Codificada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 08/05/2025.Senti as mãos dele me segurarem pelos ombros quando me virei. Os olhos de Uriel, brilhando como brasas, me encaravam com uma intensidade ameaçadora. Seu poder era esmagador, uma lembrança constante de sua posição entre os celestiais.
— Ousar? — retruquei, a fúria crescendo em meu peito. — Eu ouso desafiar o que é injusto.
Uriel apertou os dedos em meus ombros, sua aura queimando como fogo ao redor de nós.
— A profecia foi clara, Azrael. O destino está traçado. Você não pode se desviar.
— Destino? — cuspi, tentando me libertar de seu aperto. — Que destino é esse que condena inocentes? Por que deveríamos obedecer cegamente?
Uriel se aproximou, sua presença esmagadora.
— Porque fomos criados para isso. — Sua voz era fria, determinada. — O equilíbrio do mundo depende de nós. Você sabe disso.
— Equilíbrio?! — gritei, empurrando suas mãos para longe. — Não vejo equilíbrio em condenar aqueles que poderiam ser salvos. Não vejo justiça nisso!
Uriel balançou a cabeça, os olhos faiscando com um misto de decepção e ira.
— Você está se rebelando contra o próprio Criador. A profecia foi escrita desde o princípio dos tempos. Ela não pode ser alterada.
— E se houver outro caminho? — repliquei, minha voz carregada de desespero. — E se houver uma forma de evitar o caos sem sacrifícios desnecessários?
— Você fala como um tolo. — Uriel se afastou um passo, ainda me observando com olhos penetrantes. — Você sabe o que acontece com aqueles que se desviam do plano. Nós não somos feitos para questionar. Somos mensageiros, guardiões do equilíbrio.
— Não vou ser mais uma peça nesse jogo cruel. — As palavras saíram como uma promessa, sentindo o peso da decisão que estava tomando. — Eu não seguirei essa profecia.
Uriel estreitou os olhos, sua expressão endurecendo.
— Você sabe o que isso significa, Azrael. Se recusar a cumprir o que foi destinado...
— Eu sei. — Respirei fundo, sentindo uma mistura de medo e determinação. — E ainda assim, escolho desobedecer.
O silêncio caiu entre nós, pesado e ameaçador. Uriel me observou por longos momentos antes de dar as costas, suas asas se abrindo em toda a majestade.
— Você está caminhando para a queda, Azrael. E quando isso acontecer, não haverá volta.
Ele se afastou, desaparecendo na luz que o envolvia, deixando-me sozinho, com o peso de minhas escolhas.
Eu sabia que não poderia mais voltar atrás.
Uriel se foi, mas as palavras ecoavam em minha mente. A queda. Era isso que aguardava aqueles que se recusavam a seguir o curso predeterminado. E ainda assim, eu não podia ceder. Algo dentro de mim gritava para resistir.
Mas não fiquei muito tempo sozinho. O ar ao meu redor pareceu se partir ao meio, e uma presença muito mais imponente tomou forma. Uma luz ofuscante brilhou à minha frente, irradiando uma força além de qualquer ser celestial.
— Azrael. — A voz não era humana, nem inteiramente divina. Era pura força. O Criador se manifestara.
Eu sabia o que isso significava.
— Você recusou seu papel. — Sua voz cortava o ar como lâminas afiadas. — A profecia foi clara. carrega o fardo que está destinado a ela. E você deveria guiá-la.
Eu cerrei os punhos, tentando não tremer diante de Sua presença.
— Não posso aceitá-lo. ... Ela não merece esse destino. Ela é apenas uma humana.
— Apenas uma humana? — O Criador fez ecoar uma risada fria, imortal. — Ela é mais do que isso, e você sabe.
Minha mente se encheu de lembranças da profecia: "No dia em que a lua e o sol se alinharem, ela escolherá. Seu coração decidirá o destino de todos os mundos. Sangue será derramado, luz e escuridão se enfrentarão, e sua escolha determinará o vencedor. O guia celeste a levará até sua decisão final."
. O poder que ela nem sabia que possuía. E eu... o guia destinado a assegurar que ela cumprisse sua parte. Ela deveria decidir entre o caminho da luz ou da escuridão, e a batalha que se seguiria afetaria não apenas os reinos celestiais, mas todas as existências.
— E você se recusa a guiar o que foi destinado. — A voz do Criador se estreitou. — Diga-me, Azrael... É por ela que você desafia o Céu?
Seu tom era afiado, acusador.
— Não! — Minha resposta saiu antes que pudesse pensar. Não é por . — Eu senti a raiva tomar conta de mim, e continuei. — É por todos nós. Por que devemos sempre seguir ordens cegas? Por que os inocentes devem ser peões em uma guerra que não pediram para lutar?
— Você fala de inocência, mas é a fraqueza que o guia. — O Criador se aproximou, o peso de Sua presença quase insuportável. — Você se abaixou perante uma humana, Azrael. Isso é imperdoável.
— Não me abaixei por ninguém! — bradei, a frustração e a convicção explodindo em cada palavra. — Mas não vou permitir que alguém como seja jogada nesse conflito sem escolha. Não vou ser o carrasco de um destino imposto!
— Você não pode ver além da sua própria rebeldia. Sua recusa é insignificante. — A voz do Criador ficou mais sombria. — A profecia será cumprida, com ou sem você.
Senti um tremor percorrer meu corpo. A batalha dentro de mim estava sendo travada, mas minha convicção não cedia.
— Eu nunca a obedecerei. — As palavras escaparam de meus lábios, firmes e claras.
Foi então que o Criador se ergueu diante de mim, sua luz atingindo seu ápice, quase cegando.
— Então, caia.
As palavras foram simples, mas o peso delas esmagador. O chão sob meus pés desapareceu, e um vazio imenso se abriu ao meu redor. Eu estava sendo arrancado dos céus, expulso, jogado nas profundezas.
A queda começou.
O vento uivava em meus ouvidos, e minha pele parecia queimar ao atravessar os diferentes reinos. Meu corpo girava e despencava pela vastidão infinita, mas foi minha mente que sofreu o maior golpe. Eu via... tinha visões. Fragmentos de um futuro que se desenrolaria a partir do momento em que recusei a profecia.
Vislumbres da batalha.
De um lado, legiões de anjos, suas asas abertas, brandindo espadas de luz. Do outro, hordas de seres caídos, as trevas em seus olhos, clamando pela destruição. O céu rasgado pelo conflito. A terra devastada por cada golpe. E no centro de tudo, . Seu rosto contorcido em agonia, lágrimas escorrendo por suas bochechas enquanto os dois lados aguardavam sua escolha.
Um clarão de luz. Um grito. Meu nome. Eu a ouvi me chamar.
O choque das forças opostas reverberou pela minha mente. O som de espadas se cruzando, o clangor ensurdecedor da guerra entre o bem e o mal. Mas... o que me atingiu mais profundamente foi o silêncio que se seguiu à sua decisão.
No meio dessa visão aterradora, eu continuava caindo. Minhas asas, uma vez gloriosas, estavam agora enegrecidas, queimadas pelo fogo celestial que me exilava. Sentia cada fibra do meu ser se despedaçar, cada laço com o divino sendo rompido. O fogo consumia minha alma, queimando qualquer vestígio de luz que restasse.
O impacto contra a terra foi brutal.
Eu caí em um mundo frio e escuro, distante dos céus que um dia conheci. Sentia o gosto amargo da poeira em meus lábios, e as cinzas do que um dia fui manchavam minha pele. Meus ossos doíam, minhas asas destroçadas.
Levantei-me, cambaleando, olhando para o céu que agora estava fechado para mim. O silêncio era ensurdecedor. Eu havia sido banido.
E agora, estava sozinho.
A batalha havia começado. Eu não poderia mais impedir que fosse jogada no fogo do destino, mas uma coisa eu sabia com certeza: eu faria de tudo para protegê-la. Mesmo que isso significasse lutar contra o próprio Céu.
A profecia poderia estar escrita, mas eu a reescreveria com minhas próprias mãos.
Eu caí, mas minha luta estava apenas começando.
"O dragão ficou irado com a mulher e foi travar guerra com o restante da descendência dela, ou seja, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus"
Minhas pernas cederam quando senti o ardor insuportável em minhas costas e meus joelhos rapidamente tocaram o solo novamente. Um grito gutural escapou da minha garganta, ecoando pelo vazio ao meu redor. Tremendo, levei as mãos até as costas, apenas para senti-las cobertas por algo quente e viscoso.
Quando olhei para as palmas das minhas mãos, o vermelho vivo do sangue contrastava violentamente com a pele outrora imaculada. O cheiro metálico tomou conta de mim, e foi então que a dor ficou mais clara: um corte profundo, que se estendia pelas minhas escápulas, rasgando carne, rompendo o que antes sustentava minhas asas.
Minhas asas…
Tentei alcançá-las, mas a realidade me atingiu como uma lâmina. Elas não estavam mais lá. Onde antes havia força e glória, agora havia apenas dor e vazio. O ar parecia preso nos meus pulmões.
Um soluço escapou dos meus lábios. Não de fraqueza, mas de algo mais profundo. Era a ausência que me consumia. Uma parte de mim havia sido arrancada de forma brutal, e o peso desse vazio era maior que a dor física.
