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Codificada por: Cleópatra

Última Atualização: 31/12/2024

Era uma noite comum na vila, nada além do breu e dos sons das criaturas noturnas.

Algumas casas ainda tinham luzes indicando que os moradores estavam acordados, confinados na ignorância de seus próprios afazeres, ninguém percebeu o conjunto de vultos que se esgueirava dentre as pastagens na direção de um humilde chalé.

Uma emboscada, um assalto e no dia seguinte a notícia.

O casal Maely donos da horta que alimentava o comércio da cidade, haviam sido assassinados. Seus rostos desconfigurados pela quantidade de golpes deferidos revelavam a natureza brutal do ataque.

Uma única pessoa escapou do massacre naquela noite, Maely, a única filha do casal.

Enquanto seus pais sufocavam os gritos de terror, a pequena corria na direção de uma casa conhecida, mesmo que as pedras cortassem a pele dos seus pés e o líquido vermelho escorresse pela ferida recém-aberta, a criança continuou correndo.

Não importava o que acontecesse, a única coisa que a garota se agarrava era a última palavra de seu pai, palavra essa que soava clara como o dia em seu ouvido e parecia ter sido gravada em seu peito com ferro em brasa.

— Viva.



Os raios de sol ainda não tinham nem começado a nascer quando desci do dormitório para a área externa do quartel da tropa de reconhecimento, mesmo após anos as lembranças do assassinato dos meus pais ainda me atormentavam quase todas as noites.

O sangue, o som das suas cabeças batendo no chão e a ordem de fuga que meu pai me deu. Era uma cena de pesadelo que se repetia de novo e de novo.

Apertei as bandagens nos meus pulsos e assim que o primeiro raio de sol iluminou a terra e passei a escalar a lateral do velho castelo que servia de base para a tropa. As pequenas fendas entre as pedras eram mais do que o suficiente para que eu conseguisse subir, meu corpo que passou anos e mais anos treinando já nem reclamava mais do peso que tinha que suportar.

Eu sabia que não iria cair, tendo escalado aquelas paredes durantes anos já estava bem familiarizada, entretanto o meu irmão adotivo insistia em ter pelo menos uma medida de segurança. Isso se traduzia num cabo que prendia firmemente a minha cintura.

O sol se erguia cada vez mais rápido tomando a dianteira na nossa pequena corrida diária, meus devaneios hoje pareciam ainda mais intensos do que o normal. Foquei no caminho à minha frente, uma mão após a outra e um pé seguido do outro, desde criança eu tinha certo reconhecimento por ser ágil, embora só tenha conseguido explorar isso depois de algum tempo.

Com um último impulso alcancei o meu destino bem a tempo dos seus raios iluminarem as pedras por completo. Mais uma vez a vitória era minha, sentei nas pedras vendo o sol se erguer cada vez mais enquanto trazia o dia, apenas para ser interrompida momentos depois.

— Sabia que você estaria por aqui.

Me virei para encarar minha companhia e em seguida retornei a ver a paisagem — Não é exatamente um segredo que faço isso todos os dias, não é mesmo?

— Mas existe uma diferença entre fazer isso para treinar e fazer para livrar seus pensamentos de outra coisa — Respondeu com os barulhos de passos se aproximando cada vez mais, Erwin se apoiou do meu lado olhando para a frente como eu. — Está tendo pesadelos de novo?

— Me conhece bem demais. Não é como se eles alguma vez tivessem me deixado — e continuei. — Geralmente são só algumas cenas, mas existem dias onde o cheiro metálico, os sons e a sensação do sangue grudado na minha pele parecem mais vivos do que nunca. Imaginei que depois de alguns anos já teria me acostumado com eles, mas claramente não é a situação.

— Mesmo assim, não parece ter problema em falar sobre eles — o tenente e líder de esquadrão comentou.

— Já não sou mais criança Erwin — retruquei —, essas lembranças provavelmente vão me acompanhar até o dia que eu morrer, só resta aceitar que o passado foi isso e não tem como mudar.

Ele ficou em silêncio até conseguir formular uma resposta.

— Você realmente cresceu. Seguiu meus passos, entrou para a tropa de reconhecimento e agora está desenvolvendo uma técnica única para melhorar as nossas expedições. Tenho certeza que seus pais teriam orgulho de você.

— Uau, um elogio assim logo de manhã — brinquei e levantei uma sobrancelha. — Veio do meu líder de esquadrão e tenente da tropa de reconhecimento ou do meu irmão adotivo?

— Os dois de certa forma — ele respondeu com um leve tom de riso.

Coloquei as pernas para fora do bloco de pedra e me apoiei nos meus braços. — Até hoje me surpreendo do seu pai ter aberto a porta para mim naquela noite.

— Eu me lembro de ver você chegando coberta de sangue, mal podia distinguir se era seu ou de outra pessoa — e continuou —, mesmo assim você não derramou uma lágrima sequer, era apenas força de vontade pura que estava te mantendo de pé.

— Causei uma impressão e tanto não foi? — dei risada, mas deixei ela morrer tornando a minha voz séria de novo. — Não lembro de muita coisa depois das mortes para ser sincera, apenas lembro que corri, e quando acordei estava na sua casa com o rosto todo enfaixado. Antes disso, apenas a ordem do meu pai e as pessoas encapuzadas.

— Parece normal esquecer uma parte dos acontecimentos — Erwin colocou a mão no meu ombro e se retirou. — Temos trabalho a fazer, não demore.

— E lá vem o irmão chato — comentei alto o suficiente para que ele ouvisse. — Bem que achei estarmos tendo uma conversa sentimental demais.

— Não se atrase, . — foi a última coisa que ouvi do loiro antes que ele desaparecesse para dentro do quartel.

Balancei a cabeça e finalmente desci das pedras tirando o cabo de segurança da minha cintura, enrolei no braço como de costume e voltei para dentro para me preparar para o dia. Não demorou até que eu já tivesse me reunido com o restante do esquadrão de Erwin na cafeteria.

Mike como sempre não disse nada, apenas acenou com a cabeça. Arlo me cumprimentou com um bom dia, assim como a minha colega de dormitório Raika.

— Foi escalar a parede do quartel de novo, não foi? — ela perguntou.

— Você não precisa perguntar, ela faz isso todo dia — Arlo respondeu em meu lugar.

— Preciso manter meu corpo em movimento, caso contrário posso perder a habilidade.

Raika de debruçou sob a mesa mudando rapidamente de assunto — Queria ir com vocês, mas os médicos disseram que meu tornozelo ainda precisa de alguns dias para voltar ao normal. Estúpido treino de montaria.

— Isso não teria acontecido se você tivesse seguido as ordens.

— Qual é Arlo até você? Eu já paguei a minha punição, não preciso ouvir mais sermão.

Dei risada — Terá outras oportunidades. Pensa pelo lado bom você pode espiar os outros soldados, vai que você descobre um romance secreto igual gosta de ler.

Ela colocou ambas as mãos no rosto — Imagina? Soldados que se apaixonam, mas precisam viver com o medo de um perder o outro enquanto cumprem seu dever na tropa de reconhecimento. É uma história de amor e tanto.

— Pare de ficar dando ideias, — Arlo disse e em seguida Mike se levantou sem falar nada sinalizando que estava na hora. — Vamos.

Me levantei e segui os rapazes para o lado de fora onde o líder de esquadrão já nos esperava, eu ainda não sabia do que se tratava, porém, já esperava que fosse algo fora do comum.

— Tenente — chamei —, sobre o que é a missão, não recebi nenhum relatório.

Ele subiu no cavalo colocando o capuz em seguida — Vamos conversar quando chegarmos ao local, até lá você precisa saber apenas uma coisa.

— É uma missão de captura.



Erwin nos guiou até a entrada de uma das escadarias do submundo e apesar de ter descoberto sobre elas há poucos anos nunca havia visitado a cidade, o teto de rocha era mórbido e as luzes artificiais eram as únicas coisas que possibilitaram enxergar ali embaixo. Era triste saber a quantidade de pessoas que provavelmente viveriam e morreriam ali sem conseguir saber o que tinha na superfície.

Dentro da pequena casa que servia de base da polícia militar, Erwin começou finalmente a dar os detalhes da missão.

— Foi reportado que três usuários de equipamentos de manobra estão usando da sua movimentação privilegiada para cometer crimes no subterrâneo. Desde roubos até assassinatos, nosso objetivo é capturá-los.

