Revisada/Codificada por: Pólux
Última Atualização: 20/11/2024Grilhões a prendiam no lugar, apenas aguardando a hora certa em que seria abatida. A cada passo, a sensação de espinhos perfurando vagarosamente a sola de seus pés. Os vermes a sua volta sorrindo prontos para se lançarem ao seu corpo morto e roer a fria carne até que restassem apenas os ossos.
No peito, apenas um coração pulsando sangue para uma casca que há muito já estava vazia, tomada por angústia e decepção. Olhos frios, nebulosos, até inexpressivos. Dizem que eles são a janela para alma, e quem encarasse aquela vitrine não enxergaria nada além de um denso breu.
Calafrios se arrastavam por sua espinha, o gosto nauseante de bile chegando até seus lábios pintados de carmesim. A própria senhora do fim a recebendo de braços abertos, disposta a guiar para sua ruína, uma eterna prisão de rochas.
— Vamos — lhe tomaram pelo braço a tirando da pequena cela. — Os preparativos já foram finalizados.
Dariam uma festa para comemorar seu enterro, sua destruição. O momento crucial em que o último sopro de vida deixaria de existir e se tornaria apenas uma oferenda, tudo não passava de um sacrifício disfarçado de um belo casamento.
O sobrenome Zenin falava por si próprio no mundo jujutsu. Pelo menos foi isso que ouvi da boca do líder deles, quando recebi a notícia há pouco menos de um mês atrás.
Raiva, não. Mais precisamente fúria, transbordava do patriarca da família Ikari. As porcelanas herdadas através dos séculos já não passavam de entulho, vítimas do descontrole emocional do mais velho.
— Você vai cumprir com seu dever e honrar esta casa com o casamento!
Os gritos faziam com que as paredes da casa principal tremessem. Nos olhos fundos enterrados numa cara redonda, nada além de cólera e desgosto em encarar o meu rosto desafiante. Assim como ele, minhas bochechas estavam queimando de ira, teimosia e recusa de aceitar o destino escolhido para mim.
— Prefiro morrer a fazer parte disso — cuspi a verdade para meu pai, crua, sem temor do que suas ações impensadas pudessem causar. — Não sou uma substituta para Minor…
A ardência em meu rosto e o gosto metálico me fizeram parar, levando os dedos um pouco trêmulos ao lábio. Vi as pequenas gotas de sangue que surgiram devido ao tapa no rosto que acabara de receber.
— Não se atreva a repetir o nome desta desgraça na minha frente ou dentro desta casa.
— Ou o quê? — meus olhos famintos se levantaram sem pressa na direção do mais velho, no rosto uma máscara perfeita de escárnio. — Vai me bater? De novo? Arriscar estragar o seu último recurso, ou deveria dizer, sua última mercadoria?
— Não entre no meu lado ruim — o tom de aviso era claro e objetivo. Uma tentativa falha de manter minha boca fechada.
— Como se algum dia tivesse existido um bom. — minha língua afiada, quase venenosa. — Não vou me casar forçadamente com alguém que eu sequer conheço.
— Eu não estou te pedindo, estou mandando. Você vai e ponto final, não há nada que possa fazer sobre isso.
— Veremos — me levantei rapidamente sem me curvar em respeito ao mais velho. Ele não merecia isso, ninguém daquela família podre merecia. Não me curvaria a ninguém.
— Leve o meu caixão para serem feitos os votos.
— Se ficar com a cara fechada mais um pouco, vou achar que você não queria isso tanto quanto eu.
Não virei o rosto, mantendo o olhar fixo no batente da porta enquanto contemplava os parasitas sorrindo e bebendo, como se não estivessem prontos para se lançar ao pescoço uns dos outros no primeiro momento. Tão falsos quanto o sorriso perfeito que se instalou em meus lábios no momento em que assinei minha sentença de morte.
— Pelo menos você não é um tolo — minha voz se manteve firme, frases curtas para não dar a entender que estava disposta a conversar.
