Codificada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 31/10/2024Algumas pessoas que encontrei me atualizaram sobre médicos terem encontrado o genoma do vírus antes da queda de todo o sistema de comunicações na rede europeia e, portanto, tal “segredo da cura” ainda permanece um oceano de distância. Mas, de volta aos números; todos os infectados na Itália morreram dentro de 48 horas, mas claro que ninguém foi alertado, nem mesmo outros países do bloco econômico (o que é ilegal, mas duvido que ainda tenha algum chefe da União Europeia vivo para bater o pé sobre isso). E em março de 2020, alguns voos italianos pousaram em alguns continentes, o que me fez ter suspeitas de uma “guerra biológica”, mas nunca tive tempo ou dados para ir a fundo sobre o ataque — este que chocou os aeroportos quando, ao em vez de familiares queridos com presentes do continente europeu, homens e mulheres infectados saíram dos voos. Muitas aeronaves simplesmente caíam nas zonas urbanas no estilo kamikaze, auxiliando a proliferar o vírus que se espalha pelo ar.
Me lembro de estar tomando banho em meu apartamento quando a China sucumbiu à peste, atingindo países próximos — menos a Coreia do Norte, eu imagino. Em menos de dois dias, a endemia tornou-se uma pandemia digna de blockbusters hollywoodianos. Então a Austrália foi atingida mesmo com o seu isolamento geográfico e logo depois a Inglaterra e seus agregados, assim como Cuba, Brasil e México. Até tal momento, estes eram os países infectados pela praga, segundo o jornal que assisti enquanto fazia um planejamento alimentar com a comida que tinha em casa.
Vinte e quatro horas depois, o jornal deixou de ser transmitido e uma tela o substituiu, contendo informações de proteção que nomearam como Regras de Enfrentamento. Mas nunca disseram o que enfrentávamos.
1. Uso obrigatório de máscaras em lugares públicos e/ou fechados.
2. Não engajar diálogos ou tentar aproximação.
3. O vírus é transmitido por mordidas, sangue e secreções dos infectados.
Infelizmente, cometeram o erro de não avisar o que todo bom filme de terror faz saber tarde demais: atirar na cabeça. Atirar na cabeça antes que o andarilho que foi atingido no peito decida se levantar e saborear o tornozelo de um desavisado e o ciclo se repetir. Então, horas depois, aliada a todos meus conhecimentos de sobrevivência vindos de um pai como o meu e os filmes que assisti, optei por ir ao mercado antes da metrópole, minha querida Nova Iorque, ir para o fundo do poço. Não me arrisquei indo às franquias mais conhecidas, optando corretamente em focar nos pequenos negócios próximos de minha casa. Havia encontrado tudo antes de voltar para meu apartamento: alguns enlatados, bolachas, farinha de trigo e leite em pó.
Contudo, foi em uma farmácia, onde cometi meu primeiro erro.
Era uma franquia enorme, com muitos clientes e em uma avenida movimentada, mas única onde sabia poder encontrar o estoque necessário. Estava no caixa quando um carro atingiu a lateral do estabelecimento que funcionava de portas fechadas e, um a um, andarilhos invadiram o local após o som. Tive tempo de olhar uma última vez para a mulher na registradora antes de fechar a mão em um monte de vitaminas e correr pro meu carro. Eu a vi semanas depois, com seu olho pendurado, a bola marrom-amarelada embalando-se na ausência de carne em sua bochecha.
Também não me considerava habilidosa com minhas mãos no início, mas logo tudo parecia se encaixar. Ao chegar em casa, puxei meu sofá para a porta após trancá-la e peguei uma caixa de ferramentas que comprei para montar a cômoda na minha sala. Arranquei as prateleiras acima da televisão e as preguei na porta, quebrando também mais uns móveis para fechar as janelas de vidro. Limpei a banheira e os baldes antes de abrir as torneiras e encher todas as panelas. Por minhas contas, aguentaria duas semanas e quatro banhos. Era uma previsão péssima, mas a opção disponível — e foi só olhar pelas frestas da janela e ouvir os sons do corredor para saber que poderia estar em condições piores.
Passei três semanas dentro de casa, no total. Estava racionando cada gota de água e grama de comida, ocupando-me no tempo livre em colocar uma das placas de energia solar nas caixas de ar-condicionado e observar meu celular carregar durante o período. Havia sido um presente do meu pai, um homem apaixonado o suficiente por aventuras para me comprar um carregador a energia solar apenas para me convencer a ir em pescarias. Estava grata, de maneira mórbida, que ele já estivesse morto pelo igualmente impiedoso câncer quando tudo começou.
Li toda a minha coleção de livros enquanto estive lá, ouvi todas as minhas músicas favoritas e tomei banhos esfregando o sabonete em mim até arder.
Já tendo visto os andarilhos em ação na época em que a televisão ainda funcionava e ao vivo, consegui engolir a pílula de que, neste novo mundo, seria matar ou morrer. Matar criaturas irracionais loucas para comer minha perna e palitar os dentes com meus dedos, ou morrer e me tornar um deles. Então, após ver o que tais monstros eram capazes, aceitei os fatos com facilidade. Também, já havia assistido filmes de terror o suficiente para saber que não havia mais volta.
Quando me restou um terço da comida e quatro garrafas de água, decidi que era a hora de ir embora. A primeira decisão que tomei foi armas. Peguei uma raquete antiga de tênis, passei uma fita isolante e a decorei com uma infinidade de pregos e talheres afiados. Fiz as malas apenas com uma troca de roupas, leggings e blusas, assim como meu celular, fones de ouvido (no plural), o carregador usado e o outro em uma caixa novinha e medicamentos. Absorventes, lenços, sabonete, desodorante e um creme para as mãos. Sim. Creme para as mãos. , a pessoa mais cheirosa de todo o apocalipse zumbi.
Despejo as cebolas cortadas na panela, junto com tomates em conserva e uma pasta de alho qualquer.
— Vai fazer o seu famoso molho?
Olho acima de meu ombro na direção de Milicent Goldberg, a líder do acampamento em que estou há dois meses, e ela sorri para mim com os dentes amarelos e uma peça faltando da dentadura. Um ano e meio após o início do apocalipse, as pessoas deixaram de se importar com coisas “menos significativas” como higiene e não compreendo como. Ela esfrega as mãos no jeans surrado, manchado de terra e sangue, pois dormimos em barracas de acampamento. Ao pensar em minha barraca, movo o pé para a esquerda, tocando em minha mochila só para garantir, afinal, me recuso a deixá-la em qualquer outro lugar, mantendo-a sempre por perto. Fiquei em três acampamentos desde que decidi me rodear dos vivos novamente e sei como tudo pode desandar em um piscar de olhos.
— Charlie não parava de falar do quão maravilhoso o seu macarrão é. — Ela aperta meu ombro apesar do contato físico não ser meu forte, mas parecer ser importante para a ela.
— O suficiente para ele sempre roubar o meu almoço na faculdade. — Eu forço um sorriso amigável, me esforçando todos os dias para ser agradável com estes que me oferecem comida e noites de sono segura. — Charlie não tinha restrições em roubar a comida de ninguém. — Charlie Jones se foi e parte da memória que eu tinha de minha juventude também se foi com ele.
Era sobrinho de Milicent e estava em minha turma de economia, além de ter estudado na mesma escola que eu durante o ensino-médio. Foi ele quem me achou enquanto eu viajava sozinha pelo Tennessee e me convenceu a me juntar ao acampamento com a promessa de comida, segurança e poucos homens, assim como a companhia de um amigo. Mas Charles morreu há seis dias em suas costumeiras buscas por medicamentos na cidade, tendo caído de seu cavalo durante uma fuga dos andarilhos, pelo que sabemos. Encontraram os restos do cavalo há alguns metros de distância da farmácia e eu prefiro não acreditar que tenha sido ele.
— Quer ajuda? — Millicent questiona quieta e sei que falei demais ao mencioná-lo outra vez.
— Não, estou bem por enquanto. — Garanto ao amassar ainda mais os tomates, retirando cada restinho de sabor deles e cada mísera grama que pode alimentar mais alguém. — A Lia cozinhou o macarrão ontem, então… — Olho para a panela de macarrão empapado e de aparência nada apetitosa, já tendo saído da validade há alguns meses mas sendo a única opção do dia. Não planejo comê-lo e irei jogar algumas batatas cozidas no molho em seu lugar. — Está tudo bem. Aviso quando estiver pronto.
