferramentas em uma mão e sacolas de supermercado em outra. Seus olhos verdes eram escondidos pelos óculos, que davam espaço para sua feição séria e fria, tinha um toque de solidão.

— Você é a estagiária de Minas? — perguntou, num tom rude.
— Sim. — engolindo seco, sentiu um aperto estranho no coração, como se aquele senhor não a quisesse ali — Acabei de chegar da rodoviária.

Como não conhecia muito da cidade, seu contato inicial havia sido Rosa, a responsável pelos estagiários no RH da agência, e sua ponte para chegar no aluguel ideal. A analista já havia morado no apartamento 21, e ainda tinha o contato do dono do prédio.

— Vamos até o seu andar, comprei uma fechadura nova. — informou, já se dirigindo para a escada.

A jovem apenas assentiu e voltando a puxar as malas, o acompanhou.

A princípio, apenas manteve a atenção nos detalhes da edificação, por detrás de todo aquele desgaste, sua arquitetura a estilo Art Déco ainda podia ser vista em alguns pontos. Foi ao finalizar o último degrau para chegar no quarto andar, que ela notou o senhor Miller mancando com a perna direita. Foram necessários exatos cinco minutos para que ele fizesse a troca e lhe entregasse a chave com as devidas restrições e regras de uso do quintal nos fundos.

— Espero que esteja ciente do toque de recolher e mantenha seu apartamento sempre trancado, pessoas mal-intencionadas se aproveitam de lugares onde moram velhinhas indefesas e jovens inocentes. — concluiu, mantendo o tom ríspido — Então, é proibido trazer estranhos para o prédio, não importa o quão próximos de você eles são.
— Sim, senhor. — assentiu ao pegar a chave.

Se houvesse espaço para ela ficar mais intimidada e assustada do que já se sentia, certamente ela pegaria o próximo ônibus para Belo Horizonte e retornava para casa. Assim que Miller se retirou, um suspiro fraco veio da jovem que com a atenção na chave em sua mão, juntou o restinho de ânimo que lhe restou para entrar na nova casa. A melhor parte de ter alugado a cobertura, foi saber que tinha uma bela vista no terraço que a permitiria ter momentos de contemplação em seus dias de folga.

— Como diria a tia Beth, lar doce lar. — suspirou, olhando para o lugar parcialmente vazio diante dela.

Seria um desafio para sua primeira semana.

Transformar aquele lugar frio em um espaço confortável e aconchegante. Rosa tinha conseguido os móveis mais necessários em lojas de usados, uma pechincha que para jovem custou praticamente metade do primeiro salário que nem tinha ganhado ainda. A outra metade seria completada com ajuda dos pais, para pagar o aluguel do mês seguinte.

— Vou confessar que não tô a fim de fazer nada. — afirmou, puxando as malas para dentro e fechando a porta, trancando-a como aconselhado.

O amplo espaço da sala era dividido com a cozinha.

Uma geladeira com riscos ao lado da pia em uma parede, eram acompanhadas pelo fogão na outra e mais à frente um tanque de plástico que aparentava não ser muito resistente. O sofá de tecido desbotado evidenciava a poeira que pairava em todo o lugar visível na mesa de centro e em frente. Adiante, um curto corredor com duas portas, uma do quarto e outra do banheiro, além de uma escada caracol em frente a janela com acesso ao terraço.

Sem televisão, sem internet, sem vida.

Seus passos até o quarto foram pesados, numa sensação de que ela teria que se esforçar para tudo dar certo e seus sonhos não serem frustrados. Aquela realidade não havia sido o que imaginou para sua vida longe da família, principalmente pela falta de acolhimento e hospitalidade, características essas que os mineiros carregavam com orgulho. Minutos de silêncio analisando a cama box de solteiro, que a fez sentir falta do seu quarto na casa dos pais. No canto ao lado da porta, um guarda-roupa de mdf branco com rabiscos feitos de caneta, o único móvel com melhor conservação era a escrivaninha ao lado da cama, no qual ela colocou a mochila sobre.

— A realidade longe de casa é dura. — disse para si, ao puxar a cadeira, encostando na parede embaixo da janela — E a Rosa ainda disse que os móveis estavam quase novos… não quero nem ver se tivessem velhos.

Ela deixou as malas em frente a cama e abriu a mochila para retirar os queijos, sua prioridade era guardá-los na geladeira e o fez. Como tinha levado pacotes de miojo e biscoitos no fundo da mala média, pelo menos o jantar já estava garantido, pois com o atraso do ônibus, o findar da tarde já iniciava com a mudança na temperatura. Prudentemente, o passeio pela região seria no dia seguinte, que lhe permitiria até se perder se quisesse, contanto que fosse a luz do dia. Continuando a verificar tudo o que tinha levado consigo, pegou o miojo apimentado que tanto gostava e seguiu para a cozinha.

Organizaria as coisas da mala apenas no dia seguinte.

Isso se lhe desse vontade.

— Don’t worry… Be happy… — seguiu assobiando a melodia da canção, enquanto preparava com zelo sua primeira refeição na casa “nova”.