— Tolo não, inútil com certeza. De acordo com todos eles, é claro.
Se tivesse que descrever a voz do meu então marido, seria tediosa — pelo menos no momento —, era grave e também um pouco rouca, se arrastava preguiçosamente, deixando claro que ele só estava ali por formalidades e nada mais.
Pelo canto do olho, ousei espiar o homem com o mínimo de atenção e curiosidade. No assento dedicado ao noivo, ele estava praticamente largado, os cabelos desarrumados, o rosto apoiado na mão e uma expressão que não se importava em transmitir o quão insuportável aquela situação era. Se fosse eu a ter essa mesma atitude, podia ser deserdada da nova família imediatamente. E talvez não fosse uma má ideia.
— Você não é muito de conversar, não é mesmo? — novamente uma vez ele insistiu em iniciar uma interação.
— Aqui, não. Com você ou qualquer um que esteja envolvido com esse maldito casamento, também não.
— Bem, parece que começamos com o pé esquerdo — ouvi as vestes do kimono raspando uma contra a outra enquanto ele se movia. — Por que não fugiu? Faria um favor a nós dois.
— Como se eu não tivesse tentado — respondi com sinceridade, já que ele parecia tão infeliz quanto eu. — Me pegaram uma semana atrás.
Uma risada baixa e rouca ecoou
— Estava brincando, mas me sinto levemente ofendido. Sou tão desprezível assim?
Pela primeira vez, virei para encará-lo. Seu rosto era bem marcado, principalmente a linha do maxilar, o pescoço grosso e os olhos expressivos. No canto da boca fina, uma cicatriz. Podia dizer que ele não era fisicamente desagradável.
— Você, ainda não descobri. Mas todos os outros imundos aqui, sim, principalmente meu pai, que me forçou a casar com uma pessoa sem ao menos saber seu nome.
Poderia ter sido a sinceridade desmedida, mas algo despertou certa curiosidade nos olhos do meu companheiro.
— Bom, eu sou Toji. Seu marido, a partir de agora.
Estendeu a mão em minha direção em um cumprimento formal, esperando que eu retornasse. Encarei sua palma estendida para em seguida desviar os olhos, encarando uma decoração de madeira qualquer no fundo do salão, recusando sua mão.
Mas já que ele havia dito seu nome, respondi também com o meu.
— , apenas .
Recolhendo os dedos, o homem voltou à posição original e pelo restante do evento não tentou se comunicar novamente. Meu estômago se contorcia a cada segundo arrastado. Não sabia se ficava feliz pelo tempo estar se passando devagar ou triste.
Uma pessoa passou do meu lado com algum saquê. Sem perder tempo, peguei uma das bebidas e virei imediatamente contra a boca.
Um brinde ao inferno que seria minha noite de núpcias.
O caminho até a residência Zenin foi silencioso. Não me preocupei em perguntar e também não tinha muito interesse, mas julgando pela organização das casas, achava que meu marido — palavras amargas até em pensamento — não fosse diretamente ligado ao líder do clã. Talvez um sobrinho? Era um lugar bem cuidado, isso eu não podia negar. As casas de estilo tradicional podiam ser vistas por toda a extensão do terreno e o caminho tinha algumas árvores que soltavam folhas conforme uma brisa mais forte soprava, essas dançavam em espirais até alcançarem o chão. Uma única coisa realmente bela chamou minha atenção: o céu. Por ser um local um pouco longe da cidade, dava uma bela visão para a noite estrelada.
Sem cerimônia alguma, Toji entrou em uma das casas mais afastadas, deixando os sapatos na entrada e sumindo para dentro dela. Qual era o problema dele? Me perguntei, encarando a porta por alguns momentos, até uma senhora de idade aparecer.
— Por favor, madame, entre. Esta será sua casa a partir de agora — sua voz era suave e baixa, na cabeça ostentava um coque cuidadosamente penteado com um bonito ornamento kanzashi decorando. Era bem mais baixa e, pela idade, os ombros já estavam levemente arqueados para frente.
