Tamanho da fonte: |


Codificada por vênus. 🛰️


— Não, não aperte com tanta força, — a voz masculina logo atrás das minhas costas é doce como mel, posso sentir o hálito gelado que Ivan sopra em minha nuca. O ar parece formigar ao bater contra a pele, e, automaticamente, os pelos estão eriçados, totalmente conscientes de sua presença tão próxima.
Tenho certeza que ele percebe minha reação, pois a risadinha que dá em resposta soa bastante cretina. O ignoro, apesar de ter certeza que não seria capaz de simplesmente não sentir nada por ele, ou por seus olhos verdes hipnotizantes, muito menos por seu corpo firme se encaixando ao meu.
Ivan é esperto o suficiente para saber que me tem em suas mãos, e que faria qualquer coisa para tê-lo tão perto quanto possível. Se estalasse seus dedos, no momento seguinte eu estaria presente onde precisasse de mim. O sentimento de posse é quase degradante.
Relaxo os ombros, ajeitando as costas em uma postura ereta. Um suspiro lento escapa entre meus lábios como se o gesto fosse o suficiente para limpar minha mente de uma vez por todas. Mentalizo meus mantras, preciso focar em minhas habilidades e na evolução delas.
Preparo-me mais uma vez para levantar a pesada arma em minhas mãos, e quando o faço dessa vez, meu cérebro parece focado no objetivo, é simples. Aperto os dedos contra a AK-9 em minhas mãos e praticamente engulo o oxigênio.
Ar para dentro, ar para fora, dentro e fora, com calma agora.
Os dedos calejados de Ivan deslizam em minha cintura, apertando o tecido fino da blusa de caxemira contra minha pele. Sinto-me acender com o seu toque, e ele sabe que isso me desconcentra, divertindo-o.
Uma nova risada em baixo tom vibra entre o espaço mínimo de nossos corpos; o som é melódico e doce ao mesmo tempo. Se estivesse sussurrando em meus ouvidos, tenho certeza de que poderia me fazer sentir como se fosse capaz de voar.
— Respire, , você pode respirar.
Os pensamentos em meu cérebro são tão rápidos e constantes que é quase como se o órgão fosse explodir. Preciso me esforçar mentalmente para ser capaz de reorganizar as repostas que envia para todo meu organismo, como eu tivesse a capacidade de controlar a minha mente.
Meus lábios se apertam em uma linha firme enquanto miro meu alvo à frente: uma velha garrafa de vodka barata.
Os dedos deslizam suaves pelo gatilho, seduzidos pela frieza do metal. Atiro, mas a arma não dispara apenas um projétil como a pequena .22 que carrego presa em minha bota de combate. Uma rajada de tiros é disparada por essa arma; os projéteis são rápidos o suficiente para fazer meus ombros tremerem e eu cortar lábio inferior, devido à força dos dentes pressionados contra a boca.
O vento forte faz meus ouvidos zumbirem. O ar gelado é cruel a ponto de quase queimar a pele, mas os tiros não fazem barulho como deveriam, não com o supressor que Ivan colocou na boca do cano do rifle.
A sensação é incrível.
Algo me preenche, um misto de prazer e assombro. Assim que consigo relaxar os dedos na coronha, não consigo conter o grito estridente de pura alegria que sai de meus lábios. Estou tão tomada de emoção que levanto novamente a arma, apertando o gatilho mais uma vez. O peso da arma ao disparar quase me faz derrubá-la.
No segundo seguinte, é claro, Ivan a retira de minhas mãos em um movimento rápido, acionando a trava de segurança como se eu fosse incapaz de lidar com minha própria excitação. Automaticamente estou irritada e, ainda assim, só consigo admirar o poder em suas mãos. Tão delicada e silenciosa e, ao mesmo tempo, tão potente e perigosa.
— Você às vezes age como o meu pai, Ivan — meu sorriso em sua direção é propositalmente irônico. Estou ciente do quanto isso o magoa, e, no momento, é a reação que vejo em seu rosto.
Enquanto meus ombros se movimentam em um gesto infantil, para cima e para baixo, ando em direção aos restos da garrafa, empurrando os pequenos cacos para o lado para que eu consiga me sentar na caixa de concreto.
Ivan me segue em passos lentos e para em minha frente, encaixa seu corpo entre minhas pernas e acaricia minhas pernas nuas com seus dedos delicados, porém sempre firmes. A mão de um Homem Feito. Seu olhar lascivo é quase assustador, e capaz de intimidar o maior dos inimigos.
— Quando eu me parecer com Sergei , pode ter certeza que serei morto pelo meu próprio pai, — ele dá uma risadinha, mas posso sentir o tremor em sua voz. Não há nada que abale sua confiança mais do que seu pai e seu punho de ferro.
Sem nem mesmo pensar, soco seu ombro com a força que sou capaz de inferir, mas, antes que ele possa reclamar da dor, empurro meus lábios contra os seus, puxando sua boca para a minha.
Ele tem gosto de álcool e menta. Aproximo nossos corpos ainda mais, tentando nos aquecer no frio congelante de Moscou. Meu beijo o desestabiliza tanto quanto pensar em suas obrigações e sua família, mas simplesmente parece... certo.
Ivan Koslov é meu primeiro e maior segredo. Jamais poderia dizer aos meus pais que, ocasionalmente, estou beijando a boca do inimigo.
Em nosso círculo de amizades, somos comparados a Romeu e Julieta. Mas ao invés de Montecchio, Ivan é um Koslov, e seu pai, Mikhail, comanda a Semyonova, que ocupa a parte norte de Moscou.
Sei que sua família está por trás de boa parte do tráfico de drogas, se estendendo até São Petersburgo. Eles são sujos e cruéis, competem para saber qual consegue ser mais desumano. Eu deveria odiá-los, mas não pude evitar de cair por Ivan assim que nossos olhos se cruzaram.
E quanto à minha parte da história, bem, acho que sou muito mais do que Julieta Capuleto. Sou o veneno que poderia acabar com a vida do Romeu.
No romance de Shakespeare, após a morte dos protagonistas, ambas as famílias tentam viver em harmonia, a fim de proteger a memória dos filhos queridos e apaixonados.
Infelizmente, essa é a vida real, e só há um final possível para a nossa história. Tragédia.
Não há nenhuma possibilidade nesse mundo, ou qualquer outro, em que o líder dos e dos Koslov sejam parceiros de qualquer coisa. Não quando a história de ódio é muito antiga.
É o maior clichê de todos: ambos se apaixonam pela mesma mulher, e ela precisa escolher. Não importa o que decidisse, Elizabeth sempre destruiria o lado que fosse desprezado.
A grande diferença dessa história para outros romances e tragédias é que estamos falando da Bratva. E não importam os percalços, os desfechos são sempre os mesmos: guerra e morte.
Elizabeth e Sergei se apaixonaram à primeira vista. Talvez tenha sido o mesmo comigo e Ivan. Só não tenho tanta certeza de que poderia abrir mão da minha liberdade para servir a um homem da Bratva como minha mãe fez.
Carregar o sangue de um Vory v Zakone é uma realidade da qual não poderia escapar. Agora, ser troféu de um Homem Feito e servi-lo como um superior era uma escolha. Eu me agarraria a isso.
Mikhail é um dos líderes, e havia jurado acabar com todos nós se saíssemos da linha. Papa não é um santo e não ficou para trás – também prometeu que destruiria um por um, até o último Koslov. Mesmo que se custasse caro, ele estava disposto a pagar o preço.
E ainda assim, em meio a juras de ódio e morte, eu estava beijando Ivan como se não significasse nada de mais. Jogando a merda diretamente no ventilador como se não pudesse voltar diretamente em nossa cara a qualquer momento.
— É uma coisa absolutamente ridícula de se dizer. Até mesmo de pensar. Nunca seremos como nossos pais... — digo com firmeza ao separar nossos lábios. Seguro seu rosto em minhas mãos, apertando suas bochechas entre as palmas.
Apesar de todos os movimentos proibidos, palavras trocadas em sussurros e bilhetes passados por baixo das mesas, acho que nunca paramos para realmente pensar sobre a rixa entre nossas famílias. Somos apenas adolescentes sonhando demais sob o céu de um mundo tão fodido.
— Se somos tão diferentes de nossos pais... — de repente, seus olhos brilham e se movimentam como um oceano em que poderia me afogar. Há tanto dito no silêncio que é quase dolorido, e sou consumida pelo momento, por Ivan.
Seus dedos correm minhas costelas, cintura e quadril até que alcançam a barra da minha saia de veludo escuro. Ele não hesita em levantar um pouco o tecido, precisando do contato tanto quanto precisa de oxigênio para sobreviver.
Dedo a dedo, centímetro a centímetro, ele aperta a região que toca, arrancando um suspiro lento dos meus lábios. Um gemido ameaçando alcançar a garganta e escapar como uma promessa de que nada mais importa do que isso, esse momento.
— ... Por que diabos estamos carregando canivetes...
Koslov puxa delicadamente a lâmina presa na cinta-liga em minha coxa, correndo o metal gelado pelo interior das minhas pernas. Deixo minha cabeça cair para trás, admirando o céu escuro e frio que sempre parece abraçar minha terra.
Apesar da baixa temperatura, sinto tanto calor que posso derreter a qualquer instante. Seu toque é só o que preciso para ser tomada por chamas e luxúria. Seguro um lamento ao sentir os lábios de Ivan alcançarem minha garganta, cobrindo a pele em um beijo úmido.
— E por que estou te ensinando a atirar com um fuzil de assalto?
— Porque Kalashnikovs me deixam excitada, e você não é idiota, Ivan. Trouxe a arma para me impressionar — a resposta esperta está pronta em meus lábios, e nossas mentes, conectadas. Aperto seu corpo entre as minhas pernas, o trazendo ainda mais próximo. O grunhido em resposta soa como um urso prestes a acabar com sua presa. — E se você fosse esperto... — em um movimento rápido que havia aprendido com meu mentor de luta, empurro seu corpo com os punhos, fazendo-o cambalear para trás. Puxo minha milyi .22 de dentro da bota e miro o cano em sua direção. — Não abriria tantas brechas.
Assim que nota a arma apontada em sua direção, Ivan salta mais um passo para trás, seu corpo automaticamente se posicionando em alerta. Ele aponta meu próprio canivete na direção do meu rosto, seus lábios se transformam em um largo sorriso lascivo que me faz ficar ainda mais quente.
Ele poderia atirar a lâmina direto em meus olhos, se quisesse. Alguns anos atrás, isso teria me feito tremer de pavor, porém não hoje. Não com os treinos diários com Nikita. Eu poderia me esquivar de seu ataque com facilidade, e isso me deixa orgulhosa.
Tenho consciência de que talvez não tenhamos tanta confiança assim um no outro, não o suficiente para contarmos o que fazemos em nossas aulas com nossos instrutores, ou dentro de nossos lares em geral. Sei que Ivan deve imaginar que passo meus dias aprendendo a cozinhar e a costurar, como uma boa filha prometida.
Mas quando o sol está nascendo e se pondo, estou em uma sala de luta, aprendendo em meio a socos e esquivos a não precisar de ninguém. Nenhum homem.
A porta da escada de emergência abre com um estrondo, batendo contra a parede de tijolos improvisada que leva ao telhado do prédio praticamente vazio.
Há muitos lugares como este na Zona Neutra, e é por isso que gostamos de passar tanto tempo por aqui. Silêncio. É algo difícil de encontrar quando sua casa também é a casa da Bratva.
Yolav nos encara um tanto arredio, seu rosto manchado de confusão com a situação que presencia. Ambos seus amigos apontando armas um para o outro, semblantes flutuando entre o divertimento e também selvageria.
— Wow, wow, wow, o que está acontecendo aqui? — aos poucos, Ivan relaxa seus ombros e deixa os braços caírem ao lado do corpo. Ele gira a faca em sua mão, estendendo o cabo do canivete em minha direção, que não chego a alcançar.
Ele solta uma gargalhada tão divertida que parece preencher o ar pesado entre nós, tornando o clima mais ameno.
é uma pequena arma de combate, Yolav, e eu absolutamente adoro essa garota — suas palavras doces parecem flutuar até meus ouvidos, e nem mesmo parece que mirava uma faca para o meu rosto há poucos segundos.
Yolav acena uma afirmação com a cabeça, mas a tensão ainda é visível em seu olhar, e ele não recua de sua posição de defesa. Ele é seu braço direito, melhor amigo desde o nascimento, e faria tudo para proteger o Koslov – mesmo que isso significasse perder sua própria vida.
Encaixo a arma pequenina em minha bota; o metal gelado incomoda ao se acomodar na meia. Ivan aproveita para se aproximar e se ajoelha em minha frente, fazendo questão de subir a saia para colocar o canivete no lugar.
Meu rosto esquenta com a sensação de suas mãos em minha pele, e ele beija meu joelho ao perceber que me deixou tímida, só para provocar um pouco mais. Ivan é assim, um diabo disfarçado de anjo sobre a Terra.
Yolav pigarreia, chamando nossa atenção mais uma vez.
— Mikhail está te procurando, tem algumas tarefas para a próxima manhã — Ivan se posiciona de pé em um pulo, seus olhos encaram os meus com tristeza. Tenho certeza que estamos dividindo nossos pensamentos novamente.
Dou de ombros em resposta, tentando encorajá-lo com um aceno de cabeça e uma expressão facial mais firme. É claro que não estou feliz. Não quero que vá agora, está frio e escuro. Também não quero voltar para casa agora, não é o melhor lugar do mundo.
— O dever familiar chama — ele abre um sorriso que tento corresponder, mas não sou capaz. Meu rosto não parece responder aos meus comandos, não em meio à decepção.
Ainda assim, beijo seus lábios em uma carícia intima, deslizando meus dedos por seus cabelos macios, memorizando cada momento que dividimos como se fosse o último.
— Nos encontramos logo, .
— Sim, nos encontramos.
Ele não se demora em sua despedida, talvez não quisesse estender o momento e assim acabar desistindo de ir embora. Apesar disso, seus passos são lentos até chegar à porta da escada de emergência.
Yolav o espera impaciente, trocando o peso do corpo de um lado para o outro. Eles levam a AK-9 embora, o que me deixa ainda mais infeliz.
Meu pai não me deixaria atirar com uma arma como essa nem mesmo sob supervisão. Imagino então como será quando Nikolav se tornar um Vor. Imagino também se algum dia chegará a considerar a minha presença em sua sala de reuniões, afinal de contas, o que significam as mulheres quando se trata dos assuntos da Bratva?
Pelo canto dos olhos, vejo Ivan segurando a maçaneta da porta já quase fechada; a sensação do vazio começa a me preencher e me torno novamente uma . Já não sou sua, , não tenho mais qualquer liberdade.
Chamo seu nome, pretendo dizer que adoro estar ao seu lado e que pretendo vê-lo novamente o quanto antes, mas nenhum som sai de meus lábios – apenas um aceno de cabeça. A única resposta que Ivan me dá é um bonito sorriso. Não há nenhuma palavra de conforto.
Apenas sorri e se vai.
Me dirijo à beirada do prédio, inclinando o corpo sobre a balaustrada de pedra, instigando os ouvidos com o zunido dos motores rua abaixo. O vento bate lancinante contra minha pele. Subitamente, a noite parece mais fria, e a falta da presença de Ivan faz com que o lugar pareça um tanto assustador.
Encaro o negro céu acima da minha cabeça. Às vezes, acho que chegará um momento em que não haverá mais luz em Moscou, ao menos não haverá luz para mim.
Não sou uma arma de combate como Ivan se referiu – ao menos não para Sergei –, mas estou a caminho de ser mais, muito mais do que meu pai espera. Tenho certeza que ainda conseguirei provar isso a ele. Ainda serei, aos seus olhos, digna de ser mais do que um troféu para qualquer homem.
Serei livre para ser apenas eu.

O rangido da porta é estridente, como se a madeira gritasse que estou de volta, tempo demais após do toque de recolher imposto pelo meu pai. Minha própria casa está me entregando. Quase posso ouvi-la berrando: “ei, olha só quem está de volta com a boca inchada de tanto beijar o inimigo?”.
A cama ainda feita parece chamar meu nome; o estado de euforia já se esvaindo, dando espaço para o cansaço físico e mental. Me sento na beirada do colchão para retirar o par de botas. A luz do abajur se acende e eu salto para a frente, já alcançando a faca ainda presa à cinta.
Estou preparada para brigar com quem quer que seja, mas meus dedos estão cruzados em minha mente para que não seja Sergei ou Elizabeth.
Para meu conforto, é apenas Katya, com os braços cruzados na altura do peito e uma expressão que flutua entre algo próximo à tirania e outra parte quase divertida. Ela sabe que quase me matou do coração, mas obviamente esteve preocupada, o que a faz acreditar que tenha o direito de estar furiosa.
Tiro a faca da cinta e a arma da meia. Guardo ambas na gaveta do criado-mudo ao lado da cama, logo abaixo do fundo falso.
— Você podia, pelo menos, atender o telefone quando está longe? — um suspiro pesado escapa por meus lábios, mas não sei dizer se é alivio ou incerteza.
O que sei é que Katya pode ser tão perigosa quanto Sergei, se quiser. É só encará-la por tempo demais para ver as chamas começarem a queimar no fundo de suas íris.
Papa perguntou onde estava.
— E o que você disse? — meu coração parece querer pular para fora do peito. Somente a possibilidade de Sergei saber o que faço bem debaixo do seu nariz já me deixa apavorada.
— Que foi ajudar Catalina com o bebê.
É uma ótima mentira. Papa sabe que gosto de crianças e também de Catalina Razov, filha de uma das melhores amigas da mamãe. Como parte do nosso círculo secreto de amizade, Catalina não me deduraria caso Sergei ligasse para questionar minha presença em sua casa.
Porém, como esposa de um Vor, já não posso ter tanta certeza.
— E ele comprou a ideia? Ligou para os Razov?
Ver a cabeça de Katya balançando negativamente é o suficiente para fazer com que meu corpo desabe na cama. Meus membros parecem tremer com o alívio.
— Incrivelmente sim, mas eu não! — com o canto dos olhos, enxergo a expressão amarga que faz seus lábios entortarem. Odeia que eu saia sem contar para ela antes, odeia que não a leve junto e, pior ainda, odeia que eu esteja com Ivan.
— Já discutimos isso tantas vezes, Katy. Só estou me divertindo — digo com a voz diminuindo de acordo com sono cada vez mais próximo. O som que parece subir do peito até pular da garganta da minha irmã é quase feroz.
Com muito esforço, movimento meu corpo até ficar sentada mais uma vez. Abro os braços para que ela, apesar de teimar por uns instantes, ande a passos largos e me abrace, se aninhando comigo na cama grande demais, sempre vazia demais.
— Só não quero que se machuque, — não consigo segurar minha risada, que, apesar de baixa, faz Katya apertar seus dedos em um beliscão na minha barriga.
— Não vou, pode deixar isso comigo. Podemos até apostar todos os brincos que ganhei no último ano. Ivan não faria nada contra nós — Katya aperta seus braços ao redor do meu tronco com ainda mais força.
Fecho os olhos e deixo que o sono me alcance. Há uma sensação de tranquilidade dançando no ar sobre nós.
Tenho certeza que Ivan não me machucaria, não quando há tanto em jogo.

¹ O AK-9 é um fuzil de assalto russo compacto e automático, baseado na AK-47 com algumas modernizações.
² Tradução livre RUS-PT: Doce.
³ Vor significa o mesmo que Homem Feito. É uma maneira de se referir àquele que se tornou parte da equipe do Pakhan. A partir deste momento, ele terá sua função definida na família da Bratva.


FRANKLIN MORRIS

Levei meu primeiro tiro aos 17 anos.
E isso é tudo.
Apaguei da minha memória qualquer coisa ligada àquele dia, pelo menos até agora.
Um. Dois. Oxigênio entra. Oxigênio sai. É normal sentir o peito pesar assim?
Meus olhos se fecham, mas não é uma escolha. Memórias me engolem como a boca da baleia engole um plâncton. Por completo e tudo é escuro enquanto me afogo.
Lembro-me de estar com alguns amigos em Miami Beach, curtindo minhas primeiras férias após o fim do colegial. Estávamos encarando loiras bronzeadas, com pernas torneadas e biquínis minúsculos, porque é claro, não costumávamos pensar com a cabeça de cima.
George Halliwell era sempre o primeiro em tudo, e fazia jus à sua própria fama. E por ser exatamente assim, resolveu dar um oi para uma delas, com sua lábia e confiança pairando acima da sua expressão astuta.
Não era para ser nada de mais, nunca era nada de mais, apenas uma brincadeira de garotos idiotas. Eu o apoiei. Eu sempre apoiava suas merdas. Porque era para isso que melhores amigos serviam, para fechar os olhos, ouvidos e lábios, e apoiar.
O que Mr. G. não fazia a menor ideia, muito menos eu, era que as garotas já estavam acompanhadas. E acompanhadas de homens muito perigosos.
Trey Sommers era um dos capangas mais aterrorizantes de uma quadrilha que noticiavam de tempos em tempos na televisão. As chamadas nos jornais locais reforçavam o quão cruel era. Mais tarde, vim a descobrir que sua função era comandar o cartel de drogas e tráfico.
E era extremamente insensível.
É claro que já havíamos ouvido seu nome antes, e não apenas porque ele era procurado pela polícia, mas também porque qualquer garoto idiota da nossa idade sabia que, se quisesse usar droga de qualidade, devia ir atrás da maldita máfia. Não usávamos drogas com frequência, mas sempre soubemos onde conseguir a melhor.
Mas enquanto os jornais denunciavam seus feitos, seu rosto jamais era exibido. Não sabíamos com quem estávamos lidando.
Quando viu George, um branquelo de ossos finos dando em cima de uma de suas namoradas, pareceu ter decidido com um único e rápido pensamento que o garoto deveria morrer, afinal, estava claro que não sabia o seu lugar no mundo dos verdadeiros homens.
E simples assim, sacou sua arma calibre .38 e atirou para cima.
Pensei por um momento que quisesse apenas nos assustar; um tiro era o suficiente pra fazer qualquer playboy se borrar até o último centímetro de suas calças. Até mesmo me aproximei de George na tentativa de puxá-lo para longe, antes que as coisas pudessem piorar.
Charles, outro de nossos amigos, acompanhou-me até o lado de Halliwell. Só queria dizer a ele que estávamos indo embora. Dizer ao homem armado que éramos apenas crianças aproveitando nosso verão. Pedir desculpas e voltar para casa, rindo da nossa estupidez.
Mas é claro, Sommers não estava nem aí para a porra do nosso verão.
“Garotos precisam aprender a não pôr suas mãos no que não lhes pertence”, ele disse aos gritos. No segundo seguinte, sem que pudéssemos nos defender, abaixou o cano da arma em nossa direção e disparou a quantidade de balas que a arma dispunha.
As pessoas ao nosso redor correram ao ouvir os estopins, pisoteando umas às outras, buscando abrigo. Outras se encolheram em suas toalhas, rezando preces baixas como se fosse o suficiente para transformar o tecido em escudo.
Um vendedor de sorvete levou um tiro na perna. Pude vê-lo caindo na areia, se contorcendo de dor enquanto gritava por ajuda. Próximo a nós, uma garota de cabelos escuros tomou um tiro de raspão no braço.
Mas tudo aconteceu rápido demais, não havia qualquer possibilidade de ajudarmos essas pessoas. Não havia qualquer possibilidade de qualquer ato heroico, até mesmo porque também precisávamos correr por nossas vidas. Éramos apenas garotos.
Trey era o dono da arma. Ele segurava o poder absoluto em suas mãos e parecia bastante disposto a brincar de Deus. Éramos apenas garotos e, mesmo assim, não havia em seus olhos nenhum sinal de arrependimento quando cada um dos tiros disparados parecia uma divertida brincadeira de roleta russa.
Como num filme de terror em que o pior acontece em câmera lenta, vi um projétil penetrar no olho direito do meu melhor amigo.
Sangue e massa cerebral acertaram direto em minha cara quando a bala atravessou sua cabeça.
Em minha garganta, um urro gutural de desespero genuíno se formou. Em meu coração, uma despedida prematura. Em meus pensamentos, a consciência de que também morreria.
No fim das contas, parecia bastante justo. A amizade verdadeira não poderia existir apenas nos bons momentos. Eu aceitava seus erros e seus acertos, então abri meus braços para receber a morte assim como George.
Sommers acertou a lateral da minha cabeça, logo abaixo do local onde você provavelmente corta sua franja.
O mundo se apagou aos poucos, a escuridão me abraçando como se fossemos velhos amigos.
Sempre acreditei que o momento da nossa morte seria como nos filmes mais clichês, com um vídeo dos melhores momentos passando por trás dos seus olhos, um último brilho de tudo que poderia ter sido. Todavia, em minha morte, só havia dor.
Quando voltei a acordar, alguns dias depois, os médicos me explicaram que haviam sido cinco cirurgias. Eu era, de repente, um bravo sobrevivente.
Ao lado da minha cama, flores e balões pareciam sorrir em minha direção, como se tivesse conquistado um feito muito importante neste mundo.
Mas não conseguia parar de pensar em como George não havia tido a mesma sorte, e precisou ser enterrado com o caixão fechado.
Nunca mais vi nenhum dos garotos. Nunca mais pude me aproximar de meus amigos porque cada um havia seguido sua vida, principalmente tentando esquecer aquele episódio.
Nunca pude esquecer.
Senti a dor de sua morte todos os dias, ainda sinto. Sobreviver havia sido um presente divino, mas também me incumbiu a responsabilidade de carregar, durante o resto dos meus dias, o peso da culpa nos ombros.
E se eu tivesse impedido que ele falasse com as mulheres? E se eu tivesse o puxado e corrido. E se... E se... E se. Mas não o fiz. Não há nada que possa mudar isso.
E é pesado pra caralho.
Precisei amadurecer muito rápido depois disso. Primeiro para entender minhas responsabilidades, também para aguentar as consequências do que uma simples brincadeira havia nos causado. Mas depois de cinco graves cirurgias e um milagre, sabia exatamente qual o motivo para o Divino ter me deixado continuar na Terra.
Era eu, e apenas eu quem poderia nos vingar de Trey Sommers.
Não fui uma criança ruim, acho que estava mais para o contrário; eu era o mocinho entre os meus amigos cheios de má índole. Georgie me arrastou do fundo da sala de aula e uma pilha de livros de matemática. Meu primeiro beijo foi em um jogo de verdade ou desafio. Aos olhos das outras crianças eu era só um perdedor. Eu cresci um perdedor.
Mas não me permiti perder para sempre.
Planejar como chegaria a Trey Sommers novamente, como o faria pagar por cada um dos seus pecados, demorou um bom tempo. Contudo, quando você sobrevive a uma merda dessas, pode ter certeza: paciência não é uma dádiva, mas sim uma obrigação.
Aguardei pacientemente e fui o melhor dos pacientes, até que os meus fisioterapeutas e psiquiatras me liberassem. Abandonei os planos de estudar Economia para entrar na Academia de Polícia. Dei meu melhor e fui o melhor. Tinha consciência de que não poderia desgastar meu corpo já cheio de falhas, e muito menos minha mente.
Precisava estar preparado, pois sabia que o momento chegaria.
Aprendi a almejar a grandeza, enquanto meus colegas rejeitavam qualquer probabilidade do meu sucesso por causa do “acidente”. Enquanto me descartavam por saber das limitações, eu me esforcei, mais e mais duro.
De repente, percebi que não era apenas sobre Trey Sommers e a bala que eu desejava todos os dias meter em sua testa. Era sobre ser forte o suficiente, ser respeitado, e se possível, algum dia, esquecer o passado.
Aprendi da maneira mais dura que ser temido era, muitas vezes, melhor do que ser amado.
Pessoas danificadas são perigosas. Elas sabem exatamente o que devem fazer para sobreviver.
Assumir tal postura me ajudou a subir degrau por degrau. Todos os que me diminuíram em algum momento deixaram de me desprezar, muito pelo contrário, agora não apenas entendiam o meu propósito como também me apoiavam.
Levei tempo demais para cumprir meus objetivos, para chegar onde queria. Contudo, em todos os anos servindo à Polícia de Miami, nunca parei de procurar por Sommers ou pela equipe da qual fazia parte.
Tudo começou aos dezessete anos, apenas um garoto. Aos vinte e cinco, senti que podia, finalmente, pôr um ponto final ao ser indicado pelos meus superiores para um programa no FBI. Tinha certeza que tinha em mãos a oportunidade perfeita para me aproximar da localização de Sommers e seus superiores.
Os planos estavam dando cada vez mais certo.
O sorriso brincalhão de George em minha mente. Eu o vingaria.

O coração parece ribombar em meu peito. Suor escorrendo desde a nuca e, então, por toda a extensão das costas. O capacete está firme em minha cabeça, apertando as têmporas com força suficiente para me deixar um tanto enjoado.
Sinto a ansiedade corroer órgão a órgão. Só quero arrebentar logo essa porra de porta e estourar os miolos de Trey. A AK-47 em meus braços parece gritar o mesmo, o metal pesado parece estremecer ao reconhecer seu objetivo tão próximo. Aperto meus dedos com ainda mais força ao redor do fuzil.
— Unidade dois, fiquem a postos — diz a voz. O rádio de comunicação preso ao peito de Jetson chia baixo em resposta. Todos estão preparados. Nunca estive mais preparado.
Ergo a arma um pouco mais, apoiando-a contra o meu peito. Firme. Minha respiração parece falhar por um momento, mas engancho o dedo no gatilho e pronto, é tudo que preciso para saber que nunca estive em melhor condição do que agora.
Esperei tempo demais por isso.
— Aguardem o meu sinal, companheiros — Jet diz ao mesmo tempo em que ajeita a escuta em seu ouvido. Em suas mãos, uma M27 reflete as luzes da rua, o cano fumacento como o diabo. Ele apoia o rosto na coronha, o ar entra e sai por seus lábios, lentamente. Ele é um líder nato. — Sigam minhas instruções sempre. A base acabou de informar que Sommers está aí dentro — ele gira seus olhos rapidamente para os meus e completa: — McCarter também. É muito importante capturá-los vivos — enfatiza, e sei que está falando para mim.
McCarter é o líder da quadrilha, o que faz da sua prisão a cereja do bolo. Para eles é mais uma prisão bem-sucedida, nada é pessoal como é para mim.
Os agentes Roberts, Williams e Zayev nos acompanham e estão visivelmente tão ansiosos quanto eu, indiferente às suas motivações. Todos os três têm mais tempo de casa: Roberts é um dos melhores espiões da equipe, e, como cabeça da equipe de tecnologia, sua presença é vital. Williams foi um fuzileiro naval. Zayev foi transferido de uma base russa e tem um grande conhecimento bélico.
Perto desses caras sinto-me quase pequeno.
Encaro Jet com nervosismo, meus braços gritam com a vontade de sair metendo bala para todo lado. Mas é ele quem dá as ordens, afinal de contas é o capitão. E eu aguardo e aguardo e aguardo.
Sinto que estou prestes a explodir, não sei até onde sou capaz de segurar as pontas. Meus cabelos estão encharcados sob o capacete e minha visão embaça, até que Jetson ergue o indicador da mão direita, nos indicando a prosseguir. Finalmente!
Pressiono o cano da arma em meus lábios e respiro mais e mais profundo a cada passo que avançamos.
Não importa quanto tempo levei para alcançar esse momento, nem mesmo meus esforços para conquistar tudo que conquistei até então. Toda vez que fecho meus olhos, enxergo novamente a bala atravessando o olho de George Halliwell, até sair do outro lado da sua cabeça. Ainda posso ouvir a risada de Trey enquanto fugia, enquanto meu corpo sangrava aos poucos. E podia sentir minha vida se esvaindo a cada segundo em que esperava deitado sob o sol quente. Era isso que me mantinha atento. Focado.
Fui presenteado com uma segunda chance; George, não. Ele jamais poderia tocar seus maiores sonhos, sempre tão grandes. Seus objetivos bem formados, seu plano de vida. Nunca seria pai de uma linda menininha quando se casasse com uma bela modelo e fosse morar na sua mansão dos sonhos, em Mônaco. Nunca dirigiria sua Ferrari azul piscina. Halliwell jamais poderia terminar sua graduação, por Deus, ele nem mesmo terminou de arrumar sua cama no dormitório da faculdade!
Por causa de tudo isso, cada um dos seus sonhos perdidos, fiz questão de me preparar tanto e tão pacientemente. Esse momento era o que me mantinha respirando.
Ao novo sinal de Jet, avançamos com brutalidade. Não há espaço para a calmaria agora. O acordo era pegar os chefes vivos, mas o restante dos seus capachos, para falar a verdade, não eram nada importantes. Eles seriam a parte divertida.
A mansão presidencial do Royal Palm não está muito bem segura, pois, quando entramos, percebemos que são poucos homens que atiram de volta. E os que avançam não são muito inteligentes. Estava claro, não havia uma estratégia de defesa, eles não nos esperavam.
Aperto o gatilho da AK, sentindo a pressão puxar os músculos do ombro para trás com violência. Há um poder desumano em sair atirando contra pessoas. Não há a menor possibilidade de transformar a morte em uma prioridade quando em serviço.
A cada homem que precisei matar, acompanhei o corpo até a sala do necrotério. Sempre fiz questão de parar por um tempo e assistir ao médico realizar a pesagem, esperando o momento em que o peso diminuiria assim que a alma lhe deixasse a carcaça. Mas ali, com as balas zunindo em meu ouvido, tão próximas ao local onde uma já esteve alojada, só consigo pensar uma coisa: a balança que pesaria o corpo de Trey Sommers nunca diminuiria, afinal, não havia a menor possibilidade de ter uma alma ali.
É curioso, mas não estou preocupado em tomar um novo tiro. Não de verdade. Não quando meu objetivo é exclusivamente um: parar Trey e sua corja.
Jetson e Roberts interceptam Reginald McCarter na suíte máster, inclinado sobre um punhado de roupas, praticamente pronto para fechar suas malas e escapar. Mas eu continuo. Ele não é a cereja do meu bolo.
Sommers está quase alcançando a porta dos fundos. Sua cabeça gira de um lado para o outro, parece bolar um plano de fuga no qual “que se fodam seus capangas, ele não poderia morrer”.
Por um segundo seu olhar se encontra com o meu, encarando-me espantado. Talvez fosse a bola de fúria em meu peito ou apenas a minha própria confusão mental, mas poderia jurar que vi um brilho de reconhecimento dançar por suas íris. Eu faria com que se lembrasse.
Tinha segurado minha onda até então, não dando espaço para o ódio tomar conta do meu corpo, ainda que por dentro me sentisse vibrando como um balão prestes a estourar. E eu queria estourar, principalmente os miolos do Sommers.
Como se ouvisse os meus exatos pensamentos, Capitão Jetson Richards envia Kyle Roberts para o meu lado. Não ouço o que ele me diz, como se uma membrana protetora surgisse ao redor da minha cabeça, me impedindo de compreender qualquer coisa. Tudo que vejo é vermelho.
Concordo com qualquer coisa que tenha dito, só para que não me impeça. O sigo pelas costas, emboscando Trey, que dispara em uma corrida em direção à porta dos fundos. Jet o surpreende pelo outro lado, antes que possa atravessar.
Cercado e acuado, Trey Sommers se vira em nossa direção. Ergo a mira da arma para sua cabeça, marcando o ponto central da sua testa. Quero que saiba que não estou brincando, assim como não brincou ao atirar para cima antes de apontar a arma e assassinar George.
Tudo que desejo é terminar logo. Todo o tempo esperando este momento, todo o esforço, a dor e suor.
Respiro com raiva, até os pulmões doerem. Fecho os olhos. Por trás das pálpebras, vejo meu melhor amigo, alguns anos mais velho, sentado na mesma cadeira de praia que usávamos em nosso último verão, enterrando Sandy na areia e bebendo cervejas.
Ele sorri para mim e, de repente, eu sei.
Tudo havia me guiado a este exato momento.
Abro meus olhos para concluir que sei exatamente o que fazer. Aperto o gatilho da AK-47, acertando diretamente em seu joelho. O corpo de Trey desaba com um baque surdo ao atingir o assoalho.
Apesar de parecer interminável, tudo acontece em apenas segundos. Contudo, agradeço por ter pensado e agido rápido como fiz, pois não tenho certeza de quanto mais tempo de lucidez meu cérebro teria me permitido. Um segundo a mais e eu teria atirado em sua cabeça, tenho certeza disso.
Não ouço mais barulho de tiros. Os homens que não estão rendidos, estão mortos. Meus amigos estão bem. Não houve feridos de forma severa, apenas um ou dois tiros de raspão.
Nas palavras de Jetson, os capangas de McCarter deveriam ter sido treinados por Stormtroopers, já que suas miras eram aparentemente uma merda. Ele nos faz rir, e o suspiro que sai de meus lábios é de alívio.
Volto a me aproximar de Sommers, um gosto amargo se prendendo à minha língua e céu da boca. Havia me preparado tanto para viver este momento que, agora, parecia perdido ao relento recoberto com minha dor.
Jetson me agradece o bom serviço com um tapinha no ombro. Ele para ao lado do bandido, citando as frases de autuação e o algema. Tudo que posso fazer é torcer para que o algeme tão apertado a ponto de dificultar a circulação do sangue.
O capitão é o único que conhece toda a história e, diabos, talvez me conheça melhor que qualquer um também. Ele sabe que isso é pessoal e que este momento era de extrema importância, de forma que espero ao menos que lhe cause dor.
Jet me deixa levar o crápula até o camburão que nos espera do lado de fora da mansão. Sei que pensa que me deve isso por me tirar o momento de glória, e talvez esteja certo. Depois de tudo, mereço ser aquele que o faz ver o sol em liberdade pela última vez.
Puxo o colarinho da camisa do bandido para cima, que ergue seu corpo com dificuldade, já que não pode se apoiar nas mãos, e o joelho sangra como o inferno. Assim que começa a andar, chuto levemente a parte de trás dos seus joelhos, apenas para vê-lo cambalear. Jet me lança um olhar incisivo, ao que respondo com um dar de ombros. Pelo inferno, ele terá tratamento médico depois!
Empurro Sommers para dentro do veículo, fazendo-o tropeçar no metal da carroceria. Antes que fechem a porta, ele me encara mais uma vez e sinto de novo o reconhecimento tomar conta da sua expressão.
— Eu já te vi antes — ele diz, e ouvir sua voz me desperta tantos gatilhos que preciso apertar minhas mãos em punho antes que traia qualquer autocontrole que consegui até o momento.
Considero lhe dar um tapa, mas sei o quão antiético isso seria. Eu não me daria ao luxo de estragar tudo por um simples machucado. Já que me privei de tanto, não custa mais nada ser um pouco paciente uma nova vez.
Não consigo controlar meus lábios, porém, de se rasgarem em um sorriso vil ao elaborar em somente uma resposta:
— Garotos precisam aprender a não pôr suas mãos no que não lhes pertence — digo, saboreando as palavras repetidas e amargadas com o tempo saindo de meus lábios.
Então o deixo ali, vazio e sozinho, finalmente dando um pouco de paz ao meu espírito e ao espírito de George, que descansasse em paz onde quer que estivesse.



A sala de armas sempre foi a mais brilhante da casa.
A lataria da coleção imensa de armas da Vory v Zakone, nossa família dentro da Bratva, reluz como diamantes. Não que eu tivesse permissão de visitá-la com frequência, é claro, mas sempre gostei de criar ocasiões para poder, ao menos um pouquinho, espiá-la.
Andar pelos corredores da mansão necessita de atenção e cuidado, principalmente quando você é uma mulher. É preciso ter respeito com os soldados que cruzam o seu caminho.
É claro que, por outro lado, também conta muito ser uma . Apesar de estar muito abaixo do pakhani e seus herdeiros homens, eles sabem que, se cruzarem seu olhar com o de qualquer uma das mulheres da família no momento errado, podem perder seus olhos antes mesmo de piscar uma última vez. Sempre foi assim.
Sempre gostei dessa sensação de poder, seria hipocrisia negar. Até mesmo porque os direitos em nosso favor são tão poucos que não aproveitar a sensação fluida de poder, explodindo cada vez que um homem abaixa sua cabeça, seria uma grande idiotice. Não me considero superior a nenhum dos soldados do Sergei, mas absolutamente também não estou abaixo.
Ainda que alguns poucos fizessem questão de empertigar os ombros e empinar o nariz em nossa presença – ou sempre que cruzávamos nossos caminhos –, jamais teriam poder sobre mim, mama ou Katya. Éramos suas senhoras e nos deviam respeito. E eu me orgulhava disso. Precisava me orgulhar.
Minha irmã sempre fez questão de dizer que eu tinha herdado esse tanto de orgulho direto do sangue de Sergei. Mesma essência em diferentes carcaças. Só não sei dizer se está me elogiando ou criticando, e, saindo da boca da Katya, tudo pode ter um duplo sentido.
Quando era criança, torcia o nariz e até mesmo acabávamos brigando, afinal de contas, papa é um líder cruel. Ele pode esconder suas atrocidades bem debaixo de nossos narizes, mas mesmo ao nosso redor, sua dureza flui pela transpiração sempre que saímos da linha.
Por isso, odiava ser comparada a ele, no que quer que fosse. Mas, agora, depois de tanto tempo observando seus passos, sou obrigada a concordar que nossas personalidades não são de cores muito diferentes. Somos feitos da mesma carne, mesmo sangue e, aparentemente, pela mesma paleta de cores escuras, sóbrias demais.
Ao menos, papa não é um homem mau, bem... talvez um pouco.