— Obrigada novamente por cozinhar para nós, . — Eu assinto com um sorriso contido, certa que ela realmente deve estar aliviada por não estar suando ao lado da fogueira no meu lugar. Ou com a bunda amassada pelo tronco desconfortável onde me sento. — Eu vou fiscalizar os rapazes que já devem estar chegando com os suprimentos. — Ela informa, as mãos nos quadris ao olhar para o horizonte em busca dos tais rapazes. É necessário um certo grau de confiança para comer algo preparado por outra pessoa, afinal, atualmente, os andarilhos não são a única ameaça, mas ela parece confiar em mim. — Pediu por algo para eles?
— Pedi uma pasta de dentes na lista que o Tobias escreveu. Se acharem... — Comento ao virar para apanhar uma das latas de tomate que estava sobre uma pedra. Millicent concorda, se aproximando para abrir o enlatado e me ajudar.
— Vou trazer uma para você, meu bem. — Promete-me sem esforço. Ela é uma boa pessoa, porém gentil demais e me preocupo que por isso acabe trazendo mais pessoas que acampamento pode suportar. Já abandonei minha barraca por não aceitar dividir com ninguém e hoje amarro meu saco de dormir em uma árvore e durmo nela. — Sabe, o Steve também pediu uma pasta e elas estão acabando nas farmácias... Espero achar o suficiente para os dois, senão terão de dividir.
Steve Rogers é um dos melhores “funcionários” do acampamento de Milicent, o principal responsável pelos suprimentos e pela segurança do acampamento, sendo sempre aquele a coordenar os outros sobreviventes no caso de uma horda se aproximar e garantir que nada nos aconteça. Nós trocamos algumas palavras quando Charlie nos apresentou logo que cheguei, declarando que Steve era uma das pessoas em que eu podia confiar com os olhos fechados aqui, mas sua postura séria e firme demais sempre me fez dar para trás, até mesmo na hora de lhe servir comida quando era necessário e eu ajudava na cozinha.
Steve sempre conversa com todos usando o mesmo tom calmo a todo tempo e sendo positivo mesmo quando dá as piores notícias possíveis ou informa que algo inesperado aconteceu. É um homem alto e forte, com ombros largos e aparência sólida, possivelmente de alguma origem militar, de fazenda ou lenhador, tanto que já lhe vi fazer o controle das cercas sozinho, demonstrando uma destreza e força quase surpreendente. Além disso, como quase todas as mulheres do acampamento costumam comentar quando seus maridos estão longe demais para ouvi-las, Steve Rogers é “bonitão”. E ele realmente é um homem bonito para o estandarte de beleza do apocalipse, com o cabelo loiro escuro na altura dos olhos e um rosto bonito apesar da barba.
Em outro momento, teria lhe dado um superlike no Tinder.
Ele havia sido gentil e extremamente cordial todas as vezes que conversamos, mesmo que fosse apenas para me entregar os suprimentos que achasse e, para a felicidade de Charlie, para me “presentear” com uma mão cheia de framboesas quando reclamei sentir saudade das frutas ofertadas pelo refeitório da faculdade. O fiz aceitar ficar com metade e dividi minha parte com Charlie, mas não as comi, temendo que fossem venenosas. Hoje, as pessoas não costumam ser tão boazinhas assim e isso me preocupa, mesmo que vindo de um homem bem apessoado. Bondade extrema nessas condições não é comum ou vem com boas intenções, em especial vindo de um homem.
Estou colocando a comida em um prato quando os gritos iniciais soam pelo acampamento.
São altos, longos e trêmulos, revelando a correria das possíveis primeiras vítimas. Sem hesitar, meus dedos se fecham na alça de minha mochila, bastando apenas tê-la comigo para que possa correr sem olhar para trás. Mal havia empurrado meu prato para frente quando uma algazarra encheu o acampamento, seguido de sons de tiros e rosnados. Por experiência própria, sei que as armas de fogo simplesmente pioram a situação e atraem ainda mais zumbis pelo barulho e alguns andarilhos surgem em meu campo de visão quase de imediato, avançando contra a mesa em passos desengonçados com suas roupas em farrapos enquanto cubro meu nariz com a bandana que estava em meu pescoço.
O primeiro a alcançar a mesa enterrou a mão pútrida em meu prato, as unhas verdes e nojentas da outra mão vindo em minha direção. Quase caio para trás ao colocar a mochila nos ombros e também me concentro em enfiar uma faca do talher em sua cabeça em decomposição, sentindo-a prender-se no osso pois ainda é um dos andarilhos novos — recém-morto. A maioria é tão nojenta e suja que não parece nada além de lixo, sangue e frango podre.
Corro o mais rápido que posso para longe quando mais deles surgem, vendo alguns outros sobreviventes desafortunados o suficiente lutarem contra os monstros atracados em seus braços e pernas ou tentando se livrar dos mortos mesmo quando já mordidos e infectados. Abro caminho com uma das facas em meu coldre (aposentando meu machado por falta de espaço para golpes com mais força), mantendo-me sempre avante e sem desperdiçar tempo precioso nos casos perdidos, ainda que um deles seja Milicent Goldberg. Ela está estirada no chão, suas entranhas sendo motivo de disputa de duas criaturas enquanto outras se dividem em sua cabeça e braços. Engulo a bile quente que sobe pela minha garganta e empurro mais zumbis, meu porte e agilidade sendo pontos auxiliares em minhas escapadas.
Minhas mãos têm vida própria neste ponto de minha existência fadada, certeiras ao agarrar camisas e pescoços antes de atingir cérebros pútridos com minha lâmina, os jogando nos outros zumbis para os desequilibrar como um dominó semi-vivo. Continuo no mesmo ritmo até sair do acampamento, meu rosto ardendo e formigando quando encontro uma avenida e a atravesso tão rápido que meu tornozelo dói em contato com a terra fofa novamente — os gritos e pedidos por misericórdia me seguindo.
Quando encontro uma clareira, há cerca de vinte minutos de distância e meus pulmões queimando há dez, me jogo na grama baixa, enfraquecida pela exaustão da corrida e a falta de ar. Estou caída de lado e tentando controlar minha respiração quando ouço um galho se partir atrás de mim, então deslizo com a ferocidade de um animal selvagem para me virar de imediato, empunhando a pistola antes presa no coldre de minha coxa e com um joelho apoiado no chão ao destravar. Pistolas não são ideais, e sempre prefiro metralhadoras, mas com um único zumbi, pode ser útil e poupar balas.
Contudo, para a minha surpresa, não é um zumbi e sim o bom Steve Rogers que está de pé há alguns metros.
Há sangue em sua testa e no cabelo dele, escorrendo por seu rosto e camisa branca que veste, braços encharcados com lama misturada com restos de zumbis e o que identifico ter sido meu molho de tomate. Mesmo com a sujeira e sangue, seus olhos azuis estão em alerta e me analisando com cuidado. Ainda assim, mantenho minha arma erguida e apontada para sua cabeça a todo o tempo, a mira da pistola entre suas sobrancelhas curvadas enquanto se esforça para respirar, também cansado pela corrida. Ele não impunha seu rifle em minha direção, este apontado sem intenção alguma para o chão ao lado de seus pés e suas mãos vazias apesar da mochila em sua costa. Meu coração se assemelha a um tambor em meu diafragma, socando o meu peito e é somente assim que percebo o tremor de minhas mãos.
— Eu vou atirar! — Aviso-o com um rosnado entre dentes, sem desviar do alvo em sua cabeça até mesmo quando ele enfia a mão em um bolso da calça jeans. Steve respira fundo com os olhos fechados, exausto demais para fingir manter-se tão forte e seguro como sempre foi. Ele perdeu seu acampamento que deveria estar desde o início e agora estou ameaçando lhe matar e, mesmo assim, não vejo problemas para atirar em sua cabeça. — Eu não estou brincando!
— Calma — Ele pede com o mesmo cuidado de quem tenta controlar um cão feroz mesmo com um bife nas mãos. Sua voz é segura e não aparenta estar assustado comigo, o que me apavora mais que minha facilidade em aceitar matar alguém. Eu respiro fundo, desviando meus olhos para seu rifle destravado e notando que correr dele não é uma opção. Já lhe vi acertar um zumbi em movimento há mais de cem metros e ele vai me atingir na fuga. — Não atira, .
— Me dê um motivo para não atirar! — Cobro emputecida, tentando estabilizar o tremor das minhas mãos, uma vez que essa foi bem perto. Pois um zumbi encostou em minha comida e vi meia dúzia devorando a chefe do acampamento. Pisco para afastar as memórias, impaciente e inclinada a matá-lo e roubar sua mochila. Engulo em seco para lubrificar minha voz antes de balançar a pistola. A sua mão ainda está no bolso, mas seus olhos azuis, tão azuis, estão cravados em mim e me faz precisar matá-lo ainda mais. — Está sob a minha mira, com armas e uma mochila certamente cheia — Cuspo voraz, não reconhecendo minha própria voz em minha boca espumando. — Agora me dê um motivo para não atirar.