O mundo ao meu redor era escuro, silencioso, como se o próprio planeta estivesse rejeitando minha presença. Olhei ao redor, tentando encontrar algo, qualquer coisa, mas havia apenas desolação. Terra seca e rachada se estendia até onde meus olhos alcançavam, e o céu acima estava envolto em um manto cinzento, pesado, como se o próprio firmamento lamentasse minha queda.
— Por quê? — Minha voz saiu fraca, rouca, mas carregada de uma dor que palavras não poderiam descrever.
Senti meu corpo tremer novamente, mas me forcei a levantar. Minhas mãos firmaram-se na terra seca enquanto eu lutava contra a vertigem que ameaçava me derrubar de novo. O sangue escorria pelas minhas costas, manchando minhas vestes já sujas e rasgadas pela queda.
— Por que me fizeste assim? — murmurei, olhando para o céu. Não esperava uma resposta. Não agora.
O Criador não falaria comigo. Não mais.
Meus passos eram hesitantes enquanto tentava me mover. Cada movimento era uma lembrança cruel do que havia perdido. Não era apenas a dor do corpo; era a dor da alma. As asas não eram apenas um símbolo de minha glória; eram parte de quem eu era, daquilo que me definia.
E agora... eu era apenas uma sombra.
Ao longe, ouvi um som fraco. Algo que parecia... risadas. Não de alegria, mas de escárnio. Meus olhos buscaram a origem e, então, vi as silhuetas. Elas estavam na penumbra, à distância, me observando.
— Olhem só quem caiu. — A voz era cheia de desprezo.
Um deles se aproximou, sua forma envolta em uma escuridão densa. Um dos caídos, assim como eu. Mas havia algo diferente nele, algo mais sombrio.
— Azrael, o glorioso. Agora apenas mais um de nós. — Ele riu, seus dentes brilhando em um sorriso predatório. — Dói, não é? A queda. A perda. O vazio. Você vai se acostumar. Todos nós nos acostumamos.
Meu olhar encontrou o dele, e vi a escuridão refletida em seus olhos. Mas algo em mim resistiu.
— Eu não sou como vocês.
Ele riu novamente, inclinando a cabeça como se considerasse minhas palavras.
— Não? Veja onde está. Sinta o que perdeu. Você é exatamente como nós, irmão. O céu não tem mais lugar para você. Mas não se preocupe. O abismo tem braços abertos para te acolher.
— Saia do meu caminho. — Minha voz saiu firme, ainda que meu corpo estivesse fraco.
O sorriso dele desapareceu por um momento, mas logo voltou, mais perverso.
— Você vai aprender, Azrael. Aqui, não há glória, apenas sobrevivência. Quando perceber isso, estaremos esperando.
Ele se afastou, e as outras silhuetas se dissiparam na escuridão.
Eu estava sozinho novamente, mas agora, mais do que nunca, sabia que o mundo em que havia caído não era um lugar para hesitação ou fraqueza.
Olhei para o horizonte vazio e dei um passo à frente. Eu não pertencia mais ao céu, mas também não me renderia ao abismo…
Ainda havia algo que eu poderia fazer. Algo que eu deveria fazer.
.
O nome dela ecoou em minha mente, e uma determinação renovada percorreu meu corpo. Se o céu não a protegeria, eu o faria.
Mesmo que isso significasse lutar contra o Criador e o próprio inferno.
Meus olhos se abriram com esforço, pesados como se carregassem o peso de todo o céu e da terra. A luz suave e pálida que atravessava minhas pálpebras mal abertas parecia ofuscante, como se eu estivesse tentando enxergar através de um véu de neblina. Pisquei lentamente, tentando ajustar minha visão.
Tudo parecia embaçado, indistinto. Havia sombras e formas ao meu redor, mas nenhuma delas fazia sentido imediato. Por um momento, pensei estar de volta ao limbo — ou pior, em algum canto esquecido do abismo.
Tentei mover a cabeça, mas até isso parecia um esforço monumental. O cheiro de antisséptico chegou às minhas narinas, estéril e artificial. Algo frio pressionava meu pulso e percebi a leve tensão de fios presos ao meu braço.
Pisquei mais algumas vezes, e finalmente as formas começaram a tomar forma. Cortinas brancas delimitavam o espaço ao meu redor, balançando suavemente, como se seguissem um ritmo próprio. O bip suave e constante de um monitor chegou aos meus ouvidos, preenchendo o silêncio.
Foi então que percebi: eu estava em um hospital.
Minha mente tentou processar isso, mas as lembranças eram um borrão. Fragmentos de dor, de gritos, de uma batalha... E então, a queda. A queda que parecia não ter fim.
Eu deveria estar morto.
Minhas mãos se moveram com dificuldade, trêmulas, como se ainda não reconhecessem o corpo em que estavam. Levei uma delas até o peito, sentindo o ritmo lento, mas constante, do meu coração. O toque da minha pele era estranho, quase desconhecido.
— Onde... — Minha voz saiu rouca, um sussurro quase inaudível. A garganta parecia seca, como se eu não falasse há milênios.
A porta do quarto se abriu lentamente, e uma figura entrou. Era uma mulher, vestida de branco, com um crachá pendurado no pescoço. Seus olhos encontraram os meus, e ela parou por um instante, surpresa.
— Você está acordado... — A voz dela era calma, mas carregada de algo que não consegui identificar.
Ela se aproximou, pegando um pequeno aparelho para verificar meus sinais. Eu a observei em silêncio, ainda tentando juntar os pedaços de tudo o que havia acontecido.
— Onde estou? — perguntei novamente, minha voz mais firme desta vez.
Ela olhou para mim, hesitando por um segundo antes de responder.
— Você está no St. Raphael’s Medical Center. Foi encontrado desacordado há alguns dias... Na verdade, não sabemos como você chegou lá.
Minha mente girou com a informação. Dias? Não fazia sentido. Para mim, tudo havia acontecido em questão de minutos.
— Quem me trouxe aqui? — insisti, minha voz carregando uma urgência que fez a mulher franzir a testa.
— Ninguém sabe ao certo. Você foi encontrado no estacionamento, desacordado, com sinais de ferimentos graves nas costas. Quando a ambulância chegou, você já estava inconsciente.
Ela hesitou novamente, como se considerasse dizer algo mais.
— Seu caso é estranho. Nenhum dos médicos consegue entender como você sobreviveu àquele tipo de lesão.
Meus dedos involuntariamente se moveram em direção às costas, mas algo me impediu. Eu sabia o que havia lá. Sabia o que havia perdido.
Olhei para a mulher novamente, mas ela já estava se afastando.
— Vou chamar o médico. Ele virá para examiná-lo.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela saiu, fechando a porta atrás de si.
Sozinho novamente, deixei minha cabeça cair de volta no travesseiro. O hospital parecia seguro, mas eu sabia que minha presença ali era temporária. O que aconteceria quando eles descobrissem quem — ou o que — eu era?
O nome dela ecoou em minha mente… .
Eu precisava sair dali. Ela precisava de mim.
O desconforto dos fios presos ao meu braço e ao peito era insuportável. Eu precisava me mexer, precisava sair dali. Levei a mão trêmula até um dos tubos que se conectavam ao meu pulso. A dor aguda atravessou meu corpo quando puxei o acesso, mas não parei.
Outro fio estava grudado no meu peito, e tentei arrancá-lo, mas meus dedos estavam fracos demais. O mundo ao meu redor parecia girar, como se eu estivesse à beira de um desmaio.
— Droga... — murmurei, frustrado com a falta de controle sobre o meu próprio corpo.
Foi então que ouvi passos suaves. Levantei os olhos, minha visão ainda turva. Duas figuras entraram no quarto, movendo-se com uma confiança desconcertante.
A primeira era uma mulher de cabelos completamente pretos, que pareciam brilhar sob a luz fraca do quarto. Seus olhos de um castanho profundo eram intensos, carregados de algo que parecia sabedoria antiga misturada com um toque de desafio. Ela usava roupas simples, mas sua postura era imponente, como se cada movimento dela fosse cuidadosamente calculado.
A segunda figura era um homem alto e robusto, com um ar predatório que fazia o ambiente parecer mais pesado. Seu cabelo negro caía em ondas, e seus olhos eram de um âmbar perturbador, que pareciam observar cada detalhe com atenção quase cruel. Ele tinha uma aura que exalava perigo e poder.
— Não se mexa mais, Azrael. Você está muito fraco para isso — disse a mulher, sua voz soando firme, mas com um tom de compaixão.
— Quem... quem são vocês? — perguntei, tentando me sentar, mas minhas forças não colaboravam.
Ela deu um passo à frente, seus olhos fixos nos meus.
— Meu nome é Freya. Sou uma nefilin. Fui enviada para te ajudar.
— Enviada por quem? — retruquei, minha desconfiança evidente.
O homem ao lado dela deu uma risada baixa, quase divertida.
— Por ninguém que você confie, tenho certeza — respondeu ele. — Sou Leviatã. E, antes que pergunte, não, eu não sou do tipo que segue ordens.