Volto mais uma vez de um passeio às escondidas. Particularmente acho um saco ter que esconder tudo que faço. Gostaria de poder avisar a todos que tenho saído com Ivan, seus amigos e que está tudo bem. É claro que as coisas não funcionam como quero, não aqui, nessa família.
Nikolav está brincando com uma faca borboleta no jardim de inverno. Ele gira a lâmina entre os dedos como se segurasse um controle de videogame ao invés de uma arma. Penso por um momento, mas não me recordo de termos realmente jogado em um videogame alguma vez na vida.
Depois da sala de armas, esse é meu segundo lugar favorito em nossa casa. O teto abobadado é de vidro liso e está sempre limpo, e toda vez que há um céu bonito em Moscou, nos juntamos para um chocolate quente. E quando neva, o teto fica coberto com o gelo branco, me fazendo sentir como se estivesse em um iglu. É lindo!
Admiro os cabelos claros de Niko; ele é tão parecido com papa nas suas fotos jovem que às vezes fico espantada, pois são praticamente a mesma pessoa. Um sorriso doce sob um olhar quase severo, características fortes que marcam as faces dos dois homens que mais amo no mundo.
Ele parece muito agitado; a faca gira com velocidade demais para que possa controlar. Uma volta descompassada e acaba cortando seu dedo indicador. A lâmina desaba no chão com um tilintado agudo. Niko solta um palavrão com a dor que parece pungente e aperta a palma da mão intacta contra o dedo sangrento, como se assim pudesse estancar os fluidos de gotejarem.
Nikolav engole a dor como o homem que tem sido treinado para ser e se prepara para pegar a arma do chão, enquanto o pinga pinga de seu sangue continua. Contudo, sou mais rápida e ajunto a faca em um movimento fugaz, girando-a em meus dedos com velocidade e muito mais habilidade do que meu irmão. Um pouco do seu sangue que ainda estava na lâmina acerta minha pele em pequenos respingos.
Niko pula de susto e quase cai do banco, o que me faz gargalhar alto. Ele arregala seus olhos a ponto de parecer que irão saltar para fora das órbitas, mas torce seu nariz para mim, nada satisfeito com minha interrupção. Mordo minha língua para não irritá-lo ainda mais.
Puta merda, achei que fosse um daqueles bostas dos soldados do papai — ele diz, apertando a base do dedo ao mesmo tempo em que coloca a ponta na boca. Talvez seja a maneira mais rápida de estancar de vez o sangramento.
— Olha a boca, Nikolav! — digo, tapando seus lábios com uma das minhas mãos. Espero que ninguém tenha ouvido! — Meça seu tom ou pode se ferrar, moleque!
Se alguém tivesse o escutado, a primeira coisa que perderia era o acesso à sala de armas. Mas, se caísse nos ouvidos do papa, só Deus sabe quais seriam seus castigos. Ainda sim, o pirralho apenas revira os olhos. Como pode ser tão cínico?
Niko tem apenas 15 anos. Sei que não passa de uma criança mimada, mas também sei que tem direito de, pelo menos de vez em quando, bancar o rebelde. Ele sabe exatamente qual é o seu verdadeiro lugar dentro desta família, e talvez seja exatamente por isso que tende a desprezar as regras.
Suas razões para desacatar as ordens e burlar nossas leis são boas, afinal de contas, Sergei é tão insensível com ele quanto é com seus inúmeros fantoches de guerra. Provavelmente são pelas mesmas razões que escondo tudo que escondo de todos. Irmãos não podem ser tão diferentes assim.
— Ah! Que se foda, ! Você não é minha mãe e não manda em mim! Eu que vou comandar essa merda depois que o velho apodrecer! — ele diz. Não estou pensando direito quando acerto um tapa em sua bochecha. Ele vira o rosto, parecendo extremamente chocado.
— Niko, me desculpe! Eu só... — digo, parando para pensar um instante.
Quanto mais remoo a situação, mais fodido parece. Nikolav está certo. Não importa que tenha apenas 15 anos, ele é quem comandará toda a nossa organização quando Sergei se for.
Mesmo sendo a primogênita e Katya ser apenas dois anos mais nova, nunca poderíamos comandar a Vory v Zakone. Porque somos mulheres e, para qualquer um dos homens da Bratva, inferiores. Fomos criadas acreditando que nosso único objetivo é continuar a linhagem. Agraciadas com muita beleza e pouco cérebro. Eles estão errados como o diabo. Analisando melhor, Niko está certo, é tudo muito, muito fodido.
Sento-me ao seu lado, apoiando o queixo nas mãos. Ele se afasta um pouco para me dar espaço e ainda chupa seu dedo ferido. Volto a girar a faca em minha mão; os dedos ágeis deixam o movimento da lâmina quase invisível. Poderia cortar a jugular do inimigo em um único golpe – o que é irônico, já que não estou exatamente contra o inimigo.
— Viu só? Não é tão difícil, é só praticar mais... — falo, na esperança de que isso possa animá-lo um pouco mais. Lembrarei Nikita de forçar um pouco mais o treino de prática de armas brancas com ele. — Por que está tão puto com o mundo? — questiono. Ele me encara ao ouvir o palavrão e dá um risinho em resposta. Respondo também rindo, mais por achar graça do fato de Niko se espelhar tanto em qualquer coisa que eu diga ou faça, mesmo quando não sou o melhor exemplo, do que realmente é engraçado.
Katya é a mais severa entre nós três, até mais do que nossa mama. Não só com o pequeno, mas comigo também. Sua maneira de pensar é muito diferente da minha e de Nikolav. Ela sabe como andar na linha.
Não somos idiotas em nos colocar entre papa e Niko, é claro, mas passamos muitas noites os três dividindo uma cama, consolando-o depois das surras injustas que sempre leva.
Na Bratva ou você é um homem ou um rato, não há meio termo. Meu irmão nem teve tempo de escolher o que gostaria de ser. Ele nasceu para ser ensinado, para ser treinado.
É tão ferrado que ninguém o veja como o vejo, uma criança. Para Sergei, começar agora é apenas uma lição para se tornar um homem feito antes do esperado. A verdade é que o homem que comanda o sul e sudoeste de Moscou às vezes pode se parecer com o próprio diabo; agir como ele ainda mais.
Niko balança os ombros distraído, e fico irritada com seu gesto. Quero pegá-lo pelos ombros e chacoalhá-lo. Odeio que fique tão calado, odeio estar impotente a esse mundo. Saber que não posso colocá-lo em meu colo novamente e lhe contar histórias para dormir, pois aquilo não é coisa de homem... Argh! É uma merda.
Até os oito anos, eu via Nikolav como a criança mais irritante do mundo todo, ainda que, em contrapartida, fosse desajeitado, engraçado e super ativo. Eu o amei mais do que tudo assim que pousei meus olhos em sua carinha redonda.
Mas então ele fez 10. Responsabilidades clamaram toda a sua energia. Niko já não podia ser o mesmo, não andava da mesma forma, nem mesmo respirava como antes. Tudo que via como colorido ao seu redor agora parecia pintado de tons de cinza. Ainda mais agora, parecendo tão pequeno com seus ombros encolhidos...
— Hmm... — ele sonoriza, parecendo não saber até onde tem permissão de falar comigo sobre o assunto. De repente, odeio papa por não permitir nem mesmo que possa falar, desabafar seus anseios, explanar o que lhe aflige.
Que diabos de lavagem cerebral tem feito em meu irmão, Sergei?
Quero que se sinta seguro ao meu lado, por isso não o pressiono a falar, apenas alcanço sua mão machucada e puxo um lenço de dentro de sua camisa. Enrolo o tecido fino em seu dedo que quase não sangra mais.
— Ouvi papa falando sobre a Oryol mais cedo. Acho que ele não ficou muito feliz, fez questão de me dizer que eu era um xereta enquanto me espancava na bunda — ele diz. Seguro uma risada em minha garganta; a imagem que se forma em minha cabeça é hilária, mas não quero irritá-lo ainda mais. — Na bunda, tem noção ? A merda de vergonha que passei na frente dos fantoches!
Mordo meus lábios com ainda mais força para não gargalhar alto, mas ele percebe minha expressão e me dá um soco leve no braço em resposta. Não está irritado comigo. No fundo, ele sabe que provavelmente foi engraçado mesmo. E injusto.
— Ok, ok, chega... — digo ao apertar meus dedos contra os seus.
Sei o quanto isso o deixa inseguro, então não opino sobre o assunto, apenas lhe estendo sua faca. Ele desenrola o lenço de seu dedo e usa o mesmo tecido para limpar a lâmina com carinho, quase como se estivesse polindo um diamante.
Bem, talvez fosse como um diamante para ele. Afinal, a faca foi o seu primeiro presente ao ser iniciado tradicionalmente pela Vory v Zakone. Aquela também tinha sido a primeira lâmina de Sergei quando o dever lhe chamou, ainda criança. E agora pertencia a Nikolav.
A arma era como uma promessa de que um dia governaria, tudo que construíamos seria seu. Um legado que deveria passar às próximas gerações, ao próximo líder. E assim para toda a eternidade. Os bandidos dentro da lei só tinham um futuro: morrer pela família.
— Me diga... O que ouviu sobre a Oryol de tão grave que teve que apanhar na frente de todos? — pergunto, e preciso segurar minha risada mais uma vez. Ainda parece muito engraçado.
Niko bufa alto, seus lábios são massacrados por mordidas irritadiças. Ele parece pensar por um momento. É bem provável que considere muito o que dizer, pelo menos algo que não o deixe ainda mais encrencado.
— Alguma coisa sobre os americanos... Sobre a parceria que eles pensam em formar, para acabar com...
! — a voz de Sergei rimbomba pelo ar e nos silenciamos. Meu irmão encolhe ainda mais em seus pequenos ombros. — Nikolav, espero que esteja sendo um bom garoto após sua lição! — ele diz com sua voz firme de autoridade.
Niko concorda com a cabeça. Ele parece tentar agir com estabilidade, mas seus músculos magros retesam ainda mais adentro do corpo.
Filho da puta, pare com isso. Quero gritar com papa, mas as palavras entalam em minha garganta, assim como meus movimentos. Sua presença me deixa estática.
— Ótimo. Vá dizer a sua mãe e Katya que devem todos ir dormir agora. Amanhã você treinará com Nikita às oito horas, após o café.
Nikolav concorda uma última vez, parecendo um coelho acuado. Ele corre em seguida, obedecendo o comando de seu pakhan, e é frustrante vê-lo disparar como um foguete somente para fugir dali.
— Você é muito enxerida, — ele diz, girando seu corpo em minha direção. Seu olhar é tão duro como concreto, e me sinto do tamanho de uma formiga. Meus músculos e ossos tremem. — Agora sei com quem Nikolav tanto se parece — ele diz. Seu olhar é de aviso, mas nem mesmo tenho tempo de enfrentar sua crítica com o meu olhar, pois ele já observa no momento seguinte o céu escuro. — Onde estava mais cedo? — pergunta, e seu tom de voz me faz engolir em seco.
— No Museu — respondo com firmeza. Não estou mentindo sobre onde estava, apenas omitindo qual museu e também a presença de Ivan comigo.
Sergei meneia sua cabeça, chamando minha atenção para que eu o siga. Estou surpresa; papa não costuma nos chamar para andar com ele. Suas palavras geralmente são curtas e grossas, e então nos deixa a ver navios.
Seus passos são rápidos pelos corredores de pedra gelada do nosso forte, mas o acompanho de perto. Estou aturdida ao perceber o quão graciosos são nossos passos. É quase como andar com felinos: não se ouve nossos calçados batendo contra o piso. Aprendi a andar dessa forma com Sergei, um tanto observando suas movimentações, e o restante foi fugindo dele e dessa casa.
Ele vira corredores e corredores. Presto muita atenção para não pisar em suas canelas enquanto o sigo, curiosa. Meu estômago é tomado por ansiedade crua. E no fundo, talvez esteja com um pouco de medo também.
Mas no fim das contas, apenas alcançamos a sala de armas. A brilhante sala em que estou proibida de entrar.
Estanco meus pés na porta, apesar de querer correr para as prateleiras. Espero que papa me dê sua permissão para acompanhá-lo. Ele acena com sua cabeça – parece quase divertido ao me ver tão animada –, então praticamente voo para dentro da sala ao seu sinal. Estou empolgada como um cachorrinho ao ganhar um biscoito.
As paredes são pintadas de um tom escuro, parecem até mesmo feitas de piche de asfalto. Em compensação, as lâmpadas fluorescentes cintilam, e um feixe de luz acerta direto em meu olho. Sou tomada por vertigem no mesmo momento.
Ah, minha nossa!
Nunca me senti tão excitada. As armas, expostas como troféus, me deixam ainda mais curiosa. Posso ouvi-las sussurrando suas histórias, seus feitos gloriosos, poemas centenários sendo cantados por cada um dos soldados que as segurou.
Admiro-as, uma a uma. As espadas e katanas, presente de seus comparsas japoneses. A coleção de facas, rifles de assalto, armas de pequeno porte, centenas delas. Há até mesmo um fuzil de combate usado pelos aliados em alguma batalha contra o eixo durante a Segunda Guerra.
Lindas e instigantes, cada uma delas, e é impossível admirar o arsenal com menos afinco. Meus olhos devem brilhar como estrelas agora, e meu pai percebe. Sinto-me em um sonho, onde sou uma guerreira ninja e, homem a homem, os derrubo ao chão, derrotados.
Sergei segura meu ombro com delicadeza, e meu sonho se dissipa tão rápido quanto começou, frustrante. Ele me conduz na direção contrária das armas, deixando suas histórias para trás.
Em poucos passos, alcançamos a sala adjacente, onde diversos computadores resguardam boa parte da inteligência da Vory v Zakone.
Ele nunca me deixou chegar tão perto antes, o que diabos está acontecendo?
Controlo minha curiosidade para não espiar o que as marionetes estão fazendo no momento. Me pego pensando onde estão as câmeras de segurança que não posso encontrar, dentro da casa ou ao redor da cidade.
Minha espinha parece congelar somente ao imaginar que Sergei pudesse estar me vigiando com Ivan. É muito comum papa descobrir as coisas e não contar até o momento em que possa usar sua descoberta em vantagem contra o inimigo.
Mas ele não poderia! Poderia? Não, eu não sou o inimigo!
O Museu, assim como alguns outros lugares na cidade, eram considerados parte da zona neutra. Locais de abrigo que não pertenciam a ninguém, destinados portanto àqueles que não queriam fazer parte.
Espio sua expressão com o canto dos olhos. Sergei não parece furioso, não... Parece apenas cauteloso, eu diria. Como se esperasse uma reação da minha parte, como se quisesse que eu perguntasse de uma vez por quê me levou até ali.
— Me perdoe, papa, mas... o que exatamente estou fazendo aqui? — pergunto, seguindo seu plano, e controlo o nervosismo em minha voz. Ele não diz nada até o silêncio começar a incomodar. — Não é um lugar para mulheres.
— Não mesmo — ele responde rápido, um quase sorriso se formando em seus lábios. — Assim como zonas neutras não são os lugares mais seguros para a primogênita dos — finaliza, e meus ombros se retraem de modo automático. Oh, merda! Forço meus lábios em um sorrisinho, e Sergei apenas me observa.
— Imaginei que, por serem neutros, não representassem perigo... — respondo com calma, minha voz sai quase como um sussurro. É como se cada segundo fizesse parte de uma armadilha plantada por Sergei, e eu caio como um patinho indefeso.
Saber que ele monitora nossos passos torna tudo ainda mais perigoso, mas preciso manter a compostura e fingir que não estou realmente preocupada com o que diz. Se ele soubesse de algo, já teria explodido contra mim, tenho certeza disso. Ele não deixaria barato uma traição, principalmente vindo de uma de suas herdeiras.
— Não representariam perigo se as coisas não estivessem saindo do meu controle — ele diz, e solto um muxoxo em retorno. Então ele realmente não sabe de nada!
Papa está me olhando de soslaio, e, por baixo de seus cílios grossos, sua expressão é quase curiosa. Como se esperasse me flagrar suspirando aliviada, então saberia que estou escondendo algo dele. Oh, Deus, ele não faz ideia…
Mas não há como as coisas realmente saírem do controle de Sergei , há?

— O que fez Niko apanhar na frente de todos mais cedo foi exatamente pelo que está aparecendo nos computadores às suas costas — ele diz e aponta para os aparelhos sobre meu ombro, como um sinal de permissão para que pudesse olhar.
É como se um furacão quisesse tomar conta dos meus pés, e quero me virar da mesma forma; todavia, giro em meus calcanhares sem pressa. Não consigo evitar esticar o pescoço para enxergar melhor as máquinas.
Os computadores mostram algumas câmeras de segurança, desde a praça do Kremlin até mesmo alguns becos de bairros mais pobres.
Não vejo nada de surpreendente, até que meu pai aponta um carro virando a esquina da Red Square. Ao mesmo tempo que o primeiro, outro veículo vira em direção a um pequeno palacete, um prédio relacionado ao governo.
A princípio fico perdida e confusa, não faço ideia do que Sergei espere que eu veja. Mas logo meus sentidos me indicam que algo está errado, e sinais apitam alto dentro da minha cabeça. Me concentro mais nas imagens; tenho certeza que não enxergo o que está debaixo do meu nariz.
Está óbvio que os carros são os mesmos, noto que suas placas são as mesmas, o que é um tanto bizarro. As letras são miúdas, mas reconheceria nosso alfabeto de longe. Além do básico que as escolas ensinavam, Sergei nos obrigou a estudar linguística e história russa. E odiávamos!
— Exatamente — papa diz. Quando giro meu corpo em sua direção mais uma vez, encaro-o estupefata. Posso ler o segundo de descontrole em seus olhos, e o gesto me frustra ao mesmo tempo que me deixa enjoada. Sinto como se minhas tripas estivessem emboladas.
Apesar disso, não consigo dizer nada. A mera ideia de outros nos cercarem e quase passarem despercebidos o preocupa, e seu desconforto é o suficiente para saber que é muito mais sério do que imagino.
— As câmeras parecem ter sido alteradas. Não sei como nem por quê, mas tenho contatado Alexander nos Estados Unidos. Ele é o pakhan da Oryol — bato meus cílios em resposta. É claro que já ouvi falar da Oryol, a família americana, mas não faço ideia de quem são seus representantes. Nunca os conheci pessoalmente. — Uma águia em meio a outro covil. Ele acredita que Koslov está começando a comer pelas beiradas... — Sergei cospe o nome do inimigo.
Estou tão surpresa com sua sinceridade que mal consigo pensar em uma resposta para tudo o que está dividindo comigo. Também estou grata por seu voto de confiança. Talvez até mesmo tenha sido bom para ele desabafar para alguém que ame e conheça, e não só para os seus soldados. Ele sabe que me sinto dessa forma, por isso volta a tocar meu ombro.
Ácido parece me correr por dentro. Perceber que minto para ele o tempo inteiro é o pior sentimento e, de repente, me odeio por isso. No fundo, quero gritar por perdão, mesmo que não fosse capaz de aguentar seu olhar.
, eu lhe trouxe aqui por um motivo e apenas um. Você é minha primeira filha. E embora meu conselho jamais permita o envolvimento de uma mulher, ainda mais uma tão inexperiente, ainda assim é minha primeira filha e tem a responsabilidade de zelar por esta família quando eu e sua mãe não estivermos por aqui. Seus irmãos sempre vão estar em sua cola, você é o que os une...
Papa, do que está falando? Nada mudou. Estamos aqui, e Niko está treinando para seguir seus passos e continuar de onde parar, quando parar. E isso vai levar anos ainda... Não vai? — minha voz sai esganiçada, mas ele apenas chacoalha os ombros.
Pela primeira vez em anos sinto compaixão pelo endurecido homem à minha frente. Minha imaginação voa para a época em que ele era como Nikolav. Apenas uma criança girando uma faca borboleta em suas mãos.
Penso então no quanto precisou ser firme, tudo que perdeu para ganhar seu poder. Penso nas pessoas que deixou para trás, e no quanto tudo isso deve ter lhe custado. Ele não poderia desistir disso agora, poderia?
— Só peço que tenha cuidado, não quero... — ele diz com a voz baixa, sua mente programando o melhor a dizer, provavelmente sem poder dizer tudo que quer. Então seus ombros voltam a endurecer, e ele toma sua postura de sempre, do pakhan dessa família. — Não quero ter que limpar a sujeira. Agora, vá — finaliza, e são suas últimas palavras. Ele acena com a mão, me indicando a saída. E tão rápido quanto estive animada ao entrar na sala proibida, me torno uma flor murcha, sem vivacidade ou cor. Antes que deixe a sala, admiro os computadores uma última vez, com a sensação apertada em meu coração de que nunca mais voltarei a entrar neste lugar.
— ele me chama antes que eu pise fora do local. Quando me viro, há algo em seu olhar. Algo que não reconheço de imediato, porque nunca esteve antes em seus olhos. Um misto de tristeza e... amor? Meu cérebro lateja tentando entender o que isso significa, porque tão repentino há um bolo entalado em minha garganta. — Fique de olho em Nikolav, suas mãos de gelatina podem fazer com que perca um dedo essencial — ele diz e quebra sua postura firme por mais um segundo.
Mas não há mais nada que falar. Sergei havia compartilhado comigo muito mais nesta noite do que em toda a minha vida, e, por mais estranho que fosse, eu guardaria o momento em meu coração.
Me nego a pensar muito sobre o assunto depois que deixo a sala em direção ao meu quarto. Mesmo quando deito minha cabeça no travesseiro, não quero pensar no quanto seu rosto pareceu preocupado. No quanto a imagem dos dois veículos o confundiu e deixou-o com medo. E então o entendo, de verdade.
Por mais que muitas vezes sinta não conhecê-lo. Independentemente de qualquer rebeldia infantil que fingisse. Qualquer mentira que contasse. Ali, parado em frente às suas câmeras, eu vira pela primeira vez o líder deste grupo, que se preocupava e se importava.
Não apenas com sua família. Mas com seu legado.


FRANKLIN MORRIS


De repente, você está em um sonho.
É tão vívido que você quase consegue tocar o que vê. Sente o vento no rosto e o gosto metálico na boca. Há cores e sons.
Mas, em seu âmago, sabe que é um sonho.
Então você corre, como se tivesse um furacão nos pés. Você corre e tudo fica escuro, muito escuro, e então percebe que está correndo como se não fosse capaz de parar. Você tenta e não pode parar, seus pés não permitem.
E aí você cai.
Conhece a sensação de cair em um lago e se afogar aos poucos?
Você quer respirar. O seu cérebro luta para que seu corpo receba essa informação. “É vital!”, ele grita por suas terminações nervosas, mas é apenas isso. Seu corpo não parece reagir.
E, aos poucos, você se afoga. Você deixa o escuro tomar conta enquanto desiste. No momento em que seu cérebro percebe que você não vai sair dessa vivo, ele apenas aceita da mesma maneira que seu corpo já aceitou e fica inerte, imóvel.
Mas só por consideração, ele te faz lembrar de tudo. Sua vida inteira passa em frente aos seus olhos.
Conquistas, falhas, suas melhores histórias. Risos, amores. Tudo.
Porém, é tudo um sonho.

Jetson quer dar uma festa. Ele quer celebrar, ME celebrar. Ele continua dizendo que a conquista é minha, que mereço tudo isso, mas é bastante idiota. Eu não mereço uma festa, não quando perdi a única oportunidade que terei de enterrar uma bala no meio dos olhos do maldito Trey Sommers. Esperei tantos anos para encontrá-lo novamente, havia ansiado pelo momento onde cuspiria em sua lápide e mijaria em sua cova.
Mas não. Ao invés disso, havia aceitado as ordens de Jetson Richards e dado as costas. E então era apenas isso. Havia desistido de tudo que tinha construído até então, e é claro, ele é o comandante e não poderia ir contra.
Sinceramente, nesse momento não sei nem se posso chamar Jet de meu amigo.
Depois de enjaularmos Reginald e seu comparsa Trey, General Nixon me nomeou segundo capitão, ao lado de Jetson, e agora sou o segundo depois do oficial Richards, o próximo em linha. Como se o título me concedesse muito mais respeito.
Eu não sou a porra de um homem respeitável.
Como se não fosse o suficiente, Jetson havia andado nos corredores da corporação reforçando aos agentes que agora também era um de seus superiores e que deveriam ter mais cuidado com o que me diziam.
Não é esse tipo de notoriedade que quero.
O que realmente me faria deitar a cabeça no travesseiro à noite com tranquilidade seria saber que estourei os miolos de um verme. Um a menos no mundo.
A verdade é que estou cagando para isso tudo que veio junto com a prisão do Trey. Meus planos de toda a vida foram por água abaixo. Não importa quão sucedida foi a operação, ou quantas medalhas nos garantiu. Para mim, não vale de merda nenhuma.
— Pelo menos a porra de uma cerveja com o pessoal na porra de um bar — Jet diz; o metal do assento parece precisar de um óleo urgente, pois quase grita com cada giro completo que o capitão dá.
A mesa ao lado da minha está praticamente vazia desde que Jetson decidiu se mudar aos poucos para uma sala mais próxima a do General. Sempre que precisar lamber seu saco, é só dar uma batidinha na parede.
— Tanto faz, Jet, não acho isso importante — respondo. Na realidade, quero mandar que se foda tudo. Não parece nada importante para mim celebrar essa promoção. Não quando minha garganta continua seca com a sede de matar o assassino de George.
— Como, no inferno, uma promoção assim não é importante? — ele pergunta ao mesmo tempo que para de girar a cadeira, que para virada em minha direção. — Puta que pariu, Morris! Nós prendemos a porra de um bandido, um merda de um assassino e traficante. Além disso, você sabe o que estamos considerando, a m...
— A porra da máfia, eu sei! — retruco, sem muita paciência. Há algum tempo Richards tem tentado me convencer de que, com certeza, há ligação entre a máfia americana e as negociações de McCarter. Ainda acho muito cedo, mas não posso ir contra o que diz, ele é o chefe. — É tudo muito bacana e muito colorido, mas você sabe...
— Eu também sei. Nada disso vai trazer o George de volta — ele responde. Jetson é, além do General, o único que sabe de toda a história. Eu o contei assim que o conheci. Para falar a verdade, ele conseguiu arrancar tudo do meu peito desde o primeiro momento.
Jetson é a única pessoa que sabe todo e qualquer detalhe sobre a minha vida. E, muitas vezes, tenho a impressão de que ele é muito mais minha família do que aqueles com quem divido o sangue.
Não preciso de mais ninguém. Ao menos, não para dividir toda a merda em minha cabeça. E mesmo Jetson; ele não sabe tudo, não sobre como me sinto.
Me nego a ser um bosta que arrasta a bunda pelos cantos, chorando à espera de que meu amiguinho venha me consolar e salvar meu dia. Que se dane, ele não sabe da missa a metade e também não precisa saber. As coisas estão bem como estão.
— Eu só não sei se é uma boa ideia, irmão — digo em tom baixo e tento acertá-lo direto no lado emocional, mas Jetson parece imbatível. Ele se levanta em um pulo, chutando meus pés em seguida, ainda mais porque sabe que isso vai me irritar.
— Não quero saber, você e sua vingancinha frustrada que se fodam! Sexta-feira você vai comigo no Loco Joe’s, vai pegar uma bebida qualquer com aqueles guarda-chuvinhas e vai virar a porra toda até ficar louco — ele pausa somente para me ver suspirar, derrotado. — Vai comer alguma safada e vai esquecer pelo menos por uma noite o quão fodido você e sua bonita cabecinha é — ele ri, se aproxima o suficiente para dar um tapinha de consolo em meu ombro e, no minuto seguinte, se vai.
No fim, estou como sempre... sozinho.
Como eu disse, imbatível!

A verdade é que Jet não faz a menor ideia do que se passa em minha cabeça agora. Ele deve acreditar que me conhece nos mínimos detalhes, e realmente, sabe muito sobre a minha história e faz parte da porção bem sucedida. O que ele não faz ideia é do quão frustrado estou agora para simplesmente esquecer. Não me posso me comprometer com o divertimento quando ainda quero explodir alguns miolos.
Não posso prometer que irei me divertir em uma festa quando sinto que tudo que construí até agora parece se desfazer com a minha derrota. Não posso fazer isso agora com a sensação de impotência martelando minha consciência em um lugar escuro da minha mente.
Tentei me divertir antes. Porra, juro que tentei mais de uma vez. Mas toda vez que tentei relaxar e aproveitar o momento, a dor explodiu contra a minha têmpora, logo abaixo do lugar onde costumamos raspar o cabelo. Toda vez que fiz de conta que tudo no mundo era apenas glória, fui lembrado pelo latejar no crânio que uma bala ficou alojada ali por horas, e que tudo isso aconteceu porque fui um jovem comprometido com o divertimento acima de qualquer outra coisa.
Isso me custou alguns anos de terapia, física e psicológica. E o pior de tudo: me custou algo que jamais poderia recuperar. Meu melhor amigo.
Não importa o que fizesse, o quanto tentasse. A imagem do olho de George explodindo sempre tomaria conta da minha mente. Eu seria um péssimo amigo se permitisse fazer de conta que não sinto nada. E sinto muito, mais do que poderia admitir.
Isso me quebra pouco a pouco, pedaço por pedaço. Destrói minha sanidade.
Depois da morte de George, depois de sobreviver e conseguir finalmente me levantar da cama de hospital, algo mudou, de dentro para fora. Acho que uma parte de mim morreu também naquela tarde; foi assassinada junto com Halliwell. Minha perspectiva de vista sobre a vida mudou para sempre, e muitas das coisas com o que me importava antes já não fazem o mesmo sentido.
Não vejo meus pais com frequência. É difícil demais voltar àquela casa. São apenas alguns minutos de carro, mas não consigo. Não sei como os pais de George vivem, a não ser pelo pouco que Amelia, minha própria mãe, me conta. Eles já não vivem em Miami há um bom tempo. Se para mim é ruim, para eles é o inferno. Se o cheiro salgado do mar me enjoa, não consigo imaginar como deve ser sequer respirar em sua pele. Ainda assim, mamãe se sente na obrigação de manter o contato com eles, independente da escolha que fiz: de me afastar.
— Ei, capitão, quer dizer que teremos um festão? — Kyle Roberts pergunta em um tom divertido, quebrando meus pensamentos. Ele se apoia na porta, os braços cruzados acima do peito musculoso. Chacoalho meus ombros em resposta. Não é como se eu tivesse escolha, certo?
— Aparentemente, o filho da puta do Jetson prometeu que irá pagar cerveja a todos — respondo em bom tom, alto o suficiente para que Jet, agora conversando com Zayev algumas portas à frente, pudesse ouvir também.
Tudo que em ouço em resposta é sua gargalhada, tenho certeza que não esperava por isso. De qualquer forma, vejo-o lançar o dedo do meio sobre os ombros, ou algo do tipo, o que posso enxergar entre as persianas da minha sala.
— Isso é bom, Frank — Kyle diz, tomando minha atenção de volta para sua presença. — Você precisava de um tempo dessa porra toda, sabe, essa história era muito longa. McCarter está preso, Sommers também, os dois vão abrir o bico e as coisas vão se desenrolar maciamente, como mignon.
Não é exatamente o que quero ouvir, mas talvez esteja certo – ao menos certo o bastante para me dar um descanso por alguns minutos. Concordo com um aceno de cabeça apenas para deixá-lo entender que é isso, a conversa acabou. Ele ergue o dedão de uma mão em sinal de positivo e me deixa sozinho também.
Não quero ser o cara chato de sempre, o que não participa dos grupos e todas essas coisas, ainda mais agora na posição que me foi imposta. Mas para ser sincero, não me preocupo com nada além do trabalho. Até agora, não tinha nada mais importante do que esse objetivo a cumprir. E agora, não há mais nada.
Ter que mudar os planos e seguir outras estratégias é uma merda. E apesar de entender o pedido de Jetson e a importância de seguir com os planos da corporação, nada teria me feito mais feliz do que ter acabado com a vida de Sommers. Ao menos o peso nos ombros teria diminuído algumas gramas.
Ao menos, era o que estava esperando sentir por todo esse tempo.
Para ser honesto, não posso afirmar que acabar com sua vida é o que me deixaria satisfeito. Acho que nem mesmo havia pensado no que faria depois de tudo, quando a vingança estivesse concluída. Nunca parei pra pensar em outra coisa que não isso. Além do Capitão Morris, não sei quem sou.
É como se fosse um futuro em branco, vazio.

Pisco os olhos e, de repente, já é sexta-feira.
O expediente acabou; Jetson liberou sua equipe quarenta minutos antes para que pudessem ir de cara limpa e perfumada para nossa suposta festa. Tento enrolar por um tempo e digo a todos que batem em minha porta que a papelada que preencho é de extrema importância. Não poderia deixar para depois.
Perco um bom tempo jogando Paciência, alternando entre todos os tipos de baralho possíveis. Fico no escritório até que não tenha mais escolhas. Não há escapatória para seus planos, não tenho escolha e nem maneiras para gurias. Ele me encontraria onde quer que me escondesse. Ele não era o capitão deste grupo do FBI à toa. O cara era a porra de um gênio.
Demorei o quanto pude para dirigir até minha casa, mas até mesmo o trânsito fluiu com tranquilidade. Tudo parece conspirar a favor da minha presença nessa reunião, quando o principal convidado, eu, não queria participar. Ligo a televisão ao entrar, me jogo no sofá e, quem sabe, talvez consiga matar mais um tempo. Contudo, minha caixa de mensagens começa a lotar meu celular. Jetson, Kyle, até mesmo o russo. Todos parecem cobrar minha presença. Sem escapadelas, preciso me arrumar.
Admiro a camisa preta no espelho, não é tão ruim. A calça jeans é preta também. Calço um par de tênis para combinar com o restante da roupa. Só uso esse tipo de calçados para treinar no ringue de boxe ou na academia da corporação. Me sinto desconfortável, sem certeza se isso diz muito sobre quem sou ou se é apenas uma mentira que encaro no reflexo.
Acho que estou parecendo bem.
Não me importo realmente sobre quem essa pessoa que me encara no espelho é. Se está bonito ou bem ajeitado. Não dou a mínima para como me veem. Digam o que quiserem, eu só quero deixar o trabalho pronto.

Assim que Jetson me vê entrar no local, grita alto:
— EEEEI, CAPITÃO MORRIS, finalmente!
As demais pessoas que estão ali, todos convidados dele, se juntam para me receber e cumprimentar, e é claro, fazem questão de me parabenizar pela promoção. Para falar a verdade, não ouvi falarem sobre outra coisa nos corredores hoje. É como se tivesse conquistado um objetivo de vida de muitos, o que é quase injusto, considerando que nunca almejei o título da mesma forma que tantos outros.
Minutos depois, já se foram alguns shots de diversas bebidas alcóolicas. Muitos desses, brindes em comemoração. Não apenas pela promoção, mas pelo sucesso da operação também. Tínhamos prendido alguns caras ruins, afinal de contas.
Deixo o orgulho de lado por um tempo; primeiro porque Kyle Roberts estava certo mais cedo, mereço um descanso de toda a saga que percorri. Reconheço que é muito bom saber que conquistei meu lugar como braço direito do Capitão Richards, não apenas para a minha carreira profissional, mas quem sabe também para meu crescimento pessoal.
Sei que muitos vão enxergar as coisas com outros olhos, mas estou pouco me lixando para o que pensam sobre isso. No final das contas, são todos puxa-saco de todos. Todos estão buscando subir e subir e subir mais um pouco, não importa que talvez precisem puxar o tapete de outros no meio do caminho.
— Marina Anderson está muito deliciosa hoje, não acha? — Jetson pergunta, ao mesmo tempo em que quase se joga no banco ao meu lado. Por um segundo, acho que vai se espatifar no chão, mas, apesar de tudo, ele volta a se equilibrar e me encara com seus olhos apertados.
Peço um Jack & Coke para o barman. Não quero chegar perto daqueles shots de novo, pelo menos não hoje. Não estou a fim de perder minha consciência, não no meio de tanta gente e sem saber quais podem ser as consequências disso. São poucas as vezes que me permito beber no ano, e, apesar da ocasião, hoje não vejo como se fosse especial o suficiente para correr risco.
— Você é um merda por falar assim de suas oficiais, Richards — digo ao observá-lo cautelosamente com o canto dos olhos. Espero sua reação, e acho que talvez tenha esperança de que ele irá me expulsar, o que só facilitaria as coisas para mim, visto que não vejo a hora de escapar desse lugar.
Jet dá um leve tapa no tampo de madeira do balcão, chamando a atenção de um atendente para o qual pede uma nova vodka com gelo. Em seguida, vira seu rosto risonho para mim e me dá um soquinho no ombro, divertido.
Ah, droga, efeito contrário.
— Este merda... — ele aponta para seu próprio peito. É tão obvio o quão alterado está pela bebedeira. — Ainda é seu superior... — ele pisca com um olho, e um soluço alto escapa por seus lábios. Sua mão firme segura meu ombro, não sei se é um aviso ou se seu mundo alcóolico está girando agora. — Não deixe a promoção subir à cabeça, Frankie — ele solta uma risada alta ao me ver dar de ombros.
Ele deve estar muito descontrolado mesmo. Não pretendo deixar merda nenhuma subir à cabeça, só não acho certo que ele trate suas agentes como um pedaço de bolo. Todavia, não sei como dizer isso a Jetson sem ofendê-lo. Até mesmo porque sei que não o faz por mal; ele apenas é como Peter Pan, não aceitou crescer.
— Eu nunca pedi por essa promoção, estava bem onde estava — digo, e ele concorda com a cabeça, já alcançando seu copo da mão do bartender. Jet engole um grande gole e torce o nariz ao sentir o líquido em sua garganta. Ao menos, é o que sua expressão parece me dizer.
Faço o mesmo e sorvo uma boa porção do líquido em meu próprio copo. Para a minha sorte, está bem mais fraco que o de Jetson parece estar.
Estou confraternizando, certo?
— Eu sei disso, irmão, mas foi extremamente merecida — ele diz, quase distraído. — Você estava engessando, Franklin — conclui. Minha expressão não deve ser muito amistosa, porque faz Jet rir. — Não estou dizendo por mal, Frankie, mas você devia saber que merece ir além de Sommers. Tem muita coisa envolvida nessa merda toda, acho que só o seu cérebro é capaz de compreender... — Richards afirma, parecendo muito certo sobre o que diz, apesar de estar fora de si. Abaixo meu olhar para o copo, agora pela metade.
Afinal de contas, como você enxerga o seu copo, meio vazio ou meio cheio?
Pondero sobre o que Jetson diz, mas nada faz diminuir a sensação de derrota em minha mente. Sinto-me completamente esgotado, quase como se não fosse mais capaz de continuar. A glória e o poder, de repente, não significavam nada.
— Marina... — ele volta a dizer, me fazendo virar a cabeça em sua direção mais uma vez. — Não estou sendo desrespeitoso — afirma, e solto uma risada anasalada. O som é tão baixo que imagino que nem mesmo tenha me ouvido. — Ela está realmente uma gata, e não para de olhar para você.
Viro minha cabeça o mais discreto que consigo em sua direção. Ela é muito bonita, os cabelos escuros caem em pequenas cascatas pelos ombros. Não usa muita maquiagem, o que deixa sua aparência ainda mais delicada. O vestido marrom escuro, que vai da cintura até as coxas, combina perfeitamente com o sapato baixo.
É como se fosse outra pessoa, diferente daquela que encontro praticamente todos os dias. Cada um dos que estão ali parecem outra pessoa, como se vestissem uma fantasia social que pudesse ser agradável aos olhos ao mesmo tempo em que chama atenção. A necessidade de um holofote sobre suas cabeças é idiota.
Marina é bonita, de verdade, mas não me interessa. Em nada. Nem mesmo seu olhar escuro e profundo vidrado no meu não me faz sentir nada. Sou um cara completamente obsoleto, e também não faço questão de mudar isso agora, porque nenhuma dessas mulheres me faz vibrar.
Volto a dar de ombros. Jetson grunhe em resposta e parece desistir, para minha felicidade. Ele me dá mais um tapinha no ombro e me deixa sozinho para ir de encontro com alguns de seus amigos.
De novo sozinho com meus pensamentos.
Desde o assassinato de George, sinto que quase posso contar nos dedos por quantas mulheres realmente me interessei. Duas, apenas duas. E mesmo assim consegui fazer com que perdessem o que fosse que tinham acreditado sentir por mim.
Sexo, tinha basicamente sido isso. De outra forma, eu não era nada interessante. Então elas simplesmente iam embora, não aguentavam ficar. Eu as entendia agora. Se eu me conhecesse, também não ficaria comigo.

Olho meu relógio de pulso: já se passaram três horas, é o momento de ir embora. Seis copos de uísque com refrigerante é o meu máximo. Meu estômago parecer berrar por um sanduíche de queijo ao mesmo tempo em que meu corpo se ajeita à minha cama macia e quentinha. Essa é a ideia mais próxima que tenho sobre o paraíso.
Quase me contorço de prazer em planejar minha escapada. É tudo o que mais quero agora, ir para casa, comer e dormir, manter a minha rotina saudável como sempre. Não nasci para isso, festas e confraternização. Estou mais próximo de um lobo solitário. Rio do meu próprio pensamento.
Estou pronto para me levantar quando sinto uma mão tocar meu ombro. É pequena, e o toque, leve. Viro-me cambaleante e dou de cara com Marina, seus lábios abertos em um grande sorriso.
— Oi... — sua voz sai baixinha, o que me obriga a inclinar-me um pouco mais a frente. Estou a centímetros do seu rosto.
Merda, não é isso que quero fazer.
— Hum... Só queria parabenizá-lo, capitão — ela morde sua boca, sugando o lábio inferior em um gesto quase inconsciente. Seu batom rosa-claro é muito bonito, e estou tentado acabar com a distância entre nós e beija-la.
Porra! Não, não, eu estou bêbado demais para isso.
— Marina, certo? — pergunto, e até mesmo minha voz está alterada. Aponto um dedo para ela, que apenas ri em resposta, concordando com a cabeça. — Obrigado! É muito gentil da sua parte... — mais risadinhas saem de seus lábios.
Nope! Não, ela é bonita e somente isso.
— Eu estava pensando se... quem sabe, talvez queira me oferecer uma bebida e depois podemos conversar melhor — ela diz, enquanto desliza seus dedos pela lateral do copo úmido, num gesto que deve ser sensual.
Se eu disser que não estou pensando em fodê-la agora mesmo, seria um grande mentiroso. Mas não posso, não quando sei exatamente o que irá acontecer na manhã seguinte.
Não me lembrarei de nada, não sentirei nada por ela, não ficarei para o café da manhã ou deixarei um bilhete em seu travesseiro enquanto a deixo com um beijo na testa. Eu não sei fingir sentimentos. Então é melhor não fazer nada!
— Ah, agradeço o convite, agente — digo em meu tom mais profissional. Ao menos tão profissional quanto posso falar, mesmo enrolando a língua. — Mas preciso... dar comida pro meu cachorro.
— Se você quiser, posso te acompanhar. Eu amo cachorros — ela diz, ao mesmo tempo em que espalma uma de suas mãos em meu peito. Preciso piscar algumas vezes para entender o que está acontecendo.
Por que não posso ser a porra de um cara normal e só levá-la para casa? Que merda!
— Obrigado — respondo com um sorriso, mas afasto sua mão da minha camisa com delicadeza, baixando-a para seu próprio corpo. — Mas não...
Sua expressão é estupefata. Será que eu fui gentil como imaginei estar sendo? Ou talvez ela só me ache um merda mesmo, um homem sem coragem nenhuma. Eu preciso ir embora. Esse cagão só precisa ir para casa e se enterrar nos fantasmas do seu passado medíocre.
Levanto-me rápido demais, derrubando o banquinho ao chão. Algumas pessoas param para olhar, mas não por tempo demais; eles não encaram por tempo demais depois das ameaças que Jetson fez, sobre eu ser um cara muito mau.
Coloco o móvel de volta no lugar e, trôpego, caminho rápido até Richards. Aponto meu indicador para a saída assim que ele me alcança com os olhos. Aperto seu ombro com firmeza ao me aproximar, mas, antes que eu continue a andar, Jetson me segura pelo braço, negando veementemente com a cabeça, tantas vezes que fico tonto. Fico enjoado rápido demais.
— Você só pode estar brincando que vai embora, agora que está tudo ficando divertido — sua voz é alta e divertida. Ele parece estar tendo o melhor momento de sua vida.
Jet aponta para o meio do bar, onde alguns oficiais afastam as mesas e três agentes dançam no espaço vazio, rebolando suas bundas e puxando os vestidos para cima. Elas estão completamente fora de si. Tenho certeza de que não se lembrarão de nada no dia seguinte e a ressaca moral irá consumi-las por um bom tempo.
Os olhos do capitão são profundos em seus corpos dançantes. Ele parece zonzo, mas não pisca e a baba quase escorre pela sua boca. Ele é um cachorro maldito!
Não sei como consegue flertar com todas ao mesmo tempo e, no outro dia, trabalhar com elas fingindo que nada aconteceu. Talvez isso seja pior do que sair sem dividir o café da manhã. Eu não conseguiria ter a mesma cara de pau. É por isso que prefiro só não fazer.
— Eu. Dormir. Casa. Preciso — afirmo, ao mesmo tempo em que ele continua a chacoalhar sua cabeça negativamente, a decepção cobrindo seus olhos. — Olha, irmão, eu agradeço pra caralho, mas isso aqui... não é pra mim. Não sei como fazer isso — digo, tentando disfarçar o amargor em minha voz, mas é quase impossível. Eu sou bem desprezível às vezes.
Jet me puxa de lado e carrega até a porta com suas mãos em meus ombros. Ele parece decepcionado, mas sei que, em sua cabeça cheia de pensamentos insanos, está tentando compreender. Não se pode obrigar ninguém a querer viver.
— Tudo que eu queria era que você conseguisse tirar a porra da cabeça do trabalho um pouco, mas você é... Merda! Você tem essa coisa no sangue, Frank — ele continua a falar, até que alcançamos a porta.
Pago minha conta no caixa e caminho até meu carro, meu amigo e superior em meu encalço. Eu não deveria estar dirigindo agora, com certeza não.
— Obrigado, Jet, eu só preciso descansar. Minha cabeça está cheia, mas eu realmente agradeço — digo ao apertar seu ombro em um gesto amistoso.
Abro a porta do carro, mas Jetson dá uma risadinha marota, e eu preciso virar para encará-lo. Sua expressão divertida me faz crer que teve uma descoberta extraordinária. Não sei se estou curioso ou apavorado de saber o que está pensando.
— Um parceiro — ele diz com a firmeza de um bêbado. Seu sorriso infantil só me faz pensar que está prestes a aprontar qualquer coisa ridícula.
— Que merda está falando? — pergunto, genuinamente sem entender o que se passa na mente das mil maravilhas de Jetson. Ele ergue sua sobrancelha, piscando um olho com velocidade.
— Tenho pensado por um tempo, e já sei do que precisa, Frank — ele diz com convicção. — Já que não vai deixar esse negócio de trabalho pra trás, não será meu parceiro de diversão... E já que eu preciso focar em outros projetos que o General Nixon me indicou, sei do que precisa. Um novo parceiro.
Sei que estou encarando-o com confusão, pois Jet revira os olhos com impaciência. Eu entendi o que quis dizer, entendi tudo. Só não consigo entender como isso pode me ajudar em qualquer coisa. Como poderia me fazer progredir.
— Alguém para treinar, Franklin. Para descontar essa sua raiva... Vai ser divertido. Confia em mim — sua afirmação me causa um tremor interno. Confiar é realmente difícil, mesmo em Jetson. Ou principalmente em Jetson.
Não é por não acreditar em sua ideia – eu tenho certeza que os planos mirabolantes de Jet já estão se encaixando em sua mente –, eu só não sei se estou preparado para lidar com outra pessoa.
Levei tempo demais para confiar em Jetson, para entender que poderíamos dividir mais do que nossas responsabilidades. Poderia haver uma parceria ali. Ser um parceiro ia muito além do que compartilhar as missões e as glórias. Era sobre conhecer a alma da outra pessoa o bastante para confiá-la a sua própria.
Eu não tinha certeza de que isso poderia dar certo. Mesmo assim, concordo com a cabeça, apenas para que Jetson me deixe ir para casa e depois discutimos isso.
Quem sabe?



O mundo sempre foi masculino, as tradições são masculinas e mesmo os elementos femininos são voltados para o regozijar do homem. E ainda assim, as garotas se satisfazem com poucas coisas fúteis. Como bailes. Batem as palminhas e dão pulinhos de alegria.
Em meu mundo, uma festa de grande porte assim só pode significar algum acontecimento importante, ou uma comemoração especial. Um nascimento, um casamento, um aniversário de um membro de alto escalão. Seja por motivos mais sérios ou apenas por diversão, um baile é um acontecimento.
Amigos se encontram e os jovens aprontam o que conseguem sob o olhar severo de seus pais. Famílias trocam informações necessárias e fazem as transações que não conseguem fazer de outra forma.
Há comidas e bebidas de extrema qualidade, boa música e sempre, sempre há uma “saudável” competição entre as garotas sobre quem está mais bonita, bem vestida, maquiada e asseada, pois você precisa disso para conquistar um excelente partido.
A máfia é uma competição; nós somos o prêmio.

Após treinar com Nikolav e Nikita, nosso instrutor de lutas e armas, finalmente consigo sentar-me à mesa para um café da manhã de verdade. Depois de tantos socos e chutes, meu estômago ronca aos berros por qualquer alimento.
Curiosamente, Sergei está sentado à minha frente, e estou surpresa com sua presença, pois é muito raro que esteja conosco para o que considera “atividades triviais”. Tenho até medo de perguntá-lo quais atividades atípicas ele considera apropriadas ao contrário de uma refeição em família.
É verdade que geralmente está preso em suas ações sujas da família. Sempre há uma reunião importante, um encontro inadiável. Aparentemente, nada é tão inadiável que pudesse impedi-lo de estar presente para nos informar que, dali alguns dias, daríamos um baile – o que também é diferente, mas, até então, tudo certo.
Torço o nariz por não ser a maior fã das tradições familiares, ao menos não como deveria ser. Também nunca soube me comportar muito bem entre as famílias parceiras da nossa. Infelizmente, nunca soube como acompanhar suas conversas sobre bens materiais e propriedades.
E é claro que estou proibida de falar sobre as armas que comecei a colecionar sob meu colchão. Bem, talvez essa parte não seja boa nem para papa saber. Não preciso prestar contas de tudo, certo? Fato é, não consigo me encaixar entre as garotas dessa sociedade. Nunca pude, nunca fui como elas, nunca fui normal.
Não me importo, não de verdade. A normalidade é como uma estrada pavimentada: fácil de caminhar, mas em compensação não há como florescer um jardim sobre ela.
A notícia do baile não me incomodaria, me sentindo intrusa nas festas ou não. A notícia que veio junto com o aviso é que me fez quebrar um copo ao saltar da mesa. Suas palavras pesam ao mesmo tempo em que parecem selar a desgraça de todo o meu futuro. Seu tom grave o suficiente para quase tremer as paredes, Sergei soa orgulhoso e satisfeito ao dizer:
— Finalmente fechei o acordo para o seu casamento. Será um baile de noivado!
Todo meu corpo parece gritar de ódio. Sinto-me tremer da cabeça aos pés, como se fosse eletrocutada pouco a pouco. Quero externar meus sentimentos, dizer ao líder que enfie seu acordo no rabo.
Minha boca se abre e fecha várias vezes. Considero tantas respostas quanto o cérebro é capaz de organizar, mas o olhar de mama do outro lado da mesa, severo como sempre, me fez encarar papa também, apenas por um segundo. É o suficiente para estancar em meu lugar, muda. Seu olhar incisivo é capaz de abrir uma fissura na Terra, direto ao inferno. O meu inferno.
Nenhum som sai da minha boca, bem como o ar que parece relutar para entrar em meus pulmões ou permanecer ali tempo o suficiente para oxigenar o cérebro. Engulo meu choro, minha raiva. Sinto como se não me pertencesse mais. A partir de agora, me tornaria um troféu de um homem feito, e apenas isso.
Era absurdo e injusto. Casar era o sonho de Katya. Não meu.
Sempre soube que jamais poderia escolher o meu parceiro. Por dois motivos: somos proibidas de escolher nossos parceiros, simples assim. A não ser que sejam de total agrado de nossos pais, preencham os seus requisitos e o acordo entre as famílias seja firmado. E depois, nunca poderia me casar com o homem que amo, não importa o quanto isso significasse para mim, o quanto ele significasse para mim.
Ivan Koslov e seu bonito rosto eram intocáveis, sempre seriam.

Assopro contra o vidro da janela do carro, o hálito quente embaça o vidro. Desenho uma careta chorosa com o indicador e sinto os tapinhas leves que mama dá em minha perna.
— Não faça isso. Se fizer qualquer risquinho e seu pai enxergar, você sabe o que acontecerá. Seja mais educada, mama diz.
Elizabeth é uma mulher muito, muito elegante. Sua postura é impecável. Hoje, particularmente, está ainda mais bonita. Usa um vestido preto justo nas medidas certa; o tecido parece escorrer até seus joelhos, cobrindo-a com pudor. Contudo, não a faz parecer velha, mas sim a respeitosa senhora do pakhan da Vory v Zakone. A escolhida do líder está sempre belíssima.
Sinto vontade de rolar meus olhos. Quem liga para um risco no vidro de um carro quando se tem outros dez na garagem? Papa sequer usa esse veículo. Apenas nós, mulheres, pois os vidros são escuros e mais discretos. Como se nossos inimigos não reconhecessem até nossos carros!
é apenas uma chatonilda — Katya diz do outro lado do banco. Seus olhos me encaram, risonhos em resposta à minha bronca.
Aproveito que minha mãe vira o olhar em sua direção para lhe mostrar um dedo do meio. Ao mesmo tempo, murmurou um palavrão. “Vaca”. Espero que ela saiba ler lábios. Katya solta mais uma risadinha e mama volta a me observar com atenção. É provável que espere que eu faça alguma besteira.
— Katya está certa. Está de mal humor apenas por birra. Você não é mais uma criança, , tem 22 anos e sabe que já passou da hora — ela conclui.
Minha verdadeira vontade é de estapear minha mãe bem no meio da fuça. Controlo minha respiração e seguro o ar em meus pulmões por tempo o suficiente para precisar com certo desespero assim que soltar o ar, só para não me dar a chance de abrir a boca. Dessa forma, sei que não vou conseguir dizer nada e não corro o risco de pecar pela minha língua.
Não quero saber se tenho 22 ou 222 anos, não quero que ninguém decida nada sobre minha vida por mim.