Quando Rogers lança algo na grama, eu disparo.
O tiro é oco, então sei que não o atingiu e não tenho forças de disparar um segundo pois ele já está no chão, ambas as mãos atrás da cabeça e coxas afastadas pois ele está rendido, o seu rosto abaixado e seu rifle lançado para as costas. Quase me engasgo com surpresa quando olho para a embalagem no chão entre as folhas secas, ainda segurando a pistola apontada para ele.
É uma embalagem da Colgate.
— Acha que vai me comprar com a porra de uma pasta de dente?
Sim. Ele me comprou com a porra de uma pasta de dente e mais framboesas.
— Está com esse sorrisinho desde que saímos da casa assombrada no lago — Comento enquanto atravessamos uma estrada, a sua estratégia de sempre nos dividirmos entre os dois lados de uma floresta sendo adotada por mim sem muitos questionamentos. Giro a machadinha em minha mão, tendo o afiado durante o tempo em que ficamos presos em uma cidadezinha mais ao norte. — Ao menos sabe o motivo ou está enlouquecendo aos poucos, Rogers?
Steve demonstrou-se mais gentil do que pude imaginar e isso é fato. Passados os primeiros momentos de tensão entre nós na lareira e alguns convencimentos seus até que eu abaixasse a pistola, ele fez questão de jogar a própria mochila no chão para que fosse revistada por mim. Encontrei, naquele instante, uma das características que nos assemelha: higiene. Lenços umedecidos, desodorantes, roupas limpas e kits de emergência. Também um perfume. Steve Rogers, o homem mais cheiroso do apocalipse.
Então, encontrei mais coisas. Inúmeros filtros de água, rações militares em quantidade absurda, containers com balas, um saco de dormir, máscaras N95, remédios, kits para criar fogo, óculos de sol e uma lanterna. Minha primeira crença foi que havia passado tempo demais do lado de fora, encontrado militares e os roubado. Mas esta se foi pelo ralo quando encontrou um lago e filtrou quase dois litros de água para nós. Ou como era rápido em desarmar seu saco de dormir, manter as roupas sempre limpas e criar fogueiras a noite.
— Nos livramos daquela horda enorme, — Ele explica-se, caminhando na minha frente. — Já é o suficiente para respirarmos aliviados, não acha? — “Não.” Ele dá de ombros com minha resposta, me olhando ao caminhar de costas, mesmo que seu foco seja na floresta atrás de mim. Rogers dá uma mordida em uma bolacha dura que estava em sua ração militar e me oferece, a mesma que me garantiu semana passada que poderia me alimentar por horas e teve resultado comprovado. — E também, eu não aguentava mais o cheiro de mofo daquele lugar e os mosquitos. — Quebro um pedaço da bolacha e a enfio na boca. Não tenho mais medo de ficar com sede ao seu lado, em especial com os pacotes de água que temos e as cápsulas para filtragem.
Já se passaram quatro meses desde a clareira.
Steve esteve ao meu lado a todo instante, sem questionar minhas motivações para prosseguir para o leste ou sequer importar-se para onde íamos, contanto que estivéssemos seguros. Estamos vagando por Gadsden County na Flórida há dois dias desde que chegamos ao distrito, mas ficamos encurralados em uma casa próxima a um rio quando uma horda cruzou nosso caminho. Rogers os ouviu primeiro e agarrou minha mochila e cobriu minha boca antes que eu pudesse ir parar no meio dos andarilhos que cruzavam uma avenida.
No primeiro momento, senti um terror intenso me consumir, apavorada que ele tivesse finalmente me pego desprevenida e fosse me violentar no meio de uma floresta e por isso eu me debati como louca em seus braços enquanto sua mãos contiam os meus gritos. Meus pontapés nos lançaram uma ribanceira abaixo e uma garrafa de vidro oculta nas folhas se fincou em meu ombro enquanto tentava fugir de um Steve Rogers que, ao lembrar-me dele agora, estava comicamente desesperado e me implorando para fazer silêncio.
— — Steve implorou ao se abaixar até mim enquanto eu chutava suas pernas e deferia socos no seu peito o pescoço que ficaram marcados por dias e me encheram de culpa inimaginável. — Se aquie… — Sua voz cortou quando finalmente acertei sua jugular e ele precisou recuperar o ar, o que não fez efeito algum quando chutei suas bolas e ele foi de cara no chão, as segurando e ignorando o meu surto justificável.
Foi somente assim, no silêncio dos seus arfares de dor e minha tentativa de pegar minha faca que pude ouvir os rosnados horrorosos dos zumbis que deviam passar da casa de uma centena. Logo, minha raiva e vontade de arrancar suas bolas foi substituída por culpa.
— Steve — Desta vez fui eu quem implorei, arrastando-me até ele apesar de meu braço que jorrava sangue naquele ponto, aterrorizada em ter lhe ferido de verdade, mesmo que fosse minha intenção cega e que ele a compreenderia posteriormente. — Meu Deus, Steve? — Sacudi seu ombro e dei para trás quando ergueu a mão, respirando pesado e pedindo por um momento. — Desculpa. Rogers, eu sinto muito!
— Você acertou as duas… — Grunhiu baixinho, derrotado. — Boa mira, . Boa mira.
Minutos depois, quando meia dúzia de zumbis já tinha ouvido nosso argumento e capotado pelo barranco até nós, Steve nutriu forças para se colocar de pé e nós corremos por meio minuto até encontrarmos um casebre de pescadores abandonado próximo ao lago que cruza a cidade. Ele ficou uns bons dez minutos calado depois que entramos e trancamos a porta e as janelas. E quando meia hora havia passado e os zumbis tinham seguido adiante ao nos perderem de vista, quase gritei ao sentir sua mão no meu ombro para tentar estancar o sangue que a adrenalina havia me feito ignorar ter perdido. E nunca mais mencionamos suas bolas ou minha mira perfeita.
Esta é a primeira vez que nos aventuramos fora da casa do lago, pois é claro que Steve decidiu que era prudente esperar ao menos doze horas por lá até que os zumbis estivessem bem longe e assim fizemos. Depois de tanto tempo juntos, me assustava que houvesse considerado perigoso o homem que tanto preocupava-se com minha segurança e passei boas horas me desculpando mesmo com sua garantia de que ele havia errado e havia forma melhor de me abordar. Depois de tudo, me acostumei à sua presença e lhe dei alguns sinais de confiança. Na mesma casa que estávamos, me permiti dormir enquanto ele ficava de vigia e mantinha a porta trancada. Não lhe contei que tinha uma faca na curva de meu braço, mas ele não tentou nada como eu esperava, ainda que eu tenha me preparado para o pior.
Foi neste ponto, após duas noites seguidas de sono tranquilo, que decidi confiar nele.
Agora consigo caminhar livremente junto a Steve , certa que me ajudará quando necessário, assim como tento fazer por ele. Rogers veste uma outra camisa branca agora, mas calças cargo no lugar dos jeans e as mesmas botas militares de sempre, caminhando como uma muralha diante de mim e com o cabelo um pouco mais dourado brilhando pelo suor. Infelizmente não sei se eu fico tão bem como ele pingando de suor e com o cabelo emaranhado. Rogers puxa sua bússola do bolso da calça, parando nossa caminhada para a estudar e eu aproveito a pausa para esticar meus braços, me alongando enquanto posso. É só quando um repuxar agudo me faz grunhir que ele me olha, seu rosto limpo pois havíamos encontrado um lago.
— Ainda tem algum ibuprofeno com você? — Questiono com a voz apertada, a dor irradiando por mim semelhante a um choque elétrico. Meu ombro está inchado e pulsando desde o episódio do barranco mas, ainda assim, estava distraída o suficiente para não lembrar-me e me esticar sem pensar, possivelmente piorando o estado do ferimento.
— Tem, mas ele precisa durar, . — Steve explica preocupado e não mais me encolho quando põe a mão em meu ombro bom, guardando a bússola e respirando fundo. Depois que passei algumas semanas doente enquanto estávamos em Madison, usei mais remédios que deveria, mesmo pedindo que partisse e me deixasse para trás. Não é preciso dizer que o tão honrado e responsável Steve Rogers se negou a ir. — Vamos entrar na cidade e conseguir mais remédios.
A ideia é revoltante e eu movo o ombro para afastar a sua mão.