— Leviatã? — Minha voz saiu como um sussurro. O nome soava como uma ameaça antiga, algo que eu deveria temer, mas havia uma estranha tranquilidade na presença dele.
Freya ajoelhou-se ao meu lado, colocando uma mão leve sobre meu braço.
— Não temos muito tempo. Eles virão atrás de você. Você não pode ficar aqui — disse ela, começando a remover os fios presos ao meu corpo com habilidade surpreendente.
Leviatã cruzou os braços, observando a cena com um olhar impaciente.
— Se você continuar a se debater como um humano qualquer, vai morrer antes que consigamos tirá-lo daqui. Aceite a ajuda, Azrael.
Eu queria responder, protestar, exigir explicações, mas meu corpo não me obedecia. Freya tirou os últimos fios e se levantou, estendendo a mão para mim.
— Você precisa confiar em nós agora. Se quiser sobreviver, venha.
Olhei para ela, depois para Leviatã. Algo na expressão dele parecia quase desafiador, como se ele quisesse que eu recusasse.
— Vamos — disse Leviatã, já caminhando em direção à porta. — O tempo está acabando.
Com esforço, segurei a mão de Freya, que me ajudou a ficar de pé. Minhas pernas tremiam, e o mundo parecia girar, mas uma coisa era clara: eu não tinha escolha.
Eles eram minha única chance.
"Bem-aventurado aquele que lê, e os que ouvem as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo."
— Como assim? — meus olhos piscavam sem parar enquanto eu os encarava — Vocês podem recomeçar? Desde o começo por favor…
Azazel respirou fundo e se levantou logo em seguida, vindo em minha direção com os punhos cerrados.
— Qual o seu problema? Você caiu e ficou burro? Por acaso bateu a cabeça ao cair e aí seu QI diminuiu?
Asmodeus segurou seu pulso, enquanto Belzebu se pôs na frente de Azazel, com as mãos em seu peito, impedindo-o de se aproximar totalmente de mim. Azazel, mesmo caído, continuava sem conseguir controlar seus impulsos de raiva, e ira. E claro, aquilo me assustou. Então, mesmo caídos nós permanecemos com resquícios de nossas personalidades de quando éramos anjos?
Azazel continuava a se debater contra o aperto de Asmodeus, seus olhos faiscando em fúria.
— Me solta, droga! Esse idiota tá me tirando do sério! — ele rosnou, tentando se livrar do aperto.
Belzebu suspirou pesadamente, mantendo-se firme entre nós dois.
— Você não vai matá-lo, Azrael acabou de cair. Isso seria um desperdício de tempo.
Franzi o cenho, passando uma mão trêmula pelos cabelos desgrenhados.
— É claro que eu bati a cabeça na queda — murmurei, minha voz carregada de sarcasmo. — E acabei de sair de um hospital. Ainda tenho muitos remédios no meu corpo humano, então sim, estou um pouco lento.
Azazel bufou, mas parou de se debater, apenas cruzando os braços e me lançando um olhar de puro desprezo.
— Ótimo. Então você está burro temporariamente — retrucou ele, revirando os olhos.
Asmodeus soltou o pulso de Azazel com um suspiro exasperado, enquanto Belzebu apenas esfregava as têmporas, como se estivesse tentando conter uma dor de cabeça iminente.
— Certo, vamos tentar mais uma vez — disse Asmodeus, sua voz carregada de paciência forçada. — Você caiu. Agora é um de nós. Mas parece que ainda não entendeu completamente o que isso significa.
— Vocês continuam agindo como se eu devesse saber de tudo automaticamente — rebati, irritado. — Eu perdi as asas, não o cérebro.
— Você perdeu muito mais do que isso, Azrael — disse Belzebu, sua expressão séria. — E é isso que estamos tentando te explicar.
Cruzei os braços, tentando organizar os pensamentos ainda nebulosos. Eu sabia que havia algo errado, que minha própria existência estava alterada, mas a realidade da queda ainda era um peso esmagador sobre mim.
— Então me expliquem. Desde o começo. Sem socos nem insultos, por favor — falei, lançando um olhar para Azazel, que apenas resmungou algo inaudível.
Asmodeus trocou um olhar com Belzebu antes de se aproximar um passo.
— Tudo começou com a profecia. Nós caímos primeiro, e isso você se lembra bem. E você, Azrael, agora foi o último a desafiar o Criador por causa dela.
Meu corpo enrijeceu. A profecia.
O motivo da minha ruína. O motivo da minha queda.
Engoli em seco.
— Continuem.
— Tudo isso tinha que acontecer, já estava escrito Azrael! — Leviatã deu de ombros despreocupado — Faz parte da profecia, faz parte de tudo que tem que acontecer, até onde sabemos.
Eu assenti, começando a compreender, mas ainda não sabia direito como seria tudo dali para frente. Eu havia sido bombardeado de informações depois de fugir do hospital, e minha cabeça ainda rodava.
— Até aqui, ok? — Mammon chamou minha atenção.
Olhei para ele ainda assentindo.
— Certo! Você agora precisará viver como um humano, vai ter uma vida de humano Azrael. Com nome, documentos, um emprego… tudo isso.
Pisquei algumas vezes, tentando assimilar o que Mammon havia acabado de dizer.
— Espera aí… — ergui a mão, como se pedisse um tempo para processar aquilo. — Você quer dizer que agora eu vou ter que… viver como um humano? Tipo… uma vida normal?
— Foi exatamente o que eu acabei de dizer — Mammon revirou os olhos. — Vai precisar de um nome, documentos, um emprego… toda essa baboseira mundana.
Eu passei uma mão pelo rosto, sentindo o peso da exaustão me atingir de novo. Minha cabeça ainda rodava desde que fugimos do hospital, e cada nova informação parecia um soco no meu cérebro já debilitado.
— Eu… — balancei a cabeça, tentando ordenar os pensamentos. — Isso não faz sentido. Como vou simplesmente assumir uma vida humana? Eu não sei como ser um humano!
Leviatã deu um sorriso torto e deu um tapa no meu ombro.
— Relaxe, você vai aprender. Não é tão difícil. Eles fazem isso o tempo todo.
— Eu passei eras inteiras observando a humanidade, mas nunca pensei em viver como um deles — murmurei, franzindo o cenho.
Mammon cruzou os braços, impaciente.
— Bem, agora você vai ter que aprender. Gostando ou não.
Soltei um suspiro pesado. Meus instintos gritavam que eu deveria estar em outro lugar, fazendo algo importante… mas eu nem sabia mais o que era importante agora. Tudo que eu conhecia havia desmoronado junto com a minha queda.
— E qual é o meu nome, então? — perguntei, olhando para eles.
Leviatã trocou um olhar divertido com Mammon antes de responder:
— A partir de agora, você é apenas… " ".
Franzi o cenho, sentindo o peso daquele nome cair sobre mim.
— ? — repeti, como se testasse as palavras na boca.
— Sim, soa bem humano, não acha? — Leviatã deu de ombros.
Mammon cruzou os braços, impaciente.
— Se quiser pode inventar outro, mas não seria bom, já cuidamos de tudo. Documentos, histórico, identidade… a partir de hoje, esse é você.
Soltei um suspiro pesado. Tudo parecia estranho, irreal, como se eu estivesse vestindo uma pele que não era minha. Mas a verdade era cruel: eu não era mais Azrael. Não era mais um anjo.
Agora, eu era . Um humano. E, pelo visto, não havia nada que eu pudesse fazer quanto a isso.
Observei Freya fumando na varanda e automaticamente franzi meu cenho, achando estranho. A vida humana sempre fora tão efêmera e ao mesmo tempo tão complexa aos meus olhos, eu já havia transportado tantas almas por causa daquilo… ver Freya fumando foi quase um choque de realidade, aliás, mais um.
Freya soltou a fumaça devagar, os olhos fixos em algum ponto distante da cidade iluminada. O brilho avermelhado da brasa do cigarro contrastava com a escuridão ao seu redor.
Ela percebeu minha aproximação antes que eu dissesse qualquer coisa. Sem desviar o olhar, ergueu o cigarro entre os dedos e o estendeu para mim.
— Quer um? Ou quer dar uma tragada, sei lá? — sua voz saiu casual, quase divertida.
Fitei o cigarro por um momento, hesitante.
— Não. — Minha resposta foi automática, mas meus olhos permaneceram fixos no pequeno cilindro fumegante.
eya soltou uma risada baixa, finalmente virando-se para me encarar.
— Você já carregou incontáveis almas que morreram por causa disso — apontou, tragando outra vez. — E, no entanto, agora que está aqui, vivendo como um humano, parece curioso.
Cruzei os braços, desviando o olhar para a cidade.
— A vida humana sempre me intrigou — admiti, a voz mais baixa do que eu pretendia. — Efêmera, frágil e, ao mesmo tempo, cheia de contradições.
Ela sorriu, inclinando a cabeça levemente.
— E agora você faz parte dela.
Seu tom tinha um toque de ironia, mas também algo que eu não soube identificar.
— Não por escolha — murmurei.
Freya apenas tragou o cigarro novamente, sem dizer nada. Mas seu olhar dizia tudo.
