Revisada/Codificada por: Calisto
Última Atualização: 18/11/2024Amos admirava tudo que fazia parte de seu reino.
O deus de pele negra sempre trajava roupas brancas com um cordão grosso e pingente em formato de águia no meio de seu peito, enquanto a coroa de ouro branco com diamantes negros nas pontas pontiagudas se destacava dentre os fios crespos do cabelo escuro, e ele amava tudo e todos. Sempre foi assim.
Ele nutria um carinho especial por cada detalhe do Reino Eterno. Desde a brisa que lhe tocava todo o rosto, que tinha linhas adquiridas ao longo dos anos, até os lábios grossos que viviam repuxados num sorriso capaz de fazer se sentir abençoado quem o visse. Gostava da grama baixa que tocava os pés quase sempre descalços, e ficava muito feliz quando ouvia os cantos dos pássaros que sobrevoavam o céu de seu reino. Apreciava sentir a textura das flores nas pontas dos dedos, sempre com cuidado para não machucar aqueles seres vivos tão sensíveis.
O coração do deus batia forte por cada uma dessas coisas, das menores às maiores. Na mais divina adoração.
No entanto, dentre todos os sons existentes no Reino Eterno e conhecidos pelo deus em todos seus anos de vida, havia um que sempre arrancava dele o mais profundo e sentimental dos suspiros. Que fazia com que o sorriso repuxasse as pontas dos lábios, mostrasse os dentes e iluminasse todo o ambiente — sem que o próprio deus percebesse tal gesto.
Amos apelidou esse som como O som do amor, enquanto outros o chamavam simplesmente de A risada da princesa Arae.
Todos sabiam que o rei era capaz de sacrificar a própria vida para que aquele som continuasse a ser reproduzido por um longo período de tempo. Amos morreria em paz, sem arrependimentos, desde que Arae continuasse rindo.
Além de amar a risada da filha, o deus gostava ainda mais quando conseguia assistir a cena de Arae rindo. Ele se esforçava para guardar na memória divina a imagem perfeita, lembrando-se dela sempre que precisava de forças em meio a em algum momento difícil.
Pequenas rugas enfeitavam os cantos dos olhos bonitos de Arae toda vez que a felicidade tomava conta de seu interior. Os olhos ficavam estreitos e escondiam as írises marrons, ao que a cabeça era jogada para trás e o cabelo cacheado balançava enquanto uma das mãos tocava a barriga por cima das vestes. Tudo isso enquanto o som do amor fluía para fora entre os lábios grossos.
— Ela ri como você — Amos sussurrou para a esposa ao sentir o toque da rainha em seu braço. Sempre capaz de reconhecer Yemis através do mais singelo toque.
Depois de se banhar, Yemis não demorou a encontrar o marido exatamente no lugar em que ela desconfiava que ele estaria: parado no batente da porta do quarto da filha, olhando amorosamente para o interior do cômodo de cores claras para observar a princesa. Enquanto sorria, claro.
— E possui a sua beleza. — Sorriu a deusa, sentindo a mão do deus cobrindo a sua, sempre tão encantada pela semelhança física entre a filha e o marido.
Amos agradeceu ao elogio com um sorriso e um brilho intenso no olhar. Sentia-se honrado toda vez que apontavam sua semelhança com Arae, sendo esse o melhor elogio que poderia receber. Ainda que, para ele, Arae fosse tão linda quanto a rainha de pele mais clara que a sua, nariz arrebitado, lábios em formato de coração e cabelos ondulados da mesma cor do mel feito pelas abelhas.
— Eu sou capaz de tudo por ela. Por você. Por vocês — confidenciou o que a esposa já sabia, mas que Amos não cansava de ressaltar em voz alta para quem quisesse ouvir.
Beijou a testa delicada de Yemis, que fechou os olhos, aproveitando o carinho recebido.
Amos e Yemis se conheceram quando o branco ainda não cobria alguns fios dos cabelos e da barba do rei.
Foi durante uma reunião que aconteceu no Reino Vomor, o terceiro na hierarquia dos reinos, com os reis e as rainhas dos cinco principais reinos que integram o Universo Infinito. Amos foi para o encontro representando o Reino Eterno, sendo ele o sucessor ao trono que ainda era ocupado por seu pai, rei Illo, que não apareceu por questões de saúde. Enquanto Yemis acompanhou a rainha Brovara, sua mãe, representando o quarto reino, Yaven.
O príncipe do principal reino conquistou a princesa do quarto reino com sua atitude imponente e a voz firme, muito convicto do que falava, por vezes deixando todos os outros sem reação. Amos precisava se fazer respeitado pelos mais velhos que não colocavam fé nele, que sussurravam ser um erro que ele logo estivesse ocupando o cargo de rei. Diziam que Amos era imaturo demais, sonhador demais. Fraco demais. Era essa descrença em si que o fazia estar sempre com a coluna ereta, o caminhar forte e a cabeça erguida. Ele não podia ser fraco, não era. Muito menos imaturo ou sonhador. Amos apenas acreditava na melhoria e na harmonia entre os reinos, os povos, e se esforçava para que isso fosse possível. Foi essa crença de Amos na igualdade e na justiça que atraiu a atenção de Yemis.
Ao passo que Yemis capturou o coração daquele que viria a ser o rei do Reino Eterno, com o som de sua risada alta e o brilho encantador de seu olhar que juntos deixaram claro para todos quem ela era: a princesa — e, em breve, a rainha — da bondade.
Durante a reunião, eles ficaram em assentos distantes, mas foi depois da reunião que o primeiro encontro entre os dois aconteceu: Yemis estava no jardim de Vomor, observando a natureza viva daquele lugar quando Amos foi para o mesmo lugar a fim de fugir daquelas pessoas que o olhavam com tanto desprezo. A conversa, que começou com uma pequena discussão sobre qual tipo de flor era aquela de cor roxa, marcou o começo de uma história de amor.
Amos e Yemis casaram-se um ano após o primeiro encontro, em uma linda cerimônia que aconteceu no Reino Eterno e recebeu todo o povo do Reino Yaven e dos outros reinos que quiseram prestigiá-los. Foram abençoados por seus pais diante de todos, prometeram fidelidade até os restos de seus dias e juraram se amar pela eternidade que lhes era permitida. Juntos se transformaram no rei e na rainha do Eterno quando os deuses supremos chamaram pelo pai de Amos, transformando o rei Illo numa doce lembrança para aqueles que o conheceram.
Ao contrário do que diziam as más línguas, o amor entre Amos e Yemis crescia cada dia mais, transformando em nada qualquer dificuldade que pudesse surgir em suas vidas. E quando a rainha descobriu que um pequeno ser moraria em seu ventre por alguns meses, Yemis e Amos se descobriram capazes de amar imensamente outra pessoa que não um ao outro. Aquela pessoa que logo descobriram ser uma menina.
Arae foi para os braços do pai assim que nasceu, quando precisou conhecer o mundo que a aguardava ansioso. Amos e Yemis choraram ao ver a filha, sentiram seus corações explodirem diversas vezes e ainda assim continuarem batendo no mais divino amor. Prometeram que juntos iriam proteger Arae de todo o mal e que seriam capazes de tudo por ela.
A princesa foi apresentada a todos na manhã do dia seguinte ao seu nascimento. Todos foram até o castelo para presentear Arae, desde objetos valiosos até os mais humildes. Bênçãos e orações por sua saúde e vida também não faltaram.
Arae conquistou o coração de todos com muita facilidade, além de ter colocado Amos e Yemis aos seus pés desde o seu nascimento. O amor grande, forte e verdadeiro que os deuses sentiam pela princesa os tornava capazes de tudo por ela, pela sua felicidade. Para que continuassem ouvindo o som da respiração, da voz e, principalmente, da risada de Arae.
Por essa razão, naquela data que marcava mais um ano de vida da princesa, após o término da festa realizada no reino para que todos pudessem celebrar a importante data junto da família real — como sempre acontecia desde o primeiro aniversário de Arae —, Amos e Yemis estavam dispostos a realizar mais um dos desejos da filha.
O maior de todos os pedidos já feitos por ela.
Dariam para Arae o que tanto lhes era pedido desde que a princesa era pequena.
Sentindo que estava sendo observada, Arae deixou de lado os muito embrulhos que tinha a sua volta e olhou para os pais, que entraram no quarto da princesa. Eles a olhavam com admiração e amor.
— Uma princesa não deve sentar-se ao chão? — indagou sobre sua situação, sorrindo e erguendo uma sobrancelha em brincadeira para aqueles que era tudo para si.
As duas servas, que ajudavam Arae com os presentes, curvaram-se pedindo licença à família. Apesar de gostarem de ver de perto a relação e interação dos três, todos do reino sabiam respeitar quando os reis e a princesa precisavam ficar a sós.
— Certamente há quem diga que não — Yemis a respondeu, piscando para a filha, que mordeu o lábio inferior ao segurar uma risada.
— Principalmente diante do rei. — A voz firme não foi capaz de anular o tom descontraído e carinhoso.
— Ó, perdão, majestade! — Levantou-se com pressa, deixando cair os presentes menores que estavam em seu colo, curvando-se para o pai que não conseguiu conter a risada e o ímpeto de ir até a filha e puxá-la para um abraço. Amos beijou o topo da cabeça entre os fios cacheados.
— Tu podes tudo — assegurou em voz alta, sentindo as mãos da filha tocarem seus braços antes de abraçá-lo pela cintura e segurar as vestes. Os corpos próximos permitindo que ambos sentissem o calor alheio, os corações que batiam acelerados sempre que se abraçavam.
O amor que partilhavam era tão grande e intenso que seus corações pareciam não serem capazes de suportá-lo. Mas eram. Tanto de sentir quanto de aumentar de tamanho e intensidade.
— Tudo — Yemis reforçou, completando a fala do marido, beijando a testa da filha quando teve o olhar da princesa em si. Amos puxou a rainha para aquele abraço caloroso que tinha o tamanho ideal para comportar as duas mulheres de sua vida.
— Ainda não lhe demos o nosso presente, meu bem — murmurou a rainha depois de algum tempo aproveitando aquele momento familiar, sorrindo para Arae que abriu os olhos rapidamente e sentiu uma paz tomar todo o seu interior ao ter os seus orbes nos de Yemis.
Se Amos era a força que tornava Arae corajosa, determinada e prestativa, Yemis era a calmaria que a colocava na direção certa e a fazia se sentir leve a ponto de seus pés quase não tocarem o chão.
— Mais? Pois eu sinto que me presentearam o suficiente!
O abraço familiar foi desfeito para que os pais pudessem olhá-la de frente, com uma visão melhor do rosto bonito. Para que pudessem ver, apreciar, a reação da princesa.
— Somos capazes de tudo por ti — repetiu o rei, passando a mão na face da princesa. Observou os olhos castanhos o encarando em expectativa, ansiosos, indo dele para Yemis, e então voltando para ele. Amos sorriu. — Por isso, tu terás o que tanto nos pediu, Arae. Agora que tu és responsável por teus atos, desejos e vontades, lhe daremos o que tu tanto nos pedes desde muito nova...
— És chegado o momento de nos mostrar o que aprendeu com tudo que te ensinamos todo esse tempo, Malakai — soprou o apelido íntimo que usava para a filha desde o seu nascimento. A palavra tinha “anjo” como seu significado, e, na visão de Yemis não existia apelido melhor para ser usado com Arae. Uma vez que a princesa era, para a rainha, o anjo enviado como um presente dos deuses supremos.
Yemis segurou a mão da filha, guardando-a dentro das suas.
— Nós te daremos o teu mundo.
As lágrimas acumuladas pela emoção daquele dia tão especial desceram pelo rosto divino quando Arae ouviu a pequena frase dita por seu pai. O choro dela causou o de Amos e Yemis, que não conseguiram segurar as lágrimas diante do rosto molhado da filha. A felicidade genuína e quase palpável de Arae dava aos reis a certeza de que estavam fazendo a coisa certa, como já suspeitavam.
Yemis segurou o rosto delicado da princesa, secou as lágrimas com as pontas dos polegares e riu quando a princesa repetiu o gesto em seu rosto antes de abraçá-la apertado mais uma vez.
— Tu sabes que, antes de criá-lo, precisamos falar com ela — falou, ganhando um assentir emocionado da filha. — Mas tu o terás.
Arae ainda não sabia como reagir diante de tal informação, sentia seu coração batendo acelerado e as mãos suando. A felicidade que sentia era tão grande e fora de seu controle que fazia com que o poder da deusa emanasse dela, sem que fosse capaz de perceber. Uma grama baixa e verdinha nascera ao redor de Arae e seus pais, quando um vento refrescante balançou as cortinas da janela fechadas do quarto e tocou as peles dos deuses, balançando alguns móveis mais leves.
Arae abriu e fechou a boca algumas vezes em busca do que falar, sempre acabando por fechá-la sem dizer uma palavra. Mas não precisava. Eles sabiam de tudo. Sentiam também.
Amos deu dois passos para trás e, diante do olhar atento da filha, manteve erguidos o polegar e o dedo médio da mão esquerda para fazer uma linha vertical no ar e dali surgisse a espada dourada de dois gumes. O utar¹ apareceu no pulso do deus quando a lâmina afiada cortou a pele escura. Yemis logo repetiu o gesto do marido ao lado dele, segurando com maestria a espada pesada, com cuidado ao misturar seu sangue divino com o de Amos.
Arae sentiu o choro voltar diante da cena que observava em silêncio. A tez continuava a ser molhada por lágrimas salgadas quando chamou baixinho pelos pais que levaram os olhares para ela. Amos sorriu, ao que Yemis afirmou que estava tudo bem.
E sem que os deuses pudessem trocar uma palavra, seus joelhos dobraram e tocaram o chão num baque mudo, as cabeças baixaram. Não havia nada que Amos, Yemis ou Arae pudesse fazer para controlar seu comportamento diante da deusa que surgiu dentre eles após ser chamada.
A Senhora da Justiça era a deusa mais respeitada dentre todos os vivos e aqueles que já haviam partido. Era chamada de “senhora”, pois sua existência era anterior a de qualquer outro. Ela não habitava em nenhum dos reinos conhecidos, não possuía um lugar físico para chamar de seu, mas estava presente em todos os lugares — ainda que os olhos não pudessem capturar sua presença o tempo todo. Contudo, era necessário apenas uma palavra sua para que todos repensassem e a obedecesse, cedo ou tarde. Nada acontecia sem a autorização dela, sem que a deusa soubesse, sendo muito temida e conhecida por sua imparcialidade.
Todos os deuses tinham acesso a ela, podendo chamá-la quando necessário através do contato do utar com os gumes da espada dourada que fora feita pelas mãos da própria Justiça.
— Levantem-se — ordenou.
O tecido branco que protegia partes do corpo e a faixa longa que cobria os olhos da deusa eram balançados pelo vento que começava a se dissipar junto com a grama e os lírios. A presença da deusa era superior a qualquer outra, capaz de anular qualquer outro dom.
— Senhora — falaram em uníssono, de pé, com as mãos unidas diante dos corpos e as cabeças ainda baixas.
— Conseguiu a autorização de todos, rei? — perguntou a Amos que afirmou. — Não está mentindo para mim, está?
— Um rei não deve nunca mentir — assegurou. Vendo de perto a ponta da espada afiada da deusa em sua direção, próxima ao seu rosto. Apesar de sempre vendada, Justiça nunca errava sua mira. — Principalmente para a senhora.
Amos nunca mentia, não era de sua natureza.
Além de não gostar de mentiras, ele sabia bem quais eram os castigos para quem distorcia a realidade e criava uma história para lhe favorecer. Sabia, principalmente, que Justiça sempre descobria a verdade, pois a verdade sempre aparecia. E o castigo para os corajosos que mentiam para a deusa era o julgamento feito diante de todos e que tinha o veredito final dado pela própria Senhora, sendo este veredito: o tempo em que o farsante ficaria preso em uma das celas do Universo Sombrio. Longe de tudo e todos. Com tempo para repensar seus erros e se tornar alguém melhor.
— Tem certeza do que quer, princesa? — perguntou para Arae, que assentiu com a cabeça, nervosa, antes de colocar sua resposta num murmuro para que a deusa a escutasse. — E por que quer um mundo para chamar de seu?
— Porque eu não acho que seja justo sermos os únicos a existir nesse universo, Senhora — assegurou, erguendo o olhar para a deusa de postura imponente e que despertava um pouco de medo em si. — E para que o outro lado da balança também tenha peso.