— Não. — Reprovo de imediato. — Sabe que eu odeio cidades.
— , nós estamos indo para Emerald Coast, lá não era uma cidade turística? — Não respondo e trombo com ele ao andar, segurando meu machado com o braço bom e tentando disfarçar que o choque com a muralha de homem quase me derruba e ele nem mesmo se move ou se afeta com minha aversão. — Lá já não deveria haver farmácias com estoques antes, então imagine agora.
Eu respiro fundo, firmando meu aperto no cabo da machadinha
— Nós vamos para a cidade e vamos encontrar uma farmácia. — Rogers está me seguindo e eu mordo a língua quando segura meu braço para tentar me parar, afinal, já lhe vi desmembrar um zumbi com um puxão no braço e um chute, então sei que não usa nem um sexto de sua força em mim. Mas, ainda assim, meu ombro dói. — Vamos tentar encontrar mais analgésicos para dividirmos. E gaze e mais máscaras. — O homem é cuidadoso comigo, me tratando como uma criança pequena ao falar devagar e com seriedade ao tratar de nossa deficiência de mantimentos. Contudo, entrar em cidades continua sendo muito perigoso, principalmente para uma mulher. — Quando um zumbi atacar e você estiver com o ombro travado, vai desejar ter ido para Gadsden e arranjado um remédio.
— Quando outros sobreviventes nos acharem, roubarem nossas coisas e nos deixarem para os andarilhos, você vai desejar ter me escutado e seguido para Emerald Coast. — Eu retruco, o olhando por baixo dos cílios, sendo nem de longe tão assustadora como ele. Aperto meus dedos em meu machado novamente.
Steve me encara, buscando algum vacilo em meu rosto. É sempre assim. Ele me oferece algo, eu me nego e então decidimos juntos o que fazer. Foi o mesmo com o casal de sobreviventes que achamos em Tampa algumas semanas depois de nos juntarmos. Eu disse que não e ele que sim, então discutimos um pouco e ele me ouviu. Contudo, no momento, o soldado não parece pronto a me ouvir.
— Não vou te deixar morrer de dor estando com a faca e o queijo na mão, . Se não quiser vir comigo, fica com o saco de dormir e sobe em uma árvore que eu encontro você aqui em alguns dias com o remédio. — Me surpreendo com a autoridade em sua voz, ainda que já a tenha ouvido soar assim algumas vezes quando no acampamento de Milicent e em embates com outros sobreviventes. Alguns ariscos e outros apavorados. Nenhum durou muito tempo conosco. Eu ergo o queixo, o olhando e tentando manter minha expressão amena, como se não temesse com minha vida ser deixada para trás. Ele também está impassível. — Não tem outra opção. Eu vou conseguir os suprimentos, você querendo ou não. — Abro a boca quando empunha seu rifle e coloca um pé na subida para a estrada. É uma ameaça educada. — A sua escolha é entre vir e esperar aqui. Só tem essas duas opções.
Dou um soco em seu braço, meu punho socando o músculo firme.
— Se alguém aparecer, você vai ficar para trás — Aviso-lhe. — Eu ainda corro.
Subo até a estrada vazia, já avistando um andarilho ao longe.
— Sim, senhora.
— O que temos aqui?
Eu observo em silêncio enquanto meus pertences são lançados no chão, as garrafas de água e enlatados rolando pela sujeira do beco. Quando encostam em meus fones de ouvido, cavando nos bolsos menores, me impulsiono para frente apenas para ser arrancada do chão por um dos homens nojentos que segura uma faca em minha garganta. O amigo do líder do grupo sorri para mim e o metal gelado da boca de sua pistola encontra a minha testa, uma ameaça silenciosa de que devo me manter quieta e cooperar. Mas, por um instante, ele examina meu rosto com atenção que me deixa enjoada, virando-o para um lado e depois para outro, como se calculasse o valor para sua equipe.
Engulo o vômito e sustento o seu olhar com frieza e a boca bem apertada.
— A garota é gostosinha — É mais difícil lhe encarar impassível agora. — É sua?
O homem atrás de mim ri e sinto sua pança balançar em minha costa, mesmo que agora todos estejam olhando para Steve. São seis deles e enquanto um observa nossos suplementos e outro gordão me segura, outros três são necessários para manter Rogers sob controle. Até mesmo eu me preocuparia em mantê-lo imóvel em razão das suas narinas infladas e do fato que ele força-se para frente e tenta resistir a imobilização apesar da arma apontada para sua mandibula. Sua presença é o que me impede de tremer mais e entrar em desespero, mesmo sabendo que isso iria atiçar ainda mais os monstros entre nós. Um que lhe segura os braços sorri largamente para ele e balança a cabeça na minha direção, afinal, Steve está rugindo enfurecido para ele.
— Eu posso ir primeiro com ela? — A pergunta me faz estremecer. — Prometo não estragar muito pra você depois, amigo.
Ergo os olhos para o ex-soldado a alguns metros de mim no mesmo instante, imaginando que esta seria a gota d’água para ele e não estou errada. Steve torce o braço do desgraçado que fez alusão de me violentar, bate com sua cabeça no muro com força suficiente para quebrá-la e avança como um trem bala para o seu alvo principal, desferindo um soco duro e sonoro na boca alheia antes de ser imobilizado de novo em uma parede e ter a cabeça pressionada nela. Rogers me olha, espumando, os olhos melancólicos e culpados me pedindo perdão por ter nos metido nessa situação.
Eu pisco algumas vezes para afastar as lágrimas, meus lábios tremendo e visão embaçada pelo horripilante fim diante de nós. O homem mais magro dentre eles, esse que Steve derrubou, está gemendo no chão, esfregando a cabeça que atingiu o asfalto com força suficiente para jorrar sangue e formar uma poça em que cospe os dois dentes que lhe foram arrancados a força.
— Que cara foda! — O líder, quem já ouvi ser chamado de Drew, gargalha ao se abaixar na altura do outro no chão, afastando o homem quando começa a cuspir mais alguns dos dentes e o seu sangue respinga. A cena me causa um tipo doentio de alívio. — Viu isso, Marcus? Ele arrancou os seus dentes! — Agora estou olhando para Steve, lágrimas escorrendo por minha bochecha pois um ruivo vestindo trapos está mexendo em nossos remédios que são necessários para a minha sobrevivência. Percebo agora que há um rastro de sangue escorrendo pelo rosto de meu aliado e quero correr para limpá-lo antes que infeccione. — Acha que vai encostar na garota dele? — O chefe do bando lhe dá um tapa no braço. — Nananinanão. — Drew me olha com um sorriso imundo e balança o dedo para mim. — O que tem nas mochilas, Ethan?
— Muita comida e munição — A resposta é em forma de um riso. — Filtros de água e a porra toda.
A porra toda. Foi a este termo que reduziram quase um ano de meu esforço.
— Se livrem dele. — Drew aponta para Rogers e meu coração aperta. — Eu levo ela e vou primeiro. Ouço quando Steve grita ofensas a ele, mas o som de tiros ecoando corta suas palavras.
Meu primeiro instinto ao ouvi-los é de lançar-me no chão, porém o homem gordo que me segura já me empurra para baixo e caímos sem nem mesmo fazer muita força, um ardor quente em meu ombro nu quando ele se rala no chão e toda a dor de meu ombro retorna. Só sinto que o homem caiu sobre mim quando tento me levantar em meio ao tiroteio de origem desconhecida e sinto algo quente escorrendo em minha nuca e ombro. Ele é mais pesado do que esperava e estou entrando em pânico, sem força nos braços para me levantar quando, de repente, o peso some e eu me viro para trás antes de procurar Steve, temendo o encontrar morto.
São dois rapazes que empurram o morto para longe de mim e eu me esforço para me levantar, escorregando no líquido que me banhou — a podridão e horror que alguém apenas pode sentir quando está coberto de sangue desconhecido. Quando me ponho de pé, começo a caçar uma arma antes que eles tentem avançar contra mim, porém a busca é interceptada quando Steve, igualmente lavado de sangue, puxa meu braço bom e me prende entre ele e a parede de tijolos, cobrindo-me com seu corpo. Reconheço ser ele por sua camiseta com um buraco na barra e seu porte musculoso que me oculta de todo o resto. Estou tremendo quando pressiona sua mão em minha barriga e me empurra mais para a parede, impedindo que os rapazes se aproximem de mim.
— Nós salvamos as suas vidas e você responde com uma arma apontada para mim? — A dúvida vem de uma mulher e eu agarro a camisa de Steve, manchando-a com o sangue que escorre por mim. Quando as lágrimas retornam, seguro nele com mais força e sinto quando empunha minha blusa também, garantindo-me que está aqui. — São loucos por terem entrado aqui, se metido com o bando do Drew e ainda se acha no direito de tentar me matar?