Depois de muito protestar em segundo plano com minha mãe e meus irmãos, não havia mais nada que eu pudesse fazer. Estava decidido e pronto. Quem decidia qualquer coisa sobre nossa família era papa, e, se ele havia dito que me casaria, não havia forças especiais que o fizessem pensar o contrário. Meu destino infeliz estava selado.
Agora, eu sentia ódio por Sergei. Mais do que nunca queria lhe encher de bofetadas e chutes. Só em pensamento, é claro. Tudo que eu faria dali para frente era balançar a cabeça em concordância e fingir que tudo está bem, mesmo que, por dentro, eu já tenha desmoronado por um abismo inteiro.
Nosso carro para em frente à melhor loja de vestidos de gala da cidade. Mama faz questão de se demorar a entrar, apenas para que os olhares curiosos a vejam entrar no prédio antigo. Enquanto papa é a cabeça, mama é o restante do corpo, e tudo precisa estar em perfeito funcionamento. Isso inclui fazer com que as pessoas valorizem nossa família. Ela precisa que saibam que os estão se preparando para algo grande.
Katya saltita feliz em seu encalço. Eu, por outro lado, a cada passo dado sinto a tristeza preenchendo o coração aos poucos. Chego até mesmo a considerar o quão bacana seria uma tragédia acontecer agora, sei lá, quem sabe um avião cair sobre nosso prédio. Apenas que me livrasse dessa tragédia, a maior e pior de todas.
Mama prontamente é atendida por uma “feliz” atendente. A bonita moça é bastante prestativa; lhe mostra diferentes tecidos, cores e modelos, para que pudéssemos decidir o que era mais coerente para a ocasião. Precisava que ficássemos deslumbrantes!
Escolho um modelo de seda grossa e brilhante creme, o comprimento pouco abaixo das coxas e um tanto justo. Mangas longas e um decote em V, liso e respeitoso, como deve ser para a noiva. Ugh, apenas a palavra revira meu estômago.
Após Sergei nos notificar sobre o baile – e eu enfim conseguir engolir a raiva, para compreender que não havia mais maneiras de protestar –, me peguei pensando em quem seria o maldito noivo para quem fui vendida como um produto de prateleira qualquer; para quem eu seria obrigada a entregar meu corpo, ainda que prometesse conservar a alma sob minhas escolhas, e com quem eu dividiria todo meu tempo, sem escolhas, sem desejos, sem vida prória. Por Deus, eu perderia minha sanidade logo.
Katya anda de um lado para o outro. Pondera com mama se segue na linha de verde musgo, que é sua cor preferida do momento, ou se volta para o alaranjado tangerina, que faz seus cabelos quase explodirem em luz dourada.
Não consigo conter minha irritação. Cada minuto que se passa é um minuto a menos de minha liberdade. Só preciso sair daqui, preciso conversar com alguém, liberar minha raiva. Mama, por fim, acaba se irritando com minhas bufadas e me pede para sair, dar uma volta por perto e deixá-la um pouco em paz. Katya diz que minha chatice está incomodando sua aura, o que me faz rir. Ao menos tenho um minuto de comédia.
É claro que concordo com as duas. Tudo que mais quero é escapar, nem que seja para me sentir livre por uns últimos minutos. Quero ser livre enquanto posso. É claro, não tão livre assim, pois Elizabeth me obriga a levar um dos seguranças comigo. Droga! Agora vou precisar despistá-lo também.
Sigo irritada para o lado de fora, mas até mesmo o ar gelado da cidade me faz respirar como se não tivesse conseguido fazer nem mesmo isso por umas boas horas. Meu cérebro trabalha rápido; sei o que preciso e o que quero fazer. Rapidamente digito uma mensagem de texto para Ivan e peço que me encontre no Bumagi i ruchki, nossa cafeteria favorita na zona neutra de Moscow.
Finjo uma crise de tosse, como se tivesse me engasgado, e espero parecer bastante convincente. Um dos brutamontes vem em minha direção para me ajudar, mas, assim que estica seu braço em minha direção, empurro seus joelhos com toda minha força e ele cai no chão. Corro o mais rápido que posso, e logo um segundo capanga está em meu encalço.
Viro algumas ruas com velocidade. Conheço Moscou como a palma da minha mão, ao menos a zona neutra e a zona comandada por papa. Consigo despistar o outro segurança sem muitos problemas; alguns deles são tão burros que fico admirada com o quão ingênuo papa pode ser ao escolher seus inúmeros braços direitos.
Já dentro da zona neutra é fácil encontrar o café. O prédio está bastante deteriorado pelo tempo, mas ainda tem um charme clássico e está sempre muito limpo. A dona é simpática e sempre me dá um bolinho a mais. Me sento em um canto escuro, sempre na expectativa de não ser reconhecida. Agora também de não ser encontrada, pelo menos por tempo suficiente para fazer o que preciso.
Peço um café e espero. Não sei quanto tempo tenho até que meu celular comece a apitar com mensagens de mama ou Katya, desesperadas, e aproveito o curto espaço de tempo para pensar em como irei amenizar a terrível bronca que levarei. Independentemente de ser uma adulta...
Não muitos minutos depois, vejo Ivan entrar no prédio também. O observo com o canto dos olhos enquanto ele vai até o balcão, faz seu pedido e, logo em seguida, sai com seu café fumegante nas mãos. Agarro meu próprio copo e, com discrição, o sigo para fora. Caminho de maneira sutil e tento evitar qualquer olhar alheio. Zona neutra ou não, sempre estarei correndo riscos ao caminhar por aqui tão exposta.
Ivan vira algumas ruas e por fim chega a uma viela. Ainda o sigo, tentando parecer tão inocente quanto posso, mas, assim que piso na mesma rua em que está, sinto seus braços fortes me puxarem, quase derrubando meu café. Ainda assim me deixo levar, logo estou encaixada em seu peito forte. Seu cheiro mentolado me atinge forte no nariz. Respiro profundamente em sua camiseta; quero beber de sua pele enquanto posso.
Seu sorriso é largo e cativante. Beijo seus lábios sem me demorar, nem mesmo para dizer um “olá”. Eu quero, e muito. Meu coração chega a se apertar com o quanto o desejo. Sei que não posso tê-lo agora, muito menos aqui. Não posso sequer segurar suas mãos e deixar que veja nosso amor verdadeiro escorrer por nossas peles beijadas pelo frio de Moscou.
— Oi, ... — ele diz. Sua voz é doce, e as poucas palavras deslizam amorosas por seus lindos lábios avermelhados.
Reparo em suas vestes; ele está sempre bonito demais. Hoje veste um casaco marrom grosso, calças e camisa de lã pretas; sapatos também marrons. Ivan está sempre preparado para qualquer ocasião, e se parece sempre com um ator famoso. Em seu pulso está preso um lenço vermelho com uma estrela preta estampada, e o desenho combina perfeitamente com a tatuagem em seu pescoço. Os cabelos bagunçados e as bochechas vermelhas por causa do vento frio. Ivan é lindo e perigoso, tudo nele grita atenção. Eu o amo com todo meu coração.
— Oi Iv... — respondo baixo, com a voz entrecortada. Ainda sinto seu gosto em meus lábios.
Ele ri baixo, e o sorriso combinado é o meu sorriso preferido no mundo todo. Quero poder gritar para o mundo o quanto o adoro. Quero que entendam que o justo é deixar-nos amar um ao outro, como qualquer outro casal. Sem Bratva ou obrigações familiares, apenas amor verdadeiro.
— Me diga, o que precisa de tão urgente que precisou me trazer para um beco escuro? Ou apenas quer se aproveitar de mim? — ele pergunta. Seus ombros se erguem enquanto ri, maroto.
Mostro minha língua em resposta, e seus olhos escurecem na mesma hora. Sei o quanto ele gosta que o desafie.
— Antes fosse... Eu só preciso te contar q... — começo a dizer, mas ele me interrompe, segurando meus braços e me puxando para o canto, quase para dentro do seu grande casaco. Noto que alguns homens passam na rua paralela a nossa. Ele segura meu queixo, tomando novamente minha atenção para os seus olhos aquosos. — Ele fechou o contrato — concluo sem pestanejar. Não há como tirar o band-aid de uma forma mais agradável.
Seus olhos se arregalam; ele sabe do que estou falando. Sempre soubemos que nossos destinos não se cruzariam até o fim, mas talvez Ivan não estivesse esperando que isso acabaria tão rápido. Ao menos, eu não esperava. Havia um, apenas um cenário onde o fim da nossa história seria partilhado, e as cores não são muito bonitas. Uma dica, é vermelho... vermelho-sangue.
— Ah... — suspira, e o muxoxo que solta em seguida atinge direto em meu coração. Ele sente o mesmo que eu nesse momento, e, para falar a verdade, chega a ser quase um alívio dividir o sentimento. Suas mãos estão firmes em minha cintura. Ele aperta o tecido da blusa com força desnecessária, e vejo seu peito subir e descer, inflado de raiva. — O que nós fazemos agora?
— Honestamente? Não faço a menor ideia. Já tem um tempo que achei que isso não fosse mais acontecer, não comigo... Katya parece ser um partido muito mais interessante do que eu, não achei que papa considerasse mais... — afirmo ao dar de ombros. Ivan apenas concorda em um movimento com a cabeça.
É claro que está surpreso, vejo isso em sua expressão; os lábios torcidos e os olhos cabisbaixos. Assim como eu, ele não sabe o que dizer. Ainda que esperássemos por esse momento, não poderia imaginar que seria tão duro assim.
— Poderíamos fugir — ele diz, como uma ideia simples de última hora.
Giro meu corpo em seus braços para que minhas costas se encaixem em seu tórax definido. Não é uma ideia horrível, com certeza, mas também não parece muito prática.
— Poderíamos... — suspiro alto, e ele, em resposta, esfrega meus braços em um carinho delicado. — E então seríamos caçados pelo mundo todo, pelo fim de nossas vidas. E quando nos encontrassem, não seriam nada misericordiosos.
— Não somos mais crianças.
— Não, definitivamente não somos — uma risadinha escapa por meus lábios, e a verdade é que nada disso parece importar. Três ou trinta, nossas obrigações com a família são muito mais importantes do que nossos desejos.
— Queria que fosse minha esposa, a mãe dos meus filhos, não uma amante... — diz, com a voz embargada. E, enquanto sua voz quebra, me sinto quebrar por inteira aos poucos junto com sua tristeza.
— Seria meu mundo ideal...
— Sem sombra de dúvidas — ele completa com sua voz tão baixa que preciso me concentrar para ouvir. Logo se recompõe e vira meu corpo para o dele mais uma vez, seus dedos apertados nos meus braços. — Me conte, , como será sua “grande” festa? — pergunta, e faz questão de fazer as aspas com os dedos no ar.
Eu solto uma risada grave, puxando o ar com força para meus pulmões. Tento manter a calma e a compostura, mas a realidade é que meu estômago parece cheio de ácido.
— Daqui dois dias — respondo, sem tentar enrolar ou esconder o jogo. Ivan suga o ar; está cada vez mais irritado. — No galpão de transportes, o que fica bem ao sul, sabe? Papai acha que dará para colocar bonitas esculturas de gelo. Como se eu me importasse... — balanço meus ombros, indiferente, e ele ri baixo. Dessa vez, não é apenas por ser cabeça dura. Não darei o braço a torcer, não faço questão. — Acho que irá uma quantidade razoável de pessoas. Sei que todas as famílias mais importantes estarão lá, todos os seus chefes — concluo, e não quero mais falar sobre o assunto. Ele concorda com um aceno de cabeça. Seu olhar parece mais pesado a cada segundo, como se o seu cérebro lutasse contra pensamentos muito complicados. — Podemos falar de outra coisa? Como por exemplo nossa casa branca, com varanda e cobertas de pelagem grossa?
Ivan volta a sorrir e concorda mais uma vez com a cabeça.
O mesmo tempo que levei para ficar tão nervosa é o tempo que levo para me acalmar em seus braços. Pelo menos, hoje quero fazer de conta que esse pesadelo não é real. Está tudo apenas em minha cabeça.

Os dois dias seguintes passam rápido demais. Quero negar que chegou o momento, mas mal tive tempo para me acostumar com a ideia. É isso, não tem mais jeito, eu acabo de me tornar um troféu.
Não consigo deixar de pensar no quanto é injusto que seja tudo comigo, principalmente quando, no quarto ao lado, minha irmã pula de felicidade com essa festa, torcendo para que meu pai encontre logo um par para ela também.
Katya não se importa com quem papa vá escolher, desde que seja um homem decente e que lhe dê tudo que precisa. Mal sabe ela que não há um homem presente em nossa família ou aliados que possa ser o marido especial, muito menos decente.
Não há um homem bom de verdade que faça parte da Vory v Zakone. Não há como imaginar que um desses assassinos de sangue frio seja um homem honesto.
A imagem que reflete no espelho é de uma mulher muito deslumbrante. Acho que nunca estive tão bonita, e, ainda assim, não há nada de radiante em minha imagem.
O profissional de beleza que veio até nossa casa arrumou meus cabelos em um bonito penteado no topo da cabeça, e algumas mechas deslizam pelos ombros. Ele também fez a maquiagem leve, porém marcante. Meus olhos parecem quase saltar para fora do rosto de tão bem pintados e delineados. Os lábios estão pintados por morangos cheios de tinta. O vestido que escolhi está alisado e cobre meu corpo perfeitamente. Parece ter sido feito sob medida, se ajusta nos lugares certos.
— Você está realmente bonita, — Niko diz, os nós dos dedos tocam o batente com leves soquinhos. Reúno todas as minhas forças para lhe lançar um sorriso bondoso. Bonita e infeliz não parece a melhor máscara para a noite, mas é a única disponível. Ele vem em minha direção e me entrega uma caixinha. — Papai disse para guardar isso para você e te entregar na hora certa. Acho que esse é o momento — sua voz é gentil ao falar. Ele faz um carinho em minha mão e me dá o seu melhor sorriso de menino obrigado a ser adulto. Como eu não digo nada, ele apenas me deixa sozinha mais uma vez.
Dentro da caixa está um lindo colar de diamantes brancos. De forma automática, meus olhos se enchem de lágrimas. A joia carrega uma carga emotiva muito grande, e, ao mesmo tempo em que a acho linda, sinto a raiva encrustar o pedaço de aço e pedras preciosas.
Eu o prendo em meu pescoço e admiro seu brilho no reflexo do espelho. É tão lindo. E ainda que sinta vontade de arrancá-lo e atirá-lo longe, o acaricio. Espero que usá-lo traga algum conforto, de ter algo da minha família tão próximo a ponto de canalizar minhas energias para que meu corpo não desabe.
Alcanço minha bolsa. Dentro dela coloco apenas o necessário: meu celular, um vidrinho muito pequeno de perfume – para o caso comece a suar demais –, um par de meia-calças se as minhas rasgarem – o que é bem provável, já que não sou tão delicada quanto mama e Katya –, e, no fundo falso da bolsa quadrada, coloco minha pistola .22, algumas balas extras e o canivete que ganhei de Nikita, escondido do meu pai há três anos, durante um de nossos primeiros treinos com faca.
Não que fosse usar qualquer uma dessas armas, mas cada um dos objetos é cheio de significados; me fazem lembrar de casa e de quem sou, me fazem sentir como se não fosse um objeto. Ter o metal tão ao alcance me faz sentir segura, e não apenas mais uma das tantas mulheres vendidas para qualquer homem da Bratva.

Encontro minha belíssima mãe e irmã esperando do lado de fora; Niko já está aconchegado dentro do carro. Entramos também e nos acomodamos. A frente e atrás do nosso há outros dois veículos, com seguranças redobrados para nos escoltar até o local da festa. Apesar de um movimento exagerado, é bastante coerente. Não muita discrição em nossa movimentação, mas papa sabe o que é o mais seguro para nossa família.
Não demoramos para chegar ao galpão, e sinto como se o tempo estivesse contra mim. Do lado de fora, não há como descobrir que uma festa acontece – os carros chegam, as pessoas desembarcam e os veículos se vão. Como se nada estivesse acontecendo ali. Porém, assim que adentramos o local, é como se fôssemos parar em outro universo, com muitas luzes e convidados.
Preferi não me envolver em nada. Não conseguiria de forma alguma ter a mesma disposição que mama e Katya. Eu não poderia odiar a situação e ainda sim transformá-la em algo perfeito. Elas acertaram direto em meu coração, o lugar está lindo.
A decoração é dourada e branca. Alguns lustres de cristais iluminam o espaço, lançando fios de luz coloridos por todo o chão. Velas e flores dão aroma ao lugar, que, anteriormente abandonado, agora parece surpreendentemente bastante limpo.
Mama mandou os demais organizadores colocaram carpete em todo o salão, e muito bem instalados. Fazem parecer como se o chão sempre tivesse sido assim. Uma música ambiente toca ao fundo, tudo muito dentro dos conformes e tradições. Elegante sem exageros, mas também sem modéstias demais.
Passamos por inúmeras pessoas, muitas que nem mesmo conheço, e todos nos cumprimentam de forma educada. Conversas automáticas e robotizadas. Nos perguntam como estamos, dizem que não nos vemos há muito tempo e que era ótimo estar em contato. Isso quando, muitas vezes, acho que nem mesmo sei o nome dessas pessoas.
Mantenho minha coluna ereta e respondo a todos com educação. Mantenho minha compostura, afinal de contas, independente da infelicidade, a honra da família vem em primeiro lugar. Foi assim que fui criada, esse é meu legado. E apesar de discordar das decisões do meu papa, ainda tenho respeito pelo nome que carrego.
Ao que parecem anos-luz de muitos cumprimentos e sorrisos carregados de falsidade, os convidados começam a se dispersar ao nosso redor. Assim que me viro na esperança de encontrar nossa mesa, vejo papa caminhando em nossa direção. Ele acena para todos que cruzam seu caminho; um sinal cortês de respeito e superioridade.
Ao seu lado, um rapaz de cabelos escuros e pele muito clara caminha em seu encalço. Ambos param em nossa frente, e o jovem nos lança um sorriso brilhante. Ele é muito bonito, e, pela sua roupa, noto que tem muito bom gosto, começando pelo casaco Gucci. Não que isso realmente importe, mas ao menos não faz mal aos olhos.
, minha filha, este é Dimitri Yolav, seu futuro marido — papa diz sem muitos floreios.
Meu estômago se retorce com suas palavras, mas engulo em seco, respiro fundo e sorrio. O rapaz estende sua mão, a qual seguro com certa hesitação. Ele a beija com delicadeza, ao menos é educado.
Sergei parece muito feliz com o encontro. Ainda que não sorria, posso ver em seus olhos que está orgulhoso. Principalmente porque não fiz nenhum escândalo. Além do seu, posso sentir os olhares dos convidados sobre nós. Tudo que consigo pensar é no quanto irei aguentar essa noite.
— Gostaria de dançar, ? — Dimitri pergunta, mas não espera que eu o responda e já me carrega para o meio do salão. Os olhares curiosos fazem com que minha espinha pareça quase derreter, e preciso me segurar em seus ombros para não tropeçar. Ele arrisca uns passos laterais, e tento o acompanhar sem pisar em seus pés. Meu rosto parece fumegar. — Sei que tudo é estranho, para mim também, mas saiba que terei muito respeito com você e seus limites. É só me dizer — ele diz em meio a uma risadinha, e quase respiro aliviada.
Dimitri parece ser muito interessante. E o mais importante é que é jovem, o que me faz sentir agradecida, pois, em minhas conversas com minha irmã quando mais novas, sempre ríamos com pavor de nos casar com homens muito velhos.
Após mais duas ou três danças com meu “noivo”, peço licença e digo que irei encontrar minha família. Assim como havia prometido, Dimitri não reclama e deixa que eu me vá. Ele espera que eu me afaste o suficiente antes de se virar e caminhar em direção a meu pai. Tenho certeza que para contar qual havia sido sua primeira impressão e se estava “satisfeito” com o acordo.
Tento aproveitar a festa que, apesar da motivação, está muito bonita e agradável. Danço com minha irmã e irmão, rimos e fazemos piadas um do outro. É tudo muito surreal em consideração às circunstâncias, mas estamos realmente nos divertindo, e quase me esqueço do propósito de estar ali.
De longe, papa nos acompanha com o olhar firme. Dimitri está ao seu lado, e parece tentar sempre ser agradável e gentil. Quem sabe isso não seja tão terrível como imaginei. Ele jamais seria Ivan, mas eu poderia dar um jeito.
Niko puxa Katya para uma dança maluca, e é lindo vê-lo agir como deve ser, mesmo com muitos olhares sobre sua cabeça. Katya, por outro lado, é tão linda que faz meus olhos doerem. Estou me divertindo ao admirá-los brincarem um com o outro quando sinto o celular vibrar em minha bolsinha. Sigo em passos rápidos e discretos até um canto do salão, em busca de um lugar mais longe do olhar de meu pai e dos seguranças.
— Alô? — digo ao atender, mas o outro lado da linha parece mudo. — Alô?
... , você precisa sair daí o mais rápido possível…
— O quê? Quem...? — pergunto. Olho para a tela do telefone, mas o número é desconhecido e a voz é tão sufocante que não reconheço.
— Eu... Eu sinto muito — a voz afirma; o clique indica que a ligação foi finalizada.
É exatamente no mesmo segundo em que ouço o primeiro tiro.


FRANKLIN MORRIS


Seis. Seis é um bom número para começar.
Mordo meu lábio, pensativo, enquanto encaro os quatro homens e as duas mulheres à minha frente. Todos parecem fortes e saudáveis, o que é ótimo, é claro, mas ainda melhor do que isso: todos parecem dispostos a fazer o que eu disser que precisam fazer. Mesmo que isso signifique apenas puxar o meu saco.
Não tenho certeza de que estou pronto para ter minhas botas lambidas.
Eu sempre fui o soldado, essa sempre foi a minha posição. É um pouco estranho estar do lado contrário, do lado que dá ordens. Ainda que, lá no fundo, sei que não fui feito para menos que isso. Não dar ordens, não quero ser esse tipo de superior babaca. Estou falando sobre ser o capitão que lidera sua equipe ao sucesso. Quero que estes policiais, quando olharem para trás, sintam que alcançaram sua glória.
— Bom dia, detetives — digo, sem pausa entre as palavras. É óbvio que estou nervoso. Seus olhos me encaram com ferocidade, como se tentassem me dizer que querem o lugar, que o posto deve ser seu. — Eu sou o Capitão Franklin Morris, e como já sabem, se inscreveram para realizar um teste de aptidão que os levará para lugares maiores dentro da academia.
É muito difícil falar sem que a voz falhe, sem que a língua trave no céu da boca e eu fique só parado, parecendo um grande idiota. Quando Jetson me deu a ideia achei ridículo, depois bastante interessante, agora estou receoso de que não seja tão fácil quanto pensei.
Não porque não acredito no meu trabalho ou no destas pessoas, sei que darão seu melhor. Mas talvez precisasse ter preparado melhor a ideia, planejado melhor.
Bem, seja o que for, não tem volta agora.
— Não espero nada menos do que dedicação extrema neste treinamento. Quero que me mostrem do que são capazes. Do quanto são capazes de se doar por esse trabalho, essa oportunidade — digo em tom firme. Meu sorriso talvez seja um pouco mais maligno do que meus pensamentos ou minhas palavras; sei disso porque os seis abaixam seus olhares para suas próprias botas. — Estão certos disso, oficiais?
— Sim, senhor — eles respondem em uníssono. Fico satisfeito ao notar que suas vozes soam tão ansiosas quanto a minha. Não sou o único tremendo na base aqui.
Com um aceno de cabeça, começo a caminhar e peço que me acompanhem. Os acompanho até um dos nossos centros de treinamento, o meu favorito: uma academia completa, dividida em seis espaços diferentes. Duas dessas partes foram montadas pensando em aprimorar qualquer que seja o estilo de lutas. São cinco ringues espalhados em seus espaços, tatames, bonecos de borracha e punching balls, entre outros equipamentos.
Logo ao lado do centro de lutas, há um espaço especifico para esportes de tiro. Facas, flechas, machados, tudo que puder imaginar. Gosto bastante desse também, mas, entre todos, é o menos movimentado. Os detetives parecem ter um maior apreço por armas de fogo e, para isso, precisam de salas especiais, definitivamente não tão abertas.
A última área é de esportes comuns, e sempre pensei que deve ter sido colocada ali apenas para distração, para o momento de lazer. E dentre todas é a mais utilizada, pois metade do seu espaço está recheado com equipamentos de academia, o que atrai a atenção de muitos policiais que querem aumentar seus músculos e força física.
Nos dirigimos ao primeiro espaço, o de lutas, é claro. Depois da minha própria sala, é o lugar onde passo a maior parte do meu tempo. Talvez seja onde me sinta verdadeiramente em casa. Isso e o telhado, com certeza.
Eu os divido em três duplas. Por um momento, analiso se devo deixar as duas mulheres juntas ou não. Acabo decidindo que é mais justo, não porque não acredito que possam encher a boca de qualquer um desses falastrões de porrada, mas porque sei que eles não medirão esforços para se superarem, e, para falar a verdade, não quero criar muito caso.
Mando que subam no tatame e se enfrentem, quero vê-los como agem em campo e o quanto se concentram, se são habilidosos o suficiente para se defenderem quando necessário. Digo que o façam sem medo, sem hesitação, que deem tudo de si.
Lutar é o que sei fazer de melhor, e é por isso que quero vê-los cara a cara, mano a mano, principalmente porque acredito que o embate corpo a corpo é de extrema importância. Demonstra a leveza dos movimentos e também o equilíbrio preciso em combate. Um detetive bem preparado deve saber o suficiente para se defender, de preferência sair ileso de uma briga e, acima de qualquer coisa, sem ter que ferir ninguém com gravidade.
Quando entrei para a academia, aprendi a mesma lição do meu superior. A diferença é que ele tinha sido muito cruel do que eu jamais poderia ser. Nunca me esqueceria das suas palavras: “se quiser continuar com o treinamento, precisa aprender a não tomar porrada”. Ele não estava totalmente errado, por pior que soasse.
Ele sabia das minhas condições, conhecia todo o meu histórico e evolução, como tinha chegado até ali. Eu me sentia orgulhoso por saber que ele não tinha me rejeitado de primeira como a maioria dos outros. Apesar de qualquer coisa, me fez sentir parte da equipe de verdade.
Talvez tenha sido exatamente por conhecer o meu passado que tinha aceitado me treinar. Fazia questão de que me esforçasse, mais até do que os outros. Não era porque tinha algumas dificuldades que pegaria mais leve comigo. Muito pelo contrário: nos dois primeiros anos dentro da academia, apanhei mais do que uma criança levada.
Nunca tive o costume de contar minha história, mesmo com todos os problemas que carreguei por um bom tempo, para andar e falar devido às cirurgias e sequelas que tinham feito do meu cérebro seu lar. Minha falta de coordenação motora me fazia o policial mais ignorado e zombado de todo o grupo. Simplesmente não há tempo ruim para os “bullies”, não importa onde.
É claro que isso também não me parou; na realidade, só me fez mais zangado com o passar dos anos. Depois de aguentar tanto e aprender a responder, eu me tornei o “milico explosivo”, apelido que durou por um bom tempo.
Enquanto tomava soco atrás de soco, pontapé atrás de pontapé, sempre tinha um cara curioso observando tudo de fora do ringue. Pele negra e cabelos curtos, músculos definidos que o faziam parecer um lutador de MMA. Nos lábios, sempre carregava um sorriso confiante, mesmo quando entrava no ringue, onde seus cruzados certeiros faziam questão de derrubar todos os caras que tinham me batido antes.
Não nego que, no começo, me irritava muito. Era como se ele fizesse questão de mostrar o quanto eu era inferior ali, e que provavelmente nunca seria bom como ele.
A verdade é que Jetson Richards esteve presente em todas as minhas lutas, desde o primeiro dia na academia, e nunca, nenhuma vez sequer zombou quando tomei um soco e apareci horas depois com o olho roxo.
Na verdade, Jet sempre foi o oposto: me apoiou sem questionar o porquê de não conseguir ir além do que eu entregava em campo. E quando todos gritaram para que eu desistisse, Jet entendeu a mão e me ajudou a evoluir. Nunca houve retrocesso ao seu lado, sempre crescemos mais como uma dupla.
Ele nunca questionou meus métodos de treinamento, nunca me perguntou porque eu não conseguia controlar minha raiva e por isso acabava recebendo tantas punições por fazer tudo errado. Nunca, nunca me provocava para que eu me irritasse com ele. Jetson estava presente, e se tornou meu melhor amigo.
Eu não imaginava que depois de George fosse encontrar uma segunda amizade, principalmente uma amizade verdadeira, sem interesses por trás. Eu acreditava que nunca mais conseguiria me aproximar de alguém que não fosse para pedir um favor, ou para livrar minha cara com meu superior. Mas havia encontrado um parceiro que ia além do que tinha em meus planos quando comecei a agir em prol dos meus objetivos. Jet não me questionava, e eu também nunca o questionei, nem mesmo o perguntei porquê queria ser meu amigo. Não procurei motivos para duvidar dele quando subiu tão rápido de cargo e acabei ficando para trás.
E o principal: nunca questionei nenhuma de suas ordens. Ele sempre foi, em minha visão, o maior merecedor de uma vida pacífica além da que carregava com seu esquadrão. Para ser sincero, às vezes me questiono até mesmo se o mundo merece alguém como Jetson.
Quando lhe contei minha história e meu passado, o que aconteceu com George, como tudo se desenrolou, como acabei tomando um tiro na cabeça e desabafei sobre como acreditava que deveria estar a sete palmos abaixo da terra, ele por nenhum momento duvidou das minhas palavras. Não me encheu de perguntas nem me deu tapinhas nos ombros.
Jetson só me fez um pedido desde que tomou conhecimento sobre a minha vida e seus percalços. Me pediu para acompanhá-lo em sessões de terapia, já que também fazia, e, para ele, que também tinha seus problemas, fazia muito bem. Por isso, eu aceitei.
Richards nunca faltou à nenhuma consulta sequer, e sua própria motivação era o que me fazia querer participar também. Sem nem mesmo perceber, eu tinha vontade de continuar, melhorar e progredir; crescer e me tornar o que planejava, o que aconteceu com o tempo.
Desde o momento em que nos conhecemos até agora, houve apenas uma coisa que Jetson não conseguiu arrancar da minha alma: a sede corrosiva de destruir Sommers, que parecia implantada em meu corpo e minha mente como uma semente diabólica. E não por falta de tentativas de superar, mas, sempre que pensava em Trey e no quanto ele havia tirado de mim, no quanto tinha desgraçado minha vida, minha visão ficava vermelha e eu não conseguia ver nada além da cabeça de George sendo afogada em seu próprio sangue.
Tudo que eu sentia era a morte, ainda que eu fosse, acima de qualquer coisa, um sobrevivente. Eu me sentia engolido em minhas próprias frustrações, e era tomado pela escuridão. Uma vez mais, um dia mais.
Talvez seja por isso que estou levando essa coisa de novo parceiro tão a sério e esteja tão nervoso. Tive o melhor, preciso estar à altura também.
Meus pensamentos são quebrados quando ouço alguém cair sobre o tatame. Por Cristo, não passou nem um minuto e meio. É menos do que a porra de um round de boxe.
Não consigo evitar meu desapontamento. Nego com a cabeça enquanto o agente levanta meio cambaleante; ele parece muito envergonhado, nem mesmo consegue me olhar nos olhos. É bem provável que tenha levado um soco certeiro que quase o fez desmaiar. Sua bochecha está bem vermelha, o que só comprova minha constatação.
— Mas que bela merda, agentes! Vocês são soldados ou crianças? Porque pareço estar diante de uns remelentinhos… — berro o mais alto que consigo, o que faz com que uns dos que ainda estão de pé se assustem, enquanto outros se socam mais forte, de maneira desengonçada. — Minha sobrinha de três meses soca bocas mais do que essas suas mãos moles, porra! Acelerem, vamos, vamos! — grito com motivação, me lembrando a cada segundo mais do meu superior.
Eu os analiso enquanto se batem; são atrapalhados demais, desajeitados demais. Tudo que consigo pensar é de onde diabos Jet conseguiu tirar esses manés. É quase difícil de olhar! Sei que devo ser o parceiro que motiva, que faz o outro se superar, mas minha nossa, parece difícil demais agora.
Dou o máximo de colheres de chá para a bananada que presencio, é verdade. Até que não dá mais, então os levo até a quadra de basquete e peço que corram trinta voltas. Se não têm aptidão para a luta, espero ao menos que tenham o básico: um pulmão de ferro e treinamento de respiração.
E mesmo assim, eles correm como bonecos de posto infláveis. Meus olhos poderiam quase sangrar.
Não consigo segurar minha risada, ainda que me esforce para não ser um grande babaca, mas parece impossível. Assim que noto a presença de Jetson ao meu lado, me viro para ele, encarando-o com decepção.
— Você podia tentar ser menos cruel... — ele começa a falar, parecendo se divertir tanto quanto eu. — Não sei se você se recorda, mas você não era o agente pica das galáxias quando chegou aqui... — completa. Dou de ombros em resposta. Disso sempre soube, me forço a lembrar o tempo todo. Talvez eu deva agradecê-lo por ter me ajudado com isso.
— É, eu sei, mas não posso aceitar um parceiro que seja inferior aos policiais do nosso esquadrão hoje. E se você me diz para encontrar alguém diferente, novo, não posso ser bunda-mole com eles — digo. — Não dá pra aceitar alguém que não sabe dar um soco decente, Jetson. Se eles não sabem manter as mãos no lugar, como vamos dar um fuzil e esperar que salvem alguém? Acabariam atirando nos próprios pés ou, ainda pior, em outro de nós!
Jetson ri alto, é quase uma gargalhada, e faz os agentes correrem mais lento apenas para nos observarem. Eles querem saber sobre o que estamos falando, querem saber se temos qualquer opinião sobre eles, se estamos orgulhosos. Dou risada também, apenas por educação, para acompanhá-lo em seu divertimento. No fundo, Jetson sabe que estou certo.
— Ok, ok, Capitão Durão. Os agentes são seus, o novo parceiro é seu. Você sabe o que fazer com eles e sabe o que é melhor pra você... — ele diz, erguendo as mãos em rendição enquanto é sua vez de dar de ombros. — Afinal de contas, seu escolhido terá que te aguentar por um bom tempo, pacote completo — explana com uma piscadela marota. Em resposta, nego com um movimento de cabeça.
A verdade é que quero lhe dar um soco na cara, pelo menos um empurrão nos ombros. Mas também não quero mostrar indisciplina na frente dos policiais, mesmo que estejam começando a me irritar, a ponto de eu ter absoluta certeza que não vão seguir em frente. São cheios de vontade, e eu os admiro por isso. Mas se apenas vontade abrisse as portas da corporação, estaríamos cheios de soldados mão-de-alface por aqui.
O que mais me irrita é, aos poucos, a sensação de desistência em seus olhares e a posição dos seus ombros pedem para parar ou apenas começam a caminhar. Existiu algum momento em que realmente pensei em desistir? Não, não sobre isso.
Talvez muitas vezes eu tenha parado para pensar que não seria capaz de continuar, que sempre ficaria preso no mesmo lugar, que me via como um homem inválido e sem forças. Mas nunca, por nenhum segundo sequer, pensei em desistir, em deixar tudo para trás. Se há algo que tenho certeza é da minha teimosia e orgulho, e me apegar a isso nos piores momentos foi o que me fez continuar.
É claro que nem todos teriam a sorte de ter um parceiro e amigo como eu tive, um que os empurrasse para frente e, quando estivesse travado, te fizesse entender que está tudo certo em tomar o seu próprio tempo para destravar da sua maneira. Eu quero ser esse cara, juro que quero, esse parceiro de que sintam orgulho. Mas esses caras aqui parecem não ter essa gana.
Estou visivelmente irritado, acho que todos percebem que não dá mais. Sinto em suas respirações que estão tão frustrados quanto eu, então mando que descansem e afirmo que, assim que possível, entraremos em contato. É óbvio que não aprovarei nenhum deles, não consigo me encontrar em nenhum destes policiais. E por mais que devam merecer uma nova chance, não me vejo em nenhum deles. Não é potencial que busco.
Jetson me pediu para levar isso adiante e aceitei, mas de forma alguma farei isso de qualquer maneira. Se dei meu melhor, espero o melhor deles também. O que é bem decepcionante, ao menos até então.

À tarde, me encontro com um outro grupo de seis pessoas. Nenhum deles é tão terrível quanto o grupo da manhã, mas com certeza não vejo nenhum excepcional como eu esperava. Não se destacam aos meus olhos e não consigo acreditar que deixei Jetson me convencer dessa ideia idiota.
Eu sabia que seu plano seria muito complicado de pôr em prática, mas agora não consigo imaginar isso dando certo. Como vou encontrar essa nova parceria se não suporto nem mesmo uma hora com esses primeiros candidatos? Acho que Jetson pirou, está totalmente fora da casinha para me sugerir isso. Nenhum estará à sua altura, nem mesmo à sua altura seis anos atrás.
No fim do dia, minha cabeça está latejando e a frustração pulsa em minhas veias. A irritação corre como fogo e me deixa a ponto de explodir, então aproveito para organizar o escritório.
Penso em como direi para Jet que quero desistir da sua maldita ideia, mesmo que eu entenda porquê pensou que isso seria bom. Talvez eu esteja o atrasando novamente, como já fiz antes, como já o atrapalhei tantas vezes. Pelas frestas da persiana, assim que o vejo entrar em seu escritório, me levanto e aperto o passo para alcançá-lo.
— Sabe o que estou pensando? — pergunto assim que entro em sua sala, com um soquinho no batente da sua porta apenas para avisar que vou entrar sem esperar sua permissão.
É final de expediente, não há nada de mais acontecendo, e o Jetson que encontro está obsoleto, só no aguardo do momento em que poderá fugir para sua casa. É o que todos fazemos.
— O quê, Morris? Em como sou incrível? — questiona ao mesmo tempo que ergue seus olhos, com lentidão, da tela do computador para me encarar, divertido.
— Cale a boca por um minuto e me escute — digo com firmeza. — Acho que está me tratando exatamente como fez quando comecei a fisioterapia e a terapia...
Hmm, me explique mais sobre isso. Eu não me lembro — ele argumenta, mordendo seu lábio inferior. Bufo, irritado, mas Jet somente me encara como quem está tendo o melhor momento da sua vida.
— Jet, estou falando sério.
— Eu também, Franklin. Agora me diga, o que há de errado sobre tudo isso?
— Você fez exatamente o mesmo, nas primeiras sessões. Eu te dizia... “não preciso de nada, Jetson”. “Obrigado por tudo, mas me deixe em paz, Jetson” — digo, fazendo aspas com os dedos em cada uma de suas citações.
— “Eu sou um lobo solitário, Jetson” — ele imita minha voz e preciso me segurar para não rir. Puxo a cadeira à sua frente e me sento. Em resposta, ele apenas me encara, agora muito mais sério, sem sorrisos ou piscadinhas. — O que eu me lembro bem, seu grande idiota, é de um cara sem vontade de viver, sem propósito apesar de uma força imensa. Eu me lembro muito bem da primeira vez que conseguiu dar um passo sem mancar, de quando conseguiu falar sem gaguejar, e mais... — ele pausa para recuperar seu ar, então ergue o indicador da mão direita e o aponta em minha direção. — Lembro de quando conseguiu derrubar aquele idiota no ringue pela primeira vez... Eu me lembro daquele olhar, Frank, e puta merda! Eu quero aquele olhar de novo na sua cara, irmão... Quero meu melhor amigo com quem ouvi tantas vezes Paint in Black, que prometia que conquistaria o mundo enquanto destruía aos poucos cada demônio que vive aí... — termina de falar ao arrastar seu dedo apontado em minha direção, desde a minha cara até meu peito.
— Tudo bem — respondo, meus ombros se encolhem. Suas palavras são cruéis, ainda mais depois de tudo que passei para chegar até aqui, mas a verdade é que ele não está mentindo. Pelo contrário, não tem como ser mais sincero do que isso.
Me preparei por tanto tempo para o momento que prenderia Trey, que destruiria sua vida tanto quanto tinha destruído a minha, que quase esqueci da melhor parte da corporação, que é exatamente estar na corporação. O poder sobre o seu próprio corpo e mente, saber do que é capaz, do que pode fazer, de quantas vidas pode salvar. Por um momento, quase permiti que Trey Sommers sugasse tudo isso de mim.
— Exatamente — diz, me observando quando desvio o olhar. É como se pudesse ler minha mente. — O que quero é que você entregue tudo que aprendeu para outra pessoa, que apoie alguém tanto quanto sempre te apoiarei, Frankie. Existe alguém lá fora que merece isso tanto quanto você mereceu, que precisa disso, ser apoiado.
— Mas não esses bananas de hoje — respondo rápido, e Jet gargalha alto. Ele desliga seu computador, se levanta e alcança sua jaqueta, a jogando sobre os ombros.
— Não, não esses bananas — diz por fim, e sai da sala com um último tapinha em meus ombros. Eu o sigo para fora, com o olhar em sua nuca.
Nossa amizade talvez tivesse um dia sido improvável, mas hoje sabia que era a melhor que eu tinha. Talvez a melhor de todos os tempos.

No dia seguinte recebo um novo grupo de agentes, e no dia seguinte alguns mais. Dias depois, recebo mais um número. Continuo a treiná-los, na esperança de que Jetson esteja certo. De que eu traga um pouco de luz para um desses, tanto quanto recebi.
Por enquanto, não estava funcionando.
Mas todas as vezes que senti vontade de socar suas caras, me forcei a lembrar do momento em que acordei depois da quinta cirurgia em minha cabeça, quando tentei chamar pela minha mãe e minha língua se enrolou com tanta violência que a dor foi absurda em todo o meu maxilar. Me lembrei do quanto meu corpo seu contorceu quando tentei me levantar sozinho pela primeira fez, fazendo com que eu mijasse no chão.
Me forcei a lembrar do quanto me senti sozinho, do quanto fiquei despedaçado ao ver o que tinha me tornado, o que minha vida tinha se tornado. Senti como se não merecesse mais nada de bom, de como aprendi a odiar a atenção que recebia, mesmo que fosse apenas boa vontade dos outros para me ajudar.
Como afastei minha família, como destruí qualquer amizade que ainda tivesse restado, de como fingi que nada do que viesse de ninguém que um dia amei tivesse importância. Fui um completo babaca, até que o cara da sala ao lado me observou lutar sem rir, sem julgar, e apenas me motivou com sua preocupação e entendimento, dia após dia.
Então senti que, mesmo que todos os homens chorassem, mesmo que implorassem por suas mamães e quisessem sair correndo quando gritava com eles agora, prometi a mim mesmo que não desistiria. Jetson estava, como sempre – mesmo que não quisesse admitir –, certo. Eu encontraria o tal novo parceiro, ainda mais se isso fosse em prol de nós ambos. Eu o ajudaria e sei que me ajudaria também.
Não desistiria, não porque meu amigo pediu, não porque o capitão tinha dado uma ordem, mas porque ele estava por aí, em algum lugar. E eu o encontraria.




A vida é uma maldita montanha-russa. Quando você acha que atingiu o topo, a velocidade te empurra para baixo e, se você não se segurar o suficiente, sairá dali zonzo e sem rumo.
Se não houver travas de segurança, você apenas cai e morre. Você não sabe quando haverá um looping, ou quando o freio quebrará tão forte que seu peito se apertará contra o cinto, e você por um segundo pensará que aquilo não vai te segurar.
É uma maldita montanha-russa sem fim, não importa se haverá muitos altos ou muitos baixos, realmente não interessa. Você nunca sabe qual o próximo movimento.
Pés para o alto, balançando, o freio te deixando surda. O vento batendo em suas pernas e gelando suas veias; os gritos incessantes de desespero e, por outro lado, também de alegria.
Uma maldita montanha-russa.