— Por escolha sim, Azrael. Você escolheu cair. Está na profecia. Além do mais, porque contrariou o Criador se não por escolha? Você conhecia as regras, todos nós conhecíamos.
Fiquei em silêncio por um momento, apenas observando a brasa do cigarro brilhar entre os dedos dela antes de se apagar levemente com o vento.
— Eu não escolhi isso — murmurei, mas a convicção na minha voz não era tão firme quanto eu gostaria.
Freya soltou uma risada curta, sem humor.
— Você realmente acredita nisso? — Ela se virou para me encarar de frente, apoiando o cotovelo no parapeito da varanda. — Você poderia ter abaixado a cabeça, aceitado o que foi determinado. Mas desafiou o Criador, questionou a profecia. Isso foi uma escolha, Azrael.
O nome antigo fez algo dentro de mim se revirar. Eu já não era mais Azrael, mas — um nome falso, uma identidade forjada para um ser que não pertencia a lugar nenhum.
Passei uma mão pelos cabelos, frustrado.
— Eu questionei porque era o certo. Não posso aceitar um destino que condena uma única pessoa a carregar o peso de uma guerra inteira.
— Você não pode aceitar um destino que não pode controlar — ela corrigiu, jogando o cigarro fora e esmagando a brasa com a ponta do pé. — É por isso que está aqui agora. E sabe o pior? Você ainda não entendeu o que isso significa.
Meus punhos se cerraram instintivamente.
— Então me ilumine, Freya. O que exatamente significa?
Ela sorriu de lado, mas não havia diversão no gesto. Apenas algo parecido com pena.
— Significa que você agora faz parte dessa profecia, queira ou não. Você caiu por causa dela… e agora vai viver para cumprir seu papel.
Um arrepio percorreu minha espinha. Eu já sabia disso, mas ouvir as palavras em voz alta fez tudo parecer ainda mais real.
— E qual é exatamente o meu papel? — perguntei, mais para mim mesmo do que para ela.
Freya suspirou, cruzando os braços.
— Isso, , é algo que você vai ter que descobrir sozinho. Volte lá para dentro, Lúcifer deve estar quase chegando.
— Lúcifer? — arqueei as sobrancelhas — Há quanto tempo não o vejo… aliás, não via nenhum de vocês.
Freya riu baixinho, levando o cigarro aos lábios mais uma vez.
— Lúcifer vai trazer mais detalhes sobre sua nova vida humana — disse, soltando a fumaça devagar. — E, francamente, estou curiosa para ver sua reação.
ranzi o cenho, cruzando os braços.
— Minha reação?
— Ah, sim. — Ela sorriu de canto. — Porque uma coisa é entender que agora você é humano, outra é viver como um. Lúcifer adora esses pequenos detalhes…
Algo no tom dela me incomodou.
— O que ele fez?
Freya apenas riu novamente e apagou o cigarro no cinzeiro.
— Você verá. Agora, vamos, . Quanto mais tempo ele espera, mais impaciente ele fica. E, sinceramente, ninguém quer ver Lúcifer impaciente.
seguiu Freya de volta para dentro da casa. O ambiente parecia ainda mais carregado agora que ele sabia quem mais estava ali dentro. Assim que atravessaram a porta, os olhares de Mammon, Asmodeus, Leviatã, Belzebu, Belphegor e Azazel se voltaram para ele.
O clima era denso, quase palpável. Nenhum deles disse nada no primeiro instante, apenas o observaram, como se o estivessem estudando, esperando para ver se ele realmente pertencia ali agora.
Antes que pudesse pensar em algo para dizer, o som de passos firmes ecoou pelo cômodo, e um novo peso tomou conta do ambiente.
Lúcifer havia chegado.
— Finalmente esse momento chegou — disse ele, caminhando em direção a com um sorriso quase satisfeito.
O brilho em seus olhos denunciava que estava se divertindo com tudo aquilo.
— O anjo da morte agora é apenas mais um mortal entre tantos… — Ele parou diante de e estendeu um envelope para ele. — Aqui estão seus documentos, identidade, passaporte, carteira de trabalho… tudo que precisa para sobreviver entre os humanos.
pegou o envelope com certa hesitação. Era estranho ver sua existência resumida a meros papeis, como se sua história tivesse sido reescrita de forma tão banal.
Lúcifer, ou melhor, Winston, sorriu ao notar sua expressão.
— Você precisará se acostumar a nos chamar pelos nossos novos nomes. Agora somos pessoas comuns, com vidas comuns.
Ele olhou ao redor e começou a apontar um por um.
— Eu sou Winston. Mammon agora é Anthony. Azazel é Conrad. Leviatã é Lupin. Belphegor agora atende por Zoraida. Belzebu virou Vickie e Asmodeus é Rose.
piscou ao ouvir aquele nome. Rose? Ele não esperava algo assim vindo de Asmodeus.
— E Freya… bem, Freya continua sendo Freya — Winston concluiu com um pequeno sorriso, cruzando os braços.
—
Os outros pareciam indiferentes, já acostumados com suas novas identidades. Mas para , aquilo era mais um lembrete do quão longe ele estava do que um dia fora.
— Alguma pergunta? — Winston arqueou a sobrancelha, o divertimento ainda presente em sua voz.
apertou o envelope entre os dedos e soltou um longo suspiro.
— Muitas. Mas algo me diz que vocês não vão me responder tudo agora.
Winston soltou uma risada baixa.
— Você está aprendendo rápido. Isso é bom. Agora sente-se. Temos muito o que conversar.
o obedeceu e caiu no sofá ao lado de Belzebu, quer dizer, Vickie, que lhe deu um sorriso tranquilizador.
— Você vai ser professor de Filosofia, na mesma escola que todos nós.
— Como eu vou ser professor? Eu não sei ser professor.
Azazel bufou alto, cruzando os braços com impaciência.
— Pelo amor de… isso é sério? Como você pode ser tão lento? É só ensinar! — Ele esbravejou, passando a mão pelo rosto como se estivesse prestes a perder o controle novamente.
Winston o lançou um olhar afiado, e o ambiente pareceu esfriar por um breve momento.
— Azazel. — Sua voz soou baixa, mas carregada de autoridade.
Conrad, ou melhor, Azazel, revirou os olhos, mas se calou, cerrando os punhos ao lado do corpo.
Winston então voltou sua atenção para , um sorriso sutil brincando em seus lábios.
— Você saberá. Quem sabe mais da vida do que você, o anjo da morte?
abriu a boca para retrucar, mas parou. A verdade era que Winston tinha razão. Ele havia passado eras observando, guiando almas, testemunhando a ascensão e a queda de impérios, a grandeza e a miséria da humanidade. Se havia alguém que compreendia a vida em sua plenitude, esse alguém era ele.
Mas ensinar… era outra história.
Ele suspirou, passando a mão pelos cabelos.
— E se eu falhar?
Winston riu, dando um passo mais perto.
— Então será sua primeira experiência genuinamente humana.
piscou os olhos assimilando aquela afirmação.
— Agora vem o mais importante Azrael, digo, . Além de nós, você também vai trabalhar com a .
piscou novamente, assimilando aquela informação com um misto de surpresa e cautela.
— ? — Ele repetiu o nome lentamente, como se estivesse tentando encaixá-lo na avalanche de acontecimentos recentes.
Winston assentiu, cruzando os braços.
— Sim, . Ela também é professora na mesma escola onde você vai trabalhar.
— E qual a relação dela com tudo isso? — franziu o cenho, sentindo uma estranha inquietação crescer dentro de si.
Os outros trocaram olhares rápidos entre si, como se estivessem avaliando se deveriam contar mais do que o necessário naquele momento.
Foi Freya quem quebrou o silêncio, tragando seu cigarro uma última vez antes de apagá-lo no cinzeiro.
— Isso… você também vai ter que descobrir sozinho.
apertou a mandíbula, claramente insatisfeito com a resposta vaga.
— Vocês adoram me deixar no escuro, não é?
Leviatã— ou melhor, Lupin — riu baixo, apoiando-se no encosto do sofá.
— Bem-vindo à vida humana, .
"E sofreste, e tens paciência; e trabalhaste pelo meu nome, e não te cansaste. Tenho, porém, contra ti que deixaste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, de onde caíste, e arrepende-te, e pratica as primeiras obras; quando não, brevemente a ti virei, e tirarei do seu lugar o teu castiçal, se não te arrependeres."
levou a xícara de café aos lábios enquanto terminava de montar a prova de seus alunos, os olhos dela passeavam pelos textos na tela do notebook, revisando e revisando, não podia deixar que nenhuma das questões tivessem falhas ou furos, pois conhecia bem seus alunos do segundo ano do ensino médio. Nada passava batido pelos olhos deles, e qualquer oportunidade de anular uma questão, por uma vírgula que fosse, eles aproveitariam.
terminou de revisar a última questão, os dedos deslizando ágeis pelas teclas enquanto fazia pequenos ajustes. A barra de progresso do editor de texto piscava no canto da tela, e ela soltou um suspiro satisfeito ao finalmente clicar em "Salvar".
Fechou o notebook com cuidado, como se o simples gesto de encerrar o trabalho fosse uma pequena vitória para aquela noite. A rotina, para ela, era sagrada. O cuidado com cada detalhe não era apenas um traço profissional; era parte de quem ela era.