Logo o aroma do tempero rescindiu o lugar, fazendo-a salivar.

Retornando para o quarto com sua tigela de plástico de estimação que levou, decidiu deixar o banho para mais tarde e dar uma relaxada primeiro apenas trocando de roupa, e sentiu que sua barriga concordou com a escolha. Se encolhendo na cama, enrolada no edredom, foi degustando o miojo enquanto lutava com seu 4G para conseguir prosseguir com os episódios do dorama O rei de Porcelana. Não demorou para suas pálpebras pesarem, trazendo consigo o sono que reinou toda a noite.

O que deveria ser uma noite tranquila.

Na alta madrugada, a jovem começou a ter um sonho um tanto estranho, com acontecimentos do passado que jamais viveria pela época que se passaram. Todos envolvendo uma mesma pessoa, um jovem que aparentava ter seus vinte e um anos, na maioria sendo torturado e espancado. Em um dado momento, ela acordou no susto, sentindo o coração acelerado pela adrenalina do sonho. Nunca tinha tido algo semelhante aquilo.

— Acho que fiquei impressionada com esse lugar. — sussurrou, levando a mão direita no coração, respirando fundo para acalmar.

Em instantes, ela ouviu um barulho vindo do terraço.

Sua prudência não a impediu de se levantar da cama e colocar um cardigan, para checar o que ocorria, pegando uma panela para autodefesa caso necessário, subiu a escada caracol em passos cautelosos. Quando chegou, abriu a porta de acesso e paralisou com a imagem do locatário mexendo em sua caixa de ferramentas.

— Senhor… Miller? — em quase sussurro, atraiu a atenção do homem que estava de costas.
— Me desculpe se te acordei. — com o tom baixo, manteve a atenção nas ferramentas — Tentei não fazer barulho.
— Ah… não me acordou. — com o olhar fixo no que ele fazia, deu alguns passos cautelosos para se aproximar.
— Deveria voltar para dentro, certamente não está acostumada com o clima do sul. — seu tom a fez parar.
— Eu… — ela respirou fundo, tentando não se intimidar pelo jeito rígido dele — O que o senhor está fazendo aqui?
— Apenas consertando o encanamento. — respondeu rapidamente — Antes que pergunte mais alguma coisa, é proibido entrar naquela porta.

Ele apontou para o lado, mostrando um pequeno cômodo fechado que no passado, já foi um confortável e inspirador home-office.

— Como disse, volte para dentro. — ainda mais rude do que antes.

Miller pegou alguns parafusos que estavam em cima da mureta de separação entre as áreas dos dois apartamentos, foi tão brusco que um deles voou para perto dela. A jovem ficou estática pela forma frustrada com que o homem reagiu a uma simples queda de um objeto tão pequeno, contudo, não se conteve em pegá-lo e se aproximar para lhe entregar.

— Aqui. — disse esticando para ele.
— Você me parece uma jovem muito persistente. — reunindo toda a paciência que tinha, voltou-se para ela, encarando-a.

E o senhor me parece alguém muito ranzinza!
Pensou ela.

— Obrigado. — finalizou, ao esticar a mão para pegar o objeto.

Foi um piscar de olhos em que ao pegar o parafuso, a mão de Miller tocou a dela.

Uma aproximação tão simples que sem explicação, fez uma brisa passar por seus corpos reverberando para o universo, que sutilmente manifestou através de um raro feixe de luz, surgindo no céu em plena madrugada. Um fenômeno raro, facilmente observado em áreas de alta latitude do hemisfério sul, que é visto apenas em países do extremo sul.

— Que lindo… — disse a jovem, ao desviar sua atenção para o céu iluminado.

O homem esquecendo-se de todas as dores internas e traumas do passado que foram cobertas com a frieza do seu coração, deixou-se levar pelo brilho no olhar da jovem, e por um breve segundo contemplou sua beleza e doçura. Uma sensação estranha lhe passou, algo que há trinta e sete anos não sentia…

O que aquela jovem estava fazendo a ele?

— Se chama Aurora Austral. — contou ele, ao voltar seu olhar para o céu também, surpreso com o que via — O único relato de algo assim no Brasil foi em 1875… é mais comum acontecer no Chile e na Argentina.
— Incrível… — sussurrou, em total admiração.
— Sim. — concordou com suavidade, ao olhá-la novamente.

Dos longos anos que viveu no prédio construído por seus avós, em sua maioria foram solitários e tristes, sobrevivendo a cada dia como conseguia, apenas tendo a constante companhia da engenhosa senhora Celeste, que insistia em permanecer morando no mesmo apartamento desde a sua infância. Teimosia esta que a fez encerrar três casamentos, por divergências de ideais.

— Senhor Miller?! — logo percebeu o constante olhar dele sobre si, sentindo-se envergonhada.

Tentando disfarçar seu devaneio momentâneo, ele pigarreou um pouco e se afastou rapidamente.

— Como eu disse, não entre ali. — reforçou, voltando a rigidez habitual.

