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Revisada por: Pólux | até cap 04.
Revisada por: Lightyear 💫 | a partir do cap 05.

Última Atualização: 26/05/2025

Aquela data ficaria para sempre marcada como o dia da sua morte.
Grilhões a prendiam no lugar, apenas aguardando a hora certa em que seria abatida. A cada passo, a sensação de espinhos perfurando vagarosamente a sola de seus pés. Os vermes a sua volta sorrindo prontos para se lançarem ao seu corpo morto e roer a fria carne até que restassem apenas os ossos.
No peito, apenas um coração pulsando sangue para uma casca que há muito já estava vazia, tomada por angústia e decepção. Olhos frios, nebulosos, até inexpressivos. Dizem que eles são a janela para alma, e quem encarasse aquela vitrine não enxergaria nada além de um denso breu.
Calafrios se arrastavam por sua espinha, o gosto nauseante de bile chegando até seus lábios pintados de carmesim. A própria senhora do fim a recebendo de braços abertos, disposta a guiar para sua ruína, uma eterna prisão de rochas.
— Vamos — lhe tomaram pelo braço a tirando da pequena cela. — Os preparativos já foram finalizados.
Dariam uma festa para comemorar seu enterro, sua destruição. O momento crucial em que o último sopro de vida deixaria de existir e se tornaria apenas uma oferenda, tudo não passava de um sacrifício disfarçado de um belo casamento.



Eu encarava há algum tempo a pequena faixa que adornava o ‘Irouchikake’, a roupa de casamento tradicional. Quanto tempo levaria até que eu pudesse me enforcar com ele? Teria visões da minha inútil vida enquanto sufocava sem ter ar o suficiente para entrar em meus pulmões? Ou passaria meus últimos momentos proferindo palavras de ódio ao meu imprestável progenitor, culpado por me forçar a tomar medidas drásticas? Qualquer uma das duas parecia milhares de vezes mais atraente do que apenas permanecer como uma estátua, cumprindo o papel de esposa, com obediência e dedicação ao lado de alguém que nem sabia quem era.
O sobrenome Zenin falava por si próprio no mundo jujutsu. Pelo menos foi isso que ouvi da boca do líder deles, quando recebi a notícia há pouco menos de um mês atrás.

Raiva, não. Mais precisamente fúria, transbordava do patriarca da família Ikari. As porcelanas herdadas através dos séculos já não passavam de entulho, vítimas do descontrole emocional do mais velho.
— Você vai cumprir com seu dever e honrar esta casa com o casamento!
Os gritos faziam com que as paredes da casa principal tremessem. Nos olhos fundos enterrados numa cara redonda, nada além de cólera e desgosto em encarar o meu rosto desafiante. Assim como ele, minhas bochechas estavam queimando de ira, teimosia e recusa de aceitar o destino escolhido para mim.
— Prefiro morrer a fazer parte disso — cuspi a verdade para meu pai, crua, sem temor do que suas ações impensadas pudessem causar. — Não sou uma substituta para Minor…
A ardência em meu rosto e o gosto metálico me fizeram parar, levando os dedos um pouco trêmulos ao lábio. Vi as pequenas gotas de sangue que surgiram devido ao tapa no rosto que acabara de receber.
— Não se atreva a repetir o nome desta desgraça na minha frente ou dentro desta casa.
— Ou o quê? — meus olhos famintos se levantaram sem pressa na direção do mais velho, no rosto uma máscara perfeita de escárnio. — Vai me bater? De novo? Arriscar estragar o seu último recurso, ou deveria dizer, sua última mercadoria?
— Não entre no meu lado ruim — o tom de aviso era claro e objetivo. Uma tentativa falha de manter minha boca fechada.
— Como se algum dia tivesse existido um bom. — minha língua afiada, quase venenosa. — Não vou me casar forçadamente com alguém que eu sequer conheço.
— Eu não estou te pedindo, estou mandando. Você vai e ponto final, não há nada que possa fazer sobre isso.
— Veremos — me levantei rapidamente sem me curvar em respeito ao mais velho. Ele não merecia isso, ninguém daquela família podre merecia. Não me curvaria a ninguém.
— Leve o meu caixão para serem feitos os votos.


— Se ficar com a cara fechada mais um pouco, vou achar que você não queria isso tanto quanto eu.
Não virei o rosto, mantendo o olhar fixo no batente da porta enquanto contemplava os parasitas sorrindo e bebendo, como se não estivessem prontos para se lançar ao pescoço uns dos outros no primeiro momento. Tão falsos quanto o sorriso perfeito que se instalou em meus lábios no momento em que assinei minha sentença de morte.
— Pelo menos você não é um tolo — minha voz se manteve firme, frases curtas para não dar a entender que estava disposta a conversar.
— Tolo não, inútil com certeza. De acordo com todos eles, é claro.
Se tivesse que descrever a voz do meu então marido, seria tediosa — pelo menos no momento —, era grave e também um pouco rouca, se arrastava preguiçosamente, deixando claro que ele só estava ali por formalidades e nada mais.
Pelo canto do olho, ousei espiar o homem com o mínimo de atenção e curiosidade. No assento dedicado ao noivo, ele estava praticamente largado, os cabelos desarrumados, o rosto apoiado na mão e uma expressão que não se importava em transmitir o quão insuportável aquela situação era. Se fosse eu a ter essa mesma atitude, podia ser deserdada da nova família imediatamente. E talvez não fosse uma má ideia.
— Você não é muito de conversar, não é mesmo? — novamente uma vez ele insistiu em iniciar uma interação.
— Aqui, não. Com você ou qualquer um que esteja envolvido com esse maldito casamento, também não.
— Bem, parece que começamos com o pé esquerdo — ouvi as vestes do kimono raspando uma contra a outra enquanto ele se movia. — Por que não fugiu? Faria um favor a nós dois.
— Como se eu não tivesse tentado — respondi com sinceridade, já que ele parecia tão infeliz quanto eu. — Me pegaram uma semana atrás.
Uma risada baixa e rouca ecoou
— Estava brincando, mas me sinto levemente ofendido. Sou tão desprezível assim?
Pela primeira vez, virei para encará-lo. Seu rosto era bem marcado, principalmente a linha do maxilar, o pescoço grosso e os olhos expressivos. No canto da boca fina, uma cicatriz. Podia dizer que ele não era fisicamente desagradável.
— Você, ainda não descobri. Mas todos os outros imundos aqui, sim, principalmente meu pai, que me forçou a casar com uma pessoa sem ao menos saber seu nome.
Poderia ter sido a sinceridade desmedida, mas algo despertou certa curiosidade nos olhos do meu companheiro.
— Bom, eu sou Toji. Seu marido, a partir de agora.
Estendeu a mão em minha direção em um cumprimento formal, esperando que eu retornasse. Encarei sua palma estendida para em seguida desviar os olhos, encarando uma decoração de madeira qualquer no fundo do salão, recusando sua mão.
Mas já que ele havia dito seu nome, respondi também com o meu.
, apenas .
Recolhendo os dedos, o homem voltou à posição original e pelo restante do evento não tentou se comunicar novamente. Meu estômago se contorcia a cada segundo arrastado. Não sabia se ficava feliz pelo tempo estar se passando devagar ou triste.
Uma pessoa passou do meu lado com algum saquê. Sem perder tempo, peguei uma das bebidas e virei imediatamente contra a boca.
Um brinde ao inferno que seria minha noite de núpcias.



Abençoada fosse eu mesma por ter proficiência em pegar as coisas sem que os outros percebessem. Graças a isso, uma pequena faca, pega de uma das mesas da recepção, estava escondida por dentro de minhas vestes. Mesmo que Toji ainda não tivesse se provado um grande babaca, quando estivéssemos sozinhos, poderia ser diferente.