— É um pedido de agradecimento que está esperando? — A voz grave de Steve ressoa autoritária pelo beco e me faria tremer se estivesse direcionada a mim, o som sendo estrondoso. Eu olho para os dois homens que me ajudaram a ficar de pé, ambos parados e aparentando calma mesmo segurando metralhadoras. Quando um me olha, eu me escondo. — Se quer as nossas coisas, pode levar — Ele chuta uma lata para onde imagino que a mulher está e preciso me segurar para não discordar com sua oferta, apenas fincando as unhas em sua camisa. — Portanto, vá embora que eu abaixo a arma. É simples.
— Gostei de você. — A risada dela não é má e nem a voz de um dos homens que responde Steve, mas minha mão está tremendo quando agarro o braço dele. — Ninguém aqui quer as suas coisas, tá legal? Estávamos de passagem e vimos que estavam em apuros com os imbecis. — Olho para ele por baixo do braço de Rogers e observo suas feições; tem cabelo curto escuro e é carrancudo apesar da leve expressão de interesse humorístico em seu rosto, mas não me arrisco com uma palavra sequer. — De nada — O jovem ergue suas mãos com ironia. — Pega suas coisas e não aponta mais uma arma na cabeça da minha mulher, valeu?
Sinto quando a arma de Steve se abaixa lentamente e ele dá um passo adiante, me garantindo espaço suficiente para respirar e ele também solta minha blusa para segurar meu braço. Saio de sua costa quando me sinto corajosa o suficiente e acabo pisando na mão de ninguém menos que Drew, que ordenou que me estuprassem. Há uma perfuração em seu crânio e eu engulo em seco, paladar corrompido pelo cheiro de sangue espalhado sobre mim.
Antes que algum instante de racionalidade passe por mim, eu arranco a arma da mão de Steve e sinto toda a atenção dirigir-se a mim antes que eu atire duas vezes em meu alvo — a genitália de Drew. Me sinto mais capaz de respirar quando o faço, mas me mantenho próxima a um Steve tenso e olho os nossos heróis, seus rostos jovens entregando que talvez sejam mais próximos da minha idade do que de Steve. Dentre o cabeludo que parece uma estrela de rock e a mulher loira com ele, outro desconhecido é um adolescente que não parece passar dos dezoito anos.
— Isso foi doentio — O menino aponta, balançando a cabeça. — Mas deve ter tido motivo. Então…
— Concordo. — A mulher assente com seriedade. — Quais seus nomes?
— A-Aaron e Mia M-Meyers — A resposta que dou é rápida, assim como meu aperto no braço de Steve. Nós concordamos em usar nomes falsos, a fim de não sermos rastreados.
— Brian e Otto Stuart. — A loira responde e eu a observo enquanto apanha a sopa em lata que Rogers chutou e caminha até nós, a estendendo em minha direção. — Sou Vivian, é um prazer. — Esfrego minha mão suja na calça antes de pegar a lata, a puxando para meu peito e nunca largando do homem ao meu lado. Ela me olha por um instante antes de dar um passo para trás, guardando a arma atrás da calça jeans surrada enquanto Steve mantém o braço na minha frente. — E nós estamos com um carro e podemos lhe dar carona para fora da cidade, se quiserem. — O homem mais velho, este que remove as armas dos capangas de Drew arregala os olhos e reclama com ela, a chamando de Lene e reclamando que não pode dizer coisas assim para estranhos. — Brian, eles parecem gente decente e o resto do grupo do Drew vai aparecer em breve. Não podemos deixá-los sozinhos aqui!
Enquanto ambos discutem e quem imagino ser Otto Stuart empilha cuidadosamente nossas coisas, permaneço estática do lado de Steve. Pela primeira vez, não somos nós a ter a melhor mão em uma situação dessa e ele parece perceber, a possibilidade de encontrar mais pessoas como os homens mortos ao nosso redor é terrível e eu não quero ver isso se repetir. Engulo em seco de novo e olho para ele, quem mantém a cabeça baixa e me implora para assentir quando me olha, buscando uma confirmação em meus olhos. Como a tal Vivian usou como justificativa: eles também parecem pessoas decentes.
— Até onde podem nos levar? — Steve questiona ainda sem tirar os olhos de mim, parecendo não acreditar que estou viva.
— Para onde estão indo? — Otto retorna, pegando as caixas de ibuprofeno e das minhas vitaminas.
— Ponce de Leon. — Indico com um aceno para o leste.
Vivian olha para quem imagino ser seu namorado e dá de ombros, assentindo.
— E minha mãe me dizia para não dar ou pegar carona com estranhos… — Ela suspira sorrindo.
— Sim, a nossa família tem um rancho perto de Ponce de Leon. — Steve mente para Brian, ele que dirige com calma pela estrada vazia na direção que pedimos. — Estamos na expectativa de ele não ter sido tomado pelos zumbis.
O grupo de Vivian foi gentil conosco, permitindo que viajássemos com eles no banco de trás de sua caminhonete enquanto o irmão de Otto, possivelmente o único adolescente de todo o apocalipse, ficou no cargueiro. Em troca da carona, demos uma caixa de máscaras para eles, uma das três que achamos na farmácia. Steve não demorou em me devolver meu machado e pistola assim como pegar seu rifle de volta assim que o roteiro de viagem foi decidido por eles, certo em me armar no caso de tudo ser uma emboscada. É recomendado que usemos máscaras perto de zumbis e outros sobreviventes, mas estou cansada demais para fazê-lo e apenas amarrei uma bandana sobre minha boca.
— Meus pais tinham uma fazenda em San Diego, mas foi dominada também. Sabiam que essas coisas conseguem sobreviver em rios e lagoas? — Brian informou e sinto o estômago revirar com a informação.. — Eles invadiram pelo lago atrás do bosque. Não tinha mais como impedir. Mas com sorte a da sua sogra está de pé ainda, Aaron.
Pressiono a cabeça no encosto e olho para o homem ao meu lado, ou meu marido Aaron, como parece ter sido decidido pelos Stuart. Ele pediu que mantivéssemos nossos mantimentos aqui, menos as armas que foram confiscadas dos homens de Gadsden, pois as dividiríamos depois e eu pedi por prioridade em uma metralhadora. Vivian nos entregou toalhas encharcadas de álcool e nós as usamos para limpar o sangue sobre nós, mas ainda tem rastros vermelhos em meu corpo e na face de Steve, escorrendo para a sua orelha e nuca assim como algo pegajoso que pode muito bem ser o cérebro de alguém da quadrilha de Drew. Aperto a toalhinha para tirar o excesso do álcool e esfrego a orelha dele devagar, recebendo um olhar que garante que ele é grato pelo ato.
— Não têm interesse em ir para o acampamento conosco? É na Virgínia e fica a trinta minutos de Ponce de León. Se chama Novaterra e fica a só dez quilômetros de Washington, sabe? São duas quadras seguras, então tem espaço. — O motorista oferece, olhando pelo retrovisor e é a minha vez de olhar para Steve e balançar a cabeça, lhe entregando a toalhinha para que termine o serviço de se limpar. — Estão plantando tomates, já temos batatas, galinhas, ovos… E é próximo a uma antiga panificadora. Falta só o queijo para fazerem pizzas.
Não quero ir para acampamento nenhum e quase posso sentir meu parceiro desinchar com minha falta de interesse na oferta. Sei que o conheci em um acampamento e que foi uma coisa bem-vinda em todo o caos que vivemos, mas não quero me arriscar com outro local onde o pior pode acontecer a qualquer instante. Neste mundo, nos acomodarmos a uma rotina e algumas pessoas não vale mais a pena, afinal, tudo se desfaz em questão de segundos. Viro o rosto para a janela e aproveito o vento que não sentia a algum tempo, me questionando se seria justo dormir e deixar que Steve ficasse de vigia.
Aperto minha pistola e decido que não, voltando a me atentar aos Stuart.
— Uma pizza cairia bem, não é? — Roger me cutuca com a bota e eu apenas ergo as sobrancelhas rápido, decidida a ficar quieta e não dar espaço para os desconhecidos. — É bom saber sobre o assentamento, mas vamos ficar somente com a localização, se possível. — Um pedacinho de mim se amarga por seu sacrifício e Vivian se vira no banco de passageiro, dando um sorriso sincero para ele.