Referiu-se ao objeto de ouro maciço que era segurado pela mão esquerda da deusa. A espada de Justiça representava o poder enquanto a balança era o equilíbrio do seu julgamento, do mundo em que ela fazia parte.
Justiça sabia que chegaria o dia em que um dos deuses, mais uma vez, insistiria na criação de um mundo diferente daquele que conheciam. De um mundo novo para o equilíbrio total do universo. E mesmo sabendo que deveria ser imparcial em relação a tudo e todos para que pudesse ser justa, a deusa não podia deixar de sentir uma pontada de felicidade dentro de si.
Estava feliz que fosse Arae quem fazia o pedido daquela vez.
— Se aproxime, princesa — mandou. Quando sentiu a presença da mais nova por perto, continuou: — Se tu queres dar o sopro que gera a vida — o prato direito da balança movimentou quando uma fumaça branca o pesou, deixando-o desigual em relação ao outro — é necessário que dê também o sopro da morte.
Arae arregalou os olhos e olhou para os pais.
Ela sabia que o mundo novo deveria ser diferente daqueles que conhecia; que os seres que nele viveriam não deveriam conseguir ver nenhum dos Reinos do Universo infinito, que não poderiam ser eternos e que deveriam seguir as leis de Justiça. Arae sempre soube que criar um mundo novo não significaria criar um mundo onde tudo fosse perfeito ou sem leis, e ainda assim estava disposta a criá-lo. Mas... ouvir de Justiça que, além de criar a vida, também deveria criar a morte, fez com que um gosto amargo tomasse o paladar da jovem deusa.
— Quer desistir? — Senhora perguntou.
E com toda coragem que havia em si e a certeza de que tudo ficaria bem, Arae negou.
A princesa se concentrou no que sabia a respeito de morte, sobre o que aquela palavra representava e todo o peso que possuía. Além disso, pensou e sentiu também o coração apertar e os olhos lacrimejarem quando sentiu a dor do luto, da partida. E enquanto as lágrimas desciam dos olhos da deusa e molhavam sua face, Arae assoprou em direção ao prato esquerdo da balança.
As cortinas do quarto se balançaram com o vento frio que tomou todo o quarto, fazendo com que todos os presentes se encolhessem e abraçassem o próprio corpo. Sons de passos foram ouvidos, e mesmo que os três deuses olhassem em volta em busca de onde vinham os passos, nada conseguiam enxergar. Os corações estavam apertados em pura dor, agonia... Até que uma figura sombria surgiu no meio do quarto.
A Morte estava ali.
Com uma capa preta lhe cobrindo o corpo enquanto o capuz escondia a metade do rosto, deixando somente a ponta do nariz e os lábios vermelhos à mostra.
Arae nunca sentiu uma presença tão forte em toda sua vida. Nunca sentiu tanto medo e tristeza também.
Com a criação de Morte, o outro lado da balança foi preenchido por uma fumaça preta, pesando-o e deixando-o alinhado com o prato que tinha o sopro da vida.
— Agora, assopre para criar aquele ou aquela que espalhará coisas boas em teu mundo, Arae — ordenou Justiça e moveu a balança de um lado para o outro, fazendo com que as fumaças evaporassem enquanto um tilintar soava.
Ao contrário do que sentiu quando precisou criar Morte, Arae quase chorou de felicidade ao se concentrar para sentir tudo aquilo que de bom já tinha experimentado em sua vida. Olhou para Amos e Yemis por alguns segundos e sentiu o peito aquecer e inflamar no mais puro Amor. E, então, assoprou.
O vento gélido criado por Morte deu lugar à brisa fresca que preencheu todo o ambiente. Borboletas coloridas começaram a surgir por todo quarto, voando em volta dos deuses, pousando uma no nariz de Yemis, que sorriu, encantada. Grama verde nasceu debaixo dos pés, e Amor surgiu ao lado de Arae que o olhou com os olhos lacrimejados.
Amor era tão linda. Tão preciosa.
— Não chore, mãe — pediu, pegando com a ponta do polegar a lágrima de felicidade que molhava a bochecha daquela que o criou.
Os trajes usados por Amor eram em vermelho e branco, em todos os tons das duas cores. O sorriso bonito que ela mostrou a Arae parecia com o dela, assim como os cachos do cabelo que estava preso num coque alto com alguns cachos soltos ao redor do rosto bonito. Suas írises tinham cores diferentes: a esquerda era vermelha enquanto a direita era branca, o que a tornava ainda mais bonita. A cor da pele macia era escura. E, ao seu redor, estavam as borboletas que antes sobrevoavam por todo o quarto e que agora se concentravam ao redor da deusa mais pura.
— Se o bem existe... — Justiça retornou a dizer, o significado das poucas palavras tirando do rosto de Arae o sorriso que repuxava os lábios. — O mal também deve existir.
Apertando o tecido do vestido que usava, Arae pensou em tudo o que mais detestava e a fazia sentir o sangue ferver de um jeito ruim. Se concentrou para sentir raiva, rancor... E quando julgou ser incapaz de sentir mais desgosto e ódio, assoprou no prato que balançou diferente das outras vezes.
O som arrepiante do guizo de cobras fez com que Arae, seus pais e Amor cobrissem os ouvidos numa tentativa falha de abafar o som. Mas era inútil, o guizo ficava cada vez mais alto à medida que escurecia dentro do quarto. Uma risada estridente soou ao fundo e todos se sentiram sufocados.
Ódio sorria, assistia feliz a agonia que seu nascimento causava.
— Olá, mãe. — O sorriso ficou ainda maior quando notou o olhar de Arae em si e percebeu que dos olhos da deusa saíam lágrimas de sangue. A língua dividida em duas partes na ponta passou pelos dentes brancos e então pelos lábios.
Arae não o respondeu, mas o olhar dela para Ódio o deixou satisfeito.
Amor ameaçou dar um passo na direção de Mãe, queria acalmá-la, mas a voz de Justiça o fez ficar onde estava.
— E se quer um mundo justo, deverá criar aquele que a ajudará a escrever a história de cada ser — orientou, balançando a balança que tilintou até que os pratos ficassem vazios mais uma vez. — Este deve ser capaz de sentir tudo aquilo que eles — referiu-se a Amor, Ódio e Morte — já são.
Arae limpou o rosto com as mãos, livrando-se de seu próprio sangue. Limpou também seu coração de tudo de ruim que Ódio a fazia sentir. Respirou fundo e fechou os olhos, concentrando-se mais uma vez. Dessa vez, confiante de que teria a ajuda certa para coordenar o mundo novo e todos os habitantes. Confiante de que tudo ficaria bem.
Sorriu quando seu sopro se transformou em fumaça de todas as cores e ocupou os dois pratos da balança, os dois lados. Logo as cores foram se separando: as mais escuras e sombrias ficaram no prato do lado direito enquanto as mais claras e leves ocuparam o esquerdo.
Girassóis nasceram pelo quarto de Arae pouco antes de Destino aparecer. A pele alva fazia contraste com o tom alaranjado dos cabelos e das sardinhas que marcavam a ponte do nariz e as bochechas. A roupa era de tecido leve tons claros, enquanto a coroa prateada brilhava no topo da cabeça.
— Para que seja justa, ela não enxerga e possui audição limitada — explicou Justiça.
Arae olhou então para os olhos de Destino, surpreendendo-se quando notou as írises brancas como a neve. Entendia o porquê da filha ser daquele jeito. Entendia e julgava ser melhor assim.
Entretanto, a falta de visão e a audição precária não impossibilitaram Destino de alcançar a mão de Arae, que sorriu quando sentiu o toque suave.
Faria de tudo para que fossem grandes amigas, Arae prometeu em silêncio.
Seriam melhores amigas, Destino tinha certeza.
— Eu também estarei em teu mundo, princesa — Justiça afirmou. — E lembre-se: se o novo mundo ameaçar a existência do divino, ele sofrerá as consequências. A extinção da sua criação não deixará de ser uma opção.
Senhora foi embora tão logo, transformando-se em fumaça que se desfez no ar.
Arae olhou para cada um de seus filhos com um brilho amável no olhar; apertou a mão de Destino que ainda segurava a sua, sorriu para Amor que lhe sorriu de volta, viu Morte virar a cabeça na direção de Amos e Yemis antes de virar-se para a princesa, e ficou séria ao encarar Ódio que exibia um sorriso malicioso.
Amos e Yemis se aproximaram da princesa para abraçá-la apertado, dando a ela a confiança de que estava no caminho certo. E funcionou. Sentindo o calor corporal dos pais e o amor que vinha deles, Arae sentiu-se pronta para realizar o seu maior sonho.
Iria criar o seu mundo.
O criaria com todo amor e bondade que havia em seu ser... Que era muito.
🌎❤️
Levou um tempo até que Arae criasse o seu mundo.
Antes de fazer o mundo novo, a princesa visitou todos os reinos que havia no Infinito. Não queria fazer nada de qualquer jeito, limitado a sua visão de mundo e realidade. Foi atrás de inspiração, do que havia de mais belo para que pudesse reproduzir em seu mundo. Admirou a natureza; pegou folhas e flores, terra, e até mesmo um pouquinho das águas de alguns rios e mares. Conversou com moradores e perguntou a cada um o que achava da vida que levava, do lugar que morava e o que poderia fazer para torná-lo melhor — se fosse possível. Se reuniu também com reis e rainhas, até mesmo com aqueles que Arae sabia não gostar tanto de si e de seu reino; perguntou a eles se poderia colocar alguma característica do reino deles no novo mundo, como uma forma de homenageá-los. E, sem surpresa alguma, Arae recebeu respostas positivas.
Pois até os deuses tinham um pouco de egocentrismo.
Arae se concentrou em rascunhar e decidir qual seria a forma do novo mundo, como ele iria funcionar, além de pensar nas cores que predominariam e nas delimitações entre a água e a terra firme. Preocupou-se com detalhes importantes durante dias e noites, sempre pedindo as opiniões de Amos e Yemis. A princesa queria saber o que seus pais achavam de suas ideias, de como ela estava construindo cada pedaço de seu sonho que em breve se tornaria realidade. Amor, Destino, Morte e até mesmo o Ódio também eram consultados, suas respostas sempre arrancavam risadas e suspiros da mãe.
Amos e Yemis estavam tão animados quanto a filha na criação do novo mundo, e mais felizes ainda em ver a princesa empolgada com o sonho. Ajudavam Arae sempre que eram solicitados, precisando compreender que só poderiam ajudar quando a filha lhes pedisse ajuda. Aquele era o sonho de Arae, a realização dela. A princesa precisava agir por conta própria. Por isso, Amos e Yemis mantinham-se por perto da filha, sempre a postos para socorrê-la caso fosse necessário, mas sempre respeitando o espaço dela.
Entretanto, a ajuda de Amos e Yemis parou de vir quando Arae se deparou com um problema que não conseguia resolver...
Arae não sabia como iluminar o novo mundo, como delimitar nele aquilo que ela já conhecia como o dia e a noite. Não conseguia pensar numa maneira de criar uma luz forte o suficiente capaz de iluminar todo o mundo durante o dia e a noite. A deusa não podia pegar o sol e a lua do Infinito, isso não lhe era permitido. Poderia fazer igual, mas nunca os pegar e usar para sua própria felicidade sem se importar com todos que seriam atingidos com seu egoísmo.
Porém, a deusa não sabia como criá-los. Afinal, como se criar o sol e a lua?
Ela perdeu noites de sono pensando naquele problema, que parecia maior a cada dia que se passava. O desespero tomou cada parte do corpo da deusa que, durante uma das tardes quentes de verão, sentiu-se cansada de procurar por uma solução que não encontrava e por isso cogitou seriamente desistir de toda sua criação.
Então, determinada a desistir de seu mundo e prometendo a si de que só o criaria quando fosse capaz de dar forma a algo perfeito, Arae foi até o aposento do rei e da rainha a fim de informá-los de sua decisão. E para chorar no colo do pai enquanto ganhava o afago de Yemis também.
No entanto, quando chegou ao quarto dos pais, Arae estranhou não os ter encontrado de primeira, uma vez que as servas a informaram de que ali eles estariam. Ela sorriu ao ver Amor próximo à cama que pertencia aos reis. O filho de voz mais mansa sempre foi muito próximo de Amos e Yemis. E ao abrir a boca para questionar ao filho sobre o rei e a rainha, Arae sentiu um aperto ruim no coração ao ver Morte ao lado da cama.
Ainda confusa e recusando-se a acreditar no que tudo aquilo poderia significar, Arae caminhou por todo o quarto em busca dos pais. Os passos eram apressados e a voz trêmula chamava pelo rei e pela rainha. A procura se prolongou até a sacada e Arae quase derrubou a cortina quando a abriu apressada, com força e desespero demais.
Os olhos da deusa ardiam pelas lágrimas que acumulavam, as mãos tremiam e o coração batia forte e rápido demais.
Não demorou até que o rosto de Arae fosse molhado pelas lágrimas grossas e salgadas, quando os olhos escuros observaram o momento em que Morte ajeitou as luvas escuras que eram retiradas das mãos pálidas quando a deusa buscava almas.
Ódio aproximou-se do quarto em que a Mãe estava com os outros dois irmãos bem a tempo de ver Arae avançar sobre Morte, segurando-a pelo tecido preto da capa enquanto perguntava por Amos e Yemis em meio a gritos de dor e desespero.
Desespero pelo sumiço dos pais e pelo que a ausência deles poderia significar. E dor por saber que, provavelmente, Amos e Yemis foram levados pelas mãos de sua própria filha.
Ódio sorriu ao ver Arae desprezar a Morte.
Amor chorou lágrimas prateadas pelo mesmo motivo.
O rancor de Arae por Morte aumentou a cada dia, principalmente quando perguntava à filha pelos corpos de Amos e Yemis e não recebia nenhuma resposta. Arae também tentou buscar respostas com Amor que, assim como a irmã, nada dizia.
Por um longo período de tempo, Arae se manteve afastada da criação de seu mundo. Não tinha motivação ou forças para criar qualquer coisa, se perguntava como poderia criar um mundo fruto de seu amor se o que ela sentia estava longe de ser amor.
Arae se sentia perdida sem o abraço de Amos e a voz suave de Yemis para guiá-la. Abandonada por aqueles que mais amava. Estava frágil. Chorava dias e noites, não sabia o que dizer quando a perguntavam sobre os pais. Dizia que eles haviam desaparecido, e continuava a mandar centenas de homens da guarda real à procura do rei e da rainha, de qualquer pista que indicasse o paradeiro daqueles que Arae ainda amava com todo o seu coração. Porém, nada foi encontrado. Nunca.
Numa noite fria, Arae sonhou com os pais. O sonho foi tão real que a deusa poderia jurar que eles estavam mesmo em seu quarto, próximos a ela. Que o abraço recebido por Amos não foi fruto de sua imaginação. Além do abraço, também recebeu conselhos do pai e da mãe, que a beijou na testa e tocou a ponta de seu nariz ao sorrir e chamá-la pelo nome. Ouviu o pai a perguntar por que ela estava desistindo de seu maior sonho, por que se sentia abandonada se ele e Yemis sempre estiveram ali para ela. Se eles sempre deixaram claro de que eram capazes de tudo pela felicidade de Arae.
Sonhar com os pais — ou tê-los em seu quarto — era o que Arae precisava para voltar a si, sentir-se inteira novamente e se preencher de sentimentos bons. A deusa então voltou então para a criação de seu mundo. Se desculpou com Morte e Amor, afirmando que os amava (ganhou um sorriso tão bonito de Amor nesse momento), e prometeu confiar neles o suficiente para não insistir em algo que, ela já havia entendido, eles não podiam falar sobre.
Então, o mundo novo saiu da imaginação de Arae e se tornou real durante uma noite. Um espaço do Universo foi ocupado pelo sonho da princesa. O mundo era tão lindo, sua forma era graciosa e bela. Ele girava em torno de si mesmo lentamente, bem debaixo do olhar atento da deusa que se surpreendeu ao ver, além de seu mundo, um Sol e uma Lua surgindo e iluminando sua criação.
Quando a deusa colocou os dois primeiros seres humanos no novo mundo, Amor, Destino, Morte e Ódio os acompanhou para aquele mundo que Arae nomeou carinhosamente de: Terra.