— O subterrâneo não é jurisdição da polícia militar? — Arlo perguntou. — Por que precisam de nós?

Pelo olhar do tenente já sabia que havia mais coisa e que ele provavelmente não contaria, Erwin era inteligente e eu realmente acreditava que ele seria o próximo comandante da tropa de reconhecimento. Comandante Shadis parecia gostar dele e diferente de Flagon ele tinha um desejo cravado de tomar o mundo dos titãs e devolver para a humanidade.

— Não precisamos de questionamentos, Arlo — falei —, apenas siga as ordens.

Erwin olhou rapidamente para meu colega antes de se virar — Vamos olhar os arredores, mantenham a descrição.

Os prédios tinham os mais variados tamanhos e eram próximos um dos outros limitando a trajetória da nossa movimentação, se não fosse uma área longe do nosso próprio quartel era um bom lugar para poder treinar. Enquanto ele trabalhava com a formação de batimento, qual o propósito principal era a ampliação da habilidade de exploração, eu e mais algumas pessoas treinamos para uma unidade especial. Geralmente precisamos de locais para poder pregar os ganchos do equipamento, mas nas expedições nem sempre conseguimos isso, as áreas abertas eram sempre um problema.

Algum tempo depois todas as coordenadas já tinham sido dadas, então apenas esperamos para que os tais usuários de 3DMG aparecessem.

Assim que eles tombaram com a mercadoria dos comerciantes começamos a nos mexer, eles eram talentosos, entretanto faziam uma série de movimentos desnecessários, eram três pelo que eu podia enxergar. Atirei o cabo me lançando para frente mantendo a formação que Erwin montou, mas num movimento rápido um dos alvos parou no ar a fim de mudar a direção

Aquele bastardo era bom.

Imediatamente já nos viramos e continuamos a perseguição, eles se dividiram forçando com que seguíssemos e eu fui atrás da garota. Dos três ela parecia a menos familiarizada com o equipamento, então suas manobras eram grandes e não tão elaboradas quanto as de quem era o líder, sem falar que ela era uma tagarela.

— Vamos ver se vocês são tão bons assim! — e disparou na minha frente, sorri. A garota tinha personalidade, isso eu não podia negar.

Só não era o suficiente para superar a minha habilidade, peguei impulso me lançando para cima e em seguida usando os cabos para descer rapidamente em sua direção. Distraída olhando para o que eu estava fazendo ela errou um gancho facilitando a captura, com o joelho bati em suas costas fazendo com que a garota fosse para o chão.

— Não, me solte! Levi!

A garota chamou em vão, prendi as mãos dela atrás do corpo e a levantei andando até o ponto onde ouvi os barulhos das lâminas se chocando.

Arlo também capturou o segundo elemento, este estava quieto e parecia estar analisando a situação, enquanto a minha captura não parava de falar e se rebater. Erwin imobilizou o suposto líder e Mike também estava por ali servindo de apoio.

O capitão disse algo que fez com que o rapaz soltasse a faca que ele carregava e não demorou até que os 3 fossem algemados e com os equipamentos confiscados.

— Mike, vou observar de cima — falei e ele assentiu com a cabeça. Rapidamente andei até um prédio lateral e usando um caixote velho para dar impulso, comecei a escalar a casa baixa a fim de ter uma visão dos arredores. Não queríamos os policiais se intrometendo nos nossos assuntos e conhecendo Erwin ele devia ter algo em mente.

— Farei algumas perguntas — Erwin falou se aproximando, mantive meus ouvidos na conversa enquanto observava os arredores. — Onde conseguiram isso?

Ele indicou o 3DMG, e mesmo não tendo uma resposta, o mais velho continuou falando — Vocês são hábeis com os equipamentos. Quem ensinou tudo isso a vocês?

Ainda sem resposta, Erwin continuou — Você é o líder deles, certo? Foi treinado nas forças armadas?

Não havia ninguém nos arredores então me permiti desviar o olhar, Mike tomou a dianteira para ver se conseguia alguma resposta, ele então pegou a cabeça do garoto e bateu contra o chão numa força tremenda, por azar uma poça de água suja esperava ele ao contrário da terra.

— Maldito! — a garota gritou.

— Perguntarei mais uma vez. Onde aprenderam a usar o Equipamento de Manobras 3D?

O líder ainda se recusava a falar, entretanto, os companheiros logo começaram a responder. — Ninguém nos ensinou! Aprendemos sozinhos!

— Aprenderam sozinhos? Não acredito nisso. — Erwin respondeu após sua declaração.

— É só assim que conseguimos sair um pouco desse lixo de lugar. As pessoas acostumadas ao sol, como vocês, nunca entenderão!

— Já chega disso! Solte ele! Não seja arrogante só porque está com seus soldados!

Mike tirou a cabeça do garoto no chão e meu irmão se aproximou dele se ajoelhando em sua frente. — Meu nome é Erwin Smith. E o seu é?

— Levi.

Foi a primeira vez que ele respondeu alguma coisa soou baixo, quase como um sussurro, apesar de agressivo, fiquei surpresa que eu consegui ouvir mesmo à distância.

— Levi. Porque não faz um acordo comigo? — ele começou. — Esquecerei seus crimes. Em troca, você me emprestará sua força.

— E se eu recusar? — ele perguntou.

— A polícia Militar cuidará de você. — Erwin se levantou — Considerando todos os seus crimes, você e seus amigos não serão tratados muito bem. Escolha o que preferir.

Ele se afastou apenas para ganhar a resposta da proposta em seguida.

— Muito bem — ele balançou a cabeça para o lado tentando se livrar um pouco da sujeira antes de voltar a encarar o loiro. — Vou me juntar à tropa de reconhecimento.



Raika me olhou enquanto uma das meninas tinha algum trabalho em manter a novata Isabel na linha, já fazia alguns dias que os “novatos” estavam com a tropa, os três haviam sido apresentados formalmente aos demais soldados e colocados sob os cuidados de Flagon.

— Ela com certeza sabe como montar — minha colega disse.

— Talvez você deva pegar algumas dicas com ela — brinquei e ela jogou a muleta na minha direção na tentativa de me acertar.

Apertei a última tira do meu cinto antes de seguir para a ala aberta onde geralmente treinava. Era um grande campo com alguns titãs de treino espalhados, mas sem um único lugar para podermos ganhar altura. Era uma das piores situações que alguém poderia se encontrar.

, tudo pronto.

Olhei para o pequeno time que Erwin e o Comandante Shadis tinham me permitido montar para treinamento.

Ethan era o mais velho e o mais experiente, sua pele bronzeada fazia contraste com os olhos verdes e os cabelos castanhos, ele não era dos mais fortes, mas tinha um pensamento rápido e agilidade. Vance era o nosso suporte, era a pessoa com maior números de morte solo, também era o mais alto, porém tinha uma aparência comum, também era um veterano de outro esquadrão.

Dante era o último menino do nosso grupo e o mais novo, passou com honras pelo treinamento de cadetes, assim como a sua colega de batalhão Greta. Ambos eram ótimos estrategistas e assim como eu, tinham uma certa habilidade para escalar.

Agora o restante das garotas, Lea e Renee eram gêmeas e tinham um talento natural para se movimentar com o 3DMG, após passar algum tempo observando os esquadrões esses membros foram especialmente escolhidos para o treinamento especial.

— Certo — agradeci um dos novatos da tropa que nos ajudavam. — Vamos testar as triangulações hoje, o objetivo é usar o corpo dos titãs e o chão para mudar nossas direções, tentaremos uma sequência de 3 hits sem precisar descer para o solo.

— Você está ficando cada vez mais exigente — Vance comentou enquanto puxava as lâminas — Não vai colocar os titãs de 2 alvos hoje? Projeto de capitã.

— Por enquanto, não, se vocês forem bons o suficiente para conseguirem passar por essa primeira parte, quem sabe treinamos combinações depois. — conectei as minhas lâminas e girei elas nas minhas mãos — Alguém quer se voluntariar para começar?

— Você primeiro — Ethan fez uma reverência exagerada.