O caminho até a residência Zenin foi silencioso. Não me preocupei em perguntar e também não tinha muito interesse, mas julgando pela organização das casas, achava que meu marido — palavras amargas até em pensamento — não fosse diretamente ligado ao líder do clã. Talvez um sobrinho? Era um lugar bem cuidado, isso eu não podia negar. As casas de estilo tradicional podiam ser vistas por toda a extensão do terreno e o caminho tinha algumas árvores que soltavam folhas conforme uma brisa mais forte soprava, essas dançavam em espirais até alcançarem o chão. Uma única coisa realmente bela chamou minha atenção: o céu. Por ser um local um pouco longe da cidade, dava uma bela visão para a noite estrelada.
Sem cerimônia alguma, Toji entrou em uma das casas mais afastadas, deixando os sapatos na entrada e sumindo para dentro dela. Qual era o problema dele? Me perguntei, encarando a porta por alguns momentos, até uma senhora de idade aparecer.
— Por favor, madame, entre. Esta será sua casa a partir de agora — sua voz era suave e baixa, na cabeça ostentava um coque cuidadosamente penteado com um bonito ornamento kanzashi decorando. Era bem mais baixa e, pela idade, os ombros já estavam levemente arqueados para frente.
Não querendo ser mal-educada com a mais velha, dei um aceno de cabeça cumprimentando-a, e entrei na casa olhando cada centímetro que meus olhos alcançam.
— Me chamo Hatsu e sou a governanta daqui — ela se apresentou, abaixando em seguida à minha frente para poder tirar meus sapatos.
— Por favor, não é necessário — com as mãos em seus ombros, impedi que ela se curvasse aos meus pés. — Faço sozinha.
Sem esperar uma resposta, me sentei no pequeno degrau, jogando as camadas de tecido para o lado, em seguida arrancando aqueles objetos de tortura de uma maneira nada elegante. Mexi meus dedos para me certificar de que todos estavam ali, pois havia parado de os sentir há algumas boas horas.
— Velha, não deveria estar na cama?
— Mestre Toji, que tipo de pessoa eu seria se não recebesse minha senhora na primeira noite em sua nova casa? Seria uma desonra.
Virando-me para trás, reparei que o homem já havia se livrado das vestes formais e agora vestia uma camiseta de cor escura e calças largas. Engoli seco enquanto passava os olhos pelos braços torneados e alguns outros músculos que se sobressaíam mesmo através do tecido.
— Bom, pelo menos poupa algumas formalidades. Essa aí é a , a casa tem mais alguns residentes, você vai conhecê-los depois.
— Mestre Toji, você não deve...
— Sim, sim, eu sei — ele se adiantou e colocou uma mão sobre as costas da senhora, e um medo real de que ele a quebrasse se instalou. Ao lado de seu pequeno corpo, o homem parecia uma montanha inteira. — Ande, vá se deitar antes que morra no meu corredor.
Uma risada harmoniosa deixou os lábios da mais velha.
— Ainda vou viver o suficiente para ver seus filhos, criança.
Rapidamente minha cabeça traçou uma sequência de palavras, filhos, criança, noite de núpcias.
Desgosto se alojou rapidamente em meu peito, fazendo-me levantar. Não tinha tempo para apreciar o pequeno diálogo, por mais que fosse ligeiramente divertido.
— Sua família já mandou suas coisas, estão no quarto.
Novamente a postura preguiçosa de antes, até cheguei a pensar que seus cabelos estavam mais bagunçados do que durante o casamento. Não o respondi, mas mesmo assim o homem tomou o silêncio como concordância e saiu andando para algum outro cômodo. Infelizmente, não teria escolha a não ser segui-lo. Se corresse, provavelmente só acabaria perdida em algum outro lugar, então, mesmo a contragosto, segui para onde ele havia desaparecido. Não era uma residência extremamente grande como as casas principais, mas tinha seu luxo. No fim das contas, continuava a ser uma moradia do clã Zenin.
Toji entrou em um quarto específico, e eu entrei logo em seguida. Era clássico assim como o restante das decorações, mas tinha uma cama grande no meio do quarto. Por mais que fosse baixa, era o único objeto não tão tradicional ali e agradeci mentalmente por isso. Logo reparei nos dois grandes baús que estavam no canto do quarto. Sabia que não tinha muitos pertences, mas, mesmo assim, tudo fora juntado em apenas dois deles? Andei até o mais próximo e levantei a tampa, olhando seu conteúdo. Não eram minhas vestes que estavam ali, era o que minha “família” achava que eu deveria usar. Deixei que o baú fechasse com um pouco mais de força do que o necessário.
Para o bem deles, é melhor que não tivessem se desfeito das minhas roupas de verdade.
Enquanto eu estava parada na frente dos baús praticamente bufando de raiva, senti um toque leve na parte de trás da minha cabeça. O instinto falou mais alto, tomei seu pulso com uma mão enquanto a outra mirou rapidamente a faca de talher para seu pescoço. Se ele não tivesse reflexos tão ágeis quanto os meus, estaria respirando pela garganta nesse mesmo momento.
— Você é uma coisinha astuta. Isso poderia ter acabado de inúmeras maneiras diferentes — Toji sorriu com um pouco de malícia antes de girar o braço que havia usado para bloquear o ataque, em seguida torcendo de leve o meu pulso, apenas o suficiente para que eu soltasse o talher. Com agilidade, ele usou a perna para me desequilibrar e me imobilizar no chão.
— Pode até ser ágil, mas seu equilíbrio é péssimo. Pare de se apoiar na perna esquerda.
Nossos rostos estavam próximos o suficiente para que pudéssemos nos enxergar nas íris um do outro, as pernas praticamente entrelaçadas roçando de leve apenas com tecido entre elas. Meu rosto ainda estava um pouco avermelhado, sem saber se era pela raiva ou pela investida falha. Antes que qualquer um de nós pudesse falar, a porta se abriu revelando outra das residentes. Essa parecia mais nova do que Hatsu, rapidamente fechou a porta clamando por perdão por pegar os donos da casa numa posição comprometedora e se afastou.
Toji me soltou, sentando-se à minha frente e levantando o motivo daquilo tudo para que eu pudesse ver.
— Tinha uma folha no seu cabelo.
Meus olhos afiados se fixaram na ponta de seus dedos, onde a mesma estava sendo segurada pelo cabo.
— Por que simplesmente não me avisou? — questionei, um tom de raiva ainda presente. Porém, não gritei, apenas mantive minha voz ameaçadoramente baixa.
— Você teria tentado me acertar de qualquer jeito — ele olhou a pequena folha na mão antes de se deitar encarando o teto do que costumava ser apenas seu quarto. Cruzou um dos braços atrás da cabeça antes de voltar a falar. — E então, como vai ser?
— Como vai ser o quê? — rebati. — Não tem nada.
O homem tombou a cabeça para o lado para olhar novamente para mim. Não conseguindo segurar seu divertimento, rompeu em riso, fazendo com que se sentasse novamente.
— Não estou falando sobre sexo. Estou tentando estabelecer um acordo de convivência. Eu não queria isso e você também não. Posso ser um babaca em vários aspectos, mas não vou me forçar sobre uma mulher — girou a pequena folha na mão antes que ela começasse a se desfazer. — Se alguém perguntar, diga apenas que foi... Selvagem.
Imediatamente, meus ombros se soltaram, a expressão se tornando mais leve e o homem ousaria dizer até mais bonita. Ele sabia da fama de seu clã, por isso não me julgava por acreditar que era uma possibilidade.
— Não sei — respondi. Era a primeira vez que ele ouvia minha voz sem estar enlaçada com desprezo ou algum outro sentimento negativo. — Acho que, por enquanto, você se provou digno o suficiente, para um Zenin.
— Pode se trocar atrás daquela porta — apontou para trás de si. — É um banheiro.
— Adoraria, se a minha família inútil não tivesse me mandado apenas roupas de prisioneiro.