Com a xícara ainda pela metade ao lado, levantou-se da cadeira esticando os braços, sentindo os músculos tensionados pelas horas sentada. Pegou a xícara e caminhou até a pequena cozinha iluminada apenas pela luz suave sob o armário. Ligou a torneira, deixando a água morna correr sobre a porcelana enquanto lavava a peça com movimentos metódicos e tranquilos.
Era assim com tudo: foco, atenção, precisão. não era do tipo que deixava pontas soltas — nem na vida, nem no trabalho. Cada pequena ação parecia carregar um peso silencioso de responsabilidade.
Depois de secar a xícara e colocá-la de volta na prateleira, ela enxugou as mãos e caminhou até a sala. Ligou a televisão, buscando algo leve para assistir. Não queria mais pensar em questões, notas, relatórios. Queria apenas deixar a mente vagar, nem que fosse por alguns minutos.
O controle remoto descansava em seu colo enquanto ela zapeava pelos canais, mas poucos programas conseguiam prender sua atenção. Parou em um filme antigo, uma comédia romântica da década de 90 que já havia assistido incontáveis vezes. Ainda assim, esboçou um pequeno sorriso ao reconhecer a trilha sonora familiar.
era prática e racional na maior parte do tempo, mas havia uma parte dela — pequena, cuidadosamente guardada — que se permitia acreditar nas coisas simples: finais felizes, encontros improváveis, coincidências que mudavam vidas. Talvez fosse uma herança de sua infância, talvez apenas uma forma de manter viva alguma esperança, mesmo quando a realidade insistia em ser dura.
Enquanto o filme seguia, ela puxou uma manta leve sobre as pernas e se recostou no sofá. Seus olhos começaram a pesar, mas ela resistiu. Gostava daqueles momentos silenciosos consigo mesma, quando podia ser apenas — sem provas, sem expectativas, sem a necessidade constante de corresponder a tudo e todos.
Amanhã seria mais um dia cheio. Mais alunos, mais responsabilidades, mais exigências. Mas, por enquanto, ela apenas se permitiu estar ali, respirando tranquila no pequeno refúgio que havia construído para si.
E mal sabia ela que o que estava por vir mudaria absolutamente tudo.
O sol da manhã iluminava os corredores da escola com uma luz dourada, tornando as paredes brancas ainda mais ofuscantes. O som abafado de passos apressados, portas batendo e risadas distantes preenchia o ambiente, típico do início de mais um dia letivo.
caminhava com sua pasta de provas debaixo do braço, os olhos atentos aos alunos que já se agitavam pelos corredores. Ela gostava daquela rotina — do previsível, do controlado. Gostava de saber o que esperar a cada dia.
Por isso, quando a diretora a chamou, junto a outros professores, para uma breve reunião no auditório, um pequeno incômodo cresceu em seu peito. Não era comum reuniões de última hora.
Ela se juntou aos colegas já reunidos perto do palco. Winston (Lúcifer), Freya, Anthony (Mammon), Rose (Asmodeus), Lupin (Leviatã), Zoraida (Belphegor) e Conrad (Azazel) estavam lá também — todos recém-chegados no quadro de professores da escola, contratados nas últimas semanas. ainda estava se acostumando com eles, mas havia algo de... diferente naquele grupo, embora nunca soubesse dizer exatamente o quê.
— Bom dia a todos — anunciou a diretora, com um sorriso formal. — Hoje vamos dar as boas-vindas a mais um membro da nossa equipe. Ele irá lecionar Filosofia para as turmas do segundo e terceiro ano.
ajeitou a bolsa no ombro, tentando disfarçar a leve ansiedade que sentia.
Foi então que ele entrou.
Seus passos eram firmes, mas havia algo quase hesitante na maneira como seus olhos percorreram o auditório. Ele vestia roupas simples — calça escura, camisa social dobrada até os cotovelos, gravata frouxa —, mas seu porte era impressionante, como se carregasse algo mais pesado que o próprio corpo.
sentiu uma fisgada estranha no peito. Como se, em algum lugar profundo dentro dela, algo tivesse despertado. Um eco antigo, inexplicável. Ela engoliu em seco, tentando ignorar o arrepio que subiu pela sua espinha.
Ele parou ao lado da diretora, que continuou sorrindo.
— Este é . Sejam bem-vindos e o ajudem a se integrar, por favor.
Ele acenou educadamente, um leve sorriso nos lábios, mas seus olhos... seus olhos vagaram de rosto em rosto com precisão cirúrgica. Quando cruzaram os de , o mundo pareceu parar por um segundo.
Ela sentiu a pressão no peito aumentar, como se o próprio ar ao redor deles se tornasse denso, difícil de respirar. Seu coração bateu mais forte, descompassado, como se tentasse acompanhar algo que ela não conseguia entender.
Imprinting. Era como se ela tivesse encontrado algo que inconscientemente esteve procurando a vida toda.
Os outros professores — Winston, Freya, Anthony, Lupin, Conrad, Zoraida e Rose — apenas acenaram de maneira casual, como se fosse um desconhecido qualquer. Nenhum sinal, nenhum reconhecimento.
Ele também os encarou como se não os conhecesse. A atuação era perfeita.
piscou rapidamente, tentando se recompor. “Não, você está imaginando coisas”, disse a si mesma. Era apenas o nervosismo da apresentação, o ambiente novo, nada além disso.
— — a diretora a chamou —, você poderia mostrar a escola para o professor , já que as turmas de vocês vão dividir muitos alunos?
Ela hesitou por um breve instante, mas logo forçou um sorriso.
— Claro. Vai ser um prazer.
apenas assentiu, e juntos, saíram para o corredor movimentado, enquanto, atrás deles, os outros caídos trocavam olhares discretos, como se soubessem que algo muito maior tinha acabado de ser colocado em movimento.
, no entanto, ainda não fazia ideia de quão profunda era a ligação que acabava de ser selada.
O corredor estava relativamente tranquilo, com apenas alguns alunos dispersos indo de um lado para o outro, carregando mochilas pesadas e conversando em grupos. caminhava ao lado de , mantendo a postura profissional, mas consciente demais da presença dele ao seu lado. Era como se cada pequeno movimento dele — o jeito como ele andava, como seus olhos analisavam o ambiente — deixasse o ar ao redor carregado.
— A escola é grande, mas você se acostuma rápido — ela começou, quebrando o silêncio que começava a ficar desconfortável. — Estamos divididos basicamente entre o prédio principal, onde ficam as salas de aula, a ala administrativa e o bloco das áreas específicas, tipo laboratório, biblioteca, ginásio... essas coisas.
assentiu em silêncio, ouvindo com atenção. Seus olhos — intensos demais para alguém recém-chegado — percorriam cada detalhe do espaço, como se mapeassem o ambiente.
— E as salas dos professores? — ele perguntou, sua voz grave soando de maneira estranhamente suave no corredor.
indicou com a cabeça.
— Logo ali. — Ela sorriu de leve. — É meio bagunçado às vezes, mas é o nosso território. Você vai se acostumar.
soltou uma pequena risada nasal, algo quase imperceptível, mas que captou de imediato.
— E como são os alunos? — ele quis saber.
Ela virou o rosto para ele, o sorriso ficando mais verdadeiro.
— Inteligentes. Questionadores. Não deixam passar nada despercebido. Se você vacilar, eles vão perceber na hora. — Deu de ombros. — Mas são bons. Quando querem, são incríveis.
pareceu ponderar aquilo por alguns segundos, como se estivesse armazenando cada palavra.
— Parece um desafio interessante — comentou, e havia algo quase... genuíno em seu tom.
— É — ela concordou. — Mas acho que você vai se sair bem.
Eles passaram pela biblioteca, e apontou a grande porta de madeira.
— Aqui é onde acontece a maior parte dos projetos de filosofia e literatura. Se precisar de ajuda, a bibliotecária, dona Marta, é um anjo. — Ela parou, rindo sem perceber. — Digo… ela é muito prestativa.
sorriu, e se sentiu estranhamente aliviada ao ver o brilho leve nos olhos dele. Era como se aquele sorriso desarmasse algo dentro dela.
Quando retomaram a caminhada, um silêncio confortável caiu entre os dois. Não era constrangedor — era denso, cheio de algo que ambos sentiam, mas nenhum ousava nomear.
Enquanto caminhavam, notava tudo: a forma como gesticulava de maneira contida, o modo como seus olhos se iluminavam levemente ao falar dos alunos, a maneira como ela parecia ser absurdamente consciente de tudo ao seu redor, como se tentasse sempre manter tudo sob controle.
“Ela é diferente.”
A constatação surgiu em sua mente com uma força inesperada.
— Você gosta daqui? — perguntou de repente, quebrando o silêncio, mais curioso do que pretendia soar.
olhou para ele, surpresa pela pergunta fora do roteiro óbvio de apresentação. Pensou por um momento antes de responder.
— Gosto. — Sua voz saiu sincera. — Não é perfeito, mas... é onde eu sinto que posso fazer alguma diferença. Nem que seja pequena.
segurou o olhar dela por alguns segundos, e sentiu o coração acelerar de novo, como se algo antigo — ancestral — pulsasse silenciosamente entre eles.