Revirei meus olhos e dei o sinal para que eles se preparem. Assim que o primeiro foi armado usei do equipamento para me movimentar para o primeiro alvo, os dois ganchos foram na cabeça do titã que era o ponto mais alto, aproveitando da velocidade da arrancada cortei a borracha em seu pescoço. 1 alvo de um circuito de 10 já tinha ido. O próximo estava à minha direita, de novo usei um gancho na cabeça para manter altura, mas o outro usei no chão para conseguir mudar a minha direção. Novamente um corte limpo. O terceiro estava no meio do campo e era um alvo um tanto quanto difícil já que tinha um mecanismo que o tornava um alvo móvel, usei o meu primeiro gancho para me aproximar mais o que eu não vi era que os cavalos que estavam sendo usados para o treino de montaria tinham se debandado e agora estavam vindo na direção do nosso campo.

Não tive como prender o gancho no chão porque corria o risco de eu acertar algum dos animais, então precisei usar o mesmo alvo. Meu corpo se chocou com a madeira e logo em seguida fui para o chão com ela por conta do impacto.

— Ei está viva? — ouvi alguém gritar.

A poeira que levantou começou a abaixar e eu chutei o objeto que estava em cima de mim.

— Você acha que eu iria embora tão fácil assim? — me levantei e gritei de volta, batendo a mão nas minhas pernas, eu tinha caído de lado em cima do equipamento, não era uma sensação agradável. Mexi nos comandos e não tive resposta, provavelmente tinham se danificado na queda, teria que trocar para continuar o treino. Olhando para o alvo ele quebrou na base, portanto também teria que ser substituído.

Voltei andando para onde a equipe estava e logo comecei a ouvir seus comentários.

— Mesmo que tenha escapado dos cavalos, o titã já teria comido .

— Olhe de novo Lea — Renee disse sorrindo e cruzando os braços. — Ela cortou o boneco enquanto caía e conseguiu 3 hits seguidos antes de tocar no chão. Ainda está em jogo.

— Até mesmo na tropa temos nossos anormais — Ethan comentou.

Os ignorei completamente, era comum os dias em que eles pegavam no meu pé.

— Meu equipamento quebrou — falei e soltei as fivelas que estava o prendendo — vou precisar trocar.

— Talvez esteja na hora de comer um pouco menos. — imediatamente me virei e chutei Vance no quadril, lançando ele para longe do grupo.

— Você não sabe como tratar uma dama — ralhei e andei na direção dele para lhe dar uma lição, senti algo segurar a minha cintura enquanto outro segurava meu braço. Eram Dante e Greta.

— Renee nos ajude a segurar !

— Não — ela respondeu. — Aposto 5 moedas que ela vai mandar Vance para a enfermaria.

Raika que estava por perto riu — Vamos lá a próxima expedição já está marcada, precisamos de todos os soldados que conseguirmos não é ? Erwin não ficaria feliz em saber de baixas, e acho que o comandante Shadis também não.

Parei de lutar contra os novatos que estavam me segurando, ela tinha razão, mas mesmo assim não me impedia de o agredir, um nariz quebrado não impede ninguém de matar titãs não é mesmo?

Só precisava do momento certo.

— Vou trocar o equipamento — falei e me virei para dar o comando de troca do alvo, mas eles já estavam retirando e substituindo. — Vocês podem continuar com o treino assim que os cavalos forem recolhidos.

Raika me acompanhou de volta para o quartel, já estava na hora dela ir para a ala médica de qualquer jeito — Sabe, enquanto você estava treinando eu estava observando os novatos que vocês foram buscar.

Olhei para ela de canto de olho — É mesmo? E qual é sua conclusão?

— Eles são melhores que muitos dos veteranos, especialmente aquele cara, Levi. Se você visse como que ele saiu na avaliação. Ficaria de boca aberta.

— Vi ele no subterrâneo — respondi —, mas considerando os planos do tenente duvido que ele me deixaria interferir.

— Isso é verdade — respondeu e entrou no quartel. — Nos vemos no jantar, tente não matar o Vance. Ou mandar ele para a ala médica.

— Posso garantir a primeira, a segunda já nem tanto.



— Você com certeza me acertou de propósito — Vance reclamou depois de terminarmos o circuito em duplas.

— Falei que ia mirar no alvo de baixo, não é culpa minha que você não ouviu e que seu rosto estava na frente — falei jogando um pano na direção dele para que secasse o sangue que estava escorrendo do seu nariz. — Relaxa, algumas garotas gostam. Quem sabe você arruma uma namorada agora.

— Eu odeio você.

— O sentimento é mútuo — rebati.

Antes que ele pudesse continuar, ouvi Flagon me chamando perto das árvores — Maely, venha aqui.

Eu não era a maior fã dele, mas respeitava suas habilidades como soldado e tenente. Hange e Arlo estavam por ali também, assim que a líder de esquadrão me viu, ela se apoiou nos meus ombros.

— Quanto tempo , vi você treinando nos campos! Suas habilidades estão cada vez mais polidas, na próxima vez que tal me ajudar a capturar um titã? Tenho certeza que a pesquisa é o caminho para descobrir mais sobre eles, eles sentem dor? Eles dormem? Será que eles caga-

— Chega Hange — Arlo bateu em sua nuca. — Isso não é sobre expedições, não ainda. Se controle.

— Maely — Flagon começou —, quero que você complete o circuito junto de Levi, você tem a movimentação mais parecida com a dele, porém usa o gás conscientemente. É o último treino do dia, então não precisa de segurar.

— Tudo bem — respondi, era a primeira vez que eu via o antigo criminoso de perto. Ele era mais baixo do que eu, mas olhava como se eu fosse um inseto odioso e miserável. Lancei o primeiro gancho e ele me seguiu de perto, meus movimentos eram rápidos, precisos, usando o que tivesse de apoio por perto para me ajudar a movimentar.

Dois alvos apareceram ao mesmo tempo, assim como no chão usei da triangulação que os cabos me permitiam ter para me mover, conseguindo o máximo de velocidade em pouco tempo e com o mínimo de gás. Usei o cabo para me lançar para a direita acertando o primeiro alvo e em seguida usei o outro cabo para completar o movimento zigue-zague e acertar o segundo.

A minha unidade estava sendo treinada para ser uma equipe especial de sobrevivência, fazer o máximo com o mínimo era o primeiro princípio que justificava nossa existência. Olhei para trás apenas para garantir que Levi estava me acompanhando, ele realmente era bom. Ou melhor, ele era excepcional.

Não podia perder a chance de me exibir um pouco, recolhi os cabos e usei das árvores para me movimentar para frente, nem sempre velocidade é o principal para derrotar um titã. Um novo alvo apareceu e eu me joguei no próximo galho usando o peso do meu corpo para conseguir velocidade no salto, não precisei de gás para eliminar aquele.

Como instruído, ele não “matou” nenhum dos bonecos, apenas me acompanhou observando.

— Você é boa — Arlo me disse erguendo a mão para que eu batesse. — Às vezes esqueço disso.

— Espero eu tenha aprendido alguma coisa Levi, com certeza tem gás para mais uma volta, numa situação de batalha isso pode fazer uma enorme diferença. — Flagon completou. — Estão dispensados.

E então ele saiu andando, era claro que o homem não estava nem um pouco feliz em ter os três no esquadrão ele. — Flagon pode ser um tenente, mas ainda o acho que às vezes ele é um merda.

Arlo deu risada — Não é fácil entrar no seu lado bom, é raro você gostar de alguém logo no começo.

— Não, não é. É só não ser um idiota — retruquei e me virei para o novo membro da tropa que estava presenciando todo o diálogo com o meu colega de esquadrão. — Você é um soldado e tanto Levi, com certeza os outros vão começar a te olhar diferente considerando o seu histórico de criminoso.

— Hã? O que você quer dizer com isso, sua merda? — ele tinha os olhos semicerrados na minha direção.

— As pessoas geralmente temem uma força imensurável e desconhecida — dei de ombros ignorando o xingamento. — Mas confiam nela após provar seu valor. Sei que você deve achar que a tropa de reconhecimento está cheia de inúteis, mas tente ver além. A maioria aqui já deve ter visto pelo menos alguns companheiros morrerem na frente de seus olhos — falei e encarei ele e abaixei um pouco o meu tom de voz. — Provavelmente da pior forma possível e sem poder fazer absolutamente nada.

Então sorri novamente antes de tomar meu caminho — Espero treinar de novo com você — ergui a minha mão acenando. — Até mais.

Sai do campo de treinamento deixando ele para trás, Arlo jogou o braço por cima dos meus ombros enquanto me acompanhava de volta.

— Erwin quer falar com nós dois. — ele murmurou apenas para que eu ouvisse. Imediatamente levantei os olhos para o escritório do tenente e o loiro realmente estava na janela nos observando.