— Esposa feliz, vida feliz! — Ela ri, pegando a toalha que ele devolve e voltando a se sentar direito. — Tentem aparecer se puderem, Mia. É uma vila bem fortificada e funcional. — Ela garante e Brian concorda, o carro saltando ao passarmos por cima de um zumbi morto. Agarro o machado com mais força e permaneço sem os responder.
A insistência me faz querer mandá-los calar a boca e começar a chorar. Me sinto fraca com tudo o que acabou de acontecer e ainda estou tremendo um pouco, desejando nada além de mergulhar em um rio e deixar as lágrimas se perderam na água.
— Por falar em funcional, acho que você usa dois tamanhos acima do meu, não é? — Concordo de novo após a avaliar. Em um outro momento, me sentiria ofendida, mas tal parte de mim morreu junto com fast-shopping, mesmo que a ideia de entrar em uma IKEA e pegar tudo o que quero me agrade. — Tem uns pares de jeans lá atrás que achamos em uma loja e sei que vão caber em você.
— Obrigada. É muita gentileza. — Agradeço, surpresa pela oferta. Roupas em boas condições são uma raridade e eu não me arrisco muito por elas. — Jeans são ótimos em um momento desses.
— Rasgam pouco e não ficam obsoletos — Ela concorda. — Uma calça pode virar um short ou mangas para uma camisa. A criatividade vale muito hoje em…
Otto bate na lataria do carro e eu salto de meu assento, a mão quente e enorme de Steve pousando em meu joelho de imediato. Ouço o menino gritar para nos avisar de uma loja de conveniência e eu a procuro com a cabeça para fora da janela apesar de Steve não me soltar, conseguindo avistá-la há alguns metros. Também vejo zumbis do lado de fora, zanzando por entre as bombas do posto de gasolina, mas sei não terem muitos pois atrás da loja há apenas mais floresta. Seria um recanto no meio do nada se não estivesse infestada e vivêssemos o atual inferno. Conto uma dúzia de mortos-vivos, mas imagino termos condição de enfrentá-los.
— Querem ir lá? — Brian questiona, diminuindo a velocidade e eu engulo em seco quando Steve afasta a mão, pegando seu machado. — Ficam com o que pegarem e o Otto fica de vigia do lado de fora. — Ele está estacionando longe o suficiente do posto para que possamos decidir antes de sermos vistos pelos zumbis e eles enlouquecerem com nossa presença. — Somos os responsáveis por abastecer o assentamento e temos algumas coisas na lista.
— Precisamos de mais algumas coisas. — Steve respira fundo apesar da óbvia tensão de sua voz e eu concordo devagar, mesmo que ainda incerta de como carregaremos mais itens agora que temos armas novas e somente duas mochilas. — O que tem na lista de vocês?
Vivian tira um papel do bolso e seleciona dois itens.
— Pastas de dente, bicarbonato de soja e comida, se estiver disponível. Ah, itens de higiene pessoal também iriam cair bem. — Evito olhar para o homem ao meu lado que possui dois frascos de sabonete líquido na mochila, um desodorante e (é um absurdo) um frasco de perfume de supermercado. Roger até mesmo teve a audácia de experimentar os malditos perfumes antes de escolher um e jogar na bolsa. — Se acharmos shampoo, eu vou querer pelo menos um, mas sem falar pra comunidade — Ela informa para o marido e então me olha. — Tem alguma coisa faltando, Mia?
Ah, nós somos donas de casa com a nota da semana...
— Dois shampoos, se possível. — Respondo ao buscar uma máscara em minha mochila. — Vamos gastar no mínimo meio litro no cabelo do Aaron. — Dou uma piscadela para ela, a fazendo rir.
Quando Brian estaciona o carro, ele pede para abrirmos as portas devagar e eu espero até que Steve pegue seu rifle e o substitua por uma faca militar. É melhor levarmos as nossas coisas e ele parece pensar o mesmo, entregando-me minha mochila e me ajudando a colocá-la e prendê-la no meu peito. Ajusto a mochila na costa ao saltar do carro, a pistola presa no cinto e algumas munições em meu bolso e, como de costume, o machado pronto. Vivian pede que Otto espere no banco do motorista e o menino a obedece sem questionar, saltando da parte de trás e indo para onde o irmão estava antes, avisando que vai buzinar se houver algum problema e marcar um cronômetro para que não nos demoremos mais que o necessário. É uma tática inteligente, eu assumo.
— Sem armas de fogo. Não vamos correr o risco de chamar mais andarilhos para cá. Eles estão bem calmos. — Brian coordena a operação ao remover a camisa de flanela e manter apenas a camiseta preta para que um zumbi não o agarre pelas roupas soltas. Toco meu cabelo só para garantir, nunca o soltando quando não estou tomando banho. — Vocês tem espaço na mochila ou vão querer um carrinho?
— 7-Eleven costuma ter cestas com rodinhas. — Rogers diz desinteressado, soando como se fosse uma mera ida ao mercado, a sua constante tentativa de transformar nossas ações em algo mundano chega a ser irritante às vezes e eu me impeço de revirar os olhos. A conversa atrai a atenção dos zumbis e eles começam a virar em nossa direção, vindo de pouco em pouco e emitindo os mesmos sons perturbadores de sempre. Reconhecemos, obviamente, que é bem mais fácil conquistar um a um do que lidar com todos de uma vez e assim o fazemos. — Eu quero muito achar uma tesoura, um estilete e isqueiros. — Ele diz e Brian garante que vai guardar um pra ele se achar.
Ao chegarmos no meio do caminho, alguns dos seres nojentos avançam até nós e não consigo segurar a careta que faço pois a aparência das criaturas piora a cada vez que nos aproximamos mais do litoral. Consigo relacionar ao clima quente que derrete a pele podre deles como uma vela, mas pouco consegue me manter sã com a ideia de essas coisas sobreviverem. Minha única expectativa é que, em ambientes congelados como no Polo Norte ou países de clima congelante, eles não sobrevivam. As baixas temperaturas os congelariam como picolés, mas a falta de suprimentos para humanos nestes locais é o problema. Por isso estou querendo chegar a Emerald Coast e seus barcos, onde não faltam peixes e árvores frutíferas próximas a baía. 153 milhões de peixes em uma temporada que se estende por todo o ano; robalo e atum.
Mantenho o plano fresco na mente quando dez zumbis se arrastam até nós.
O primeiro que pego é com uma machadada na cabeça em decomposição, espirrando uma gosma preta que respinga no chão e no meu sapato. Chuto o saco de ossos para descolar da lâmina e vejo quando Steve enfia a faca na testa de um adiante, avançando pelos mortos-vivos com agilidade e conhecimento. Brian e Vivian se demoram com os seus, mas não ficam para trás e eu me recuso a ser um peso morto mesmo com a dor no ombro, arrancando a parte superior no crânio de uma mulher e dando um golpe transversal em mais um. Em pouco tempo, estamos entre as bombas de gasolina e os cadáveres se espalham pelo chão, finalmente sem vida. A mulher resmunga sobre as portas estarem com um cadeado, então entrego o machado para Steve.
— São um casal de lenhadores ou o que? — Vivian indaga quando ele quebra o cadeado em um único golpe assassino.
— Algo assim. — Informo ao dar de ombros já dentro da loja, suspirando com o cheiro que deve vir de algum freezer com comida estragada. O local aparenta ainda estar intocado apesar dos ratos que aproveitam a movimentação no interior do estabelecimento e correm para fora. Imagino que o dono tenha sido atingido pela praga antes de abri-lo para mais um dia de trabalho e não julgo a gratidão que sinto como algo mau. Molho os lábios enquanto Brian faz uma corrida no perímetro para checar se tem outras entradas ou mais andarilhos. Ele retorna meio minuto depois e garante que estamos seguros de todos os lados. — Vamos às compras. — Murmuro ao pegar uma cesta e ir na direção da comida.
Mantenho uma pistola de prontidão após guardar o machado, mas aproveito para usar o tempo na presença de Steve para respirar com alívio uma única vez ao ver a estante de enlatados intocados pelos ratos. Também há embalagens de macarrão com queijo, sardinha em lata e alguns biscoitos cobertos de poeira que fazem meu estômago roncar. Rogers não hesita em pegar tudo o mais rápido possível e jogar na cesta, até mesmo enfiando parte em sua mochila para que os outros não vejam. Macarrões instantâneos se acumulam em gôndolas e pego uns seis pacotes. Não sei como iremos levar isso, mas eu os quero e a insegurança alimentar me força a tentar. Deixo alguns para Vivian, Brian e Otto, mas encho as nossas mochilas antes. A parte cômica de tudo é que estamos em completo silêncio apesar da pressa para juntar os mantimentos e nos movemos em harmonia mesmo assim.