Não querendo ser mal-educada com a mais velha, dei um aceno de cabeça cumprimentando-a, e entrei na casa olhando cada centímetro que meus olhos alcançam.
— Me chamo Hatsu e sou a governanta daqui — ela se apresentou, abaixando em seguida à minha frente para poder tirar meus sapatos.
— Por favor, não é necessário — com as mãos em seus ombros, impedi que ela se curvasse aos meus pés. — Faço sozinha.
Sem esperar uma resposta, me sentei no pequeno degrau, jogando as camadas de tecido para o lado, em seguida arrancando aqueles objetos de tortura de uma maneira nada elegante. Mexi meus dedos para me certificar de que todos estavam ali, pois havia parado de os sentir há algumas boas horas.
— Velha, não deveria estar na cama?
— Mestre Toji, que tipo de pessoa eu seria se não recebesse minha senhora na primeira noite em sua nova casa? Seria uma desonra.
Virando-me para trás, reparei que o homem já havia se livrado das vestes formais e agora vestia uma camiseta de cor escura e calças largas. Engoli seco enquanto passava os olhos pelos braços torneados e alguns outros músculos que se sobressaíam mesmo através do tecido.
— Bom, pelo menos poupa algumas formalidades. Essa aí é a , a casa tem mais alguns residentes, você vai conhecê-los depois.
— Mestre Toji, você não deve...
— Sim, sim, eu sei — ele se adiantou e colocou uma mão sobre as costas da senhora, e um medo real de que ele a quebrasse se instalou. Ao lado de seu pequeno corpo, o homem parecia uma montanha inteira. — Ande, vá se deitar antes que morra no meu corredor.
Uma risada harmoniosa deixou os lábios da mais velha.
— Ainda vou viver o suficiente para ver seus filhos, criança.
Rapidamente minha cabeça traçou uma sequência de palavras, filhos, criança, noite de núpcias.
Desgosto se alojou rapidamente em meu peito, fazendo-me levantar. Não tinha tempo para apreciar o pequeno diálogo, por mais que fosse ligeiramente divertido.
— Sua família já mandou suas coisas, estão no quarto.
Novamente a postura preguiçosa de antes, até cheguei a pensar que seus cabelos estavam mais bagunçados do que durante o casamento. Não o respondi, mas mesmo assim o homem tomou o silêncio como concordância e saiu andando para algum outro cômodo. Infelizmente, não teria escolha a não ser segui-lo. Se corresse, provavelmente só acabaria perdida em algum outro lugar, então, mesmo a contragosto, segui para onde ele havia desaparecido. Não era uma residência extremamente grande como as casas principais, mas tinha seu luxo. No fim das contas, continuava a ser uma moradia do clã Zenin.
Toji entrou em um quarto específico, e eu entrei logo em seguida. Era clássico assim como o restante das decorações, mas tinha uma cama grande no meio do quarto. Por mais que fosse baixa, era o único objeto não tão tradicional ali e agradeci mentalmente por isso. Logo reparei nos dois grandes baús que estavam no canto do quarto. Sabia que não tinha muitos pertences, mas, mesmo assim, tudo fora juntado em apenas dois deles? Andei até o mais próximo e levantei a tampa, olhando seu conteúdo. Não eram minhas vestes que estavam ali, era o que minha “família” achava que eu deveria usar. Deixei que o baú fechasse com um pouco mais de força do que o necessário.
Para o bem deles, é melhor que não tivessem se desfeito das minhas roupas de verdade.
Enquanto eu estava parada na frente dos baús praticamente bufando de raiva, senti um toque leve na parte de trás da minha cabeça. O instinto falou mais alto, tomei seu pulso com uma mão enquanto a outra mirou rapidamente a faca de talher para seu pescoço. Se ele não tivesse reflexos tão ágeis quanto os meus, estaria respirando pela garganta nesse mesmo momento.