Tinha uma leve ideia do que poderia ser. Algum tempo atrás ele nos colocou para investigar o desvio de recursos que estava tendo entre os militares. Eu havia rastreado o informante de Nicolas Lovof, líder da facção anti-expedicionária e Arlo conseguiu a confissão dele. Pelas informações, o homem adquiriu equipamentos para a tropa policial e estava planejando investir neles o orçamento das expedições que foram canceladas.

Erwin já estava tentando reverter a situação a algum tempo, prova disso foi que conseguimos a permissão de uma nova saída recentemente. Embora o general Zackley duvidasse que conseguiríamos permissão para as expedições futuras.

Deixei o equipamento emprestado na oficina de novo, pegaria o meu oficial depois do concerto. Andamos lado a lado até a sala e logo já estávamos reunidos com o loiro.

— E então — falei —, sendo nós dois, imagino que só possa ser um assunto.

— Precisamente — apontou para a mesa onde tinham dois envelopes. — Um desses envelopes tem os documentos reais sobre o roubo de fundos, o outro é um blefe.

— Como Arlo descobriu do informante, Nicholas realmente usou um intermediário para contratar Levi e os outros para vir atrás de mim.

— Então, porque você trouxe eles para a tropa de exploração? — perguntei cruzando meus braços e sentando no pequeno sofá que ele tinha na sala.

— Primeiro pela sua habilidade de luta e também quero os usar para tirar Nicholas da jogada — ele justificou e continuou. — Não podemos correr o risco de alguém pegar esses documentos. Então num tempo de 1 mês quero que vocês entreguem os relatórios para o general Zackley em sigilo.

— Em contrapartida, vou andar com os documentos falsos.

Erwin entregou o envelope para Arlo, já que ele era aquele que estava de pé — Estou contando com vocês para isso, o futuro das nossas expedições está em suas mãos.

Apoiei o rosto na mão — Por que você não coloca um pouco mais de responsabilidade em cima de nós?

Ele sorriu de leve — Como você está? Vi da janela o incidente com os cavalos.

— Que sorte não é mesmo, você olha pela janela em momentos bem conveniente não? — rebati sua mudança de assunto. — Estou bem, só meu equipamento que precisará ir para a manutenção. Terei que fazer um teste completo antes da expedição.

— Sim, faça isso — o tenente concordou. — Shadis está interessado no seu treinamento, talvez você consiga colocar o esquadrão ativo em expedição logo.

Balancei a cabeça em negação — Estamos treinando a pouco tempo, precisamos de pelo menos um ou dois anos para colocar em prática. Funciona dentro das muralhas do lado de fora, não sabemos e ainda não estou segura para testar.

— O que é você, uma tenente? — Arlo brincou.

— Ainda não — respondi e me levantei. — Estamos dispensados Erwin?

Ele balançou a mão — Estão liberados.

Fiz a saudação da tropa de reconhecimento e sai do escritório dele, teremos semanas interessantes.



Fazia algo em torno de três semanas desde que fomos à cidade subterrânea para buscar Levi, Isabel e Farlan. Nesse tempo eles estavam treinando e se provando melhores que muitos dos soldados da superfície, só não era comum os ver nas imediações da base, na verdade, eles andavam pelo quartel como fantasmas. Geralmente não falavam com ninguém exceto se lhes fosse dirigida a palavra e pareciam sempre estar bem atentos ao que estava acontecendo nos arredores.

Raika retornou ao trabalho fazendo uma parte burocrática de levar informações da base para o quartel-general, mas mantinha os treinos na parte da tarde. Já eu, segui a mesma rotina de sempre, escalava ao amanhecer, treinava com o esquadrão no período da manhã, estudava estratégias e fazia treino físico no período da tarde. Isso quando Erwin não me colocava em alguma missão de escolta ou para treinar os novatos.

Hoje é só mais um dia comum, conectei o cabo na cintura e esperei que o primeiro raio de sol aparecesse para que eu começasse a subir, geralmente eu fazia uma rota diferente de escalada todos os dias para não me acostumar. Foi uma subida relativamente tranquila, então logo no final eu forcei o meu corpo para ganhar na velocidade. Assim que peguei a beirada para poder entrar no quartel, tive uma surpresa ao encontrar alguém a poucos centímetros de mim, mais um pouco teríamos batido nossas cabeças.

Estava segurando na beirada, enquanto Levi estava olhando para baixo, meu palpite era que ele me ouviu e se debruçou nas pedras para ver o que era ao mesmo tempo que cheguei ao topo.

O rapaz ainda não tinha se mexido e eu ainda estava pendurada — Agradeceria se você desse espaço para eu subir, meus braços estão adormecendo.

Ele recuou sem dizer nada e eu me forcei para cima sentando na beirada da pedra — Obrigada.

Girei meus braços e pulsos, alongando eles para que os músculos não ficassem rijos — É incomum os soldados acordarem tão cedo assim — comentei —, não conseguiu dormir?

Apesar de saber os planos dele de ir atrás de Erwin eu não podia demonstrar qualquer indicação que eu soubesse. Isso facilitaria a operação depois, então mantive a postura que já tinha naturalmente.

Ele não me respondeu e evadiu a minha pergunta com uma afirmação.

— Sei que alguns soldados parecem loucos como aquela quatro olhos, mas não achei que você também seria.

— Hange é peculiar, mas também é interessante se você se propor a escutar a ideias dela — rebati —, mas isso aqui é meu treino diário, não um desejo suicida. Estamos tentando formar um esquadrão que consegue dar suporte mesmo em campo aberto, queremos minimizar as perdas de soldados.

Relutante, Levi andou até a outra pedra do meu lado e tomou impulso para se sentar também, apesar de parecer desconfiado.

— Não é só colocar os soldados para treinarem mais? — é incrível como não perdia a chance de alfinetar a tropa, apesar de fazer parte dela.

Estiquei as pernas as balançando no ar, vendo o céu clarear na distância — Se fosse só isso, talvez — continuei falando —, os equipamentos podem dar problema no meio da missão, os cavalos podem fugir, os cabos podem romper. Tem uma série de variantes humanas e mecânicas que podem ameaçar a vida de um soldado em expedição.

— Sem contar os titãs, é claro — terminei.

Ficamos em silêncio por um tempo e eu percebi ele me olhando pelo canto de olho — Pergunte logo o que você quer perguntar.

— Essa cicatriz, foi de alguma expedição?

Então era isso, levantei a mão para o rosto traçando uma cicatriz que descia verticalmente pelo meu rosto da lateral da testa até a bochecha. Ela estava há tanto tempo comigo que às vezes até esquecia da sua existência, afinal já não me lembrava de um rosto onde ela não estivesse presente.

— Não — respondi —, titãs não fazem esse tipo de coisa, simplesmente te pegam e arrancam a sua cabeça de uma vez, não tem chance de sobrevivência.

— Esse trabalho aqui foi de um humano — passei a mão pelo relevo, não queria entrar tanto no assunto com ele. — Com certeza não se compara com nada que você viu na cidade subterrânea, mas aqui em cima tem tanta crueldade quanto, só é mais fácil de esconder.

— Sujeira tem em toda merda de lugar — Levi clicou a língua e respondeu chegando num ponto comum.

— Não discordo — falei e me levantei descendo do bloco e enrolando o cabo no braço. — No final todos nós somos quebrados, alguns mais que outros. Só isso.

— Os treinos vão começar em breve, melhor eu ir. Até mais. — anunciei e sai em seguida sem dar tempo para ter uma resposta. Retornando para o dormitório que dividia com Raika. Lá ela já estava acordada e pronta para o dia.

— Quer que eu te espere? — Perguntou a minha amiga, vendo que eu ainda estava no que considerava vestes de treino.

— Não precisa, pode ir — respondi enquanto pendurava o meu cabo de segurança num pequeno gancho na parede e pegava meu uniforme. — Você vai para Sina hoje, não vai? Fazer burocracias.

— Infelizmente — Raika fez uma careta mostrando todo o seu desgosto. — Queria ficar aqui e treinar. A expedição vai acontecer em breve, sinto que ainda não estou na minha melhor forma.

Coloquei a mão em seu ombro — Posso treinar com você a noite quando voltar, se não estiver cansada demais. Consigo desviar um pouco da atenção do Irwin se Arlo me ajudar.

— Jura? — seus olhos se iluminaram como as estrelas salpicam o céu noturno. Raika deu um pulo na minha direção me abraçando pelo pescoço e deixando um beijo estalado em meu rosto. — Você é a melhor!