Confusão tomou seus olhos, provavelmente não entendendo a analogia entre as vestes e a prisão. Afinal, para um Zenin, acostumado a andar no tradicionalismo, eram apenas roupas comuns e esse era exatamente o problema. Nesse momento o homem se levantou do chão, indo até o próprio armário, jogando uma peça de roupa qualquer na minha direção enquanto ainda me mantinha sentada no chão, onde ele havia me derrubado.
— Deve ficar largo, mas vai ter de servir.
Me coloquei de pé, segurando as vestes escuras contra o peito, o encarando de leve quando passei ao seu lado para seguir para o banheiro. Pode ter sido o cansaço, mas murmurei um obrigada, na minha própria cabeça, parecia tão fraco e destruído que sequer se assemelhava a minha personalidade.
Se ele fosse um pouco inteligente, talvez a analogia com a prisão fizesse um pouco mais de sentido agora.



A luz externa se esgueirava pelas fendas da pequena janela no topo do banheiro. Apesar de parecer tradicional, o ambiente tinha seu toque de luxo nos pequenos detalhes. Encarei meu reflexo no espelho; era a primeira vez que parava para reparar na minha aparência durante aquele odioso dia.
Pintada, enfeitada, realmente uma oferenda.
Um ódio subiu pela minha espinha, e sem cerimônia alguma, puxei os enfeites do cabelo, sem me importar com os fios que vieram junto. Fiz o mesmo com as vestes, e o som do tecido rasgando foi mais agradável do que qualquer orquestra sinfônica tocando a Sétima Sinfonia de Beethoven. Uma, duas, rasguei aquele embrulho até que estivesse irreconhecível.
A água corrente e fria se coloria conforme eu retirava do rosto a máscara que fui forçada a usar. Só quando me vi nua diante do meu reflexo é que me encontrei. A pessoa verdadeira que sou, não a filha de um clã em decadência ou a noiva; apenas eu mesma, com todos os meus sonhos, vontades e incertezas.
Eu ainda não estava disposta a aceitar toda aquela situação sem lutar de volta. Isso não parecia nada comigo, mas precisava pensar. Jogar com inteligência.
Passei a cabeça pela camiseta que ele me dera. Realmente, o homem estava certo: ficava enorme em mim, mas era melhor do que qualquer outra coisa que eu tinha disponível. Amarrei o tecido na lateral e dobrei as mangas; fiz o mesmo com as calças. Eu parecia uma jovem recém-saída de um videoclipe estrangeiro.
Corri os dedos pelos cabelos na tentativa de ajustá-los. Estavam particularmente rebeldes hoje, combinando com meu estado de espírito.
Julgando que já tinha ficado ali por tempo demais, embolotei os restos do Irouchikake e joguei no lixo, junto com todo o resto. Era hora de lidar com outro problema agora: um homem alto, forte e com reflexos tão rápidos quanto os meus.
Quando saí do banheiro, vi Toji olhando para o teto, aparentemente sem interesse, enquanto esperava eu me resolver com as roupas. Nada disse, apesar de provavelmente ter ouvido o meu pequeno ato de rasgar tecidos, apenas me olhou de canto de olho. Meu rosto estava quente, se era pela raiva ou por esfregar a pele para tirar toda a maquiagem, não saberia dizer.
Conforme andei pelo quarto senti seu olhar me seguindo, já tinha encontrado com homens demais para saber o que eles significavam. Minha camisa estava amarrada, abraçando a curva da minha cintura. As mangas dobradas revelavam meus braços esguios e levemente torneados, resultado de anos de treinamento. O tecido ainda marcava meu busto, acariciando de leve o restante do meu tronco. Uma faixa de pele à mostra separava a borda da camisa do elástico da calça.
— Gostaria que mantivesse os olhos acima do meu pescoço — disse, com um tom de sarcasmo enlaçando minha voz.
— Não pode me condenar por observar uma coisa bonita.
— A faca ainda está no quarto. Posso te degolar enquanto dorme, sabia? — rebati andando na direção dos baús.
Ele riu e cruzou os braços atrás da cabeça, recostando-se na cabeceira da cama.
— Boa sorte com isso. Você é ágil, . Mas não aproveita seu próprio peso para aumentar a força. Teria que subir em mim para conseguir alguma coisa — Toji segurou o riso antes de continuar: — Não que eu fosse reclamar.
Virei levemente a cabeça em sua direção, franzindo com certo desgosto.
— Nesse caso, vou humildemente permitir que viva por mais uma noite.
— É uma pena.
Continuei organizando minhas coisas, jogando algumas peças para longe e colocando outras em compartimentos diferentes. O barulho era mínimo. Ele poderia dormir se quisesse, mas se limitava a observar enquanto eu andava de um lado para o outro no quarto.
— Com que frequência você fugia de casa? — perguntou de repente, sem que eu esperasse.
— Toda noite, durante dois anos — respondi, questionando internamente por que ele queria iniciar uma conversa.
— Isso explica por que é tão… furtiva — ele comentou, mais para si mesmo do que para mim. — Tem alguma relação com seu treinamento?
Fechei o último baú, com coisas que eu considerava levemente úteis, e me virei para ele.
— Por que quer saber?
Toji se virou na cama dando as costas para mim, mantendo a voz entediada.
— Curiosidade. Não é comum mulheres no nosso mundo saberem manusear armas.
— Achei que disse que eu era ruim nisso — amargurada, devolvi a fala que ele disse anteriormente.
— Falei que não sabe aproveitar o que tem. É diferente.
Eu estava cansada, de todas as formas possíveis, mas não julguei que um pouco de conversa com aquele que agora era meu marido faria mal.
Com passos arrastados, fui até a lateral da cama e me sentei de costas para ele.
— Costumava caçar maldições à noite — disse por fim —, escondido da organização e da minha família estúpida. Teria frequentado a escola jujutsu nos meus anos de juventude, se me fosse permitido. Como não tive a chance, resolvi aprender por mim mesma. E você?
Virei-me para encará-lo. Suas costas eram largas e mesmo relaxado consegui ver os músculos marcados, tão imóvel que mal conseguia dizer se estava respirando, aguardei sua resposta, mas desisti quando não veio. Voltei a olhar para frente e quando o fiz sua voz soou.
— Não tenho energia amaldiçoada.
A princípio, achei que meus ouvidos haviam me traído. Alguém do clã Zenin sem energia amaldiçoada?
— Desculpe por isso — ele falou, com um tom cínico. — Infelizmente, você foi amarrada a uma falha como eu.
Não soube o que responder de imediato, mas de alguma forma as coisas começaram a fazer sentido. Famílias de prestígio valorizavam sua linhagem. Não haveria como eu ou Toji sermos prometidos a pessoas consideradas de elite.
— Isso então nos faz dois — juntei as mãos sobre o colo. — Acho que a última coisa com que meus parentes se importariam é comigo. No fim, só querem poder dizer que estavam relacionados aos Zenin. Mas quem casaria seu filho prodígio com uma boneca quebrada?
— O que quer dizer com isso? — escutei ele se virar, mas mantive a cabeça baixa olhando para as mãos.
— Tenho uma irmã — continuei, mantendo a voz contida. — Gêmea.
Não era segredo que gêmeos eram considerados mau presságio no mundo jujutsu, tratados como falhas, não havia uma única história sobre eles que tivesse terminado bem.
— O que aconteceu com ela?
— Sumiu — respondi, soltando um suspiro. — Numa noite, ela estava lá, e na manhã seguinte, não estava mais. No quarto, apenas o corpo mutilado de um funcionário da casa e uma faca de cozinha. Na época, ela estava prometida a um jovem do clã Kamo. O tolo se apaixonou e conseguiu convencer os próprios pais de que a união valia a pena. Obviamente, o contrato foi cancelado depois do incidente. É proibido falar seu nome naquela casa desde então. E, já que o primeiro plano não deu certo, aqui estou eu.