O barulho dos tiros é alto, gritam direto no fundo dos ouvidos e cortam sua capacidade de se localizar ou mesmo se locomover. Sem a audição você não sabe o que está acontecendo, você não sabe o que é real.
As flores cor creme e brancas voam, pétalas por todo o ar. As cortinas se rasgam e os lustres caem ao chão, deixando de reluzir e refletir os prismas coloridos dos cristais.
Acho que desvio de algumas balas assim que me dou conta do que está acontecendo. Acho, pois ninguém seria capaz de realmente desviar de uma arma mortal, principalmente quando ela está mirada direto para a sua cara.
A Semyonova de alguma forma nos encontrou. De alguma forma? A verdade é que sei o que aconteceu, só é difícil de acreditar.
De um lado do salão, mais próximo a mim, vejo papa e Dimitri com suas armas em mãos, atirando em direção aos nossos inimigos. Quando era mais nova, achava incrível como os Homens poderiam ficar tão bem vistos e cheios de armas grudadas dentro da camisa, escondidas. Agora só parece bizarro e terrível saber que, no dia a dia, eles estão sempre preparados para a morte.
É muito fácil reconhecer os soldados do inimigo – todos têm faixas vermelhas presas nos braços, pulsos ou cabeça, a cor do seu sangue do seu lema. Além disso, todos têm tatuada uma estrela no pescoço. Não sei o que significa, mas não é nada sutil. Nenhum deles tem vergonha de fazer parte do seu grupo, independente do grupo ser formado por um monte de gente ruim. Os observadores é como Ivan sempre se referia aos soldados dos pais, sempre prontos para levar novas informações ao seu superior ou cumprir suas ordens. Mas eles claramente enlouqueceram; não tem explicação além de que é claro que Mikhail havia perdido a merda de sua cabeça. Invadir a festa de noivado do pakhan de uma das maiores famílias, onde ao menos 70% de seus soldados está concentrado, armados até os dentes, é no mínimo loucura.
Mas eles atiram, e nós revidamos. Sergei acerta os maiores tiros que mira, e quase me enche de orgulho ver que Dimitri faz questão de protegê-lo; mesmo que papa seja muito mais eficiente do que ele em combate, é uma questão de honra.
Não penso duas vezes em ajudar, ou tentar ajudar, até mesmo porque meus treinos nunca chegaram perto de uma situação tão real. O movimento destrói a estrutura original da Dolce & Gabanna prateada. Papa vai ficar louco comigo quando souber que estraguei um presente tão caro.
Confiro mais uma vez se está completamente carregada. Já tinha feito o mesmo em casa, por garantia, mas é sempre bom dar uma segunda conferida. Afinal, parece que vou precisar de todos os tiros agora.
Sergei nota que estou no meio do alvoroço, e o mais curioso é que seu olhar não parece preocupado. Ele confia em mim, tenho certeza disso agora. Papa sabe que treino com Nikita há anos, muito mais tempo do que Niko jamais esteve, e isso significa muito agora.
Nos encaramos com confiança por alguns segundos, o que me faz acordar para a real situação. Meu pai precisa de mim, minha família precisa de mim. A primogênita dos precisa ajudar, seja mulher ou não. Não é mais sobre um casamento arranjado ou sobre obrigações, é sobre quem pode meter a bala na testa de quem e salvar uma vida dos nossos. E eu posso.
Corro os olhos pelo salão em busca dos meus irmãos. Encontro Nikolav ao lado de Nikita e assim sei que está tudo bem. Nosso tutor o protegeria com unhas e dentes, com veia e coração. Com sua própria vida.
Busco novamente com o olhar até encontrar minha irmã e mama. Ela e Katya se agarram uma à outra em um canto mais escuro, parecem tentar se esconder atrás de uma cortina. As duas estão apavoradas e, sem dúvidas, precisam de ajuda, então corro em sua direção.
Desvio de todos os barulhos de tiro que consigo ouvir; há tanto barulho que não sei nem mesmo por onde desviar. Preciso me jogar por baixo das mesas e me arrastar para chegar até elas. O tecido leve do vestido é destroçado pelo atrito com o chão, mas preciso fazê-lo para que não me enxergue. Tenho que salvar aqueles que amo, e morta não serei de grande ajuda.
Assim que alcanço mama, noto que ela mal consegue respirar, e é incrível como seu olhar severo é o primeiro que me encontra assim que percebe o quão bagunçada pareço agora. Até neste momento, mama? Eu poderia rir, se não fosse tudo tão trágico. Ainda mais porque ela parece duplamente surpresa ao enxergar a pistola em minhas mãos e encarar o meu olhar sanguinário.
Por muito tempo pensei sobre o significado da frase “enxergar vermelho”; agora tenho a certeza de que é exatamente o que sinto. Meu peito sobe e desce em uma dança ritmada. Engulo ar e o peitoral sobe, forço o ar garganta acima e o peito desce, e o movimento continua passo a passo.
— Precisamos mover as mulheres e crianças para o lado de fora. Aqui dentro, apenas os que sabem manusear uma arma — digo de maneira apressada. Katya me olha, perplexa com minha atitude. — Não estamos com nossas tropas completas aqui, precisamos do máximo de ajuda possível para que todos saiam com vida — friso as últimas palavras, para que entendam a gravidade da situação. Não é uma brincadeira, um treinamento em que logo mais um sinal irá tocar e estaremos todos rindo sobre o desespero.
Sei que não seremos capazes de destruir todos os soldados da Semyonova por completo nesse exato momento, e o pior de tudo é que consigo ver que o esforço para que todos saiam ilesos teria que ser inumano. É praticamente impossível salvar a todos. E isso é uma merda.
De qualquer forma precisamos tentar, preciso tentar. Não poderia viver com a consciência tranquila e deitar minha cabeça no travesseiro à noite se souber que, por causa do meu acordo de casamento, muitos morreriam. Preciso tirar as mulheres e crianças daqui, agora.
Busco com meu olhar os pontos cegos dos inimigos ao nosso redor. Há um canto próximo à porta que leva aos fundos do barracão que parece estar descoberta e intacta, um lugar sem tiros. Com certeza é uma saída de segurança, e a placa verde indica a direção.
— Lá! — digo e aponto meu dedo para a placa. Seguro os ombros de mama e giro seu corpo, para que também enxergue a saída. — Terá que ficar atenta. Eu cubro a saída de vocês, mas precisam levar o máximo de pessoas que puderem, ok? — pergunto com firmeza, e, segundos depois, mama concorda com um aceno de cabeça, ainda atordoada. — Aquele e aquele lado — viro meu corpo para Katya e mostro em acenos lugares onde mulheres se juntam com algumas poucas crianças, já que nessas reuniões a presença de pequenos é bastante incomum. — Você vai ter que levar eles para fora daqui, Katya... — eu afirmo. Ela nega com a cabeça, os olhos arregalados de pavor. — Katya, me escute! — retruco exasperada e seguro seu rosto em minhas mãos, fazendo com que vire o olhar para o meu. Ela está em prantos, sua face chega a estar vermelha e a expressão de medo é desesperadora.
O ar é quase palpável, como se respirar pesasse toneladas agora. Apesar do cérebro trabalhar em sequências intermináveis de sinapses rápidas e precisas, nos dizendo o que fazer, como fazer, há muitos sentimentos envolvidos neste momento. Muito que fazer e poucos planos de fuga. Para ser sincera, não sei como sairemos dessa com vida.
— Nikolav, onde está Niko? — mama parece finalmente acordar de seu transe e reúne forças para me perguntar, enquanto as balas passam zunindo a poucos metros de nós. Seus olhos zonzeiam pelo salão, mas ela parece urgente em suas preces.
— Com Nikita, ele tem de lutar — argumento, mas ela movimenta a cabeça em negação. Lágrimas escorrem como um rio de sofrimento, destruindo sua maquiagem tão bonita.
— Ele é um menino. Não é um Homem Feito, ele não pode estar lá — diz, exasperada. Eu a encaro com tristeza, e seu corpo se retrai sob meus olhos. Também quero ver meu irmão salvo, o quero bem e saudável, correndo pelos nossos pátios nos próximos dias, mas agora precisamos de foco.
— Katya! — grito. Ela se assusta, mas parece entender o que quero dizer, pois para de se encolher contra a parede e olha dentro dos meus olhos. — Você tem que tirar quem puder agora. AGORA!
Finalmente ela me ouve e segura mama pelos cotovelos. Assim que se levanta, corre em tropeços para o lugar onde estão as pessoas que apontei; em seguida, solta mama em outra direção e junta todos que encontra pelo caminho, os carregando com ela para fora. Confiante de que fará exatamente o que pedi, volto minha atenção ao salão. É a vez de encontrar Niko e tirá-lo dali, e todos os outros que puder no caminho.
Ajusto o short da cinta modeladora que visto. Pensei que odiaria ter que colocar isso antes, apenas para parecer mais magra. Tiro os sapatos de salto que esmagam meus dedos e os jogo de lado, miro a arma para o meio do salão e respiro fundo. Deus me ajude!
Ziguezagueio pelo espaço e, ocasionalmente, alguém se aproxima. Empurro quem chega perto para baixo das mesas e aponto o mesmo caminho que mandei minha irmã. Contudo, tiros zunem para todos os lados, e as pessoas dispersam para outras direções. Não há muito que eu possa fazer.
Miro na direção do lugar onde papa estava antes; o espaço está vazio agora. Apenas Dimitri está ali, caído no chão com as mãos apertando a região do estômago. Meu senhor amado. Corro em sua direção com a velocidade que consigo forçar em minhas pernas, abro espaço entre as cadeiras e os arranjos de flores e fitas no chão – toda a bonita decoração destruída por completo. Mas, antes que possa alcançá-lo, um dos soldados inimigos para em minha frente.
Ele está armado e parece pronto para uma briga. Também parece perceber que carrego uma arma, e, ao notar o quão menor é a minha e o quão assustada estou, ele larga a .38 no chão e me chama com aceno, para uma luta corpo a corpo. Cretino!
Em meio à confusão mental, jogo minha arma no chão e me atiro em sua direção. Antes que ele se prepare para sua defesa, meu punho acerta o lado direito da sua face, que se vira para mim com sangue escorrendo do canto dos lábios. Ele tem sangue nos olhos, vai me matar.
— Vagabunda! — cospe em mim, quase acertando meu rosto.
Rosno de volta, o som é cruel e muito mais forte do que poderia imaginar. Ele não me chamou do que chamou, huh?
Movimento minha mão em sua direção na tentativa de lhe acertar outro soco, mas seu punho firme segura meu pulso e me faz girar pelo ar, rápido e com força. Minhas costas atingem o chão antes que possa encontrar meu equilíbrio. O desgraçado sobe em meu corpo, se apoiando em meu quadril. Suas mãos logo estão no meu pescoço, que ele aperta com tanto ódio que sinto meus olhos se esbugalharem. Estou sufocando aos poucos.
Controlo minha respiração, de acordo com os planos de treino que Nikita sempre deu a mim e a Nikolav todas as nossas manhãs. Antes de qualquer treino com armas, ele nos ensinava a controlar a mente e o corpo, além de, é claro, defesa pessoal. Ele sabia que os homens me subestimariam pelo tamanho, e fez disso minha arma secreta.
Concentro minha força em minhas mãos, mandando toda a energia aos membros. Prendo a respiração ainda mais. O cérebro quase enegrece com o movimento, mas é o suficiente para ter forças e levar as duas palmas na lateral do seu rosto – o golpe acerta suas têmporas.
O desgraçado, meio zonzo, solta rápido o seu aperto, e aproveito para rolar com ele no chão. É difícil derrubar seu corpo – ainda mais depois de ter tirado quase todas as minhas forças –, mas preciso disso para sobreviver, e minha mente parece entender o recado, por isso passa as informações exatas para o meu corpo. Prendo seus braços com meus joelhos e desfiro socos e mais socos em seu rosto. Miro em seu nariz e na região dos olhos, sei que isso o fará apagar eventualmente.
É claro que o filho da puta tenta se desvencilhar como pode; ele tem o dobro da minha força e tamanho, mas está tonto e perdido. Nikita me mostrara como paralisar uma pessoa com o peso do meu próprio corpo, ainda que não parecesse o suficiente. A verdade é que não era sobre o peso, mas sobre a precisão dos movimentos.
— Eu vou te matar, vadiazinha — ele engasga enquanto fala, e me pergunto como sabe quem sou. E ainda mais, por que é a mim que quer matar? Para atingir o meu pai? É tudo que posso imaginar, mas afasto o pensamento. Não há tempo para teorizar agora.
Cuspo em seu rosto em resposta e, em seguida, acerto um golpe com meu cotovelo em seu pescoço. É um movimento ágil e certeiro que o faz engasgar. Com o canto dos olhos espertos, vejo que tem uma faca em seu bolso. Bastardo! Pretendia me matar com uma merda de uma faca?
— Vocês, malditos fantoches do Mikhail... — escarro e cuspo no chão ao pronunciar seu nome. — Deviam aprender a calar a porra de suas bocas, vocês falam demais, e eu odeio quem fala demais... — afirmo e, com um sorriso cruel, enfio minha faca em seu pescoço. O sangue aos poucos escorre do ferimento, se juntando em uma pequena poça.
Caio deitada ao lado do corpo inerte. É a primeira pessoa que mato. Respiro fundo, respiro, respiro, engasgo com o oxigênio que invade meu peito em lufadas violentas. É quando o vômito vem com tudo. Preciso me virar de lado para acertar no chão o corpo do bandido em uma única jorrada. Eu matei uma pessoa! Um desgraçado, é claro, mas ainda assim, uma pessoa. E só então me lembro de Dimitri.
Dimitri. Puta merda! Dimitri!
Tento me levantar rápido, mas ainda estou tonta e fraca, reúno todas as forças que ainda tenho. De repente, estou esgotada. O rapaz ainda está caído, encostado na parede onde o vi pela última vez. Me levanto tão rapidamente quanto rolei de cima do brutamontes.
Papa ainda não voltou para encontrá-lo, o que me preocupa. Onde poderia estar? Boa parte dos soldados que estavam no salão ou dispersaram, ou estavam mortos, amontoados de corpos no salão que minutos antes tocava uma música feliz. Aparentemente, estou segura agora.
Corro aos tropeços até onde ele está; seu estômago está encharcado com o que parece ser apenas o seu sangue. De maneira delicada, o ajudo a tirar o paletó. Rasgo o forro do tecido caro e embolo o pano, que pressiono contra o ferimento.
— Você precisa segurar com força, eu vou buscar ajuda — digo em um sussurro baixo.
Dimitri engasga em uma resposta. Quero dizê-lo que não fale nada, não precisa dizer nada. Eu sei. A realidade é que não sei de merda nenhuma nesse momento. Minha cabeça gira mil voltas por segundo e não consigo raciocinar, mas sei que ele não deve falar. Dimitri volta a engasgar, mas antes que o cale, ele força seu braço no ar, seu dedo apontando para a porta às minhas costas.
Meu olhar segue o seu gesto.
Sufoco com o ar tóxico que parece invadir meus pulmões.
Ivan. Meu lindo e amado Ivan parado à porta com Ygor e Andrey ao seu lado.
Os três seguram metralhadoras e parecem prontos; eles matarão todos os que ainda sobreviveram ao ataque. Ouço um urro violento e vejo meu pai parado do outro lado do salão, segurando um fuzil em mãos, como se os esperasse junto com os seus soldados, seus compatriotas, seus Homens Feitos.
Me viro uma última vez para dizer a Dimitri que logo estarei de volta para ajudá-lo, com alguém que realmente possa fazer algo, mas seus olhos bonitos e cristalinos encaram o vazio. Apenas o seu fantasma preso em sua última visão me diz que ele se foi. E nem mesmo terei tempo para sofrer por ele agora.
O olhar de Ivan cruza o meu, e ele ergue seu queixo sem hesitar. Meu coração se divide em duas partes e sangra sem parar. Eu não poderia imaginar, nem sequer em meus piores dias, mesmo com todas as probabilidades, que veria Ivan armado até os dentes, pronto para acabar com a minha vida sem pestanejar.
O grito que sai de minha garganta é inesperado e gutural. Eu o odeio com todas as minhas forças vitais. Bastardo desgraçado! Maldita seja toda a Semyonova. Meus pés se firmam no chão e me levanto. Aos poucos me movimento e rapidamente me jogo contra um dos homens mortos ao chão. Arranco a AK47 caída ao lado do corpo e percebo que é Yuri Razov. Oh, Deus, ele acabou de ter um bebê! Como ficaria Catalina? Desgraçados, vermes malditos!
! — ouço alguém gritar e me distraio apenas por um segundo. Vejo a cabeça de Niko e seu corpo, agitado em desespero, ao mesmo tempo em que dois homens de terno o seguram pelos braços. Não sei dizer de que lado estão, e isso é o suficiente para me perder em meus pensamentos. Onde diabos está Nikita?
O tempo que levo para gritar por meu irmão é o suficiente para darem o primeiro tiro. Ouço a bala zunir ao errar, passando por pouco próximo à minha cabeça. A impressão é que errou o tiro de propósito – não há como escapar de uma bala que realmente foi atirada para matar.
Mas alguém grita dos fundos do salão, e tenho segundos apenas para enxergar Katya correndo na direção do nosso irmão. Um urso feroz prestes a proteger seu filhote. E o tiro lhe atinge a região do quadril. O tiro nunca havia sido para mim, mas sim para ela. Minha linda e delicada irmã, que desaba no chão com um baque surdo.
Grito ainda mais alto, devo ter destruído minhas cordas vocais tanto quanto meu coração está despedaçado agora. Giro meu corpo para os demônios e atiro, a esmo. Meus tiros acertam vários lugares nas paredes, pois vejo os rombos que fazem no concreto. Um deles acerta o meio do peito de Ygor, e o rapaz cai duro assim como minha irmã.
Ivan me encara com perplexidade. Me recordo de todas as vezes que treinamos tiros em lugares diferentes de Moscou, e desejo que nenhum desses dias tivesse acontecido. Não era para ser assim. Mas não posso mudar o passado, nunca poderei fugir dessa noite, e meu peito sangra com isso.
Mais tiros zunem pelo ar; tenho apenas tempo de me jogar embaixo de uma mesa e derrubá-la para que sirva de barricada entre os irmãos e eu. Ouço os estopins e sinto a mesa vibrar quando tiros acertam o móvel. Não sei como nenhum deles atravessou direto em minha cabeça.
— Parem com o showzinho, rapazes — ouço a voz apodrecida de Mikhail invadir o salão. — Só viemos aqui para...
Aproveito seu silêncio para erguer a cabeça o suficiente para enxergá-los. Apesar de estar jogando demais com a morte, me dou ao luxo de desfrutar do momento em que o Semyonova reconhece o corpo de um dos seus filhos caído duro como pedra, mortinho ao chão.
Mas não tenho tempo suficiente para me regozijar do momento, pois o pai urra como um leão montanhês, e mais uma vez a música dos tiros volta a tocar. Volto a me abaixar contra a mesa. Sinto-me inútil e desprezível, não consigo enxergar onde Katya caiu, muito menos onde Nikolav gritou meu nome. Não consigo fazer nada.
A raiva se acumula em meu peito, e nem mesmo todos os gritos do mundo liberariam a energia que carrego agora. Uma onda de adrenalina toma conta de todo meu corpo e corre por minha pele desde a cabeça até as pontas dos pés. Não tenho absolutamente mais nada a perder.
Em um giro único me levanto; meus pés disparam em direção ao meu pai. Há passos por todo meu redor, atrás de mim, atrás de Mikhail. Atiro a esmo em sua direção até alcançar o lugar onde papa está. Uma das minhas balas acerta a parede logo atrás de Ivan, e vejo quando ele arregala os olhos, apavorado. Agora sim o filho da puta está hesitando.
Atiro mais e mais vezes. O pente chega a acabar por um momento, mas um dos soldados aliados me atira um novo pente da munição. Encaixo na arma assim como aprendi, e meu indicador volta a tremer contra o gatilho devido à repetição dos movimentos. Assim que alcanço papa, ele para de atirar por apenas um segundo e vira seu rosto para o meu. Sorrindo.
Ele soluça uma vez e goles de sangue escorrem por seus lábios. Não!
Em seu peito há um rombo que destrói o tecido da camisa de seda azul-clara. O líquido escorre grosso e pegajoso, escurece o tecido onde encosta no formato de um grande círculo. Sergei cai primeiro de joelhos; o baque dos seus ossos contra o chão duro é doloroso. NÃO!
Eu caio junto ao seu lado. Não me interessa se é exatamente isso que Mikhail quer de mim, de minha família. Não agora, enquanto arranca de nós o nosso elo, nosso protetor. Quando criança, sempre imaginei que ele fosse invencível, que nada poderia derrotá-lo. Ele era como um super-herói ao contrário, eu o venerava.
Meus olhos ardem com as lágrimas que parecem jorrar de meus olhos, segurando meu pai em meus braços. Meu braço dói lancinante – noto que tomei um tiro, mas isso não importa. A verdade é que eu gostaria de morrer de uma vez por todas.
Sergei tenta abrir os lábios, mas apenas lufadas de oxigênio e sangue saem de sua boca. Ele estremece em meu colo e seu corpo todo parece vibrar e gelar, segundo após segundo.
Papa… Me escute, papa… — sussurro em desespero. Seu sangue encharca minhas mãos, pintando-as de um vermelho vivo. Um bolo se forma no fundo da minha garganta, não tenho sequer força para vomitar.
Papa ergue sua mão em uma última onda de força e acaricia meu rosto. Seus dedos estão pegajosos, mas beijo suas mãos da mesma forma. Quero que saiba que sinta o quanto o amo, sempre amei e sempre admirei. Seus olhos rolam para trás e ele se vai.
Mais um tiro em minha direção. Torço para que ele tenha acertado minha cabeça, fecho os olhos e aceito meu destino. Passos ao meu redor, mais e mais tiros. Eu não aguento mais o som dos tiros. Sinto uma nova onda de dor atingir meu braço, e agora também meu quadril. Sei que estou morrendo.
Mama… Katya... Niko... — suspiro seus nomes em uma oração e, então, tudo escurece.

Meus olhos ardem muito quando tento abri-los.
O silêncio intoxica todo o meu redor, me consumindo. Não há mais tiros.
... — ouço uma voz masculina, mas meu cérebro não reage o suficiente para que eu reconheça quem é. Espero que seja um dos nossos, espero que seja minha família.
Estou deitada em um banco macio; o motor do veículo ronrona fora das janelas escuras. Tudo que vejo são luzes rápidas: apagam, acendem, apagam, acendem.
Tudo escurece mais uma vez.

Meu braço arde como o inferno, como se tivesse enfiado um espeto fervendo. A pele emana um cheiro de carne podre assada. Por outro lado, um cheiro hospitalar invade minhas narinas.
Me levanto rápido demais. O peso do corpo me faz ficar tonta e me sinto pesada, mas antes que tombe para o lado, mãos me seguram e me ajudam a deitar novamente.
— Cuidado agora... — ouço a mesma voz de antes falar comigo, e suas mãos me embalam. A voz é doce como uma cantiga de mãe, antiga como nossos ancestrais, nossas tradições.
MAMA! NIKO! KATYA. Meu Deus, onde... PAPA!
Uma nova onda de desespero me faz forçar o corpo para me levantar, mas dessa vez consigo abrir os olhos e focar minha visão. Tudo ao meu redor gira, e um bolo se prende em minha garganta uma nova vez. Meu pai está morto! Eu segurei seu corpo morto em meus braços. Seu sangue lavou minhas mãos, invadiu seu pulmão e nos fez dividir um último suspiro!
Giro meu corpo rápido o suficiente para vomitar tudo que está em meu estômago. Acerto o chão, a cama e talvez os pés daquele que me acompanha. Suas mãos seguram meu cabelo enquanto coloco tudo para fora. Quando termino de destripar tudo, volto a me ajeitar na cama e as mãos me auxiliam.
Acalmo minha respiração, para dentro e para fora. Aos poucos meus olhos se ajustam à luz muito clara, e tenho a confirmação de que estou em um hospital, presa a um monte de máquinas e fios.
, beba um pouco... —a voz está aqui de novo, e agora tenho certeza a quem pertence.
Os cabelos loiros e sorriso gentil de Nikita me confortam, ou ao menos tentam. Seguro o copo de água com as mãos trêmulas, mas quase falho ao tentar levantar o braço. Volto a tomar consciência de que levei um tiro ali.
Admiro meu braço enfaixado, e então a dor logo abaixo da costela me atinge com todas as forças. Puxo o lenço que me cobre, e as pontas fortes e doloridas parecem correr por minhas veias. Todo o meu tronco na região da cintura está enfaixado, apenas algumas manchas vermelhas sujam o tecido.
— Aqui foi só de raspão... graças a Deus — Nikita diz com sua voz acolhedora. — Já no braço entrou, mas pegou só a carne e o músculo. A Dra. Rayov foi muito rápida e cuidadosa.
— O que diabos aconteceu? — pergunto, e Nikita endurece ao meu lado e ajeita sua postura. Noto que limpa sua garganta; ele tenta ser discreto, mas o conheço o suficiente para saber que está enrolando tanto quanto pode. A verdade é que sei exatamente o que aconteceu, talvez só esteja esperançosa de que me diga que nada foi real.
— Os Koslov e seu maldito exército Semyonova nos encontrou. Eles sabiam exatamente o que acontecia no momento, o tipo do evento, quem estaria lá. Ainda não descobrimos como eles nos encontr...
— Eu sei — o interrompo. – Ivan — afirmo sem dúvidas, e Nikita me encara, a curiosidade invade seus olhos. Eu respiro profundamente, o que só me faz sentir ainda mais dor. — Eu conheço o filho de Mikhail muito melhor do que imaginam — começo a lhe contar toda a história o mais rápido que posso.
É tudo muito vergonhoso para repetir com calma, como se fosse um conto de fadas. Até mesmo porque não é. Então lhe resumo, desde o momento em que conheci Ivan até quando começamos nosso relacionamento. Não pulo nosso último encontro no beco, quando o contei sobre o casamento arranjado.
Em meus desejos mais profundos, espero que esteja morto, ou de outra forma terei que matá-lo com minhas próprias mãos. Ele não passa de um maldito traidor, e por sua culpa meu pai está morto agora. Dor e mais dor continuam a esparramar por meu corpo através de ondas elétricas, que me fazem estremecer cada vez que penso no sofrimento da minha família, agora quebrada.
Quando termino de falar, Nikita está concentrado, mas não parece nada surpreso, o que me deixa preocupada. Me pergunto se ele já sabia disso, sempre me perguntei. Talvez eu não tenha escondido tudo como imaginava.
— Eu imaginava que algo assim aconteceria — ele diz, e é como se lesse meus pensamentos. — Mas o filho do Koslov... é demais, — ele afirma, inquisitivo. Seu olhar é tão duro que preciso abaixar o meu para o meu colo, tomada de pura culpa. Mesmo que isso não valha de nada agora.
Papa... Papa está... — tento falar, mas meus lábios tremem e não consigo terminar a frase.
É tudo minha culpa. Se eu não tivesse conhecido Ivan, se não quisesse irritar meu pai, quebrar as regras e ser uma idiota rebelde anarquista, nada disso teria acontecido.
— Eu sinto muito, — ele diz, ainda firme.
Meu corpo se contorce enquanto choro copiosamente. Eu é quem deveria ter morrido em seu lugar, eu deveria...
— Onde está mama, Katya, Niko? — pergunto, e Nikita encolhe os ombros em resposta.
... — ele começa a falar. Oh não... Não, não, não! Meu pulmão se aperta em meu peito e não sou mais capaz de respirar. Sugo o ar como se me afogasse, e o mundo parece girar. — Liz se foi — ele diz, com dor embargando sua voz. Liz, Elizabeth, mama, sua melhor amiga. A bile volta a subir pela garganta e sinto que vou explodir. — Katya e Nikolav... ninguém os viu. Eles os levaram, . Eles não estão vivos, não sobrou ninguém.
Eu vomito novamente.


FRANKLIN MORRIS


Um ano.
Um ano inteiro procurando um parceiro que pudesse preencher todas as características que são essenciais para a academia. Um ano de treinos pesados, gritos retumbantes influídos pela minha revolta com o presente, passado e futuro. Um ano de treinos, devo admitir, um tanto quanto cruéis.
E sequer um havia chegado perto do que eu buscava.
Para falar a verdade, já nem sei o que buscava. Não tenho certeza do que é essencial de verdade, crucial para a academia. O que é preciso para ser um policial senão força de vontade e coragem? Mas Jet tinha enfiado a ideia em sua cabeça, que eu precisava mesmo procurar um novo parceiro, que precisávamos de carne nova na equipe.
Por outro lado, eu tinha encontrado meu caminho. Me arrastado na lama e comido o pão que o diabo amassou para chegar no fim dele? Com certeza, mas prender Trey Sommers foi o meu ponto final, a fita da chegada, o pote de ouro no fim do arco-íris, a cereja do bolo ou qualquer merda do tipo. E eu tinha conseguido.
Talvez, no fim das contas, tenha sido muito mais broxante do que tinha planejado, longe do que eu gostaria de ter feito. Talvez durante todo o tempo em que persegui meu nêmesis, não me lembrei — nem mesmo me esforcei para lembrar — de que me alistei para algo muito além de um ponto final. Não havia potes de ouro no fim de arco-íris nenhum, isso aqui continua todo dia. Gente ruim está solta por aí o tempo todo, fazendo merda. Eu tinha me alistado pra isso, para garantir que a merda não fosse tão grande.
De uma coisa Jetson estava certo de verdade. E não me planejei para seguir em frente depois que pegássemos Trey. Não me preparei para nada, para continuar com o mesmo afinco e vontade e fazer o bem depois que terminasse o que havia começado, quando atingisse meu maior objetivo.
De qualquer forma, não tem mais jeito de voltar atrás agora, huh? Não costumo quebrar minhas promessas; cumprir com a minha palavra é o que me faz ser quem sou, um homem de verdade. E por isso aceito a coerência na proposta de Richards. Preciso de um novo parceiro. É como um projeto.
“Projeto Morris: Exterminador”. É, parece bom.
Rio comigo mesmo, sozinho e entretido em meus devaneios. Sou um absoluto idiota por me prestar a tantos tipos de coisa só para, supostamente, melhorar quem sou, dia após dia. E as pessoas notam, bem, o suficiente para um soldado pigarrear do ringue.
— Capitão... — ele diz com a voz entrecortada, mal consegue respirar. Gotas de suor escorrem pela testa, bochecha e pescoço e ensopam sua regata. — Me desculpe, senhor, mas estamos um pouco perdidos agora. Qual a próxima parte? — questiona, hesitante.
— A próxima parte, agente... — começo a falar, meus olhos vão direto para o rapaz caído no tatame. Ele deve ter sido atingido pelo mesmo detetive que me encara agora, e, por ter sido derrotado, deve pensar que está em seu direito de descansar um pouquinho, deitado no acolchoado, confortável.
Minha vontade de verdade é dizer a ele que os bandidos, contrabandistas, ladrões, estupradores e assassinos não se deixam para descansar depois de uma porrada — eles lutam até o último segundo, como os bons filhos da puta que são. Nem mesmo esses bastardos desistem. Quero gritar em seu ouvido que no FBI as coisas são diferentes, que se quer descansar, que volte para casa e namore seu sofá. Porém, apenas respiro fundo.
— A próxima parte é dar mais quinze voltas na quadra em... — olho meu relógio de pulso e faço as contas. — Seis minutos... — explano.
O oficial começa a protestar com um muxoxo, mas assim que seu olhar encontra o meu, ele desiste. Se eles estão cansados, imagine eu que, além de já ter passado por tudo isso, agora estou do outro lado da história.
Aos poucos, lentos e cheios de reclamação, eles se levantam e começam a caminhar, mas o desânimo é tanto que quase contagia. Se eu pudesse puxar uma cadeira agora, acho que até tiraria um cochilo. É irritante pra cacete. Eu sabia que lidaria com grupos assim também, mas parece que cada vez menos temos agentes dispostos. Fecho meu punho e soco a mesa de metal ao meu lado, o barulho é estridente e ecoa por todo o ginásio.
— Lebres, eu preciso de lebres, e não umas porras de tartarugas como vocês... Corram! CORRAM, PORRA! — berro alto e em bom som, quase sinto as cordas vocais rasgarem. Assim eles entendem, e é o que mais odeio: que tenha que chegar nesse limite para que façam uma coisa tão simples como correr. — Isso, caramba! Provem que podem se tornar o vento quando precisarem defender sua bandeira. Que podem ser fogo e água, que podem mover a terra... Sejam todos os elementos, estejam vivos, pelo amor de Deus! Não provem para mim, provem para si mesmos... Vocês são melhores do que imaginam, mais fortes do que imaginam...
— Esse foi o discurso mais idiota que ouvi vindo de você, Morris — Edgar Willians diz, parado ao meu lado com os braços cruzados na altura do peito. Quase me assusto com sua presença repentina, mas a maioria dos agentes da minha equipe são assim, silenciosos.
Edgar entrou para a academia no mesmo ano que eu e Jetson. Claro que foi direto para o grupo dos bem ajustados. Desabilitados e perdedores era liderado, óbvio, por mim, e Jetson poderia ficar no grupo dos salvadores da pátria ou qualquer coisa do tipo. Contudo, depois de confundir um civil com um fabricante de metanfetamina durante uma patrulha e acertá-lo com um tiro na perna — o que nos rendeu alguns processos —, ele preferiu deixar sua luz apagar aos poucos.
— Eu só não sei que caralho fazer pra motivar esses caras... — digo, meus ombros sobem e descem. Frustrado, essa é a palavra certa. — Já tentei de tudo. Bom policial, mau policial, nada faz eles mexerem a bunda de verdade.
— Talvez, se não fosse um grande canalha, eles fizessem questão de se esforçar um pouco mais — Jetson surge do nada, só pra encher a porra da minha paciência.
— Se você não tivesse enfiado essa merda na minha cabeça, talvez eu não tivesse que me esforçar tanto pra isso... — rebato, mas meu tom de voz não é brincalhão, o que faz Eddy torcer o nariz. Ele pigarreia enquanto encara os homens correndo como se fosse pela própria vida agora.
— Você já foi a merda de um soldado que mancava, um que ninguém queria ser o parceiro por não estar apto para tudo, caso não se lembre... — Capitão Richards me fuzila com o olhar, e meu cérebro parece se afogar dentro do crânio em um suco de ódio e desprezo. Esse mesmo cérebro não me impede de caminhar até para a poucos centímetros de seu rosto. Ao nosso lado, Eddy parece a postos para apartar uma possível briga.
— E você me aceitou como seu parceiro por tempo o suficiente para se lembrar que também impedi de tomar muita bala bem aqui... — encosto meu dedo em sua têmpora, pressiono o mesmo local onde eu mesmo já fui atingido. Ele afasta minha mão com apenas um toque. — Você ajudou a criar isso aqui... — aponto agora para meu próprio peito. — Você me fez ser um cretino depois de me convencer a não enfiar uma porra de uma bala na cabeça daquele assassino de merda — explodo. Minha voz deve ter saído muito mais alta do que planejei, pois os oficiais param de correr agora para nos encarar enquanto discutimos. Meu rosto está tão prestes do de Jetson agora que nossos narizes quase se encostam, e nem ele nem eu hesitamos. A raiva de Jet é palpável.
— Isso tudo é por causa do Sommers? — ele pergunta, um riso parece brincar em seus lábios, provocativo. Ele sabe o quanto me irrita falar sobre Trey ou o que aconteceu com George. Jetson sabe exatamente quais são os limites e os calos certos a pisar quando quer me fazer sair do controle. — Sinto te informar, soldado, mas nem tudo é sobre sua pequena doce vingança... — bufo alto, quase rindo em resposta.
— Você me arrasta pra um lugar que não, me faz caminhar por um caminho que desconheço, se diz meu amigo e parceiro, diz que quer o mesmo e o melhor por nossa amizade e, então, me empurra pra escanteio pra ser a porra do herói... Ó, Jetson Richards, que se apiedou da porra do deficiente! — empurro seu ombro com meu punho. — E agora vem me dizer que eu preciso de um parceiro porque não sabe quem poderia realmente fazer alguma coisa por esses caras... — aponto com o dedão sobre o ombro, para os policiais que ainda devem nos encarar. — Pois veja só, é a porra do soldado desajustado... e ele não precisa de você pra merda nenhuma agora...
Cala a boca, Franklin — ele vocifera, e seu punho atinge meu ombro em um soco que me faz dar dois passos para trás. — Eu não suporto essa sua atitude de merda — dou de ombros e preciso me segurar para não rir. Jetson me encara com perplexidade e aponta um dedo em minha cara. — Pra porra do ringue, agora!
Não penso duas vezes antes de segui-lo. Conheço Jetson por tempo demais para saber que é somente assim que iremos resolver nossos problemas agora: no soco. Arranco minhas botas, meia e camisa, não preciso dessas roupas agora. A calça de combate é o suficiente para mostrar a esse idiota que ele está fodido comigo agora.
Eu só quero fazer Jetson sangrar um pouco.
Sequer me incomodo em calçar as luvas e vejo que Jet também não o faz. Então é isso, vamos sair na mão mesmo. Quase gargalho com toda a situação — é tão infantil e idiota quanto parece excitante. Só quero acabar com isso de uma vez.
Entro no ringue, agora vazio, com um pulo entre as cordas de proteção. Soco o chão algumas vezes, e a sensação de estar finalmente em casa me encontra. Esfrego as palmas das mãos na calça para me livrar do suor e encaro Jetson do outro lado.
Não é meu amigo que está na minha frente — não posso pensar dessa forma, muito menos devo vê-lo como o capitão e que estou abaixo dele na hierarquia da academia. Não quero saber se no fim do dia ele ainda será meu superior, principalmente se estarei fora daqui. Só quero arrancar esse sorriso de dentes retos da porra da sua boca.
Jet se posiciona e equilibra seu peso em sua perna esquerda. O primeiro pensamento que vem à minha cabeça é a lembrança da noite em que Richards me convenceu com toda sua ladainha a não desistir, no telhado da casa da sua mãe, com uma Corona quase quente nas mãos e ouvindo Paint it Black dos Rolling Stones mais uma vez.

“I see people turn their heads and quickly look away. Like a newborn baby, it just happens everyday.”
(Eu vejo as pessoas virarem a cabeça para olhar para longe. Como um recém-nascido, acontece todos os dias).


Desfiro o primeiro golpe na direção do seu rosto, mas ele é habilidoso e desvia sem problemas. Ouço os oficiais idiotas ao redor do ringue soltarem um “uuuh” de surpresa, ou alívio, não que me importe com o que pensam agora.
Convencido, Jet abre o grande sorriso mais uma vez. Arrogante de merda. Ele está cantando a vitória antes de alcançá-la, como sempre faz. Não consigo evitar de sorrir também, menos irritado do que minutos antes.
É sua vez de erguer o punho em minha direção; me movimento por baixo do seu braço e desvio do soco bem desferido. Empurro seu corpo contra as cordas de proteção e ele tropeça, mas logo se segura. Jetson está praticamente gargalhando quando se vira para mim.

“I look inside myself and see my heart is black. I see my red door and must have it painted black.”
(Olho para dentro de mim mim mesmo e vejo que meu coração é preto, vejo minha porta vermelha e eu devo pintá-la de preto).


Ele, mais uma vez, se atira em minha direção, sem parecer pensar bem no seu ataque. Faz sua jogada de pernas, que sempre costumou fazer para treinar meus movimentos quando reclamava de dor nas naquelas logo após a fisioterapia.
Desvio de novo, estava preparado para seu ataque. Tento acertar um soco em suas costas, mas Jetson segura meu braço e me empurra contra as cordas também. Ele desfere um soco contra minha coluna, mas me movimento a tempo suficiente para que acerte apenas o meu ombro. Dói, mas não para me fazer reclamar.
Jet dá uma rastejada de sua perna contra a minha. O filho da puta atinge minha perna mais fraca e eu caio no chão. Em menos de um segundo ele está em cima de mim, seu cotovelo segura meu rosto.
— Você nem mesmo manca mais... seus movimentos são perfeitos... — ele diz, mas parece mal conseguir respirar, já que suas palavras são pausadas. Precisa de força para me segurar contra o chão. — Admita que sou melhor que você... — pede, como uma criança. Agora sim dou risada, mesmo ao me bater contra Jetson. Ao perceber minha risada, ele se distrai, e a fúria toma conta dos seus olhos escuros. É o suficiente.

“Maybe then I’ll fade away, and not have to face the facts. It’s not easy facin’ up when your whole world is black.”
(Talvez então quando eu desaparecer e não tiver que encarar os fatos. Não é fácil encará-los, quando o mundo todo é preto).


Aproveito a brecha perfeita que ele me dá. Jetson tem esse defeito péssimo de se deixar levar quando riem de sua cara, quando não lhe enxergam com os olhos da perfeição. É difícil fazer com que admita, mas o que ele gosta mesmo é de atenção. Eu também sei como pisar em seus calos.
Concentro toda minha força em meu braço direito e deixo que relaxe. Acerto minha testa na de Jet, em uma cabeçada que me deixa tonto por alguns segundos. Ele cai para o lado e rola com dificuldade, ainda mais tonto do que eu. Fico em pé o mais rápido que posso, mas meus movimentos são um tanto lentos; pontos pretos ainda voam em frente aos meus olhos.
Sinto meu lábio inferior sangrar e engulo o gosto metálico como um troféu. Richards tem o supercílio sangrando também, o suficiente para me deixar satisfeito. Ele parece bem mais derrotado do que eu, sem sombra de dúvidas. Dou meu sorriso mais cretino, quero que ele saiba exatamente o que estou pensando e que isso o deixe ainda mais irritado, se possível. Ele sabe que eu ganhei.

“I see a red door and I want it painted black, no colors anymore I want them to turn black.”
(Eu vejo uma porta vermelha e quero pintá-la de preto. Sem mais cores, eu quero que todas se transformem em preto).


Sei que Jetson está furioso. Seus olhos me dizem que ele tem os mesmos instintos primitivos de um animal agora, inconscientes de suas reações. Ele está pronto para arrebentar a minha cara até não sobrar nenhum lugar intacto. Ele dá passos em minha direção sem hesitar, para me derrubar.
O que ele não parece se lembrar é que nunca conseguiu me derrubar em um ringue antes. Me encher de porrada? Com certeza. Mas nunca me colocou no chão, me apagou, nada do tipo. Essa não será a primeira vez, disso eu tenho certeza.
Ele ergue seu punho na altura do meu nariz e vem direto com intenção de quebrá-lo, provavelmente imagina que eu ainda esteja zonzo com a cabeçada. Contudo, antes que seu punho alcance meu rosto, eu seguro seu pulso, meus dedos se encaixam ao redor de sua mão e torço o punho para o lado.
Assim que nota que irei girar seu braço com meu movimento, Jet também dá uma volta com seu corpo, na tentativa de se desvencilhar. Noto sua movimentação e consigo pensar rápido. Dou-lhe uma rasteira nas canelas, que o derruba da mesma forma como fez comigo. A diferença é que não dou chance para Richards revidar — apoio meu joelho em suas costas e agarro o seu punho, que prendo contra sua coluna de maneira que ele não consiga se movimentar para nenhum lado.
— Realmente, Cap., eu não tenho mais nenhuma dificuldade... — afirmo contra suas costas, e, para minha surpresa, Jetson não xinga como eu esperava, mas sim solta uma gargalhada alta e abafada contra o tatame. Não consigo me controlar e rio junto, soltando a pressão contra seu pulso.
De repente, está tudo certo de novo.
Sempre foi assim com o Jetson, desde o momento em que neguei sua ajuda pela primeira vez, e bem, todas as outras vezes também. É bem provável que não tivéssemos nos tornado amigos de verdade se não tivéssemos aprendido, no dia a dia, que a verdadeira amizade não era apenas sobre suportar o outro em todos os momentos, mas saber exatamente quando é preciso dar uma dura, ou até mesmo um soco bem dado.
— Capitão Richards! Capitão Morris! — ouço a voz do General Nixon ribombar de fora do ringue, como um forte trovão. É o suficiente para fazer que eu saia de cima das costas de Jetson.
Ele rola no tatame, sua expressão balança entre um misto de graça e humilhação. Ele não sabe o que dizer, fomos pegos no flagra. É então que noto pela primeira vez quantos homens estão ao nosso redor agora. Gostaria de fazer uma reverência, mas isso pode me ferrar mais ainda, de forma que apenas me levanto e bato continência ao meu superior.
— O que estavam fazendo, exatamente? Pareciam um casal em meio a uma briga... — nos questiona. Não sei dizer se está sendo engraçado ou apenas curioso, pois mira o corte sangrento no rosto de Jetson. Tanto eu quanto ele não sabemos o que dizer. Richards gosta de atenção, mas de uma maneira bem diferente dessa que recebe agora.
— Ensinando, senhor — respondo por nós dois, sem pensar de verdade no melhor a dizer. — Como o senhor está a par, estamos em busca de um novo oficial em potencial para assumir uma posição de maior responsabilidade, senhor. Para isso, consideramos que seria interessante que recebessem uma lição de combate corpo a corpo, sem equipamentos de proteção... — digo enquanto encaro os nós dos dedos esfolados. Apesar de duvidoso e de negar com a cabeça, Nixon parece comprar minha ideia.
— Dois idiotas, eficientes... mas idiotas — ele diz. Para falar a verdade, estava no aguardo de um grande esporro, mas posso jurar que vejo um quase sorriso dançando em seus lábios. A verdade é que Nixon nos conhece muito bem, e ele poderia acabar conosco agora. Mas no final não faria diferença, sempre continuaríamos os mesmos. — Oficiais, dispersem... menos você — ele diz e aponta para um dos rapazes que está cochichando e rindo baixo com outros. — Você limpa o tatame. Jetson, quero falar contigo sobre um novo grupo que iremos receber. Vista-se e passe um antisséptico nesse olho, parece carne moída. Encontre Zayev e venha para minha sala — explana, e Jetson dá um aceno de cabeça e sai em passos rápidos. — Morris, você encontre Johnson e reúna com ele o grupo para abrir mais vez investigação contra aquele suposto professor de matemática que aparentemente tem problemas com o governo, acho que encontramos sua caixa nas Bahamas — finaliza e sai, e isso é tudo por hoje.

Estou exausto.
Não é apenas dor física depois das trocas violentas com Jetson, mas minha cabeça também está desgastada de tanto pensar, decidir. Não é como se tivesse tempo real para descanso por aqui.
Movimentei Gregory Johnson e um pequeno grupo de outros policiais para que levantassem mais dados sobre o professor corrupto. Pelo que consegui sacar de cara, no caso, a polícia busca o bandido há uns bons anos. Sempre muda de perfil e identidade, desvia e lava dinheiro dentro das universidades que consegue enganar com seu currículo falso.
Ao que tudo indica, alguém o denunciou depois de encontrá-lo de férias nas Bahamas; alguma outra mulher também professora que o reconheceu. Há alguns paraísos fiscais por aí, onde esses bandidos dobram seus dólares e os fazem perdurar. Ele só não devia ter pensado que nosso time seria tão idiota assim para nunca descobrir seus esquemas.
Direcionei Johnson para reunir o que faltava, finalizar os processos e voltar com Nixon, e assim teríamos novas diretrizes para prosseguir da melhor maneira. Designaria os melhores para, se necessário, se deslocarem às Bahamas e trabalharem com a polícia local.
— Você arrebentou a cara do Jetson hoje — Johnson diz assim que fechamos a porta da sala de reuniões agora vazia, e seguimos em direção à minha sala meio vazia. Tudo que consigo pensar é em me desfazer dos pertences desnecessários e, se Deus quiser, ir para casa em paz.
— Não foi bem assim... — começo a me explicar, mas Johnson ri baixo antes que eu diga qualquer coisa, o que me faz virar o rosto para encará-lo. Seu rosto não diz nada, mas ele dá de ombros.
— Eu só não sei por que ele insiste em achar que pode te derrubar. Dentro do tatame... — ele diz, seu dedo polegar apontado sobre o ombro, que me faz pensar logo no ringue. — Lá você é uma besta, ninguém chega perto... — explica. Greg dá um tapinha em meu ombro e o perco rápido de vista, não prestando atenção de verdade para onde foi.
Estou sozinho, quase no escuro, apenas o abajur de mesa ligado. Gosto desse lugar, desse jeito. É aconchegante, e sinto que, por ao menos um minuto, posso respirar em paz de verdade. Mas antes que eu comemore minha solidão, alguém bate. Nunca tenho paz por muito tempo, ou tempo suficiente.
— Vai me arrebentar o outro olho se eu entrar agora? — Jetson pergunta em voz baixa enquanto olha para dentro do escritório por uma pequena fresta na porta.
— Não, idiota, é claro que não — respondo com a voz baixa, entre risadas.
Ele abre a porta por completo, entra e a fecha em suas costas. Seu olho está bastante inchado e já roxo, mas se conheço bem seus bons hábitos, logo estará 100%. É provável que melhore mais rápido do que eu. E é simples assim, tudo está perdoado, toda ofensa proferida ou soco desferido.
— Parece que você levou um chupão no lábio — diz, o dedo apontado para meu lábio inferior. Ele ri baixo e logo reclama de dor.
— Acho melhor não sair espalhando essa história por aí. Nixon já acha que somos um casal — digo, e é minha vez de rir alto, em gargalhadas. Jetson faz o mesmo.
— Falando em Nixon, eu tive uma ideia — Jet começa a falar, mas escolho meus ombros. Será que aguento mais uma ideia maluca de Jetson Richards? Ele dá um tapa na mesma e me encara, perplexo. — Frank! Pare de ser um bundão e me deixe falar... — gargalho alto, mas assim que me acalmo, meneio a cabeça para que continue a falar. Jetson rola os olhos, mas prossegue: — Ouviu Nixon me chamar com Yond para uma reunião sobre um novo grupo, certo?
— Sim, o soldado russo. Ele estava lá também, não se lembra? — pergunto, na tentativa de relembrar Jetson que Yond Zayev também participou da ação que prendeu Sommers e McCarter.
— Exato, queria garantir... Seu cérebro é meio pequeno demais — ele dá de ombros e ri, apenas reviro os olhos. — De qualquer forma, Zayev está montando um grupinho para Nixon, um para ligar McCarter com a máfia russa... — ele diz, e agora sim me chama a atenção. — Aparentemente, os russos estão movimentando cartéis de droga, aliciando garotas americanas... Bem, não é nada bonito — explica, e concordo com um aceno.
— E no que isso me inclui? — questiono, e me arrependo no segundo seguinte apenas com o olhar que Jetson lança em minha direção.
— Ok, eu preciso ter bolas agora para admitir que você é um animal no ringue... — dou de ombros e meus olhos vão direto para a mesa, constrangido. — Porra, falo sério, Frank. Achei que fosse arrancar meu braço por pouca coisa.
— Pouca coisa? — lanço um olhar de advertência, mas ele apenas ri em resposta.
— Frankie, não é o que quero falar agora — concordo mais uma vez. O que mais quero é que Jetson desembuche sua ideia mirabolante de uma vez por todas para que eu possa ir para casa. — Ok, o que eu quero dizer é que... se tem alguém que aguentaria suas porradas numa boa são os russos. Huh, o que me diz? — ele nem mesmo me dá tempo para pensar direito.
— Não sei se estou te acompanhando de verdade, Jet. Que diferença fará ser russo ou americano? — indago. E de verdade, não consigo ver diferença em treinar qualquer uma das duas opções. Será difícil chegar lá de qualquer forma. Não paro de repetir, mas até então apenas tenho visto um bando de bananas.
Jet ainda sustenta um sorriso maníaco nos lábios, por isso não digo mais nada e apenas aguardo que tente me convencer do seu plano estúpido, porque é isso que ele sempre faz.
— Cara, você vai ver... Depois do que Yond contou para mim e para o General. Só espere e verá — ele diz, por fim, com um aceno de cabeça e nem me deixa questioná-lo novamente. Antes que considere qualquer coisa, já me deixou sozinho em meu escuro.
O preto que eu mesmo pintei.


NATASHA IVANSKI


Um ano.
Para muitos pode não significar nada, passa rápido como num relógio gira o ponteiro dos segundos. Pode ser leve como uma pena. Nada custa.
Um ano.
Para mim, cada um dos últimos 365 dias levou um ano por si só. Dias mistos de dor, raiva e confusão mental. Dias de pesadelos, mais pesadelos à noite.
Nunca foi difícil dormir como tem sido agora, assim como nunca parei para pensar no significado de muitas coisas até agora. Confiança, herança, honra, dignidade, família. E tudo que eu mais precisava agora, ainda que para muitos não signifique muita coisa, eu já não tinha mais.
Tempo.
Tudo que precisava era de tempo, dias a mais, segundos a mais. Poder voltar no tempo só por um instante. Na noite em que tudo parecia leve como uma pena, que nada custasse, rápido como o ponteiro dos segundos em um relógio de parede, e que tão rápido assim, destruiu toda a minha vida, para sempre.
Perdi toda a minha família naquela noite. Para quê? Por quem? Por alguém que destruiu não apenas meu coração, mas que quebrou tudo o que um dia fui ou sonhei ser. Tudo agora me faz lembrar de papa sangrando em meus braços, seus olhos pouco a pouco se transformando em fantasmas. Tudo me faz recordar do corpo de Katya desabando contra o chão frio ao tomar um tiro de fuzil.
Presenciar Nikolav preso e arrastado por pessoas que eu não soube quem eram na hora, e saberia muito menos agora; o que fariam com ele ao saírem dali, como o destruiriam aos poucos, cheio de sofrimento. Ou mama, de quem nem sequer pude me despedi. Não tive um segundo a mais para dizer que a amava, apesar de todas as palavras afiadas que havíamos trocado até ali. Ela foi enforcada, ou foi isso que Nikita me contou. Sufocada em meus próprios erros.
Não pude enterrá-los, não pude dizer adeus. Não era seguro, o instrutor me disse. Ao menos eu o tinha ao meu lado agora. Ao menos isso.
E ainda que não tivesse forças, prometi que seguiria suas instruções. Eu devia tudo a Nikita agora, não apenas respeito como também minha vida. Ele me tirou do meio do tiroteio em seus braços, enquanto eu sangrava ao lado do meu pai já morto. Ninguém parou para checar se eu ainda estava viva, eu nem mesmo valia a pena para o inimigo. Eu não era ninguém.
Goncharov me carregou até um carro, dirigiu com cautela para não ser seguido até o hospital da família, manteve a discrição juntamente à equipe e alguns soldados que sobreviveram para que ninguém soubesse que eu sobrevivi. Nikita me declarou como morta, tanto a mim quanto a todos de minha família.
Dos não sobrou ninguém. Não éramos mais nada sobre a terra, como também não éramos nada sob ela.

Encaro a vidraçaria da loja. A janela reflete a luz clara da rua, mas a propaganda é bastante específica. Uma família se junta à mesa enquanto toma café da manhã, feliz e unida, como sempre deve ser. Parece algo tão absurdo, intocável, e dói, dói demais.
Seguro meu estômago de modo involuntário, próximo à região onde um tiro me atingiu. E se não fosse por papa caído no chão, sua bênção protetora poderia ter me tirado a vida também. Se a Semyonova não estivesse tão preocupada em acabar com a vida de Sergei, eu teria sido o alvo, mas eles nem perceberam que eu estava ali. Ao menos, não o suficiente para terminarem o serviço.
Encaro a televisão através da vitrine por mais um segundo, mas o que chama minha atenção, de repente, é a minha própria aparência. Sei o quão diferente pareço agora – os cabelos muito mais longos, as mechas prateadas que mantinha já não aparecem mais, apenas o loiro natural que ondulam ombro abaixo.
Meus olhos estão cansados, o que não me admira, já que bolsas roxas marcam a pele, escuras e inchadas. E a expressão dessa pessoa que encara o espelho é dura como metal; os lábios rachados não poderiam sorrir de volta, nem que eu quisesse. Não há uma boa razão para estar ali.
Fui obrigada a mudar de identidade, é claro, faz todo sentido. Ser um nesse momento pode ser muito perigoso. De um dia para o outro, meu nome não é mais , mas sim Natasha Ivanski. Tivemos que ser discretos também com relação à alteração dos documentos, os papéis precisavam ser convincentes. Não poderíamos cometer o erro de deixar a Semyonova saber que ainda estou viva.
É claro que a primeira ideia que veio em minha cabeça, assim que levantei da cama do hospital, foi pegar qualquer uma das armas da sala do papa e atirar bem no meio da testa de todos os Koslov que cruzassem meu caminho. Eu queria destruir a porra da Semyonova inteira. Que se explodam as tradições! Que se exploda a hierarquia da Bratva. Se eu não me importava com isso antes, agora ligo menos ainda. Tudo que quero agora é poder tomar conta da Vory v Zakone, ou o que restou dela, custe o que custar. Quero continuar o legado de papa, fazer o que Nikolav não teve sequer a oportunidade de começar. Ele tinha tantas ideias, queria mudar tanta coisa. Indiferente às partes ruins, tudo que sempre abominei. Eu não abandonaria minha família, não agora. Essa é minha única promessa.
Meus olhos se prendem ao olhar que me confronta no vidro.
É como ver uma criatura sem rosto, ainda que tudo esteja ali no devido lugar.
É oco, vazio.
É escuro.

