Tamanho da fonte: |


Revisada por: Aurora Boreal 💫

Última atualização: 12/08/2024

A sacada daquele apartamento era fria, e a noite também não era das mais quentes. Os primeiros sinais de que o inverno estava chegando começaram a aparecer ao longo dos últimos dias. caminhava pela sala. Os pés descalços, a manta branca canelada enrolada à sua volta. Ela caminhava. Pra lá, pra cá. A taça de vinho na mão direita estava quase vazia, a garrafa pela metade na mesa que ficava lá fora. Ela caminhava. Pra lá, pra cá. O tom rosado e quente na face, o afago carinhoso do álcool transparecendo em suas bochechas. Ela caminhava. Pra lá, pra cá.
A primeira vez que ouviu sobre o termo overthinking foi na época da faculdade, quando trabalhava como assistente editorial de uma revista acadêmica. Fez muitas amizades naquela época, principalmente com psicólogos e psicopedagogos. Foi em um jantar com uma dessas amizades, que ouviu o termo pela primeira vez. Nunca havia pensado sobre isso, sobre pensar demais.
Depois desse dia, nunca mais pensou de menos sobre qualquer assunto. Passou a valorizar os múltiplos questionamentos que surgiam em sua cabeça, as múltiplas possibilidades sobre todos os cenários que faziam parte de seu cotidiano. Naquele jantar, não percebeu a aflição nos olhos da sua amiga enquanto ela dissecava o pequeno comentário que a orientadora fez sobre sua dissertação de mestrado. estava maravilhada com aquela maquinação, perguntava-se se conseguiria fazer o mesmo. Sua amiga dissecava palavra por palavra, gesto e tom usado pela orientadora. Ela estava procurando por algo que pudesse ter perdido no ato da comunicação. Mas a situação que a levou àquele estado não importava. absorvia cada parte de seu discurso. Não o significado, mas a engenhosidade daquele raciocínio. O que importava eram os pensamentos da amiga que quase extrapolavam as barreiras físicas da abstração, quase conseguia vê-los dançando através dos seus olhos. Achou aquilo fascinante e não percebeu que a fala transbordava pânico.
aprendeu que a hiper-racionalização era apenas uma questão de hábito. Essa foi sua primeira hiper-racionalização, pensou demais sobre o termo em inglês e o uso de palavras da língua inglesa que estavam invadindo, cada vez mais, os grandes centros urbanos, as redes sociais e os ambientes de trabalho. Decidiu que overthinking não daria nome ao processo que se submeteria a partir de então. Valorizava cada palavra do português brasileiro, um vocabulário tão vasto não merecia ser substituído por esse estrangeirismo imperialista exaltado por vira-latas. Estava ansiosa para abandonar a impulsividade e se tornar uma daquelas pessoas que racionalizavam sobre absolutamente tudo, assim como sua amiga. Só percebeu anos mais tarde, quando a hiper-racionalização se tornou um pesadelo, que aquele hábito poderia ser traduzido em inúmeras crises de ansiedade e, às vezes, incomensuráveis crises de pânico.
Pra lá, pra cá.