Toji ficou quieto enquanto eu compartilhava minha história.
— De certa forma, preciso agradecer por me tirar daquele inferno, mas mesmo assim, não consigo ver algo de bom nessa situação toda — confessei, esperando que, se eu tivesse um pouco de sorte, ele também se sentiria assim.
— Estamos presos a isso por algum tempo — disse ele, após um momento de silêncio entre nós. — Mas não vejo motivos para tornar isso um inferno. Podemos chegar num acordo.
— Estou ouvindo.
A noite seria longa, talvez não do jeito que alguma parte mais primitiva da minha mente tivesse fantasiado, mas mesmo assim, era o melhor que eu podia conseguir.



Não podia negar que Toji me intimidava, ainda que tivesse uma conversa acontecendo, havia uma certa curiosidade em seus olhos, mas também precaução. De igual forma, mantive minha postura firme, vi uma conversa virar uma cena de guerra vezes demais para ser descuidada. A faca surrupiada com cautela do casamento também ao meu alcance, se fosse necessário, poderia ganhar algum tempo visto que ele parecia mais interessado em outra coisa.
— Vai conversar comigo ou vai perder o resto do tempo olhando para minha boca — essa frase com certeza ele ouviu.
O homem ergueu os olhos para os meus.
— Estamos conversando. Na verdade, você está falando e eu estou ouvindo, não é o tipo de coisa que mulheres gostam?
— Gostam? — questionei. — É o mínimo que se espera, ser ouvida enquanto se fala.
— É mesmo? — o movimento foi rápido, até mesmo para ela, num segundo se viu sendo carregada para fora do quarto. Toji havia a jogado no ombro e estava a carregando para algum lugar. — Que tal você me escutar um pouco então?
— Qual é o seu problema? — deferi alguns golpes nas costas dele, não que fosse fazer muita diferença julgando pelos músculos firmes que se tencionavam sob minhas mãos enquanto tentando encontrar apoio para não ficar de ponta cabeça.
Ele andou até a parte de trás da casa onde havia um espaço aberto, o chão de terra batida iluminado pela lua, era a única coisa que separava o quintal de uma floresta densa que subia a montanha.
— Vamos lá — Toji repentinamente disse me jogando para frente, sem delicadeza alguma. Minhas costas bateram no chão seco erguendo um pouco de terra, por pouco não bati a minha cabeça. Tossi pela poeira que voou no meu rosto e me apoiei nos cotovelos erguendo o corpo.
— Não sou muito bom com palavras — explicou o homem se afastando. Seus cabelos eram tão escuros, que pareciam refletir um brilho azulado. Seu rosto poderia ser bonito, mas o sorriso debochado que surgiu nele criou uma súbita vontade de acertar seu rosto. Ele se alongou enquanto eu ainda me levantava batendo as mãos nas roupas que ele mesmo me dera. — Vamos nos conhecer do meu jeito agora — então ele colocou as mãos na frente do corpo numa posição clássica de luta, uma das pernas para trás mantendo o equilíbrio e punhos próximos ao rosto.
— Não pode estar falando sério — reclamei passando a mão pelo rosto e sentindo a textura granular da sujeira. Em resposta, Toji sorriu e balançou a mão me chamando para atacar, ele realmente estava esperando aquilo.
Fechei a mão em punho, travando os dentes com força. Se o que ele queria era ter uma bunda chutada na noite de núpcias, não devo recusar, certo?
Girei a perna fazendo um círculo à minha volta, a sola do meu pé marcando o chão numa meia-lua. Ao mesmo tempo que uma parte de mim pensava ser algo ridículo, a outra estava extremamente curiosa para saber mais sobre suas habilidades. Não apenas pelo homem ter bloqueado e desarmado meu ataque mais cedo, mas por ser o Assassino de Feiticeiros.
Silêncio se fez presente e quando a primeira brisa fez as folhas se agitarem, nos lançamos na direção um do outro.
A princípio ele bloqueou meu punho, desviando a cabeça para o lado, evitando o golpe. Um sorriso venenoso tomou sua boca em seguida.
— Nada mal — sua cabeça se inclinou para o lado enquanto mantinha o braço levantado. Num movimento rápido, ele virou a mão e pegou meu pulso novamente me jogando por cima do ombro, fazendo com que eu batesse com as costas no chão novamente. Dessa vez pude jurar sentir algumas vértebras estalando com o impacto. Não consegui segurar o resmungo de dor enquanto a figura do meu marido fazia sombra sobre mim. — Já disse para parar de se apoiar na perna esquerda.
Numa falsa cortesia, ele estendeu a mão para me ajudar a levantar, porém, ao contrário do esperado, repeti seu movimento, tomei seu pulso entre os dedos e o puxei para frente, minha perna então aproveitou a junta de seu joelho para o fazer cair para a frente. Com um giro e a vantagem de estar no chão, consegui virar e o imobilizar no chão.
— É espertinha, dou esse crédito a você. Mas impaciente — respondeu, em seguida me acertando na costela, forçando com que eu afrouxasse o aperto em seu pescoço. Novamente nos virando e invertendo posições.
Soprei alguns fios de cabelo que ficaram no meu rosto, vendo que o rosto de Toji estava muito mais próximo do meu do que imaginava.
— Como você consegue se mexer assim? — perguntou olhando no fundo dos meus olhos. Provavelmente tentando entender a origem dos meus movimentos. Uma família de origem jujutsu saber artes marciais não é incomum, o incomum é ter garotas sabendo lutar com seus punhos.
— Sorte de principiante — menti sorrindo. Um brilho passou por seus olhos antes de se levantar e me puxar para cima também. Dessa vez ele avançou primeiro, seus movimentos eram rápidos e precisos, não me surpreende o apelido de assassino. Consegui desviar de suas investidas, mas não contra-atacar, quando tive uma chance, Toji chutou meu pé causando um desequilíbrio e prendendo a minha cabeça entre os braços.
— Morta, pescoço quebrado — anunciou, me soltando em seguida. — Tem certeza que é a mesma pessoa que me atacou n…
Sua provocação morreu no meio da frase, pois avancei em sua direção. Toji falava demais. Porém, dessa vez um pouco diferente, afinal quem usa todas as forças com um oponente desconhecido? Ele bloqueou no último minuto, mas bastou um atraso em seus movimentos para criar uma brecha, minha perna direita fez um giro o acertando na altura da barriga o fazendo recuar.
Tinha surpresa em seu rosto, Toji olhou para o chão como se não pudesse acreditar que havia se mexido. O homem abaixou a cabeça por um momento e então a levantou sustentando um sorriso fino nos lábios.
— Você estava fingindo — disse com sarcasmo —, não podemos forjar nosso casamento baseado em mentiras.
Coloquei a mão no ombro o girando, afinal eu havia acertado o chão duas vezes.
— É uma maneira de ver a situação, prefiro o conceito de estudar o oponente e montar uma estratégia válida —Juntei meus lábios num bico, com desdém. — Não leve para o coração, querido.
Era uma coisa boa que ele me trouxe para fora no primeiro dia, havia algo que eu precisava fazer. Olhei para a floresta escura que envolvia as terras da família Zenin, procurando por um ponto específico.
— Tem proteção nas fronteiras? — dei um passo em direção às árvores sem sequer voltar a olhar para Toji.
— Talvez — escutei seus passos. — Por quê?
Olhei o homem por cima do ombro e entrei no meio das árvores, ele que me seguisse se quisesse.
Andei até que a luz não alcançasse o chão, escondida no meio da barreira do terreno senti ao longe algo conhecido do outro lado dela tentando entrar.
— O que você está fazendo? — perguntou Toji que estava me seguindo em silêncio do princípio. Não havia medo em sua voz, ou nos seus olhos, se tivesse que dizer um sentimento diria ser curiosidade.