Ela desviou o olhar, apontando para uma porta à frente.
— Ali é a sua sala de aula. Sua turma vai te esperar aqui.
assentiu, observando a porta como se ela guardasse algo muito mais importante do que apenas carteiras e quadros.
deu um passo para trás, ajeitando a bolsa no ombro.
— Bom... seja bem-vindo oficialmente, .
Ele sorriu de leve, mas seus olhos diziam muito mais.
— Obrigado, . Acho que nos veremos bastante a partir de agora.
Havia um peso naquela frase que ela não conseguiu ignorar. Um peso que parecia prometer mudanças.
E, no fundo, algo dentro dela — algo que ela ainda não compreendia — sabia que ele estava absolutamente certo.
permaneceu alguns segundos parado em frente à porta da sala de aula depois que se afastou. Observou-a sumir pelo corredor, seus passos firmes e discretos, sua postura impecável. Era impressionante o efeito que aquela simples interação havia causado nele.
.
Só de pensar no nome, uma sensação antiga, quase esquecida, se agitou em seu peito. Não era apenas interesse ou curiosidade. Era algo que parecia se entrelaçar em camadas mais profundas do que ele poderia compreender naquele momento.
Não era para ser assim.
Ele havia caído com um propósito, havia aceitado seu novo destino para proteger a profecia e vigiar a garota que carregava o peso do futuro. Mas o que sentia agora era diferente — mais pessoal, mais... humano.
Fechou os olhos por um breve instante, tentando se recompor. Precisava manter o foco. Era cedo demais para se deixar levar por algo que mal entendia.
Respirou fundo, endireitou os ombros e empurrou a porta da sala.
O burburinho dos alunos imediatamente cessou quando ele entrou. Vários olhares curiosos e algumas risadinhas discretas foram lançados em sua direção. Era normal. Um novo professor sempre causava certo alvoroço, ainda mais alguém que parecia ter saído diretamente de um filme: alto, imponente, um olhar firme que parecia atravessar as pessoas.
caminhou até a mesa, colocou a pasta que carregava sobre ela e virou-se para encarar os alunos.
Por um instante, houve silêncio absoluto. Ele podia sentir a energia deles — uma mistura de desafio, desinteresse e uma pitada de respeito cauteloso.
— Bom dia — disse, sua voz soando firme, preenchendo cada canto da sala. — Meu nome é . Vou ser o professor de Filosofia de vocês este ano.
Os alunos se entreolharam, alguns apenas balançaram a cabeça em resposta, outros murmuraram um “bom dia” disperso.
apoiou as mãos na mesa, inclinando-se levemente para a frente. Seus olhos percorreram cada rosto, gravando detalhes — os mais atentos, os desinteressados, os provocadores.
— Filosofia não é uma matéria para respostas prontas — continuou. — Não estou aqui para enfiar verdades na cabeça de vocês. Estou aqui para ensinar a fazerem perguntas. As perguntas certas.
Uma leve movimentação se espalhou entre os alunos. Alguns pareceram se interessar. Outros apenas cruzaram os braços, claramente prontos para testar o novo professor.
sorriu de canto. Reconhecia aquela energia. Era parecida com a energia de almas ainda lutando para encontrar seu caminho. Era familiar. Reconfortante, até.
Pegou o giz e escreveu no quadro: "Quem somos nós?"
Virou-se novamente para a turma.
— Essa é a primeira pergunta que vocês vão aprender a fazer.
Alguns alunos franziram a testa. Outros sorriram com desdém, como se achassem aquilo pretensioso demais.
continuou:
— Não quero definições de dicionário. Quero ouvir o que vocês pensam. Mesmo que estejam errados. Mesmo que não saibam por onde começar.
Houve um silêncio hesitante, até que uma garota levantou a mão timidamente.
— A gente precisa responder agora? — ela perguntou.
apenas sorriu.
— Vocês já estão respondendo desde o momento em que nasceram. Só ainda não sabem disso.
Ele deu um passo à frente, o olhar firme e tranquilo.
— O que vamos fazer aqui não é sobre encontrar respostas. É sobre descobrir quem vocês são... e quem escolhem ser.
Os olhares, antes dispersos, começaram a se prender a ele de maneira diferente. Algo havia mudado. Em poucos minutos, — ou o que restava de Azrael — havia conquistado a atenção deles.
E, mesmo que tentasse não pensar nisso naquele momento, enquanto falava de identidade, escolhas e destino, no fundo de sua mente, uma única presença vibrava forte e constante: .
Ela era, de alguma forma, a pergunta que ele ainda não sabia como responder. Mas que, inevitavelmente, teria que enfrentar.
"O que vencer será vestido de vestes brancas, e de maneira nenhuma riscarei o seu nome do livro da vida; e confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas.E ao anjo da igreja que está em Filadélfia escreve: Isto diz o que é santo, o que é verdadeiro, o que tem a chave de Davi; o que abre, e ninguém fecha; e fecha, e ninguém abre; Conheço as tuas obras; eis que diante de ti pus uma porta aberta, e ninguém a pode fechar; porque tendo pouca força, guardaste a minha palavra, e não negaste o meu nome.”
caminhava devagar entre as fileiras de carteiras, as mãos cruzadas atrás das costas, enquanto os alunos o observavam em silêncio — uns curiosos, outros desconfiados, alguns entediados, mas todos atentos.
No quadro, em letras brancas e firmes, ainda estava escrita a pergunta: "Quem somos nós?"
Ele parou ao lado de um garoto que mastigava a ponta da caneta sem perceber.
— Você. — apontou com o queixo. — Qual o seu nome?
— Murilo.
— Murilo... quem é você?
O garoto piscou algumas vezes, confuso.
— Ué... eu sou o Murilo.
— Mas o que significa ser "o Murilo"? — ergueu uma sobrancelha, sua voz firme, mas sem arrogância. — Você é só o nome que te deram? É seu sobrenome? Sua série? Suas notas?
Alguns alunos começaram a rir. Murilo afundou um pouco no assento, sem saber o que responder.
— Isso é filosofia — continuou, voltando ao centro da sala. — É quando você começa a perceber que talvez não saiba tanto assim sobre si mesmo. E que talvez, tudo o que acredita saber... foi dito por outra pessoa.
O silêncio se instalou por alguns segundos. Ele se apoiou na beirada da mesa, o olhar firme, quase severo.
— Desconstruir o que te ensinaram a aceitar como verdade pode ser desconfortável. Mas é necessário. Vocês passaram a vida inteira ouvindo o que podem ou não ser.
fez uma pausa, deixando a tensão flutuar no ar.
— E se eu dissesse que vocês são infinitamente mais do que acreditam ser?
A sala permaneceu em silêncio. Ele percebeu os olhares diferentes agora — não de medo, mas de genuína curiosidade. Estava funcionando.
Ele se levantou e escreveu mais uma frase no quadro, dessa vez pausadamente: "Conhece-te a ti mesmo." — Sócrates
— Esse vai ser o nosso ponto de partida.
Ele olhou para todos.
— Não quero textos decorados, não quero discursos copiados da internet. Quero o que vem de vocês. Escrevam hoje, em uma folha, com a letra de vocês, uma resposta sincera — por menor ou desconexa que pareça: quem você é?
Alguns resmungos surgiram, como era esperado, mas ninguém recusou. Eles estavam engajados.
Enquanto os alunos abaixavam as cabeças para escrever, observou em silêncio, sentindo algo se remexer dentro de si. Ver aquelas mentes jovens tentando, aos tropeços, encontrar palavras para descrever a própria existência... era quase poético. E ao mesmo tempo, doloroso.
Porque ele já havia sido tudo. E agora, era ninguém.
Seu olhar perdeu o foco por alguns segundos. A imagem de lhe atravessou o pensamento como uma flecha silenciosa. Algo nela gritava “destino”, mesmo quando ele tentava ignorar.
Não era amor — ainda. Mas também não era neutralidade. Era uma chamada. Um sinal.
E isso o inquietava mais do que gostaria de admitir.
No fim da aula, ele recolheu as folhas com as respostas — algumas rasuradas, outras curtas demais, outras intensas demais para o que esperava. Uma em especial chamou sua atenção. A garota havia escrito:
"Sou uma tentativa. Às vezes erro. Às vezes sou só ruído. Mas continuo tentando."
sorriu de leve.
Era isso.
Filosofia não era sobre respostas. Era sobre encontrar coragem para se encarar — mesmo quando não se gostava do que via.
Quando os alunos começaram a sair, alguns se despediram com um aceno, outros apenas passaram direto. Ainda era o primeiro dia, mas ele sentia: algo havia sido plantado ali.
se sentou, apoiando os braços na mesa, encarando o quadro por alguns segundos.
“Quem somos nós?”
A pergunta também era dele. E em algum lugar naquela escola, havia uma parte da resposta. Chamada .
andava pela sala, de corredor em corredor, observando os alunos fazendo a prova. Seus olhos passeavam de aluno por aluno, de carteira em carteira. Confiava neles, sabia que não haveria nenhuma tentativa de colas, seja olhando ou se comunicando com o colega do lado ou de trás, ou fosse com anotações nas palmas das mãos e etc. Seus alunos não eram assim, e de certa forma ela se orgulhava disso.