— Já comeu esse de frutos do mar? — Steve indaga ao sacudir um Cup Noodles com poeira e eu balanço a cabeça. Em outro momento, me negaria a comer isso por saber quão prejudicial é, mas agora o considero um banquete. — Um amigo fazia uma receita muito boa com ele. Colocava camarões e anéis de lula. Muito bom — Nem pisco quando, após abrir um pacote de bolachas de chocolate, ele segura uma para mim. Abaixo a bandana e aceito o doce de bom-grado, meu paladar despertando após a guloseima. É tão difícil achar coisas assim que me arrependo por não guardar para uma ocasião especial. — E eu vi a validade, não se preocupa. — Eu concordo, confiando fielmente. Ele mastiga sua bolacha com a cabeça encostada em uma gôndola e respirando fundo, agarrando-se na prateleira como se não tivesse força suficiente para jogá-la longe.
O observo por um momento, compreendendo o cansaço que sente e só agora tomo nota que este é o nosso primeiro momento a sós após o encontro com a gangue de Drew. Ainda me sinto um pouco trêmula ao engolir o doce e molhar os lábios. Steve está mais magro do que quando nos conhecemos no acampamento, a camisa parecendo um pouco menos justa e seu cabelo está tão longo que se enrola atrás de sua orelha, a barba bem maior e ocultando a face que outrora seria mais jovem. Nunca o vi sem ela e é estranho imaginar como fica.
Não imagino que estou muito apresentável, principalmente desde a última vez que soltei meu cabelo e ele alcançava o meio de minha costa. Faço uma nota mental para usar a tesoura que achar para aparar meus fios. Em outra realidade, eu estaria apresentável a todo tempo; hoje, mal reconheço-me quando me olho em um reflexo qualquer.
— A tesoura que quer é pro seu cabelo? — Seu assentir e devagar, poupando as energias e ainda mastigando o biscoito infinito. — Eu corto para você. — Ofereço e Stevee vira o rosto apenas o suficiente para me olhar e tentar me oferecer um sorriso agradecido apesar da clara exaustão. Receosa, coloco a mão entre suas omoplatas, e a afago com o que imagino ser um sorriso em resposta, mesmo que ele não possa vê-lo e eu esteja em choque com os músculos de sua costa. Bocejo e balanço a cabeça para afastar o sono. — A gente tem que conversar...
— Eu sei. — Steve engole em seco, apertando o pacote de bolachas e o deixando na gôndola sem importar-se muito. Ele não me olha mais, apenas focado em limpar a poeira no metal para distrair-se. Removo a mão de sua costa e coloco no bolso de trás de meus jeans sujos. — Fui um imbecil, não a ouvi e podia ter nos matado entrando em Gadsden. — Ele fecha os olhos de novo e eu aperto a boca, não o corrigindo ou passando a mão em sua cabeça. Precisa entender que, se tenho minhas restrições, elas possuem uma motivação que me mantém segura. — Perdão, eu devia ter te ouvido.
— Não é sobre isso, por mais que esteja certo. — Respondo ao roubar outro doce.
— Então vamos esperar até o fim da viagem para decidir. — Ergo os olhos para os seus, estes infinitamente azuis ao garantir que teremos tempo para deliberar sobre o que já decidi. Não irei com o grupo de Vivian, mas Steve tem toda a liberdade para fazê-lo e não o impedirei. — Sei que já está com a decisão tomada, mas pensa mais um pouco. — Respiro fundo dessa vez e me esforço para assentir para lhe agradar, pegando a cesta e olhando as placas no teto para traçar um caminho e selecionar os itens prioritários. Acredito que possa ter suco e isotônico em algum lugar e tento me afastar apenas para o ouvir garantir-me uma outra vez: — , não vou a lugar algum sem você. — Assinto de novo antes de sair do seu campo de visão.
Vivian chega nos isotônicos junto comigo, esfregando as mãos em sinal de animação quando nota a variedade de opções. A conveniência é uma mina de ouro e ouço quando Steve e Brian comentam sobre óleo de motor e cadeados em um outro corredor. Me ponho de joelhos e pego alguns sacos da bebida em pó, ciente que não poderei levar muitas garrafas sozinha e ouvindo a mulher comentar sobre como o sabor de uva a deixa enjoada. Tiro um instante para considerar quem ela e sua família eram antes disto tudo, mas não me demoro muito, logo abrindo uma garrafa quente e respirando fundo antes de beber uma golada longa e açucarada. Vivian dá risada e me imita sentando-se no chão, mas não bebendo nada e tentando abrir um pacote de baterias com sua faca militar.
— Posso te perguntar uma coisa? — Tomo outro gole ao concordar mesmo sem querer conversar, decidindo me hidratar enquanto tenho tempo pois, sem os filtros de Steve, não sei como beberei água até chegar ao meu destino. Não me movo quando a loira se aproxima ainda mais, olhando para a direção de onde as vozes masculinas estão vindo, desatenta para quando percebo o tom rosado em seu pescoço e rosto. Vivian esfrega uma mancha de lama no jeans, parecendo criar coragem para fazer o questionamento. — Como... Como você e o Aaron tem feito para... — Seu rosto se franze e logo sei do que está falando. — Trepar? — Ela sussurra quando alguém derruba algo.
— Bom... — Molho os lábios em uma tentativa de não rir com o absurdo, segurando a garrafa de isotônico perto de minha boca para me impedir de cometer qualquer deslize que possa deixa-la mais desconfortável ainda. — Camisinhas não foram consideradas essenciais pela humanidade quando isso tudo começou, então, sempre tem uma disponível em alguma farmácia. — Desta vez eu não minto, afinal é a mais pura verdade. Elas se acumulam e me lembro de uma cena de FRIENDS ao pensar nisso. Sinto certa falta da Netflix. — É só ter cuidado.
— Não, isso eu sei, mas... — Ansiosa e com um sorriso nervoso, a mulher abre uma garrafa de isotônico vermelho e se afasta para poder bebê-lo após retirar a máscara. O distanciamento ainda é muito importante e estou satisfeita que entenda isso bem. Ficamos por um tempo no carro deles por falta de opção, então é bom saber que tomam cuidado. — Já aconteceu algum incidente? — Mordo o lábio e olho para seu estômago, reconhecendo o motivo de tanto interesse em minha vida sexual. Sua barriga parece normal e não se destaca na regata, então olho para o seu rosto entristecido em busca de uma confirmação. Balanço a cabeça ao lamentar a situação, logo voltando a colocar a máscara.
Meu coração se aperta com a informação que não convém palavras, elas são desnecessárias para explicitar o medo de uma gestação acidental no momento em que vivemos e o sofrimento que apenas outra mulher entenderia. Bom, muitas entendem. Olho para a estranha por alguns instantes e ergo minha mão, pedindo-lhe por um número. Três, ela sinaliza com os dedos e uma tentativa de sorriso. Me aproximo de novo e pego minha mochila, cavando pelo bolso da frente em busca de medicamentos. Encontro um dos que separei para mim e o faço rolar até ela. Os olhos verdes de Vivian estão arregalados e percebo como isso pode ter sido visto como uma ação maldosa.
— As pessoas com a sua... — Gesticulo para sua barriga após um suspiro. — Precisam de muito ferro e vitamina B9. Isso é ferro e vai te impedir de ter anemia. — Fecho a mochila de novo e bebo um gole de isotônico antes de lançar um pacotinho na sua direção. Vermelho e cheio de ferro, feito para aumentar a quantidade no sangue. — A vitamina você consegue comendo miúdos, milho, alface...
— Como sabe disso? — Vivian sussurra apanhando o frasco. Ela lê o rótulo e franze a boca, ficando rubra, mas desta vez aparentando ser por emoção. Essa pode ser a única vez que alguém a ajudou com isso até agora e eu entendo o quão significante é. — Valeu, Mia.
— De nada. E eu uso desde que era pequena — Lhe conto, olhando para a porta da conveniência e Otto Stuart batucando a direção do carro. O rapaz vigia as redondezas como uma águia e é estranho estar tão segura para sentar-me e conversar assim. — É o motivo de ainda não ter tido nenhum acidente com o Aaron. — Dou de ombros ao lhe dizer uma verdade em meio a mentira sobre meu relacionamento com Steve. — Tive câncer e não tenho mais os meus ovários, então não corro perigo algum.
A mulher enfia o frasco no bolso do casaco e esfrega o rosto, rindo baixinho.
— Você tirou a sorte grande, Mia.