Se afastando, Miller retornou para dentro do outro apartamento.

não entendeu o que tinha acontecido entre ambos ali, contudo, sua curiosidade estava nas luzes celestes que lhe fascinaram por mais algum tempo. Na manhã seguinte, a jovem acordou mais tarde do que esperava, e seu passeio pelo litoral iniciou às duas da tarde. Para sua felicidade, descobriu um mercadinho há dois quarteirões, do qual fez uma pequena compra para passar o restante do mês. Sua sexta-feira ao ar livre foi descontraída e refrescante, com direito a parada para um picolé na sorveteria, lhe proporcionando a descoberta que os gaúchos o denominavam geladinho.

— Senhora Celeste. — a voz surpresa de , soou ao vê-la.
— Por que este olhar de surpresa, como se eu não morasse aqui? — ela puxou a banqueta para porta do apartamento e sentou-se voltada para rua.

riu, ignorando seu comentário.

— O que a senhora está fazendo? — indagou, curiosa.
— Não está óbvio? — o sarcasmo parecia uma característica natural dela — Aproveitando o sol da tarde na minha porta… Que por sinal, está sendo bloqueado pela senhorita.

Mais uma vez perplexa por ela.

— Me desculpe. — arredou para o lado, os raios solares adentravam à vidraça da porta de entrada do prédio e alcançaram com precisão as pernas descobertas dela.
— Foi reconhecer o perímetro? — perguntou, olhando discretamente para as sacolas nas mãos da jovem.
— Sim, já que vou morar aqui por tempo indeterminado, preciso saber onde estão os locais básicos de sobrevivência. — compartilhou de forma espontânea.
— Locais básicos. — rindo das palavras diferentes dela.
— Sim, farmácia, supermercado, posto de saúde, posto policial, loja de materiais elétricos. — explicou mais detalhadamente — Locais básicos.
— Oh! Jovem Miller, retornou. — o olhar de Celeste passou por ela, até chegar no homem.

se virou de imediato e sorriu para ele, sendo ignorada totalmente.

Uma respirada funda, ela seguiu com suas sacolas para seu apartamento. Mesmo sem vontade nenhuma, ela tinha que fazer uma faxina no lugar e colocar as coisas em ordem para a próxima semana. Ser estagiária e ainda manter a rotina de faculdade à distância, não seria fácil para alguém sem a menor disciplina, e que precisava manter o foco nos estudos.

— O que será que ele tem contra mim? — se questionou, ao parar de esfregar o chão do banheiro com a vassoura — Eu acabei de chegar!

Bufando um pouco, esfregou mais forte para tirar uma das marchas na área do box, ainda pensativa em seu questionamento.

— Eu sou uma inquilina tão legal, paguei o primeiro mês adiantado, não sou de ouvir som alto e jamais quebraria suas regras de convivência. — parando novamente, respirou fundo, contrariada por tamanha frieza na voz de uma única pessoa — É um absurdo aqueles olhos azuis pertencerem a alguém tão rabugento.

Sua reclamação a levou a olhar seu reflexo no espelho.

— Se não fosse tão mais velho e um pouco mais simpático, com aqueles olhos profundos, poderia até dizer que é bem atraente. — um suspiro inesperado e ela voltou a realidade — O que eu estou dizendo, ele deve ter idade para ser meu pai.

Balançando a cabeça negativamente dispersou os pensamentos estranhos e voltou ao trabalho duro para deixar o lugar no mínimo habitável para alguém. Com os fones no ouvido, o celular no bolso de trás do short e um par de galochas nos pés, sua noite foi clara pelos cômodos até que chegou no terraço. Seu lapso de limpeza se estendeu em todo o perímetro de seu apartamento, até que chegou a famigerada porta do escritório do qual não poderia entrar.

— O que será que tem aí dentro? — indagou, pensativa.

Não que fosse alguém curiosa, contudo, a restrição de Miller havia sido tão expressa que lhe deixou intrigada a princípio. Quando finalmente terminou, se permitiu contemplar a segunda noite consecutiva das luzes no céu, sentindo um certo aconchego no coração. Quando finalmente tomou um banho e caiu na cama, nem mesmo ouviu o celular despertar sábado de manhã para o café da manhã especial dos novos estagiários.

Uma mensagem de desculpas foi o máximo que conseguiu naquele dia.

O final de semana passou tão rápido, quanto a hora de manhã quando acordou na segunda-feira. Sua recepção na agência foi um pouco mais calorosa por parte da equipe de jovens que também se iniciava com ela naquele semestre. Os novos estagiários vindos de todos os cantos do país, foram selecionados através de cinco etapas e mais dois testes práticos.

Cria Criatividade era considerada a terceira melhor do país.