— Você é uma coisinha astuta. Isso poderia ter acabado de inúmeras maneiras diferentes — Toji sorriu com um pouco de malícia antes de girar o braço que havia usado para bloquear o ataque, em seguida torcendo de leve o meu pulso, apenas o suficiente para que eu soltasse o talher. Com agilidade, ele usou a perna para me desequilibrar e me imobilizar no chão.
— Pode até ser ágil, mas seu equilíbrio é péssimo. Pare de se apoiar na perna esquerda.
Nossos rostos estavam próximos o suficiente para que pudéssemos nos enxergar nas íris um do outro, as pernas praticamente entrelaçadas roçando de leve apenas com tecido entre elas. Meu rosto ainda estava um pouco avermelhado, sem saber se era pela raiva ou pela investida falha. Antes que qualquer um de nós pudesse falar, a porta se abriu revelando outra das residentes. Essa parecia mais nova do que Hatsu, rapidamente fechou a porta clamando por perdão por pegar os donos da casa numa posição comprometedora e se afastou.
Toji me soltou, sentando-se à minha frente e levantando o motivo daquilo tudo para que eu pudesse ver.
— Tinha uma folha no seu cabelo.
Meus olhos afiados se fixaram na ponta de seus dedos, onde a mesma estava sendo segurada pelo cabo.
— Por que simplesmente não me avisou? — questionei, um tom de raiva ainda presente. Porém, não gritei, apenas mantive minha voz ameaçadoramente baixa.
— Você teria tentado me acertar de qualquer jeito — ele olhou a pequena folha na mão antes de se deitar encarando o teto do que costumava ser apenas seu quarto. Cruzou um dos braços atrás da cabeça antes de voltar a falar. — E então, como vai ser?
— Como vai ser o quê? — rebati. — Não tem nada.
O homem tombou a cabeça para o lado para olhar novamente para mim. Não conseguindo segurar seu divertimento, rompeu em riso, fazendo com que se sentasse novamente.
— Não estou falando sobre sexo. Estou tentando estabelecer um acordo de convivência. Eu não queria isso e você também não. Posso ser um babaca em vários aspectos, mas não vou me forçar sobre uma mulher — girou a pequena folha na mão antes que ela começasse a se desfazer. — Se alguém perguntar, diga apenas que foi... Selvagem.
Imediatamente, meus ombros se soltaram, a expressão se tornando mais leve e o homem ousaria dizer até mais bonita. Ele sabia da fama de seu clã, por isso não me julgava por acreditar que era uma possibilidade.
— Não sei — respondi. Era a primeira vez que ele ouvia minha voz sem estar enlaçada com desprezo ou algum outro sentimento negativo. — Acho que, por enquanto, você se provou digno o suficiente, para um Zenin.
— Pode se trocar atrás daquela porta — apontou para trás de si. — É um banheiro.
— Adoraria, se a minha família inútil não tivesse me mandado apenas roupas de prisioneiro.
Confusão tomou seus olhos, provavelmente não entendendo a analogia entre as vestes e a prisão. Afinal, para um Zenin, acostumado a andar no tradicionalismo, eram apenas roupas comuns e esse era exatamente o problema. Nesse momento o homem se levantou do chão, indo até o próprio armário, jogando uma peça de roupa qualquer na minha direção enquanto ainda me mantinha sentada no chão, onde ele havia me derrubado.
— Deve ficar largo, mas vai ter de servir.
Me coloquei de pé, segurando as vestes escuras contra o peito, o encarando de leve quando passei ao seu lado para seguir para o banheiro. Pode ter sido o cansaço, mas murmurei um obrigada, na minha própria cabeça, parecia tão fraco e destruído que sequer se assemelhava a minha personalidade.
Se ele fosse um pouco inteligente, talvez a analogia com a prisão fizesse um pouco mais de sentido agora.
Pintada, enfeitada, realmente uma oferenda.