Dei alguns passos rápidos me afastando e respondi.
— Abrindo a porta.
Minha energia amaldiçoada fluiu pelo meu corpo, abri um corte na ponta do indicador com uma pedra jogada ali e pressionei contra o tronco de uma árvore provavelmente centenária. A energia correu pelas terras, passando pelo terreno irregular da montanha até chegar do outro lado e quando isso aconteceu, voltei a escutar uma voz dentro da minha cabeça.
Achei que iria demorar mais.
Do véu de sombras surgiram duas orbes alaranjadas, passos de um animal andando sobre as folhas secas soaram em seguida, o vento se movendo com sua presença. A energia voltou para mim com uma visita, uma companhia que esteve ao meu lado há mais tempo que qualquer um. Senti meu poder original voltar e o braço queimar enquanto marcas de maldição surgiam na pele.
Um galho estalou atrás de mim rapidamente me fazendo virar, nesse momento o vento soprou as folhas das copas para longe iluminando o local. Toji parou a alguns metros de distância, sem o ar sarcástico o envolvendo e todo seu escárnio sendo substituído por algo parecido com cautela.
— Quem é você? — perguntou se preparando para lutar de verdade se necessário.
Um riso distorcido rompeu a minha garganta, não com a minha voz, mas com uma mistura de tons de atravessam eras. Meu corpo virou, ficando de frente para o homem, as marcações brilharam num tom de brasa antes de se apagarem. Consciente, mas não em controle. Entreguei o que havia de vontade para o outro lado da moeda e deixei que tivesse seu momento.
A raposa sorriu em agradecimento e respondeu meu marido.
— Meu nome é Kiran.





É estranho ver o próprio corpo se movimentar a esmo, por esse motivo a quantidade de vezes que a deixo tomar posse do meu corpo é limitada. Entretanto, uma vez que ela estava passando pelo véu de proteção dos terrenos Zenin, precisava reafirmar nossa ligação. Sentia a raposa curiosa com a presença do homem e mais ainda com a falta de energia amaldiçoada dele.
A sensação era como estar num sonho, saber que é um sonho, mas olhar tudo de fora como uma espectadora. Toji, por outro lado, parecia confuso e curiosamente conformado. Afinal, quem está no meio jujutsu acaba escutando sobre coisas muito piores acontecendo entre feiticeiros e maldições.
realmente arrumou um macho forte. — Começou a andar rodeando o homem, vendo que ele estava nos seguindo, apesar de não conseguir naturalmente enxergar maldições. Uma risada fina saiu da minha boca misturada com um ganido animalístico. Meu braço esquerdo se ergueu mostrando as inscrições de maldição e, mais, unhas que se faziam de garras, escuras como nanquim, que pintavam as mãos como luvas até desaparecer num degradê no antebraço.
Kiran raspou a ponta das garras na língua, rindo em seguida. — Isso será divertido.
Num instante, que pareceu se mover em câmera lenta, avancei na direção de Toji num ataque de agilidade. Já com a energia amaldiçoada da raposa fluindo pelo corpo, tinha mais energia, força e agilidade para lidar com aquele bruto que achou uma boa ideia sair na mão durante a lua de mel. O homem bloqueou o primeiro ataque e não pareceu hesitar muito em revidar.
As árvores do ambiente serviam como esconderijo e apoio, era fácil se movimentar pulando de tronco em tronco, fazendo ataques rápidos. As inscrições no meu braço queimavam em vermelho no momento dos impactos diretos. Assim como ele havia feito comigo anteriormente, a mão controlada pela maldição se fechou em volta de seu pulso e, com a força tremenda correndo pelos meus músculos, foi fácil arremessar o homem no chão disforme sem qualquer resquício de piedade.
Não havia tempo para pensar, ataque e desvio, Kiran usou sua experiência de centenas de anos para ludibriá-lo. Boa coisa é que o fator de cura também é elevado quando estamos compartilhando energia, caso contrário estaríamos com problemas.
Trabalhar como mercenária no mundo jujutsu te gera algumas informações, e tudo que havia ouvido sobre Toji Zenin não chegava nem perto da sua verdadeira força. Num contra-ataque com curta distância, o homem tentou tomar meu pescoço e aplicar um movimento de imobilização. Kiran desviou, tentando acertar na altura da costela, porém o ataque foi bloqueado.
Nesse momento, senti minha visão ser puxada, desperta da sensação de sonho e controlando meu corpo em primeira pessoa novamente. Minha perna ainda estava levantada do ataque, e Toji estava se preparando para revidar.
Um riso distante soou nos meus ouvidos, seguido de uma voz cínica com comentário venenoso.
Isso vai doer.
Não tinha dúvidas que a maldita raposa havia feito de propósito, os resquícios de energia amaldiçoada se foram e o que restou foi a dor excruciante na minha coluna. As folhas caíram e, ao mesmo tempo, um vento soprou, levantando terra do chão e balançando as copas sob a luz da lua.
— Raposa maldita — ralhei. Apoiei a mão no chão e me virei, verificando se ainda estava sentindo todas as partes do corpo. — Sou eu, quero dizer, sempre foi, mas… Você entendeu.
Toji pareceu soltar os ombros e a posição de ataque, e vendo que eu estava dizendo palavrões em sequência sem conseguir realmente me levantar, aproximou-se, abaixando na minha frente.
— O que é aquela coisa? — questionou.
Travei os dentes por um momento. — Obrigada por perguntar se estou bem.
Sua boca se curvou, seus olhos se iluminaram por um momento repletos de sarcasmo. — Não me fez essa pergunta quando colocou uma faca de talher contra o meu pescoço. E acredite, esposa, é a primeira que aguenta todo esse tempo.
Toji pegou meu braço, puxando-o para cima. — Vamos lá, posso carrega-lá se pedir.
Bati em sua mão, puxando a energia de Kiran a força, mas sem lhe dar o controle. O objetivo era manter um pouco de dignidade enquanto forçava o corpo a ficar de pé. — Não exagere.
— Então, quem é Kiran? Ou o que é Kiran?
Toji parecia o tipo de pessoa que não desiste até conseguir a resposta que quer. Passei por ele tentando me lembrar o caminho para voltar para a casa, tomando fôlego para responder a sua pergunta. — Minha técnica amaldiçoada, possessão de youkai.
Existem lendas das famosas criaturas sobrenaturais e espirituais por todo o Japão, são geralmente divididas em algumas classes: as formas animais, plantas ou fenômeno natural e outras categorias relacionadas a mente, reencarnação ou mundo material.
— Não tenho uma técnica de ataque, é mais de controle. O princípio é quase o mesmo de um mestre de maldições, seja por contrato ou submissão. — continuei falando. — Kiran é uma kitsune, o espírito de uma raposa. Temos um contrato de possessão, ela consegue usar meu corpo físico quando em sua totalidade, caso contrário consigo fracionar a sua energia e usar seus atributos sob meu controle.
Abracei minha cintura, fazendo uma careta quando pressionei um ponto da costela. — Por conta das proteções do terreno, ela não estava conseguindo entrar.
— Se é a sua técnica, como conseguem se separar?
Olhei por cima do ombro por um momento. — Kiran é um espírito livre. Uso sua força não quer dizer que está completamente presa a mim. Nenhuma de nós quer isso, ela se mantém por perto quando tem interesse.
— Kiran não tem a melhor das personalidades — pontuei. — Como deve ter percebido, ela cortou a possessão no momento do último ataque… Céus, acho que quebrei uma costela.
— Não estaria falando tanto se tivesse — Toji rebateu, e continuou: — Onde está seu youkai agora?
— Por aí. Não se preocupe, ela não deve matar ninguém.
— É de longe a última coisa com que eu me preocuparia. — Pela primeira vez sua voz soou sincera. — Por mim, poderiam morrer todos.