O silêncio da sala era quase confortável, preenchido apenas pelo som suave de canetas deslizando sobre o papel, o leve folhear de uma folha sendo virada, uma ou outra respiração mais tensa.
Ela parou ao lado da janela, cruzando os braços enquanto observava um dos alunos franzir a testa diante de uma das questões mais reflexivas da prova. Aquilo a fez sorrir levemente.
sempre construía as avaliações de forma que exigissem mais do que a repetição de conteúdo: queria que pensassem, que analisassem, que mergulhassem um pouco mais fundo do que o raso habitual. E era ali, nesse esforço silencioso dos rostos concentrados diante dela, que ela sentia que seu trabalho fazia sentido.
Seu olhar percorreu a sala mais uma vez, com calma. Conhecia cada um daqueles rostos. Sabia quem tinha dificuldades, quem se cobrava demais, quem fingia estar bem quando claramente não estava. não era apenas uma professora atenta. Era observadora por natureza.
Mas naquele dia, havia algo diferente.
Não nos alunos. Nela.
Uma inquietação que ela não sabia nomear. Uma vibração estranha no fundo do peito, como se algo estivesse para acontecer. Como se o ar estivesse levemente mais denso do que deveria.
Seus olhos se voltaram por instinto para o relógio na parede. Ainda faltavam quinze minutos para o fim da prova. Ela suspirou, ajustando a manga da blusa no braço e retornando ao fundo da sala.
Passou por algumas carteiras vazias — os lugares da turma da manhã que haviam trocado de turno, ou daqueles que estavam em excursão — e por um momento, se permitiu sentar na cadeira perto da porta, onde costumava deixar a bolsa.
Ali, sem dizer uma palavra, observou.
Seus pensamentos, no entanto, voltaram de forma involuntária ao novo professor.
.
Havia algo ali que ela ainda não conseguia entender. Era como se, desde a primeira troca de olhares, algo tivesse se deslocado dentro dela. Uma parte que ela não sabia que existia, e que agora se fazia presente de maneira silenciosa e intensa.
Ela não acreditava em coincidências. E aquela sensação que ele despertava nela... era tudo, menos comum.
Tentou afastar o pensamento. Voltou os olhos para os alunos.
Era dia de prova. Tudo que ela precisava naquele momento era manter a calma.
O corredor estava silencioso naquele horário, abafado pelo calor leve do início da tarde e pelo som distante das aulas em andamento. A maior parte dos professores estava em sala, e , com um raro intervalo entre turmas, decidiu se refugiar onde sempre se sentia confortável: a biblioteca.
Ela entrou com passos leves, acenando de forma discreta para dona Marta, que catalogava livros atrás do balcão. O ambiente tinha um cheiro reconfortante de papel antigo, madeira envernizada e silêncio.
Caminhou entre as estantes com a tranquilidade de quem conhecia bem cada corredor, até encontrar sua seção favorita — filosofia e sociologia. Não buscava nada específico, mas gostava de tocar as lombadas dos livros, como se cada um carregasse algo que ela pudesse absorver com o simples toque.
Estava concentrada folheando uma edição surrada de O Banquete, de Platão, quando sentiu uma presença familiar atrás de si. Virou-se devagar, os olhos encontrando o corpo alto de parado a poucos metros. Ele a observava com um leve sorriso, como se não soubesse se podia ou devia interrompê-la.
— Está procurando Sócrates ou respostas? — ele perguntou, com a voz baixa, quase como quem respeita o silêncio do ambiente e, ao mesmo tempo, o silêncio que existia dentro dela.
arqueou uma sobrancelha, fechando o livro com um estalo suave.
— Às vezes os dois parecem a mesma coisa — respondeu com um meio sorriso. — Mas hoje acho que só estou tentando ocupar a mente.
Ele assentiu, dando alguns passos mais perto.
— A Biblioteca é um bom lugar pra isso. Silêncio e verdades desconfortáveis em forma de papel — completou , os olhos percorrendo brevemente as prateleiras antes de voltarem para ela.
sorriu de leve com a observação. Havia algo no modo como ele falava que a desarmava — era uma combinação rara de firmeza e sensibilidade. Não era arrogante, mas também não parecia se esconder atrás de inseguranças como muitos que ela conhecia.
— Você também está com tempo livre? — perguntou, voltando a guardar o livro na estante.
— Sim. Minha turma foi dispensada para um projeto com o professor de Biologia — ele respondeu, encostando-se discretamente à estante ao lado. — Vim procurar alguma leitura que me ajude a não parecer tão novo no assunto.
— Filosofia? — ela o provocou com um olhar curioso. — Você não parece novato.
deu uma risada curta e sincera.
— Talvez não seja. Mas viver a teoria é bem diferente de apenas ensiná-la. E… — ele hesitou por um instante, medindo as palavras — …essa é a parte que mais me desafia.
o observou por um momento. Havia uma vulnerabilidade camuflada naquela resposta. Como se ele estivesse aprendendo, aos poucos, o que era viver de verdade — como se carregasse o peso de alguém que já viu demais.
— Bem-vindo ao clube — disse ela, suave. — Aqui ninguém tem todas as respostas. Nem mesmo os professores.
Eles ficaram em silêncio por alguns segundos, mas não era um silêncio desconfortável. Era denso, cheio de algo que se formava entre eles como uma ponte invisível.
— Posso te mostrar alguns títulos? — ela perguntou, com um gesto sutil da cabeça em direção às prateleiras.
— Agradeço — ele disse, e a seguiu sem pensar duas vezes.
Enquanto ela mostrava os livros, falando com familiaridade e paixão sobre alguns títulos e autores, a escutava com atenção — não apenas às palavras, mas ao som da voz, à maneira como seus olhos brilhavam ao mencionar passagens ou conceitos.
Ela era tão humana… e ao mesmo tempo, havia nela algo que transcendia.
"Talvez esse seja o começo," ele pensou. "Ou talvez... apenas o reconhecimento de algo antigo."
, por sua vez, tentava não se deixar envolver. Mas a sensação persistia: de que aquele encontro não era aleatório. Que não era só um colega novo — era um presságio.
E talvez, uma ameaça ao controle que ela sempre teve sobre a própria vida.
percorreu a estante com passos leves, os dedos deslizando pelas lombadas dos livros com familiaridade. a seguia em silêncio, curioso com a naturalidade com que ela se movia naquele espaço — como se cada livro fosse um velho conhecido, cada canto da biblioteca uma extensão dela mesma.
— Aqui — disse, puxando um exemplar de capa gasta. — A Rebelião das Massas, de Ortega y Gasset. É um dos meus favoritos. Ele fala sobre a sociedade moderna e o esvaziamento do pensamento crítico… tem muito a ver com o que você propôs na sua primeira aula.
Ela o entregou sem cerimônia. pegou o livro, mas seus olhos estavam nela.
— Você leu isso pela primeira vez com que idade? — ele perguntou, intrigado.
riu, um som suave e breve.
— Dezesseis. E não entendi quase nada. — Cruzou os braços. — Mas algo me provocou. Me fez querer entender. E continuei relendo até fazer sentido.
— Isso diz muito sobre você.
Ela ergueu uma sobrancelha, brincando:
— Espero que coisa boa.
sorriu de canto, mas sua expressão era mais séria agora. Ele folheou algumas páginas, depois fechou o livro e olhou para ela.
— Você se esforça para entender o mundo… ou para se manter nele?
A pergunta a pegou de surpresa. Ela piscou lentamente, tentando entender se aquilo era um teste ou se ele simplesmente enxergava mais do que deveria.
— Os dois — respondeu, após um instante. — Acho que, às vezes, entender o mundo é a única maneira de continuar existindo nele.
assentiu lentamente, absorvendo a resposta como algo valioso.
virou-se de volta para a estante e puxou mais um livro. Este, menor, com capa de tecido azul e título em dourado.
— Esse aqui é mais leve. Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke. Tem um trecho que sempre me marcou.
Ela abriu na página exata, como se já soubesse onde encontrar. Estendeu o livro para que ele lesse:
"Procure o fundo das coisas: ali, o humor é grave. E é ali que começa a beleza."
leu em silêncio. Seus olhos se demoraram nas palavras, e quando ergueu o rosto para encará-la, havia algo diferente em seu olhar — como se aquele pequeno fragmento de poesia tivesse revelado mais sobre ela do que horas de conversa poderiam.
— Você vê beleza no que é grave? — ele perguntou, voz baixa.
— Sempre vi. — sorriu, mas o sorriso não era leve. — O mundo é feito de tragédias silenciosas. Às vezes, tudo que podemos fazer é olhá-las de frente… e encontrar sentido.
Um silêncio denso pairou entre os dois. Não havia constrangimento, apenas a percepção de que estavam vendo um ao outro — além da superfície, além das máscaras.
Os dedos de ainda seguravam o livro, agora entre os dois. Quando seus dedos roçaram os dela, num movimento breve e sutil, sentiu o corpo inteiro reagir. Não era só o toque. Era o peso dele.