Sem mais delongas, minha companheira de quarto saiu para o refeitório com um aceno e eu segui para o banheiro feminino da tropa. Apenas os tenentes tinham um banheiro isolado, o comum eram grandes salas com uma série de cubículos com chuveiros, feitos de canos furados improvisados. Nada mais que isso.

Deixei que a água gelada banhasse meus músculos a fim que pudesse deixar eles relaxar, girei o meu pescoço aliviando a tensão, e deixei que o frio lavasse meu rosto me preparando também para mais um dia.

Me juntei ao resto da tropa no refeitório, seguindo para o esquadrão de Irwin, todos os meus colegas estavam reunidos desfrutando de uma calmaria matinal.

Assim que me sentei Arlo já me deu uma notícia — Vamos ficar juntos de Erwin hoje ele vai fazer um teste da nova formação.

— Tudo bem — respondi esticando a mão e pegando um pão no centro da mesa. Raika já não estava em nenhum lugar a vista, o que me levou a crer que ela já devia ter saído para sua missão. Não muito depois nos juntamos com o tenente e mais soldados num dos campos mais distantes de Hermina, onde ficava a base.

— A formação de batimento à longa distância, como vocês já sabem, será organizada em divisões, o propósito principal é a ampliação da nossa habilidade de exploração. Com soldados espalhados igualmente, há um alcance confiável de visão em todas as direções. Nossa habilidade de exploração e de comunicação estará em seu auge.

— Por compartilhar as localizações dos titãs como uma unidade, nós poderemos evitar a chance de contato direto — Erwin explicou para o grupo que ele reuniu para fazer o teste. — Nosso método primário de comunicação será utilizando esses sinalizadores e com base na cor da fumaça disparada seremos capazes de transmitir corretamente a situação atual.

Meu irmão adotivo sempre foi um pequeno gênio, basicamente, a unidade que avistar o primeiro titã irá disparar o sinalizador vermelho, as unidades mais próximas que confirmarem a cor da fumaça irão replicar o sinal até que a mensagem chegue ao centro da formação. Quando isso acontecer, a unidade de comando vai disparar um sinal verde com a direção que a unidade deve seguir.

Subi no cavalo, cada uma das pessoas naquele teste controlado iria representar uma unidade completa da formação, a bolsa já estava com os sinalizadores e estávamos apenas esperando o sinal para início. Tomamos nossas posições e o primeiro sinalizador cruzou o céu começando o teste. Ao mesmo tempo, senti uma sensação incômoda, olhei para trás e para os lados, até mesmo o horizonte, ninguém a vista. Apenas o vestígio da fumaça do sinalizador que cruzava o céu.

Meu coração se sentiu apertado como se as próprias tiras do equipamento estivessem vivas, apertando o meu peito e tirando o ar deles. Não podia fugir com o meu dever, mas sabia que algo estava acontecendo e não era uma coisa boa.

Apesar da sensação incômoda, o dia continuou e o primeiro teste prosseguiu até Erwin se sentir satisfeito.

— Alguma sugestão? — pediu o tenente enquanto ainda estávamos em campo.

Levantei a minha mão após o questionamento — Tenente, no caso de um ataque iminente, qual deve ser o posicionamento do esquadrão? Engajar ou evadir?

Ele pareceu ser pego de surpresa pela minha pergunta, mas logo respondeu — Os esquadrões podem engajar se for necessário, como é um grupo de pessoas é permitido o combate desde que um permaneça para conduzir a comunicação.

— E quem tem autonomia para decidir isso é o capitão, suponho — completei.

— Precisamente — ele concordou.

O tenente tirou a dúvida de mais alguns soldados e quando percebi já tínhamos perdido praticamente o dia inteiro, fizemos alguns testes diferentes e como a distância era grande o tempo que isso levava também era. Não tivemos uma grande refeição, apenas uma pequena pausa, então a maioria dos soldados estava morrendo de fome.

Entretanto, a sensação incomoda ainda me acompanhava, até mesmo depois de voltar para o quartel. Raika ainda não tinha voltado e isso me deixou um pouco preocupada, geralmente ela não demorava tanto para voltar dessas missões burocráticas. Havia um ponto específico da base que dava para ver a estrada por onde os soldados chegavam, então eu fiquei de plantão para avistar o cavalo dela.

A sensação ruim aumentando, trazendo um gosto amargo na boca, colando a minha língua no fundo da boca até que apareceu a sombra de uma pessoa de capuz verde cavalgando. Sem um segundo pensamento atrasando meus movimentos, corri para o lado oposto correndo pelo interior da base até o fim da estrada.

Dei um assovio chamando a atenção de seu cavalo, nisso outros soldados pararam para ver a situação. O animal parou bruscamente e agora com a minha amiga perto consegui ver as manchas vermelhas que corriam seu uniforme escorrendo pela pelagem do cavalo. O corpo de Raika cedeu tombando para o lado.

— Raika!

Uma de suas pernas ainda estavam presas na cela, o que me fez gritar por ajuda, imediatamente outros soldados se aproximaram para me ajudar a tirar seu corpo da montaria, foi quando senti que suas costas também estavam completamente molhadas. As asas do símbolo do esquadrão estavam completamente rubros.

Travei o maxilar, eu não sabia como Raika tinha chegado ali naquele estado, seu corpo já não tinha mais calor. O capuz caiu da sua cabeça, seu rosto também estava manchado e sua boca tentou se abrir para falar algo, enquanto tentava a levar para dentro. Seus olhos estavam pedindo por algo que não consegui identificar de imediato, mas me fez lembrar de uma conversa antiga.



— Você não se sente completamente infeliz às vezes?

Olhei para Raika que estava deitada na grama da parte externa do quartel, às vezes, quando ficar do lado de dentro parecia sufocante demais, ambas deixávamos o dormitório para passar a noite no relento. Apenas com o céu escuro e estrelado acima da cabeça.

— Como assim? — perguntei não entendendo o ponto que ela queria chegar.

— Não sei — Raika deu um longo suspiro. — Às vezes me questiono se foi a decisão certa, se continuasse no mesmo caminho dos meus pais, provavelmente já estaria casada.

— E desde quando você quer um marido? Acho que pulamos essa conversa — dei risada.

— Não quis dizer que eu quero, não agora — ela pegou um punhado de grama e jogou na minha direção as folhas recém-arrancadas. — É só que... Nós vemos tantas coisas sumindo na frente dos nossos olhos, tanto sangue, tantas mortes. Eu só me sinto extremamente cansada, de tudo.

Fiquei em silêncio, até conseguir formular uma resposta — Acho que é normal. Comparado com a vida de outras pessoas, a nossa realmente pode ser considerada infeliz.

— Mas se nós não existíssemos — continuei e me sentei para poder olhar na direção da minha amiga. — Quem vai proteger o sorriso de todos aqueles dentro das muralhas?

Ela fez uma careta e se sentou empurrando meu ombro de brincadeira. — Você está falando isso para que eu me sinta mal? Porque está conseguindo, sua idiota.

— Lógico que não. Você é o motivo de muitos aqui dentro poderem sorrir todos os dias. Eles precisam de você soldada. E eu também — completei —, você é minha melhor amiga Raika.

Não era tão comum eu falar abertamente dos meus sentimentos, então se passou alguns minutos antes que ela pudesse reagir, a garota riu e jogou os braços para cima antes de voltar a se deitar. Seus olhos brilhantes pareciam refletir uma galáxia inteira de esperança.

— Está decidido, vamos salvar a humanidade e nos aposentar nos campos no meio de uma plantação de flores! Então finalmente vamos poder descansar.

— Flores? — Fiz uma careta. — Plantar alguma coisa não ia ser melhor?

— Não — ela sorriu virando o rosto para o céu — Eu gosto de flores.





Encostei sua cabeça no meu pescoço — Está tudo bem, Rai.

Forcei minha voz a soar firme, apesar das lágrimas acumuladas no canto dos olhos. - Você pode descansar agora e cuidar daquele campo de flores que queria.

Quase de imediato, assim que disse essas palavras, seu corpo relaxou, senti o último suspiro — fraco —, tocar a minha pele e então, acabou.

Foram segundos entre Rai chegar no quartel e partir desse mundo, nesse instante Arlo apareceu correndo junto de outros soldados como Mike, e até mesmo Erwin. Meu amigo fez menção de falar algo, mas parou quando fiz um movimento negativo com a cabeça. Ele se aproximou então tirando Raika dos meus braços e ajeitando nos dele.