Só nascer num clã de prestígio não é o suficiente para garantir uma vida de regalias; os Zenins valorizavam energia amaldiçoada mais do que as outras duas famílias tradicionais.
— Nascer sem energia amaldiçoada não deve ter te colocado num trono de ouro, imagino.
Sua risada ecoou em resposta ao comentário. — Esse sobrenome maldito não tem valor algum para alguém como eu; de igual forma, alguém como eu, não tem valor nenhum para essa família.
Um passo em falso quando fui pular uma raiz alta me fez tropeçar. Fechei os olhos para o impacto, mas ele não veio. O tecido na frente do meu corpo me segurava do impacto, e a mão de Toji servia de âncora nas minhas costas. Virei-me para o homem pela primeira vez depois que começamos a andar, porém, antes de conseguir dizer um agradecimento amargurado, ele me puxou em sua direção, me pegando no colo.
— Não estava mentindo quando disse que não precisamos fazer disso um inferno; no fim, ambos somos peões numa aposta. Odeio a minha família, tanto quanto você parece odiar a sua.
As palavras travadas na minha garganta, prontas para reclamar, se desfizeram, e me forcei a olhar para seu rosto e os olhos esverdeados levemente iluminados pela luz que chegavam até eles.
— Até que você pode parecer uma pessoa decente quando quer — minha voz soou baixa, quase como um pensamento que escapou sem ter a intenção.
Toji tirou os olhos do caminho por um momento, seu rosto não tinha nenhuma expressão a ser percebida. — Não falaria isso se soubesse o que um Zenin realmente é.
— Talvez — respondi —, mas estou falando baseado no que estou vendo agora. Pode apostar que vou te chamar de coisa pior se merecer.
Dessa vez o canto da sua boca se curvou levemente. — Aposto que sim.
A conversa se desfez; logo, saímos da linha da floresta, seguindo para a lateral da casa. Toji entrou pela porta que dava para aquela parte de trás e me colocou no chão em silêncio, andando em direção ao nosso quarto primeiro do que eu. Segui-o igualmente calada, direcionando-me para o espelho de corpo no canto.
Levantei a camisa olhando por cima do ombro: toda a extensão das minhas costas estava marcada, alguns hematomas e outros arranhões. Até o sol nascer, a maioria deles teria desaparecido, mas a dor ainda iria me acompanhar por algumas horas além do amanhecer.
Pelo reflexo, vi o homem me encarando e, no momento em que nossos olhos se cruzaram, ele desviou, as mãos puxaram a camisa por cima da cabeça, deixando o tronco nu antes de sumir para dentro do banheiro.
Saliva se acumulou na base da minha língua, forçando um movimento de engolir. Durante a luta, e até mesmo depois dela, senti os músculos dele flexionados contra meu corpo, mas sentir e ver são duas coisas completamente diferentes. Não podia dizer que tipo de treinamento ele fez ou recebeu, podia somente assumir que foi intenso.
Toji com certeza estava muito acima dos imbecis que se metiam no submundo e, honestamente, até que fazia um pouco meu tipo. Contudo, a ideia de interesse, por mais leve que seja, é altamente perigosa, especialmente quando não tenho uma perspectiva para onde minha vida está seguindo. Não sou tola o suficiente para cair numa ilusão de que um casamento arranjado num mundo como esse pode dar certo.
Do ponto de vista técnico, podia me permitir viajar com pensamentos um pouco além. O Zenin era um lutador ágil, com experiência; encontrou com Kiran pela primeira vez e adaptou completamente o estilo de luta para a alcançar a raposa e combinar o ritmo. Antes disso, a maneira como ele lidou com meus ataques diretos também foi de certa forma… Diferente.
Lembrar da luta antes da minha raposa aparecer também trouxe com ela as sensações que passaram despercebidas na hora, como as mãos grandes e firmes e o corpo preso, ainda que momentaneamente, entre minhas pernas. Um calor subiu pelo meu pescoço e, num momento, me vi trocando o peso das pernas. Soltei a camisa e passei os dedos pelos cabelos nervosamente depois de identificar desejo no meu próprio reflexo.
Me sentei na cama, erguendo o travesseiro e encarando a faca de talher escondida embaixo dele. Toji Zenin era uma maldição disfarçada de marido; me faria bem não esquecer disso.



Acordei quando o sol já estava no céu. Quanto tempo faz que não dormia até tarde dessa forma? Ainda me livrando da preguiça de um sono interrompido, sentei-me, somente para reparar que estava sozinha no quarto. A última lembrança de Toji sendo a dele entrando no banheiro.
No pé da cama havia uma troca de roupas cuidadosamente dobradas. Olhando para baixo, percebi que dormi sem sequer me trocar, envolta em tecidos sujos de terra e manchas de suor. Com um salto, saí da cama praticamente correndo para o banheiro e mudar aquela situação, uma mistura de nojo e vergonha fazendo meu rosto esquentar.
A água estava fria, e eu preferia assim, trouxe alívio para a dor pulsante na minha coluna. Como previsto, as manchas estavam mais claras, mas a dor física de esforço e do meu corpo quase dobrando sob o tronco de uma árvore, estavam presentes. As roupas dessa vez não pareciam ser de Toj; vestiram meu corpo muito melhor do que aquela jogada em mim na noite passada. O que me levou a crer ter um dedo da governanta nessa ação.
Vendo de dia, aquela residência não era tão grande, então foi fácil encontrar uma pequena ante-sala onde pratos de comida estavam postos sob uma mesa de madeira baixa e tradicional.
— Madame — Hatsu me cumprimentou assim que me viu aparecer na porta. Junto dela estavam duas outras meninas que imediatamente pararam de se mover para cumprimentar da mesma maneira. Elas não pareciam ter mais do que quinze anos, ambas de cabelos escuros: uma com cabelos curtos na altura dos ombros e a outra tinha os fios mais longos presos por um laço na altura da base do pescoço.
— Não precisa de toda essa formalidade — pedi, erguendo a mão. — Se curvar dessa maneira é completamente desnecessário.
— Mas a madame é a senhora da casa — disse a garota de cabelo curto. — Não podemos faltar com respeito.
— Estou pedindo para não fazerem — tentei sorrir e colocar meu ponto sem ser grosseira. — Então não é uma ofensa, certo?
A mais velha balançou a cabeça. — Devemos seguir seus desejos, Madame. Permita-me apresentar as meninas.
As duas ajustaram as vestes e arrumaram a postura. Apontando primeiro para a de cabelo curto: — Tani e Yuina, ajudam com as tarefas que esse corpo velho e inútil já não consegue cumprir.
— Hatsu, não diga isso — Tani disse ofendida, sendo seguida por Yuina.
— Sem Hatsu, não estaríamos aqui, nem estaríamos servindo mestre Toji e a madame.
Nesse instante, algo fez um barulho na cozinha, Yuina rapidamente se virou e entrou dentro do cômodo novamente. Encarei por alguns momentos, tentando entender qual era a dinâmica naquela casa. Toji disse terem mais residentes quando chegamos na noite anterior, mas não estava esperando por isso.
Com um suspiro, tentando conter os resmungos de dores, me sentei. — Podem parar com essa formalidade de mestre, madame, senhora. Somente , está bem.
Tani abriu a boca para responder, mas quando Hatsu se virou para ela, suas palavras não soaram. A garota sorriu e assentiu com a cabeça. — Vamos terminar o café da manhã, por favor, faça-se confortável.
Hatsu permaneceu por perto; devagar, ela se moveu, tomando um momento para sentar no chão, próxima ao canto mais distante da mesa. Pessoalmente, tinha a sensação de que Hatsu não tinha outra expressão além daquela sustenta em seu rosto nesse momento. Calma, carinhosa, com um meio sorriso nos lábios.
Olhando um pequeno relógio no canto, percebi ser um pouco mais das 9h da manhã, um começo de manhã relativamente normla para uma casa tradicional. Apesar da minha presença, tudo parecia rotineiro.