Terra…
O mundo que nasceu do amor de uma deusa.
Arae não era a única que amava a Terra e todos aqueles que habitavam nela.
Como era de se esperar, Amor nutria um carinho muito grande pelo mundo de Mãe. Achava lindo e especial tudo que havia sido criado pela deusa. Gostava, principalmente, das almas que ocupavam aquele mundo. Ficava andando pela Terra por lá e por cá, admirando cada vida e como Destino sabia escrever histórias tão lindas e outras nem tão bonitas assim. Ficava feliz quando percebia tanto de si em alguns seres, ficava triste quando encontrava tanta semelhança entre o irmão, Ódio, e algumas pessoas daquele novo mundo. Chorava quando Morte precisava recolher almas.
Almas que, antes de irem para a Terra, ficavam no Jardim das Almas, uma parte do Reino Eterno.
Amor ia lá todos os dias, observava as almas à distância. Como fazia naquele exato momento...
Os pés descalços na grama verde enquanto os cachos tocavam seu rosto ao serem bagunçados pelo vento. A risada de Amor atraiu a atenção de uma das almas que estava reunida com as outras.
Aquela alma que o virou-se na direção de onde ouvira o som da risada, era uma das preferidas de Amor.
Amor criou aquela alma e a outra junto com Mãe e Destino, e ficou feliz quando pôde escolher ela mesma quais nomes teriam quando fossem para a Terra.
Duas almas tão especiais que tinham os tons do Amor predominando em suas essências, que brilhavam assim como as outras, mas que se destacavam com facilidade diante do olhar do deus apaixonado.
Amor sorriu quando a segunda alma que fazia par com a que ouviu a risada do deus, aproximou-se rapidamente. Em meio a tantas almas daquele jardim, aquelas duas estavam sempre juntas.
— Eu falei que ela estaria aqui. — A voz impaciente de Ódio despertou Amor, que se virou para olhar o irmão. — Admirando de novo? Você não cansa? — perguntou, sem realmente querer saber a resposta que já conhecia, pois ouvira vezes demais, e sempre ficava enjoado quando a ouvia.
Ódio achava Amor melosa e imatura demais. Eram realmente opostos. Precisava confessar que Arae havia feito um trabalho perfeito ao criá-los.
— Deixe-a — Destino pediu, apaziguando a briga dos dois deuses, como sempre fazia. — Logo, elas vão para a Terra — informou por alto, sorrindo quando sentiu um olhar em si e soube que era Amor quem a olhava. Ninguém seria capaz de transmitir tanta ternura no olhar, além de Amor.
— Você sabe que eu não posso informar — respondeu quando Amor a segurou pelos ombros e perguntou mais detalhes da ida das almas para o novo mundo, queria saber tudo o que aconteceria com elas. Queria estar por perto. — É segredo — lembrou à irmã, que agora apertava o rosto de Destino, forçando um biquinho nos lábios da deusa.
— Você sabe que Amor é curiosa. — Morte aproximou-se dos três com seus passos firmes, mantendo uma distância que julgava saudável daqueles que eram barulhentos demais em sua opinião. Ela preferia o silêncio.
— Isso é verdade! — apontou, orgulhosa, feliz por sua irmã saber tanto sobre si.
— Eu não sei o motivo de tanta felicidade... — Ódio cruzou os braços diante do peitoral, os fios negros do cabelo estavam maiores e por isso quase cobriam os olhos do deus.
Os trajes usados por Ódio tornavam-se mais parecidos com aqueles que os humanos usavam à medida que o deus passava mais tempo na Terra, próximo aos mortais. As peças divinas e compridas vez ou outra desapareciam e davam lugar para calças pretas de couro, camisas sociais com os dois primeiros botões abertos e sapatos escuros. Os tons escolhidos por Ódio ainda eram os escuros. O corpo do deus também mudou desde que ele começou a frequentar a Terra; os braços estavam mais fortes e pareciam com os de alguns humanos que iam para um lugar chamado academia. No começo, Arae não gostou da mudança visível do filho e o pediu para que não usasse aquelas roupas e aparência mundanas quando voltasse para o Reino Eterno, mas, esperto como sempre fora, Ódio soube silenciar os pedidos da deusa. Afinal, se Arae amava o mundo que ela mesma criou, por que o filho dela não poderia se parecer com aqueles que também eram criações de Arae? Ou será que a deusa não amava tanto assim sua criação?
— Você não sabe se elas vão realmente se encontrar lá embora... — prosseguiu, referindo-se às duas almas e sua ida para a Terra, ao destino delas naquele mundo.
— É claro que vão se encontrar — Amor sussurrou, certa do que dizia, e muito chateada que o irmão estivesse outra vez implicando consigo e com a história daquelas duas almas. Ódio sabia o quanto elas eram importantes para Amor. Talvez fosse por isso que implicasse tanto... — Eu sinto.
— Eu também sinto que não vão — provocou ainda mais, sorrindo com as pontas da língua molhando os lábios bonitos.
— Destino... — chamou pela irmã ao se esconder atrás da deusa de cabelos laranjas, segurando com delicadeza o tecido fino das vestes claras.
— Quer apostar? — Ódio questionou, debochado, inclinando-se na direção de Amor, que se encolheu. — Quando aquelas duas almas ocuparem cada uma o corpo de uma mulher e a outra o corpo de um homem, e forem para a Terra... Elas não vão se encontrar e viver uma linda história de amor.
— Vão sim! — gritou, exasperada, praticamente pulando para perto de Ódio, que sorriu mais largo ao ter o seu objetivo alcançado. — Vão porque e se amam! Porque eu os criei junto com Mãe e Destino! Há muito de mi...
— Oh, vejo que até as nomeou... — interrompeu a irmã que continuava falando como as duas almas se amavam, o quanto de si havia nelas e listando motivos que as fariam viver uma história bonita no novo mundo. — Que patético.
— Ódio... — Destino chamou pelo deus, que a olhou. A deusa sentia a mágoa de Amor dentro de si e a felicidade de Ódio também, às vezes Destino não gostava de sentir tudo o que os irmãos sentiam. Doía. Era cansativo. — Pare.
— Tudo bem. — Levantou as mãos em uma falsa desistência. — Não quero fazê-la chorar, irmãzinha. — Apertou as bochechas de Amor, que se afastou do irmão. — Mas, se tem tanta certeza de que e se amam... — disse como quem não queria nada, mesmo que quisesse tanto. Usou do nojo para pronunciar os dois nomes, e Amor percebeu isso, assim como Destino e Morte, que estava quieta ao canto.
— Não...
— Eu te desafio — dirigiu-se a Amor, ignorando Destino, que o chamava para repreendê-lo novamente. — Se há tanto de você naquelas duas almas, se tem tanta certeza de que elas vão ficar juntas porque o que há nelas é forte o suficiente para isso... Então, nos mostre sua força.
— O quê? — Amor perguntou, confusa, sentindo as borboletas ficando agitadas em sua barriga.
— Se o que há nelas é tão forte a ponto de te dar a certeza de que elas vão se amar não importa o que aconteça... — Fitou as írises vermelhas e brancas, tirando um dos cachos da frente do rosto da irmã que, Ódio precisava admitir, era linda. — Prove.
— Isso não pode acontecer.
— Ninguém vai ficar sabendo. — Virou-se para Destino, prometendo. — Apenas nós quatro. Um segredo nosso. Segredo de família.
— Amor... — Destino chamou pela irmã que estava interessada demais nas palavras de Ódio. Inclinada a aceitar o que lhe era proposto.
— Eu vou provar! — afirmou depois de intercalar seu olhar entre o irmão a sua frente e as duas almas mais longe.
— Vamos fazer assim... — Apoiou o queixo na mão direita, pensou um pouco e continuou: — Aquelas três vidas na terra. Nas três primeiras, elas vão se encontrar e ficarão juntas por um tempo, antes de terem seus sentimentos testados por Destino, Morte e por mim. E ao final de cada vida, elas vão ter que voltar ainda se amando e sendo capazes de se reencontrar na próxima vida.
— Tudo bem...
— Destino vai separá-las, eu vou fazê-las se odiarem e Morte vai tomar uma delas pela mão.
— Não me coloque nisso — Morte sussurrou, mas sua voz sempre baixa pouco foi ouvida quando a de Amor soou junto:
— Mas, se elas seguirem se amando depois de tudo isso. Depois de toda essa crueldade... Elas vão voltar para a Terra e serei eu a guiá-las!
— Como quiser. — Deu de ombros e estendeu a mão para Amor, que apertou a sua, selando assim o acordo feito entre eles. A aposta. — Se não vão ajudar, então não atrapalhem. — Virou-se para Destino e Morte. — Ou, melhor, atrapalhem — corrigiu e riu sozinho de sua frase.
— Isso não está certo. Não vai dar certo. — Destino suspirou. — E como vocês vão fazer para reencarná-las? Sabem que fazer isso não é tão fácil assim, que depois que Morte faz a busca pelas almas, elas só voltam para a Terra se tiverem algo pendente a ser resolvido. E que...
— Vamos usar isso. — Ódio segurou o pulso direito de Amor com certa agressividade, arrancando um grito de dor da irmã, irritada por Destino estar atrapalhando seus planos. Sua brincadeira. — Vamos usar dessa linha. — Apontou para o anel de linha vermelha que havia no dedinho de Amor, o anel havia sido um presente de Amos, Yemis e Destino, antes do sumiço do rei e da rainha.
— Não, isso não.
— Vamos pegar essa linha e amarrar nas duas almas, ligando uma à outra — continuou, ignorando tudo o que Destino falava. — Quando a Morte precisar buscá-las, vamos dar um jeito de deixar algo em aberto na vida delas na Terra para que possam voltar sem problemas. Em novos corpos. Com novas vidas.
Um dos poderes mais fortes de Ódio sempre foi sua capacidade de fazer qualquer um acreditar que as soluções erradas propostas pelo deus eram as corretas. Amor, por outro lado, tinha o dom de oferecer soluções corretas para qualquer problema. Sempre com muita cautela e cuidado, bem ao contrário do irmão. Entretanto, Ódio usava de seu outro poder e confundia a irmã o suficiente para que ela acreditasse nas soluções apresentadas pelo deus...
— Feito! — Amor concordou com a solução apresentada pelo irmão, tudo parecia fazer sentido e ser muito fácil. Na verdade, naquele momento, a deusa não se preocupava muito com os detalhes. Amor só queria que as duas almas tivessem uma bela história na Terra.
Ódio sorriu ladino quando viu a irmã morder o próprio braço com força o suficiente para que o utar manchasse a pele. Ele repetiu o gesto da deusa e elevou o braço acima do dela. Juntos esperaram até que o utar de Ódio pingasse em cima ao de Amor, selando de vez a aposta divina.
Destino e Morte ficaram em silêncio.
Destino não gostou de nada daquilo e Morte sentia-se indiferente. Ambas sabendo que não havia nada que pudessem fazer para impedi-los e acabarem com aquela aposta. Não conseguiriam interferir naquilo que cedo ou tarde seria descoberto.
Assim como todos aqueles que conviviam com os deuses, Destino e Morte sempre souberam que Amor e Ódio eram mais parecidos do que julgavam ser. Por isso não podiam ficar muito tempo juntos, pois alguma coisa sempre dava errado.
Informações: Utar¹ é o sangue dos deuses. Cor: azul escuro. Características: se transforma em metal depois de coagulado.
Carter sentia que poderia cair a qualquer momento, estava sendo difícil manter o ritmo acelerado de corrida com as pernas estavam moles. As mãos suavam ao segurarem a saia do longo vestido que lhe cobria o corpo, ajudando-a na tarefa de correr pelo castelo. A boca estava seca, o ar escasso enquanto o coração batia acelerado e pronto para sair de seu peito. Ela ouvia algumas pessoas chamando seu nome, incluindo sua mãe, a rainha, que tentava acompanhá-la na corrida. Esbarrava sem querer nos servos e guardas, mas pouco se importava com esses acontecimentos que, para si, naquele momento, não passavam de pormenores.
A princesa não tinha cabeça ou tempo para lidar com nada daquilo. Sua mente, seu coração e corpo tinham um único e importante objetivo: trabalharem juntos para levá-la até o quarto que ficava na quinta porta do terceiro andar do castelo.
precisava chegar ao aposento o mais rápido possível.
E quando conseguiu, enfim, ficar de frente para a porta de madeira escura, respirou fundo ao tocar a maçaneta de ouro maciço. Puxou todo o ar que conseguiu, inspirou e expirou várias vezes tentando recuperar aos poucos a força que vinha perdendo ao longo dos dias. Tentou também segurar as lágrimas que começavam a beirar e arder seus olhos.
Tentou, não quer dizer que conseguiu.
Ao tomar coragem e entrar de vez no quarto, antes que desistisse ou fraquejasse ainda na porta, ignorou os dois guardas que se curvaram em respeito e observou os três médicos e dois curandeiros — os melhores de todo o reino — se retirarem do cômodo, passando de cabeças baixas pela princesa que só tinha olhos para um ponto específico.
Foi naquele quarto que ficava na quinta porta do terceiro andar do castelo, que cheirava a álcool e ervas, que se viu diante de um dos seus maiores medos.
O medo que agora fazia parte de sua realidade.
Pela primeira vez em anos, tantos anos, viu quieto. Em silêncio.
Indo contra sua essência e personalidade, Lowe estava deitado na cama, que parecia tão grande para o corpo agora tão magro e pálido com hematomas roxos causados pelas tantas vezes que fora furado para exames médicos ou remédios. O cabelo estava ressecado, bagunçado e ralo — decorrência da queda brusca dos fios que diminuía cada vez mais a quantidade em seu couro cabeludo.
sentiu o coração partir em pedaços e depois em tantos outros pedaços ao ver o amado naquele estado, daquele jeito. Era cruel perceber no que o seu havia se tornado de uma hora para a outra: tão debilitado, quase irreconhecível. Definhando.
A princesa não conseguia parar de se perguntar se tudo aquilo era mesmo real. Se todo aquele cenário, aqueles dias, não se tratavam de mais um dos horríveis pesadelos que a assombrava sempre que dormia após ter exagerado na refeição noturna. se perguntava quando iria despertar na cama de casal que tinha em seu quarto, se encontraria deitado ao seu lado e seria acolhida pelos braços dele, como sempre acontecia. Se ele não a embalaria num abraço apertado enquanto afirmava que estava tudo bem, que ele estava ali e que tudo não passara de um pesadelo, para logo depois dar uma leve bronca em que desconversaria com um beijo roubado.
Bem que tudo poderia ser mesmo um terrível pesadelo, não é? No entanto, não era um pesadelo. A princesa teve ainda mais certeza de que aquela era sua terrível realidade quando gemeu baixo e sôfrego.
— ? — chamou baixinho, com a voz fraca e falha, ainda de olhos fechados. O apelido que, apesar de óbvio dado o nome da princesa, fora inventado por ele, que era um dos poucos que a chamava daquela maneira tão íntima.
— Oi, meu amor — respondeu do mesmo jeito de sempre, arrancando um sorriso pequeno do garoto que, mesmo tão debilitado, ainda sentia o coração bater acelerado sempre que estava na presença da princesa.
se aproximou da cama com tanto cuidado que seus passos não seriam capazes de quebrar os mais delicados ovos, com medo de machucar com qualquer passo em falso ou por respirar de maneira errada. Ele já parecia machucado o suficiente. Mesmo querendo tocá-lo, sentir a pele do amado, ela manteve suas mãos próximas ao próprio corpo, ainda não sabia — talvez nunca fosse aprender — como deveria agir naquela situação, com daquele jeito, e isso a angustiava ainda mais.
— Daisy disse que você estava me chamando, mas eu já estava vindo lhe ver.
— Eu sei que sim. — Virou o rosto para encará-la, tão devagar que o movimento pareceu ter sido em câmera lenta. — Pedi que a chamassem porque eu queria te ver mais uma vez. Uma última vez. — Os olhos escuros observaram o rosto delicado da princesa, que mordeu o interior da bochecha direita numa tentativa de segurar o choro. — Não chore — pediu, vendo o biquinho que se formou nos lábios da amada enquanto lágrimas molhavam a face da princesa de Asmain.
Lágrimas salgadas, amargas. Carregadas de dor.