É quase como se Moscou tivesse perdido seu verdadeiro brilho.
Sempre acreditei que realizaria todos os meus sonhos aqui. Tudo que sempre desejei estava entre os prédios dessa cidade, cuja glória parece ter desaparecido.
Nikita encontrou um lugar para que pudéssemos nos esconder, na zona neutra, é claro. Um lugar em que pudéssemos ser invisíveis enquanto reunimos informações sobre a Semyonova e as peças quebradas que restaram da Vory v Zakone. Ele decidiu ainda não aparecer em público, nem mesmo para os nossos homens, porque não há como ter certeza do quão equipados ainda estamos.
A parte orgulhosa que ainda resta em mim infla em meu peito, em saber que boa parte dos homens ainda não desertou, mesmo com a morte da família. Eles sabem que Nikita está vivo, ainda que tenha resignado de seu cargo uma vez que não é seguro permanecer ao lado da Semyonova como um possível traidor. Eles jamais acreditariam nele. Ele ainda era o único homem decente para assumir a posição de Sergei, então não poderia correr o risco de se unir ao inimigo.
Por direito, algum outro homem que tivesse ligação distante com os deveria se tornar o novo pakhan, cobrindo a região que papa tinha, conforme diziam os acordos assinados tanto tempo atrás. É claro que os Koslov devem estar se organizando agora, para que assim que for coerente, optar por um soldado que assuma a responsabilidade sobre a nova família da Bratva.
Ao menos a Semyonova ainda não conseguiu tomar conta da nossa região, não apenas porque não são loucos de ir contra as regras, mas também porque nosso número continua maior e bem posicionado. Sergei tinha mais cartas na manga do Mikhail esperava, e além disso, acumulados muito mais aliados do que inimigos ao longo dos anos. Mikhail criou relacionamentos de ódio com diversas famílias importantes para a sobrevivência dos negócios; papa sempre fez o contrário.
A Vory v Zakone continua a ter o apoio de Moscou, como também São Petersburgo, Novosibirsk, Omsk, Ufa e Volgogrado. Os números de Mikhail não chegam nem mesmo à metade de nossas parcerias. Quanto a isso, sei que ainda posso respirar fundo e confiar, pelo menos não tomarão nossa casa. Apenas a ideia de que se apossem das nossas informações mais confidenciais me faz ter vontade de morrer.
Paciência é a palavra do século ao que tudo aparenta.
O mais incrível é que nossos soldados ainda nos respeitam, nossa memória. Nikita usa seus olheiros todos os dias, que levam e trazem informações que podem vir a ser úteis. Muitos ainda insistem que ele deve se posicionar no lugar de meu pai, mas tenho certeza que Goncharov tem um plano maior por trás de tudo. É por isso que tenho suportado essa vida, dessa forma. Porque vejo todos os dias que a família não desistiu, que mesmo quando nenhum de nós ainda está aqui para liderar, ainda temos um plano a seguir.
Mesmo que não façam ideia de que ainda estou viva. Apesar dos meus protestos constantes, Nikita insiste que é importante manter a invisibilidade agora. No fundo, acho que talvez ele ainda duvide da minha capacidade de ignorar que Ivan ainda respire, e que eu não resista à raiva acumulada em tudo que ainda sou.
Ivan sobreviveu apesar de todas as preces cruéis que repito todas as noites, com os joelhos dobrados ao chão. Não é nada mais do que justo que queime no fogo do inferno, que viva seus piores dias para todo o sempre se for possível.
Mas o desgraçado sobreviveu. Não por mérito próprio, é claro. Assim que viu que fui atingida, que meu pai já não se mexia, e que uma legião de soldados da minha família se aproximava, fugiu com o rabo entre as pernas. Ivan não passa de uma galinha cagona.
Ygor eu consegui acertar. Segundo os olheiros de Nikita, o tiro que lhe acertei atravessou o peito, e ele morreu afogado no próprio sangue. Bom, isso é bom. Nem mesmo me lembro da potência da arma que tinha em mãos, mas, quando fecho os olhos, consigo ouvir seus joelhos se chocando contra o chão e a vida explodindo para fora dos olhos enquanto morria. O sabor é amargo, mas prazeroso.
Andrey, o irmão gêmeo, e Mikhail também sobreviveram, é claro. Andrey sempre foi muito mais ágil que o irmão e, com o poder bélico em mãos, pode proteger o pai por tempo suficiente para que escapassem no último instante.
Minhas mãos se contorcem. Não consigo controlar o ódio que sinto ao imaginar o sorriso vitorioso de Mikhail Koslov ao ver papa sangrando como um porco recém-abatido. Mas evito pensar em tudo isso, evito reviver qualquer momento desse dia. De outra maneira, estaria de joelhos vomitando minhas tripas, como quase todas as noites.

Antes do desastre acontecer, a zona neutra costumava ser a minha fortaleza, e eu apostaria qualquer ficha sobre a segurança do lugar. Acho que nunca notei de verdade como minha família mantinha as coisas funcionando com perfeição. Agora, passado todo esse tempo desde suas mortes, vejo como o lugar é retorcido, cinza e sem graça. Posso sentir o verdadeiro cheiro das ruas, noto a falta de vida que circunda o local.
Eu costumava acreditar que conhecia esse lugar como a palma da minha mão, mas, durante esse último ano vivido aqui, posso comprovar que tudo que eu vivi não passou de uma ilusão cruel. Julgava Katya todo o tempo por ser uma romântica incorrigível, por acreditar em contos de fadas, que seu príncipe chegaria em um cavalo branco. Prometi que nunca seria como ela, que nunca me deixaria levar ou enganar, e olha onde estou agora. É humilhante.
O lugar que Nikita conseguiu para nós, com a ajuda dos homens mais confiáveis que ainda restavam, é, aparentemente, seguro para que montássemos nossa base. Apesar de abandonado, o prédio é bem aconchegante. A região é silenciosa – bem, na realidade, é morta. Não há uma alma viva que se arriscaria a invadir esse prédio, não com escadas pela metade, falta de energia elétrica ou rangidos durante a noite. Tudo que pode ser assustador para eles, é seguro para nós.
Goncharov organiza as informações diárias que chegam e me atualiza com tudo que pode. Ao menos é o que ele me diz, que não me diz nada pela metade. Todos os dias treinamos pela manhã e final de tarde. Armas brancas, armas de fogo que nossos soldados o entregam, combate corpo a corpo. Nos preparamos para algo que ainda nem temos certeza que irá acontecer, precisamos estar prontos. Por causa disso, acabei ficando boa em tudo que ele se propôs a me ensinar.
É tudo o que temos, principalmente para mim, ele sabe disso. Tudo que tenho agora é Nikita e seus socos em minhas têmporas, chutes em meu estômago, facas atiradas a esmo em direção para treinar meu reflexo. Todos os dias ele me ensina a lidar com a dor, e pode ser que seja até mesmo cruel. Mas eu lhe pedi, ou melhor, lhe implorei para que não me deixasse definhar, que me desse um propósito que eu pudesse seguir. E ele o fez. Nikita se tornou o mentor da minha sanidade.
Montamos um cronograma bastante organizado dos nossos treinamentos. Um no começo do dia, antes mesmo do sol nascer, e um logo que o sol se punha. Durante os últimos 365 dias, nosso plano não falhou. O instrutor me guiou através dos seus conhecimentos mais avançados, me mostrou todas as técnicas que conhecia e que aperfeiçoou ao longo do tempo.
Sempre desejei ser um forte soldado entre os homens de meu pai, porque queria que ele sentisse orgulho do que eu sabia, que fosse vitorioso através dos meus conhecimentos. Agora, ao me enxergar dessa mesma maneira que sempre almejei, o soldado que Nikita criou com paciência e destreza não parece ser tudo o que eu imaginava.
E apesar de planejar minha vingança, apesar de rezar todas as noites em como acabarei com cada um daqueles que destruiu minha vida, apesar de todos os objetivos de fundos tão obscuros, me pego pensando tantas vezes se algum dia serei capaz de amar ou me importar novamente com alguém. Ainda mais agora, que não tenho nada, não sou nada.

O vento está forte o suficiente para que meus cabelos não fiquem alinhados por nada dentro da touca. Ao menos me sinto quente; o casaco de pele grossa me traz uma sensação gostosa de conforto, mas os benditos fios que escapam do crochê insistem em atrapalhar minha visão, que só piora em meio à neblina que tomou conta das ruas escuras, geladas e abandonadas.
“Só mais uns metros”, penso comigo mesma. “Estou perto de casa”.
Quase gargalho com meu próprio pensamento, ainda mais se não fosse tão mórbido, em conjunto com todas as outras coisas que penso agora.
Caminho o mais rápido que consigo, mas o vento parece congelar meus ossos a cada passo que dou. É o inverno mais cruel que já presenciei desde que me lembro. Quase como se fosse alguma peça bem irônica que o destino pregasse em minha vida. Porque tudo o que aconteceu até então não foi o suficiente.
“Que bela ironia de merda”.
Enfim viro a última esquina antes de entrar no beco onde se encontra a enferrujada escada de emergência, porta de entrada para o prédio. Porém, assim que meus olhos alcançam o metal, dois brutamontes parecem me esperar, próximo ao latão de lixo que usamos para esconder a escada retraída.
O maior solta o cigarro dentre seus lábios, que se apaga antes mesmo de chegar ao chão frio; o outro ajeita a gola peluda do casaco. Ambos abrem sorrisos de escárnio, os dentes podres chamam minha atenção e me enojam. Não tenho tempo para me preparar – eles avançam com agilidade, como caçadores muito próximos de capturar sua presa.
Não estou com medo, estou cansada. Cansada de ser inferiorizada por homens, de ter que lidar com isso o tempo todo. Cansada de que se escorem em seu poder bélico, suas posições e aliados políticos. A verdade é que, para ser sincera, estou cansada de homens.
Apesar dos seus passos rápidos, os dois não parecem muito habilidosos, e quanto mais se aproximam e notam minha expressão de tédio, suas caretas mudam de curiosos para irritados. Não recuo, e isso os instiga ainda mais. Transformo a situação em um jogo excitante, e eles nem imaginam que eu já sei qual é o final.
Espero que venham em minha direção, que ataquem. Enquanto não me alcançam, analiso meus pontos de fuga. Quando o primeiro idiota ataca, abre os braços em minha direção, como se quisesse segurar todo meu corpo em um abraço esmagador e, assim, desestabilizaria meu corpo até que não tivesse mais forças para reagir.
Sou metade do seu tamanho e, por isso, tenho certeza que movimento mais rápido que ambos. Assim que o brutamontes lança suas mãos ao redor do meu corpo, deslizo por baixo de seus braços e apoio um dos meus joelhos no chão. Retiro minha faca de combate da bota direita e, num movimento rápido, passo a lâmina afiada atrás do seu joelho. O monstrengo cai urrando no chão; o sangue jorra do ferimento como em um filme de ação, o líquido gosmento encharca o tecido da calça.
Mesmo assim, ele tenta se virar em minha direção – já me preparo para atacá-lo com a faca, mas meus ouvidos atentos, no mesmo momento, captam o barulho de uma arma ao ser engatilhada. O clique quase me faz estremecer. Tenho tempo apenas de ver o outro idiota apontar sua arma para a minha cara. Seguro o ar em meus pulmões, com raiva, antes de agir. Conheço o movimento de cada bala de todas as armas vendida em qualquer loja da zona neutra.
Desvio quando ele atira; o movimento é o suficiente para escapar da bala por poucos milímetros. Ao menos para mim, já que ele é tão ruim de mira que acerta a testa do companheiro que se esforçava para ficar de joelhos. Por um segundo, sou capaz de me admirar ao vê-lo morrer como um grande asno.
É quase cômico, e até mesmo quero rir, mas ainda não terminei com o idiota número dois. E não vou deixar que escape. Meu olhar se volta para seu rosto, que está assustado ao notar a cagada que acabou de fazer. Tenho certeza que ele nunca matou ninguém antes, conheço essa expressão. Em soma à atitude idiota, do porte da arma de fogo que mal sabe manusear, vejo que sofre ao tentar encaixar outra bala no compartimento da arma, sem sucesso, é claro.
“Minha nossa, que idiota de merda!”
De maneira silenciosa, me levanto e me movimento rápido em sua direção e, antes que me note, chuto sua arma para o alto. Ele tenta reagir, mas meu punho atinge seu queixo antes que consiga me acertar. O grandalhão ergue a cabeça para protestar, então aproveito seu movimento para acertar a outra mão em seu pescoço, em um soco direto em sua traqueia. O homem cai para trás, suas costas ralam no concreto e ele permanece ali, deitado e sufocando.
Subo em seu corpo em outro ágil movimento, e sou realmente pequena contra seu tamanho monstruoso. Tiro a .22 do coldre escondido no interior do casaco e me sinto orgulhosa de como me defendi agora. Gostaria que Nikita tivesse visto isso. Melhor, gostaria que papa tivesse visto isso.
─ Que diabos farei com você agora, huh, seu filho da puta infeliz? ─ questiono o homem, que sequer parece ter se recuperado do soco no pescoço. Ele nem mesmo reluta, parece esgotado. Além de que, é claro, tem os olhos na arma em minha mão e sabe que não pode fazer nada sobre isso.
Uma onda de poder me atinge direto no peito, algo quase assustador que não me causa nem mesmo remorso ao engatilhar a bala e apontar o cano para sua testa. Não tenho medo de matá-lo, sei que vou ignorar o sentimento mais tarde.
Deixo que o sorriso cruel se forme em meus lábios. Mas mal tenho tempo de me esquivar quando ouço o zunido contra minha cabeça e uma dor pontiaguda tomar conta da cartilagem da orelha. Encaro o rosto do homem embaixo de mim. Uma faca afiada entrou até o talo em seu olho direto, que vaza aos poucos. Ele gorgoleja por uns segundos e amolece, seu corpo estala contra a calçada fria.
Nem mesmo ouço ventar mais, e me pergunto se por isso não ouvi o terceiro homem atrás das minhas costas parar e atirar a faca em nossa direção. Não me preocupo com esse terceiro atacante, eu reconheceria essa faca em qualquer outro lugar do mundo.
─ Nosso treinamento agora passará a incluir morte? — questiono e me viro em tempo de ver Nikita puxar a escada de emergência para baixo, para facilitar nossa subida até o local onde vivemos agora.
─ Nem nos meus planos mais sombrios, ... Natasha ─ ele se corrige rapidamente. Ainda não nos acostumamos cem por cento com isso, com o novo eu. ─ Só queria checar se está atenta...
─ Se eu desviasse um centímetro para o lado errado, acertaria o meio da minha nuca, bem no bulbo... ─ digo. Ao mesmo tempo, arranco a faca do olho do morto e me levanto. Limpo a lâmina no casaco do defunto e a jogo para Nikita novamente, que a segura com delicadeza e a guarda em um compartimento preso às suas calças.
Ele me encara de volta e sorri.
─ Que bom que te ensinei bem, então ─ argumenta, o que me faz revirar os olhos. ─ Sei que não desviaria, Nat. Você me ouviu chegar quando socou o pescoço desse pobre homem... ─ sorrio de volta. Acredito em suas palavras, é verdade. Eu sabia que Nikita estava ali parado. Ele me lança um olhar mais orgulhoso do que mereço e sobre as escadas, sem titubear.

Assim que entramos no apartamento, não conversamos muito, essa é a nossa dinâmica agora. Só falamos sobre o necessário. Então me dirijo ao meu quarto, retiro o casaco e me olho no espelho rachado. Tem um hematoma pequeno começando a arroxear em meu ombro, bem onde o brutamontes tentou me agarrar.
“Apenas mais uma marca”.
Ajeito os cabelos e me limpo, o suficiente para tirar a sujeira da rua, da luta no asfalto. Não tenho mais o luxo de tomar um banho de banheira como na mansão, apenas um pouco de lenço umedecido e uma bacia com água morna. Temos luz elétrica advinda de um gerador pequeno que Nikita conseguiu, mas não podemos chamar atenção, então não esbanjamos com chuveiros. É o suficiente para que tenhamos água quente e possamos manter os alimentos congelados.
Quando saio do que chamo de quarto, um cubículo empoeirado, o cheiro de sopa me atinge direto no coração e também no estômago faminto. Me pergunto se o cheiro de carne cozida não chamará a atenção de ninguém fora do prédio, já que o vento é potente e quase faz as janelas chacoalharem.
Acendo algumas velas e as coloco na mesa em frente ao sofá velho e puído, em seguida me sento no móvel gasto. Percebo que nunca dei valor real ao luxo que tinha na mansão, mas agora daria tudo para ter minha cama e minhas cobertas de lã de carneiro novamente.
Nikita traz duas cumbucas de sopa fervente e, juntos, comemos em silêncio, cada um em um dos sofás rasgados, admirando as chamas alaranjadas das velas que dançam em um ritmo lento. Quando terminamos, levo as vasilhas até a pequena cozinha improvisada e, ao retornar para o lugar onde jantamos, vejo Nikita organizar sua papelada na luz fraca.
─ Se importa se eu olhar? ─ pergunto e aponto para as folhas. Goncharov concorda com um aceno de cabeça e faz um gesto com uma de suas mãos, para que me aproxime.
─ Na verdade, você deve, Natasha... ─ explica. Ainda é muito amargo ouvi-lo me chamar por um nome tão diferente do meu nome de batismo, nome esse que tive há pouco tempo. E talvez nunca me acostume com essa nova identidade, mas sei que devo me esforçar, ao menos por ora, em nome de nossos planos.
─ Pode me explicar para o que exatamente estou olhando? ─ questiono. Nos documentos há fotos de praias e bairros coloridos, a bandeira dos Estados Unidos da América, o símbolo da Oryol. E mais escondido embaixo dos papéis está um distintivo policial. Aprendemos a falar inglês já pequenos; papa sabia da importância dos americanos nos negócios, então nos obrigou a entender mais sobre sua cultura.
─ Andei conversando com Alexander.
─ Smirnov? ─ pergunto, e Nikita acena que sim.
Me lembro vagamente das lições que Sergei deu a mim, Katya e Nikolav sobre a Oryol dos Estados Unidos. E Alexander Smirnov é o pakhan da família americana que representa a Bratva no continente do outro lado do oceano. Ele comanda toda a Flórida, e é um grande amigo e aliado de nossa família. Imagino como deve estar devastado com as notícias do último ano.
─ Sim, Smirnov ─ ele repete o que digo, alcança o distintivo e o aperta em seus dedos finos e firmes. ─ Sei que te deixei pensar que estivemos empacados por aqui e peço desculpas por isso ─ explana.
Torço o nariz, mas me obrigo a fazer um gesto com a mão, pois não me importo de verdade, desde que as coisas andem daqui para frente. Além do mais, estou curiosa, quero que me conte de uma vez o que está em seus planos. Sinto uma coisa diferente na boca do estômago, uma coceirinha quase agradável. É mais do que alívio, parece... entusiasmo.
─ A Oryol irá nos ajudar? ─ pergunto ao que me movimento no sofá. De repente, estou inquieta e cada vez mais curiosa, quase como Alice ao descobrir o País das Maravilhas. Mas Nikita ergue a palma da mão e quase posso ouvi-lo falar.
“Paciência”.
─ Ainda não sei com exatidão até onde vai sua lealdade, mas sei como podemos começar a trabalhar nossos planos, Natasha... de uma maneira segura, é claro ─ ele ergue a foto da bandeira estadunidense e o formigamento na boca de estômago aumenta. ─ Alexander me lembrou de Yond Zayev, um dos nossos homens. Ele vive a trabalho nos Estados Unidos há algum tempo... Acho que ele conhece os próximos passos melhor do que nós mesmos.
Me pego pensando a todo o momento, até onde vai a inteligência e astúcia de Nikita Goncharov? A verdade é que desconheço sua mente, e a ideia de que esteja tantos passos à frente me faz empertigar os ombros.
─ Está tudo preparado para nossa chegada. Embarcamos em dois dias, acho que podemos começar a fazer suas malas, querida... Vou retirar o que puder de dinheiro do banco e transferir o restante para Smirnov. Decolamos para Miami... Depois, nos organizamos como pudermos, Natasha Ivanski.
E rápido como um passe de mágica, ou mais uma volta maluca na montanha-russa que é minha vida, nos tornamos cidadãos americanos. E não faço ideia do que acontecerá daqui para frente.


FRANKLIN MORRIS


Não tenho como negar, estou ansioso e também curioso para ver a cara desses novos bananas que Jetson me prometeu. Ele me disse que não devo ser mesquinho e pensar neles como baixo escalão, porque posso me surpreender. É engraçado, mas talvez ele esteja certo sobre isso.
E é por isso que me pego pensando em diversas ocasiões em que tipo de conversa ele, General Nixon e Yond tiveram dias antes. E depois penso ainda mais no que Richards e Zayev conversaram pessoalmente. O que sei é que foi o suficiente para deixar o Jet impressionado, bem provável porque nunca treinou um oficial russo, mesmo que conhecesse a destreza de Yond.
Muitos torceram o nariz quando ele chegou na academia, muita gente torceu o nariz. É claro, somos cidadãos americanos; os russos podem ser muitas vezes considerados inimigos e parece que estamos em constante posição de atenção para o momento em que irão abrir o seu poder bélico contra o nosso e comecemos uma nova guerra. Nos preparamos para isso na academia.
E é óbvio – quando Yond Zayev não foi aceito entre os pops, o grupo dos desajustados formado pelo comandante bobão e o policial irritadiço o abraçaram. Não tínhamos o que temer com Zayev, certo? Ele estava do nosso lado. E até então tudo que tinha feito era unir suas forças com as nossas, sempre essencial em diversas de nossas missões.
Eu confio nele, tanto que me sinto à vontade para conversar sobre minhas frustrações com relação a Trey. Ele conhece a história até onde precisa conhecer, é claro, mas sabe de quase tudo. Também sempre nos ajudou a reunir importantes informações sobre McCarter, e isso faz com que o olhar de Nixon seja atraído para ele, a ponto de fazer parte de uma equipe muito competente agora.
E é por isso que Jetson insistiu na ideia de que já que trariam policiais russos para reunir forças e informações sobre McCarter e sua ligação com a máfia e os cartéis de drogas nos EUA, além de outros tipos de tráfico – informações essas que os fariam apodrecer de vez na cadeia. Talvez fosse interessante que eu procurasse meu novo parceiro entre esses novos homens.
A verdade é que a minha curiosidade vai um pouco além disso. Estou ansioso para derrubá-los nos treinos, ao mesmo tempo fazer com que cheguem ao seu limite. É de comum senso que os soldados russos são apelidados de muralha, montanha, porque são fortes e resistentes. E é isso que me deixa ansioso, para ver se aguentam o suposto animal que dizem que seguro dentro de mim.
Desde a minha “luta esbaforida” com Jet, ganhei um novo apelido entre os homens aqui: “A Besta”. Soa muito idiota quando falo em voz alta, mas bem lá no fundo eu preciso admitir que até gostei de ser chamado dessa forma. Não porque eu acredite que sou ou ajo dessa forma mesmo, mas porque me desvia de ter que lidar com algumas situações que poderiam encher bastante o saco.

Me pego pensando no quão idiota eu pareço agora. Achei que fosse coerente vir preparado para uma reunião de negócios, eu nem sei quando isso vai acontecer. Quando recebi as primeiras opções de soldados, pouco mais de um ano atrás, nem cogitei me comportar dessa forma. Por Deus, eu até mesmo passei gel no cabelo! E não faço ideia do porquê!
Assim que entro na academia, dou de cara com Eddy. Ele parece feliz demais, não imagino o porquê e sequer tenho certeza de que quero saber de verdade. Além de que sei que não preciso questioná-lo, ele logo vai desembuchar. Eddy é uma grande fofoqueira. Apenas lanço um olhar profundo em sua direção e aguardo; sei que isso vai atiçá-lo ainda mais a desatinar em seu papo furado.
— Tem uma gata no meio! — ele diz, com um largo sorriso nos lábios.
Solto uma risada alta, uma gargalhada, na verdade. Eu deveria saber. Homens sempre serão homens! Muitos dos nossos soldados agem dessa maneira toda vez que recebemos uma oficial do sexo feminino, é muito besta. Eles as respeitam, são cordiais como devem, mas às suas costas, eles elogiam e falam muita besteira.
Não sou um santo e nem me isento de ter feito o mesmo pelo menos uma vez, mas faço questão de comentar com todas elas sobre tudo o que eles dizem, ainda mais se estivermos para fazer um treino corpo a corpo. Só pra ver elas chutarem as bolas deles sem piedade, sabe? É muito, muito divertido mesmo.
Acompanho Edgar até a porta da sala de Jetson, pois preciso me reportar a ele antes de irmos conhecer os novos agentes, até mesmo porque ele ainda é o responsável pelo projeto. Bato duas vezes no batente e entro sem aguardar sua resposta. Não quero me enrolar demais por aqui, mas sim partir para a ação de uma vez. Além disso, Jetson também não costuma bater muito, então não me importo em fazer o mesmo.
─ Quem é que te contou? ─ Jet questiona. Quem perguntou o quê? Nem tento entender sobre que diabos ele está falando. Dou de ombros, na esperança de que entenda que não faço ideia do que está me perguntando. ─ Quem te contou que tem uma mulher?
─ Mas que mer...
─ Você está cheiroso, penteou o cabelo, puta merda! ─ ele explica enquanto se levanta em um pulo rápido e para em minha frente para me analisar melhor. Eu bato em sua mão toda vez que tenta encostar em mim. ─ Não era pra ninguém avisar ele, Eds...
─ Cala a boca, Richards! Não sei que porra está falando, isso sou... eu.
Ele ri alto, chega a chacoalhar os ombros.
─ Aham, está bem... Estamos falando de uma russa, Morris. Você sabe, amigo, quando Deus é legal e decide mandar uma russa... ela deve ser boa, não é? Tanto quanto Ele mesmo… ─ ele diz, piscando um olho indiscreto. Eu lhe empurro a cabeça em resposta, mas ele só dá risada em retorno.
─ Minha nossa, Jetson. Sabe aquela história que alguns homens envelhecem tão bem quanto vinho? Você está estragado, só piora conforme o tempo passa... ─ digo. Eddy, que estava silencioso até o momento, começa a gargalhar. Ambos o encaramos e ele se cala tão rápido quanto começou a rir. Então é a nossa vez de explodirmos em risadas.
─ Bem, se vale de algo, capitão, acabei dizer ao Capitão Morris que ela é realmente gostosa ─ Edgar dá de ombros, e eu o fuzilo com o olhar em retorno, o que só o faz se retrair mais uma vez. É muito divertido.
─ Olha só, eu não fazia ideia de que teria uma mulher no meio, e na verdade, não me importo se são mulheres ou homens. Não duvido que sejam apenas mais bananas... ─ eu falo. Jet concorda com uma aceno de cabeça, mas pelos seus murmúrios indecifráveis, tenho quase certeza de que ainda deve estar rezando para que a garota seja realmente bonita. ─ Não me importo, é sério ─ repito, e ele só concorda com a cabeça de novo. Pego a boina de combate que está sobre sua mesa e enfio em sua grande cabeça, sem delicadeza nenhuma. ─ Vamos, seus merdas... o desespero nos espera!
Ambos os três saímos para, até que enfim, conhecer esses combatentes.

Dentre os novatos, tem dois brutamontes de cabelos loiros, quase brancos. Braços grandes e musculosos, provavelmente são dois ratos de academia e treinam há bastante tempo para terem chegado a esse tamanho. O terceiro é um pouco mais mirrado do que os outros, mas ainda bastante forte. Ele tem a aparência muito similar à de Yond, cabelos escuros e olhos também, semblante muito sério.
Procuro, por fim, pela mulher. É claro que agora fiquei curioso para cacete para ver como ela é, quem é. Se esses caras não falassem tanta merda, talvez meu cérebro não perdesse tanto tempo para desenvolver esses sentimentos idiotas na boca do estômago, muito menos para trabalhar em suposições burras.
Se eu não prestasse tanta atenção nos babacas dos meus amigos, eu seria um cara muito mais focado em meus objetivos. Mas não, o Franklin não pode ser um cara focado, e ele precisa prestar atenção nos babacas dos seus amigos.
De qualquer forma, ela está ali, logo um passo para o lado. E, de repente, estou bem mais surpreso do que jamais suporia. Seus cabelos loiros estão presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça, firmes, como uma agente muito profissional, que sabe que não pode perder tempo parar para arrumar o cabelo de novo durante o dia.
Parece ter um físico bem atlético e treinado – é fácil afirmar, pois com as roupas justas no corpo, consigo perceber seus braços fortes e pernas bem torneadas. Ela tem o corpo de uma lutadora, pequena e consistente, e isso é bastante agradável aos olhos. Não, agradável é uma mentira do caralho.
Seu rosto é uma obra divina, acho que é a mulher mais bonita que já vi em toda a minha vida. Se eu precisasse descrevê-la oficialmente, poria no documento que parece um anjo que caiu do céu. Ela parece reluzir o salão com uma delicadeza que é quase desproporcional aos seus olhos ferinos. Minha nossa, ela parece a porra de um quadro pintado pelas mãos habilidosas de Botticelli. Olhá-la assim é quase um pecado, quase como se eu precisasse virar o rosto antes que me notasse, pois se o fizesse, eu queimaria em brasas ardentes.
Procuro Jetson com o canto dos olhos. Preciso ver sua reação, muito embora tenha certeza de que deve estar rezando em silêncio, agradecendo em preces nesse exato momento.
Olho para a mulher normalmente. Ela é tudo o que disseram e um pouco mais, e por mais hipócrita e mentiroso como o cão que possa soar, não é seu corpo que chama a minha atenção de verdade, mas sim seus olhos. Não são apenas bonitos – é claro que o verde azulado parece a assinatura de Jesus Cristo no primeiro testamento –, só que tem alguma coisa a mais, como se carregassem um sentimento de força de vontade, uma gana fodida de algo que não faço ideia do quê. Um misto de raiva e alegria, tudo junto; um tanto de orgulho, talvez. E tem outra coisa, uma ainda mais profunda: é como se através das íris enxergasse o seu amago, a parte mais obscura. Ela tem fundamento, foco pra cacete, mais do que qualquer outro soldado que conheça.
Estou sem palavras. Para falar a verdade, estou sem pensamentos também, me sinto quase tonto. Nem mesmo sei por onde começar a me apresentar a essas pessoas, estou lesado. Tenho feito isso por um ano inteiro, contudo, estou tão surpreso, ou ainda mais do que Yond nos prometeu. Ele disse que eu perderia meu queixo no chão, e estava absolutamente certo. Zayev, inclusive, se aproxima e diz que pode nos apresentar a eles se eu preferir. Confirmo com um aceno.
Respiro fundo. Não quero começar a discursar e me atrapalhar como uma grande besta quadrada. Se estou ligeiramente atraído pela garota? Hmm, talvez “ligeiramente” não seja a melhor palavra, mas sim, é só um fato. E ainda assim, não quero dar uma colher de chá para ela, preciso ser justo com todos. Também não quero prejudicar a mim mesmo na hora de decidir; eu preciso do melhor, quero o melhor e é isso que terei.
Yond limpa a garganta com um pigarro.
─ Bom dia a todos os quatro candidatos. Conforme suas inscrições no programa, foram convocados a participar de um breve teste de aptidão com o Capitão Morris ─ ele começa a falar. Ergo a mão em um cumprimento e os quatro batem continência para mim. Meu rosto esquenta e espero não ter ficado vermelho. Que merda! Yond se vira para mim e sorri. ─ Os quatro foram transferidos da polícia especializada da Rússia. São agentes muito bem treinados, conhecem todos os tipos de armas, sejam brancas ou de fogo e, é claro, como o senhor parece ter uma inclinação a gostar muito, combate corpo a corpo é seu forte ─ Yond explica. ─ Já adiantamos os testes de resistência, capitão. Edgar tem os detalhes. Se achar coerente, pode partir direto para o combate e, mais tarde, se quiser, também podemos levá-los ao estande de tiros. Será interessante, pode acreditar em mim...
Concordo com um aceno de cabeça, e, ao meu lado, Jetson surge apenas para me encarar com um sorriso maroto. Eles querem ver A Besta, posso ver isso em sua expressão divertida. Só que, para ser sincero, não sei até onde posso dar isso para eles. Estou de saco bastante cheio de humilhar as pessoas para o divertimento dos meus comparsas. Além do que, não posso mostrar toda a força para os policiais e, se não estiverem cem por centro preparados, fazer com que desistam. Eu não os vi fazer testes de aptidão, resistência, não os vi correndo pela pista de obstáculos, não os vi atirar, não os conheço e não sei até onde aguentam.
Mas, de qualquer forma, sei que não tenho escolha. É claro que isso foi tudo armado por esses patetas. Eles sabiam que eu ficaria hesitante na frente desses agentes, ainda mais sendo imigrantes. Não quero ofendê-los sem nem mesmo conhecer sua cultura, suas preferências e conhecimentos. Eu sei como meter porrada, não lidar com pessoas.
─ Vocês têm dez minutos para se prepararem, oficiais. Façam, por gentileza, uma fila em frente ao ringue, longo mais conversaremos... ─ digo entredentes, irritado com o que meus próprios parceiros querem me fazer passar. Eu nem ao menos sei se esses caras me entendem totalmente. Mas não passarei vergonha, não poderia nem mesmo pensar em me dar ao luxo. Então, me dirijo ao vestiário para trocar de roupa. No fim das contas, não adiantou porra nenhuma pentear e passar gel no cabelo.
Quando volto para a academia, os oficiais estão esperando como solicitei. Há uma quantidade bem maior de pessoas aqui agora, ao redor do espaço, dispersos, como se quisessem disfarçar. Noto que muitos também estavam por aqui no dia com a luta com Jetson. Eles só estão aqui no aguardo do show. Bem, eu vou lhes dar o meu melhor.
Que se foda! Que se foda! Russos e americanos…
Subo no ringue com um salto sobre as cordas de proteção e dou um soco leve no tatame – é só um hábito idiota. Estou preparado, aqui sempre estarei. Minha regata está suada, principalmente nas costas; meu corpo já começa a gastar energia, que flui por todas as minhas veias em antecipação. Sobre isso, não posso dizer que Jet está errado. Se tem algum lugar onde posso chamar de lar é aqui, no tatame de couro gasto.
Aponto para o primeiro homem da fila e o chamo para subir. Enquanto pisa no tablado, ele estala o pescoço e se movimenta rápido, chacoalha os braços para se aquecer. Ele me encara diretamente nos olhos, sem desviar. Imagino que pense que isso vá me intimidar, mas não, ele não consegue. Já lidei com muito pior do que isso.
Porém, apesar de parecer pronto para qualquer coisa, está claro que o oficial é muito afobado. Ele mal ajusta seu peso no chão e já parte em minha direção. Não o culpo, de verdade, eu também tomaria uma atitude antes que o meu superior, apenas para tentar surpreendê-lo. Infelizmente, o elemento surpresa desse agente não é suficiente.
Seu soco desliza pelo ar com leveza, deve ser até bonito de ver enquanto telespectador, mas o ataque passa direto quando desvio minha cabeça para o lado. Ele investe uma nova vez e mira o outro lado da minha cabeça, como se quisesse testar meus possíveis pontos fracos. Ele é inteligente e ágil, mas eu desvio novamente. Dessa vez, retribuo com um empurrão em seu peito, e o homem cambaleia para trás.
Já treinei uma quantidade enorme de homens nessa academia. Fui treinado por outros com um potencial, força e poder físico trocentas vezes maior do que o meu. Claro que tenho uma bagagem interessante se for analisar, me fazer de coitado agora seria uma grande hipocrisia. Me conheço o suficiente para nem mesmo tentar me martirizar.
O oficial investe de novo, tenta invadir meu espaço para me atrapalhar, mas eu apenas o empurro, o que só o irrita ainda mais. Pela quarta vez, ele tenta invadir meu espaço e eu volto a empurrá-lo. Vejo sua força se acumular em seu pulso direito; ele está tão irritado que é quase engraçado. Mas seus olhos não são os mesmos, não tem nada divertido ali. Todavia, apesar da força nos punhos, seus olhos e cérebro não estão firmes e estáveis, sua força é apenas bruta.
Assim que erra o soco de novo, sei que é a hora de parar. Não vale mais a pena forçar a barra, é só força e nada de estratégia, o que para mim, não é o suficiente. Quando seu braço passa direto por minha cabeça, eu giro meu corpo, seguro um pouco acima de seu pulso e torço seu cotovelo, o que faz o homem cair no tatame com o braço dolorido.
Ele urra de dor, como o esperado, então eu o solto e dou as costas. Espero alguns minutos até que se levante, e, quando sai do ringue, seu semblante é derrotado. Quase sinto pena, mas não tenho tempo para lamentos. Aponto para o segundo brutamontes e agora, o olhando de perto, percebo que tem chances de ser irmão gêmeo do anterior, ou devem ser no mínimo parentes, são muito parecidos.
O segundo parece um tanto mais inteligente, ou ao menos parece pensar um pouco mais sobre quais os melhores movimentos para investir contra mim. E ainda assim parece muito fácil acabar com ele, mesmo que seja maior do que eu. Ele desfere alguns socos em minha direção, quase acerta alguns, mas no fim me protejo de todos eles com meu próprio punho. Ao menos ele consegue me empurrar contra as cordas, e é aí que paro de bancar o policial do bem e revido os socos, mais precisos, que acertam seu queixo, maçã do rosto e a têmpora, o fazendo cambalear tão tonto quanto um bêbado.
─ É preciso usar o cérebro, sabe, não o corpo... Um corpinho bonito nem sempre adianta qualquer coisa... ─ ouço a voz de Jet fora do ringue. Tenho certeza que está falando com a garota, eu o conheço o suficiente para isso.
Tento olhar para os dois sem desviar meu foco por completo dessa luta. Vejo que ela o ignora, e não consigo segurar um sorriso em meus lábios. Adoro quando as mulheres ignoram o Jetson, é ainda melhor do que quando elas revidam, porque ele fica com essa cara idiota que vale mais do que mil barras de ouro.
O oficial investe uma nova vez para cima de mim. Desvio dos seus golpes irritados e encho meus punhos contra seu rosto e sua cabeça, até que, ao bater com suas mãos em meus pulsos, noto que pede que eu pare. Bem, ao menos esse irmão aguentou as porradas até o final.
O terceiro homem entra no ringue um pouco hesitante. Não quero soar autoconfiante demais, mas seu tamanho me faz pensar que talvez seja ainda mais fácil do que com os outros. Ele se posiciona e eu faço o mesmo, mas diferente dos outros – assim que começamos nossa dança, ele não investe tão rápido quanto os demais fizeram, apenas balança seu corpo de um lado para o outro.
“Ao menos você sabe usar o cérebro”, não consigo parar de pensar.
Ficamos algum tempo trocando socos e pontapés. Ele é mil vezes melhor do que os outros dentro do ringue, e me arrependo tão rápido quanto pensei que talvez fosse ser mais fácil, que seu tamanho significava alguma coisa.
Não sei por quanto tempo ficamos girando em círculos, mas depois do que devem ser alguns minutos, começo a ficar irritado. Ele é bom, mas não perfeito, e espero apenas que se distraia por um segundo para que possa acertar um soco bem em cheio em seu nariz, o que faz com que tropece para trás e se apoie nas cordas.
Do lado de fora, ouço o apito de Yond, que, aparentemente, cronometrou o tempo de todos os embates de cada soldado até então para acrescentar em sua ficha, e o tempo do terceiro soldado acabou. Dou um tapinha em seu ombro antes que saia, o encorajando. Ao menos estou orgulhoso que, dos três, um é bom no que faz. Na verdade, acho que a palavra certa é alívio.
Por fim, é a vez dela. A loira entra no ringue em silêncio, desliza os dedos finos pelas cordas atrás das suas costas e depois aquece os braços, com movimentos rápidos. Seus olhos não desviam dos meus enquanto o faz. Me sinto suar ainda mais, minhas costas molhadas agora. Porém, a encaro de volta, tento não parecer tão intimidado quanto ela pode estar imaginando. Ela passa a língua sobre os lábios e depois os seca com as costas a mão, e não consigo piscar enquanto admiro seus movimentos.
Nos aproximamos do meio do ringue. Tudo que ela faz é me encarar enquanto estala os dedos das mãos e fecha os punhos com firmeza. A mulher se ajeita em uma posição para ajudar no balanceamento do seu peso sobre os dois pés. Estou totalmente consciente dos seus movimentos em minha frente, noto tudo que faz.
Tenho certeza que todos os outros homens nos encaram sem piscar agora, quase consigo ler seus pensamentos. Eles estão esperando para vem quem é que está de pé no tatame nesse momento. O Capitão Morris ou A Besta? Ou o que ele faria com uma mulher? Sendo honesto, não sei qual dos papéis é o certo para atuar nesse momento.
─ Você precisa me dizer se eu estiver forçando a barra demais ─ digo para a moça. Em resposta, ela apenas abre um sorriso, tão delicado e doce que faria as calças de qualquer homem ficarem apertadas. ─ Eu não vou machucar você... ─ explico, e ouço uma risada do lado de fora do ringue. Soa como Yond.
Não consigo nem mesmo enxergar quando seu pulso acerta meu rosto em um soco forte, e eu apenas tenho tempo parar encará-la perplexo e dolorido. Porra, me distraí por apenas dois segundos! Ela ergue uma de suas sobrancelhas e troca o peso de uma perna para outra, como se esperasse minha retribuição. Inclino a cabeça para o lado e chacoalho meus braços, a chamo para que avance. E ela o faz.
A oficial parece flutuar no tatame enquanto dança ao meu redor. Apesar do tamanho, seus braços são firmes ao se agitarem em minha direção. Quando consigo desviar de seus socos, é apenas por míseros centímetros, mas o peito do seu pé descalço acerta minha coxa no meio com uma onda de eletricidade que se espalha por todo o corpo.
Pro inferno com pegar leve.
Seu sorriso bonito desapareceu, dando lugar para outro muito mais cruel. Ela quer ganhar isso, me humilhar, mas não pretendo deixar que aconteça. É minha vez de lançar meu punho em sua direção. Ela desvia por baixo do meu braço e se joga de joelhos no chão, deslizando pelo tatame. Se vira rápido para me dar uma rasteira, mas sou mais ágil e me esquivo do seu golpe com um pulo sobre sua perna.
Ela se levanta tão rápido como um lince, e não hesita em voltar a me atacar novamente. Balanço meu corpo para o outro lado e desfiro um soco, forte, em seu bonito rosto. Acerto direto sua bochecha. “Puta merda, eu bati feio nessa mulher”, é tudo que consigo pensar. Mas não posso me apiedar apenas porque é uma mulher, não seria justo com os outros, a quem enchi de porrada.
Ela vira seu rosto em minha direção e morde o lábio inferior, como se quisesse sufocar a dor. Seu rosto é inexpressível, mas tenho certeza que a raiva começa a invadir seu corpo, centímetro por centímetro, pois seu peito sobe e desce como se o oxigênio que respira agora não fosse o suficiente.
Projeto mais um soco em sua direção, mas é sua vez de se balançar para o lado e desviar do meu ataque. Me balanço sobre os pés firmes e giro meu tronco para tentar atingi-la enquanto se recupera, mas a loira é mais rápida, e mal tenho tempo antes de ver seu punho fechado atingir minha boca. O gosto metálico se espalha rapidamente.
Então, percebo algo que deveria me assustar, mas só me fascina. Estou rindo, não uma risada forçada, e é como se isso tudo fosse muito divertido. A mulher sorri, mas não acompanha a minha risada – ela está muito mais concentrada do que eu mereço nesse momento. Estou agindo como um grande idiota.
Continuamos a dançar, um de frente para o outro, girando pelo tatame ao mesmo tempo em que nos encaramos; o olhar de ambos deve parecer como de animais irracionais para nossos expectadores. A real é que estou com uma puta vontade de quebrar a sua carinha perfeita. Estou ciente do cansaço mútuo, bem como da sensação de humilhação em meu estômago. Vejo o suor escorrer por sua clavícula e abaixo, alcançando sua barriga firme, a pele alva molhada.
Ataco uma última vez. Não tenho nada a perder, e consigo acertar seu ombro com este soco. Ela cambaleia para trás, como eu esperava, e aproveito enquanto ainda não se equilibra em seus pés para acertar outro soco em seu rosto. Em outro movimento esperto, ela chuta meu quadril. A dor é latente, mas consigo me manter no lugar.
Ela se irrita a ponto de rosnar, e não é um exagero – ouço o barulho escapar por seus lábios antes que se jogue em minha direção com raiva. Bato em seu braço com força o suficiente para afastá-la, mas ela não se importa com a dor e se lança em minha direção. Volto a empurrar seu braço, e, em resposta, ela acerta um soco em seu peito. Sinto como se tivesse perdido uma batida do coração, mas me permaneço tão imóvel quanto posso e a empurro de novo, segurando-a contra as cordas protetoras. Minhas mãos se fecham em seu pescoço, indicando que a luta termina aqui, num movimento que poderia matá-la se esse fosse o objetivo.
─ Acabou agora? ─ questiono, sinto o filete de sangue escorrer para fora dos meus lábios massacrados. Sua resposta é um sorriso, bastante presunçoso. Ela rola os olhos para baixo e acompanho seu olhar. Sua mão está aberta, posicionada em um formato de ponta na altura do meu estômago.
─ Se eu tivesse minha faca-borboleta agora... ─ ela diz. Seu sotaque é bem forte, a voz é sedosa em compensação, e saboreio cada uma das palavras que invadem meus ouvidos como doce fresco. Isso é claro, apesar do tom de ameaça em sua voz. ─ Você já teria as tripas penduradas... Capitão ─ fala em um tom irônico.
Afrouxo meus dedos em seus ombros com uma risadinha baixa. No mesmo momento, o apito de Yond soa alto. Ela deixa o ringue e vai até os outros soldados que a admiram com olhares obscenos, como se fosse um pedaço de carne de qualidade. São um monte de babacas. Yond aperta sua mão e eles trocam olhares tímidos; me pego pensando se poderiam se conhecer.
Do outro lado, Jet está com a boca um pouco aberta, sei que está meio embasbacado. Quero rir da sua cara idiota, mas acho melhor não falar nada agora. Então, apenas aceno com a mão, indicando que fique em silêncio. Jet assente.
─ Acho que é isso, certo? Todos os quatro foram analisados e avaliados por olhos minuciosos. Você tem uma hora e meia livre antes de nos encontrarmos pela tarde. Vamos até o estande de tiros ─ Yond diz para os agentes, que deixam o recinto no momento seguinte. ─ E nós... devemos falar sobre as avaliações? ─ o russo questiona.
Todos estão aprovados, eu já sabia disso quando me preparei esta manhã. Todos estão dentro, mas ela ficará comigo. Ela será minha parceira.


NATASHA IVANSKI


Encaro a bola pendurada no teto da academia; o couro vermelho desgastado parece ansiar pelos socos que irá levar. Ajeito o top justo nas costelas, aperto meu cabelo no rabo de cavalo e seco a testa já suada. Encaixo melhor os fones de ouvido, prendendo bem firme na orelha para que não caiam enquanto me movimento, aperto o play e a voz de Labrinth canta alto. Não poderia ser mais americano.

“Mount Everest ain’t got shit one me. Mount Everest ain’t got shit on me. ‘Cause I’m on top of the world, I’m on top of the world, yeah.”

Ajeito a faixa presa nas mãos, os dedos presos um junto ao outro de forma que não consigo movimentá-los direito, firmes e fortes, como meu ataque deve ser. Minha bochecha está dolorida pelo soco que levei ontem de meu capitão. É, meu novo capitão.
As coisas com certeza não são mais as mesmas, e eu preciso me adaptar a brincar de inventar historinha agora. Eu devo ser uma grande, grande atriz, para não tê-lo destruído de uma vez ontem. Ter me segurado para não torcer seu pescoço enquanto me provocava foi uma das coisas mais difíceis que já tive que fazer.
Desfiro o primeiro soco e a bola gira no lugar, esperando por mais.
Soco.
Soco.
Soco.
O movimento repetitivo faz os músculos dos meus braços arderem, mas a sensação é boa demais e libera adrenalina por todo o meu corpo. Enfim sou preenchida por aquela sensação de liberdade que tenho buscado com tanto afinco nos últimos tempos e, na maior parte das vezes, sou frustrada.
Se pensar de acordo com os nossos planos que arquitetamos contra a Semyonova, posso afirmar com certeza que o dia anterior foi um completo sucesso. Conforme o que imaginamos para seguir nosso passo a passo, tudo irá se encaixar perfeitamente a partir de agora. Para falar a verdade, só não esperava que fosse ser assim tão fácil, muito menos tão interessante, principalmente porque nem de longe estava em meus planos sair no soco logo no primeiro dia.

“Burj Dubai ain’t got shit on me. You could touch the sky but you ain’t got shit on me. ‘Cuz I’m on top of the world, I’m on top of the world, eh.”