passou o auge da adolescência sob o efeito de algum entorpecente. Isso se tornou um inconformismo constante depois dos trinta. Hoje, ela desejava ter estado sóbria com mais frequência. Talvez pudesse ter enxergado as coisas como realmente eram mais cedo.
Ou não. A ilusão era divertida. Ela sonhou com as possibilidades por tempo demais e foi bom enquanto durou. Ela passou a adolescência desejando viver um romance adolescente clichê com algum rapaz que pertencesse a uma banda.
Sempre fora um espírito livre. Alimentada por baboseiras astrológicas e por pais muito liberais, , aos quinze, já havia experimentado de quase tudo. Às sextas-feiras eram sagradas. Apesar da pouca idade, grupos de adolescentes se encontravam à noite no bairro mais boêmio da cidade. Frequentar o Seresta tão cedo era um baita privilégio ou pura irresponsabilidade parental e sempre teve a impressão de que pertencia à seleta cena indie que se concentrava ali.
Ela começou a fumar aos treze, depois de roubar seu primeiro cigarro da cartela da avó. Era um Free longo da caixa branca com detalhes em vermelho. Depois de dois anos, já tinha preferências. Adorava o Click & Roll da Lucky Strike que liberava um gostinho de menta, e gostava ainda mais de misturá-lo com cerveja. Podia ser qualquer uma. Nessa época, sua preocupação não era apreciar nada, ela só queria sentir tudo o que a vida pudesse oferecer.
Quando passou a frequentar o bairro boêmio, alguma coisa mudou. De repente ela começou a ser chamada para festas e a se enturmar. Foi em uma dessas noites no Seresta que conheceu o . Eram do mesmo ano no colégio, mas de turmas diferentes. Sempre se viam de vez em quando pelos corredores ou no intervalo, mas não eram próximos. Depois que ele lhe pediu o primeiro cigarro, não pararam mais de conversar.
Era o início de 2010 e tudo o que importava era se você tinha uma franja grudada ao rosto, roupas pretas, maconha e uma banda. não tinha uma banda, mas tocava guitarra e contemplava todos os outros aspectos. A partir daí, durante os intervalos, os dois viviam grudados. abraçava-a por trás, grudava o queixo em seu ombro e conversava com as outras pessoas enquanto ela ficava inebriada com seu perfume, a voz sendo entoada diretamente em seu ouvido. Ela se sentia única. Ele não fazia aquilo com as outras amigas.
Foi a primeira vez que ela sentiu borboletas no estômago.
Apesar das trocas de carinho em público e das mensagens durante a madrugada, o que e tinham não passava de uma boa amizade. Isso não quer dizer que ela não tinha esperanças, mas ao mesmo tempo, ela sempre teve muito medo da rejeição. Guardou seus sentimentos e pensamentos dentro de uma caixa e os escondeu debaixo da cama.
Davi era um estudante de intercâmbio italiano que frequentava a mesma turma que . Não demorou muito para que os dois se tornassem melhores amigos e para que Davi se encantasse por . A garota estava sempre fugindo de suas investidas e, uma vez, Davi a perseguiu pelos corredores do colégio cantando e tocando “Hey there Delilah” no violão. Lembrava de ter se sentido exposta e envergonhada. não disse nada, mas soube, anos mais tarde, que ele tinha incentivado as investidas do melhor amigo. Ela voltou para casa chorando enquanto ouvia sua melhor amiga dizer que aquilo era o sonho de toda garota.
Não era o sonho dela. O sonho dela, àquela altura, já tinha nome e sobrenome.
Nessa mesma semana, Davi convidou alguns amigos para irem a casa dele experimentar o narguilé que seu irmão mais velho tinha comprado. Quando chegou, o cheiro artificial das essências já tomava conta da sala.
Passaram a tarde ali, sentados em círculo no chão, ouvindo música e fumando enquanto batiam papo. estava longe de e os olhares que ele trocava com uma garota um ano mais nova passaram a incomodar. Os gêmeos eram a nova adição do grupo. Lica e Pedro eram novos no colégio e logo se enturmaram com o Lipe, um dos garotos mais velhos que sempre frequentava a Seresta com eles. Era ele quem distribuía a maconha.
— Eu tenho essa essência de melancia, é a mais gostosa de todas. — Davi começou a trocar a essência e aproveitou para ir buscar algo para beber.
Ao retornar, a garota percebeu que a disposição no círculo havia mudado. Davi ocupava o lugar ao lado de Lica, enquanto Lipe e Pedro conversavam animadamente ao lado deles. , por sua vez, reservava o assento vago ao seu lado para que ela se juntasse a ele. Sua respiração se tornou mais rápida assim que se sentou e ele a abraçou de lado. Ele segurava um rolinho de papel higiênico na mão e sorriu para ela quando pegou a mangueira do narguilé e, antes de dar a tragada, disse:
— Olha o que eu aprendi. — Ao soltar o ar dentro do rolinho, a fumaça se transformou em diversos círculos brancos que dançavam pelo ar ao redor.
sorriu, impressionada com uma coisa tão boba. Tudo nele lhe parecia impressionante. O modo como falava, gesticulava. O sorriso largo e bonito. O cabelo liso e escuro caindo nos olhos, o alargador preto recém colocado. Ela precisava admitir que tinha se apaixonado por ele, mas como?
— Abre a boca, .
Antes que ela tivesse tempo de falar alguma coisa, ele já havia tragado novamente e, dessa vez, aproximou o rosto do dela. Olhou fundo nos olhos de e, com os lábios a centímetros dos dela, soprou toda a fumaça para dentro de sua boca. Ela podia jurar que seus lábios inferiores tinham se tocado. O gosto forte e artificial de melancia se espalhava pela língua, lábios e céu da boca.
Duas semanas depois, o começou a namorar a Lica.