O tenente deu o comando para que os soldados se dispersassem, Mike nos acompanhou até a enfermaria, onde o corpo deveria ser preparado. Já tínhamos visto enterros demais, mortes demais para não saber os procedimentos. A família seria avisada e como ainda havia um corpo, ela seria enterrada com honrarias.

Na virada de um dos corredores, passamos pelos três que vieram da cidade subterrânea, a frente do meu uniforme completamente manchado de vermelho. Levi me encarou por um momento até nos afastarmos e virar o corredor, as palavras que disse para ele de manhã sobre sermos quebrados, voltaram para me assombrar.

Ao fim daquele dia, ganhei mais uma rachadura.



Dias se passaram desde o funeral de Raika, seus pais escolheram uma sepultura em meio uma campina florida nos arredores de sua vila natal, no dia do enterro, o sol brilhava fraco como se não tivesse motivos para se manter no céu. A brisa fria balançava levemente o tecido verde com o símbolo das asas da liberdade posto em cima do seu caixão sem vontade. Era como se a própria natureza estivesse se despedindo de alguém importante com um carinho.

— Não vá tropeçar nos próprios pés — Arlo disse se inclinando de leve na minha direção. — Preste atenção na missão, deixe pensamentos para depois.

Infelizmente, essa é a nossa vida. Não temos tempo para lamentar pelos mortos.

Assim como Erwin tinha instruído tempos atrás, nós viemos entregar os documentos com as provas da corrupção de Nicholas Lovof. Escolhemos fazer essa missão durante o dia já que era menos provável de um ataque, também estávamos com roupas de civis para nos misturarmos à multidão.

Arlo tinha o braço enganchado com o meu e usava um vestido comum entre as mulheres da muralha Sina, além do chapéu que ajuda a cobrir a minha identidade, afinal a minha cicatriz era um tanto quanto conhecida.

— Talvez você devesse se preocupar com você mesmo, querido.

Arlo disfarçou colocando a mão na boca como se estivesse tossindo, com certeza o meu amigo se divertia demais quando tínhamos esse tipo de missão.

— Me pergunto o que Vance falaria se visse você desse jeito — ele riu de leve, atraindo a atenção de algumas moças. Mesmo o homem estando acompanhado, algumas damas não faziam questão de disfarçar os olhares de cobiça.

— Calado — ralhei —, você está chamando atenção demais.

Cerca de uma quadra depois, quando estávamos próximo da residência do general Zackley, senti alguém nos observando e dei dois tapinhas em cima da mão do meu amigo para sinalizar. Arlo parou no meio da rua e segurou o meu rosto entre as mãos — É aqui que nossos caminhos se separam, volte em segurança para nossa casa.

Precisei de força para não revirar os olhos com a encenação exagerada, Arlo puxou o meu chapéu e em seguida beijou meu roso. — Odeio tanto quanto você, não faça caretas.

Nos separamos a fim de despistar quem quer que fosse que estivesse nos seguindo, assim que consegui uma janela de tempo entrei num beco e amarrei a saia do vestido na lateral da minha cintura escalando a parte das costas de um dos prédios em seguida. Na dúvida é sempre melhor observar de cima.

Estourei os botões do vestido e enfiei ele numa chaminé, entre as camadas desnecessárias de tecido, havia uma segunda veste mais confortável e apropriada para o disfarce. Puxei o capuz da capa marrom sobre a cabeça, andei no telhado para observar melhor. Três pessoas estavam seguindo pelo mesmo caminho que fiz, e um quarto vinha da direção oposta.

Quatro homens emboscando uma mulher indefesa, me parecia um pouco desigual.

Sem o meu equipamento não poderia simplesmente me jogar dali, precisaria descer conscientemente, pulei para o telhado da casa mais próxima e para a além dela aproveitando os tetos mais baixos para voltar para o chão em segurança e aparentemente despercebida.

Aparentemente.

Desviei o meu corpo bem a tempo.

— Oh, você é bem mais ágil do que aquela outra garota — me virei para dar de cara com um cara relativamente alto e esguio, não parecia ser muito mais velho do que eu, mas cheirava a bebida e esterco junto.

Sabíamos que os algozes de Raika deveriam estar ligados à investigação, afinal ela foi alvejada pelas costas, mas não imaginei que seria tão rápido. Sorte a minha.

— Não diria isso — falei reparando nas marcas de unhas que ele levava no rosto. Não tinha nenhum poder sobrenatural, mas não precisava de muito para saber que ele estava falando da minha falecida amiga. — Raika decorou muito bem essa sua cara feia.

Ele fez um som nervoso, clicando a língua e cuspiu na rua em seguida — Vamos ver se você pode me divertir um pouco mais. Me diga, o cadáver chegou bem à tropa? Fiquei surpreso quando ela se levantou e pegou o cavalo, deveria ter esmagado a cabeça dela, enquanto tive tempo.

Tranquei a minha mandíbula, e apertei a minha mão — Repete.

A minha própria voz soou estranha aos meus ouvidos, meu coração batia rapidamente e eu sentia minhas costas queimarem.

— Eu deveria ter a esmagad-

O homem não teve tempo de continuar sua frase porque o acertei no queixo e com o movimento veio o som de algo se quebrando — Sua vadia!

Não saberia dizer se as decisões estavam sendo feitas de maneira consciente ou estava apenas liberando toda frustração e ódio em cima do assassino de Raika. Com um chute preciso fiz com que ele caísse no chão gritando de dor.

— Foi isso que você fez com ela, seu merda? — um novo chute na altura do abdômen.

— Ficou brincando enquanto ela agonizava de dor? Por quê? — peguei ele pelo colarinho da blusa e acertei mais um soco, dessa vez em seu nariz. — Me responda seu maldito!

Ele pendeu a cabeça para trás e soltou uma risada quase gutural entre tossidas que fizeram sangue escorrer pelo canto da moca — Quer me matar, me mate, mas o motivo eu vou levar para o inferno comigo.

Levantei a mão para dar um golpe final quando os outros três capangas apareceram do outro lado. Aparentemente não importava quem eu fosse, eles se aproximaram com a intenção de matar. Soltei o outro no chão para ter uma chance de me defender, teria que agradecer Vance por ser meu saco de pancadas nas horas vagas.

Estava em desvantagem e isso era claro para mim, o terreno à minha volta também não tinha nada que eu pudesse usar. Soltei o ar do meu pulmão devagar conservando o meu fôlego teria que acertar para derrubar e só teria uma chance de fazer isso.

Coloquei as minhas mãos em frente ao meu rosto e esperei que o primeiro viesse. Ele avançou na minha direção como um porco, combinava, porque ele era um homem corpulento e asqueroso. Esse eu ganharia na agilidade, desviei da investida e acertei a lateral do seu joelho, o som de ossos se quebrando ecoou no beco e um grito fazendo com que o homem caísse no chão segurando a perna. Enquanto isso os outros dois vieram juntos me atacar, consegui desviar do primeiro o jogando numas caixas vazias de madeira que tinham por ali, mas o segundo me acertou no rosto e em seguida as costelas. Fui empurrada para trás batendo com as costas nas pedras do beco, um gosto metálico envolvendo a minha língua enquanto a parte interna do meu lábio ardia.

— Parece que ainda é jovem demais para aguentar dois caras ao mesmo tempo — disse me pegando pelos cabelos. — Nada que um pouco de treino não ajude, gracinha.

Joguei a minha cabeça para frente, podia ter aberto o meu supercílio, mas qualquer coisa era melhor do que ouvir as merdas que ele estava falando. No momento em que meu atacante se distraiu o chutei na virilha, o outro que tinha jogado nas caixas me pegou pelo pescoço, o homem estava às minhas costas não me dando muitas rotas de fuga.

— Vamos ver se você vai ficar tão valente quando te entregarmos para os titãs comerem. — cravei minhas unhas em seu braço tentando conseguir alguma brecha para respirar, minha cabeça estava latejando e o sufoco ficava cada vez maior, num último ato consciente eu mordi seu braço com toda a força que reuni.

— Meu braço! Essa vagabunda arrancou um pedaço do meu braço!

Cuspi o que quer que fosse no chão, não tinha chegado até aqui para perder para meros humanos, passei a capa na boca me limpando de toda sujeira. Precisaria passar umas duas horas no chuveiro para me sentir limpa novamente.