A vida do jovem casal começou a mudar drasticamente há três dias quando precisou ser internado na enfermaria do palácio com sintomas do que parecia ser uma gripe: muita dor no corpo e na cabeça, a garganta arranhando e seca, os olhos ardendo e avermelhados, além do zunido nos ouvidos e os enjoos que surgiam antes ou depois de uma refeição. Todos estes sintomas arrancavam gemidos de dor de que fora examinado pelos melhores médicos de toda Asmain, sempre acompanhado do olhar atento da princesa que roía as unhas das mãos enquanto se negava a ficar longe do homem. Tão logo os sintomas ficaram mais fortes, a gripe deixou de ser apenas uma gripe e foi constatado que, na verdade, estava sendo mais uma vítima da terrível praga que chegara e se espalhara pelo reino há poucos dias.
Não se tinha muitas informações sobre aquela doença, nem de onde ou como surgiu, como acontecia a infecção. Só se sabia que era severa e cruel demais a ponto de tirar a vida dos que eram contaminados, assim, num piscar de olhos, em poucos dias. As mais fortes ervas, que sempre eram usadas para doenças graves, pareciam nada. Os chás se transformavam na mais pura água enquanto os xaropes pareciam suco de fruta. Nada amenizava as dores, nenhuma delas. Nada era eficaz na batalha contra aqueles sintomas. Nada aumentava as chances de melhora e sobrevivência de quem era contaminado, não havia esperança para nenhum deles. Não havia esperança de sobrevivência para Lowe. E todo reino já sabia disso, inclusive a princesa.
— Não fale isso — pediu ela, com o coração doendo e o choro ficando mais intenso quando a mão de tocou seu rosto. A palma fria do jovem em contato com a pele quente da princesa só serviu para aumentar a dor nos corações angustiados. — Não se despeça. Não faça isso, meu amor. — Pôs a mão por cima da dele, deitando um pouco a cabeça para ter um pouco mais do toque que sentia tanta saudade.
— Você é tão linda. — A voz sussurrada, tão leve quanto a brisa que movia a folhagem das árvores do quintal, não tomara metade do espaço daquele quarto. Se não estivesse perto da cama, não teria escutado o que continuou a dizer: — Tive tanta sorte em te ter ao meu lado ao longo desses seis anos juntos, por poder te chamar de minha. — Lowe sorriu e, mesmo que os cantos dos lábios não tivessem subido com a mesma facilidade de sempre e o sorriso tive sido tão fraco, sorriu também. — Os homens do reino sentiam inveja de mim, e eu nem os julgo. — A risada também veio diferente do normal, baixinha e falha, mas ainda parecia como uma canção tocada no volume correto para alcançar e aquecer o coração de quem a escuta. No caso, o coração da princesa.
— Eu te amo tanto. Tanto — declarou para ele, arrependendo-se por todas as vezes que poderia ter expressado seus sentimentos e não o fez, pois nunca pensou que aquele momento chegaria, não tão cedo, pelo menos. arrependia-se de não ter demonstrado mais o seu amor, sua admiração e gratidão por . Ele que a fez acreditar no amor, que apresentou tal sentimento, para a princesa, em sua forma mais pura. — Você não pode me deixar. — Suspirou, fechando os olhos e apertando um pouco a mão dele.
— Eu nunca irei lhe deixar, minha princesa — prometeu antes que uma tosse aumentasse a dor que sentia no peito, e que o teria feito gritar de dor, de angústia, se estivesse sozinho naquele quarto. Mas não estava, e por isso sentiu a dor que fez surgir lágrimas em seus olhos enquanto se controlava o máximo possível para não demonstrar nada de ruim para a princesa. não poderia ouvi-lo gritando de dor, ela se desesperaria e ficaria ainda mais triste. Não queria que ela ouvisse algo que jamais poderia esquecer, vê-lo naquele estado era o bastante. — Desculpe-me por não poder ficar para o nosso casamento.
— O nosso casamento já aconteceu.
A lembrança da pequena e particular cerimônia que o jovem casal fizera no quarto da princesa, há dois meses, tomara suas mentes e seus corações naquele momento. A cerimônia não teria valor diante do reino, e tanto quanto sabiam disso. Entretanto, pouco se importavam. Preferiam lembrar de como se sentiram verdadeiramente abraçados naquela noite, pelo amor que sentiam um pelo outro.
Antes que o casamento morganático¹ fosse realizado diante dos olhos de todos do reino de Asmain e de todos os outros, das famílias de e da de , ambos preferiram fazer uma cerimônia só deles. Antes da grandiosa festa que contaria com trajes sofisticados e uma bela decoração por todo o palácio, quiseram trocar suas juras de amor em segredo. A sós. No escuro do quarto da princesa, sussurrando promessas de fidelidade e amor eterno. Indo além do planejado, colocaram em seus dedos uma aliança cada um — compradas escondidas por que contou com a ajuda de , seu melhor amigo e chefe da guarda do reino.
Aquele casamento, que seria por muitos considerado de mentirinha, para e tinha muito mais valor do que o programado para dali poucos dias.
— Eu irei te encontrar em outra vida, princesa . Eu prometo que irei.
não tinha certeza de nada, sabia que nada daquilo estava em suas mãos, e sim que uma força muito maior do que ele era responsável por cuidar dos encontros e reencontros. Mas nada o impedia de desejar fortemente que o ser celestial, o destino ou quem quer que fosse a força maior o ajudasse a reencontrar . O ajudasse a amá-la mais uma vez e ser amado por ela também.
Precisava de mais tempo com , muito mais.
Três vidas, no mínimo.
— E eu vou te esperar — segredou, então segurou a mão de com uma mão enquanto a outra tocava o rosto pálido e magro. — Nós iremos nos encontrar. Reencontrar — corrigiu-se. — Ainda não sei como ou quando, mas iremos.
— Irei te amar mais uma vez, assim que olhar em teus olhos. — Visualizou o futuro tão incerto para alguns e tão certo para eles que acreditavam no amor que sentiam. Algumas lágrimas quentes molharam o rosto de , escorrendo pelas laterais dos olhos que perderam o brilho tão característico. Pela primeira vez em dias, ele sentia medo. Medo de partir, de deixar .
— Nós seremos felizes para sempre, meu amor — prometeu a princesa, o coração pesando e quebrando ainda mais os pedaços já partidos.
estava indo embora de verdade, e ambos sabiam disso. Eles sentiam. Temiam.
— Deite-se comigo, minha princesa — pediu, se esforçando para mostrar a princesa o mais próximo de um sorriso.
sabia que era errado se render ao pedido de , deitar-se ao lado dele. Sabia que brigariam consigo se a encontrasse deitada com ele. Ainda assim, ela o fez. Fez porque sabia que seria a última vez que deitaria com .
Qualquer segundo, minuto, era importante para ambos, principalmente para ela que ficaria sem aquele que dava sentido aos seus dias. Seriam essas lembranças, as memórias dos momentos vividos ao lado de , que ajudariam a seguir sem ele. A lidar com a partida tão prematura do amado. Ela precisaria se segurar nas recordações da linda história de amor deles dois para que fosse capaz de continuar vivendo. Por isso, exatamente por isso, se deitou ao lado de , com bastante cuidado. Repousou a cabeça no peitoral tão magro, a mão em cima do local onde o coração dele batia dentro do corpo. As batidas cada vez mais fracas.
— Eu te amo — confessou mais uma vez, as pálpebras pesando e os olhos fechando. Os braços se esforçando para segurar a princesa por perto. Mais perto.
— Eu sempre vou te amar.
sorriu ao ouvir a promessa, ainda que sentisse dor quando dava um simples sorriso. A verdade era que ouvir de que ele era amado por ela era, para , o som mais incrível do mundo. Sempre o fazia sorrir.
ergueu um pouco a cabeça para observar o rosto do homem, a magreza a assustando mais uma vez. O suor dava um brilho à pele pálida, e a temperatura mais quente que o normal a fazia começar a sentir uma espécie de calor pelo contato direto entre ela e . Mas nada se comparava à dor que ele sentia, e sabia disso. O esforço que ele fazia para esconder dela a intensidade da dor que sentia era visível para a princesa que conhecia o homem como ninguém.
Por mais doloroso que fosse admitir isso, sabia que o melhor para naquele momento seria o descanso. Ainda que esse descanso precisasse ser eterno.
Ela o amava demais para ser egoísta a ponto de pedir, implorar, para que ele ficasse mesmo que fosse sofrendo daquela maneira tão terrível. Não era justo. Não seria amor.
precisava ir. Precisava se livrar de todas aquelas dores que acometiam seu corpo. Ele precisava partir.
Doeria absurdamente quando ele partisse, sabia disso. Doeria não o ter mais ao seu lado, ter de viver num mundo sem ele, mas, se o descanso eterno fosse o melhor para , então... que ele fosse.
não entendia como alguém tão bom como precisava sofrer tanto na hora de sua morte, mas aceitava porque sabia — se consolava nessa certeza dela — que o amor que ambos sentiam era forte demais para ser vivido por tão pouco tempo em uma única vida. Se consolava quando pensava que teriam mais tempos juntos, que a história de amor deles dois teria continuação em outra vida. Numa vida sem dor.
E mesmo sem saber, não estava tão errada assim...
Amor assistia triste os últimos momentos do jovem casal, encostado na parede que ficava de frente para a cama. Sentia-se enjoado com o cheiro forte de álcool e produtos de limpeza que garantiam a esterilização do ambiente, com os olhos segurando as lágrimas prateadas da mais profunda dor. Porque, mesmo não sendo feito de sofrimento, ainda que Mãe não tivesse colocado nem 1% de angústia em si, Amor sentia tudo o que e sentia e por isso sofria.
Algumas lágrimas escaparam dos olhos branco e vermelho quando Amor viu a irmã, Morte, afastando-se de si e indo em direção à única cama do quarto. Observou movimentar a cabeça levemente, erguer a sobrancelha tão rala de fios atento ao som que ele ouvia, ainda que parecesse baixo. Amor sabia que som era aquele que ouvia: eram os passos de Morte que caminhava em direção ao homem.
— Cuide dele, por favor — pediu Amor, suplicou, quando Morte parou ao lado da cama de que ainda parecia tentar entender de onde surgiu o som de passos que ouvira. Talvez fosse uma alucinação. — Por favor — insistiu, assistindo a irmã retirar a luva da mão esquerda e tocar a ponta do indicador na testa de . — Ele é especial.
A alma saiu do corpo do rapaz no instante em que foi tocado pela deusa da morte, as pálpebras se fecharam pela última vez os olhos.
— Pensei que todos fossem — Morte respondeu Amor, guardando a alma na bolsa prateada que carregava consigo antes de passar a mão pela própria bochecha e recolher a própria lágrima. Ninguém sabia ou notava, nenhum deus e, principalmente, seres humanos percebiam: mas Morte chorava sempre que precisava recolher uma alma. — Essa é a primeira vez, e não será a última — lembrou.
— Eu sei — afirmou, fraquejando quando olhou na direção de e a observou notar algo estranho com . — É a primeira de três.
Morte não teve tempo para responder qualquer coisa a Amor, uma vez que o choro de rompeu alto, acompanhado de gritos desesperados. Gritos de dor. Sob sua mão, a princesa sentia o coração de parado dentro do peito dele; sem batimentos.
partiu.
E nunca sentiu antes uma dor como a que sentia naquele momento. Uma dor que a queimava por dentro, agitava o sangue, apertava e quebrava o coração já tão maltratado. Uma dor que a corroía. Deixava a princesa enfraquecida. Com o rosto banhado de lágrimas salgadas, grossas e amargadas. Com gosto de ferro na boca, causado pelo corte no interior da bochecha direita. Uma dor que a fazia gritar por com todo ar que existia em seus pulmões.
Ela gritava o nome do amado em meio a pedidos para que ele voltasse, que a respondesse de volta.
Mas, sabia, nunca mais a responderia.
— Me desculpe — Amor pediu à princesa, que não era capaz de vê-lo e muito menos escutá-lo, mas conseguia senti-lo como ninguém mais era capaz. Mesmo em meio à dor que sentia naquele momento, ainda sentia amor dentro de si. Tanto amor por e por tudo que juntos viveram. — Eu sinto muito — disse e chorou junto com .
Princesa nunca mais amou ninguém como amou .
Quinze anos após a morte de , ela conheceu e se casou com o príncipe do reino que tinha uma aliança com o seu. Foi feliz ao lado de William, é verdade, mas jamais o amou. E o príncipe sempre soube disso, desde o primeiro dia. Não apenas ele, todos sabiam que jamais seria capaz de amar outro homem como amou .
O coração da princesa sempre pertenceu ao jovem que partiu cedo demais.
Informações: Casamento morganático¹ é quando um(a) nobre (príncipe, princesa, rei ou rainha), se casa com alguém de posição inferior (uma pessoa de baixa nobreza ou uma pessoa que não pertence à nobreza).
— E por que não conseguiria?
— Eu não sei fazer rap, . A minha voz não é tão boa assim e a minha dança não é a melhor — listou algumas de suas imperfeições, inseguranças. Aquelas que pareciam tão óbvias para , que revirou os olhos quando levantou a cabeça e viu a garota o encarando com uma sobrancelha erguida; como se o perguntasse se ele estava mesmo falando sério.
Ele estava.
— Você sabe… — Respirou fundo, pronto para expor de uma vez por todas o que tanto o atormentava nos últimos dias, e que tentou não compartilhar com ninguém. Nem com . Mas, como sempre, lá ele estava se abrindo para a garota que sempre prestava atenção nele. — Nós dois sabemos que eles buscam o melhor. O melhor cantor. O melhor rapper. O melhor dançarino. E se encontrarem alguém que é o melhor em todas estas coisas, eles vão querer essa pessoa. O melhor. E não o mediano. Ser bom em uma ou duas coisas não é o suficiente.
— Não existe uma pessoa que seja a melhor em tudo. Cada um é o melhor em uma área, ou duas, mas nunca em todas — afirmou, ficando de frente para o amigo, que suspirou. sorriu pequeno, na esperança de provocar um sorriso em , isso sempre acontecia entre eles: era fácil sorrir quando o outro o fazia, independente do momento. — Você pode não ser muito bom no rap, mas é incrível cantando. Sua voz é incrível, entenda isso. Ou você esqueceu que eu só durmo quando estou triste depois que escuto a sua voz? — Empurrou o ombro do rapaz com a ponta do dedo, orgulhosa quando sorriu pequeno. Hm, um progresso. — E eu nem gosto que falem comigo quando estou chorando, mas eu gosto de ouvir a sua voz porque ela me acalma.
sentiu-se tímida de repente, sabendo que provavelmente suas bochechas ficaram vermelhas e quentes.
Ultimamente, estava sendo difícil conseguir disfarçar como se sentia ao lado de , as coisas estavam confusas e sua mente de adolescente não conseguia compreender como o amigo passou a parecer tão diferente. Era assustador quando se pegava observando por tempo demais, e tudo ficava ainda pior quando uma irritação a tomava sempre que ouvia suas colegas do colégio fazendo elogios a .
Ela não estava sabendo lidar com aquelas novas sensações, os novos sentimentos e como seu coração parecia apressado em alguns momentos quando estava por perto. Era assustador.
— E você dança muito bem também! — apontou, apressada, querendo fugir do olhar alheio. — Você sempre ganha de mim quando vamos ao fliperama, e me convence a ir com você naquela máquina idiota de dança, e eu tenho certeza de que é só porque você sabe que vai ganhar e me humilhar!
— A máquina não é idiota, você que não consegue acompanhar os passos. — Riu e recebeu um guardanapo usado amassado em seu rosto.
— O ponto é que: você consegue. Porque você é rápido e consegue acompanhar os movimentos, não se perde em meio às instruções do jogo e não se distrai com tantos olhares em cima de você. Ou seja, você é o melhor! — enfatizou, quase gritando para que entendesse de uma vez por todas o quão incrível ele era.
queria muito ser capaz de fazer se ver do jeito que ela o via, sendo o melhor em tantas coisas e uma das pessoas mais importantes na vida da garota. Mas, como não era possível fazer isso literalmente, ela se esforçava falando claramente o que ela pensava sobre — ainda que isso a deixasse envergonhada.
— Vai dar tudo certo, — prometeu depois de um curto silêncio, bagunçando os fios escuros do cabelo do rapaz.
— E se não der? — A voz tremeu com o peso da insegurança. — E se for um erro? Se eu decepcionar os meus pais? Meu irmão? — grunhiu, apertando os olhos e puxando o ar que lhe faltava. — E se eu decepcionar você?