A corrida de obstáculos, os 200m rápidos, a escalada – eu já esperava por isso. Yond já tinha nos deixado cientes de que eu, sozinha, teria que provar que pertencia à equipe. E eu não tinha dúvidas que entraria, a questão era em que posição estaria assim que entrasse, e, para esse caso em específico, eu queria o topo.
O que aconteceu no tatame foi diferente de qualquer outra coisa que já senti em qualquer momento da minha vida, porque eu nem mesmo me lembrava como era essa sensação de estar assim tão completa, cheia de energia. Depois de um ano dentro do buraco mais escuro, ver a luz é quase surreal. Esperei por todo esse tempo para chegar nesse ponto de êxito, um ano todinho sem saber que poderia revirar meu próprio âmago e ir às alturas, que fosse por um mísero momento.
Apesar de ter passado uma primeira impressão nada diferente do que eu já tinha visto antes, algo entre abobado e arrogante, o Capitão Morris me pegou de surpresa ao me tratar como igual. Ele poderia ter escolhido qualquer um dos homens, indiferente de tê-los enchido de pancada ou não. Ele poderia ter me diminuído apenas por ser mulher, mas escolheu o lado contrário. Me mostrou e fez aceitar quem sou agora, dentro da corporação, qual meu novo papel. E não posso negar, isso pareceu bastante importante.
Não tiro o peso da minha culpa da reta, é claro, porque eu aceitei primeiro. Até porque ele veio com o papinho babaca de que não pega leve com mulheres, qualquer a razão que tivesse nisso. E mesmo que ele não faça ideia, preciso pegar pesado, e por isso preciso que peguem pesado comigo também, se isso me fizer sentir viva.
E aí a sua mão enorme veio em punho direto na minha bochecha. Não pude sequer pensar em desviar, não daria tempo nem se eu quisesse, foi rápido demais. A dor latente que o ataque causou só me estimulou ainda mais do que imaginei. Tudo que consegui pensar era que queria mais, precisava ser impulsionada para cima e para frente.
Soco a bola cheia de areia com mais força, um movimento mais preciso que a faz girar rápido. Meus pensamentos se concentram ainda mais nesses movimentos. É quase injusto que me sinta tão confiante agora, sendo que eu mal sei por onde começar. Indiferente dos planos no papel, ainda não sei como posso ajudar daqui de dentro. Por outro lado, apesar de tudo, é reconfortante ser lembrada de que estou viva, ainda mais quando nem mesmo me lembrava como era me sentir assim.

“I burn down my house and build it up again. I burn it down twice just for the fun of it.”

Penso por um momento se é errado me sentir dessa forma, porque, sinceramente, não sei dizer. Pelo menos é melhor do que fechar os olhos e enxergar minha família reunida à mesa em uma noite especial, um evento especial, um aniversário. Isso sim machuca, demais. É uma dor quase insuportável que parece que vai explodir para fora do meu peito.
Dói tanto que preciso parar de socar a bola; a dor nos punhos não é mais o suficiente. Me dirijo rápido até um saco de pancadas. O couro puído parece gritar em minha direção, como se eu fosse uma pessoa horrível, e o pior é que talvez esteja certo. O saco espera ansioso para que meus punhos e tornozelos o atinjam com ódio.
Chuto com força a parte de baixo do saco. Minhas canelas doem, mas eu respiro fundo e chuto mais alto. Respiro novamente; o ar ardido entra rasgando minha garganta. Aproveito e chuto ainda mais alto, a ponto de inclinar o corpo para o lado de forma que alcance o meu objetivo, quase no topo do aparelho. Engulo o oxigênio mais uma vez.
Não consigo evitar, meus pensamentos voam até a noite em que Sergei me levou até sua sala de armas, quando me deixou admirar os seus “brinquedos”. Ele me disse com todas as palavras que algo estava muito errado, e depois me fez acreditar que eu não significava nada, que era só mais uma mulher na família, como sempre. Eu queimei minha casa pelo mesmo motivo, por ser apenas uma mulher – Labrinth está certo em cada palavra. Queimei minha casa para reconstruí-la e queimar novamente.
Seguro a respiração e chuto com força, o que faz o saco chacoalhar para todos os lados. Levanto os punhos e soco o equipamento em seguida, descarrego toda a minha raiva no tecido grosso. Se não tivesse me envolvido com Ivan, se não tivesse permitido tudo durar por tanto tempo, se tivesse permanecido leal à minha família...
Mas eu estava disposta a seguir com o falso casamento com Dimitri, não estava? Eu também tinha aceitado essa parte às custas da severidade de papa, e que diabos isso tinha nos causado além de morte? Entre erros e acertos, no fim das contas não havia um culpado apenas. Todos estávamos condenados a queimar no mesmo inferno que derrubara todos os .
Invisto com movimentos ainda mais violentos contra o saco de couro; poeira voa em meus olhos e me atrapalho. O saco balança de volta e bate em minha perna, o que quase me derruba no chão duro e frio. Preciso parar, preciso parar um minuto, preciso dar um tempo para minha cabeça e respirar.
Consertarei tudo, eu prometo, por mim e todos os que se foram às custas dos meus erros. Acabarei com todo o sofrimento.

“So much money I don’t know what to do with it. I don’t pick up my phone, ain’t no one worth the time.”

Ao parar, noto que não estou sozinha na academia. Não sei em que momento chegou, muito menos por quanto tempo pode ter me observado com raiva, fúria nos olhos, investindo socos e mais socos contra o saco de pancadas inocente.
O capitão está próximo, também avança contra o seu próprio saco de pancadas. Por um momento, o observo. Quero ver como faz o que faz, aprender seus pontos fortes e pontos fracos. Pelo que senti dentro do ringue ontem, posso afirmar com certeza que é um exímio lutador. Não tão bom quanto Nikita, é claro, mas preciso admitir que provavelmente é, e digo isso engolindo todo meu orgulho, melhor do que eu com relação à técnica, força e até mesmo agilidade.
Mas não me dou ao luxo de olhar por muito tempo e volto minha atenção para o saco de pancadas. Tento desviar o pensamento da minha família e ainda mais: de tudo o que aconteceu até esse momento. Até mesmo porque não tem como voltar atrás agora, não é? Preciso aprender a seguir em frente. E mais, preciso descobrir como colocar meus planos em prática. Preciso partir de algum lugar, e para isso preciso, antes de qualquer outra coisa, me encaixar nesse lugar.
Assim que acerto o primeiro soco no aparelho, forço minha mente a se lembrar de tudo o que aconteceu, exatamente, no dia anterior. Por um instante, me senti gloriosa, coisa que como membra e mulher dentro da Vory v Zakone nunca me permiti sentir antes, mesmo que ansiasse. Ao menos, nunca me senti da maneira que realmente desejava sentir desde que me recordo.

“I got me one gun and an álibi. So much love that the whole thing feels like a lie.”

A manhã tinha sido até fácil, depois do sucesso contra o capitão, que tenho certeza que gostou da minha performance. A tarde, por outro lado, no estande de tiros, foi muito mais complicada que os socos e pontapés. Eu não fazia ideia de que minhas mãos tremeriam tanto quando pegassem um fuzil de novo.
E mesmo treinando tiros com Nikita durante todo esse último ano, o treino tinha sido diferente. O som, mesmo abafado pelos protetores de ouvido, me fizeram lembrar diretamente da noite de terror pela qual passei. Tentei me concentrar, mas não fez a menor diferença – os tiros pareciam me levar para os fatídicos acontecimentos que fui obrigada a presenciar. O banho de sangue no salão.
Depois desse segundo treinamento, precisei ligar para Nikita. Aproveitei os vestiários vazios da academia e chorei por um bom tempo embaixo do chuveiro, mal conseguindo respirar. Não sei, de verdade, se algum dia me acostumarei a isso. Se superarei o tanto de dor que eu mesma infligi. Mas, ainda assim, acho que tudo o que fiz durante os treinos foi o suficiente para garantir meu lugar.
No final da tarde, ainda reunida com os outros três candidatos, Yond nos chamou para uma sala. Nela estavam o General Nixon, que havia nos convocado para o tal treinamento. Também estavam os dois capitães, Richards e Morris, primeiro e segundo na hierarquia, respectivamente.
Franklin – agora eu sabia o seu primeiro nome – não desviou seu olhar do meu em momento algum. Era como se ainda estivéssemos dentro do ringue, entre provocações, porém agora sem motivações para lutarmos. Ao menos por ora.
E mais uma vez, foco no saco de pancadas à minha frente, e arremeto mais alguns socos no aparelho. Minhas mãos ainda tremem com o mix de sensações que parece embrulhar o meu estômago, mas, de repente, sinto um tanto mais tranquila, mesmo na presença do capitão.
Os nós dos dedos estão esbranquiçados e um tanto machucados, mas não sinto dor agora, ao menos não como imaginaria. Posso continuar a socar e socar o couro, mas nada mudará o que sinto. A dor física é fácil de superar, mas não posso dizer o mesmo sobre todas as outras dores que sinto constantemente. Respiro fundo e admiro o movimento coordenado que o saco faz enquanto meu pé encontra o tecido velho.
Em meus ouvidos, Labrinth termina a música e meus fones ficam mudos.

“I don’t need nobody.”

É quase curioso. Eu costumava pensar isso mesmo, que sempre fui suficiente por mim mesma, que não precisaria de ninguém além de mim mesma. Por Deus, nunca estive tão enganada em minha vida. Nunca notei a importância que tinham as pessoas que estavam ao meu lado. E agora estou nessa situação que tanto praguejei a vida toda, que sempre fiz drama sobre.
Eu não tenho ninguém.
Termino a sessão de luta contra o saco, que está derrotado agora enquanto balança devagar de um lado para o outro. Bato a poeira que deixou em minha roupa e ando até o ringue de luta, o mesmo que me fez sentir tão viva e com vontade de continuar a viver depois de tanto tempo.
Deslizo os dedos pelas cordas, um toque carinhoso e delicado, e depois ainda mais intenso – quase como se pudesse sugar toda a energia que o lugar me deu antes. A força com que esfrego os dedos na corda faz com que minha pele já calejada fique mais avermelhada, da mesma cor do material.
Às minhas costas, consigo escutar os movimentos que o capitão faz, se lançando contra o seu saco de couro velho. Sei que seus golpes são duros, firmes e precisos, e não apenas porque o ouço gemer em cada vez que o punho acerta o material, mas muito além, porque o vi lutar ontem. Senti sua força em minha própria cara.
Por fim, não resisto à vontade de admirar o que está fazendo, só por curiosidade. Hesito por um momento – será que é errado? Mas não vejo razão, até mesmo porque, se passarei algum tempo ao seu lado, se terei que absorver seus movimentos e mais, se pretendo fazer com que me ajude a descobrir o que preciso sobre a Semyonova, precisarei observá-lo, certo?
Os músculos dos seus braços fortes estão contraídos, as veias ressaltadas contra a bonita pele lisa. O suor escorre límpido por suas costas nuas até deslizar pela lombar estreita, a pele chega a brilhar onde a água escorre. Mesmo com muitas luzes já apagadas, eu posso ver cada detalhe. Seu cabelo é um tanto quanto comprido, está esticado para trás, e o mesmo suor que escorre por suas costas toma conta do seu couro cabeludo.
Franklin é atraente, bastante. Ele não tem os traços sensíveis e suaves que muitos homens que conheci, mas há algo em seus olhos, e o movimento que sua testa faz quando está concentrado que parece... maduro demais. Me pego admirando também seus lábios entreabertos, avermelhados. Parecem úmidos e descontraídos, diferentes dos demais músculos de seu corpo.
Seus punhos batem firmes contra o saco de pancadas; o equipamento balança no ar com a mesma intensidade dos movimentos que Franklin faz contra ele. Seus pés deslizam de modo cuidadoso, da mesma forma como fez no ringue, e é quase como se estivesse flutuando sobre o chão. E ainda assim soubesse o lugar exato onde pisar, qual o momento preciso para erguer o seu braço ou a perna, quando chutar, quando socar.
Admirá-lo nesta posição, de repente, me faz sentir exatamente como você se sente quando visita um lugar novo que tanto aguardava. Quando chega em um museu ao qual nunca foi e descobre novos quadros, tão lindos, bem pintados e representados que quase lhe arrancam lágrimas. Não é apenas bonito, é forte e significante. É sensual.
Ainda encaro os seus movimentos, sem piscar, quando o capitão Morris parece perceber meu olhar e se vira para mim. Ele abre um sorriso torto de quem pegou outra pessoa no ato de fazer algo errado. Merda!
Giro meu corpo de modo veloz para o ringue e me arrasto para dentro do quadrado. Me jogo deitada no tatame e fico ali por uns minutos, em silêncio e quase sem respirar, até que o ouço socar o saco de pancadas de novo. Certo, está tudo certo... Ele não me viu exatamente, viu?
Eu poderia rir das minhas atitudes, e é tudo bem engraçado. Há algum tempo não me sentia assim tão idiota olhando para um cara bonito. Até porque, veja só, é só o capitão praticando boxe, uma luta pela qual me interesso muito. Não é nada de mais!
Um gosto metálico se espalha em minha boca, mas não me lembro em que momento mordi meus lábios com tanta força – bem provável que enquanto socava o saco de pancadas com raiva. Fico por um bom tempo deitada no tatame, observando o teto de metal da academia, até que alguém bate com um único tapa leve no couro, o que me faz sentar em um pulo. Meus punhos se fecham de modo automático e me preparo para me proteger de quem quer que seja.
Mas é apenas o capitão Franklin Morris. Em seus lábios tem um bonito sorriso que dança em minha direção – é o tipo de sorriso que faz o estômago se retorcer, ou que as garotas bobas enganadas por ele chamariam de borboletas. Mas não a mim, é claro. Acho que já quebrei a cara o suficiente para estar vacinada contra homens e seus jogos.
— Gostou do que viu? — ele pergunta, e mesmo sendo uma brincadeira, parece bastante presunçoso.
De repente, sinto que vou rir da sua cara, mas tento pensar o tempo todo que não posso começar logo desrespeitando-o. Preciso de Morris, não posso estragar tudo agora antes de conseguir algo. Ainda mais, principalmente agora, que Nikita parece tão animado para começar a colocarmos nossas ideias em prática.
— Se estiver falando do treino, é claro... De resto... — solto um muxoxo e dou de ombros. Ele entorta os lábios uma nova vez e quase posso ver a língua se movimentar dentro da sua boca, a ponta passa sobre os dentes alinhados. Ele esfrega a boca com as costas da mão e encara os seus próprios pés por um segundo, antes de voltar seu olhar ao meu. Os seus olhos afundados nos meus fazem um arrepio percorrer por minha espinha de cima a baixo. Franklin é um tanto intimidador, isso é fato.
— Espero que isso funcione... — ele diz, ao mesmo tempo em que aponta para o seu peito nu, que tento não encarar demais. Mesmo que se movimente para cima e baixo, subindo e descendo, inflando e depois se acalmando, o que apenas faz seus músculos definidos se ressaltarem. Em seguida, ele aponta para o meu próprio peito, e eu entendo. Ele quer dizer entre nós, que funcionemos. E eu pretendo que isso aconteça, sem dúvida. — Só precisará se lembrar que, a partir de agora, sou o superior. Podemos e somos iguais dentro e fora do ringue. Somos iguais no estande de tiros, somos iguais em qualquer missão e dentro de qualquer escritório, mas preciso que se lembre que, no fim do dia, se reportará a mim.
Com um aceno de cabeça eu concordo, me levanto com velocidade e saio do ringue em um salto sobre as cordas; termino meu movimento gracioso ao parar em sua frente. Estendo minha mão direita e espero que entenda que o gesto significa uma trégua, para que as coisas funcionem mesmo entre nós. Frank logo segura minha mão com a sua e as aperta uma contra a outra de modo firme. Nossos corpos estão bastante próximos agora, tão perto a ponto de conseguir ouvir sua respiração, sentir seu hálito frio bater contra meu rosto, centímetros mais baixos que o seu. Se esticasse minha mão agora, poderia tocar seu tronco definido com as pontas dos dedos.
Quero que fique claro que pretendo de verdade transformar nossa parceira em algo que funcione, porque preciso disso de uma forma que ele nem imagina. Mas não posso me submeter a ser inferior a alguém, não dessa vez. Não pretendo ser apenas a mulher a quem alguém deve desposar, essa fase já foi e não funcionou muito bem para mim. Não posso ser só a esposa, aquela que deixará a casa em ordem, que irá aparentar algo que não é de verdade. Essa não sou eu, nunca serei.
Sou a única sobrevivente direta na linhagem de comando da Vory v Zakone agora, mesmo que nosso grupo não saiba que ainda estou por aqui. E Franklin pode não fazer ideia, mas não pretendo me reportar a ninguém. Logo, espero poder ser eu a quem devem se reportar, o quanto antes. — Sim, senhor — respondo firme. Me seguro para não bater continência, em tom de piada, mas talvez fosse um golpe baixo demais. Sei que ele não diz isso com objetivo de parecer um superior babaca, mas porque é necessário me mostrar meu lugar. Além do mais, prometi a Nikita que seguiria as regras, mesmo sabendo que tenho esse problema com atitudes que me fizeram chegar onde estou.
Encaro seus lábios bem desenhados, úmidos e perfeitos. Noto que não há nenhuma falha na pele, nenhuma rachadura. É claro que ele percebe que o encaro, de novo. Contudo, não viro meu rosto para disfarçar, não desvio o olhar.
De repente, Capitão Morris parece tão intimidado quanto estive há poucos momentos atrás. Noto que é exatamente o que queria. Respeito, limite. Ele é meu superior, sei disso, mas não é meu dono.
— Se depender de mim, isso tudo vai acontecer sem problemas, senhor. Mas não sou uma garota, preciso que se lembre que sou um soldado... e bem, um bem sem coração — digo entre risadas, e, com um olhar, Frank parece pedir permissão para me conhecer na breve diversão.
Enfim solto sua mão; minha palma está tão suada que nossos dedos deslizam facilmente uns nos outros. Seus olhos claros ainda me encaram, um misto de diversão e curiosidade os preenchem. Dou um tapinha de leve em seu ombro e o deixo sozinho, pois não acho que seria capaz de ficar muito tempo mais ao seu lado – não o suficiente para conseguir sustentar a energia que inunda o ar entre nós.

Dirijo o BMW M4 conversível que Nikita alugou em seu nome. Toda vez que paro, muitas cabeças se viram em minha direção. Quando me obrigou a entrar em seus planos sem questionar demais, essa foi a minha única exigência: eu precisava ter um carro imponente, precisava demandar respeito ou admiração.
As janelas do carro estão abertas e eu aproveito. O ar de Miami é quente, porém confortável, muito diferente do ar frio e seco de Moscou. Aqui, parece que a brisa te convida a se sentir em casa, a se sentir bem-vindo, e é tudo que eu preciso agora.
Ao contrário de mim, Nikita não precisou mudar o seu nome, afinal de contas, para os nossos soldados ele apenas se aposentou depois de tudo o que aconteceu. E convenhamos, após a morte da minha família, ele não teria sentido em continuar, a não ser que entrasse na linha para assumir o posto, algo que não faz muito sua cara. Dessa forma, ele inventou a história de que veio buscar abrigo em meio à Oryol nos Estados Unidos.
Nikita Goncharov não guarda segredos – ao menos é o que pensavam e diziam, o que ele precisava que todos pensassem. Eu apenas sigo as ordens por aqui, mas se fosse um dos soldados dos , também não piscaria um olho em desconfiança à Nikita. Qualquer outro sim, mas nunca a ele. E é por isso que não neguei quando ele disse que passaríamos a viver nesse conjunto de apartamentos, onde outros soldados e famílias da Oryol também vivem. Para mim, ainda é um tanto estranho que Alexander tenha nos aceitado com tanta facilidade, tenha se disposto tanto a nos ajudar.
Na mesma noite em que chegamos, a primeira coisa que Nikita fez foi entrar em reunião com Smirnov, e ficaram uma boa quantidade de horas em sua sala de reuniões na mansão gigantesca em Fisher Island.
A primeira coisa que pensei foi na morte iminente. Logo imaginei que ele estaria nos esperando com fuzis para acabar o trabalho porco dos Koslov. Nunca em mil anos imaginei que Smirnov poderia realmente ser alguém importante para a minha família. Entre eu, meus irmãos ou até mesmo minha mãe, nunca citávamos a Oryol. Agora sei que é bem provável que fossem questões políticas apenas.
E nessa mesma noite em que chegamos, enquanto eu ainda esperava ser fuzilada, Alexander nos enviou às pressas para um conjunto de apartamentos luxuosos em Coral Gables, de frente para o mar, com vista direta para a Island se você tiver um bom olho. Ele só queria que estivéssemos bem descansados o quanto antes, ainda mais depois de ouvir sobre tudo o que tínhamos passado até então.
E só viera nos ver uma vez, como o pakhan da costa da Flórida. Ele provavelmente deveria ser muito ocupado. Não sei quais as regiões a Oryol cobre com suas atividades, lícitas ou não, mas sei que Alexander administra tudo por aqui. Ele não tem o seu próprio Nikita, não tem um braço direito que pareça confiar, ou ao menos eu não o conheci.
Mas Alexander fez questão de me contar e reforçar várias vezes durante nossos poucos encontros que meu pai foi muito importante para seu sucesso e crescimento dentro de sua própria família, que foram as suas orientações que o fizeram chegar onde está agora, e lamentou, sinceramente, a sua morte. Ele não mentiu, tenho certeza disso, pois fui atingida em cheio pela veracidade de cada uma de suas palavras, e seus olhos de imediato me fizeram me sentir em casa.

Assim que entro no apartamento, depois de um fim de dia, jogo as chaves dentro do apartamento de vidro no móvel logo ao lado da entrada. Nikita foi gentil o suficiente para me deixar ajeitar as coisas à minha maneira. Mesmo quando sabia que eu não me importava em fazer qualquer coisa a não ser dar uns socos por aí, em quem quer que fosse.
O encontro no escritório, a porta aberta me dizendo que sou bem-vinda em seu espaço. Ele abaixa os óculos de grau até a ponta do nariz assim que me nota. Eu solto uma risada baixa, porque é muito estranho vê-lo debruçado sobre papéis e um computador, ao invés de lutando com espadas ou limpando armas pesadas. Nunca o imaginei como um rato de escritório.
— Isso é bom, não? — questiona, e assim que vê que não entendo, aponta para o meu rosto com seu indicador. — É apenas o seu primeiro dia e já está sorrindo... — dou de ombros e ele deixa escapar um suspiro pesado pelos lábios frouxos. — Em quem bateu hoje? Espero que não em seu superior... — ele murmura, e quase solto uma gargalhada em resposta.
Só não o faço porque, sempre que me permito qualquer diversão em exagero, meu coração se aperta em resposta, como se gritasse para mim que é errado que eu esteja tão feliz, que eu não mereço qualquer felicidade. A pior parte é que ele está certo.
— Nada de mais, tudo se encaixa aos poucos — digo em um tom baixo e balanço os ombros para cima e para baixo, num movimento de indiferença. Apesar disso, ele concorda com um aceno de cabeça, e não diz mais nada. Também não digo, por isso dou as costas e o deixo em paz.
Sei que, mesmo com tudo o que aconteceu, as coisas realmente se encaixam, pouco a pouco, até onde é possível se encaixarem. O sentimento da derrota diminui com o tempo. As feridas parecem começar a fechar e criar pequenas casquinhas que, apesar de incomodarem, mostram que a cura é possível, ainda que a cicatriz lhe faça lembrar de tudo o que aconteceu antes.
Acendo a luz do abajur logo ao lado da cama, encaro a lâmpada amarela e sinto os olhos pesarem. Somente agora percebo o quanto estou cansada e como isso é bom. Admiro o céu noturno de Miami para fora da janela; a maresia atinge minhas narinas como um abraço morno. É realmente diferente de Moscou, e amo essa discrepância. Embraço a escuridão do lado de fora, fecho meus olhos e volto a respirar o ar, com força, para que tome conta dos meus pulmões, por completo.
É isso.
Tudo está se encaixando.


FRANKLIN MORRIS


— Isso tudo já está ficando um pouco ridículo, não acha? — Jet pergunta. Seus olhos não encaram o meu cabelo arrumado, sem parar ou piscar. Ele se aproxima e tenta cheirar os fios; em contrapartida, eu o afasto com uma das mãos. — Yep. Completamente ridículo... Cara, a mina só chegou aqui tem um dia, qual é seu problema?
— Quem disse que isso é sobre ela? Isso não tem nada a ver com a Natasha — respondo sem pensar muito nas palavras que uso, mas giro minha cabeça em sua direção para lhe lançar um olhar de advertência. Jet se joga na cadeira giratória mais uma vez e se arrasta para longe, só para em frente à mesa que rapidamente organizei para minha nova parceira.
— Não tem nada a ver com ela, mas já não é oficial ou detetive... nem ao menos Ivanski... é só Natasha. Quantos minutos mais para começar a chamá-la de Nat? — ele questiona ao mesmo tempo que analisa os materiais de escritório que deixei sobre a mesa. Então, aponta com o dedo indicador direto para o meu rosto. — Sabe o quê? Você não pode apanhar de mulher, essa é a verdade... — ele argumenta. Em resposta, amasso uma bola de papel e jogo em sua cabeça.
— O nome disso, Richards... — aponto para minha própria cabeça. — É higiene pessoal. Sei que desconhece as palavras e ainda mais o seu significado... — ele para de me encarar tempo o suficiente para cheirar rapidamente embaixo do seu braço, mas vira o rosto em minha direção e dá de ombros, com uma careta despreocupada. Isso me faz rir, alto. — Estou falando sério, Jet... Não tem nada a ver com a garota, já pode parar com seu ataque de ciúmes, carinho — o chamo pelo apelido idiota, que só o irrita.
Mas Jetson gargalha alto em resposta e joga a bola de papel amassada de volta em minha direção. Alcanço a bolinha no ar e a jogo no lixo logo ao lado da mesa. Por um segundo, penso que deveria perguntar para ele qual deve ser a melhor abordagem para lidar com a chegada da garota, principalmente porque ele foi meu único parceiro na academia até hoje, e, se conheci e tive outros em minha equipe, todos os próximos foram homens. Nunca tive uma parceira mulher antes.
Mas antes que o pergunte, hesito e penso uma segunda vez. Tenho certeza que, se lhe fizer essa pergunta, não me deixará mais em paz. Por isso afasto os pensamentos e volto a organizar uns papéis sobre minha mesa, só para manter o controle da minha própria sanidade sem ter que surtar por qualquer coisa. Acho que não sou a melhor pessoa para lidar com o que é novo.
Para ajudar, as coisas não têm sido fáceis para a equipe. Na noite anterior, recebemos a notícia fodida de que McCarter foi assassinado dentro da sua própria cela. É bem provável que tenha sido algum dos seus colegas de prisão, armados com uma faca improvisada, e, assim que o viram, não pensaram duas vezes antes de lhe enfiarem a lâmina no pescoço e torcerem, sem dó. Se tem algo que McCarter tinha eram inimigos.
Não posso julgá-los por completo, é claro, eu não sei se faria diferente. Mas tem uma sensação ruim em meu estômago, uma raiva que eu não gostaria de sentir. Porque é claro, ele tinha que ser morto bem agora que começou a contribuir com as nossas investigações. E é difícil não pensar que isso foi armado... por quem? Não faço ideia. Poderia ser até mesmo pelo Sommers, porque, diferente desse desgraçado, o McCarter ao menos não nos lançava olhares de desprezo ou ignorava os investigadores que iam à sua cela. Sommers gosta de trabalhar com o tratamento de silêncio.
E se isso não é o suficiente para me enlouquecer, sinceramente não acho que mais nada vá ser. Por isso acho que, no fim das contas, é bem mais interessante concordar com Jetson sobre focar nesse novo projeto de parceria. Parece bem mais seguro para a minha mente. Porém, é claro, não posso me abrir sobre tudo isso com Jetson, nem admitir meu interesse em seu plano. Não assim na cara dura, ou ele não pararia de falar sobre como não posso deixar com que isso afete todo o resto, blablablá.
A verdade é que, bem lá no fundo, estou cansado de verdade de ficar pensando o tempo todo sobre Trey Sommers e como ele fodeu com a minha vida. É incrível que o bandido continue a me afetar dessa forma mesmo atrás das grades, mesmo impotente e diminuto. E, ainda assim, tão forte e corrosivo em minha alma.
Sempre achei que fosse capaz de superar tudo que me aconteceu com facilidade, e eu também imaginava que, assim que chegasse o momento onde enfiaria uma bala no desgraçado, o muro em meu cérebro que me protegia de sentir qualquer coisa indevida poderia desabar. Agora eu sei, aliás, tenho certeza de que isso não vai acontecer tão fácil sim. Apesar de que, para ser bem sincero, lá no fundo torça para que ao menos um pouco disso aconteça.
Atirar em seu joelho, algemá-lo sem dó, torcer seus cotovelos foi quase... prazeroso, o que é um pouco doentio, eu sei. Mas a experiência foi próxima ao surreal, porque eu precisei esperar tempo demais para isso. Sua vida entregue em minhas mãos, e, mesmo que tenha sido induzido a escolher o fim, foi poderoso. Brincar de Deus é algo que nunca precisei fazer antes, nem espero precisar nunca. Também devo isso a Jetson.
O encaro mais uma vez; ele está de pé e parece admirar os corredores do lado de fora da sala através da persiana clara. Eu devo muito a Jetson, nunca esquecerei disso.

─ Concordo com isso. Acho que faz bastante sentido prosseguir dessa forma, ainda mais depois do que aconteceu ontem... ─ Yond diz. Seu sotaque é forte; sua voz, dura, e me faz automaticamente pensar em minha parceira.
─ Claro que faz sentido, caramba ─ Jet completa o pensamento e desliza suas mãos sobre o mapa esticado sob a forte luz amarela em uma das mesas de metal espalhadas na sala. ─ Depois do que McCarter indicou estar por trás da merda toda... Além do mais, não acho que Sommers seja capaz de ir tão longe ─ ele diz e me encara, só para me ver contrair os ombros ao ouvir o nome do assassino de merda.
─ O que não deixa de ser um grande monte de bosta. McCarter iria nos entregar mais, eu tenho certeza disso... Podíamos ter ido tão longe só com aquele filho da puta ─ esfrego o queixo com raiva, a barba pinica nas pontas dos dedos. ─ Voltamos à porra da estaca zero agora...
─ Não zero, acho que podemos dizer da estaca um ─ Yond dá uma risadinha. Ele está certo. Apesar de degolarem o cara sem qualquer sinal de hesitação, quem o matou não faz ideia da grande ponta do iceberg que ele nos revelou – tudo que já imaginávamos, é claro, mas confirmado é sempre melhor.
Sempre houve algo muito maior por trás disso, algo bem além da polícia americana, o FBI ou as forças armadas dos Estados Unidos. Algo maior que todos nós juntos. E eu admiro a teia de aranha muito bem organizada que Yond marcou no mapa, sem saber como processar todas as informações. Estou prestes a jogar tudo para o alto quando sinto um cutucão em minhas costelas, que quase me faz saltar um passo para o lado.
─ Acho que sua parceira chegou ─ Jet murmura com uma risadinha escapando dos lábios, e lhe respondo um daqueles olhares de advertência tão comuns. Sinto que tenho feito muito isso ultimamente. Advertido o meu superior sobre a sua personalidade de merda.
Então, meu olhar flutua até ela. Ela está divina, tão maravilhosa como sempre esteve desde o momento em que a conheci. Natasha é bonita demais, e quem a vê sem conhecê-la deve logo de cara pensar que não é possível que seja real.
Bonita demais para seu próprio bem.
É só olhar em volta. Não sou apenas eu a admirá-la agora, mais de uma cabeça se vira quando ela passa. O mais curioso é que parece estar ciente disso, pois ignora todos os olhares que a perseguem ao se aproximar da nossa mesa. Assim que para em nossa frente, bate continência para todos presentes, o que prontamente devolvemos. Seus olhos passam pelos de Jetson e, então, param sobre os meus.
Sua expressão é tão séria que quase confunde meus pensamentos. Meu cérebro parece prestes a derreter apenas por pensar demais em sobre quem ela pode ser. É uma merda, mas acho que Jet está certo sobre eu não poder apanhar de mulher. Ao que parece, levar um soco bem dado no meio da fuça só me deixa mais curioso.
─ Capitães ─ ela diz, e aceno com a cabeça em retorno ainda ao encará-la. Com o canto dos olhos noto Jetson me observar; em seus lábios, brinca um grande sorriso cretino. Natasha parece ignorar sua expressão, muito embora seja bem clara para qualquer um. A mulher é a porra de um poço de gelo. Ela vira seu rosto para Yond e parece lhe dar um pequeno sorriso em cumprimento. O gesto me incomoda, sinto a garganta queimar um pouco. Afinal de contas, o que é que eu fiz de errado para receber um saco de gelo? ─ Soldado ─ ela diz para ele, que meneia a cabeça em resposta.
Por um minuto o ambiente fica silencioso. De repente, é quase como se o nosso assunto fosse proibido. Até porque, mesmo que Zayev a tenha indicado, não a conhecemos o suficiente, então segundas dúvidas são normais. Todo o esquadrão sempre fez isso, sempre torceu o nariz para os novos agentes? Imagine uma agente então. É uma porcaria machista, eu sei, mas acho que ainda não consegui torcer cotovelos o suficiente para mudar os velhos hábitos.
─ Bem... ─ Jet começa a dizer, e, no mesmo momento em que abre a boca, minha mão se fecha em punho, já preparado para qualquer bosta que sairá dali. ─ Acho que seria interessante, Frank ─ ele gira seu corpo em minha direção, ainda sorrindo como um desgraçado ─, acompanhar a senhorita Ivanski para conhecer o edifício, as salas, os melhores lugares para dormir... ─ ele pisca para Natasha, que apenas ergue uma das sobrancelhas e aponta o queixo para o nada, como se estivesse incrédula com a proposta do superior. Jet retrai os ombros, o que significa que as coisas agora ficaram mais divertidas. Ele pisa em meu pé em um movimento discreto, acertando bem o dedo mindinho.
Filho da puta!
─ Interessante mostrá-la também os últimos arquivos, Morris. É imprescindível que esteja inteirada dos últimos acontecimentos ─ ele diz. Concordo com um aceno de cabeça e limpo minha garganta com um pigarro forte.
Me viro na direção de Natasha e, quando nossos olhos se encontram, sinto como se uma onda enérgica corresse desde meus braços até as pernas. Preciso pensar um minuto para organizar as palavras em minha mente. Há um protocolo a seguir e estou agradecido por isso, pois não sei se seria capaz de agir qualquer coerência caso tivesse que fazer as coisas por conta própria.
É incrível e também bastante idiota. Poucas semanas atrás estava gritando com o meu melhor amigo sobre a importância de ser autossuficiente e todas essas porcarias, de ser orgulhoso o suficiente por estar sozinho e não precisar de ninguém, não cobiçar nada. E agora estou aqui, desejando com afinco que a mulher que conheço há apenas dois dias me ache legal. É tão, mas tão estúpido! E eu odeio ter que concordar com Richards mais uma vez.
─ Me acompanhe, por gentileza, agente ─ digo, e é tudo que sai da minha boca.
Caralho! Eu sou uma vergonha mesmo!
Ando devagar, um pé atrás do outro, até que ouço os passos da minha parceira logo atrás de mim. Espero que me alcance. É melhor estarmos lado a lado, eu acho, principalmente se eu estiver agindo como um babaca. Pela sua expressão fria, acho que estamos tranquilos até agora. Natasha está focada em seu trabalho, é tudo que eu preciso para fazer isso funcionar.
Bem ao fundo, ouço Jet soltar um “yep”, lento e debochado como só ele sabe provocar, mas não olho para trás. Se quero dar um soco em sua boca? Sim, mas não me dou ao trabalho agora. Acho que é melhor seguir com o que preciso, assim será tudo mais fácil. Seguir ordens é algo que sei fazer bem.

Começo a levar Natasha pelos corredores. Apresento alguns agentes que acho que a farão bem um possível círculo de amizades, e também é bom aliviar o clima tenso que os caras insistem em pesar no ar entre nós. Alguns são uns cretinos de merda e nem sequer conseguem disfarçar o interesse apenas na mulher, não em seu potencial.
Passamos pela porta do General Nixon e indico o local, ainda que saiba que ela já esteve dentro de sua sala antes. Apenas sigo o protocolo de reforçar certos lugares como importantes a “lembrar” ou “esquecer”.
Como seu parceiro, sinto que tenho a liberdade de ser mais honesto com ela do que com outros agentes. Até mesmo porque, ainda que só sua presença me cause confusão mental e sudorese em exagero, quero que Natasha se sinta confortável em casa, já que sua casa de verdade está a milhares de quilômetros de distância daqui. Ela não precisa se sentir ainda mais deslocada do que isso.
Por alguns momentos, penso se realmente devo mostrá-la todos os locais para escapar. Acho justo que sim, e escolho um lugar em específico que sempre me ajuda a pensar quando preciso de um tempo. Também é justo para ela que saiba onde me encontrar caso precise de mim. E só há três lugares onde o fará, além de nossa sala. Ou a sala de arquivos, ou o telhado, ou os tatames, mas acho que desse lugar ela já desconfie.
Abro a porta da sala de arquivos e espero que entre. Assim que o faz, entrego seu cartão de acesso às principais salas. Natasha me encara direto nos olhos, parecendo emocionada, como se meu gesto fosse algo muito importante. Reforço seu olhar com um aceno de cabeça, porque ela está certa – cada degrau que subimos na corporação é algo muito importante, mesmo que seja um cartão de acesso. E é assim que quero que se sinta, como qualquer outro do time. Todos devem se sentir importantes.
─ Não passamos muito tempo aqui de verdade, porque os arquivos quase sempre chegam até nós, mas... particularmente falando, eu gosto de passar um tempo aqui às vezes ─ eu digo. Chacoalho meus ombros, indiferente, mas a observo enquanto caminha pelos corredores de estantes. Seus dedos alisam com delicadeza as tampas das caixas de evidências e casos.
─ Por quê? ─ ela pergunta ao que gira seu corpo em minha direção em um movimento rápido, tão preciso que nem mesmo se desequilibra. Respondo com uma careta, mas respiro fundo e deixo que cada miligrama de ar escape pelo nariz devagar; uma risada tímida parece querer tomar conta da minha face. A bendita me pegou de surpresa.
─ Não sei, não de verdade... ─ respondo, mas ela ergue as sobrancelhas e... caramba, isso é um sorriso que vejo em seus lábios? Ah, está duvidando de mim! Ergo minhas mãos em rendição, uma risada baixa escapa da minha garganta seca. ─ Hmm... é um lugar quieto, eu acho. Não há muitos desses por aqui. É sempre tão lotado de gente, pra caralho. É bom pra pensar ─ explico, e Natasha acena com a cabeça. No próximo instante, volta sua atenção para os arquivos mais uma vez. ─ Não é o único lugar se você procura por silêncio, é claro, mas é o mais próximo ─ eu penso em voz alta. Também me aproximo das caixas, mas não é nos documentos que presto atenção, mas sim nela, miúda entre as estantes de metal, seu cabelo que parece tão macio descendo pelas costas. ─ De qualquer forma, acho bom você estar familiarizada com essa sala também ─ ela volta a concordar com um aceno.
Como solicitado por Jetson, mostro alguns dos arquivos importantes em que estivemos trabalhando nos últimos tempos. Indico para ela que voltaremos a falar mais tarde sobre McCarter e Sommers. Meu estômago revira em pensar sobre reviver todo o histórico com Trey mais uma vez. Só consigo relaxar minha mente ao me lembrar que não preciso contar nada para ela, não agora.
Depois de mais um tempo entre as caixas e estantes, voltamos para a nossa sala. Deixo que Natasha fique à vontade com o seu espaço, na expectativa que se assente com facilidade ao local.
─ Você pode deixar como quiser, sabe... Quero dizer, com a sua cara e personalidade e... tudo mais ─ gaguejo para ela, que admira os materiais arrumados sem muita precisão. Não sei se está de acordo com suas expectativas, mas espero que esteja surpresa por eu ter arrumado o seu lugar. E, conhecendo bem os caras por aqui, não acho que qualquer outro teria feito o mesmo.
─ E como seria minha cara, capitão? ─ ela pergunta, me surpreendendo mais uma vez com sua pergunta.
Como diabos eu vou saber o que seria sua cara? Ainda mais agora, quando tudo que vejo é uma cara muito linda. Só que não posso dizer isso a ela. Vai parecer uma puta crueldade dizer que é só uma cara bonita, quando deve ser muito mais. Eu só não a conheço o suficiente. Ainda.
Que merda!
Não vou cair em seu encanto, é claro que não. E sei que está me testando, eu já vi isso antes e sei que funciona. Mas não vou permitir que funcione comigo. Quem cai nos contos da carochinha com as mulheres é sempre o Jetson, nunca o Frank. Dessa vez não será diferente.
─ Acho apenas que você dirá a verdade, agente ─ respondo, sem planejar uma resposta que pareça pronta demais.
A cada segundo que passa, a sensação de mistério preenche ainda mais o ar entre nós. Natasha me encara com seus olhos de um jeito profundo, como se estudasse a alma além da carcaça. Aperto os dedos, minha mão já em punho, como se todo meu corpo ficasse em alerta repentinamente.
Eu não sei quem ela é, mal sei de onde veio, apenas o que li em sua ficha. Tudo que aprendemos até hoje um sobre os outros, desde a academia, levou tempo. Relacionamentos não são, nunca foram, construídos do dia para a noite. E se quer saber a verdade, não me lembro como é fazer isso, não de verdade.
Nem mesmo consigo acreditar que eu seja capaz de construir algo com alguém. Seria preciso ter muita coragem para destruir a cabeça de alguém tanto quanto já consegui destruir a minha própria ao longo dos anos.

Natasha começou a organizar sua mesa, enfim. Ela parece deixar tudo de acordo com o que é coerente para ela, mas fico satisfeito com o meu trabalho ao notar que deixa muitas das coisas que eu organizei anteriormente no mesmo lugar. Poucos minutos atrás achei que tudo o que quisesse era que ficasse confortável aqui, mas ledo engano! Acho que eu é quem não queria me sentir tão intimidado com a sua presença no que antes era apenas meu espaço. Até então, acho que tudo deu certo.
Espero até que termine de ajeitar todas as suas coisas. Durante todo esse tempo, eu a encaro com o canto dos olhos. Tento fazê-lo com discrição, na expectativa de que não me pegue no flagra. Eu acho que morreria de vergonha. Também tento não encarar demais, não quero que as coisas pareçam erradas ou, então, estranhas. Não quero começar com o pé esquerdo.
Mas quanto mais tento, mais parece que pioro a situação. Minha cabeça lateja por pensar demais. Assim que ela termina, chamo para que venha até a minha mesa. O melhor que posso fazer nesse momento, de modo que não gele ainda mais o ambiente frio, é mostrar o que temos até então em nosso caso. Talvez ela tenha algo a agregar.
A sensação é bem estranha, como se eu fosse abrir os arquivos mais pessoais para um forasteiro totalmente desconhecido. Preciso me acostumar com a ideia de que, a partir de agora, essa mulher irá saber tudo o que sei, que estará no lugar de...
─ Ei, vocês! Finalmente... ─ Jetson! O filho da puta é como um tabu. Não podemos falar sobre o seu nome que isso aparentemente o convoca das profundezas de qualquer lugar. ─ Capitão Morris, agente Ivanski, vejo que já abriram os arquivos do caso de McCarter.
─ Não exatamente, Capitão Richards ─ digo, minha voz endurecida pela interrupção inesperada. Ele me encara, posso ver as insinuações dançando no fundo dos seus olhos. Ele quer dizer algo a mais, algo espertinho. Apenas ergo uma sobrancelha, o advertindo antes que o faça. Jet me responde com um aceno discreto. Aponto a cadeira em frente à minha mesa para que se sente, o que ele faz com agilidade. ─ Ia começar apenas agora a mostrar os arquivos para a agente.
─ Perfeitamente. Não se incomodem com a minha presença, certo? ─ ele pergunta com um sorriso cálido, e falso se eu bem o conheço. Rolo meus olhos para o lado, já incomodado. Mas Natasha nega com a cabeça; seus cabelos presos num rabo de cavalo apertado no alto das raízes balançam de um lado para o outro. ─ Certo, então! Pode começar, Franklin ─ Jetson diz ao mesmo tempo que dá um leve tapinha na cabeça. Sinto meu corpo dar um pulo baixo em sobressalto.
Eu estava encarando, que merda! Não seja esquisito, Franklin.
─ Certo... ─ abro as pastas e as folheio até onde quero chegar, espalho a resma de folhas sobre minha mesa para que Natasha possa observá-las com mais atenção. ─ Começamos aqui... ─ falo já com o dedo apontado para um pequeno mapa que indica Boca Raton. ─ Prendemos Reginald McCarter no Royal Palm, um yatch e country club, na região sul de Boca. Acho que já deve ter visto algo com Yond sobre isso ─ ela concorda com um novo aceno. ─ É uma região bastante rica e familiar, ainda não sabemos o porquê da escolha desse lugar exatamente... ─ dou de ombros, noto que ela presta atenção nos detalhes dos arquivos, como um bom investigador faria.
─ Ele estava arrumando as malas, e como até o momento imaginávamos que se escondia ali exatamente por ser um local familiar, escaparia para Fort Lauderdale na primeira oportunidade e pegaria o voo seguinte para as Bahamas... e aí já sabe, nunca mais o veríamos ─ Jet completa minha explicação. Natasha encara meus olhos como se estivesse um pouco perdida nas localizações, então aponto para o mapa, logo acima da região central de Miami, onde Fort Lauderdale fica. Ela não conhece os Estados Unidos como nós, por isso precisamos ser mais delicados com o tanto de informação que jogamos para ela e sua cabeça compreender.
─ E junto a ele prendemos também um assassino convicto, além de traficante internacional... Trey Sommers... ─ engulo com força ao dizer seu nome, a saliva é grossa e pesada, desce dolorida por minha garganta, e preciso forçá-la para baixo. Entrego o arquivo de Trey para Natasha, esperando que não note o meu nome na lista das “vítimas” que Sommers fez ao longo dos anos.
─ Um bastardo de merda, se quer saber! ─ Jet ressalta e sinto como se a minha respiração falhasse. Não sei como reagiria se ele contasse tudo agora.
Natasha vira seus olhos para os dele. Pigarreio, um pouco alto demais, mas é o suficiente para fazer com que ela volte sua atenção para mim e o assunto, o que faz seus olhos ficarem um pouco mais suaves e relaxados.
Me pego pensando se ela já faz parte da grande lista de mulheres que conheço que desprezam Jetson e sua personalidade solta e fácil. Não é muito difícil de imaginar por que isso acontece com frequência. Seu ego quase salta garganta afora, e não consigo imaginar por que uma mulher iria gostar disso.
─ Compreendi. Qual é a ligação entre Sommers e McCarter? Yond me adiantou algumas coisas sobre o assunto depois da nossa reunião com o General, é claro, mas deixou os detalhes para que vocês preenchessem ─ ela diz, e mais uma vez sua atenção está grudada sobre a papelada.
─ Sommers comandava alguns cartéis no nome do McCarter. Ele é o segundo no comando, algo assim... Estávamos próximos de saber até onde a linha do Trey ia, e McCarter já tinha começado até mesmo a colaborar conosco.
─ Acho que esperava diminuir sua pena de centenas de prisões perpétuas ─ Jet interrompe, rindo pelo nariz. Eu o calo com um olhar, e ele concorda.
─ Mas algum desgraçado acabou com a vida do cara na noite passada ─ Natasha arregala seus lindos olhos em minha direção. Jetson gesticula como se cortasse o próprio pescoço, enquanto finge engasgar.
Quase dou risada da sua idiotice, apenas porque sei o quanto ele quer fazer parte, mas ela o encara com um olhar tão duro que eu me seguro. Aperto meus lábios, como se fazer ainda mais força fosse me segurar de não gargalhar da cara de idiota que Jetson faz agora. Ele não está mesmo acostumado com as mulheres o deixando tão sem graça o tempo todo, por algum motivo que eu nunca vou entender. Elas sempre riem de suas piadas, não importa o quão sem graça.
─ Enviamos isso a um esquadrão para investigação. A causa mortis é óbvia, o pescoço está completamente degolado... mas precisamos da confirmação no papel ─ explico. Entrego o envelope com as fotos que recebemos da cena do crime. Ela não se surpreende com a crueldade da cena, e estou indeciso se acho isso atraente ou preocupante. ─ O que realmente importa agora é o que temos até o momento, e é claro, como partiremos daí...
─ É onde o seu conhecimento Russkiy começa, agente.
Natasha ri baixo, com vontade, e encara o chão murmurando alguma coisa que não entendo. Mas não me seguro e dou risada junto com ela, e não porque entendi qualquer coisa. Mas porque sei que, não apenas a atitude, mas o sotaque russo de Jetson é horrível. Me levanto em um movimento único e rápido.
─ Capitão, acho melhor ficar com o inglês por enquanto... ─ eu afirmo, e Jetson responde com uma careta irritada. Me viro para a agente; ela morde o lábio inferior parecendo ainda se segurar para não rir. Quando Jetson a olha, ela apenas dá de ombros.
─ Desculpe, senhor... ─ ela diz e, no segundo seguinte, explode em uma gargalhada, não conseguindo se conter. O som é tão bonito quanto ela. Jetson acaba por não conseguir manter sua pose e ri também.
─ Está certo ─ Richards acaba meneando sua cabeça em concordância. Ele também se levanta, por último. Natasha nos acompanha e também fica de pé. ─ Bem, já que acabei de estragar nossa reunião com minha tentativa poliglota, acho que podemos fazer uma pausa... Preciso mesmo de algo para beber. Capitão, agente ─ ele dá um aceno de cabeça e sai, nos deixando sozinhos mais uma vez.
─ O capitão sempre trata a todos assim? ─ Natasha questiona assim que quase não ouvimos os passos de Jetson ao se afastar da porta.
Hmm, sim ─ eu afirmo e ela ri baixo em resposta, sua risada faz os pelos do meu braço se arrepiarem. ─ Jetson é muito competente, é claro, mas se estiver muito confortável perto de você, vai agir como um completo idiota ─ eu explico, e ela concorda em silêncio. Bem, quem nunca riu da cara do seu superior? E, bem, se o seu superior for o Jetson, isso pode parecer ainda melhor. ─ De uma coisa o Capitão Richards está certo, podemos pegar algo para beber ─ aponto para a porta, seus lábios se abrem um sorriso doce e gentil.
Oh, merda!
Só aqui percebo que estou quase dando uma de Jetson, passo tempo com ele demais para acabar copiando os seus passos. É claro, fiz um convite de forma intuitiva que, infelizmente, para outras pessoas poderia soar de outra forma. Mas ela entende, por isso concorda.
─ Tem uma cafeteria boa no andar de cima, acho que podemos pegar um café, o que acha? Eu quero... ─ Que merda! Quando foi que desaprendi a escolher as palavras que quero dizer, e pior, quando comecei a gaguejar? Respiro fundo para reorganizar meus pensamentos. ─ Quero te mostrar um lugar especial. Vamos pegar o maldito café, ok?
Natasha ri do meu enrosco, mas me acompanha quando caminho em direção à porta.