Um ódio subiu pela minha espinha, e sem cerimônia alguma, puxei os enfeites do cabelo, sem me importar com os fios que vieram junto. Fiz o mesmo com as vestes, e o som do tecido rasgando foi mais agradável do que qualquer orquestra sinfônica tocando a Sétima Sinfonia de Beethoven. Uma, duas, rasguei aquele embrulho até que estivesse irreconhecível.
A água corrente e fria se coloria conforme eu retirava do rosto a máscara que fui forçada a usar. Só quando me vi nua diante do meu reflexo é que me encontrei. A pessoa verdadeira que sou, não a filha de um clã em decadência ou a noiva; apenas eu mesma, com todos os meus sonhos, vontades e incertezas.
Eu ainda não estava disposta a aceitar toda aquela situação sem lutar de volta. Isso não parecia nada comigo, mas precisava pensar. Jogar com inteligência.
Passei a cabeça pela camiseta que ele me dera. Realmente, o homem estava certo: ficava enorme em mim, mas era melhor do que qualquer outra coisa que eu tinha disponível. Amarrei o tecido na lateral e dobrei as mangas; fiz o mesmo com as calças. Eu parecia uma jovem recém-saída de um videoclipe estrangeiro.
Corri os dedos pelos cabelos na tentativa de ajustá-los. Estavam particularmente rebeldes hoje, combinando com meu estado de espírito.
Julgando que já tinha ficado ali por tempo demais, embolotei os restos do Irouchikake e joguei no lixo, junto com todo o resto. Era hora de lidar com outro problema agora: um homem alto, forte e com reflexos tão rápidos quanto os meus.
Quando saí do banheiro, vi Toji olhando para o teto, aparentemente sem interesse, enquanto esperava eu me resolver com as roupas. Nada disse, apesar de provavelmente ter ouvido o meu pequeno ato de rasgar tecidos, apenas me olhou de canto de olho. Meu rosto estava quente, se era pela raiva ou por esfregar a pele para tirar toda a maquiagem, não saberia dizer.
Conforme andei pelo quarto senti seu olhar me seguindo, já tinha encontrado com homens demais para saber o que eles significavam. Minha camisa estava amarrada, abraçando a curva da minha cintura. As mangas dobradas revelavam meus braços esguios e levemente torneados, resultado de anos de treinamento. O tecido ainda marcava meu busto, acariciando de leve o restante do meu tronco. Uma faixa de pele à mostra separava a borda da camisa do elástico da calça.
— Gostaria que mantivesse os olhos acima do meu pescoço — disse, com um tom de sarcasmo enlaçando minha voz.
— Não pode me condenar por observar uma coisa bonita.
— A faca ainda está no quarto. Posso te degolar enquanto dorme, sabia? — rebati andando na direção dos baús.
Ele riu e cruzou os braços atrás da cabeça, recostando-se na cabeceira da cama.
— Boa sorte com isso. Você é ágil, . Mas não aproveita seu próprio peso para aumentar a força. Teria que subir em mim para conseguir alguma coisa — Toji segurou o riso antes de continuar: — Não que eu fosse reclamar.
Virei levemente a cabeça em sua direção, franzindo com certo desgosto.
— Nesse caso, vou humildemente permitir que viva por mais uma noite.
— É uma pena.
Continuei organizando minhas coisas, jogando algumas peças para longe e colocando outras em compartimentos diferentes. O barulho era mínimo. Ele poderia dormir se quisesse, mas se limitava a observar enquanto eu andava de um lado para o outro no quarto.
— Com que frequência você fugia de casa? — perguntou de repente, sem que eu esperasse.
— Toda noite, durante dois anos — respondi, questionando internamente por que ele queria iniciar uma conversa.
— Isso explica por que é tão… furtiva — ele comentou, mais para si mesmo do que para mim. — Tem alguma relação com seu treinamento?
Fechei o último baú, com coisas que eu considerava levemente úteis, e me virei para ele.
— Por que quer saber?
Toji se virou na cama dando as costas para mim, mantendo a voz entediada.