O olhar de ficou ainda mais brilhoso quando lágrimas salgadas apareceram, deixando turva a visão do jovem que passou rápido a manga do casaco nos olhos.
A ideia de deixar Dose para morar em Seul partiu de , há pouco mais de dois anos, quando ele confessou para seus pais e irmão mais velho o sonho que guardava em seu coração: o de ser cantor. O apoio da família foi imediato, como sempre acontecia quando demonstrava interesse por qualquer coisa, a menor que fosse. Uma conversa aconteceu para que o rapaz tivesse certeza de que era mesmo aquilo que queria, seus pais falaram com sobre o que a mudança representava, seu irmão o lembrou que a vida em Seul não seria como aquela que que tinham na cidade pequena e que não seria tratado como o protegido fora de casa. precisaria amadurecer e ser responsável — mas sempre teriam os pais e o irmão ao seu lado. Conversaram também sobre os riscos de não dar certo e ainda mais das chances de dar muito certo. E, duas horas depois de muito diálogo, lágrimas de emoção — principalmente da mãe de que via seu menino todo decidido do que queria bem na sua frente —, combinaram que deixariam Dose quando completasse doze anos de idade, o que deu aos mais velhos alguns tempo para observar o filho não desistir da ideia de ser cantor. Ele chegou até mesmo a fazer um canal no youtube, onde postava covers de algumas músicas que gostava. O canal possuía alguns milhares de inscritos que sempre deixavam comentários perguntando quando o garoto entraria para uma empresa, faria shows e lançaria álbuns — em breve, esperava.
Nesse meio tempo, foi necessário muito controle para que conseguisse lidar com o nervosismo que sempre aumentava quando ele pensava que logo estaria em Seul atrás de seu sonho, participando de alguns testes nas mais importantes empresas de música do país.
Além de autocontrole, também precisou muito do apoio dado por . Apoio fundamental nos últimos meses, talvez até mais do que o autocontrole que o rapaz passou a exercitar.
Quando estavam juntos, e imaginavam vários cenários para a carreira de sucesso que o garoto teria em breve; desde as músicas que alcançariam e ficariam por semanas no topo entre as mais ouvidas e compradas, os shows com os ingressos esgotados em poucos minutos, a agenda com espaço apenas para que conseguisse descansar e compor outras músicas — sempre melhores que as já lançadas —, e os videoclipes conceituais e com a fotografia impecável. Também idealizavam a equipe perfeita para trabalhar com , as pessoas que iriam cuidar e acompanhar o futuro-cantor-de-sucesso. Os planos eram lindos, esperançosos, desenhados com muita certeza de que em breve se tornariam realidade.
Pois, ainda que e fossem novos e não tivessem certezas de muitas coisas da vida, eles sabiam que o sonho de se tornaria real.
Entretanto, toda insegurança que lutava para não o consumir nos últimos meses, o tomou por completo naquele dia. No dia da pequena festa de despedida que seus pais organizaram. O jovem sentia tanto medo de falhar, de estar fazendo sua família se mudar para um lugar novo em busca de um sonho que poderia dar mais errado do que certo. Pensar que estava atrapalhando a vida daqueles que tanto ama, fazia querer chorar por horas a fio. E desistir também. Estava tão apavorado naquele dia que, na primeira oportunidade que teve, fugiu com para a casa de madeira na árvore em busca de um pouquinho de tranquilidade e coragem para dizer aos pais que tinha mudado de ideia, que não queria mais sair de Dose.
estava tão preparado para desistir de ir atrás de seu sonho, ao mesmo tempo em que sentia tanto medo e tristeza em fazê-lo, que descobriu o que o amigo pensava enquanto olhava para o rosto dele. Por isso, antes que fizesse ou falasse qualquer outra besteira — como aquela dita anteriormente sobre decepcionar seus pais, seu irmão e —, ela disse:
— Você só vai me decepcionar se desistir de tudo por medo, se não for.
— Mas e eu for e não conseguir? — perguntou, erguendo a cabeça, mostrando para a amiga o rosto já molhado por lágrimas salgadas que carregavam o medo que o jovem sentia. — Não ri. Idiota.
— Você vai conseguir, bobão, porque ninguém consegue dizer não para esse sorriso e essa carinha de dó — brincou, apertando o rosto alheio. grunhiu tentando escapar do aperto de , mas não conseguiu. — Você vai conseguir porque você é incrível também. E será um dos melhores, senão o maior cantor que nasceu em Ceblium! Mas — virou o rosto do amigo na direção do seu, quase rindo quando arregalou os olhos de susto pelo movimento repentino —, se por acaso você não conseguir… O que eu duvido muito que vá acontecer... Você vai atrás de outro sonho.
— Outro?
— Sim, mas não vamos falar disso agora porque a meta agora é ser o maior cantor de Ceblium! — Abanou a mão, tirando a atenção de daquilo que ele não precisaria fazer. — Agora, para de chorar! Se você sair daqui com a cara inchada de choro, sua mãe vai achar que eu te bati.
— Ela já acha que você me bate — confessou aquilo que não era segredo para , era óbvio que todos a achavam um pouquinho bruta no jeito de demonstrar amor. Estava acostumada e não se importava, nunca machucou ninguém com sua comunicação afetiva que às vezes envolvia alguns empurrões, tapas e socos. Tentou ser menos grosseira e mais delicada, como as garotas de sua idade, não conseguiu e desistiu de tentar. gostava de quem era. — Para!
Empurrou as mãos da amiga de seu rosto, recusando a ajuda de recolher as lágrimas que insistiam em sair dos olhos de . riu e continuou o que fazia, implicando com o garoto.
e se conheceram quando ainda eram bebês, suas famílias eram vizinhas de parede e seus pais melhores amigos desde a juventude. Por isso, foram criados juntos e continuaram sendo amigos quando entenderam que poderiam continuar tendo momentos juntos se assim quisessem. O laço foi fortalecido ao decorrer do tempo, com muitos filmes assistidos juntos, guerras de pipoca, banhos de mangueira no quintal, festas de aniversários, apostas bobas, risadas, briguinhas bobas que vez ou outra terminavam em uma briga séria — que logo era esquecida com alguma novidade que um precisava compartilhar com o outro. Estudaram nas mesmas escolas desde sempre também, quando necessário, defendiam um ao outro de crianças chatas e, agora já adolescentes, continuavam se defendendo de jovens chatos. Também passavam o intervalo juntos, ficava na primeira fila para assistir as partidas de futebol do time do colégio em que era o capitão. E ele sempre olhava primeiro na direção da amiga quando fazia gol, antes de ir comemorar com seus companheiros de time.
Apesar de gostarem dos amigos que conquistaram na escola e em outros lugares, como as duas amigas que fez na fazenda da avó, e a garota gostavam um pouco mais quando estavam a sós. Eles dois se bastavam, não precisavam de muitas pessoas ao redor para terem momentos incríveis que ficariam guardados em suas memórias para sempre. Sentiam-se mais seguros quando não tinha ninguém por perto, porque um conhecia o outro e, sendo assim, não precisavam esconder nada do que sentiam.
Entretanto, as coisas mudaram um pouquinho nos últimos meses.
Os hormônios da adolescência trouxeram consigo as dúvidas da primeira paixão. Fazendo com que e se sentissem estranhos um com o outro. Eles não sabiam muito bem o que era aquilo que passaram a sentir de uma hora para outra e, principalmente, como faziam para parar de sentir. Estavam com medo.
O pior era não poder compartilhar o que sentiam, pois, veja bem, se estivesse se sentindo afetada por um dos garotos do colégio ou por uma das meninas bonitas que sempre sorriam demais para ele, e certamente já teriam conversado sobre tudo aquilo, teriam rido juntos e elaborado planos para alguma declaração — caso valesse a pena. Porém, a situação era outra. A paixão fluía de para com , e dele para ela.
Não podiam conversar sobre o que sentiam porque estariam se declarando.
Então, tudo o que faziam era esperar que aqueles sentimentos e aquelas sensações sumissem de uma vez por todas. Desdenhavam e fingiam que não sentiam uma curiosidade crescer cada dia mais. Assim como ignoravam a dor que sentiam desde o dia em que avisou a amiga que sua família concordou em se mudar para Seul. Empurravam a dor da separação para trás ao colocarem a esperança do reencontro na frente.
— ! — O grito do irmão mais velho assustou , que arregalou os olhos e caiu sob no chão de madeira. Os corações juvenis aceleraram quando a mente notou a proximidade que existia entre os corpos. — A mamãe está te chamando, pirralho! — O novo grito despertou um estalo em e , fazendo-os se afastarem e levantarem num pulo.
Apesar de um pouco mais distantes, agora, os corações ainda estavam acelerados.
— Já vou! — gritou em resposta, evitando encarar a amiga, que fazia o mesmo. Em silêncio e constrangidos, limparam do jeito que conseguiram a sujeira que fizeram por ali. Desceram da casa de árvore com pressa, quase caiu em um dos degraus.
Enquanto andavam lado a lado do irmão de em direção à casa, onde terminava a festa de despedida, tinha as bochechas quentes enquanto o garoto limpava as palmas suadas das mãos no tecido da bermuda. Ambos amedrontados.
— Eles precisam… — Suspirou Amor, observando e entrarem na casa acompanhados do mais velho. — Por favor.
— Eu não posso, você sa…
— Você pode! Sempre pode! — gritou, interrompendo a irmã que virou o rosto em sua direção. Ainda que Destino não tivesse visão, suas írises brancas pareciam ser capazes de enxergar mais do que o corpo de quem estava à sua frente, parecia ver também o profundo do seu ser. Por isso, Amor se encolheu diante dos olhos brancos da irmã. — Por favor…
— Você sabe que eu não mudo o que foi escrito, apenas continuo a escrever a história que comecei para cada uma delas. — Apontou o queixo na direção da casa da família de , indicando as almas ali dentro. — Você sabe que se eu alterar o que foi escrito, para a minha felicidade ou qualquer um dos meus, Justiça não será piedosa em seu castigo.
— Eu sei, desculpa — sussurrou, envergonhado e triste. — Eu só quero que eles se reencontrem.
Amor olhou o livro marrom de capa dura que descansava no colo da irmã, acompanhado de uma caneta de ouro branco que marcava duas páginas dentro do livro. Naquele livro, era escrita a história de e . O nome deles cravados na capa.
— O reencontro vai acontecer — a deusa de cabelos alaranjados, pele clara, sardinhas adoráveis espalhadas no rosto e roupas leves, respondeu. — Mas, não nessa vida. E você também sabe disso. — Segurou a mão do irmão em sinal de apoio, consolo, e apertou a pele macia.
— Sim, eu sei… Eu só… — Suspirou, já tão cansado de ver e separados. E ainda não era o fim.
— Se arrepende da aposta?
Olhando para seus dedos entrelaçados aos da irmã, Amor respirou fundo e sentiu os olhos arderem e umedecer. No fundo, com o passar dos dias, começou a se sentir um bobo por ter caído na conversa de Ódio e ter aceitado aquela aposta. Deveria ter acreditado mais em si, na sua essência que colocou em e . Queria ser capaz de voltar no tempo, para o dia em que Ódio o abordou no Jardim das Almas. Faria tudo diferente se pudesse, mas, sabia, não podia.
Antes que desabafasse com a irmã, no entanto, a atenção dos deuses foi roubada com o barulho que a família e os amigos de faziam ao saírem da casa para tirarem uma foto todos juntos. Tinha mais espaço no jardim de trás da casa, daria para todos posarem para o registro.
Todos os seres humanos sorriam largamente para a foto, organizados lado a lado, alguns de pé, segurando deitado, e outros de joelhos ou sentados na grama baixa. ficou ajoelhada na frente do amigo, que colocou a mão em seu ombro para ter mais apoio, sentindo-se mais seguro ao encostar nela. O barulho permaneceu até o momento em que a foto foi tirada, depois de uma confusão gostosa entre acertar o time do celular apoiado porcamente em uma mesa de plástico e todos saírem bem.
O prata das lágrimas de Amor marcou a pele negra quando, observando aquela cena do alto, o deus se perguntou o que tinha feito.
Pois, o Amor sabia: não conseguiria realizar seu sonho quando fosse para Seul. Não seria um dos maiores ou o maior, como prometido por , cantor de Ceblium. Uma doença que seria descoberta nas cordas vocais durante um dos exames feitos antes de assinar o contrato com a gravadora o tiraria a possibilidade de viver do canto. Naquela vida, seria um advogado depois de alguns anos de muito estudo, muitas lágrimas derramadas e noites mal dormidas. Trabalharia horas demais dentro de um escritório, indo em fóruns e algumas audiências.
E, em todos os anos que teria de vida depois de sua ida para Seul, ele precisaria lidar com sua dor e frustração sozinho, contando apenas com sua família, pois não teria mais ao seu lado. Uma vez que eles dois nunca mais se encontrariam naquela vida. Não teria mais idas à casa da árvore, medos e sanduíches de frango compartilhados. não estaria lá para fazê-lo acreditar que tudo iria ficar bem no final, para pensar junto com ele em soluções ou em um novo sonho a ser seguido. Não haveria mais as implicâncias, os filmes assistidos juntos e, quem sabe, a declaração do que sentiam.
O reencontro tão aguardado e prometido jamais aconteceria, pois, uma semana após a mudança de e sua família, a mãe de seria transferida para outra filial da empresa em que trabalhava. No meio da mudança, os números de telefone seriam alterados e jamais compartilhados. Os pais dos jovens tentariam encontrar uns aos outros, mas o mundo é grande demais e não ter virado um cantor de sucesso não colaborou. Ele, assim como , era mais um em meio a tantas pessoas.
E mesmo depois de adulto, ainda que pensasse várias vezes na possibilidade de procurar pela amiga nas redes sociais, chegando a encontrá-la no Facebook, nunca teria coragem de informar a amiga no que tinha se transformado. “Ei, , fracassei como cantor, mas sou um advogado muito bom!”. Não dava. Sendo assim, iria preferir olhar as fotos compartilhadas pela ex-amiga, com cuidado para não curtir sem querer uma foto de com seus dois filhos ou um registro de seu casamento na igreja.
se contentaria em stalkear a felicidade de .
Ele ficaria feliz em saber que pelo menos um deles estava feliz.
E durante todo esse tempo, se perguntaria por onde andava o amigo do sorriso bonito e carinha de dó. Se ele sentia a falta dela como ela sentia a dele.
Com o silêncio das borboletas que o acompanhava e o aperto que sentia no peito, as lágrimas marcaram com mais força o rosto de Amor até que se transformassem em um choro doído. Imediatamente, com o choro do deus, uma chuva forte começou a molhar Ceblium por inteira.
Os pingos grossos da água encharcavam rapidamente o que tocava, incluindo e que, ao contrário dos adultos que correram para o abrigo da casa, olharam para o céu de nuvens escuras, e abriram os braços e a boca. Quando se olharam, os dois jovens sorriram e deram as mãos para rodarem na chuva que os banhava.
e sorriam enquanto Amor chorava.
Mas, dali poucos dias, sem saber, eles iriam chorar junto com o deus.
tinha o sono pesado, principalmente quando ia dormir muito cansado, mas, ainda assim, foi difícil continuar dormindo com a movimentação constante que acontecia ao seu redor. Com os olhos abertos, se acostumou com a claridade que entrava pela cortina um pouco aberta, a cabeça latejava e pesava, assim com o corpo que estava um pouco mais quente que o normal.
Ele se sentia confuso. Bagunçado por dentro.
Se sentou na cama devagar, fechando os olhos quando a cabeça pesou demais, quando o frio atingiu o corpo ao que o cobertor deslizou e expôs o tronco nu. franziu o cenho ao notar que tudo o que vestia era uma cueca azul, ele tinha certeza de ter vestido um short e uma camisa além da peça íntima na noite passada depois do banho.
Que porra aconteceu?, pensou.
Entretanto, não teve tempo para buscar por respostas em sua mente. Precisava focar no agora, em Adora, uma cantora da mesma gravadora que , vestindo apressada um vestido verde enquanto tentava cobrir o conjunto de lingerie preto que usava.
Agora, além de confuso, também estava assustado. Pois era a primeira vez que via Adora em trajes íntimos, principalmente dentro do quarto dele. E não conseguir se lembrar de como ele parou de cueca em sua cama e por qual motivo Adora tirou o vestido, deixou amedrontado também.