— Que bom que deu tudo certo e você conseguiu chegar viva aqui. — brincou Rosa, ao se aproximar da estação de trabalho de .
— Sim, e mais uma vez obrigada por me ajudar. — fez olhos de criança, grata.
— Fiquei surpresa por ter escolhido trabalhar em sistema híbrido. — comentou a analista de RH.
— Sim, descobri que tenho uma vista maravilhosa que não pode ser ignorada. — explicou enigmaticamente — Trabalhar ao ar livre é mais motivador do que em quatro paredes.
— Entendo, escolheu qual escala? — indagou já pegando seu bloco para anotar.
— Terça e quinta, presencial. — respondeu.

Para , o fato de poder passar três dias em casa, poderia significar mais descanso e produtividade, além de não ter que passar por horas em um transporte público. A primeira semana pareceu tranquila para jovem, que sempre ao chegar em casa nos dias presenciais, continuava a sentir a indiferença do senhor Miller com relação a sua pessoa.

Noite de sexta-feira…

Trabalhando em casa, a jovem passou toda a tarde no terraço controlando seu olhar que persistia em voltar para a porta proibida. Ao anoitecer, a vaga lembrança de um comentário de Celeste sobre o senhor Miller estar adoentado, lhe fez reparar que o homem tinha dado uma pausa no projeto de reforma que tentava fazer no apartamento ao lado. Uma oportunidade para ela quebrar as regras e fazer o que não deveria.

— Mas… se eu estou alugando toda a cobertura e o escritório está localizado na minha parte, então… Eu tenho direito sim de entrar. — formulando uma argumentação válida para enganar a sua consciência, ela girou a maçaneta e abriu.

Internamente, o escritório estava tão velho e empoeirado quanto uma casa mal-assombrada de filmes de terror, com teias de aranha pelos cantos do teto, vidro quebrado nas duas janelas e cheirando a mofo, devido a umidade. Ela poderia até ficar com receio de continuar ali ou com nojo do estado do lugar, porém, viu um velho rádio de ondas curtas bem ao fundo em cima de uma mesa.

Os olhos dela se fixaram no objeto, como se sussurrasse seu nome.

— O que é isso? — num tom baixo, deu alguns passos se aproximando — Parece aqueles rádios de guerra.

se lembrava vagamente de ter visto um filme com aquele objeto, e não era do exército. Com cautela para não fazer barulho, pois ainda temia a aparição repentina do dono, ela deslizou seus dedos pelo objeto sentindo-se tão encantada quanto atraída. Num instante em que apertou um dos botões, automaticamente as luzes da Aurora se intensificaram no céu, e num piscar de olhos, o aparelho ligou fazendo um chiado como se estivesse procurando por sinal.

— Você funciona? — sussurrou ao tocar a roda lateral para girar na procura por alguma estação.

Minutos silenciosos com apenas o chiado soando pelo ambiente, até que…

— CQ CQ… — uma voz surgiu do rádio, seguido de mais alguns chiados — CQ, este é PY2ABC chamando CQ.

Estranhamente o coração de pulsou mais forte.

Não pela chamada em si, mas por, de alguma forma, reconhecer a voz do outro lado da linha. Sendo pertencente ao homem desconhecido que vinha há dias, invadido seus sonhos.

Não importa cada noite que esperei
Cada rua ou labirinto que cruzei
Porque o céu tem conspirado a meu favor
E a um segundo de render-me te encontrei.
- Creo en Ti / Lunafly






Pelotas, primavera de 1985

Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá…

As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá!

Para aqueles que no futuro nunca terão que lutar pela liberdade de expressão, nunca saberão a sensação de um exilado em retornar a sua terra natal. Menos ainda o sentimento que o poeta quis transmitir ao escrever tais versos de seu poema. E ali estava um dos heróis da nação, retornando ao país, após dolorosos dois anos longe de casa, Rossi ainda mantinha viva as singelas lembranças de sua infância com os pais naquele lugar.

— E o jovem retornou para casa. — a voz de uma senhora despertou seus devaneios.

Ela, como a moradora mais antiga do prédio, lembrava-se do dia em que o jornalista foi preso pelos militares e levado arrastado para dentro da viatura policial. E somente agora com seu retorno, viveu o bastante para ver aqueles olhos gentis novamente. Porém, notório de sua parte que algo estava errado, pois as feições do rapaz se mantiveram rígidas e frias, assim que voltou sua atenção para ela.

— Bom dia, senhora. — a cumprimentou, não esboçando nenhuma reação a mais — Não imaginei que ainda morasse aqui.
— Não imaginou que eu ainda estivesse viva, você quer dizer. — o corrigindo, soltou uma gargalhada boba — Também, com minha sinceridade que exala sem esforço… mas estou aqui.
— Há mais moradores no prédio? — indagou.
— Sim, o Vicente do 21, a Maria do 31 e a Marcelina do 32, além claro, do velho Jorge do 11. — respondeu intrigada pela postura indiferente dele — Está tudo bem, meu jovem?
— Por acaso os soldados ficam bem após uma guerra? — enigmático, retrucou — Bom saber que a senhora continua por aqui.

Mesmo não sendo um soldado, ela havia entendido o que quis dizer.

Ele respirou fundo e seguiu para a escada.