— Curiosidade. Não é comum mulheres no nosso mundo saberem manusear armas.
— Achei que disse que eu era ruim nisso — amargurada, devolvi a fala que ele disse anteriormente.
— Falei que não sabe aproveitar o que tem. É diferente.
Eu estava cansada, de todas as formas possíveis, mas não julguei que um pouco de conversa com aquele que agora era meu marido faria mal.
Com passos arrastados, fui até a lateral da cama e me sentei de costas para ele.
— Costumava caçar maldições à noite — disse por fim —, escondido da organização e da minha família estúpida. Teria frequentado a escola jujutsu nos meus anos de juventude, se me fosse permitido. Como não tive a chance, resolvi aprender por mim mesma. E você?
Virei-me para encará-lo. Suas costas eram largas e mesmo relaxado consegui ver os músculos marcados, tão imóvel que mal conseguia dizer se estava respirando, aguardei sua resposta, mas desisti quando não veio. Voltei a olhar para frente e quando o fiz sua voz soou.
— Não tenho energia amaldiçoada.
A princípio, achei que meus ouvidos haviam me traído. Alguém do clã Zenin sem energia amaldiçoada?
— Desculpe por isso — ele falou, com um tom cínico. — Infelizmente, você foi amarrada a uma falha como eu.
Não soube o que responder de imediato, mas de alguma forma as coisas começaram a fazer sentido. Famílias de prestígio valorizavam sua linhagem. Não haveria como eu ou Toji sermos prometidos a pessoas consideradas de elite.
— Isso então nos faz dois — juntei as mãos sobre o colo. — Acho que a última coisa com que meus parentes se importariam é comigo. No fim, só querem poder dizer que estavam relacionados aos Zenin. Mas quem casaria seu filho prodígio com uma boneca quebrada?
— O que quer dizer com isso? — escutei ele se virar, mas mantive a cabeça baixa olhando para as mãos.
— Tenho uma irmã — continuei, mantendo a voz contida. — Gêmea.
Não era segredo que gêmeos eram considerados mau presságio no mundo jujutsu, tratados como falhas, não havia uma única história sobre eles que tivesse terminado bem.
— O que aconteceu com ela?
— Sumiu — respondi, soltando um suspiro. — Numa noite, ela estava lá, e na manhã seguinte, não estava mais. No quarto, apenas o corpo mutilado de um funcionário da casa e uma faca de cozinha. Na época, ela estava prometida a um jovem do clã Kamo. O tolo se apaixonou e conseguiu convencer os próprios pais de que a união valia a pena. Obviamente, o contrato foi cancelado depois do incidente. É proibido falar seu nome naquela casa desde então. E, já que o primeiro plano não deu certo, aqui estou eu.
Toji ficou quieto enquanto eu compartilhava minha história.
— De certa forma, preciso agradecer por me tirar daquele inferno, mas mesmo assim, não consigo ver algo de bom nessa situação toda — confessei, esperando que, se eu tivesse um pouco de sorte, ele também se sentiria assim.
— Estamos presos a isso por algum tempo — disse ele, após um momento de silêncio entre nós. — Mas não vejo motivos para tornar isso um inferno. Podemos chegar num acordo.
— Estou ouvindo.
A noite seria longa, talvez não do jeito que alguma parte mais primitiva da minha mente tivesse fantasiado, mas mesmo assim, era o melhor que eu podia conseguir.
— Vai conversar comigo ou vai perder o resto do tempo olhando para minha boca — essa frase com certeza ele ouviu.
O homem ergueu os olhos para os meus.
— Estamos conversando. Na verdade, você está falando e eu estou ouvindo, não é o tipo de coisa que mulheres gostam?
— Gostam? — questionei. — É o mínimo que se espera, ser ouvida enquanto se fala.
— É mesmo? — o movimento foi rápido, até mesmo para ela, num segundo se viu sendo carregada para fora do quarto. Toji havia a jogado no ombro e estava a carregando para algum lugar. — Que tal você me escutar um pouco então?