─ Não sei como prefere o seu café, mas o latte deles é sensacional ─ conto enquanto lhe entrego o copo fumegante. Ela o segura com firmeza entre as mãos e sorve um pequeno gole em seguida. Seus lábios se abrem em um sorriso, então sei que acertei no pedido.
Subimos os degraus dos últimos andares do prédio – o elevador não chega aonde quero levá-la, por isso precisamos pegar as escadas. Abro a porta enferrujada quando chegamos no topo. O ar é mais uma brisa quente do que realmente vento, mas o sol não parece muito forte no alto do céu. O clima é sempre bom por aqui.
Acompanho Natasha até a borda do prédio, apoio o saco com bolinhos que peguei na cafeteria e também o copo de café na sacada. Admiro o oceano no horizonte. Da borda do edifício é possível enxergar boa parte da South Beach e das Venetian Islands, é muito bonito e pacífico.
─ Eu nunca tinha visto o oceano antes ─ ela diz, de repente.
Eu a encaro. Meus olhos devem parecer tão surpresos quanto os dela parecem apaixonados pela vista. Seu olhar é vivo, cheio e pesado com lágrimas que parecem de emoção. Ela está mais bonita que nunca.
─ Está brincando, não é? ─ pergunto, ainda meio bobo, mas ela ri e nega com a cabeça.
─ Não, quer dizer... o mais próximo que cheguei a ver o oceano foi em São Petersburgo, mas ali é apenas um golfo... isso... ─ ela aponta para o horizonte. ─ Isso é surreal... ─ ela suspira.
Abro o saquinho com os doces, pego um bolinho e enfio inteiro na boca, ainda perplexo demais para dizer qualquer coisa.
─ É impossível... ─ digo, com a boca cheia de massa.
Ela ri divertida da minha cara de idiota. Estendo o saco em sua direção; ela pega um doce com muito mais delicadeza do que fiz e o come em partes, de vez em quando tomando um gole do seu café. Até onde seu olhar pode ir, ela admira.
─ Por que me trouxe aqui? ─ Natasha pergunta. Em resposta, dou apenas de ombros. Para ser sincero, também não sei. Eu disse que tinha apenas quatro lugares onde as pessoas poderiam me encontrar, mas nunca compartilhei esse com ninguém.
─ É como a sala de arquivos, mas é... bem, até agora era apenas meu ─ digo. Ela faz um sinal com a cabeça ao me olhar, e seus olhos parecem bem agradecidos. ─ É um lugar bonito, é bom para pensar... Gosto de vir aqui quando não sei como prosseguir com algum dos casos ─ eu explico. Natasha parece absorver minhas palavras, ainda se deslumbrando com a vista ao redor. ─ Além do que, aqui eu geralmente consigo ficar longe do Jetson.
Ela se vira para mim e gargalha alto. Seu rosto é ainda mais bonito à luz do sol.
─ Obrigada por isso, capitão. Espero que possa usufruir da vista de vez em quando...
─ Fique à vontade, e por favor, me chame de Franklin! Acho que também vamos conseguir trabalhar melhor por aqui, ao menos enquanto você reluzir demais... ─ me arrependo do que digo no exato momento em que falo. Natasha me encara, seu olhar é confuso.
─ O que quer dizer com isso? Sou um brinquedo brilhante?
─ Não, é claro que não, não. Eu quis dizer que... ─ gaguejo sem nem ao menos conseguir respirar direito, mas então ela ri. Ao mesmo tempo, pega outro bolinho do saco e enfia inteiro na boca, sem pestanejar.
─ Relaxa, Franklin, estou brincando com você ─ ela diz com a boca cheia. Devo ter ficado com a minha própria boca aberta, sem palavras, porque sinto meu maxilar começar a doer. Ela termina de mastigar e pega a pasta que trouxe conosco, a abre e começa a ler em silêncio. ─ Então, qual é minha parte russa nisso tudo? ─ questiona. Só então descongelo da minha posição e volto a me mover. Me aproximo da mulher e olho o arquivo com ela.
─ Primeiro de tudo, a ideia é total de Richards e Zayev ─ eu digo, e noto que ela está me olhando com o canto dos seus olhos, como se tentasse não ser pega no pulo também. ─ Só pra constatar, caso não goste ─ eu digo, ela solta uma risadinha pelo nariz. ─ McCarter começou a delatar algumas coisas sobre a equipe dele, bem importantes na verdade... Por fim, ele acabou confirmando o que já imaginávamos há algum tempo. Tem gigantescas chances de que Reginald e seus capangas estivessem, de alguma forma, envolvidos com a Bratva ─ finalizo. Ao meu lado, sinto o seu torso se endurecer até quase virar uma pedra sob o sol.
─ A máfia russa? ─ ela pergunta, como se ainda duvidasse do que eu digo. Sua voz é tão dura quanto seus ombros, mas meneio a cabeça em concordância e ela parece segurar o ar. Não consigo nem mesmo imaginar por que parece algo tão preocupante para ela.
─ Até onde sabemos, sim... Reginald nos confessou que tinha começado a negociar com uma equipe muito maior do que pensávamos até o momento. Depois de analisar outras evidências que encontramos em sua mala na prisão em Boca Raton, achamos uns recibos vindos de uma conta em Moscou ─ eu conto, quase perdendo o fôlego só de pensar no quão longe podemos ir com esse caso se tudo se encaixar.
─ Minha nossa ─ ela exclama com um suspiro pesado.
─ Pois é... Por isso precisamos do seu conhecimento, do Yond também, para irmos atrás de alguns nomes que McCarter nos indicou. Já que o desgraçado do Sommers não parece que vai abrir a boca tão cedo, é bom termos duas pessoas no time que saibam do que falam ─ afirmo. Ela balança a cabeça em concordância, analisa os arquivos por mais uns minutos e os fecha.
─ Capitão...
─ Frank, me chame de Frank. Somos parceiros, Natasha.
Ela concorda mais uma vez e sorri. Anda até a borda do prédio e admira a praia ao longe mais uma vez. Parece calcular o peso das suas próximas palavras. Eu estremeço antes mesmo de ouvi-las.
─ Frank, isso é... eu não sei, de alguma forma, pessoal para você? ─ ela questiona, e meus ombros se retraem ao mesmo tempo que o peito pesa com sua pergunta, mesmo com a delicadeza com a qual perguntou. Então imagino que ela deve ter percebido sim o meu nome na lista. Ela só não sabe o motivo, não precisa saber.
─ Não ─ respondo. Mesmo que seja uma mentira, é o que preciso responder. Ela balança a cabeça de novo e não diz mais nada. ─ Não é pessoal de verdade, eu só... só quero acabar com essa merda de uma vez ─ explico. Natasha pega o saco vazio e os copos; eu entendo sua mensagem. O tempo calmo ali acabou. ─ Vamos voltar para dentro, agente. Antes que o Capitão Richards se dê conta de que sumimos e não pare mais de encher o nosso saco.


NATASHA IVANSKI


Quando suas motivações são pessoas, tudo se torna muito mais fácil de repente.
Partes que antes pareciam escuras demais começam a se iluminar e te mostram qual o caminho a seguir, ainda que a luz possa muitas vezes ser vermelha. E o que parecia ser impossível de ser conectado a qualquer outra coisa, agora está ali, bem à sua frente.
─ Me diga se entendi direito. O seu superior tem uma ligação com um preso, que é americano, mas está diretamente ligado com a Bratva? É isso? ─ Nikita pergunta, e eu concordo com um gesto de cabeça animado. Um largo sorriso parece rasgar meus lábios, de tanta empolgação.
─ Isso não é a melhor coisa que nos aconteceu nas últimas semanas? ─ indago de forma retórica, mas Nikita faz um gesto com a cabeça, indicando que pensa que isso tudo é “mais ou menos” interessante. ─ Nikita, por favor! ─ eu exclamo. Ele me encara com o semblante sempre endurecido demais. ─ Não sobrou ninguém da nossa família, eu não sei qual foi o fim de... ─ engulo a saliva grossamente, minha garganta quase fica dolorida com o ato. ─ Não sei se Nikolav e Katya tiveram um fim em paz ─ eu digo, de maneira dura, e é o suficiente para Nikita suavizar o seu semblante. ─ Então chego nesse país que é um absurdo de diferente do meu, nesse lugar que eu não acho que poderia jamais fazer parte... e aí descubro agora que tenho um pé, apenas um dedo do pé dentro da Semyonova…
─ Ok, ok. Mas como tem tanta certeza de que esses tais McCarter e Sommers tem a ver com a Semyonova? ─ ele questiona ao abrir o seu laptop para, muito provavelmente, pesquisar sobre os dois bandidos. Eu sorrio friamente para ele e alcanço meu telefone, mostro as fotos que tirei na tarde anterior assim que Franklin me deixou sozinha na sala.
Ao que tudo aparenta, minha pergunta sobre o seu envolvimento com o caso ser pessoal demais o incomodou o suficiente para sumir o restante do dia. Não sei por que me senti tão incomodada com o sofrimento em seus olhos, mas talvez acho que, por algum momento, enxerguei em Franklin o mesmo que havia dentro de mim. Foi o suficiente para entender que tudo isso é uma grande merda.
─ Se reparar bem, tem um pequeno símbolo no canto dos recibos que Reginald recebeu dos seus comparsas de forma recorrente. Consegue ver? ─ pergunto e dou zoom na tela do aparelho para que Nikita veja melhor o que quero dizer. Seus olhos se arregalam por um segundo quando ele vê, então gira o seu rosto para o meu. São as malditas estrelas. ─ Não sou uma idiota, Goncharov. Aquela menina babaca de um ano atrás não está mais aqui... Pode não confiar totalmente nos meus instintos, Nikita, mas eu tive tempo suficiente para conhecer tudo o que preciso sobre os malditos Koslov. De uma coisa, pode ter certeza, eles mal sabem o que os espera!

─ Isso, com certeza, é muitíssimo interessante ─ Alexander diz. Ele apareceu para jantar conosco esta noite. Nikita aproveitou para mostrar as fotos que tirei dos arquivos de Franklin para ele. Ao menos ele pareceu mais animado do que o instrutor quando mostrei as mesmas fotos mais cedo. Seu sorriso é fraco em minha direção, mas é o suficiente. ─ Yond me disse algo do tipo, mas é ótimo que veja por si mesma...
─ Acha que poderemos chegar em algo mais aprofundado com isso? ─ Goncharov pergunta, o que me faz encolher os ombros, com receio do que podemos ouvir da boca do pakhan que nos acolheu sem pensar duas vezes.
Sempre que a desconfiança começa a tomar conta, costumo pensar que foi muito gentil da parte de Alexander Smirnov ter nos recebido com os braços tão abertos. É óbvio que minha mente está sempre alerta para uma possível traição, afinal de contas, nesse mundo é preciso ser um grande idiota para confiar totalmente em alguém. Eu aprendi isso na própria pele.
Me pego pensando todo o tempo se Alexander não teria segundas intenções em nos acolher assim sem pedir algo em troca. Até mesmo porque ele sabe que meus pais estão mortos. Também sabe que a Vory v Zakone está sem um líder até o momento, já que Nikita negou assumir o posto de papa, o que nos torna alvos muito fáceis de lidar.
Por outro lado, Nikita tenta sempre me relembra que tem seus olheiros vigiando os Smirnov a todo o tempo, para que nada passe despercebido por nós. E mesmo que Alexander esteja no comando da Oryol há bastante tempo, Nikita tem um grupo grande de parceiros e aliados que não o deixariam na mão. Nisso sei que posso confiar, pois, se há alguém em quem posso depositar todas as minhas forças e fraquezas, é Nikita. Ele jamais nos trairia.
Ele é o nosso elo mais forte agora. É bem comum que toda a família deste mundo sombrio sempre tenha aquele alguém em quem descarregar suas dúvidas e falhas; da nossa família, essa pessoa sempre foi Nikita. E não por ser conselheiro do papa por toda a sua vida, mas também porque era o melhor amigo da mama antes mesmo que nossa família se formasse, além de ter feito questão de nos apadrinhar como instrutor, de ser o mentor de Niko. Eu o confio minha vida.
─ Creio que sim. Com a menina lá dentro, bem posicionada como está, logo abaixo do capitão, há uma grande chance de chegarmos mais rápido nas informações que precisamos... o que não contarem para ambos ela e Yond, tenho certeza que Natasha saberá através do seu superior ─ Alexander me olha com o canto dos olhos e pisca, seus lábios voltam a se erguer em um sorriso. É o que preciso, sua confiança é o suficiente. Confiança em meu potencial, de forma que eu tenha certeza que sigo na direção certa.
─ Isso é bom ─ eu digo. Inclino o corpo sobre a mesa para alcançar a garrafa de vinho na borda oposta, sirvo uma taça e tomo um grande e saboroso gole.
─ Não é vodka que deveria beber como água? ─ Alexander pergunta entre uma risada, e eu o encaro com incredulidade. Nikita ri alto, uma gargalhada grossa e, ao mesmo tempo, divertida. Acabo o acompanhando, só para não ficar um clima estranho. O pakhan também ri, entrando em nosso ritmo.
─ Estamos apenas tentando nos adaptar ao seu estilo de vida, senhor ─ eu digo, assim que me sirvo de outra colherada de ervilhas. Ele concorda com um aceno de cabeça e mastiga ruidosamente o seu bife. ─ Acho sim que meu acesso facilitado aos arquivos mais seguros irá acelerar os nossos planos ─ falo e ambos concordam com um meneio de cabeça. ─ Além disso, Yond estará o tempo todo conferindo o que quer que eu possa deixar passar, irá preencher qualquer lacuna que possa permaneça em minhas pesquisas. Ele está lá há mais tempo, conhece bem os outros detetives...
─ Com certeza ─ Alexander afirma. Ele dá um grande gole em sua taça de vinho e limpa a boca no guardanapo de tecido que estava em seu colo, e parece pensar com cuidado no que falar a seguir. ─ Admito que fiquei um pouco receoso quando me apresentaram essa ideia, Natasha ─ ele gesticula com a mão, como se tentasse organizar suas palavras no ar, como se mesmo isso fosse muito delicado. ─ Mas acho que as coisas serão mais fáceis com você por lá. Ainda mais como parceira de um capitão com o histórico desse rapaz...
─ O que quer dizer com isso? ─ disparo sem pensar e o encaro com mais intensidade.
─ Que você é uma mulher muito graciosa, tem muitos atributos que podem favorecer nossos planos ─ ele diz simplesmente, o que me deixa bastante irritada. Bato a palma da mão com força sobre a mesa; Nikita, do outro lado, me lança um olhar de advertência.
─ Com todo o respeito, Smirnov, não sou um objeto ─ afirmo ao apoiar os meus cotovelos na mesa. ─ Não sou o pakhan da minha família, não até agora, mas isso não me faz interior a qualquer outro detetive da corporação... nem mesmo dentro da Vory v Zakone. Eu poderia enfiar a faca no pescoço de qualquer homem sem que ele nem mesmo saiba que estive ali. Inclusive do senhor, se quisesse, nesse exato momento ─ eu silvo com ódio. Alexander me encara em silêncio, e Nikita parece suar frio ao meu lado.
Sei que não devo jamais enfrentar um pakhan em sua própria cara, mas não quero que me veja como um ser diminuto por ser mulher, seja perto deste homem ou qualquer outro. Vivi o suficiente com Sergei, e nunca abaixei minha cabeça para ele, ainda que fosse meu pai, mesmo que isso tenha me causado alguns bons problemas.
Eu e Alexander continuamos a nos encarar. Não pisco, mas aguardo pelo momento onde simplesmente saberei que terei ferrado com tudo. Mas o momento não chega, pelo contrário, sou surpreendida por Alexander gargalhando alto, seus olhos quase dançam com os sons que saem de sua boca. Ele se diverte tanto com isso que parece quase ter uma dor de barriga.
─ A língua dela é bastante afiada, não? ─ diz o pakhan ao se virar para Nikita, que também ri, parecendo muito desconfortável em seu lugar. Eu mantenho meu olhar sobre o homem, mas não dou risada. Não entendo o que pode ser tão engraçado. ─ Fique tranquila, senhorita , eu confio em você. E conhecendo Nikita tão bem quanto conheço, tenho certeza absoluta de que poderia sim torcer uma faca em meu pescoço antes mesmo que pudesse rogar uma praga sobre o nome de sua família ─ ele afirma. Eu concordo, relaxando os ombros, enfim. Volto minha postura ereta na cadeira e Nikita parece respirar normalmente, quase aliviado.
─ Peço desculpas por Natasha ─ Nikita diz, enrola um pouco sua língua ao pronunciar o meu novo nome. Talvez eu nunca me acostume com essa nova persona que precisei assumir, é tudo demais para ser a minha verdade agora. ─ Às vezes acho que ela se parece mais Sergei do que ele mesmo... ─ completa e abana o ar com as mãos.
O clima volta a ser ameno, relaxado. Continuamos nosso jantar em silêncio, e definitivamente não voltamos a falar sobre os próximos passos nos planos.

─ Tente relaxar ─ Nikita me diz ao notar que estou quase petrificada. Mal sabe ele o quanto odeio estar fazendo tudo isso, principalmente por obrigação.
Minhas mãos suam demais, meus dedos parecem pedras de concreto sobre o volante. E mesmo que a adrenalina corra pelas veias, com a alta velocidade, a sensação de poder se esparrame por todo o corpo, não consigo me sentir exatamente confortável nesse mundo novo.
Dirigir é uma das minhas grandes paixões. Nikita sempre soube disso, mas de repente pareço muito pequena ao ter que entrar no estacionamento do esquadrão ao qual faço parte com um carro conversível como se não significasse nada, como se não fosse levantar nenhuma suspeita. Mesmo que tenha sido um presente, parece estranho.
─ Fácil falar quando seus pés não parecem duas gelatinas prestes a derreter com esse calor do inferno dentro das botas ─ digo sem pausa para respirar. Nikita solta uma risadinha irônica, o que só me deixa ainda mais irritada. ─ Estou falando sério.
─ Sei que está ─ ele me diz, seus dedos apertam meu ombro com gentileza. ─ Posso trocar o carro amanhã se achar melhor. Tenho algumas coisas a resolver com Alexander, ainda mais depois da sua boca suja na noite passada ─ ele diz e dá de ombros. Reviro os olhos para o seu semblante tão relaxado apesar das palavras de advertência. ─ Preciso garantir que tudo está ok.
─ Não disse nada além da verdade.
─ O problema, querida, é que às vezes a verdade pode custar caro, você sabe como é ─ ele retruca, acertando direto no fundo do meu peito.
OUCH!
Essa doeu de verdade. Sei que Nikita se esforça o tempo todo para não se irritar demais comigo, porque posso ser uma adulta com atitudes bastante infantis de vez em quando, e não consigo aceitar ser menos do que realmente quero ser. Me chame de criança, de menina, de moleca, mas eu jamais aceitaria que um homem ditasse como tenho que agir ou quem devo ser.
Nah. Isso não é comigo! Eu só pertenço a mim.
Ademais, tenho plena certeza de que Nikita está falando sobre Ivan, sobre todo o caminho que percorri lhe entregando meu lado mais genuíno, e onde isso me levou. Claro que ele não me culpa pelo que aconteceu, muito pelo contrário. Meu tutor sempre tenta me convencer de que, no fim das contas, não tive nada a ver com a morte da minha família.
Só que isso é realmente difícil de acreditar, de aceitar que suas palavras sejam verdadeiras. Muito mais quando fecho os olhos à noite e a primeira coisa que vejo é Ivan Koslov entrando em minha festa de noivado com uma submetralhadora em mãos, prestes a acabar com qualquer vida à sua frente, mesmo que significasse acabar comigo também.
Tremo diante desse pensamento, principalmente quando me recordo de que um dia me rebaixei a um homem – mesmo que tivesse seus olhos sempre gentis, mesmo que não fizesse ideia de que tudo aquilo era apenas uma farsa, que nada foi real.
─ Vamos seguir com o plano ─ eu digo sem rodeios, respiro profundamente e seguro o ar por um segundo antes de soltá-lo, pesado. Nikita me dá um sinal afirmativo com sua cabeça e se afasta um pouco da porta. ─ Além do mais, eu gosto desse carro...

Minhas mãos parecem coladas ao volante, que seguro com firmeza quase excessiva ao estacionar o carro esportivo. Não que eu nunca tivesse sonhado com um BWM antes, quando mais nova, mas era algo que papa jamais me deixaria ter, ainda mais se a motorista fosse eu. Na casa dos , mulheres entravam em carros apenas se tivessem motoristas, e sentavam-se nos bancos de trás como as miladies que eram.
É quase irônico. Agora que posso dirigir o quão rápido quiser, até onde quiser, sem ter qualquer segurança ou homem em meu encalço, minha preocupação está no número de detetives que ficarão de olho em mim saindo deste maldito conversível. Parece que o mundo é dos homens, e é um saco viver nele.
─ É um carro e tanto, agente ─ Capitão Jetson Richards me recebe com um sorriso largo no rosto, bem como eu imaginava poucos segundos atrás.
Eu não consigo entender qual é a dele, de verdade. Richards, claro, é um mulherengo, e em apenas poucos dias de convivência já o vi lançar olhares indiscretos para todas as agentes que passam por nós.
Penso em ignorá-lo. Preciso de todas as minhas forças para manter o controle e não mandá-lo catar coquinho. Mas ainda é meu superior, gostando ou não preciso demonstrar respeito. É muito infeliz, mas entendo bem como funciona a hierarquia. E por um lado, apesar de toda a relutância, também sei que preciso relaxar um pouco e não ser tão linha dura sempre.
Até mesmo porque sei que, se não fizer amizade com nenhum destes homens, a chance de conseguir informações realmente necessárias em primeira mão é muito menor. A ideia de abaixar para qualquer um é algo que me enoja, com certeza, mas para todo o bem, alguns males são necessários. Venho aprendendo isso no dia a dia, com dureza.
─ É, é um carro bem bacana. Aposto que o seu não fica pra trás ─ brinco, tentando parecer o mais simpática possível.
Jetson parece comprar minha conversa, pois seu sorriso se alarga ainda mais e já não é tão empertigado. É difícil saber até onde posso ir com esse cara sem cruzar a linha tênue onde ele começa a ser um grande babaca.
─ Ah, não é nada de mais... ─ ele balbucia e dá de ombros, apontando para um Dodge Challenger prateado. ─ Ainda assim, é melhor que o do Capitão Morris ─ ele pisca com seus grandes olhos egocêntricos e aponta para o outro lado do estacionamento, onde um Volvo P1800 vermelho está parado.
Caramba! É impossível que Jetson seja tão convencível e irritante assim o tempo todo.
─ É um carro incrível, o do Capitão Morris. Eu adoro os clássicos, são os melhores ─ rebato para ele e pisco um olho como fez minutos antes. Em seguida, sigo em direção aos prédios porque sinto que não vou conseguir passar outro segundo ao seu lado sem acabar sendo ríspida.

Se tem algo que gosto sobre fazer parte desse lugar, é a quantidade de pessoas. Desde que cheguei, não houve um momento sequer em que tenha visto o prédio vazio. Mesmo à noite, quando gosto de usar as academias por serem ainda mais tranquilas para um último treino, vazio eu nunca vi. Esquadrões entram e saem, indo e voltando de suas importantes missões. Porque nada aqui é feito por acaso e sem propósito.
Franklin está em nossa sala, sua atenção totalmente voltada à tela do computador em sua frente. Sei que está revirando os arquivos do seu caso. Seus olhos são concentrados e objetivos; ele procura alguma coisa que só ele pode ver e resolver. Eu admiro isso.
─ Olha só quem encontrei e trouxe especialmente para cá... ─ Capitão Richards diz ao passar com passos rápidos por mim. Entra na sala para cumprimentar seu antigo parceiro e amigo. Ele bate em seu ombro com tapinhas fracos e aponta para mim, como se fosse uma importante aparição.
Sinto meu pulso tremer e o fecho com força. Tenho sido tratada como um bibelô brilhante e novinho nos últimos dias, e eu odeio isso. A parte mais importante dos meus planos com Nikita sempre estiveram bem claras: não chamar a atenção. E, aparentemente, isso será mais difícil do que eu tinha considerado até então. Ao menos enquanto Jetson estiver no meio do caminho.
─ Excelente, Jet. E um ótimo dia para você ─ Frank diz e aponta para a porta. É um pedido bastante claro para que eu saia, como se não quisesse ser atrapalhado agora.
Seguro um risinho, preciso pôr a mão sobre os lábios para escondê-lo. Não posso ser mal-educada, preciso me lembrar disso o tempo todo. Uma coisa é agir dessa forma quando tenho Nikita do meu lado para que possa intervir por mim em qualquer situação; outra coisa é agir dessa forma entre esses caras que eu mal conheço e correr o risco de destruir todas as nossas estratégias bem construídas até então.
─ Está me expulsando, Capitão Morris? ─ Jetson questiona. Um sorriso muito branco dança em seus lábios bem desenhados, mas Franklin o dispensa com um aceno de mão, como se não estivesse a fim de começar essa discussão. Ele apenas aponta para a pilha de arquivos em sua mesa. ─ É claro, é claro. Tenha um ótimo dia, agentes ─ ele diz e acena para mim, já que apenas eu presto atenção. Sai e fecha a porta às suas costas, nos deixando sozinhos.
─ Talvez isso se torne algo muito comum até que aceite sua amizade, mas peço desculpas pelo Jet ─ Frank diz sobre a tela do computador, do qual desvia a atenção por um segundo para me cumprimentar. Meneio com a cabeça e me adianto para sentar em minha mesa, onde penduro a bolsa na cadeira de couro confortável. Franklin continua a me olhar, então alcanço seus olhos gentis com os meus. ─ Ele pode ser bem irritante, mas é muito competente.
─ Não duvido disso, ou não seria o capitão ─ pisco para ele e movimento meus ombros para cima e para baixo, em um gesto indiferente. Tento lhe dar um sorriso delicado, mesmo que no fundo ainda esteja irritada com as atitudes do outro capitão. ─ Só é muito... a sua atenção pode ser um pouco esmagadora ─ eu explico, Franklin ri em resposta. É um som muito agradável de ouvir.
─ Ah, com certeza. Se vale de algo, ele só está admirado por termos uma mulher com tanto potencial entre nós... ─ ele me elogia. Apenas o encaro timidamente, pois não sei muito bem como responder a isso. Elogios não são coisas com as quais estou habituada. ─ E também, não é todo dia que uma mulher enche a minha cara de porrada, tenho certeza que Jetson adorou isso. Você é quase... quase uma heroína para ele ─ Frank explana, e não consigo controlar uma risada impensada que explode para fora da minha garganta. Coro, mas o capitão me acompanha, até que um silêncio quase ensurdecedor nos envolve.
─ Devo perguntar no que está trabalhando agora? ─ pergunto para quebrar o gelo entre nós, muito embora tenha certeza de quais são os arquivos que Franklin relê e organiza. Ele gesticula com a cabeça, chamando para que me aproxime. Arrasto minha cadeira até o seu lado.
─ Infelizmente não vou te surpreender ─ ele diz ao voltar seu olhar para o meu. Aparentemente, não está mais irritado por eu ter envolvido uma pergunta tão pessoal sobre suas motivações com relação a este caso. Ao menos seus olhos não parecem tão duros no momento. Ele volta sua atenção para os papéis e o computador. Eu gostaria de saber o que está pensando agora, mas não me atrevo a perguntar. ─ Tem algumas coisas que continuam a não se encaixar com as fotos que a perícia nos enviou na noite do assassinato do McCarter ─ ele conta e me entrega as imagens impressas, para que eu também as observe com atenção.
Um homem barbudo e corpulento, Reginald, está estirado ao chão de concreto do que deve ser a sua cela. Tem bastante sangue em suas roupas e escorrido no chão ao seu lado. Na imagem, a faca já foi removida de seu pescoço, o que parece ainda mais cruel na foto tão gráfica. É quase como uma pintura violenta.
Mas não consigo sentir pena do sujeito, não de verdade, ainda mais agora que tenho conhecimento da sua possível ligação com a Semyonova. E só de saber desse envolvimento com a maldita família, que facilitava os serviços nojentos e sujos, não consigo me apiedar. Mesmo que sua morte só abra muitos precedentes e encha a cabeça de Franklin de caraminholas. O que também não me ajuda em nada.
─ O que não faz sentido? ─ pergunto, e Franklin apenas me lança um olhar de curiosidade. Dou de ombros em resposta. ─ Preciso me inteirar um pouco mais sobre esse caso para compreender bem...
─ É claro ─ ele afirma, inclinando um pouco mais o seu corpo em minha direção. Uma onda de calor invade o espaço entre nós. Eu o encaro, mas Frank apenas gira os olhos em minha direção rapidamente. ─ O horário da foto é 22h45, veja... ─ ele aponta. ─ Isso indica que todas as celas já estariam trancadas ─ explana. Nossos olhos se cruzam mais uma vez; Frank parece ainda mais curioso agora, e eu, totalmente perdida. ─ McCarter não tinha um companheiro de cela, Natasha... ─ ele informa, e eu ajeito meus ombros, agora mais interessada no assunto.
─ Nossa, isso sim é algo importante ─ murmuro e puxo as fotos para a minha frente, observando-as com mais afinco. ─ Você me disse que o encontraram morto pela manhã, não é? ─ Frank concorda com um aceno. ─ Mas é curioso como não tenham notado nenhuma movimentação durante as rondas da madrugada... ainda mais se há câmeras de segurança.
─ E é aí que as coisas ficam bem esquisitas... ─ ele quase sussurra, dando de ombros. O capitão ajeita os cabelos com a mão, alisando os cachos para trás. Eu acompanho os movimentos charmosos com o olhar, não consigo evitar. ─ As câmeras de segurança cortam às 22h, voltam apenas pela manhã, quando o corpo de Reginald já está estirado, mas veja isso... ─ ele diz, empolgado, então volta seu olhar para a tela do computador, onde inicia um vídeo filmado às 21h58.
Reginald está em sua cela, com um livro nas mãos que parece ler bem concentrado. Parece haver uma movimentação nos corredores, então se levanta. Parece pronunciar uma palavra, pois é possível ver sua boca se mexer, e o vídeo corta de repente.
─ Minha nossa ─ digo, é tudo o que consigo pensar.
Franklin olha para mim e quase sorri. Ele estica seu corpo para trás e relaxa em sua cadeira, cruzando os braços atrás da cabeça como se estivesse se aquecendo.
─ Exato, minha nossa... Está bem claro para mim que a sua palavra foi “você”, não acha? ─ ele questiona. Concordo com um aceno único.
─ Sua teoria então é que não seja um preso quem o matou? ─ indago, e agora sim Franklin abre um grande sorriso que não vi antes. Ele demora a responder, fico um tanto frustrada com sua demora.
─ Você é rápida, não? ─ ele ri. Dou de ombros, mas sinto minhas bochechas esquentarem bastante.
Queria poder mandar uma mensagem para Nikita agora, contar exatamente o que estamos falando, porque isso é mesmo importante. Talvez ele conseguisse movimentar seus pauzinhos e descobrir quem é o verdadeiro assassino do presidiário através de seus contatos.
Já ficou bem claro que o capitão faz questão de pegar o assassino do McCarter apenas pelos seus motivos pessoais, mas não parece ter considerado um minuto sequer sobre como isso pode estar relacionado à movimentação da Bratva, que, pelo jeito, já chegou dentro do sistema carcerário dos Estados Unidos. O que é bem preocupante.
É exatamente por causa de suas motivações pessoais, que Franklin carrega sobre o assunto, que deve querer apenas acusar que Trey Sommers encomendou a morte do antigo parceiro de crime e finalizar o assunto por ali. Porém, com as celas fechadas, o que impossibilita a movimentação dos presidiários – e também o corte das câmeras em um momento bem preciso – já dá para saber que com certeza não tem relação nenhuma com o Trey e quem encomendou a morte do outro bandido. Ele até poderia ter encomendado o crime, mas quem cometeu o assassinato foi alguém de dentro da prisão. Alguém bem esperto, inclusive.
─ Acho que agora me sinto ainda mais atraída por este crime ─ eu digo, tentando soar empática com as pessoalidades de Franklin e o assunto. Não sei qual é sua proximidade com este caso, nem mesmo os motivos que o levam a odiar tanto esses presos quanto é possível alguém odiar alguém. Só posso supor que seja muito mais sério do que penso.
─ Você está certa sobre as minhas considerações. Não tenho certeza de que poderia ter sido o Sommers ─ ele conclui, o que só confirma minhas ideias. ─ Apesar da teia de comunicações que ele tem fora da prisão, não acho que poderia ter comprado um agente para calar McCarter... Trey sempre foi odiado por toda a corporação. E considerando a precisão desse homicídio, precisa ser alguém que conhece o sistema de um jeito minucioso.
─ Sim, e é provável que seja alguém que o conheça. Algum carcereiro que fazia parte do seu dia a dia, que fazia as rondas... até mesmo porque Reginald reconheceu o seu assassino ─ argumento. Franklin concorda com um aceno animado. Seus olhos parecem brilhar, é quase como se eu pudesse me ver nele. É tão pessoal que imagino que sentiria o mesmo assim que arrancasse a língua de Ivan, de forma que nunca mais pudesse mentir para ninguém de novo.
Meu estômago se revira ao pensar em Ivan novamente. Me recordo de todos os bons momentos que passei ao seu lado, todos grandes mentiras. O quanto o entreguei de mãos beijadas, quantas informações lhe dei sobre minha família, sobre como funcionávamos. Eu deveria ter sido muito mais cautelosa com relação ao que sentia – ao que imaginava sentir, ao menos. Sempre imaginei que Ivan tinha me ensinado até então o que é o amor, mas a verdade é que, se teve algo que me ensinou de verdade, foi o poder que tem a força do ódio.
Minhas mãos tremem bastante, com força, mas Franklin parece não perceber, já que está tão intimamente preso em suas próprias preocupações. No fim das contas, eu agradeço por isso. Não gostaria de ter que me explicar por que uma agente tão nova e com pouco conhecimento sobre o caso está tão emocionalmente abalada.
Por outro lado, é claro, ninguém faz ideia de que eu não era uma policial antes daqui. Ninguém tem um pingo de noção de que, na realidade, todo meu conhecimento vem do lado contrário, o que só prova como o sistema é bem falho.
─ Bem... ─ digo ao quebrar o silêncio que pairava no ar mais uma vez. ─ Com relação ao que o Capitão Richards me solicitou ontem, o que posso dizer sobre a Bratva até então é que... ─ penso um pouco, relembrando o que passei com Nikita na noite anterior, o que combinamos de dizer sem que fosse algo prejudicial aos nossos planos. ─ Moscou tem três grandes famílias em funcionamento. Uma delas não fica instalada localmente, então não posso te dizer o quão envolvida pode estar... As outras duas famílias, até onde se tem conhecimento... ─ explano, meu coração se aperta em um nozinho, só de pensar em ter que falar sobre o meu lar como se o odiasse. ─ Não acho que sejam parceiras. O que se fala nas ruas da cidade é que as duas entraram em guerra pouco tempo atrás, uma coisa bem feia, então não duvido que uma delas possa estar envolvida com o caso. Apesar do que diz a mídia, o envolvimento com os Estados Unidos é bem suspeito, mesmo que não tenha muita parceria política acontecendo entre a grande américa e a Rússia ─ falo e solto uma risada, que Franklin acompanha.
Continuo a contar para ele tudo que posso, sem me envolver, sem envolver minha família. Tudo que arquitetei com Nikita, que repassei para Yond caso lhe perguntassem também, para que ele possa corroborar com minhas informações.
Digo para Franklin o que posso, o que não envolva nomes. Digo que não é possível saber quem são os envolvidos, e que tudo que sabemos é o que criminosos de baixo escalão disseram em suas rápidas prisões. Tudo que preciso fazer é proteger minha família e incriminar a Semyonova, custe o que custar. E tudo leva a crer que sempre estiveram por trás de muita sujeira. Papa sempre suspeitou de muitas coisas e tentou ir contra. Por isso morreu, por isso perdeu toda a sua família também.
Prometi para mim mesma, por mim e por eles também, por toda a minha família, que encontraria provas contra todas as sujeiras e podridões dos Koslov e sua Semyonova. Eu farei tudo mudar, como meu papa sempre quis.
Quebrar o sistema, de dentro para fora.

Assim que adentro o apartamento, vejo Nikita sentado em um sofá, como se me esperasse voltar no fim do dia de expediente. Aceno um cumprimento quando fecho a porta às minhas costas.
─ E então, como foi? ─ ele questiona, no aguardo de um relatório completo. Dou de ombros em resposta e jogo minha bolsa na cadeira ao lado da porta.
─ Interessante ─ comento. Ele se ajeita no móvel e apoia o queixo nas mãos, esperando que eu continue a falar. ─ O tal McCarter foi assassinado por alguém de dentro do sistema, tudo muito curto e grosso, sem emoções ligadas. Enfiaram uma faca em seu pescoço, e, a cada segundo que se passa, tenho mais e mais desconfianças de que a Semyonova esteja por trás disso.
─ Concordo com você ─ ele rebate, me surpreendendo, o que tento deixar não transparecer. Até que enfim Nikita concorda com algo que digo, concorda que posso conseguir fazer algo em prol da família com esse disfarce. ─ Alexander mandou um de seus soldados atrás de algumas garotas que conseguiram escapar no dia da prisão... ─ ele menciona, mas eu o encaro confusa. Ele mexe alguns dos papéis sobre a mesa de centro e faz um gesto para que eu me aproxime. ─ Ao que tudo indica, algumas dessas garotas das fotos seriam indiciadas. Para o quê, não sei... ─ explica. Eu reviro os papéis, que estão levemente úmidos e amassados, provavelmente de tanto Nikita tê-los revirado durante o dia.
─ Faz sentido... ainda mais se Reginald estava disposto a abrir a boca sobre o que sabia sobre elas. Elas disseram algo de relevante? ─ questiono, e Nikita responde com um aceno negativo. Seu olhar parece cabisbaixo, como se tivesse esperanças de mais. Mordo meu lábio inferior enquanto tento controlar a raiva. ─ Que merda!
─ Alexander acredita que tenham mais mulheres envolvidas nessa lista. Quero chegar até elas e descobrir tudo que sabem. Precisamos conhecer melhor os planos de Mikhail ─ Nikita cospe o nome do bandido, e me contenho para também não escarrar no chão somente ao me lembrar da sua existência. Não como se eu fosse capaz de esquecê-lo também.
Se papa tivesse a mesma personalidade que Koslov, não teria pensado duas vezes antes de ir até sua casa e meter uma bala em sua testa quando tivesse oportunidade. Mas ele o deixou escapar, porque papa não era assim, cruel até o sangue. E, apesar de todos os pesares, ele quis acreditar na honra. Acho que nunca imaginou que Mikhail poderia ser um bastardo de merda tão desgraçado.
─ Isso vai levar uma eternidade inteira, Nikita. Não sei, de verdade, por quanto tempo vou conseguir levar esse disfarce numa boa. Por enquanto está tudo certo, mas e se eu não der conta? ─ questiono em desespero. O tutor concorda, mas estende uma mão para tocar em meu ombro com um leve aperto.
─ Eu sei, garota. Entendo seus receios, mas tente ser paciente, tudo vai se ajustar ─ ele afirma com um sorriso doce nos lábios, como se tentasse ser mais gentil do que realmente mereço. ─ Além do mais, veja o quanto já progrediu...
─ E a padawan chega próximo ao seu mestre jedi… ─ alego com um suspiro, mas acabo dando risada. Nikita também o faz, gargalha algo, finalmente dissipando a nuvem pesada e escura sobre nossas cabeças.
─ Pequena padawan, um longo caminho ainda ter... ─ ele responde, entrando na brincadeira. Chega até mesmo a tentar imitar a voz do Mestre Yoda e seu jeito de falar, o que só me faz gargalhar ainda mais.
No fim, só posso agradecer por ainda ter Nikita ao meu lado. De outra forma, não consigo pensar em quantos dos anéis do inferno de Dante ainda conseguiria atravessar.


FRANKLIN MORRIS


“Come ride with me, through the veins of history. I’ll show you how God falls asleep on the job. No one’s gonna take me alive. Time has come to make things right.”
Knights of Cydonia
toca alto em meu celular, indicando que é a hora de despertar, mas já estou acordado faz um tempo encarando o teto. Não me lembro de verdade quando foi a última vez que consegui dormir por uma noite toda e acordar só com o despertador tocando. Talvez antes de George, antes de ouvir os tiros e sentir a bala entrando na minha cabeça.
Piso no chão gelado com os pés descalços – mamãe sempre dizia que eu jamais deveria andar descalço em piso frio, ou teria problema de bexiga e bem provavelmente mijaria na cama antes mesmo de sonhar com água. Sempre achei isso uma grande besteira, além do que a sensação elétrica que pulsa através das veias assim que a pele vai de encontro à baixa temperatura é boa demais.
Também não me lembro da última vez em que eu e minha mãe tivemos uma conversa decente e saudável. Estou começando a achar que não mantenho muitos bons hábitos em mim. Bem, algumas simplesmente são como devem ser.
A imagem que encaro no espelho já não é a pior do mundo, e já não sinto tanta repulsa ao ver a cicatriz linear na região da têmpora. É tão fina que parece quase transparente, mas sinto que talvez até esteja nutrindo um certo tipo de carinho por ela. Como se aceitá-la fosse um gás, uma motivação para ser o meu melhor.
Por outro lado, talvez meus cabelos estejam compridos demais; talvez minhas sobrancelhas estejam uma bagunça ou os lábios um pouco rachados além do que deveriam. Talvez meus colegas de trabalho e amigos mais próximos estejam certos – tenho esse hábito de esquecer de mim.
Ainda sem acender nenhuma luz da casa, aproveito o ambiente escuro e ligo o chuveiro, a água na temperatura mais quente possível. Sei que não é a melhor maneira de acordar, mas espero que ajude com a dor insuportável nos ombros, que os músculos parem de repuxar. Será que houve algum dia em que não me senti tão tenso, que meu corpo não esteve tão tenso assim? Nah. Não depois que entrei para a academia.
Ao menos eu tenho água quente. É o primeiro pensamento autopiedoso que vem em minha mente, quase uma prece condoída de minha situação mental ao que tudo indica.
Depois do demorado banho, faço a barba de modo grosseiro; acabo deixando uns fios para trás porque não tenho paciência de fazer o serviço completo. É a segunda vez que faço isso em menos de dois dias, nem mesmo dou tempo dos pelos crescerem de novo. Para ser honesto, não sei mais o que eu estou fazendo com a minha vida.
Às vezes, acredito que chegou a hora de ser um pouco indulgente comigo mesmo. Também penso que preciso ser mais condescendente com as coisas que o Jetson joga na minha cara, as opiniões que ele deixa bem claro, quase grita aos quatro ventos para quem quiser ouvir. É bem provável que a chegada da minha parceira tenha mesmo mudado minha perspectiva sobre algumas coisas.
Não obstante a isso, mas em nosso próprio dia a dia na corporação, as recentes novidades relacionadas com o caso Sommers x McCarter são bem interessantes, não posso negar. Por anos esperei o momento certo para ferrar com esse bandido, e mesmo que tenha perdido a grande oportunidade de tirar sangue do seu nariz e socá-lo até que não sobrasse um osso intacto, preciso concordar que agora é o momento em que estive mais próximo de pisar em suas bolas, com força.
No fim das contas, é bem provável mesmo que a ideia que Jet teve de colocar alguém diferente do meu lado para trabalhar não fosse, de um todo, tão ruim assim. É bom ter um ânimo diferente, ideias diferentes vindas de outra mente que não a minha. Jetson deve saber muito mais sobre mim do que eu mesmo.
Com a chegada de Natasha, comecei a notar coisas que antes não tinha percebido – ainda que tenha pouquíssimo tempo desde que ela entrou para a equipe –, mas ao que tudo aparenta, funcionamos muito bem juntos. Faz menos de dois meses que ela está aqui e já conseguimos nos aproximar de fortes indícios sobre a ligação de McCarter com a Bratva, o que, é claro, também puxa Trey para o fundo do poço.
Não é nada próximo à fonte de ontem que queremos realmente chegar, mas estamos mais próximos do que jamais estivemos, o que é, no mínimo, muito fantástico. Bem, talvez essa seja uma boa justifica para dar quando alguém voltar a dizer que não levo minha aparência a sério. Eu tenho muito mais com o que me preocupar, ao que tudo indica.
Antes de seguir para o escritório, me sirvo de um grande sanduíche de queijos, que preparo como uma delicadeza bem maior do que a que tive com a minha barba. Talvez o banho não tenha sido o certo, mas o pão tostado com manteiga, gruyère, cheddar branco e fatias grossas de mozzarella parecem sim uma ótima maneira de começar essa manhã.
O clima também ajuda muito, como sempre. Não que essa temperatura não seja a usual de Miami, mas é sempre reconfortante saber que ao final do expediente ainda haverá um pouco de sol no céu e calor entre as paredes do prédio gelado que é a corporação. Ao menos isso já me faz sentir um pouco melhor.
O Volvo, em compensação, demora para pegar o ritmo que eu quero. Preciso me lembrar o tempo todo que ele não é o carro conversível que os pomposos de North Miami dirigem, também não é o Dodge do Jetson, muito menos o Saturn Sky que George dirigia com orgulho quando nos levava à praia.
É muito difícil relembrar que éramos cercados das maiores e melhores futilidades que um jovem adulto gostaria de ter. Nós tínhamos incontáveis motivos para acreditar que éramos diferentes e especiais. Invencíveis. E aí a vida nos pregou a peça mais cruel que poderíamos escolher, e todas essas certezas que tínhamos tão claras em nossas vidas automaticamente se anuviaram. Foi aí que percebi que sou um mero grão em um grande nada que sobrou daquela sensação de felicidade constante.
Às vezes, a vida é uma bela merda!
Afasto meus pensamentos sobre George e nossos destinos, como sempre faço, e volto a focar minha atenção no presente. Sei que, se eu pensar demais, posso pirar fácil. São apenas duas palavras para me tirar do eixo. Assim que estaciono o carro na minha vaga habitual, aproveito alguns minutos a mais no sol confortável antes de entrar e ser recebido por uma enxurrada de informações que nem tenho certeza se quero ouvir.
Essa porra de prédio parece uma máquina de gelo, e acho que o clima entre as pessoas não ajuda, muito embora todo mundo se dê bem por aqui, ou até onde eu sei. Pelo menos a minha sala fica nos fundos do prédio e tem uma janela que ameniza o frio com os raios de sol que recebe durante a tarde.
Nem Natasha nem Jetson chegaram ainda. Ela porque vejo sua mesa vazia e arrumada; Jetson porque não está aqui, enchendo meu saco. Na realidade, poucas pessoas costumam chegar no prédio antes das sete da manhã. À exceção daquelas que trabalham nesse turno, só os idiotas paranoicos como eu chegam antes.
Abro meu computador sem pressa, tenho tempo de sobra até que isso aqui fique realmente movimentado e as coisas comecem a acontecer. Seleciono, como sempre, os principais arquivos relacionados à Trey Sommers. É curioso como o cretino ainda não esboçou nenhuma emoção com relação à morte de Reginald, afinal de contas, foi seu braço direito. Se bem que, lá no fundo, isso não me surpreende nem um pouco. Esses bastardos são só bandidos sem coração.
Sei que a parceria entre os dois foi bastante forte antes da prisão, mas não me admira que ele prefira ficar bem caladinho em sua cela. Se ele não é seu assassino, pode também ser o próximo a perder a garganta. Concluí prontamente que a morte de Reginald não está ligada com Sommers, formei uma opinião bastante sólida nos últimos tempos. Apesar do resquício de motivação, não acredito que Trey tenha um propósito concreto para acabar com a vida do McCarter, não quando ambos estavam atrás das grades.
Se Trey estivesse solto, a hipótese faria muito mais sentido, que a morte do ex-companheiro estivesse entrelaçada em seus jogos sujos. Mas agora, com a proximidade dos dois antes da prisão tão fortificada, acho bem difícil. A não ser, é claro, que isso fosse um olho por olho.
Agora, é fato que eu e Natasha temos conseguido nos aprofundar cada vez mais em nossas teorias do caos, e, a cada dia, mais forte é nossa certeza de que sua morte foi premeditada por alguém de dentro do presídio, mas não necessariamente um outro presidiário. Só é difícil chegar no verdadeiro culpado quando ele soube tão bem limpar a cena do crime, sem deixar nenhum vestígio de sua presença. Como se Reginald McCarter tivesse sido assassinado por um fantasma.
Ainda mais importante do que isso e todas as caraminholas que colocamos em nossa cabeça, é a ligação que temos feito em constantes brainstorming com os demais oficiais ligados ao caso. Via seus contatos secretos e poder imersivo de investigação, Yond está bastante certo de que isso tudo é muito grande, muito maior do que prevíamos. É por isso que não me permito desistir. Não estamos falando sobre qualquer caso que a corporação está acostumada a lidar dia após dia, caralho, estamos falando da máfia!
─ Ora, ora, ora… Bom dia, minha flor do dia ─ Jetson entra em minha sala, é claro, sem fazer questão nenhuma de bater à porta. Ao que parece, isso tem se tornado um péssimo hábito que apenas aceitei.
O encaro em resposta; ele está arrumado, arrumado até demais. Consigo sentir da minha mesa, mais de um metro de distância, o cheiro forte de Calvin Klein. Não consigo segurar uma gargalhada alta.
─ Ah, puta merda, cara ─ eu digo. Os olhos de Jet quase giram para dentro da cabeça enquanto me olha confuso. Um minuto depois, no fundo dos meus próprios olhos ele pode entender o que eu estou pensando.
─ Não, não mesmo ─ responde rápido; seus ombros se empertigam daquele jeito que Jetson parece imitar um pavão. Ele troca o peso nos pés e se apoia contra o batente da porta fechada às suas costas. O encaro com escárnio.
─ Sim, sim mesmo ─ balanço a cabeça em um movimento meticuloso. Em resposta, ele me mostra o dedo do meio. ─ Ela te pegou também, admita ─ ele continua a negar. Não consigo segurar a risada cada vez mais alta e escandalosa. Meus ombros parecem chacoalhar enquanto me divirto.
─ Vá a merda, Morris. Quem está lambendo as botas da loira é você, ambos sabemos disso ─ ele diz, ajeitando os ombros. Coça a cabeça, indiferente e com um risinho dançando nos lábios. Eu lhe lanço um olhar de advertência. Jetson sempre fala muita merda, não acho que ele tenha aprendido a falar outra coisa na vida além disso.
Ele volta a ajeitar as costas na porta, acomodando o dorso na pintura fria. Um minuto de silêncio depois, ele parece não se aguentar, então se dirige para a mesa de Natasha, onde se senta na cadeira à frente. Não posso deixar de notar quão organizada ela é; os arquivos separados em pequenos montes, em pastas de diferentes cores, clipes de diversos formatos seguram as folhas, provavelmente separando os papéis em categorias. As canetas não estão jogadas de qualquer modo como as minhas, mas em um porta-lápis espelhado, também marcadores coloridos. A organização da mesa é tão bonita quanto ela.
Oh, merda. Estou lambendo as botas dela, não?
─ Viu? ─ Jetson me acorda de um transe de repente. ─ Você está babando enquanto encara as Bics dela, cara. Precisa ver a cara que faz quando ela passa na sua frente com a calça apertada do uniforme. Rolo os olhos em resposta, mas finjo levantar com pressa e ando em sua direção; o pulso fechado como se fosse lhe socar a cara. Jetson apenas ergue as mãos em rendição, empurra a cadeira para trás e ergue uma perna, o pé firme para tentar me parar.
─ Você não consegue mentir, Morris, não para mim...
─ Quanto lixo você comeu no café da manhã para falar esse tanto de merda? ─ questiono, e Jetson não se aguenta. Ele ri alto, explodindo em uma gargalhada escandalosa.
Jet está certo, eu sei disso. A parte difícil é ter que admitir que está. Dentre o monte de coisas não saudáveis em minha vida, posso dizer que flertar com alguém é uma das piores que nem mesmo sei fazer. Preciso parar de dizer que lembro da última vez – mas aqui vai mais uma verdade, não me lembro –, e isso é algo muito sério. A última vez que consegui conversar com uma mulher, independentemente do nível de relacionamento, sem fazer com que ela chorasse por horas depois.
A real é que não sei como começar uma conversa sem, em algum momento no meio, engatar minha história com George no meio da fala. Até porque é isso, minha vida é um monte fodido de eventos que eclodiram no momento em que tomei um tiro na cabeça, não posso evitar. Fazer o quê, ser um babaca é um dom.
Volto a me sentar na cadeira logo atrás da minha mesa e encaixo minha nuca no encosto, relaxando. Fecho os olhos por alguns segundos que parecem uma eternidade. Quando volto a olhar para Jetson, ele está com o cotovelo apoiado na escrivaninha e o queixo encostado em seu punho, como se apenas esperasse para ouvir tudo aquilo que já sabe.
─ Você é um grande filho da puta! ─ digo, e Jet abre um sorriso enorme e brilhante. ─ E talvez esteja certo, só um pouco... Tem alguma coisa bem diferente nessa mulher. Algo sobre o jeito que olha dentro da alma, como fala de um jeito tão superior... ─ eu argumento. Jetson apenas espera. ─ E sobre como anda também...
─ RÁ! ─ ele parece cacarejar. Bate palma uma única vez, em alto e bom som, e aponta para a minha cara. ─ Eu sabia!
─ Não tem nada para saber, Richards. Eu só acho ela... ─ penso um pouco. Eu realmente sei o que acho? ─ Porra… Eu a acho atraente, nada de mais. Tem alguma coisa diferente de tudo que já vi antes.
─ Um grande mistéeeerio... ─ ele sussurra ao movimentar seus dedos, os embolando de um jeito bobo e infantil. Rolo meus olhos para o teto, como se preferisse só ignorá-lo. Jetson se levanta para me dar um tapinha consolador no ombro. ─ Só estou te zoando. Não tem nada de mais. E daí que você a acha gostosa? É você e todo o esquadrão com essa mesma percepção ─ ele dá de ombros, indiferente, e eu o acerto com a mão fechada em punho num soco direto no quadril. A dor o faz dar dois passos para trás.
─ Vai pro inferno, cara. Além do mais, não tem nada a ver com ser gostosa ─ encaro a tela do computador, mas não vejo nada, apenas através do aparelho. ─ É sobre ser uma pessoa diferente, que não te olha como alguém tão fodido, sabe como? ─ argumento, e Jet volta a se apoiar no batente. ─ Ela é linda. Eu seria um cego de merda se dissesse que não acho isso ─ admito. Meu amigo ergue uma sobrancelha, mas seus lábios ainda estão curvados para cima. ─ Mas é sobre ouvir, ser ouvido também. Sobre ser eu mesmo sem precisar reviver o passado, sem estar o tempo todo naquele inferno em Miami Beach.
Ele concorda com um aceno, seu olhar parece ter mudado completamente.
─ É legal, cara, de verdade, que esteja gostando de alguém de novo. Finalmente, aliás ─ ele brinca, seus olhos sorriem de forma complacente, tanto quanto seus lábios. Jet dá uns tapinhas na madeira da porta e me encara com os olhos apertados. ─ Muito embora esteja agindo como um merdinha agora.
Eu gargalho alto em resposta. Levou menos de um segundo para Jetson voltar a ser ele mesmo.
─ É, é... É claro, muito legal. Só acho bom deixar claro que não estou apai...
─ Bom dia, Capitães. Está fazendo um dia bonito hoje, não? ─ Natasha entra de supetão na sala, tão rápido que quase derruba Jetson no chão. Preciso me segurar para não rir alto da sua cara de banana amassada, e a melhor parte é que ela nem mesmo parece se arrepender, como se ele invadir o seu espaço fosse o suficiente para não dar mole.
Isso faz o meu dia mais feliz, e ele está só no começo. Meu assunto com Jetson, por outro lado, morre ali mesmo.
Ainda bem.