Estava pronto para perguntar em voz alta o que diabos estava acontecendo, pedir por explicações detalhadas, mas a presença de próxima a porta do quarto tirou o foco dele na colega de trabalho.
— , eu… Eu juro que…
Ainda que não tivesse como explicar a situação em que se encontrava, ele sentia que precisava falar alguma coisa. Qualquer coisa para mudar a forma triste com que o encarava. Mas estava difícil. E ficou ainda pior quando Adora saiu do quarto a passos apressados, como quem corria de alguma coisa. Talvez de dar as explicações que só ela tinha.
O barulho da porta da frente batendo fez com que pulasse de susto, trazendo-a de volta para a dolorosa realidade.
levantou a cama aflito, enrolando o cobertor no corpo que viu várias vezes. No entanto, naquele momento, diferente dos outros momentos íntimos de amor e desejo que tivera , sentia-se pego em flagrante cometendo um crime. Envergonhado.
E, meu Deus, ele nem sabia o que tinha feito… Se é que tinha feito algo de errado.
— Eu não sei o que aconteceu, eu juro — garantiu com a voz falha, usando o clichê que soou desesperado em sua voz. — Eu não sei como ela… Como… Eu…
— Não fala nada. — apertou os olhos tão forte quanto as próprias mãos em punho, engolindo o nó que formou em sua garganta e começou a sufocá-la. — Não se atreva. Não minta pra mim.
— Eu não estou mentindo. Eu realmente não sei como…
— Não chega perto. — Ergueu o braço na direção do homem, o dedo em riste delimitando com ênfase o espaço que deveria existir entre os dois corpos que por tantas vezes quase se tornaram um só. — Você sempre me disse que vocês não tiveram nada, nem mesmo antes da gente se conhecer. Que ela não fazia o seu tipo, que sempre foram colegas de trabalho que… Vocês… Meu Deus. — Riu, triste, desacreditada, sentindo-se uma idiota.
— E tudo isso é verdade! Nós dois nunca tivemos nada além do profissional. Amor, me ouve… — implorou, largando o cobertor para vestir o shorts do pijama que vestiu na noite anterior, e apenas Deus e Adora sabiam como foi para fora de seu corpo. — Eu sei que é difícil, mas, por favor, acredita em mim. Eu não sei como tudo isso aconteceu, como… Eu não sei.
Suspirou com o coração acelerado no peito, a cabeça doendo e os olhos ardendo. sentia-se de mãos atadas, sem controle algum. No completo escuro.
— Eu não quero ouvir a sua voz. — Passou as mãos pelo rosto, tirando apressada as lágrimas salgadas que molhavam a pele macia. — Eu quero que você suma da minha vida. Eu quero… Ir embora — sussurrou mais para si, pegando apressada a bolsa que caiu de sua mão com o susto que levou ao adentrar o quarto minutos antes.
A surpresa que levou ao voltar para o apartamento que dividia com e o encontrar adormecido na cama deles com Adora ao seu lado foi tão grande que ela nunca conseguiria descrever e esquecer o que sentiu naquele momento. Principalmente quando chamou pelo noivo e quem respondeu foi Adora, que se virou na cama, ainda nos braços de , que demorou a despertar.
Permanecer ali qualquer minuto a mais seria tortura. Sobretudo porque o quarto estava tomado por um perfume doce que não pertencia a , a roupa de cama estava bagunçada, as cortinas das janelas abertas permitiam a entrada do vento frio do jeito que sempre detestou. Ela não reconhecia mais aquele cômodo, não era mais o seu quarto e de . Sentia-se uma intrusa no mundo que, até poucos minutos atrás, achava ser apenas seu e de .
— , por favor. — Foi atrás dela, tentando acompanhar os passos rápidos, conseguindo por um fio segurar o braço da mulher que se virou e o empurrou desfazendo o contato. — Não aconteceu nada, eu juro!
— Como tem tanta certeza disso? Você mesmo disse que não sabe o que aconteceu.
— Eu vou descobrir exatamente o que aconteceu. Mas, por favor, acredite em mim…
— Como acreditar em você, se você não sabe o que a mulher que eu sempre disse ser a fim de você estava fazendo deitada na nossa cama? Nos seus braços! Usando lingerie! Com o cabelo bagunçado e a maquiagem borrada! Com uma expressão satisfeita…
— Não, não diz isso! Não pensa nisso.
— Você quer que eu diga e pense o que?! Me diz! — gritou, abrindo os braços, a tristeza e decepção dando lugar para a raiva. Sentia-se traída por quem mais confiava em toda sua vida. Por aquele que tinha todo o seu amor.
— Eu fui com o Brian para a festa de lançamento do , como eu te falei que iria. Ficamos lá por algumas horas, bebi uma ou duas taças de champanhe, tirei fotos e pedi ao Brian que me trouxesse para casa quando comecei a me sentir enjoado e tonto. Deve ter sido porque bebi álcool com estômago vazio, não sei. — puxava de cada canto da mente detalhes do que fez na noite anterior, fechando os olhos em busca de mais informações, apertando as mãos, agoniado por saber tão pouco sobre a própria vida. — Eu lembro de ter tomado banho depois que cheguei em casa, comi alguma coisa salgada pra ver se o enjoo diminuía, e fui pra cama. E foi só isso… Eu só me lembro disso.
Fitou a mulher que o encarava e escutava atenta cada palavra dita por ele e, que, ao final do relatório, sorriu:
— Eu não consigo acreditar em você. Em nem uma palavra que saiu da sua boca.
— Por favor…
— Eu sinto que você está me escondendo alguma coisa porque a sua explicação está perfeita demais para a cena que eu vi. Ninguém me contou, . Dessa vez, não se trata de boatos que a mídia espalhou. Eu vi. — Apontou para os próprios olhos, enfatizando, e recebeu um suspiro de que abriu a boca para falar, mas desistiu. — Como você quer que eu acredite que você simplesmente chegou em casa, tomou banho e foi dormir sozinho, se, quando eu cheguei aqui, eu te encontrei acompanhado? Como você quer que eu acredite que Adora, magicamente, entrou sozinha se apenas nós dois temos a chave da porta? Alguém abriu a porta para ela.
— Não fui eu — murmurou.
sabia que não conseguiria reverter a situação porque ele também sabia da cisma que tinha com Adora, uma vez que a colega de trabalho dele nunca conseguiu esconder a paixão que sentia pelo cantor. E sempre deixou claro que percebia as reais intenções enquanto desconversava por não querer que ficassem falando tanto naquele assunto quando podiam aproveitar os momentos a dois.
O fato mais importante para era que o seu amor pertencia a , sempre foi assim, desde a primeira vez em que a viu, quando foi ao lançamento de um filme que interpretava a personagem principal. lembrava com detalhes daquele dia; como seu coração acelerou ao ver a atriz — ainda desconhecida para si —, tão bela no vestido verde, com os cabelos penteados para um lado e saltos finos nos pés para ficar um pouco mais alta. Ele se sentiu um adolescente naquela noite, não conseguindo deixar de encarar que, em dado momento, o cumprimentou ao serem apresentados pelo diretor do filme. O primeiro encontro aconteceu menos de um mês depois, sendo tão leve e divertido que foi impossível ficarem longe um do outro. Não dava mais para viverem suas vidas como se não se conhecessem, como se seus mundos não tivessem sido balançados com a chegada do outro.
— Me conta a verdade, por favor — implorou num fio de voz, abatida pela dor que sentia no peito que começava a se tornar física.
De todos os finais que sua insegurança a fazia pensar vez ou outra para seu relacionamento com , aquele nunca foi uma possibilidade. Por isso, , mesmo com raiva, pedia pela verdade. Ela só queria a verdade, fosse ela qual fosse. Se a traiu, como tudo indicava que sim, ela queria saber o motivo. Queria que ele contasse o que faltou na relação deles, o que ele sentiu quando teve Adora em seus braços...
Mais do que isso, ainda que tudo indicasse que tivesse jogado baixo demais, queria acreditar que nada daquilo era real. Que tudo era um terrível engano, um plano talvez, e que falava a verdade ao dizer que não sabia o que tinha acontecido. Mas não conseguia acreditar nisso. Principalmente porque desde o primeiro segundo que viu Adora com , só lembrava das inúmeras traições que seu pai fez com sua mãe.
A dor que sentia por se sentir traída por era cruel, quase rasgava o peito, pois acreditava que ele seria diferente de seu pai. Que o relacionamento deles dois era muito oposto ao de sua mãe e seu pai.
— Essa é a verdade, eu não sei.
negou com a cabeça, mordendo o interior da boca para segurar o choro que travava a garganta. Lágrimas já tinham sido derramadas, é verdade, mas nada se comparava ao choro que tinha dentro de si. Ela queria chorar e gritar, pôr para fora toda aquela dor que diminuía e apertava seu coração. Mas não queria se desmanchar na frente de , ele não merecia mais vê-la vulnerável. Quebrada.
Quebrada por ele.
Assim, balançando os ombros e respirando fundo pela última vez dentro daquele apartamento, deu as costas para e seguiu em direção à porta. Ainda que o cantor quisesse segurar a mulher, ele sabia que não podia. Não tinha esse direito, não enquanto ele mesmo não soubesse o que infernos tinha acontecido e então pudesse explicar tudo para . Antes que fosse tarde demais.
— Você sabe a verdade.
— Sim — respondeu Ódio, balançando os pés que não tocavam o chão enquanto o deus estava sentado na parte de trás do sofá, bem de frente para o local que encarava a porta do apartamento. — E essa é a melhor parte. Saber a verdade.
— Seu trabalho é sujo.
Ódio não poderia se importar menos com o que o irmão achava de si e de suas atitudes, ele era feito daquilo; de momentos raivosos, brigas, gritos, agressões e términos bagunçados. Ser capaz de causar intrigas era a sua especialidade, e ele gostava tanto de ser daquela maneira. Chegava a sorrir quando via um de seus planos dando certo, quando os seres humanos sempre tão mesquinhos e egoístas ouviam os sussurros que o deus dava em seus ouvidos e eles acreditavam ser ‘a voz da consciência’.
Era divertido. Principalmente quando assistia a um de seus irmãos ou, às vezes, mais de um deles, tentando arrumar a bagunça que Ódio fazia. E tudo ficava melhor quando nenhum deles conseguia desfazer o que o deus havia feito.
Assistir os seres humanos caírem em desgraça ao final do dia, ao decorrer de suas vidas, tudo por causa das escolhas erradas, causava um sorriso largo nos lábios do deus. As duas pontas da língua passavam pelos lábios avermelhados, enquanto os olhos brilhavam.
— Você choraminga demais — acusou o irmão que encarava ainda estava parado na sala, de cabeça baixa e os olhos fechados. — Parece até que alguém morreu, credo — desdenhou do sofrimento alheio, revirando os olhos, impaciente.
— Ele está triste. Porque ele a perdeu… De novo — apontou, olhando rápido para o irmão que ergueu as sobrancelhas.
— E eu com isso? A culpa é minha?
Amor não respondeu ao irmão, preferiu o silêncio. Sabia que a culpa não era inteiramente do outro deus, afinal, a aposta só aconteceu porque ele aceitou. Estava assistindo e serem separados porque ele quis provar a Ódio que o amor deles era mais forte que qualquer obstáculo. Que ele era mais forte que o irmão. Foi imaturo, sabia disso. Um pouco egoísta também. Culpava-se em silêncio, chorava todas as noites e se perguntava quem era de verdade…
Mãe dizia que Amor era bom, mas ele não acreditava tanto assim na deusa. Afinal, como poderia ser bom se foi capaz de fazer uma aposta que causa sofrimento, vida após vida, a duas almas?
— Ele vai descobrir a verdade? — murmurou, observando o irmão folhear com indiferença e grosseira as páginas do livro da história de e , que já passaram pelas mãos de Morte, Destino e agora estava sob o poder de Ódio.
— Não — assobiou a resposta e riu quando viu os olhos do irmão (sempre tão sentimental) aumentarem de tamanho. — Eu não faria algo tão clichê, irmão…
— O que você… Como você… — Avançou na direção do outro deus para estapeá-lo, tentar tirar dele o livro talvez, em um movimento inesperado.
Mas, Ódio se colocou de pé rapidamente, segurando o livro pesado ao lado do corpo, olhando forte para o irmão que ousou pensar ser capaz de agredi-lo.
— Você não seria capaz…
Ódio estava certo, Amor não seria capaz.
O deus não era capaz de tirar as formigas do reino que tentavam subir em seus pés descalços, quem dirá de agredir alguém. Principalmente seu irmão. Sua atitude foi impensada e ainda que não tivesse agredido Ódio, Amor sentia-se culpado apenas por ter pensado por uma fração de segundos que seria capaz de avançar em alguém.
— Ele vai sair daqui dez minutos para ir atrás de Adora — Ódio começou a contar seu plano, aproximando-se devagar do irmão que, nitidamente envergonhado da atitude anterior, encarava o piso de tábua corrida. — E não vai encontrá-la. Porque Adora vai estar na casa do Brian, contando a ele tudo o que aconteceu aqui. Eles vão beber para comemorar. Vão ficar felizes.
— Não, não vão. Adora não… — Ergueu o rosto divino para encarar o irmão. — Ela não está feliz com isso. Ela me sente.
— Já passou da hora de você entender que não é porque esses seres pequenos sentem amor, que eles sabem amar. — Tocou com a ponta do indicador a testa do irmão, empurrando-o, e sorrindo quando o deus deu alguns passos incertos para trás. — Continuando…
Respirou fundo, dramatizando, o sorriso ficando maior ao voltar a compartilhar com o irmão os detalhes de seu plano maravilhoso:
— Adora e Brian vão comemorar — enfatizou o nome da cantora, orgulhoso de ver os olhos do irmão ganharem um brilho a mais. Lágrimas. — vai passar algum tempo em busca de pistas do que aconteceu na noite de ontem e na manhã de hoje, vai perguntar ao seu agente tão querido o que ele sabe sobre os acontecimentos na festa e Brian vai repetir aquilo que disse para : ele não sabe o que aconteceu…
A atenção dos dois deuses foi roubada pelos movimentos do humano que voltou apressado para o quarto.
Ainda confuso e agora com o coração apertado de dor e raiva por ter perdido e não saber o que havia acontecido em sua própria vida nas últimas horas, procurou pela carteira na bagunça do quarto e gritou quando a encontrou dentro do bolso da calça jeans que estava jogada no chão do banheiro.
O grito dele fez com que Amor pulasse onde estava.
Ódio, no entanto, riu.
— Então, vai tentar saber por Adora. E não vai conseguir… Porque ela o ama, mas o amor dela se mistura e se perde na inveja que ela sente de — sussurrou próximo ao ouvido do irmão, com o corpo atrás do dele. — Então… — Segurou o ombro do outro, o rosto ao lado do irmão. — Mesmo se sentindo culpada e arrependida, Adora vai demorar a se convencer de que precisa contar a verdade. Mas, esse dia vai chegar… Porque as mulheres são fracas.
Segurou com força o corpo de Amor que tentou se virar para rebater a frase dita, para repreender o irmão por aquele pensamento ridículo.
— Ela vai contar para Brian como está se sentindo, vai dizer que não é justo o que fizeram e todas essas bobeiras. — Revirou os olhos. Ódio detestava quando os humanos achavam-se donos de si mesmos, quando pensavam que podiam decidir todo o caminho de suas vidas. Que podiam ser maiores que os deuses... Que ele. — Mas, Brian não vai aceitar. É claro que não. Porque ele sim é um ser humano quase decente.
— Ele te sentir não faz dele uma pessoa decente… — respondeu, fazendo força para se livrar do aperto do irmão. — Pelo contrário, o torna alguém desprezível.
— Mamãe ficará chateada ao saber que fui xingado pelo meu próprio irmão… — Levou a mão ao peito e formou um bico nos lábios, falsamente. — Mas, eu agradeço pelo elogio.
apareceu na sala depois de alguns minutos no quarto, calçou os tênis de qualquer jeito e pegou as chaves no aparador ao lado da porta. Vê-lo desesperado daquela maneira fez com que Amor quisesse segui-lo, acompanhá-lo de perto na sua busca por notícias e quem sabe, ajudá-lo minimamente…
Antes que o deus sumisse para seguir os rastros do humano, a voz de Ódio o prendeu naquele apartamento: — Adora vai morrer no dia em que for contar a o que ela e Brian fizeram. Brian é quem vai pagar ao motorista do carro que vai atropelá-la quando ela estiver quase se encontrando com .