— Qual é o seu problema? — deferi alguns golpes nas costas dele, não que fosse fazer muita diferença julgando pelos músculos firmes que se tencionavam sob minhas mãos enquanto tentando encontrar apoio para não ficar de ponta cabeça.
Ele andou até a parte de trás da casa onde havia um espaço aberto, o chão de terra batida iluminado pela lua, era a única coisa que separava o quintal de uma floresta densa que subia a montanha.
— Vamos lá — Toji repentinamente disse me jogando para frente, sem delicadeza alguma. Minhas costas bateram no chão seco erguendo um pouco de terra, por pouco não bati a minha cabeça. Tossi pela poeira que voou no meu rosto e me apoiei nos cotovelos erguendo o corpo.
— Não sou muito bom com palavras — explicou o homem se afastando. Seus cabelos eram tão escuros, que pareciam refletir um brilho azulado. Seu rosto poderia ser bonito, mas o sorriso debochado que surgiu nele criou uma súbita vontade de acertar seu rosto. Ele se alongou enquanto eu ainda me levantava batendo as mãos nas roupas que ele mesmo me dera. — Vamos nos conhecer do meu jeito agora — então ele colocou as mãos na frente do corpo numa posição clássica de luta, uma das pernas para trás mantendo o equilíbrio e punhos próximos ao rosto.
— Não pode estar falando sério — reclamei passando a mão pelo rosto e sentindo a textura granular da sujeira. Em resposta, Toji sorriu e balançou a mão me chamando para atacar, ele realmente estava esperando aquilo.
Fechei a mão em punho, travando os dentes com força. Se o que ele queria era ter uma bunda chutada na noite de núpcias, não devo recusar, certo?
Girei a perna fazendo um círculo à minha volta, a sola do meu pé marcando o chão numa meia-lua. Ao mesmo tempo que uma parte de mim pensava ser algo ridículo, a outra estava extremamente curiosa para saber mais sobre suas habilidades. Não apenas pelo homem ter bloqueado e desarmado meu ataque mais cedo, mas por ser o Assassino de Feiticeiros.
Silêncio se fez presente e quando a primeira brisa fez as folhas se agitarem, nos lançamos na direção um do outro.
A princípio ele bloqueou meu punho, desviando a cabeça para o lado, evitando o golpe. Um sorriso venenoso tomou sua boca em seguida.
— Nada mal — sua cabeça se inclinou para o lado enquanto mantinha o braço levantado. Num movimento rápido, ele virou a mão e pegou meu pulso novamente me jogando por cima do ombro, fazendo com que eu batesse com as costas no chão novamente. Dessa vez pude jurar sentir algumas vértebras estalando com o impacto. Não consegui segurar o resmungo de dor enquanto a figura do meu marido fazia sombra sobre mim. — Já disse para parar de se apoiar na perna esquerda.
Numa falsa cortesia, ele estendeu a mão para me ajudar a levantar, porém, ao contrário do esperado, repeti seu movimento, tomei seu pulso entre os dedos e o puxei para frente, minha perna então aproveitou a junta de seu joelho para o fazer cair para a frente. Com um giro e a vantagem de estar no chão, consegui virar e o imobilizar no chão.
— É espertinha, dou esse crédito a você. Mas impaciente — respondeu, em seguida me acertando na costela, forçando com que eu afrouxasse o aperto em seu pescoço. Novamente nos virando e invertendo posições.
Soprei alguns fios de cabelo que ficaram no meu rosto, vendo que o rosto de Toji estava muito mais próximo do meu do que imaginava.
— Como você consegue se mexer assim? — perguntou olhando no fundo dos meus olhos. Provavelmente tentando entender a origem dos meus movimentos. Uma família de origem jujutsu saber artes marciais não é incomum, o incomum é ter garotas sabendo lutar com seus punhos.