Como se aquele simples gesto tivesse acionado algo adormecido dentro dela.
Ela afastou a mão com naturalidade, ou pelo menos tentou. , por sua vez, manteve a compostura, mas o leve cerrar da mandíbula denunciava que ele também havia sentido.
— Você deveria ficar com o livro por enquanto — ela disse, tentando recuperar a naturalidade.
— Só se você assinar a página em que me emprestou — respondeu, com um sorriso discreto.
riu, dessa vez de verdade.
— Vaidoso.
— Instruído. — Ele devolveu, como se compartilhassem uma piada antiga.
O sinal distante ecoou pelos corredores, anunciando o fim do próximo período. O som quebrou o feitiço silencioso entre os dois.
olhou para o relógio no pulso.
— Preciso voltar.
— Eu também. — a acompanhou até a saída da biblioteca. Antes que ela seguisse para o corredor, ele falou, quase num sussurro:
— Obrigado. Pela conversa. Pelo silêncio. E… pelo livro.
Ela assentiu, mas não respondeu. Apenas se virou e seguiu seu caminho, tentando ignorar a sensação estranha que subia por sua coluna.
Já permaneceu onde estava por alguns segundos, o livro de Rilke nas mãos e a mente a mil. Havia algo nela. Algo antigo. Algo inevitável.
E pela primeira vez desde que caiu… ele não soube se estava pronto para o que aquilo significava.
Poucas horas haviam se passado desde a conversa na biblioteca, mas já sentia o mundo girar de forma diferente.
Sentado em sua sala, corrigindo as primeiras atividades entregues pela turma, ele mantinha a caneta na mão, mas sua atenção estava flutuando — inquieta. Algo sutil havia mudado no ambiente.
A luz natural que entrava pelas janelas parecia... mais pálida. O ar estava carregado.
Ele deixou a caneta de lado e se levantou lentamente, os olhos fixos no corredor visível pela pequena janela da porta da sala. O movimento dos alunos era o de sempre — passos apressados, risadas, conversas jogadas ao ar — mas sentia como se houvesse algo além disso.
Uma pulsação fraca, irregular, algo que ele conhecia bem demais: interferência espiritual.
Fechou os olhos por um instante, tentando focar. Estendeu sutilmente sua percepção — um resquício do que um dia foi — e captou...sussurros. Baixos. Pressionados. Como vozes falando dentro de uma caverna.
Sua respiração ficou mais lenta. Ele não podia chamar atenção. Não agora. Não entre humanos.
Abriu os olhos e saiu da sala calmamente, como se fosse apenas um professor indo em direção à sala dos professores. Mas seus passos o conduziram por outro corredor. Um mais afastado.
Ali, no fundo, perto da saída para o pátio, sentiu com mais força: algo estava se aproximando.
Parou ao lado da janela, olhando para fora. E então viu.
Um homem parado do lado de fora do portão da escola.
Vestia roupas escuras, a cabeça baixa. Mas sabia — ele não era humano. Não completamente. A energia que saía dele era dissonante, distorcida.
Antes que pudesse reagir, o homem ergueu a cabeça e olhou diretamente para ele. E sorriu.
Não era um sorriso comum. Era um aviso.
recuou um passo, o corpo inteiro tenso. Ele sabia o que significava: estavam sendo observados. A movimentação da profecia havia começado.
Sem hesitar, puxou o celular do bolso e digitou uma mensagem rápida para Freya:
"Presença à vista. Sombra infiltrada. Atenção total."
Freya respondeu quase imediatamente: "Estamos espalhados. Não chame atenção. Mantenha longe."
olhou de volta para o portão. O homem já havia sumido. Como fumaça. Como se nunca tivesse estado ali.
Ele sentiu o próprio peito pesar, como se o mundo estivesse prestes a inclinar — e ele estivesse em pé, no limite do abismo.
Eles estavam chegando. E ainda não sabia de nada.
Ele precisaria protegê-la. Mas por quanto tempo conseguiria esconder quem ele realmente era?
Mais tarde naquela noite…
O céu estava coberto por nuvens pesadas, sem lua à vista. Um vento morno soprava entre os prédios da cidade, mas dentro do apartamento antigo e mal iluminado onde se reuniam, o clima era outro: tensão velada e alerta total.
entrou por último. Assim que fechou a porta atrás de si, todos os olhares se voltaram para ele.
Estavam todos ali: Winston, Anthony, Conrad, Lupin, Rose, Zoraida e Freya.
O salão improvisado tinha uma longa mesa no centro, papeis, livros, mapas espirituais e objetos de proteção espalhados. Mas naquela noite, nem a simbologia mais forte parecia reconfortante.
— Eu vi um deles hoje — disse sem rodeios. — Perto do portão da escola.
Winston — ou Lúcifer — não demonstrou surpresa. Apenas assentiu, apoiando-se na beirada da mesa.
— Sombra ou emissário direto?
— Metade-metade. Um intermediário. Mas ele sabia quem eu era. Olhou direto pra mim. Estava esperando.
Rose cruzou os braços, séria.
— Isso significa que a movimentação começou antes do previsto.
— O despertar dela está acelerando — completou Freya. — está se conectando, mesmo sem saber. A profecia está se enraizando nela.
Anthony (Mammon) soltou um suspiro impaciente.
— Então por que ainda não contamos nada? Se ela vai ser o centro dessa maldita guerra, por que continuar mantendo segredos?
Conrad (Azazel) riu, seco.
— Porque se contarmos, ela entra em pânico. Se entra em pânico, tudo desmorona.
— E se ela escolher o lado errado? — Zoraida (Belphegor) disse, baixinho, os olhos escuros fixos em . — Você sabe que isso está escrito como possibilidade.
encarou o vazio por um instante. Sabia. E era exatamente isso que o corroía.
Winston finalmente se levantou, sua presença tomando conta do espaço como uma tempestade prestes a romper.
— Por enquanto, não haverá contato direto. Nenhum de vocês. Nem mesmo você, .
— Eu já tive contato com ela. Hoje — ele respondeu, a voz firme, mas com algo que relutava.
— E já começou a se envolver — afirmou Winston, sem precisar de confirmação.
Todos se calaram.
— Você precisa manter o foco, Azrael. — Lúcifer o chamou pelo nome antigo, e o peso daquela palavra fez o ar pesar no ambiente. — O vínculo entre vocês é inevitável. Está escrito. Mas a forma como você vai lidar com isso… não está.
cerrou os punhos.
— Eu não vou falhar com ela.
— Espero que não — Winston respondeu, frio. — Porque se você falhar… todos nós caímos juntos, outra vez.
O silêncio seguinte foi absoluto.
O destino do mundo se movia lentamente entre escolhas, sentimentos e guerras invisíveis. E agora, mais do que nunca, a linha entre o bem e o mal parecia cada vez mais tênue.
Naquela mesma noite
se remexia inquieta na cama. As cobertas estavam emboladas em torno de suas pernas, o travesseiro amassado sob a cabeça. O relógio na mesinha de cabeceira piscava 3h14 da madrugada — aqueles minutos suspensos entre o sono e o despertar, onde os sonhos pareciam mais reais do que o mundo lá fora.
Ela estava sonhando, sabia disso. Mas não conseguia acordar.
Na escuridão do sonho, via sombras se movendo. O som de asas cortando o vento — não leves, mas pesadas, desgastadas — ecoava ao seu redor. Sentia o cheiro de terra úmida, de fumaça, de algo antigo que o tempo não havia conseguido apagar.
E, no meio da névoa, uma figura.
Um homem de olhos intensos e presença esmagadora, parado de frente para ela. Não falava. Não se movia. Mas sabia quem era.
.
Ele parecia lutar contra algo invisível — forças que tentavam puxá-lo para as trevas, rasgar sua pele, apagar sua luz. E mesmo assim, ele permanecia de pé, com uma força silenciosa que parecia desafiar o próprio destino.
tentou se aproximar, estender a mão para ele, mas o chão sob seus pés cedeu. Ela caiu, como se o mundo inteiro tivesse se rompido sob seu corpo.O vento uivava, e vozes sussurravam em seus ouvidos palavras que ela não compreendia.
"Escolha..." "Proteja..." "Desperte..."
O grito ficou preso em sua garganta, sufocando-a.
E então — como se puxada violentamente de volta — ela acordou.
Sentou-se na cama, ofegante, o suor frio escorrendo por suas têmporas. Seu coração batia descompassado, como se tivesse corrido uma maratona.
Olhou em volta, tentando se situar. O quarto estava igual. A casa estava silenciosa. E ainda assim, ela sentia.
Sentia que algo havia mudado. Sentia que não estava sozinha — não apenas naquela madrugada, mas naquele mundo invisível que começava a se descortinar sob seus pés.
Passou a mão pelos braços, arrepiada, tentando se acalmar. Tentando dizer a si mesma que era apenas um sonho.
Mas no fundo, bem no fundo, ela sabia que não era.
encostou a cabeça nos joelhos, abraçando as pernas, enquanto a respiração começava a se estabilizar.
Mal sabia ela, aquela sensação era apenas o começo. O primeiro chamado da profecia que corria em seu sangue.
E ... estava destinado a ser tanto sua proteção quanto sua perdição.