Seu apartamento na cobertura, lhe permitia uma bela vista da floresta que tinha próximo na região, um dos motivos da presença de um pequeno quarto ao fundo do terraço, no qual fazia de seu escritório. permaneceu parado por um tempo encarando o número quarenta e dois em sua porta, até que suas mãos giraram a maçaneta para entrar. Em cada detalhe, o lugar se encontrava na mesma situação do qual deixou ao ser levado, em pleno caos, com todo o lugar revirado e seus móveis quebrados.

— Lar doce lar… — sussurrou, com um sentimento nostálgico.

Em instantes, um gosto amargo chegou a sua boca após sua mente ser invadida pelas imagens do dia da sua chamada “reclusão”. A experiência mais sombria que nunca imaginou viver, foi marcada pelos cinco dias em que passou preso em um porão úmido e escuro, sendo torturado a cada duas horas. Aos poucos, abraçado ao silêncio do qual se tornou sua companhia diária, ele foi organizando o lugar, a começar pelos móveis.

Um recomeço difícil, porém, necessário.

— Como será que está? — sussurrou ele, ao encontrar um porta retrato com a foto da namorada, parcialmente destruído — Você disse que me esperaria.

Saudade…

Era a palavra que o definia naquele instante. Seus planos com Rebeca sempre foram de casamento na praia e muitos filhos correndo pela casa, uma realidade que foi impedido de viver. Tido como um jornalista investigativo revolucionário pelo grupo de amigos do jornal Voz da Nação, seu posicionamento político sempre direto e aberto em suas colunas de sábado, começou a incomodar pessoas influentes na cidade.

Ocasionando assim, a invasão na sua casa em plena madrugada.

— Acho que preciso de algumas horas de sono. — caminhando até o quarto, com a foto na mão — Amanhã, descobrirei o que aconteceu com todos enquanto estive fora.

Por mais que externamente não demonstrasse nenhuma expressão para os outros ao seu redor, seu interior se encontrava destruído. Os horrores que viveu nas 120 horas encarcerado, não desejava ao pior dos inimigos, e para alguém tão querido e respeitado na região, o rapaz de apenas vinte e um anos de idade só tinha inimizade com uma pessoa: Carlos Silva.

O sobrinho do editor chefe do jornal que trabalhava.

!? ?!

— AAAHHHHH!!! — em um grito de desespero, o jornalista acordou no susto de um pesadelo.

Ele respirou fundo ao passar a mão nos cabelos.

Já deveria estar acostumado com os constantes pesadelos, porém, pareciam ser piores a cada noite. Uns minutos para se acalmar internamente, se levantou do chão onde dormia. Por mais que tivesse uma cama quentinha ao lado, sua vida longe de casa não tinha sido tão confortável assim, o levando a dormir várias vezes no chão ao relento. Levando um mal costume do qual não conseguia se livrar com facilidade.

— Assim não vai dar… preciso vê-la. — trocando de roupa, pegou as chaves da moto e desceu para o hall.

Seu veículo estava guardado ao fundo do quintal, coberto por uma lona preta.

Sem saber quais mudanças encontraria, seguiu em direção ao apartamento da mulher, com a esperança de encontrá-la. Parou a moto do outro lado da rua, e retirando o capacete, reconheceu a placa de um dos carros estacionados. Percebendo a insônia pela ansiedade, ele desceu da moto e esperou sentado na calçada até que amanhecesse, para tocar o interfone. E ao sair do sol, as movimentações se iniciaram no edifício residencial, a incredulidade surgiu ao presenciar a cena de Rebeca saindo do local acompanhada.

Por ninguém menos que o arrogante Silva.

O casal, na companhia de uma criança, em risos como uma perfeita família de comercial de margarina. Paralisado pela frustração, não conseguiu reagir nem mesmo para sair dali, e sua permanência deu a oportunidade para a mulher avistá-lo do outro lado da rua, o reconhecendo de imediato. Mesmo sendo questionada pelo homem, ela atravessou a rua e se aproximou dele, que já se levantava do chão.

. — sua voz tinha a mesma doce entonação da qual se lembrava.
— O que faz com… — seu olhar atravessou, indo direto para Carlos.
, eu… — tentando iniciar sua explicação.
— Você prometeu me esperar. — interrompeu, engolindo seco, segurando as poucas emoções que se permitia ter.
— É que… muitas coisas aconteceram e você esteve desaparecido por dois anos. — tentando se explicar, seu tom demonstrou desespero — Não imagina como foi difícil pra mim, aguentar a pressão da minha família e manter a expectativa de notícias suas.
— Você prometeu. — por mais que tentasse controlar a raiva, sua voz se alterou.

Seu olhar direcionou para a aliança de casamento na mão esquerda da mulher.

— Está tudo bem por aqui? — Carlos, preocupado com ela, havia deixado a criança no carro e seguido até a esposa.
— Está. — se pronunciou por ela, dando um passo para ir embora — Só me diga uma coisa com sinceridade.
— Pergunte. — sussurrou ela.
— A criança… — o jornalista tinha até medo de perguntar.
— Não é o nosso filho. — afirmou ela, com segurança — Perdi o nosso bebê duas semanas após te levarem.