— Sorte de principiante — menti sorrindo. Um brilho passou por seus olhos antes de se levantar e me puxar para cima também. Dessa vez ele avançou primeiro, seus movimentos eram rápidos e precisos, não me surpreende o apelido de assassino. Consegui desviar de suas investidas, mas não contra-atacar, quando tive uma chance, Toji chutou meu pé causando um desequilíbrio e prendendo a minha cabeça entre os braços.
— Morta, pescoço quebrado — anunciou, me soltando em seguida. — Tem certeza que é a mesma pessoa que me atacou n…
Sua provocação morreu no meio da frase, pois avancei em sua direção. Toji falava demais. Porém, dessa vez um pouco diferente, afinal quem usa todas as forças com um oponente desconhecido? Ele bloqueou no último minuto, mas bastou um atraso em seus movimentos para criar uma brecha, minha perna direita fez um giro o acertando na altura da barriga o fazendo recuar.
Tinha surpresa em seu rosto, Toji olhou para o chão como se não pudesse acreditar que havia se mexido. O homem abaixou a cabeça por um momento e então a levantou sustentando um sorriso fino nos lábios.
— Você estava fingindo — disse com sarcasmo —, não podemos forjar nosso casamento baseado em mentiras.
Coloquei a mão no ombro o girando, afinal eu havia acertado o chão duas vezes.
— É uma maneira de ver a situação, prefiro o conceito de estudar o oponente e montar uma estratégia válida —Juntei meus lábios num bico, com desdém. — Não leve para o coração, querido.
Era uma coisa boa que ele me trouxe para fora no primeiro dia, havia algo que eu precisava fazer. Olhei para a floresta escura que envolvia as terras da família Zenin, procurando por um ponto específico.
— Tem proteção nas fronteiras? — dei um passo em direção às árvores sem sequer voltar a olhar para Toji.
— Talvez — escutei seus passos. — Por quê?
Olhei o homem por cima do ombro e entrei no meio das árvores, ele que me seguisse se quisesse.
Andei até que a luz não alcançasse o chão, escondida no meio da barreira do terreno senti ao longe algo conhecido do outro lado dela tentando entrar.
— O que você está fazendo? — perguntou Toji que estava me seguindo em silêncio do princípio. Não havia medo em sua voz, ou nos seus olhos, se tivesse que dizer um sentimento diria ser curiosidade.
Dei alguns passos rápidos me afastando e respondi.
— Abrindo a porta.
Minha energia amaldiçoada fluiu pelo meu corpo, abri um corte na ponta do indicador com uma pedra jogada ali e pressionei contra o tronco de uma árvore provavelmente centenária. A energia correu pelas terras, passando pelo terreno irregular da montanha até chegar do outro lado e quando isso aconteceu, voltei a escutar uma voz dentro da minha cabeça.
Achei que iria demorar mais.
Do véu de sombras surgiram duas orbes alaranjadas, passos de um animal andando sobre as folhas secas soaram em seguida, o vento se movendo com sua presença. A energia voltou para mim com uma visita, uma companhia que esteve ao meu lado há mais tempo que qualquer um. Senti meu poder original voltar e o braço queimar enquanto marcas de maldição surgiam na pele.
Um galho estalou atrás de mim rapidamente me fazendo virar, nesse momento o vento soprou as folhas das copas para longe iluminando o local. Toji parou a alguns metros de distância, sem o ar sarcástico o envolvendo e todo seu escárnio sendo substituído por algo parecido com cautela.
— Quem é você? — perguntou se preparando para lutar de verdade se necessário.
Um riso distorcido rompeu a minha garganta, não com a minha voz, mas com uma mistura de tons de atravessam eras. Meu corpo virou, ficando de frente para o homem, as marcações brilharam num tom de brasa antes de se apagarem. Consciente, mas não em controle. Entreguei o que havia de vontade para o outro lado da moeda e deixei que tivesse seu momento.
A raposa sorriu em agradecimento e respondeu meu marido.
— Meu nome é Kiran.