Conforme os dias foram se arrastando, foi desaparecendo. Ele deixou de abraçá-la, de dividir a barra de Sensação com ela durante o intervalo e de soprar a fumaça do narguilé em sua boca. Em três meses, passaram a ser amigos que se comunicavam exclusivamente por SMS; presencialmente, ele era quinhentos por cento Lica.
— Você vai na festa do Davi no sábado? — Lelis perguntou enquanto ajeitava o material e pegava o dinheiro do lanche dentro da mochila.
Lelis era a melhor amiga de desde os onze anos. Entraram na mesma turma juntas e começaram a se falar nas aulas de educação física por terem uma coisa em comum: eram as duas magrelas que sempre eram deixadas por último na escolha dos times. Agora, perto dos 15, não havia nada que não soubessem uma sobre a outra.
— Não sei, ele fica tanto no meu pé... Não quero passar a impressão errada.
— Você precisa começar a transar — Lelis insistiu. — Perde logo a virgindade com o Davi e passa o rodo em geral, os garotos só tão afim de quem dá, por isso você perdeu o pra piranha da Lica.
— Cala boca! — tapou a boca da melhor amiga, rindo. — Eu não quero que a escola inteira saiba de quem eu gosto, obrigada. E eu tenho quase certeza que eles não transam.
Lelis namorava Antônio há dois anos e perdeu a virgindade com ele há alguns meses, esse assunto estava rondando tanto os momentos delas juntas, que estava começando a se questionar se realmente já não era hora de ela abrir as pernas.
Aquele intervalo foi diferente dos últimos dias. Quando e Lelis chegaram ao pátio, viram que o estava na roda de amigos delas, mas sem a Lica. A garota, um ano mais nova, estava do lado oposto conversando com as amigas. Lelis e se entreolharam, estranhando, e quanto mais se aproximavam, mais o coração de se enchia da esperança de que talvez aquele relacionamento que tão rápido começara, também terminara.
— Olhem quem resolveu abandonar um pouco a namorada hoje! — Pepe comentou, ele estava logo abaixo de e Lelis na lista de pessoas favoritas de . — Ele sentiu falta da antiga namorada, mas eu já falei que você agora é minha, não é ?
Pepe a abraçou de lado e riu sem graça, estava sorrindo pra ela enquanto dizia “até parece”. A única covinha que ele tinha aparecendo na bochecha direita, os dentes grandes e muito brancos emoldurados pelos lábios que ela só queria poder beijar. Meu deus, como ela queria poder beijá-lo.
— Deu o ar da graça, né? — comentou, ácida, enquanto se ajeitava nos braços de Pepe e encarava o garoto a sua frente. — A que devemos a sua honra aqui no grupo dos esquecidos?
— Ah, para com isso — puxou pelo braço, ela se desvencilhou de Pepe e logo estava sendo abraçada por trás, do jeito que já estava acostumada: com o queixo do rapaz apoiado em seu ombro esquerdo. — Eu namoro, mas no meu coração sempre vai ter espaço para a minha melhor amiga.
se perguntou se todos puderam ouvir seu coração se estilhaçando.