E, talvez pela primeira vez em um bom tempo, dou risada. Uma risada de verdade e que faz meus olhos lacrimejarem com o absurdo. Sim. Pela primeira vez tirei a sorte grande. Após uma adolescência onde me sentia tão insegura, é mais fácil ver o lado bom de um câncer de ovário. É ridículo e eu estou rindo de verdade pois poucas pessoas têm coragem de fazer piadas sobre isso e é divertido encontrar uma parte boa em toda a bagunça. Vivian gargalha junto a mim, nós duas imersas em nossos próprios problemas em meio ao mundo desolado cheio de mortos vivos. Ela parece feliz por dividir suas preocupações com alguém e poder lhe ajudar me satisfaz. Me esforço para segurar o riso e volto a pegar os isotônicos em pó.
— Está tudo bem? — Viro a cabeça para encontrar Steve logo atrás de mim, empunhando o seu rifle mesmo com um pacote de carne seca na mão.
Seu rosto está franzido em claro estranhamento. Não sei se me ouviu rir antes.
— Está sim. — Ela responde por mim, esfregando os olhos e sorrindo. — Papo calcinha.
— Certo... — Steve ergue a sobrancelha e assente em entendimento, sem demonstrar interesse em ouvir mais detalhes da conversa no momento. Ele abaixa o rifle e trava a arma. — Achei a tesoura e os isqueiros. — Agora ele informa ao me olhar. — Peguei um cadeado para emergência.
— Bom trabalho. — Friso os lábios e jogo um isotônico para ele. Steve o enfia no bolso da calça tática. — Pode pegar um para mim? — Ele me analisa devagar e calmo antes de assentir e partir.
Deixo Vivian depois de um tempo e me movo na direção do caixa eletrônico, sorrindo satisfeita ao encontrar uma espingarda e algumas balas que deveriam pertencer ao dono da conveniência na beira da estrada. A penduro no ombro e me arrependo de imediato, arfando pelo repuxar afiado e dolorido que me faz tremer de dor. Passo a mão por baixo da camisa e massageio a pele quente acima do hematoma inchado e sensível, assim como o corte coberto com esparadrapo. Engulo a dor, percebendo que em breve não poderei esconder a amplitude dela de Steve — ou esconderei se permanecermos juntos. Aproveito por estar sozinha e organizo minha mochila, empurrando as roupas para baixo quando Rogers reaparece, um cadeado estendido para mim.
— Já pensou um pouco? — Não o olho ao empilhar os macarrões, imaginando se ainda tem algum isqueiro que poderei levar comigo a fim de esquentar água para a comida. — , pode me olhar por um momento? — Balanço a cabeça sem muito interesse e ouço seu suspiro. Não quero olhá-lo apenas para garantir que irei partir com ou sem ele ao meu encalço. — Terranova soa como uma comunidade segura.
— Estou indo para Emerald Coast. — Informo-lhe pela milionésima vez desde o acampamento.
— Eu sei disso. Estou a seguindo para lá há meses, . Sem descanso ou justificativa, lembra? — Percebendo a leve irritação em sua voz, eu o encaro com a cabeça erguida. Steve não está bravo, só chateado por minha falta de interesse na comunidade que deseja tanto conhecer. — O que estou dizendo é: estamos sem descansar e dormir bem desde que saímos de Saint Lucie após a invasão. Dormimos em árvores e caminhamos sem parar durante o dia. — Não respondo quando coloca as garrafas que selecionei nos bolsos laterais de minha mochila, ajudando-me apesar de não gostar de minha decisão. — Nós precisamos de pelo menos alguns dias de descanso antes de cairmos na estrada de novo.
Agarro a espingarda de maneira protetora quando coloca a mão na alça.
— Eu vou pegar isso porque estou vendo o inchaço através da sua roupa e não quero que piore. Se é que é possível. — Steve esclarece, imitando a minha expressão com ironia. Relaxo a mandíbula e deixo que pegue a arma, puxando o casaco para cobrir meu ombro que imaginei não ter chamado sua atenção o suficiente para ter reparado. — Você precisa descansar, tratar esse ombro e eu estou pedindo — Ele apoia-se no balcão, os olhos implorando por minha compreensão. — Por favor, vamos para a comunidade. Vamos dormir em um colchão, tomar um banho e arranjar remédios para você.
— Quem garante que eles não estão mentindo para nos matar junto com esses outros membros da tal “comunidade”? — Sussurro de volta com os dentes cerrados, evitando que nos escutem. Essa é minha vez de inclinar-me sobre o balcão para falar perto dele. Steve não move um músculo após a aproximação e apenas olha para meu ombro outra vez, apertando os lábios. Seguro seu queixo com minhas unhas sujas de terra e o viro para mim, querendo que olhe em meus olhos. Seus lábios rosados se abrem. — Tem certeza que não vão tentar me estuprar outra vez? Só aguento uma ameaça dessas por dia, Rogers. Mais que isso e eu enfio uma bala na boca. — As rugas nos cantos de seus olhos se movem, revelando sua aversão ao incidente horas atrás, mas não o solto e mantenho a pressão psicológica. Não colocarei minha vida em jogo por uma boa noite de sono. — Estou sendo clara?
— Está. — Garante-me igualmente sisudo, engolindo em seco. — Mas também quero ser claro e te lembrar que isso — Rogers aponta para meu ombro. — pode te matar tão rápido quanto uma bala. — Ergo a sobrancelha em desdém, mesmo ciente que ele está certo, pois me recuso a dar o braço a torcer após o que me fez passar previamente com sua teimosia. — Consegue mover o braço direito, por acaso? Acha que vou continuar viagem com você desse jeito?
— Então não continue. — Retruco, soltando o seu rosto com irritabilidade.
— Não é negociável. — Dou um sorriso enfezado com a sua recusa a me deixar só apesar de não termos um contrato verbal nos mantendo unidos ou garantia alguma de parceria. — Com alguém do seu lado aqueles porcos tentaram te violentar, acha que vai conseguir ir muito longe assim? — Gesticula para mim com desdém e me irrito que esteja certo. — Sozinha e ferida, você é, por mais sujo que isso soe, uma presa fácil. Nós vamos com eles para a comunidade e se der tudo errado de novo, deixa que eu mesmo atiro em você para te poupar. — Após a proposta, compreendo a seriedade em seu rosto ao garantir que fará mesmo o favor se tiver necessidade. Os seus olhos refletem a verdade de sua promessa e me sinto inclinada a aceitar tal trato. — Ficamos por uma semana e depois eu a sigo até o Inferno, ok?
Mordo o lábio ao voltar a socar os itens em minha mochila, furiosa por ele estar correto do quão estúpido e perigoso seria viajar sozinha, tanto pelos zumbis quanto pelos humanos que podem cruzar meu caminho. Sei lidar com zumbis, mas ainda torna-se complicado em alguns momentos, principalmente em relação às hordas. E reconheço, também, o quanto a sua presença foi útil — água, alimento e sanidade. A companhia de Steve conseguiu me livrar da ansiedade constante, divergindo minha atenção das piores faces do fim do mundo e horror de nossa realidade. Não consigo imaginar quão ruim seria não o ter por perto e por isso temo toda a ideia de uma nova comunidade e novas pessoas em minha vida. Não duraremos muito nesse mundo e cada morte alheia nos mata um pouco, também.
A buzina que soa do lado de fora da conveniência me desperta de meus pensamentos e eu agarro a mochila e a cesta cheia ao desviar de Steve, Brian Stuart avançando na nossa frente. Vivian surge atrás de mim com sacolas e duas cestas enquanto Otto entra na parte de trás da caminhonete para esperar os itens que ela trazia. Há cerca de cem metros, uma dúzia de andarilhos surge da floresta, lentamente atravessando a grama verdíssima. Steve passa apressado por mim e ajuda Vivian, pedindo que ela entre logo no carro ligado antes de abrir a porta para mim. Removo minha mochila e me sento no banco quando os zumbis alcançam a conveniência, ainda seguindo em nossa direção. Após uma rápida checagem, Brian pisa no acelerador para nos distanciar o máximo das criaturas, o vento fresco no meu rosto.
— Uma hora para Ponce de Leon. — Brian comenta quando diminui a velocidade. — Sabem o endereço do rancho? Podemos deixar vocês bem perto se for na rodovia, mas não vamos entrar na cidade.
Molho meus lábios ainda açucarados pelo isotônico e respiro fundo.
— Na verdade, iremos com vocês para... Novaterra? — Questiono e Vivian confirma, o sorriso evidente em sua voz e eu viro o rosto para a janela, evitando olhar para Steve e a expressão de alívio que certamente deve sustentar após minha mudança de decisão. — Vamos para Novaterra, por favor.