— Não…
— Eu não sei perfeitamente o que Mãe pensou quando te fez, mas creio que tenha faltado um pouco de consciência sobre algumas coisas. — Ignorando os sussurros em negação do irmão, Ódio aproximou-se e parou em frente a ele. — Os seres humanos são animais miseráveis e egoístas demais para pensarem uns nos outros, irmão. Nem todos querem amar, e isso não tem nada a ver com histórias do passado… São escolhas. Alguns escolhem ser assim, decidem, simplesmente, me sentir. Muitos deles estão pouco se fodendo para os sentimentos alheios, só pensam em dinheiro e na fama, e são capazes de tudo para tê-los. Brian é assim, e ele não vai aceitar perder tudo o que aquele homem fraco, que você tanto gosta, dá a ele. Principalmente por amor. Brian não acredita no amor. Não acredita em você. Nunca acreditou.
— Mas Adora é uma boa pessoa, ela não…
Balbuciou ainda em choque com a revelação, as mãos esquentando à medida que o choro lhe subia à garganta e o deixava tonto. Amor sabia que Ódio e Morte eram próximos, que onde um estava era quase certo de haver a presença do outro também, mas… Não esperava que a irmã fizesse parte do plano do irmão.
Anos após a criação de cada um deles, e Amor ainda não conseguia entender a mente obscura de Ódio. Entendia menos ainda quando lhes diziam que eles dois eram mais parecidos do que julgavam ser, isso era uma mentira imensa porque Amor jamais seria capaz de pensar ou ficar feliz em fazer coisas tão ruins.
— Pessoas boas são manipuláveis. E quando tentam fazer o que está fora do planejado… — Deu de ombros, sabendo que o irmão entenderia o que ele queria falar.
— Você não podia envolver Morte assim…
— Não? Quem disse isso… Você? — A risada de Ódio causou calafrios em Amor. — Bom, agora eu preciso ir. Tenho mais o que fazer e… isso aqui... — ergueu o livro e apontou para o objeto com a outra mão, sorrindo maior ao ver a primeira lágrima prateada marcar a tez negra — vai comigo.
Amor tentou controlar seu choro quando se viu sozinho no apartamento em que estivera algumas vezes para assistir alguns dos momentos felizes que e viveram ali. Se esforçou em segurar as lágrimas, apertando com força o tecido fino da roupa que usava, não queria chorar porque sabia que, se o fizesse uma tempestade cairia sobre a cidade e poderia sofrer algum acidente de trânsito por isso. Amor sabia que Ódio não lhe contou todo seu plano, por isso preferia ser cuidadoso.
— Essa será a última vez, eu os prometo — sussurrou, encarando um dos quadros de fotografias que ficava pendurado em uma das paredes. Na foto, que era uma selfie, olhava para a câmera e sorria enquanto sorria olhando para a mulher. Ele tinha essa facilidade em sorrir e manter seu olhar preso em quando estavam juntos. — Eu prometo que na próxima tudo será diferente. Vocês serão felizes. Tão felizes que irão se perguntar se é tudo real ou mais um sonho…
Quando olhou para o segundo quadro na parede, Amor precisou morder o próprio lábio e fechar os olhos alguns minutos. Estava tão difícil manter o choro dentro de si…
Do lado de fora, o vento frio começava a balançar galhos de árvores, agitava roupas das pessoas que andavam pela rua e tentavam entender como o tempo estava mudando tão de repente. As nuvens ficaram escuras, pesadas de água… De lágrimas.
— Eu só peço que se lembrem de mim… — Caiu sob os próprios joelhos, o peso da culpa por ter aceitado fazer aquela aposta com Ódio sendo maior que o peso corporal. — Me sintam. E me deixem cuidar de vocês… Por favor.
Na história de Uplax, nunca houve uma chuva tão forte como a que atingiu a cidade naquele dia.
tinha o sono pesado, principalmente quando ia dormir muito cansado, mas, ainda assim, foi difícil continuar dormindo com a movimentação constante que acontecia ao seu redor. Com os olhos abertos, se acostumou com a claridade que entrava pela cortina um pouco aberta, a cabeça latejava e pesava, assim com o corpo que estava um pouco mais quente que o normal.
Ele se sentia confuso. Bagunçado por dentro.
Se sentou na cama devagar, fechando os olhos quando a cabeça pesou demais, quando o frio atingiu o corpo ao que o cobertor deslizou e expôs o tronco nu. franziu o cenho ao notar que tudo o que vestia era uma cueca azul, ele tinha certeza de ter vestido um short e uma camisa além da peça íntima na noite passada depois do banho.
Que porra aconteceu?, pensou.
Entretanto, não teve tempo para buscar por respostas em sua mente. Precisava focar no agora, em Adora, uma cantora da mesma gravadora que , vestindo apressada um vestido verde enquanto tentava cobrir o conjunto de lingerie preto que usava.
Agora, além de confuso, também estava assustado. Pois era a primeira vez que via Adora em trajes íntimos, principalmente dentro do quarto dele. E não conseguir se lembrar de como ele parou de cueca em sua cama e por qual motivo Adora tirou o vestido, deixou amedrontado também.
Estava pronto para perguntar em voz alta o que diabos estava acontecendo, pedir por explicações detalhadas, mas a presença de próxima a porta do quarto tirou o foco dele na colega de trabalho.
— , eu… Eu juro que…
Ainda que não tivesse como explicar a situação em que se encontrava, ele sentia que precisava falar alguma coisa. Qualquer coisa para mudar a forma triste com que o encarava. Mas estava difícil. E ficou ainda pior quando Adora saiu do quarto a passos apressados, como quem corria de alguma coisa. Talvez de dar as explicações que só ela tinha.
O barulho da porta da frente batendo fez com que pulasse de susto, trazendo-a de volta para a dolorosa realidade.
levantou a cama aflito, enrolando o cobertor no corpo que viu várias vezes. No entanto, naquele momento, diferente dos outros momentos íntimos de amor e desejo que tivera , sentia-se pego em flagrante cometendo um crime. Envergonhado.
E, meu Deus, ele nem sabia o que tinha feito… Se é que tinha feito algo de errado.
— Eu não sei o que aconteceu, eu juro — garantiu com a voz falha, usando o clichê que soou desesperado em sua voz. — Eu não sei como ela… Como… Eu…
— Não fala nada. — apertou os olhos tão forte quanto as próprias mãos em punho, engolindo o nó que formou em sua garganta e começou a sufocá-la. — Não se atreva. Não minta pra mim.
— Eu não estou mentindo. Eu realmente não sei como…
— Não chega perto. — Ergueu o braço na direção do homem, o dedo em riste delimitando com ênfase o espaço que deveria existir entre os dois corpos que por tantas vezes quase se tornaram um só. — Você sempre me disse que vocês não tiveram nada, nem mesmo antes da gente se conhecer. Que ela não fazia o seu tipo, que sempre foram colegas de trabalho que… Vocês… Meu Deus. — Riu, triste, desacreditada, sentindo-se uma idiota.
— E tudo isso é verdade! Nós dois nunca tivemos nada além do profissional. Amor, me ouve… — implorou, largando o cobertor para vestir o shorts do pijama que vestiu na noite anterior, e apenas Deus e Adora sabiam como foi para fora de seu corpo. — Eu sei que é difícil, mas, por favor, acredita em mim. Eu não sei como tudo isso aconteceu, como… Eu não sei.
Suspirou com o coração acelerado no peito, a cabeça doendo e os olhos ardendo. sentia-se de mãos atadas, sem controle algum. No completo escuro.
— Eu não quero ouvir a sua voz. — Passou as mãos pelo rosto, tirando apressada as lágrimas salgadas que molhavam a pele macia. — Eu quero que você suma da minha vida. Eu quero… Ir embora — sussurrou mais para si, pegando apressada a bolsa que caiu de sua mão com o susto que levou ao adentrar o quarto minutos antes.
A surpresa que levou ao voltar para o apartamento que dividia com e o encontrar adormecido na cama deles com Adora ao seu lado foi tão grande que ela nunca conseguiria descrever e esquecer o que sentiu naquele momento. Principalmente quando chamou pelo noivo e quem respondeu foi Adora, que se virou na cama, ainda nos braços de , que demorou a despertar.
Permanecer ali qualquer minuto a mais seria tortura. Sobretudo porque o quarto estava tomado por um perfume doce que não pertencia a , a roupa de cama estava bagunçada, as cortinas das janelas abertas permitiam a entrada do vento frio do jeito que sempre detestou. Ela não reconhecia mais aquele cômodo, não era mais o seu quarto e de . Sentia-se uma intrusa no mundo que, até poucos minutos atrás, achava ser apenas seu e de .
— , por favor. — Foi atrás dela, tentando acompanhar os passos rápidos, conseguindo por um fio segurar o braço da mulher que se virou e o empurrou desfazendo o contato. — Não aconteceu nada, eu juro!
— Como tem tanta certeza disso? Você mesmo disse que não sabe o que aconteceu.
— Eu vou descobrir exatamente o que aconteceu. Mas, por favor, acredite em mim…
— Como acreditar em você, se você não sabe o que a mulher que eu sempre disse ser a fim de você estava fazendo deitada na nossa cama? Nos seus braços! Usando lingerie! Com o cabelo bagunçado e a maquiagem borrada! Com uma expressão satisfeita…
— Não, não diz isso! Não pensa nisso.
— Você quer que eu diga e pense o que?! Me diz! — gritou, abrindo os braços, a tristeza e decepção dando lugar para a raiva. Sentia-se traída por quem mais confiava em toda sua vida. Por aquele que tinha todo o seu amor.
— Eu fui com o Brian para a festa de lançamento do , como eu te falei que iria. Ficamos lá por algumas horas, bebi uma ou duas taças de champanhe, tirei fotos e pedi ao Brian que me trouxesse para casa quando comecei a me sentir enjoado e tonto. Deve ter sido porque bebi álcool com estômago vazio, não sei. — puxava de cada canto da mente detalhes do que fez na noite anterior, fechando os olhos em busca de mais informações, apertando as mãos, agoniado por saber tão pouco sobre a própria vida. — Eu lembro de ter tomado banho depois que cheguei em casa, comi alguma coisa salgada pra ver se o enjoo diminuía, e fui pra cama. E foi só isso… Eu só me lembro disso.
Fitou a mulher que o encarava e escutava atenta cada palavra dita por ele e, que, ao final do relatório, sorriu:
— Eu não consigo acreditar em você. Em nem uma palavra que saiu da sua boca.
— Por favor…
— Eu sinto que você está me escondendo alguma coisa porque a sua explicação está perfeita demais para a cena que eu vi. Ninguém me contou, . Dessa vez, não se trata de boatos que a mídia espalhou. Eu vi. — Apontou para os próprios olhos, enfatizando, e recebeu um suspiro de que abriu a boca para falar, mas desistiu. — Como você quer que eu acredite que você simplesmente chegou em casa, tomou banho e foi dormir sozinho, se, quando eu cheguei aqui, eu te encontrei acompanhado? Como você quer que eu acredite que Adora, magicamente, entrou sozinha se apenas nós dois temos a chave da porta? Alguém abriu a porta para ela.
— Não fui eu — murmurou.
sabia que não conseguiria reverter a situação porque ele também sabia da cisma que tinha com Adora, uma vez que a colega de trabalho dele nunca conseguiu esconder a paixão que sentia pelo cantor. E sempre deixou claro que percebia as reais intenções enquanto desconversava por não querer que ficassem falando tanto naquele assunto quando podiam aproveitar os momentos a dois.
O fato mais importante para era que o seu amor pertencia a , sempre foi assim, desde a primeira vez em que a viu, quando foi ao lançamento de um filme que interpretava a personagem principal. lembrava com detalhes daquele dia; como seu coração acelerou ao ver a atriz — ainda desconhecida para si —, tão bela no vestido verde, com os cabelos penteados para um lado e saltos finos nos pés para ficar um pouco mais alta. Ele se sentiu um adolescente naquela noite, não conseguindo deixar de encarar que, em dado momento, o cumprimentou ao serem apresentados pelo diretor do filme. O primeiro encontro aconteceu menos de um mês depois, sendo tão leve e divertido que foi impossível ficarem longe um do outro. Não dava mais para viverem suas vidas como se não se conhecessem, como se seus mundos não tivessem sido balançados com a chegada do outro.
— Me conta a verdade, por favor — implorou num fio de voz, abatida pela dor que sentia no peito que começava a se tornar física.
De todos os finais que sua insegurança a fazia pensar vez ou outra para seu relacionamento com , aquele nunca foi uma possibilidade. Por isso, , mesmo com raiva, pedia pela verdade. Ela só queria a verdade, fosse ela qual fosse. Se a traiu, como tudo indicava que sim, ela queria saber o motivo. Queria que ele contasse o que faltou na relação deles, o que ele sentiu quando teve Adora em seus braços...
Mais do que isso, ainda que tudo indicasse que tivesse jogado baixo demais, queria acreditar que nada daquilo era real. Que tudo era um terrível engano, um plano talvez, e que falava a verdade ao dizer que não sabia o que tinha acontecido. Mas não conseguia acreditar nisso. Principalmente porque desde o primeiro segundo que viu Adora com , só lembrava das inúmeras traições que seu pai fez com sua mãe.
A dor que sentia por se sentir traída por era cruel, quase rasgava o peito, pois acreditava que ele seria diferente de seu pai. Que o relacionamento deles dois era muito oposto ao de sua mãe e seu pai.
— Essa é a verdade, eu não sei.
negou com a cabeça, mordendo o interior da boca para segurar o choro que travava a garganta. Lágrimas já tinham sido derramadas, é verdade, mas nada se comparava ao choro que tinha dentro de si. Ela queria chorar e gritar, pôr para fora toda aquela dor que diminuía e apertava seu coração. Mas não queria se desmanchar na frente de , ele não merecia mais vê-la vulnerável. Quebrada.
Quebrada por ele.
Assim, balançando os ombros e respirando fundo pela última vez dentro daquele apartamento, deu as costas para e seguiu em direção à porta. Ainda que o cantor quisesse segurar a mulher, ele sabia que não podia. Não tinha esse direito, não enquanto ele mesmo não soubesse o que infernos tinha acontecido e então pudesse explicar tudo para . Antes que fosse tarde demais.
— Você sabe a verdade.
— Sim — respondeu Ódio, balançando os pés que não tocavam o chão enquanto o deus estava sentado na parte de trás do sofá, bem de frente para o local que encarava a porta do apartamento. — E essa é a melhor parte. Saber a verdade.
— Seu trabalho é sujo.
Ódio não poderia se importar menos com o que o irmão achava de si e de suas atitudes, ele era feito daquilo; de momentos raivosos, brigas, gritos, agressões e términos bagunçados. Ser capaz de causar intrigas era a sua especialidade, e ele gostava tanto de ser daquela maneira. Chegava a sorrir quando via um de seus planos dando certo, quando os seres humanos sempre tão mesquinhos e egoístas ouviam os sussurros que o deus dava em seus ouvidos e eles acreditavam ser ‘a voz da consciência’.
Era divertido. Principalmente quando assistia a um de seus irmãos ou, às vezes, mais de um deles, tentando arrumar a bagunça que Ódio fazia. E tudo ficava melhor quando nenhum deles conseguia desfazer o que o deus havia feito.
Assistir os seres humanos caírem em desgraça ao final do dia, ao decorrer de suas vidas, tudo por causa das escolhas erradas, causava um sorriso largo nos lábios do deus. As duas pontas da língua passavam pelos lábios avermelhados, enquanto os olhos brilhavam.
— Você choraminga demais — acusou o irmão que encarava ainda estava parado na sala, de cabeça baixa e os olhos fechados. — Parece até que alguém morreu, credo — desdenhou do sofrimento alheio, revirando os olhos, impaciente.
— Ele está triste. Porque ele a perdeu… De novo — apontou, olhando rápido para o irmão que ergueu as sobrancelhas.
— E eu com isso? A culpa é minha?