Aproveitei que ele estava ocupado demais, esperneando por conta do braço e peguei uma tábua quebrada o acertando na lateral da cabeça. Ele caiu em cima do cara do joelho apagando com ele. Quando olhei para trás, meu querido companheiro Arlo já tinha se encarregado.

— Arlo, sempre bom te ver — coloquei uma mão na costela sentindo dor mesmo com respirações curtas.

— Eu te deixo sozinha por algum tempo e é isso que acontece? — Senti meu corpo cambalear para frente e ele se apressou para me pegar. — Ei , o que foi?

Olhei em volta com a vista um pouco embaçada, mas estava claro o suficiente para ver que o assassino de Raika não estava mais ali. Não tive forças para falar isso em voz alta para Arlo, em poucos segundos o que encontrei foi inconsciência.



Quando abri meus olhos me dei de cara com um ambiente desconhecido, porém com rostos familiares. Sentei rapidamente, mas logo me arrependi pela onda de dor que senti, era como se alguma criatura estivesse rasgando meu corpo de dentro para fora.

— Comandante.

Falei dentre pausas, Arlo que estava próximo da cama colocou a mão no meu ombro. — Vai com calma.

— Maely — Shadis me chamou se sentando em seguida numa poltrona que estava na minha diagonal. — Você não costuma causar problemas — comentou enquanto cruzava as pernas e me olhava de maneira inquisitiva. — Suponho que deva ter um bom motivo para ter engajado com os perseguidores ao invés de evadir.

Olhei para baixo pensando nas minhas palavras.

— Creio que deixei meus sentimentos pessoais interferirem, senhor — falei e em seguida levantei minha cabeça e encarei seus olhos, continuando a minha fala. — Entretanto, não posso falar que eu estou arrependida.

Ele manteve sua feição séria sustentando o meu olhar — Não posso me dar ao luxo de deixar você fora da próxima expedição.

Fiz a saudação da tropa — Entendido.

Comandante se levantou e em seguida saiu da sala e eu praticamente desmontei, segurar a pose na frente dele estava quase me matando — O que aconteceu?

— Antes ou depois de achar que você morreu? — Arlo respondeu e me ajudou a me deitar novamente se sentando na cama em seguida. — Consegui te enfiar numa carruagem com permissão do general e te trouxe em sigilo de volta para o quartel.

Meu companheiro de esquadrão suspirou alto — Erwin vai vir falar com você, mas já adianto que vamos precisar te manter escondida por algum tempo. Aquela pessoa ainda pode mandar outros assassinos atrás de você, se é que me entende.

Ficamos em silêncio, estava ocupada demais em tentar respirar sem sentir dor para reiniciar o diálogo. Mas lógico que Arlo não ia deixar passar — E então, vai me falar ou vou precisar ficar aqui até Erwin perguntar?

Abri a boca para responder, mas fui interrompida pela porta abrindo.

— Não será necessário — meu irmão disse. Provavelmente deveria ter ouvido do lado de fora, coloquei meu braço sobre os olhos, evitando ficar sob seu olhar e resmunguei. O loiro não era uma das pessoas que eu gostaria de ver no momento. — Pode começar.

— Arlo e eu tivemos que nos separar, como o esperado, já que estávamos sendo seguidos — falei. — Segui para o beco mantendo a nossa estratégia original, subi num dos prédios e me livrei das vestes a fim de observar, inicialmente eram três pessoas, mas logo apareceu mais um.

Os dois me ouviam atentamente sem interromper — O plano era derrubar os perseguidores sem alarde e sair para encontrar com Arlo.

Deixei a minha frase morrer no ar.

? — o mesmo me chamou.

Tirei o braço dos meus olhos e soltei o ar lentamente — Foi um deles que atacou e matou a Raika — imediatamente a pressão no ar se fez presente e nenhum dos homens ousou se pronunciar por alguns minutos, foi Erwin que quebrou o silêncio usando da posição de tenente dele.

— Você teve confirmação? — ele perguntou.

Olhei para o rosto dele pela primeira vez desde que o tenente tinha entrado no quarto — "deveria ter esmagado a cabeça dela, enquanto tive tempo" e "Me diga se o cadáver chegou bem à tropa?". Soa claro como o dia para mim.

Não eram muitas as pessoas que sabiam sobre o meu passado conturbado e o peso que aquelas exatas palavras tinham sobre mim, tive certeza que Erwin compreendeu o porquê de eu ter reagido quando vi seus olhos ficarem levemente mais suaves.

— Entendo, mas de qualquer forma ele escapou — concluiu —, não temos como rastrear no momento, e garantir o futuro das próximas expedições é a nossa prioridade. Arlo, o documento foi entregue?

— Como solicitado tenente — meu amigo pigarreou antes de falar. — Já está em posse do general Zackley.

Erwin acenou com a cabeça em aprovação e andou até mim — Vamos resolver os assuntos quando chegar a hora, trate de descansar o máximo que puder — meu irmão me disse apoiando a mão no meu ombro. — Precisamos de você para o avanço da humanidade, sei que vai se recuperar logo. Hange vai te ajudar durante os dias, assim como Arlo.

— Eu? — A cabeça do meu amigo se virou rapidamente na direção do tenente. — Por quê?

— Não podemos ter muitas pessoas cientes da situação, confio em você. Hange virá em breve ver os seus machucados — dito isso ele saiu para atender seus afazeres. O homem estava realmente ocupado.

A dor nas minhas costas estavam insuportáveis e a sensação de sujeira me fazia sentir como se tivessem milhares de insetos imundos rastejando sob a minha pele. Olhei em volta, deveria ser um quarto de tenente vago, julgando pelo espaço e o banheiro adjacente.

Geralmente a tropa usava banheiros comunitários.

— Arlo — chamei e ele me respondeu com um resmungo. — Eu preciso realmente de um banho.

— A vontade princesa — ele respondeu sem dar muita atenção, era visível que ele não estava feliz com a situação.

— Já teria ido se conseguisse — ralhei de volta. — Preciso que você me ajude a tirar as minhas roupas.

— Não — ele disse sem pestanejar. — Espere Hange chegar.

Arqueei a minha sobrancelha — Tem medo de uma mulher? Nunca viu um corpo nu na vida?

— Vi o suficiente — Arlo retrucou —, apenas não quero ter memórias do seu na minha cabeça.

Me forcei a me sentar reprimindo os resmungos de dor, eu não aguentaria Hange chegar. Conhecendo como eu a conhecia, capaz dela desviar no meio do caminho — Ótimo, eu faço sozinha.

Me apoiei na cama e andei com passos curtos até a porta amaldiçoando eternamente quem quer que fosse a pessoa que tinha me jogado contra o muro, comecei a desabotoar a camisa, mas logo ouvi uma movimentação.

— Você vai ter que me agradecer pelo resto da vida Maely — Arlo disse mais para ele do que para mim, sorri, ele era uma pessoa boa demais para deixar que uma acidentada como eu ficasse andando e se esforçando sozinha. O garoto abriu as torneiras para que a banheira começasse a encher.

— Tira a roupa — ele disse mantendo o olhar para o teto.

— Não sabia que você era desse tipo — brinquei.

— Continue com essas brincadeiras e eu vou finalizar o serviço que aqueles mercenários incompetentes não conseguiram — ele me ameaçou.

Desabotoei a minha camisa e joguei ela na pia, não estava com os cintos que serviam de suporte para o 3DMT, então isso já era um alívio. A calça me deu um pouco de trabalho, mas também não precisei de auxílio nessa parte.

Arlo mantinha os olhos fechados para preservar a minha integridade e eu agradeci por isso — Passe seu braço pelos meus ombros, vou apoiar a sua cintura. Passe uma perna para a banheira de cada vez.

Fiz como instruído e logo me vi na água limpa me livrando de toda a sujeira.

— Obrigada — falei, ele se virou de costas e pegou as minhas roupas.

— Vou até o seu dormitório buscar limpas, tente não se afogar enquanto eu não voltar.

— Vou tentar — respondi.

E então o rapaz saiu me deixando sozinha com meus próprios pensamentos, a água estava um pouco fria, mas eu não reclamei, minhas costas até agradecem a temperatura. Comecei a tirar os vestígios de sujeira que eu conseguia e enquanto fazia isso Arlo retornou.

Não estava sendo uma tarefa muito fácil, já que a cada movimento eu sentia como se minhas costas fossem quebrar ao meio.