— Hatsu — chamei com um pouco de incerteza, sentindo as palavras arranhando a minha garganta antes mesmo de serem ditas. — Sabe onde está meu…Marido.
Esperava que a força que fiz para segurar uma careta fosse o suficiente para conseguir uma resposta.
— Mestre Toji costuma sair nas primeiras horas do dia — respondeu —, é assim desde que era menino. Fugia da casa para evitar o pai e o irmão; um Zenin sem energia amaldiçoada é considerado menos do que lixo.
Uma semelhança inesperada: o desprezo por qualquer um que não alcança o que dizem ser a perfeição. Depois que minha irmã gêmea fugiu de casa, tive que ouvir por incontáveis noites os gritos jogados ao vento, às vezes dizendo que devia ter nos matado no momento em que nascemos, outros apontando o desperdício que era a minha existência.
— Se é assim, por que continuam aqui? — questionei, olhando para a mesa. — Que benefício existe em servir alguém que não tem poder?
A mais velha deixou a cabeça cair por um momento, cruzando as mãos em cima do colo solenemente. — Fomos entregues ao clã Zenin como pagamento, não valemos nada para eles. Uma velha e duas meninas de rua são praticamente invisíveis para a família principal, mas não para aqueles semelhantes.
Ela não estava errada sobre isso. Respirei fundo e passei a mão pela coluna, sentindo as dores com uma respiração mais profunda; a base das minhas costas estava me matando.
— Imagino que a primeira noite não tenha sido tão fácil. — O tom de voz da mais velha tinha algum divertimento.
Ergui uma sobrancelha, ainda esfregando o local, procurando alívio. — Não foi, mas provavelmente não do jeito que está pensando.
— Não tenho direito de insinuar nada — respondeu, sem abandonar o aspecto divertido. Hatsu se levantou e circulou a mesa, sentando-se ao meu lado, pedindo uma permissão silenciosa para me ajudar.
Assenti, e então suas mãos começaram uma massagem muito melhor do que a minha desculpa de compressão, retomando o assunto em seguida. — Os vi no campo de treinamento, por um certo tempo. Peço desculpas pelo mestre Toji, ele certamente não sabe como se portar.
— Falando mal de mim pelas costas, velha?
Quando me virei, o homem acabava de passar pela porta. Toji parou por um momento ao ver que Hatsu estava com as mãos em mim, tinha um pouco de confusão em seus olhos, mas desapareceu rapidamente quando ele se aproximou e se sentou. Ao mesmo tempo, senti uma pressão repentina e o som de ossos se chocando.
Arfei com a dor, me inclinando para frente como se fosse fazer alguma diferença, um gemido de dor num primeiro momento, mas uma sensação reconfortante em seguida. Hatsu continuou a fazer movimentos circulares com as palmas.
— Desculpe, vai melhorar agora.
Fiz um sinal com a mão e escutei um riso vindo do único homem do local. — Parece engraçado para você?
Toji colocou o cotovelo na mesa apoiando o rosto na mão. — Um pouco, para alguém que estava tão agressiva ontem, essa postura chega ser infantil.
Travei a mandíbula antes de soltar os primeiros insultos que vieram na língua. — Não estaria assim se alguém soubesse se controlar.
— E qual é a graça disso? — O homem se sentou à minha frente, mirando os arranjos de mesa. — Devo pedir para trocar os talheres? Morrer com um hashi parece menos digno do que com uma faca.
Sarcasmo praticamente pingava da sua boca; o canto de boca puxado num meio sorriso e a pose desleixada absolutamente me tirava do sério. A sorte dele foi que as jovens trouxeram o café da manhã, prevenindo que seus ouvidos recebessem uma resposta mal-educada.
— Ficar me encarando dessa maneira não vai resolver nada — comentou, pegando um dos acompanhamentos e jogando na boca. — Também não gosto de meias-palavras, então fale de uma vez.
Travei o maxilar. — É sempre insuportável desse jeito ou se esforça?
Toji deu de ombros e manteve o sorriso enquanto mastigava, os olhos fixos no meu, gritando por um desafio. Abaixei a cabeça por um momento, apertando os talheres na mão, uma sensação iminente de morte.
— Preciso de um favor — falei, com esforço, cada palavra queimando na língua.
— Em troca de quê?
Minha vontade verdadeira era de enfiar cada um daqueles hashis de metal por seus olhos até que saíssem pela parte de trás de sua cabeça. A expressão cínica que não deixava seu rosto somente o deixava mais insuportável.
— Dinheiro? Armas? O que você quer? — Me forcei a engolir, não só o alimento, mas também a negociação.
Toji dobrou a perna usando de apoio para o cotovelo. — Não sei. Porém, ainda não me falou qual o favor. Posso negar independente do pagamento.
Bati os dedos na mesa. — Preciso ir até a casa onde cresci. Pegar alguns pertences que ficaram para trás e tesouros jujutsu.
— Me parece o tipo de coisa que se pode fazer sozinha. — Toji pareceu confuso pelo pedido ser relativamente simples.
— Seria, se eles não fossem me ignorar no momento em que aparecer, pelo menos o seu rosto e seu nome vão me dar uma passagem… Menos turbulenta. O homem pareceu me olhar com cuidado, um pouco de confusão e então entendimento. Provavelmente se lembrando dos acontecimentos da noite anterior, da vida de merda que vivi com aquilo que um dia chamei de família.
— Não é como se eu tivesse algum compromisso. — Sua cabeça abaixou, voltando a olhar para a comida, procurando seu próximo alvo. — Posso fazer esse favor, decido sobre o pagamento depois.
Não é muito, mas é algo. Não poderia passar o resto dos meus dias usando roupas de outras pessoas, sem falar na quantidade absurda de coisas escondidas no sótão da casa: armas amaldiçoadas, dinheiro, listas e informações de meus clientes. Não recebo ou sequer sou filiada às instituições jujutsu; feiticeiros legalizados recebem um salário mensal de acordo com seu nível. Atuar no submundo tinha suas vantagens e desvantagens, a maior delas sendo não saber quando chegaria um trabalho.
Deixei a casa pouco tempo depois da proposta de companhia, para não falar outra palavra. É completamente diferente andar pelos terrenos de dia, os residentes nos encaravam como uma peste, de canto de olho, com expressões que navegavam entre nojo e desprezo.
Honestamente, nada muito diferente do que já estava acostumada. Apesar da hostilidade, minha cabeça se manteve alta e os passos firmes. O terreno ficava numa área afastada da cidade, o que significava que precisaríamos gastar algum tempo caminhando até a civilização. Uma das únicas coisas que consegui manter, por perto, foi um cartão de banco, de onde saquei algum dinheiro. Depois de pegar um táxi, fomos direto para uma estação de trem.
— Seus contratos pagam bem — Toji disse após se sentar. — Tem mais dinheiro na sua conta do que eu imaginaria.
— Você não tem o perfil de curioso, se bem que intrometido parece um bom adjetivo. — Sentei-me ao seu lado. — Não sou você, mas recebo bons contatos.
— Entendo, só uma boa garota tentando livrar o mundo de algum mal. — Toji estava sendo legal demais para abandonar seu sarcasmo.
— Uma mulher tentando se livrar de alguns inconvenientes — corrigi. — É diferente, sabe como funciona o submundo, não tem bondade, existem negócios.
— Não está errada sobre isso. — Toji deixou o corpo escorregar na poltrona e então fechou os olho. Nossa conversa morreu mais uma vez.
O trem partiu da estação de Tóquio para Nagoya logo em seguida; a linha de alta velocidade passava por três das maiores áreas metropolitanas do Japão em poucas horas. Nosso destino ficava no meio do caminho, em Quioto, cidade conhecida entre nosso meio por ter a segunda maior escola de Jujutsu do país.