Aquela notícia foi a facada que faltava para destruir o restante dele que sobrou.

Em silêncio, se retirou, voltando para casa em lágrimas enquanto lutava para não se desequilibrar da moto. Assim que chegou, foi barrado na porta pela senhora do apartamento 12, que mantinha a preocupação em seu olhar.

— Percebo que claramente não está bem, ainda mais com esses olhos avermelhados. — observou, mantendo a seriedade na voz.
— Não se preocupe, se eu estou vivo, eu estou bem. — garantiu, a filosofia de vida que criou para sua própria sobrevivência.

Ele deu um passo para se afastar e seguir para as escadas.

— Meu jovem.
— Tenha um bom dia, senhora Tavares. — virando-se, seguiu de volta para seu apartamento.

Controlando suas raivas internas, seguiu direto para o banheiro. A cada vez que jogava água no rosto, flashes de momentos calorosos com sua ex lhe invadiam a mente, sem lhe dar a chance de reação. Em meio as gotículas de águas que escorriam por seu rosto, o rapaz pode ver através do reflexo no espelho, as lágrimas escorrendo de seus olhos. De tudo o que lhe tinha acontecido, a parte mais angustiante não foi a tortura, não foram os dois anos longe de casa tentando sobreviver em um país estranho, mas sim, manter expectativas em seu coração que agora, lhe causavam uma dor ainda maior.

— Eu ainda tenho meus textos, eu acho. — sussurrou para si, ao pegar a toalha e enxugar o rosto.

Mais um tempo de reflexão, até deu impulso em sua coragem e saiu novamente do apartamento, pegando a moto, seguiu em direção a redação do jornal. Situado no centro comercial de Pelotas, o Voz da Nação, era considerado um jornal tradicional e conservador, contudo, diante dos horrores decorrentes da ditadura, havia aberto suas páginas para receber a voz de jovens revolucionários como . Quem havia conquistado a admiração de Norberto Weber, o dono da redação.

— Bom dia, Margarida. — disse o rapaz, assim que chegou na recepção.
— Oh, ! — a mulher arregalou os olhos, impressionada por vê-lo ali, após tanto tempo de silêncio — Está vivo!
— Sim. — assentiu, ao notar os funcionários em cochichos devido sua presença, muitos o conheciam.
— Gostaria de falar com o senhor Weber. — pediu, num tom baixo, mantendo a firmeza.
— Norberto Weber, meu pai, está aposentado graças a você. — a voz de Deniz, preencheu o saguão do edifício.
— Deniz. — voltou-se para ele.
— O que faz em meu jornal? — indagou o homem, com ar de superioridade — Desaparece por dois anos e volta achando que está tudo no mesmo lugar te esperando como se nada tivesse acontecido?

Assim que recebeu o impacto daquelas palavras, a lembrança do amanhecer vendo Rebeca com outro lhe preencheu internamente. E para piorar, seus olhos atravessaram Denis até chegar em Carlos, que acabava de descer do elevador.

— Onde está o senhor Norberto? — questionou , tentando ignorar a soberba do homem à sua frente.
— Graças às suas palavras no jornal, pessoas implicaram com meu pai também. — respondeu Deniz, num tom amargurado — O que me levou a ficar à frente de tudo, então já deve imaginar que não pertence mais a esta redação.

Se a amargura já estava sendo constante em seu interior com o coração partido, agora, diante de sua realidade profissional, se afundaria mais em sua tristeza. Ao retornar para casa, passou o dia sentado ao chão da sala, com as costas apoiadas no assento do sofá, e todas as garrafas de cerveja que pôde comprar ao seu lado.

Era o início de um período sombrio em sua vida.

— Meu jovem… — o som da voz da moradora do apartamento 12 lhe despertou — Lamento vê-lo nessa situação.

Se contavam cinco dias com no mesmo lugar, afundado em sua amargura desejando não existir mais. A cada manhã que a senhora lhe visitava, seu coração apertava ainda mais pela situação deplorável do rapaz, queria poder ajudá-lo, contudo não sabia como.

— Meu jovem, Deus tem um propósito para cada um, não desista do seu. — agachando diante dele, tocou com ternura em seu rosto.

Ela o havia visto nascer e crescer, seus dias como criança foram gerados a risos e descontração, e mesmo com a perda dos pais meses após iniciar sua graduação em jornalismo na Universidade do Rio Grande do Sul, o sorriso e a alegria ainda se mantinham em seu coração. Contudo, agora a única coisa que conseguiam ver, era o olhar de um homem triste, solitário e amargurado.

— Eu estou bem. — sussurrou ele, ao tentar abrir seus olhos, sua voz com traços de embriaguez — Se estou vivo, então, estou bem.

Repetiu mais duas vezes a filosofia que lhe mantinha uma parcela intacta da sua sanidade mental. Ela segurou em sua mão e o ajudou a se levantar, incentivando que tomasse um banho para renovar as forças, o guiou até a porta do banheiro.