***

— Ei! , espera! — A garota se virou no mesmo instante e viu caminhar até ela, nas catracas do colégio. — Posso passar a tarde na sua casa hoje?
— Não, vai ficar com a sua namorada — falou, dando as costas e começando a subir a rua, ela considerava sorte que o colégio ficava na mesma rua que a sua casa.
— Eu quero ficar com a minha melhor amiga. — E, sem maiores esforços da parte dele, ela se contentou com essas migalhas.
a acompanhou até em casa, ele já era uma figura conhecida pelo porteiro do prédio em que morava. A mãe dela amava ele e gostava que fosse amiga de alguém tão educado e simpático, eram tão amigos que o garoto tinha passe livre no apartamento e passava a maior parte das tardes junto com enquanto assistiam filmes e séries depois do período de aula. Naquela tarde, eles almoçaram lasanhas congeladas e falaram sobre tudo, menos sobre Lica.
Deitaram juntos no sofá, ela em um extremo e ele no outro, no meio, havia um prato grande cheio de morangos com chocolate recém-saídos da geladeira. Prontos para maratonar pelo menos uns cinco episódios da série favorita deles, fez o favor de dar o play na TV enquanto jogava um morango com chocolate na melhor amiga.
Enquanto a série acontecia, os dois comentavam os acontecimentos como se não tivesse existido um hiato de quase três semanas daquela convivência. Até que se fez silêncio, não um silêncio incômodo, mas um silêncio. não pareceu notar aquela pausa nos comentários, estava entretida na cena de suspense enquanto a observava. Esse momento é importante. É um dos muitos que atormentarão pelos próximos quinze anos. Até hoje, ela não sabia explicar o que tinha acontecido entre eles naquela tarde.
Distraída, não percebeu quando engatinhou a distância entre eles no sofá, mas levou um susto quando o rosto do garoto pairou acima do seu.
— O que você está fazendo? — ela perguntou rindo. Naquele momento, jurou que os olhos dele pareciam mais escuros.
— Quero testar uma coisa. — E, sem esperar resposta, achou que as borboletas que tinha no estômago iam todas sair pela boca.
Foi difícil entender como reagir àquilo. O momento tão esperado por ela foi tão inesperado que, depois de retribuir o beijo durante alguns segundos, ela o afastou com as mãos espalmadas em seu peito.
— O que você está fazendo? — ela perguntou e ele respondeu com um sorriso.
Provavelmente aquele sorriso foi sua ruína. Aquele sorriso fez com que ela se esquecesse de que ele tinha uma namorada. Fez com que ela se esquecesse de si mesma. Ela só queria poder sentir o gosto dele de novo e ela nem precisou pedir. Depois do sorriso, os lábios se tornaram firmes contra os seus e aquele beijo proibido tinha gosto de morango com chocolate.
Quando ele a puxou para o quarto e eles se deitaram na cama dela, ela pensou que aquilo só podia ser um sonho. Finalmente estava acontecendo, ela não via a hora de poder contar isso pra Lelis. já havia visto beijando outras meninas muitas vezes e, em todas elas, desejou que fossem seus lábios ali contra os dele. Ela sabia como ele usava as mãos, decorou os movimentos, viu com que força ele puxava o cabelo de outras e agora estava nas nuvens enquanto sentia os seus cabelos sendo levemente puxados para trás enquanto com a outra mão, ele apertava a coxa dela, fazendo ela gemer. Apesar das mãos, do beijo molhado e de estarem na cama dela, não avançou o farol vermelho. Antes das cinco da tarde, eles já estavam se despedindo na porta do apartamento, meio sem jeito. Não disseram nada, ele sabia que tinha que ir embora antes que o pai dela chegasse. colocou a mochila sobre os ombros, ajeitou a franja e olhou para , que o encarava com um sorriso bobo nos lábios. Ela estava ansiosa por mais um beijo, ansiosa pelo que ele ia dizer, ansiosa para finalmente se assumirem, ansiosa para o dia seguinte e todos os próximos em que estariam juntos. Finalmente. Que mané, Lica! Ele gosta de mim. De mim. Era o que a pensava e não percebeu a máscara que a sua própria ansiedade colocava no rosto dele.
Ele se aproximou, colando o corpo dela na parede, ajeitou as mechas bagunçadas do cabelo dela, beijou seus lábios mais uma vez e disse:
— Não conta nada disso pra ninguém, tá? Finge que não aconteceu nada hoje. Não quero terminar com a Lica.


Continua...


Nota da autora: Sem nota.

💫


Nota da Beth Aurora Boreal: Nossa, cara, eu fui muito tapeada com esse final, que ÓDIO do Cauê, tadinha da Samira 😭😭 Já tô ansiosa para o próximo!

Se você encontrou algum erro de codificação, entre em contato por aqui.