O trem estava relativamente cheio. Virava ocasionalmente a cabeça para tentar olhar os passageiros, mantendo a guarda alta. Cerca de uma hora de viagem depois, senti um arrepio chegar na minha nuca. Um cheiro nauseabundo se formou, e o lampejo de caudas de pelagem avermelhadas surgiu para mim entre bancos.
Coloquei a cabeça no corredor, reparando em algumas pessoas específicas, um rapaz franzino que parecia sentar-se sozinho e, em seguida, um casal de idosos. Entre eles, uma maldição, grotesca, sem forma. Um amontoado de carne envolto apenas de um grande olho, de protuberâncias em sua pele avermelhada com pequenos tentáculos que se lançavam, prendendo aos passageiros.
Essa é uma problemática, .
A voz de Kiran soou na minha cabeça, ao mesmo tempo, em que as marcas de sua energia amaldiçoada tomava completamente minha mão direita. A maldição recuou, atravessando o metal para o outro vagão de passageiros. Ter uma criatura como aquela causando problemas pelo trem era ruim, não só pelas vítimas, mas também pelas perguntas que seriam feitas aos passageiros depois. Questionamentos que em sua maioria só me fariam parecer mais suspeita no caso de uma fatalidade.
Levantei-me, decidindo que seria melhor lidar com ela in loco. Afastei-me do assento para perseguir a maldição, contudo, antes de atravessar para outro vagão, uma frase solta com veneno chegou aos meus ouvidos.
— Disse que você era uma boa garota.
Escolhi ignorá-lo, afinal o meu alvo era a maldição, não o idiota do meu marido, passando para a próximo carro do trem. A maldição não estava por aí, mas eu conseguia ver seu rastro.
A maldição é rápida, vou vasculhar para você.
Não respondi a Kiran, afinal, só pareceria uma louca falando sozinha, porém minha youkai conseguia entender minhas intenções mesmo sem palavras.
No mundo em que vivemos, existem certos conhecimentos que são gerais. Maldições surgem onde os sentimentos mais terríveis se proliferam, um vagão de trem não é um lugar propício a isso, o que me fez acreditar numa manifestação proposital. Mestres de maldições tinham mais de uma maneira de liberar seus bichinhos de estimação e dar ordens.
Continuei andando pelos vagões, procurando os rastros, ficando irritada a cada minuto que passava. Kiran voltou, e com ela a informação.
Quando você se mexe, a maldição se mexe. Claramente você é o alvo. Fazer-se de isca vai ser a melhor opção. É um veneno que está sendo injetado nos humanos; devem passar mal por um tempo e, com sorte, sobrevivem.
Parecia para mim apenas uma oportunidade de causar alguma confusão. Só havia uma pessoa que faria esse tipo de ação para chamar minha atenção. Teria de entregar o meu controle para Kiran e deixar que ela usasse sua velocidade total para resolver a situação rapidamente.
Sentei-me numa poltrona vazia e esperei, por dez, quinze, vinte minutos, até que a maldição se apresentasse novamente para chamar minha atenção. Mantive os olhos fechados até que sentisse a sensação viperina em meu pescoço novamente. À medida que se aproximava, o cheiro pútrido ficava mais forte; a sensação era de ter pequenos tentáculos rastejando pela minha pele, subindo pelo pescoço.
No momento em que a maldição estava próxima o suficiente, veio a reação. A mão que tinha as marcas da energia compartilhada com Kiran se virou, prendendo a criatura entre garras escuras, esmagando em seguida como uma fruta que passou do ponto de madura.
O efeito do veneno não pareceu desaparecer das vítimas, considerando a movimentação inquieta dos passageiros e o começo do auxílio dos funcionários.
Quando retornei para meu assento original, Toji estava dormindo, totalmente despreocupado. Parecia estranho para um maníaco como ele ignorar por completo uma maldição por perto.
A viagem continuou por mais uma meia hora. Chegamos à estação, e o homem ainda cochilava. Tomei o momento como uma oportunidade e fechei a mão em punho, acertando sua coxa com mais força do que o necessário. Seu corpo reagiu, segurando meu pulso, e os olhos se abriram num segundo, mirando a minha forma.
— Não puxe sua sorte, .
Sorri, deixando a cabeça cair um pouco para o lado. — Do que está falando? Estou somente acordando meu cônjuge do seu sono profundo.
Toji soltou meu pulso, mas nada disse. Escolhendo deixar sua resposta presa.
Minha antiga casa não ficava tão distante da estação principal, cerca de vinte minutos andando. Quioto, como qualquer cidade grande, tem suas áreas ricas e as subdesenvolvidas, o bairro para qual estávamos seguindo ficava no intermédio. Porém, não queria dizer ser bom em qualquer circunstância.
Cortando caminho pelas vielas, por onde fugi tantas vezes, percebi uma mudança no ar. Os pelos nos meus braços se eriçaram e, no momento em que me virei, fui recebida por um golpe. As garras de cor de nanquim de Kiran seguravam o metal destinado ao meu pescoço e, no fim da empunhadura, uma pessoa que conhecia bem e esperava nunca mais ver em minha frente.
Ergui a perna para afastar a atacante com um chute, porém ela recuou com um sorriso distorto nos lábios.
— Você cresceu, . — Sua voz era esganiçada e repleta de loucura, cantada numa cadência sem ritmo, digna de alguém que havia se entregue para a insanidade. — Como se atreve a não me convidar para seu casamento?
— Deixou bem claro que não fazia mais parte da família quando fugiu daquele inferno de casa — rebati, antendo a voz dura e a expressão severa. — O que você quer, Minori? Para liberar uma das suas maldições no trem, certamente tem algo para ralhar.
Sua risada ecoou. A mulher abraçou o próprio corpo — envolto num kimono surrado —, levando a lâmina que me atacou até a boca, correndo a extensão do metal pela língua. — Foi um bom presente, não foi? Não poderia fazer menos do que isso para minha irmã.
A mulher pulou de um pé para o outro. — Mas é claro que eu não posso te contar o que eu quero, bobinha. Qual seria a diversão nisso?
Um círculo escuro se formou ao redor dos seus pés, e dele uma maldição de características humanoides se ergueu, segurando-a sentada em um dos ombros. Minori cruzou as pernas e se apoiou na cabeça da criatura.
— Digamos que estava… Curiosa. — A mestre de maldições sorriu, olhando para o homem atrás de mim. — Cuidado com o seu marido.
< E então ela se foi, tão rápido quanto apareceu, levando a energia amaldiçoada do ambiente com ela. O poder de Kiran se desfez apenas para me fazer reparar num corte raso na palma da mão.
— Como se as coisas não pudessem piorar — Limpei o filete de sangue na calça, sem ter realmente o que fazer, esperando que o gesto fosse o suficiente para coagular.
— Tem algo muito errado com a sua irmã — Toji comentou, coçando a lateral da cabeça. — Toda sua família é estranha assim?
— Não que a sua seja muito normal para começo de conversa. — Minha resposta foi rápida, envolta numa amargura repentina. — Para alguém como você, está se provando ser muito mais passivo do que o esperado. Não se moveu no trem e nem agora.
O homem deu de ombros. — Caridade não está nos meus interesses, e você certamente não precisa que eu me meta em assuntos de família.
Sua fala me fez franzir por um momento. Claro que seu lema parece ser ação mediante a pagamento, contudo, a aparição e aviso de Minori pareciam programados demais. Ela, que se livrou de laços morais há muito tempo, não se preocuparia em dizer algo como “cuidado”.
— Aposto que não foi por isso que Minori me disse para ter cuidado com você. Foi? Um sanguessuga financeiro.
Toji sorriu e deixou a cabeça cair para trás, o sol alto no céu iluminando seus olhos esverdeados. — Terá que descobrir sozinha.
Canalha.


Continua...


Nota da autora: Obrigada por ler até aqui!
Até mais, Xx!

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