Amor não respondeu ao irmão, preferiu o silêncio. Sabia que a culpa não era inteiramente do outro deus, afinal, a aposta só aconteceu porque ele aceitou. Estava assistindo e serem separados porque ele quis provar a Ódio que o amor deles era mais forte que qualquer obstáculo. Que ele era mais forte que o irmão. Foi imaturo, sabia disso. Um pouco egoísta também. Culpava-se em silêncio, chorava todas as noites e se perguntava quem era de verdade…
Mãe dizia que Amor era bom, mas ele não acreditava tanto assim na deusa. Afinal, como poderia ser bom se foi capaz de fazer uma aposta que causa sofrimento, vida após vida, a duas almas?
— Ele vai descobrir a verdade? — murmurou, observando o irmão folhear com indiferença e grosseira as páginas do livro da história de e , que já passaram pelas mãos de Morte, Destino e agora estava sob o poder de Ódio.
— Não — assobiou a resposta e riu quando viu os olhos do irmão (sempre tão sentimental) aumentarem de tamanho. — Eu não faria algo tão clichê, irmão…
— O que você… Como você… — Avançou na direção do outro deus para estapeá-lo, tentar tirar dele o livro talvez, em um movimento inesperado.
Mas, Ódio se colocou de pé rapidamente, segurando o livro pesado ao lado do corpo, olhando forte para o irmão que ousou pensar ser capaz de agredi-lo.
— Você não seria capaz…
Ódio estava certo, Amor não seria capaz.
O deus não era capaz de tirar as formigas do reino que tentavam subir em seus pés descalços, quem dirá de agredir alguém. Principalmente seu irmão. Sua atitude foi impensada e ainda que não tivesse agredido Ódio, Amor sentia-se culpado apenas por ter pensado por uma fração de segundos que seria capaz de avançar em alguém.
— Ele vai sair daqui dez minutos para ir atrás de Adora — Ódio começou a contar seu plano, aproximando-se devagar do irmão que, nitidamente envergonhado da atitude anterior, encarava o piso de tábua corrida. — E não vai encontrá-la. Porque Adora vai estar na casa do Brian, contando a ele tudo o que aconteceu aqui. Eles vão beber para comemorar. Vão ficar felizes.
— Não, não vão. Adora não… — Ergueu o rosto divino para encarar o irmão. — Ela não está feliz com isso. Ela me sente.
— Já passou da hora de você entender que não é porque esses seres pequenos sentem amor, que eles sabem amar. — Tocou com a ponta do indicador a testa do irmão, empurrando-o, e sorrindo quando o deus deu alguns passos incertos para trás. — Continuando…
Respirou fundo, dramatizando, o sorriso ficando maior ao voltar a compartilhar com o irmão os detalhes de seu plano maravilhoso:
— Adora e Brian vão comemorar — enfatizou o nome da cantora, orgulhoso de ver os olhos do irmão ganharem um brilho a mais. Lágrimas. — vai passar algum tempo em busca de pistas do que aconteceu na noite de ontem e na manhã de hoje, vai perguntar ao seu agente tão querido o que ele sabe sobre os acontecimentos na festa e Brian vai repetir aquilo que disse para : ele não sabe o que aconteceu…
A atenção dos dois deuses foi roubada pelos movimentos do humano que voltou apressado para o quarto.
Ainda confuso e agora com o coração apertado de dor e raiva por ter perdido e não saber o que havia acontecido em sua própria vida nas últimas horas, procurou pela carteira na bagunça do quarto e gritou quando a encontrou dentro do bolso da calça jeans que estava jogada no chão do banheiro.
O grito dele fez com que Amor pulasse onde estava.
Ódio, no entanto, riu.
— Então, vai tentar saber por Adora. E não vai conseguir… Porque ela o ama, mas o amor dela se mistura e se perde na inveja que ela sente de — sussurrou próximo ao ouvido do irmão, com o corpo atrás do dele. — Então… — Segurou o ombro do outro, o rosto ao lado do irmão. — Mesmo se sentindo culpada e arrependida, Adora vai demorar a se convencer de que precisa contar a verdade. Mas, esse dia vai chegar… Porque as mulheres são fracas.
Segurou com força o corpo de Amor que tentou se virar para rebater a frase dita, para repreender o irmão por aquele pensamento ridículo.
— Ela vai contar para Brian como está se sentindo, vai dizer que não é justo o que fizeram e todas essas bobeiras. — Revirou os olhos. Ódio detestava quando os humanos achavam-se donos de si mesmos, quando pensavam que podiam decidir todo o caminho de suas vidas. Que podiam ser maiores que os deuses... Que ele. — Mas, Brian não vai aceitar. É claro que não. Porque ele sim é um ser humano quase decente.
— Ele te sentir não faz dele uma pessoa decente… — respondeu, fazendo força para se livrar do aperto do irmão. — Pelo contrário, o torna alguém desprezível.
— Mamãe ficará chateada ao saber que fui xingado pelo meu próprio irmão… — Levou a mão ao peito e formou um bico nos lábios, falsamente. — Mas, eu agradeço pelo elogio.
apareceu na sala depois de alguns minutos no quarto, calçou os tênis de qualquer jeito e pegou as chaves no aparador ao lado da porta. Vê-lo desesperado daquela maneira fez com que Amor quisesse segui-lo, acompanhá-lo de perto na sua busca por notícias e quem sabe, ajudá-lo minimamente…
Antes que o deus sumisse para seguir os rastros do humano, a voz de Ódio o prendeu naquele apartamento: — Adora vai morrer no dia em que for contar a o que ela e Brian fizeram. Brian é quem vai pagar ao motorista do carro que vai atropelá-la quando ela estiver quase se encontrando com .
— Não…
— Eu não sei perfeitamente o que Mãe pensou quando te fez, mas creio que tenha faltado um pouco de consciência sobre algumas coisas. — Ignorando os sussurros em negação do irmão, Ódio aproximou-se e parou em frente a ele. — Os seres humanos são animais miseráveis e egoístas demais para pensarem uns nos outros, irmão. Nem todos querem amar, e isso não tem nada a ver com histórias do passado… São escolhas. Alguns escolhem ser assim, decidem, simplesmente, me sentir. Muitos deles estão pouco se fodendo para os sentimentos alheios, só pensam em dinheiro e na fama, e são capazes de tudo para tê-los. Brian é assim, e ele não vai aceitar perder tudo o que aquele homem fraco, que você tanto gosta, dá a ele. Principalmente por amor. Brian não acredita no amor. Não acredita em você. Nunca acreditou.
— Mas Adora é uma boa pessoa, ela não…
Balbuciou ainda em choque com a revelação, as mãos esquentando à medida que o choro lhe subia à garganta e o deixava tonto. Amor sabia que Ódio e Morte eram próximos, que onde um estava era quase certo de haver a presença do outro também, mas… Não esperava que a irmã fizesse parte do plano do irmão.
Anos após a criação de cada um deles, e Amor ainda não conseguia entender a mente obscura de Ódio. Entendia menos ainda quando lhes diziam que eles dois eram mais parecidos do que julgavam ser, isso era uma mentira imensa porque Amor jamais seria capaz de pensar ou ficar feliz em fazer coisas tão ruins.
— Pessoas boas são manipuláveis. E quando tentam fazer o que está fora do planejado… — Deu de ombros, sabendo que o irmão entenderia o que ele queria falar.
— Você não podia envolver Morte assim…
— Não? Quem disse isso… Você? — A risada de Ódio causou calafrios em Amor. — Bom, agora eu preciso ir. Tenho mais o que fazer e… isso aqui... — ergueu o livro e apontou para o objeto com a outra mão, sorrindo maior ao ver a primeira lágrima prateada marcar a tez negra — vai comigo.
Amor tentou controlar seu choro quando se viu sozinho no apartamento em que estivera algumas vezes para assistir alguns dos momentos felizes que e viveram ali. Se esforçou em segurar as lágrimas, apertando com força o tecido fino da roupa que usava, não queria chorar porque sabia que, se o fizesse uma tempestade cairia sobre a cidade e poderia sofrer algum acidente de trânsito por isso. Amor sabia que Ódio não lhe contou todo seu plano, por isso preferia ser cuidadoso.
— Essa será a última vez, eu os prometo — sussurrou, encarando um dos quadros de fotografias que ficava pendurado em uma das paredes. Na foto, que era uma selfie, olhava para a câmera e sorria enquanto sorria olhando para a mulher. Ele tinha essa facilidade em sorrir e manter seu olhar preso em quando estavam juntos. — Eu prometo que na próxima tudo será diferente. Vocês serão felizes. Tão felizes que irão se perguntar se é tudo real ou mais um sonho…
Quando olhou para o segundo quadro na parede, Amor precisou morder o próprio lábio e fechar os olhos alguns minutos. Estava tão difícil manter o choro dentro de si…
Do lado de fora, o vento frio começava a balançar galhos de árvores, agitava roupas das pessoas que andavam pela rua e tentavam entender como o tempo estava mudando tão de repente. As nuvens ficaram escuras, pesadas de água… De lágrimas.
— Eu só peço que se lembrem de mim… — Caiu sob os próprios joelhos, o peso da culpa por ter aceitado fazer aquela aposta com Ódio sendo maior que o peso corporal. — Me sintam. E me deixem cuidar de vocês… Por favor.
Na história de Uplax, nunca houve uma chuva tão forte como a que atingiu a cidade naquele dia.
Desistiu do pedido quando foi ignorado pelo homem em quem esbarrou. O humano continuou seu caminho apressado em direção ao metrô e não sentiu o ombro do deus tocar o seu.
Lembrou-se, então, que não adiantava pedir desculpas pelo ocorrido. As interações na Terra eram restritas àqueles que eram da mesma espécie.
Ali, ninguém conseguia vê-lo ou ouvi-lo.
Apesar de senti-lo.
Logo, sorriu em sua inocência. Ser sentido era o suficiente.
Fosse naquele mundo criado por Mãe, no Reino Eterno ou nos outros reinos. Amor só queria ser sentido por todos os seres; humanos ou divinos.
Por isso, estava há dias na Terra, andando entre os seres humanos, olhando atento a cada um deles. Observando o brilho das almas que ocupavam corpos tão bonitos; com diferentes tamanhos, tons de pele, tipos de cabelo e diversos estilos de vestimentas. Era curioso como seres tão parecidos em sua forma mais básica conseguiam ser distintos em outros aspectos. Era essa diferença que causava certa curiosidade no deus, que gastava minutos analisando-os, dando pequenos pulos de felicidade quando encontrava tanto de si em alguns deles.
Amor era sentido.
Ainda que Ódio caminhasse por aquele mundo por mais tempo, espalhando sua essência em todos os cantos, Amor também conseguia derramar muito de si naquele mundo. Nos seres humanos. Conseguia fazer com que as pessoas fossem capazes de amar tanto quanto de odiar.
E decidido a espalhar mais de si naquele mundo, o deus caminhava pela Terra à procura de dois seres humanos que deveriam formar um casal. Ou melhor, procurava pelas duas almas que deveriam se reencontrar.
Recomeçarem. Se amarem mais uma vez.
No entanto, era difícil procurá-los sozinho. Ele pensou que fosse ser fácil, que ao chegar na Terra encontraria e no minuto seguinte. Não foi o que aconteceu. Aquele deveria ser o vigésimo dia de busca e ainda não concluiu sua tarefa, e, sendo sincero, sentia-se cada vez mais distante de concluir.
Amor não sabia como eram os corpos que as almas de e ocupavam na Terra; não sabia em que lugar do mundo estavam morando; se viviam na mesma cidade ou não. Não sabia nada sobre eles.
Ódio não permitiu que o irmão soubesse o que fora escrito no livro daquelas duas almas por Destino antes de Amor às reencontrar, alegando que não seria justo saber como e onde estavam. Afinal, se Ódio e Morte precisaram procurar por e nas vidas anteriores, Amor precisaria fazer o mesmo.
E Amor estava dando o seu melhor para reencontrar aquelas almas tão queridas. Mas, a cada dia que ficava na Terra, sentia que não seria capaz de encontrá-los. E temia sua lentidão. Não gostava de pensar no que poderia acontecer caso demorasse demais em localizar e .
— Já anoiteceu… — constatou ao mirar o céu e notar que a escuridão estava acima de sua cabeça. Suspirou de frustração. Mais um dia naquele mundo sendo menos um dia próximo a e . — E eu não posso nem chorar… — Segurou as lágrimas que sentiu molhar a linha dos cílios. Não podia chover, pois sabia que os seres humanos se escondem dentro de casas e outros locais nos dias molhados, e escondê-los só iria dificultar ainda mais a sua busca.
— O que eu faço? — sussurrou, observando a lua que brilhava com louvor na imensidão escura. Esperava ser ouvido por ela. — Eu não…
Suspirou.
Distraído e sentindo-se frustrado, dava passos incertos com os olhos fechados. Buscando alguma ajuda divina ao que deixava de prestar atenção no que acontecia ao seu redor. O acúmulo de luzes, barulhos e presenças do mundo profano tornou-se uma mistura que incomodava a sensibilidade sobrenatural do deus. Amor sabia que não era saudável ficar tanto tempo longe do Reino Eterno. Precisava voltar para casa, mas não queria. Não podia.
Desatento ao que acontecia ao seu redor, quase caiu quando algo o tocou forte na barriga.
Confuso, abriu os olhos notando que as mãos já tocavam o fio que apareceu de repente em seu caminho. Um fio vermelho.
A textura era suave, mas, apertando um pouco mais o fio, Amor notou a rigidez que possuía. Era resistente.
— Amiga, me espera! — A observação do deus foi interrompida por uma humana que andava a passos largos para fora de um prédio de quinze andares.
Amor, já tão acostumado com as vestimentas que usavam naquele mundo, não usou muito de sua atenção nas peças que cobriam o corpo da humana naquela noite fria, preocupou-se mais em observá-la, procurar em sua alma algum vestígio conhecido. Além de querer entender por que ela parecia tão aflita.
— , você não pode fazer isso. Não é justo…
Amor, sentiu-se gélido por dentro.
A Terra parou de girar para o deus que sentiu suas amigas borboletas congeladas em sua barriga.
Aquele nome…
Em meio ao susto de ouvir aquele nome que o deus repetia para si mesmo num sussurro sobrenatural, Amor notou que a mulher recém saída do prédio encarava outro ser humano que usava mais peças de roupas do que ela. O boné sobre a cabeça e a máscara cirúrgica combinavam com as roupas pretas pareciam esconder o humano do mundo. Anulando-o. Deixando em maior destaque vermelho do fio arrumado em seu dedo mínimo da mão direita.
— Me escuta…
Amor conseguia ouvir a respiração bagunçada e os batimentos cardíacos acelerados da mulher do prédio, mas percebeu que o humano na frente dela também estava com seu sistema agitado. O deus notou haver muito de si naquelas duas pessoas, muito. Entretanto, também existia muita dor. E ódio.
— Eu sei o que eu estou fazendo, . Vai ficar tudo bem.
Amor caiu no chão quando a voz conhecida chegou aos seus ouvidos. A mão soltou o fio vermelho enquanto a outra cobriu os lábios que se abriram. Enquanto os olhos divinos notaram o que o susto não permitiu que o fizesse antes… Depois de tanto tempo, tantas vidas… Amor estava novamente próximo a uma das almas que criou com tanto zelo. A alma que possuía uma quantidade exata do deus em sua essência.
As lágrimas voltavam mais grossas aos olhos do deus que tentava segurá-las, não querendo causar uma chuva. Mas nuvens escuras já começavam a aparecer no céu da cidade.
Então, Amor sentiu…
E olhou na direção da porta do prédio. Viu quando um homem surgiu lá de dentro, passou pela porta giratória de vidro da entrada e ficou parado na calçada.
Amor notou…
A alma que ocupava o corpo dele também possuía uma quantidade exata do deus em sua essência.
— Eles… Eu…
Amor não percebeu quando começou a chorar, só quando observou os três humanos se moverem apressados e gotas grossas de água os atingirem.
aproveitou para entrar no primeiro táxi que parou a sua frente, deixando para trás a mulher que continuou na calçada por alguns segundos antes de respirar fundo e se convencer de que precisava voltar para o prédio.
Chorando como não fazia há tempos, Amor observou que o fio vermelho no dedo de esticou, mas não arrebentou.
E, principalmente…
Reparou que a outra ponta do fio fazia um nó no dedo mínimo esquerdo do homem que voltou para dentro do prédio.
.
— Eu os encontrei…
Pela primeira vez em milhares de anos e vidas, choveu nos quatro cantos do mundo ao mesmo tempo.