— Tome um banho decente e deite-se um pouco, eu vou lhe fazer algo para comer, nada como uma comida gostosa para acalentar um coração necessitado. — disse, com um sorriso gentil no rosto.
— Por que a senhora insiste em mim? — indagou, sem entender o motivo de alguém ainda se preocupar com a sua vida.
— Se Deus não desiste de nós, por que eu deveria desistir de você? — respondeu da mesma forma que ele costumava fazer, com outra pergunta.

Por ter acompanhado o crescimento do rapaz, a senhora Tavares o considerava como seu filho do coração, e certamente não o deixaria sucumbir à tristeza e se perder em meio a depressão.

— Não se entregue a essa escuridão, meu jovem, na vida sempre há espaço para recomeços. — assegurou, ao abraçá-lo de forma tão confortável e terna, que o fez lembrar os muitos abraços de sua mãe quando criança — Como dizia minha mãe, se a vida te derruba, escolha levantar-se.

Se afastando, ela retornou para sala e começou a missão de resgate com sua receita especial de canja de galinha com legumes. Como uma boa cozinheira, transferiu todo o seu sentimento de carinho e amor para os alimentos, que a cada minuto exalava um aroma mais convidativo ainda ao olfato. Quando saiu do banho e voltou à sala, observou por um tempo a senhora Tavares cantarolando pela cozinha, os louvores que cantava na igreja que congregava.

— Se não quer deitar-se um pouco, pode ajudar jogando essas malditas garrafas no lixo e varrendo sua bagunça da sala. — ordenou, ao perceber sua presença.

O rapaz pela primeira vez em dias, deixou sair um sorriso discreto no canto do rosto, e assentiu em silêncio sua ordenança. Em minutos todo o apartamento já estava limpo e organizado, fazendo-o recordar o passado, os momentos antes de sua prisão. De como era organizado o bastante para arrancar inveja dos amigos da faculdade, comunicativo o bastante para atrair a atenção das garotas da universidade, e feliz o bastante para achar que não precisava desejar mais nada em sua vida, pois já possuía tudo.

— Vamos comer? — disse a senhora Tavares, ao aparecer diante dele com uma tigela de canja e uma colher — Quero ver essa vasilha vazia.
— Obrigado. — sussurrou.

Naquela altura de sua vida, não tinha forças nem mesmo para se opor a senhora que insistia em cuidar dele, apenas aceitaria de bom grado a última vela que se mantinha acesa para iluminar sua vida. E desejava ficar grato a Deus por isso, por ainda ter alguém que se importava se ele estava ou não respirando.

-x-

Recomeços são difíceis…

Principalmente quando não temos motivação para prosseguir, contudo, com o passar das semanas, agora tinha a senhora Tavares que lhe importunava ao longo do dia, exigindo sua companhia em todos os momentos de refeições, indo ao seu apartamento para comer.

— Como está a sua filha? — indagou, ao terminar de lavar a louça suja do almoço.

Esse foi o trato que a senhora fez sem o seu consentimento, refeições em troca de prestações de serviços braçais. Afinal, precisava ocupar sua mente diariamente para não dar espaço a pensamentos destrutivos. E nada como uma boa faxina ou uma pia repleta de louças para lhe prender a atenção.

— Me rendendo alguns netos. — brincou, em sua resposta com um tom saudoso — Disse que pretende vir morar aqui comigo se o marido não barrar a ideia.
— Este prédio com crianças? — seu olhar demonstrou insatisfação.
— Um pouco de desordem e caos também faz bem a vida — soltando uma gargalhada maldosa, seguiu para o armário a fim de pegar o bule — Vou passar um café fresquinho para gente, depois quero que conserte a calha no terraço, a Marcelina reclamou de infiltração.
— Sim, senhora. — assentiu, rindo da situação.

Desde quando ela havia se tornado sua chefe?

Após saborear o café, com seu gosto forte e sem açúcar, pois os problemas com glicose alta não permitiam a senhora Tavares desfrutar das doçuras da vida, seguiu para o terraço com sua missão previamente estabelecida. Horas retirando algumas folhas que entupiram a calha e limpá-la, decidiu que faria o mesmo com toda a extensão do espaço. Seria mais um longo tempo de atividades que preencheram sua mente, o impedindo de pensar coisas desnecessárias. E o lugar precisava mesmo de uma faxina, pois o locatário temporário do apartamento 41, em três meses de uso, conseguiu deixar a moradia em estado de calamidade pública. Foram necessárias duas semanas para limpar tudo e ainda faltava trocar os vidros quebrados das janelas, além da pintura nova.

Ao final da tarde.

Parou por um momento e sentou-se ao chão, seu corpo latejando dor física pelo cansaço das muitas atividades pesadas que executava, não apenas no prédio, como também em outras casas da região. A senhora Tavares, vendo-o desistir de sua carreira de jornalista, tratou de arrumar outra empreitada financeira para lhe gerar renda. Assim surgiu a ideia do "marido de aluguel", para as senhoras que precisavam de um auxílio doméstico que não encontravam em seus companheiros de casamento. Coisas básicas, porém, necessárias como trocar o gás, consertar o encanamento ou alguma fiação elétrica, podar as árvores, tirar o lixo para fora, e até mesmo fazer uma faxina geral no banheiro.