Ouvi um suspiro alto — Se afaste um pouco da borda e jogue sua cabeça para trás. Não vai conseguir tirar toda essa fuligem do cabelo sozinha.

— O que você vai fazer? — perguntei.

— Um bom trabalho — vi pelo canto de olho ele arregaçando as mangas — Não se preocupe, não vejo nada mais do que suas costas.

Não tive uma resposta certa, mas fiz o que ele me pediu, eu confiava nele como companheiro de equipe, amigo e homem também, logo senti a água ser despejada delicadamente na minha cabeça e em seguida ele começou a mexer nos meus cabelos.

— Antes que você pergunte — ele começou a falar — eu costumava ter uma irmã.

Virei a minha cabeça de leve para poder ver seu rosto — Irmã? Nunca ouvi você falar dela.

— Como eu disse, eu costumava ter uma irmã — ele repetiu e então eu entendi.

— Sinto muito. — respondi não sabendo mais o que falar.

Ele ficou em silêncio por mais algum tempo antes de voltar a falar — Sou o mais novo de uma família humilde, da muralha Sina, quando era jovem vi minha irmã mais velha cair do cavalo e bater com a cabeça numa pedra.

Arlo em nenhum momento deixou de mexer nos meus cabelos enquanto contava sua história.

— Apesar de ser o mais novo, só eu poderia cuidar dela já que meus pais tinham que trabalhar... Foi o motivo de eu entrar na tropa de reconhecimento, para conseguir ao menos mandar algum dinheiro para eles.

— Conforme o tempo foi passando, os remédios da minha irmã foram ficando mais caros e suas crises foram piorando... No fim, o meu próprio egoísmo prolongou o sofrimento dela a impedindo de partir. — ele terminou de falar e puxou de leve o meu cabelo me fazendo reclamar — Você me lembra um pouco ela.

— Tirando a parte idiota.



— Hange n-

Arlo enfiou um pano na minha boca enquanto abafava um grito, era para ela apenas me ajudar com a parte médica. Não sei em que ponto aquilo virou uma sessão de tortura. A tenente tinha praticamente subido nas minhas costas, pressionando com toda força do mundo um ponto específico.

Um barulho alto soou e com ele veio a sensação de ter os ossos quase quebrando.

— Pronto! Agora, sim, você vai ficar bem — ela disse saindo das minhas costas e se aproximando do meu rosto. — Está bem, ? Parece meio pálida.

Agarrei a tenente, que também era uma boa amiga, pelo colarinho — O que você fez comigo, eu vou te matar quando conseguir andar apropriadamente de novo.

— Não foi nada — ela disse colocando a mão sobre a minha, evitando que eu apertasse ainda mais. — A pancada que você levou quase tirou algumas coisas do lugar, eu só coloquei de volta.

Soltei Hange e voltei a deitar na cama, pelo menos respirar não estava mais tão incômodo quanto antes. — Me avise da próxima vez.

— Agora que não tem mais o risco de vocês duas se matarem, vou buscar o jantar — o homem disse se levantando — Quer alguma coisa Hange?

— Ah, sim, vou acompanhar em seu desjejum, obrigada Arlo.

Ele acenou com a cabeça e nos deixou sozinha, sabia exatamente o tipo de conversa que estava me aguardando, podia ver os olhos da tenente brilhando.

— Comece Hange, consigo ver no seu rosto que você está pensando em alguma ideia mirabolante para capturar algum titã — anunciei, fazendo com que a pessoa na minha frente ajeitasse os óculos e soltasse a língua depois de um riso.

— Você me conhece tão bem, estive pensando num método seguro de efetuar uma captura e quero que você me ajude com isso.

— Hange, a última vez que titãs foram capturados vivos foi a mais de quinze anos atrás — comentei — E uma boa parte dos soldados morreram no processo pelo que ouvi.

— Sim, mas nós aprendemos desde aquele tempo, tenho certeza que precisamos disso para o nosso avanço. Se passarmos os próximos anos do mesmo jeito que os anteriores não vamos evoluir.

— E o que te faz pensar isso?

Sua voz ficou mais sombria — A humanidade precisa fazer seu dever de casa e encontrar tudo que puder sobre os titãs. Uma vez que você conhece seu inimigo, você pode encontrar um ponto fraco a ser explorado. Se você não fizer isso antes de lutar, morrerá, com certeza e permanecer na ignorância matará a humanidade.

A tenente era provavelmente a única pessoa na tropa inteira que pensava dessa maneira, e apesar de achar loucura, não discordava e possivelmente me arrependeria no futuro.

— Você precisa de permissão do comandante antes de eu te ajudar — comentei me virando e deitando na cama de lado. — O que você está pensando em fazer para capturá-los?

Seus olhos viraram praticamente estrelas e a tenente soltou um grunhido de felicidade — Então, a minha ideia é a seguinte...

Passei as próximas horas conversando com minha colega de tropa sobre como ela pensava em capturar titãs, ouvia e dava uma opinião de volta. Surgia um problema, e nós começamos a pensar de novo. Hange me contou tudo que a humanidade sabia dos titãs, algo que a academia de cadetes já ensinava e depois me falou sobre as teorias que ela tinha.

Arlo voltou com o jantar e partiu para o próprio dormitório há muito tempo e quando percebi, Hange estava cochilando murmurando algo sobre equipamentos no pequeno sofá que tinha no cômodo. Normalmente eu já estaria desmaiada, mas uma série de pensamentos me impediam de dormir.

Raika tinha provavelmente sido morta a mandato de Lovof achando que ela retinha os documentos que deveriam ser entregues a Zackley, afinal era óbvio que não seria Erwin a deixar as provas pessoalmente. Eles deveriam ter emboscado a minha amiga e tentado tirar alguma informação, não sabia de nada, então a tortura se prolongou por algum tempo e quando perceberam ela já devia estar quase morta.

Eles não deveriam ter feito aquele tipo de coisa na cidade, é fácil demais encontrar rastros, os mercenários deveriam estar esperando a garota na saída da cidade quando os campos começam a aparecer e não haveria ninguém para ouvir seus gritos.

Fechei a minha mão e andei até a janela, não tinham nuvens no céu, o que fazia com que as estrelas estivessem bem visíveis. Eu nunca me esqueceria do rosto do assassino de Raika, pode levar anos, mas eu com certeza vou o encontrar.

Aquela noite terminou com uma promessa silenciosa e os roncos cansados de uma tenente tagarela no meu sofá.

Demorou algo em torno de uma semana até me tornar apta a retomar as atividades, Arlo e Hange me faziam companhia quando podiam. Apesar de acreditar que meu amigo estava me usando de desculpa para ficar sem fazer nada. Erwin vinha para conversar comigo ocasionalmente e checar se minhas dores estavam melhores, mas com menos frequência que os outros dois.

Sai do quartel com passos firmes sentindo finalmente a luz do sol, minhas dores tinham passado e os roxos da troca de socos começavam a desaparecer, joguei meus braços para cima me alongando e agradecendo por ter controle sobre o meu corpo novamente. A expedição estava se aproximando, precisava passar nos mecânicos e pegar o meu equipamento para teste.

No que diz a respeito da minha ausência, para o restante da tropa estive numa missão bem longe do quartel, justificando a minha ausência. Então, quando voltei a colocar o rosto na luz, aqueles que conheciam me cumprimentavam com boas-vindas.

— Já voltou? — Vance comentou quando apareci no campo de treinamento. — Estava com esperança de me livrar de você por mais algum tempo.

— Como poderia fazer isso? — Fiz uma voz afetada. — Se eu não estiver aqui para supervisionar e fazer você, especialmente, se mexer, não vai sair dez centímetros do chão na próxima missão.

O grupo de soldados riu e Lea se apoiou na irmã — Engraçado, eu achei que você quisesse que voltasse logo. Como foi que disse? “Para acabar com ela por quebrar seu nariz”.

Virei a cabeça lentamente para o soldado, mantendo no rosto o sorriso mais sádico que consegui colocar. Travei as lâminas nos gatilhos e as tirei do apoio.

— Algo a declarar, Vance?

Ele desviou o rosto, olhando para o lado contrário a minha presença. — Comece logo o treino, projeto de capitã.




Continua...


Nota da autora: Obrigada por ler até aqui! A aparição do Levi vai aumentando progressivamente conforme o progresso da história.
Até mais, Xx!!

Se você encontrou algum erro de codificação, entre em contato por aqui.


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