No popular, passou a ser conhecido como o quebra galho de Laranjal.

Foram poucos minutos com os olhos fechados para descansar, que sua mente traiçoeira o afundou em lembranças que se misturavam entre felizes e dolorosas, trazendo sensações de angústia e frustração. De tempos em tempos enfrentava esses momentos, que ocorriam principalmente quando estava sozinho em seu apartamento.

— Se estou vivo, eu estou bem. — sussurrou para si, ao abrir os olhos, esforçando para não se render àquele sentimento que o puxava novamente para o fundo do poço.

Respirando fundo, levantou novamente para continuar o que fazia, com o céu parcialmente escuro, precisava terminar rápido, pois não tinha consertado o interruptor da luz geral, e acender as lâmpadas do terraço estava impossibilitado por hora. Seu olhar involuntariamente voltou-se para a porta do antigo home office, tinha prometido a si que nunca mais entraria naquele lugar, menos ainda voltaria a escrever. Se sua escrita foi capaz de destruir não apenas a sua vida, como também de pessoas boas como o senhor Norberto Weber, então, escrever não era um dom e sim uma maldição para ele.

— Não entre aí, . — o tom repreensível para si foi no susto de perceber que seu corpo já estava diante da porta e sua mão direita na maçaneta.

Como tinha chegado ali de forma instantânea?

Afastando a mão da maçaneta, deu um passo para trás. Seu interior já estava machucado demais para simplesmente colocar mais dedos na ferida para fazê-la sangrar. Ele só queria ter os segundos de serenidade que suas atividades diárias lhe proporcionavam, até a tristeza voltar a seu travesseiro lhe consolar em meio às lágrimas. Em um piscar de olho, um clarão surgiu no céu, atraindo sua atenção, deixando-o estático por minutos com tamanha beleza da natureza.

Aurora Austral… — sussurrou o nome do fenômeno natural.

Já tinha ouvido de seus pais, sobre a única vez que aconteceu no país, sendo registrado em 15 de fevereiro de 1875, pelo astrônomo francês Emmanuel Liais, então diretor do Observatório Imperial no Rio de Janeiro. Uma beleza rara que pintava o céu com luzes coloridas hipnotizantes, transmitindo ao rapaz uma sensação de calmaria e paz a muito tempo não sentida.

?! ?! — De repente ele ouviu uma voz feminina vindo de dentro do antigo home office, lhe despertando a atenção.

— Essa voz... — sussurrou, olhando mais uma vez para o céu e depois para a porta de sua aflição — Não pode ter ninguém aí dentro… A não ser que...

Quebrando sua promessa, o rapaz passou pela porta e entrou no cômodo.

Estava exatamente da mesma forma em que tinha deixado, o único lugar em que os militares não tinham destruído. A nostalgia logo surgiu juntamente com as lembranças do seu primeiro dia ali dentro, enquanto seu olhar passava por cada extensão do ambiente. Até que parou no rádio de ondas curtas, que ficava mais ao fundo, na parte da bancada de trabalho que ficava embaixo da janela.

... — mais uma vez a voz surgiu, dando indícios de vir do rádio.
— Não é possível estar funcionando. — seu tom permaneceu baixo, diante da incredulidade momentânea.

A passos cautelosos, se aproximou do aparelho e puxando a cadeira próxima, sentou-se sem se importar com a poeira presente no lugar. Sua atenção fixa no rádio, tentando entender como poderia estar funcionando algo tão antigo que um dia pertenceu ao avô que ironicamente havia sido um militar da aeronáutica. Ainda em luta interna, contra todas as lembranças dolorosas que por motivos desconhecidos haviam despertado em sua mente, apenas por desejar responder à voz que sussurrava seu nome.

— CQ CQ… — disse em teste, ao apertar o botão que dava lugar ao áudio.

Avaliando, percebeu um chiado estranho, mas continuou insistindo.

— CQ, este é PY2ABC chamando CQ. — agora com a frase completa, em sua forma técnica de dizer — Por favor, diga que não enlouqueci e responda.

Seus olhos lacrimejaram de imediato, causa da extrema angústia interna que sentia.

— Não enlouqueceu. — a voz suave respondeu, a mesma que o atraiu minutos atrás — Mas… eu não sei quem seria esse CQ.

Logo uma risada boba e espontânea soou do outro lado, fazendo-o rir também com leveza e descontração.

Neste exato momento, o coração de se aqueceu.

Apenas por ouvir aquela voz…

Uma desconhecida que não sabia os termos técnicos, mas o havia feito rir pela primeira vez em muito tempo.

Quanto mais terei que esperar?
E quantas noites terei que ficar acordado
Até que eu possa te ver?
Até que eu possa te encontrar?
- Spring Day / BTS




Continua...


Nota da autora: Welcome to Pâms' Fictionverse!!!

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