─ Obrigada, mais uma vez, por me apresentar esse lugar ─ Natasha agradece; as palavras saem emboladas enquanto ela enfia um pedaço grande de cachorro-quente na boca. O hot dog do Ernie é o melhor de Miami, e fica em frente à corporação. Dou de ombros.
─ É o melhor lugar se precisar de um escape, um plano de fuga ─ respondo. Ela concorda com um aceno de cabeça, então pesca um guardanapo ao meu lado para limpar o canto da boca e volta a olhar o horizonte.
Da altura em que estamos, é possível ver Surfside e Bal Harbour com seus prédios de fachadas imponentes. A vista é linda, sinto que poderia ficar aqui por horas, o que parece ainda melhor ao lado da minha parceira. Estamos admirando essa vista tem um bom tempo, mas tenho a impressão de que isso é muito melhor do que voltar para o escritório. Só ficar aqui, sem precisar falar sobre nada.
─ A vista é muito bonita, melhor que a da minha casa ─ argumenta, e me pego pensando que nem mesmo sei onde mora. Natasha abre um bonito sorriso em minha direção. Preciso me lembrar de fazê-la sorrir mais vezes, é a coisa mais linda!
─ É, é sim ─ a encaro sem nem mesmo piscar. Será que Jetson está mais certo do que quero admitir? Nah, seria muito idiota estragar uma excelente parceria com uma paixonite infantil.
Só estou admirando-a, é só isso.
Seus olhos decidem afogar os meus por um segundo; ela me encara com tanta intensidade que preciso desviar minha atenção para qualquer outra coisa. Preciso trabalhar melhor essa coisa de encarar, porque pode ser meio assustador. Mesmo assim, os cantos da sua boca permanecem levantados.
─ Como encontrou o santuário? ─ ela questiona. Natasha apelidou o terraço no telhado de “santuário” há alguns dias. Não pude discordar, afinal de contas, apenas nós dois e Jetson sabemos da sua existência. Bem, ao menos se ele já não havia trazido nenhuma das suas namoradas aqui e destruído o espaço imaculado.
─ Sorte, eu acho ─ dou de ombros, mas ela ergue as sobrancelhas, como se esperasse por mais, uma resposta mais verdadeira. ─ Ok, talvez eu estivesse em algum dia fugindo do Jetson…
Ela ri alto.
─ Ok, nisso eu consigo acreditar ─ diz entre risos. Chacoalho os ombros mais uma vez e arranco outra mordida do sanduíche, só para não continuar a encará-la com tanta intensidade. ─ É pessoal demais perguntá-lo como se tornaram amigos?
Torço o nariz, mas concordo. De repente, estamos em meu passado novamente, o que eu tanto tentei evitar.
Hmmm… ─ murmuro, ponderando minhas próximas palavras. ─ Dá pra dizer que Jet esteve lá quando realmente precisei de um amigo.
─ Oh! ─ ela exclama. Em seguida, desvia o olhar do meu e mais uma vez encara o horizonte. ─ Me desculpe, não quis ser invasiva. Pra ser sincera, acho a dinâmica de vocês bem interessante.
─ Nossa dinâmica? ─ indago. Natasha solta uma risadinha e acena em concordância ao mesmo tempo que também engole outro pedaço do seu cachorro-quente. ─ Como você imagina isso? Porque é sério, na minha cabeça parece algo bem bizarro ─ ela chacoalha a cabeça entre risos.
─ Não, não. Na verdade, eu admiro isso... É como se o pensamento, os ideais de um completassem o do outro. Tipo irmãos gêmeos, sabe? ─ ela explica. Por um segundo, seus lábios tremem e me pergunto para onde seus pensamentos voaram tão rápido. ─ Fica fácil entender por que o General escolheu os dois como capitães, porque ambos são necessários ─ finaliza. Minha parceira ajeita os ombros; sua expressão é de quem parece organizar os pensamentos. No instante seguinte, abre aquele lindo sorriso de novo, e só isso basta para me fazer estremecer.
─ Muito gentil da sua parte ─ pontuo com honestidade. Ela faz um gesto com a cabeça e rola os olhos para a vista da praia, sempre parecendo muito curiosa. ─ Já foi a Miami Beach? ─ pergunto, e me arrependo no segundo seguinte. Mordo o interior da boca com força, a fim de evitar que as memórias ruins cheguem para acabar com o momento bacana. Ainda não é hora de dividir essa história com ela.
─ Para falar a verdade ─ ela diz em voz alta, me puxando para a realidade. Volto toda a minha atenção para ela, quem sabe assim não me perca novamente. ─ Ainda não tive oportunidade de conhecer boa parte da cidade ─ ela solta um muxoxo. A encaro com incredulidade, e tudo que faz é soltar uma daquelas risadinhas fofas em resposta. ─ O que foi? Ainda não tive tempo. Nem motivação, para ser sincera.
─ Não posso aceitar isso ─ afirmo, ao que ela apenas responde com um movimento dos ombros. ─ Estou falando sério. Isso é, de verdade, inaceitável ─ me levanto em um movimento rápido, os dedos já alcançam o papel do cachorro quente que amasso com veemência. Aponto para a praia e, em seguida, para a mulher à minha frente. ─ Sairemos mais cedo hoje, e então vou te contar algumas coisas sobre Miami ─ afirmo. Natasha aperta os lábios e os olhos ao mesmo tempo, pensativa. ─ Digo isso como seu capitão, mas também como parceiro. Isso não é apenas diversão, se é o que está pensando. Acho que vai precisar conhecer alguma coisa quando sairmos à campo… ─ argumento. Ela leva um tempo para concordar, mas assim que o faz, um sorriso explode em seus lábios bem desenhados e agora parece bem mais animada.

Apoio a lombar no capô duro do Chevy e respiro o ar profundamente. O oxigênio parece entrar quase salgado nos pulmões.
Adiantei alguns relatórios e agendei outras conferências e reuniões para então poder me preparar. Até mesmo porque não me sentiria confortável em levar Natasha para qualquer lugar e acabar soando pretensioso demais. É como eu disse: não é um passeio de verdade, mas sim um reconhecimento local bem profissional.
─ Capitão ─ ela me chama e cumprimenta. Ainda está usando seu uniforme de trabalho, até mesmo as botas de combate. Droga, talvez eu devesse ter dito para ela colocar algo mais despojado, algo casual que não a fizesse derreter com o calor. Apesar do prédio ser uma geladeira, o lado de fora é o completo oposto.
Quase me arrependo de ter vestido calças jeans e camisa polo. O que eu estava pensando? Devo estar parecendo um completo idiota.
─ Não sabia que estaríamos à paisana ─ ela diz, indicando minhas roupas. Sinto meu rosto esquentar no mesmo instante.
─ Bem, não poderia te levar para conhecer Miami no uniforme de trabalho ─ eu digo, mas Natasha apenas me encara como se esperasse uma explicação melhor. Ajeito meus ombros e digo: ─ Nos encarariam demais, você sabe.
Ela concorda com um aceno; seus lábios tomam a forma de um “o”.
─ Devo ir me trocar? ─ ela questiona, mas eu nego com a cabeça em resposta. Não quero que se sinta obrigada a nada.
─ Só se quiser, eu posso esperar ─ afirmo. A mulher concorda e levanta o dedo indicador no ar, como se pedisse para esperar um minuto.
Natasha dispara até seu carro, um pouco distante do meu, então abre o porta-malas do conversível com pressa e parece procurar algo, até encontrar uma bolsa de academia. Imagino que sejam suas roupas de fim de expediente. De repente, ela arranca a camisa sobre a cabeça e fica apenas com o top justo de academia. Em seguida, alcança um pedaço de pano de dentro da bolsa e fecha o porta-malas, trancando o carro por fim.
Noto que estive encarando esse tempo inteiro, talvez com intensidade até demais. Ela se vira e caminha até mim, o que me faz desviar o olhar. Tento disfarçar enquanto a admiro com o canto dos olhos, até que eu perceba que está totalmente vestida de novo.
─ É o suficiente, eu acho ─ ela murmura, suas bochechas tingidas de vermelho. A reação é muito delicada, mas prefiro não comentar nada para não ficar ainda mais tenso. Até porque tenho certeza que ela já me pegou encarando mais de uma vez, por isso, dessa vez acho melhor ficar quieto.
─ Está ótimo ─ eu falo. Natasha morde o lábio inferior e, mais uma vez, preciso desviar minha atenção para o carro. Aponto a porta para ela e entramos no veículo sem mais conversas fiadas.
─ Pensei que não fôssemos passear ─ Natasha diz, parecendo querer quebrar o silêncio constrangedor que paira no ar entre nós. Eu sorrio em resposta, já engatando uma careta a seguir.
─ Tente ver isso como uma missão de reconhecimento ─ pisco para ela, que ri em alto e bom som. Dou a partida no carro.

O primeiro lugar que a levo para conhecer está mais próximo do nosso prédio. Dirijo até Biscayne Bay, porém não passo próximo ao Biscayne Park, região onde moro, mas comento com ela que vivo ali. Não acho que seria muito apropriado mostrar minha casa. Poderia soar como um convite indecente.
Sigo então até Haulover Park e explico para ela mais sobre a história do parque, aproveitando para contar algumas histórias da equipe, missões e memórias importantes para o esquadrão. Retorno por Bal Harbour e aproveito para passar por Surfiside, e me recordo de contar para ela qual é o ponto que conseguimos enxergar de cima do santuário.
Mostro para Natasha alguns pontos onde prisões marcantes para a equipe aconteceram. Também mostro onde Jetson morou na infância. Acabo lhe contando algumas das nossas histórias, e todo o papo de agir profissionalmente vai para o espaço.
Dirijo até Wynwood, lugar que parece empolgá-la com suas coloridas galerias de arte. Eu sequer poderia imaginar que ela gostasse de artes visuais, mas decido que, caso nos tornemos amigos mais próximos, faço questão de trazê-la aqui para uma das noites de exposição. Somente a ideia de ver seus olhos explodirem com as luzes brilhantes acima das cores do bairro quase abandonado, já me sinto empolgado.
Dali, sigo para Little Havana, lugar que ela parece gostar ainda mais. Natasha me conta que mora próximo a essa região, de forma que não preciso apresentar muita coisa. Ela me informa que o pouco que conseguiu conhecer da nossa cidade foi esse bairro cubano, e já me aponta bons restaurantes de comida latina que chamaram sua atenção.
Para finalizar, volto até Miami Beach quando percebo que a noite começa a cair. Passo em frente à Arena American Airlines, que já está com suas luzes fortes acesas. É bonito e impressionante como diversos pontos de Miami. Dirijo até Lincoln Road e deixo que admire as fachadas das lojas.
Nem mesmo sei até onde vai sua vaidade, mas sei que toda mulher que já conheci em toda minha vida sempre afirmou que a Lincoln Road é o melhor lugar de Miami para encontrar tudo o que uma garota precisa. Na primeira vez que disse isso para Jetson, ele me deu um soco esbaforido antes de gargalhar até ter dor de barriga.
Estaciono o carro em frente à uma sorveteria cuja fachada está virada para a South Beach. É um dos lugares mais bonitos que conheço, e também o final perfeito para nosso tour. Natasha parece radiante sob as luzes dos restaurantes e lojas beira-mar.
─ Isso foi genial, de verdade ─ ela conta, empolgada. Um sorriso exuberante aflora em seus lábios rosados.
─ Espere só o grand finale ─ respondo com uma piscadela. Saio do carro e dou a volta; ela já está com metade do corpo para fora quando a alcanço, ainda em tempo de estender-lhe a mão.
Ela parece hesitar por um segundo, o que quase me faz recuar também. Só não me afasto porque já fiz o movimento, e prefiro não retirar a mão ou passaria ainda mais vergonha. Curiosamente, ela acaba aceitando o gesto, e, só para não piorar as coisas, eu a ajudo rapidamente a sair do carro e logo solto sua palma. Para disfarçar, aponto a porta da sorveteria que quero entrar.
Natasha me acompanha para dentro do recinto. Peço um sundae de chocolate enorme, e ela, depois de negar por um tempo, acaba aceitando uma sugestão do atendente e me deixa lhe comprar uma casquinha de abacaxi com coco.
─ Vamos lá ─ eu provoco. ─ É para comemorar nossa parceria ─ afirmo. Tento não parecer um maníaco sufocador. Quando a convidei para esse passeio mais cedo, não imaginava que eu rolaria montanha abaixo tão rápido, só por não saber como agir na frente dessa linda mulher.
“Lambendo as botas dela, não?”, é quase como se pudesse ouvir Jetson sussurrar em minha orelha o tempo todo.
Caminhamos até a praia enquanto comemos nossos sorvetes. Ela me faz segurar sua casquinha o tempo suficiente para tirar suas botas. Ao mesmo tempo, parece ficar livre da sua postura de detetive, e é quase como se enxergasse outra pessoa. Conforme o céu escurece, mais luzes se acendem na rua. O brilho do cenário é acentuado pelas pessoas correndo na praia.
Assim que meu pé toca a areia fina, meu coração se aperta e minha mente fica um tanto turva, mesmo ainda calçado. Sons de tiro ocupam meus ouvidos, meu cérebro parece girar 360º, minha respiração parece falhar e eu engulo em seco. Sinto os olhos cheios de areia. Pisco rapidamente para afastar a sensação, e meu coração parece prestes a explodir a qualquer momento.
─ Isso é muito lindo, Frank, obrigada! Eu nunca estive tão perto do mar por toda a minha vida ─ Natasha diz, quebrando todo e qualquer desconforto. Os sentimentos ruins se dissipam aos poucos ao notar que é a primeira vez que me chama pelo apelido. Não Capitão Morris, nem mesmo Franklin. Apenas Frank, como se fôssemos amigos de verdade.
Concordo com um aceno de cabeça, ainda sem poder falar de verdade. Tenho receio de tentar dizer algo e sair apenas um monte de engasgos. Fazia tanto tempo desde que estive na praia pela última vez, tão próximo da água salgada e do meu passado amargo.
Para não falar besteira, decido apenas admirá-la. Sua felicidade genuína é extravasada pelos olhos, abrilhantados pelas luzes da orla de South Beach. Meu coração se aperta de novo, mas percebo que dessa vez não tem nada a ver com um ataque de pânico – mas porque estou feliz com sua própria alegria.
Não quero que me pegue encarando de novo, mas é praticamente impossível não fazê-lo quando a vejo usar a ponta da língua para lamber o sorvete de um lado para o outro, encobrindo todo o doce.
Ah, merda! Qual é o meu problema?
Juro que gostaria de saber como é que meu cérebro é capaz de ter um mix de tantos sentimentos em tão pouco tempo. Quase como se trabalhasse com apenas uma trava que pendesse entre estado catártico até esse cara meio bizarro que fica empolgado demais só de ver uma mulher bonita lambendo um sorvete.
E é claro que ele volta a me pegar no pulo. Dessa vez não sei onde enfiar minha cara. Quero pedir desculpas, mas decido não entrar em seu jogo. Se eu o fizer, vou apenas confirmar o quão ridículo sou. Sem saber o que dizer para contornar toda essa minha situação, apenas espero que ela aproveite um pouco mais até chamá-la para irmos embora.
O retorno é ainda mais tranquilo. Dirijo com calma até o departamento; o trânsito quase vazio apesar do horário. Ainda melhor que isso, conversamos durante todo o trajeto como se fôssemos velhos amigos, muito embora sei que provavelmente dei respostas vagas para muitas das perguntas sobre minha vida pessoal. Assim que chegamos, estaciono em uma vaga mais próxima ao seu carro. Ela suspira profundamente antes de girar seu corpo em minha direção.
─ Obrigada por isso mais uma vez, Cap...
─ Frank ─ respondo, cortando seu agradecimento. ─ Pode me chamar só de Frank, somos parceiros ─ eu digo e ela acena afirmativo, aquele sorriso de novo brincando em sua boca.
─ Obrigada, Frank, acho que precisava muito disso ─ ela diz e pisca um olho para mim. Por um momento, quero dizê-la que ambos precisávamos, que ela não faz ideia do quanto me fez ir longe essa noite, que não imaginava o quanto me fez superar. Mas não digo nada, apenas gesticulo com a cabeça enquanto seguro um meio-sorriso nos lábios. ─ É uma pena que não pusemos nossos pés na água, mas quem sabe outro dia... ─ ela continua a falar, parecendo empolgada, o que me anima também. Afinal, isso significa que haverá uma outra vez?
Sou pego de surpresa quando Natasha solta um “boa noite, Frank”, e encosta seus lábios com leveza em minha bochecha. A pele parece arder assim que ela se afasta. Encaro suas costas, sem qualquer sinal de vergonha agora, até que entre em seu carro e dê a partida, me deixando em ponto de ebulição pela segunda vez em tão pouco tempo.
Espero alguns minutos até que sinta a sensação efervescente diminuir. Sendo honesto, para voltar a ficar confortável o suficiente em minhas calças para que consiga dirigir. Só não consigo deixar de tirar sua última frase da minha cabeça, sua ideia que acaba me dando uma outra ideia. Alcanço o telefone no bolso e disco o número de Jet.
Ei, irmão. Tudo bem por aí? ─ ele me pergunta com sua voz hesitante ao me atender depois de dois toques, quase como se esperasse eu lhe contar qualquer loucura que fiz.
─ Tudo certo, cara. Só estive pensando em uma coisa...
Ah, puta merda, Frank. Pensando com qual cabeça? ─ pergunta, já adivinhando meus pensamentos e gargalha do outro lado da linha.
─ Cale a boca e me escute ─ eu digo, e ele o faz. ─ Tenho pensado no quão esgotada a equipe tem parecido nos últimos tempos e com os últimos acontecimentos. Também não os deixamos descansar o suficiente durante esses dias, muitos estão se acabando em horas extras... Eu acho que precisamos de um descanso.
Nem imagino qual agente em hora extra te fez considerar isso... ─ ele começa a falar, mas eu corto seu assunto rápido, sem deixar que elabore a piada.
─ O que acha de um final de semana em Key West? Já tínhamos pensado nisso um tempo atrás… ─ proponho. Consigo sentir o largo sorriso se formando em sua boca do outro lado da linha. Ele deve estar pensando na metade das mulheres do esquadrão de biquíni, o que é muito sua cara. E é bem por isso que sei que irá concordar sem pensar demais, e também que vai conseguir convencer o General sem problemas.
E eu só consigo pensar num grande problema.
Natasha será meu problema!


NATASHA IVANSKI


Tem uma coisa flutuando no meu teto, algo parado sobre a minha cabeça que não consigo enxergar totalmente. Uma coisa clara, serena. É tão calmo que faz meu coração bater em frequências tranquilas, normais, mesmo quando lá no fundo tenho a sensação de que poderia correr uma maratona inteira sem pausas.
Meus olhos parecem não se permitir fecharem, não se ver de novo essa coisa. E eu sinto que esse algo tem tirado meu sono, muito embora seja tranquilo. Mas quando me deixa fechar os olhos, quando me permite dormir, me faz sonhar. Me leva de volta a um lugar que não tenho certeza se já estive antes e me faz muito, muito bem.
Forço minha mente para entender, para enxergar com clareza, pois tenho certeza que sei o que é.
Esse algo tem nome. E agora quase posso tocá-lo.

Tum.
Tu-tum.
Tum.
Tu-tum.

Meu coração nunca esteve tão acelerado. Ele bate com o ritmo do som, muito alto, que zonzona em minha cabeça. Uma batida forte e contínua, não consigo reconhecer.
Às vezes, soa como uma porta sendo surrada com ódio. Às vezes, parecem passos estampidos em um corredor. Outrora, ainda, parece um alvoroço de pessoas se divertindo em uma grande festa.
É a minha festa! Todos vieram me prestigiar.
As pessoas dançam, felizes, sua última dança. Até que os passos voltam, raivosos e precisos. Botas masculinas, pesadas e resistentes – eu reconheço o som. Eles carregam muito peso, quase dolorido nos braços firmes. É aço e pólvora. A artilharia está apontada para o centro do peito daqueles que nem mesmo tiveram a oportunidade de se preparar para o que estava por vir.
Tiros precisos causam as exatas perfurações que pretendiam. Vísceras e sangue quente explodem em meu rosto, mancham minha visão. E eu enxergo vermelho, eu respiro vermelho. Provo seu sangue e o ouço correr em minhas veias; eu toco o sangue.
Minhas mãos!
Mãos pintadas de um vermelho escuro, quase um rubi, brilhante e amargo. No entanto, não é o meu sangue, nem mesmo consigo definir de onde veio, de qual peito ou cabeça. A música continua, as pessoas sangram e dançam, dançam e sangram, como em um baile vampiresco e seu banquete repleto de almas perdidas, arrancadas de seu próprio cerne.
... — sua voz é um sussurro, macia e tangível. Mas não pode ser, por que estaria presente aqui? Me viro apenas para encontrar seu rosto, que me encara com uma ferocidade que é quase animal. Vermelho espirra mais uma vez em meu rosto, sua cabeça...
OH, MEU DEUS!

— FRANKLIN! — grito, a voz rasgada e a garganta seca. O pulo que dou derruba o travesseiro no chão, e quase caio também.
Que merda?!
Eu não acabei de ter um pesadelo surreal com o meu superior, não é? É claro que não passou de uma quimera, um devaneio muito pirado. Mas, se me concentrar por um segundo, ainda consegui sentir o aroma metálico preso nos pelos das minhas narinas; o sabor acre que me aterrorizou é quase pútrido ao descer pela garganta.
Acho que foi a coisa mais bizarra que me aconteceu em eras. Tudo começou na noite anterior. Meus olhos ficaram anuviados e meu coração se acalmou tanto de um jeito quase assustador, como se alguma coisa estivesse flutuando em minha mente, adoçando meus piores pensamentos.
O “reconhecimento de campo” – eu chamaria de passeio – com o Capitão Morris foi o maior dos deleites que tive desde que pus os pés nos Estados Unidos até então. É claro que o clima quente fez a maior parte do trabalho sozinho. Tudo foi perfeito, como se alguma divindade quisesse que as coisas se desenrolassem da melhor maneira.
Mas o mais curioso foi estar o tempo todo em sua presença e ainda assim me sentir confortável, totalmente à vontade. Sutil e suave são os melhores adjetivos para descrever suas atitudes. Seu esforço em me ambientar no lugar foi o que me alentou e deixou, de verdade, repleta de felicidade.
Já faz um bom tempo desde a última vez que tentei enxergar as coisas com a mente tão aberta, sem permanecer 100% do tempo alerta. Por um instante, quase acreditei na possibilidade de ser apenas uma pessoa normal, sem um passado corroído por uma sucessão idiota de erros e mais erros, que desgastaram qualquer possibilidade de um futuro pleno e satisfatório.
De qualquer forma, me permiti sentir. Talvez tenha sido esse ar salgado de Miami, ou talvez o barulho das ondas, ou ainda, quem sabe, tenha sido somente a presença do homem que me acompanhou. Me fez sentir algo diferente. Não desconhecido, mas surpreendentemente possível.
Confiança é a palavra certa. Franklin me deu essa confiança toda, e acho que não reconhecia o significado da palavra por tanto tempo que quase me atingiu como um soco na boca do estômago. E acho que foi isso que me fez sentir de verdade.
Bem, não acho que o destino esteja sendo muito gentil ao me devolver em troca um pesadelo de merda como esse. Mas fazer o quê, meu cérebro às vezes é uma piranha.

— Ah, olá, Bela Adormecida — Nikita me cumprimenta assim que entro no pequeno estúdio de luta improvisado em nosso apartamento. Ele veste uma regata vermelha que ressalta os seus músculos bem definidos ao longo dos anos de treino e prática em combate. Sua calça tem uma bandeira estadunidense costurada, o que é um tanto irônico.
— Não é muito sutil, huh… — comento, o dedo indicador esticado na direção da decoração. Ele dá de ombros, um meio-sorriso estampado em seus lábios.
— Estamos em solo americano, querida, temos que prestar um pouco de respeito... — ele responde, mas sinto que seu comentário é nada menos que zombeteiro e quase gargalho em troco. Mas de um todo ele não está absolutamente errado. Precisamos mesmo pisar sobre ovos, ainda mais quando estamos bem longe de casa. Mesmo que seja a curto prazo, é claro, se todos os nossos planos derem certo.
Termino de comer o sanduíche que preparei minutos antes, limpo as mãos em uma toalha e me ajeito para a sessão de treino antes de seguir para o trabalho. É minha manhã de folga, por isso consigo aproveitar da melhor maneira que conheço... esfolando os dedos em um saco de pancadas.
Ajusto o top esportivo que uso no lugar certo e me posiciono em frente ao saco de couro recém-adquirido, tão cheio com areia grossa que chega a escapar um pouco a cada soco. Pelo canto dos olhos, vejo que o instrutor me observa, e é bem provável que nunca vá deixar essa posição de treinador e conselheira de lado, o que é um alívio.
Indiferente ao que possa acontecer com relação à Semyonova, Nikita sempre estará ao meu lado, ao lado daqueles que restaram de nossa família. Sem almejar demais, é claro, mas jamais aceitando menos do que é. E sinceramente, é reconfortante pra cacete saber que ele está do meu lado, que endure todos os casos, alimente minhas forças e me aconchegue mesmo em meu casulo.
Desfiro o primeiro soco e respiro profundamente ao posicionar os meus pés de forma que ajude o corpo a se equilibrar do melhor jeito. Forço o movimento da mão em outro soco firme, dessa vez mais forte; o equipamento balança um pouco. Arrisco uma joelhada seguida de um chute e giro o corpo, aproveitando o movimento perfeito para acotovelar o aparelho.
Enquanto encho o saco de pancadas, imagino a cara do Ivan no lugar, também do Yolav – porque ele merece uma surra só dele – e, por último, a de Mikhail. Meus olhos são injetados de um veneno a base de sangue e ódio; o gosto acre invade minha boca e minha língua parece ficar dormente. Meus movimentos são quase um mantra, que empurra a adrenalina mais fundo em minhas veias e o meu cérebro trabalha duplamente enquanto meu corpo responde.
Soco. Soco. Chute.
Yolav. Ivan. Mikhail.
Os três nomes são como tatuagens em minha mente, três iniciais cravadas na parte mais profunda da minha alma. Três balas engatilhadas.
Termino a sessão de treino com socos rápidos e precisos no saco de couro. Suor escorre pela nuca e toda a extensão da minha coluna. Sinto os dedos latejarem dentro da luva puída, e meus punhos são tão firmes que parecem pedra.
— Sei que não faz parte do meu papel ficar te enchendo de elogios, mas... me chame de puxa-saco, ok? Você evoluiu demais, querida — Nikita diz com um sorriso carinho estampando seu rosto bondoso. Eu correspondo e aceno com a cabeça uma vez, nem mesmo sei como agradecer.
Ele estende uma garrafa de água em minha direção, que aceito de bom grado. Me junto ao seu lado no banco de madeira e me sento também, arrancando as luvas sem o tecido de proteção, que fica preso entre os dedos úmidos. Enxugo minha pele com uma toalha, tanto quanto consigo alcançar, mas mais e mais suor parece escorrer. Como se cada uma das minhas frustrações estivesse vazando pelos poros.
Nikita, por sua vez, segue para o saco de pancadas que utilizei anteriormente e começa a sua sessão de “porradaria”, e só para de vez em quando para fazer um comentário ou outro. Quando termina, é a minha vez de lhe entregar uma água, que ele agradece, pois sua tanto quanto eu.
— Alguma evolução em nosso lar? — questiono, reforçando a palavra “nosso”. Sei que reconquistar nossa casa é tão crucial para Goncharov quanto é para mim, mas ainda assim não consigo deixar de notar que ele tem se adaptado muito melhor ao solo americano do que eu. Fico até um tanto receosa de deixarmos de progredir se eu não ficar forçando o assunto. Por outro lado, posso acabar sendo um pouco... chata.
— Pra falar a verdade, sim — ele murmura. Meu corpo fica em alerta, no modo automático. Giro meu corpo para o dele em um movimento rápido e quase o empurro para fora do banco com a repentina empolgação. Sei que deveria esconder essa excitação, mas é muito difícil não reagir quando qualquer migalha vinda de Moscou me faz a mulher mais animada do mundo. — Ibraihmovic me enviou uma mensagem dentro da Semyonova — ele diz. Ibraihm é um de seus espiões mais confiáveis, mas como conseguiu se infiltrar, não faço ideia. — Ele ouviu um dos filhos do Koslov falar algo sobre um possível ataque a São Petersburgo. Aparentemente, tem alguma carga para receber em Neva Bay, pelo que entendi, algo vindo daqui...
— Da América? — pergunto, horrorizada. Ele concorda com um aceno. Mas o que? Drogas? Armas? — Faz ideia do que pode ser? — indago, meu raciocínio não é rápido o suficiente.
OH. PUTA MERDA!
— Porra! Nikita, eu acho que sei que merda está acontecendo? — cuspo a frase sem tomar fôlego entre as palavras. Ele apenas aguarda que eu conclua. — Há uma grande possibilidade de aguardarem um contrabando de mulheres... — conto. Nikita coça o queixo, pensativo.
— Mas o que isso pode ter a ver com São Petersburgo? — ele questiona; meu cérebro parece um monte de engrenagens estralando. Eu poderia pegar uma metralhadora, voar direto para Moscou e me atirar na cabeça de Mikhail, estraçalhar seus miolos sem nem pensar duas vezes.
— Nikita, antes de qualquer coisa, estamos falando de tráfico humano! Pense em como isso pode ser grande, rentável para Koslov — argumento.
Ele parece pensar por um momento, mas não temos tempo para pensarmos muito. Minha cabeça está a mil, meu coração parece que vai explodir.
— Acha que talvez...
— Sim — digo, sem deixá-lo continuar. — Koslov quer de alguma forma incriminar a parte da Bratva que ainda resiste em São Petersburgo... Ele vai receber uma carga falsa em Neva Bay, qualquer porcaria. Enquanto isso, vai receber o verdadeiro contrabando em outra parte, pobres coitadas que irão escravizar e abusar das piores maneiras que conseguir pensar! — grito alto enquanto Nikita já salta, alcançando seu telefone sobre uma mesa no canto da academia.
— Preciso avisar Smirnov o quanto eles, ele precisa contatar seus fortes aliados na Rússia — ele diz, já deixando o recinto, eu em seu encalço. — Eles precisam encontrar essa carga de pessoas antes que desembarque, ou iremos perdê-la. Precisamos remanejá-las de volta aos Estados Unidos e impedir que suas vidas se transformem em um inferno sem fim — digita rapidamente com seus dedos firmes na tela do aparelho.
— Um inferno é pouco... — murmuro ao acompanhá-lo até a sala. Um som de resposta toca no celular. Nikita digita mais alguma coisa e parece apertar o botão de enviar.
— Pronto, Alexander já está a par de tudo... vai colocar seus homens no comando o mais rápido que conseguir. Infelizmente, precisamos continuar por trás das cortinas, sabe como é, eles não podem...
— Blábláblá, saber que estou viva. Eu sei, eu sei — dispenso sua preocupação com um aceno de mão. Apesar de me sentir elétrica, não é como se eu fosse mesmo pegar um voo para Moscou agora mesmo. Tive bastante tempo para aprender a controlar minha raiva e entender que a minha parte do plano é maior do que meu desejo de vingança.
Eu terei tempo o suficiente para explodir a cabeça dos Koslov que ainda não matei.
— Só tem uma coisa que não entendo — Nikita começa a argumentar no mesmo momento que se apoia na bancada da janela. Seus olhos estão fixos no céu límpido de Miami; uma brisa suave balança seus cabelos que até poucos instantes estavam grudados em sua testa. Um movimento de conforto. — Por que São Petersburgo? Agora?
— Não está claro? Se eles tirarem Saint Pete de jogo, não haverá mais nada entre a Semyonova e a Vory v Zakone, ou os restolhos dela... — digo, minha voz tão sombria que parecem sair de um corredor escuro em meu peito. Ele pensa por um momento e, por fim, concorda com um aceno. — Você acha que teria feito diferença? — questiono ao encarar minhas mãos, calejadas e impotentes. Nikita me observa com o canto dos olhos, sem entender onde quero chegar. — Você sabe... se eu tivesse me esforçado mais... talvez Katya e Niko... — murmuro, meus lábios tremem e de repente não consigo enxergar mais nada. Meus olhos estão cheios de lágrimas pesadas que, insistentes, correm bochechas abaixo.
A mão firme do instrutor toca meu ombro em um carinho reconfortante, mas não consigo olhá-lo agora, pois não acho que seria capaz de me segurar mais nem um segundo e desabaria em seus braços. E eu prometi que não cairia mais.
Sei que seus olhos são bondosos em minha direção, assim como as intenções em sua alma. Mas, ainda assim, é pesado demais. Também sei que Nikita se segura para não jogar a culpa em mim, mesmo quando eu mesma tenho a certeza de que mereço ser julgada como a grande culpada.
Tenho certeza que teriam tomado outro rumo, sim, se por um segundo eu tivesse sido capaz de ir atrás de Ivan e arrancado suas bolas na unha quando tive oportunidade.

Meu cérebro continua a fervilhar, é muito difícil manter todos os pensamentos somente em minha cabeça. Tento me ocupar com o máximo de trabalho que consigo fazer de uma vez só. Mas devido à insistência do capitão em prosseguir com sua investigação – tão pessoal – contra Sommers e McCarter e sua ligação com a Bratva, acabo não conseguindo desviar o meu pensamento do que pode estar acontecendo lá nesse instante.
Contudo, não posso dividir com ele sobre o possível ataque da Semyonova à São Petersburgo sem levantar suspeitas. Não posso jogar a informação de que é possível ter uma carga humana para chegar à baía sem nem mesmo ter como explicar tudo aquilo.
Ao menos consigo correr e avisar Yond quais são as informações que tenho até o momento e ver o que ele sabe também, e aí espalhamos nossas trocas para os demais. Assim é possível que ele também consiga, de alguma forma, jogar a merda para a polícia russa para que peguem Mikhail a tempo. Em partes, espero que isso aconteça mesmo, mas se paro bem para pensar, espero profundamente que não o tenha pego – não agora. Até porque eu mesma posso acabar com ele usando minhas próprias mãos.
Não consigo concentrar minha atenção em nada por muito tempo. Meus pensamentos insistem em convergir o tempo todo para o ataque a São Petersburgo e no quanto eu daria para estar lá no exato momento que Mikhail chegaria com seus capangas e filhos idiotas. Daria tudo mesmo para ver o queixo de Ivan cair quando me visse inteira, viva, mesmo com o tiro que recebi.
Com o rabo entre as pernas. Essa foi minha última visão de Ivan, correndo por sua vida de merda. Às vezes, eu gostaria de que essa fosse a última visão dele mesmo.
“Preciso sair daqui”, minha cabeça repete várias e várias vezes.

Desisto de trabalhar, já que Nikita não vai me dar notícias tão cedo. Até porque ele também não pode sair confirmando o resultado da operação sem nem ter certeza de nada. Preciso ter paciência, me acalmar. Por isso segui para o único lugar onde sei que farei o que realmente sei.
O ginásio de luta.
Não está totalmente cheio, o que é bom. Não seria um bom momento para dividir o ringue com qualquer panaca da corporação agora. Poderia simplesmente quebrar o queixo de alguém sem nem saber como aconteceu.
Eu preciso extravasar sozinha.
Me dirijo até uma punch ball solitária e admiro o equipamento pendurado ali, em toda a sua glória de ser inanimado que faz parte de uma grande, profissional e ética equipe dos Estados Unidos – que agora abriga sob seu teto não um, mas dois inimigos. Que grande merda. Tudo que quero é arrebentar essa porcaria, arrancá-la do seu lugar.
Talvez meu cérebro pare de latejar tanto, talvez seja algo tão bom que eu até mesmo dê risada disso.
Mikhail. Ivan. Yond.
Os três nomes parecem piscar como um letreiro neon em minha mente. Dessa vez não é apenas ódio que me movimenta; estou sedenta para destroçá-los, pedacinho por pedacinho. Ansiosa para descobrir quais serão suas expressões idiotas quando eu chegar pronta para explodir suas cabeças sem que nem mesmo tenham tempo de pronunciar o nome da minha família.
Calço as luvas de qualquer jeito, sem proteção, sem nem mesmo as fechar direito. Não me dou ao trabalho de me preocupar com nada disso; sinto que só preciso me acalmar por um minuto. É só isso.
Começo a socar o aparelho sem muita graça, sem movimentos pensados. Apenas deixo que meus punhos fluam pelo couro gasto. Não estou preocupada em como os outros me veem agora.
Sergei.
O primeiro nome me atinge como uma bomba direto no coração. Ele teria sido o melhor líder de todos os tempos se tivesse tido mais tempo. Claro que eu nunca o endeusaria e colocaria uma coroa de louros em sua cabeça. Papa não era um santo. Ele não chegou em sua posição a troco de vinho e paz, mas tampouco era um demônio de chifres sangrentos.
Ele tinha sua cota de erros preenchida eternamente; assassinou tantos homens quanto eu poderia socar um saco de pancadas. E ainda assim foi um líder respeitado e admirado, a ponto de mesmo... morto, ainda ter seus homens em suas mãos carregando seu legado com fidelidade e honra.
Elizabeth.
O segundo nome vem em uma onda mais lenta, mas não menos cruel, quase como uma lâmina entrando debaixo da unha, em uma tortura quase teatral.
Mama não nutria todo seu amor pela maternidade, nunca nem fez questão de parecer a mãe do ano. É bem provável que todo o amor mágico e perfeito que sentiu ao conhecer papa sumiu ao longo dos anos que conviveram juntos. Tantas regras e restrições, tantas aparências falsas acabaram endurecendo sua postura, pois era assim que deveria se apresentar.
E eu a amava pra cacete, com todas as minhas forças. Apesar de ser contra o seu posicionamento e não aceitar que ela tomasse decisões por mim, eu a entendia. Da maneira que conseguia entender. A admirava também, sua força e seu esforços, sua boa vontade em tentar nos fazer sentir como uma família convencional.
Soco a punch ball com ainda mais força; sinto como se odiasse o aparelho tanto quanto poderia odiar um dos homens da Semyonova. Desejo suas mortes de forma dolorida e lenta, do modo mais cruel que posso imaginar.
Os movimentos são precisos e cruéis, sem hesitação. Já não me incomodo com a dor nas mãos, tudo faz parte do jogo. Assim que termino com esse, troco de aparelho. Meus passos são rápidos como uma pequena corrida até o saco de pancada logo ao lado. Sinto que, se eu socasse essa bola por mais tempo, provavelmente iria arrebentá-la.
O saco, por outro lado, é mais firme. Posso socá-lo e chutá-lo, dar cotoveladas o quanto quiser, que não se movimentará com a mesma velocidade. Ao menos assim posso concentrar melhor minha raiva, canalizar todos os sentimentos ruins presos em meu peito, para que fluam pelos dedos até o couro.
Katya!
O nome da minha irmã vem como um tiro na direção da minha cabeça, perfura meus tímpanos, meus olhos e também minha garganta, bem na aorta. Quase sinto o sangue jorrar alma afora.
Katya era quem tinha mais potencial entre nós. Tenho certeza que em qualquer momento do futuro ainda a chamariam de gênio. Ela seria a melhor esposa e mãe no mundo todo, e ela sonhava com isso. Eu os odeio, ainda mais por isso – os Koslov tiraram isso dela.
Ela era a melhor de todos nós, não tenho sombra de dúvidas. Seu coração era puro e cheio de verdade. Não havia espaço para ira ou qualquer mesquinharia. Katya tinha sido moldada a partir do mais puro ouro angelical. Ela merecia tanto conquistar o mundo, mas só recebeu ruína em retorno.
Sinto um rosnado gutural se formar em minhas cordas vocais, que escapa pela garganta e lábios. Quase quero gritar. Não sinto meus dedos agora; estou certa de que no dia seguinte terei alguns hematomas pelo corpo. Mas não me arrependo de estar aqui, de aliviar, ao menos um pouco, tudo o que sinto. Ao menos assim não me envolvo naquilo que não tenho permissão de participar.
Pelo menos não ainda. É o que repito seguidas vezes, em reconforto para a mente e o coração. E então o último nome me atinge, não consigo pensar em mais nada. Meu mundo é apenas vermelho e dor.
Nikolav.
É quase um sussurro em meus pensamentos. Em meu coração, por outro lado, soa mais como um grito desesperado. Não consigo, e talvez nem queira, imaginar o que pode ter acontecido ao meu irmão. Se tento sequer pensar em qual pode ter sido seu fim, a bomba corrosiva em meu coração parece prestes a explodir do tamanho do mundo. Se eu pudesse, enfiaria mesmo uma bomba atômica no rabo do Mikhail e tiraria por sua garganta antes de deixar explodir em sua cara.
Alguns dizem que é um pecado gravíssimo desejar a morte de qualquer um. E, para falar a verdade, não me sinto nem um pouco arrependida de sonhar e desejar infinitas vezes que os Koslov explodam pedacinho por pedacinho enquanto eu mesma aperto o botão do detonador.
Contudo, meu corpo está exausto. Se eu pudesse, deixaria os gritos presos em meu peito fluírem boca afora, mas é como se meu pulmão mal conseguisse manter o oxigênio no lugar, e o sangue parece não circular pelas veias.
Soco e chuto o saco de pancadas tantas vezes seguidas, com tanto ódio, que chego a me desequilibrar. Preciso parar e me sentar um pouco. Minha visão está turva, escura. Preciso me acalmar e respirar, mesmo que pareça, de repente, muito difícil. Sinto minhas pálpebras pesarem com as lágrimas que as enchem. Engulo o ar, que desce dolorido pela garganta quase fechada. Arfo seguidas vezes em um ataque de pânico.
─ Ei, ei... ─ ouço sua voz, mas não tenho forças para olhar para cima. ─ Venha comigo, ninguém precisa te ver assim agora ─ diz, com sua mão estendida, que eu alcanço com certo esforço. O capitão está ali, e ele continua falando enquanto eu preciso me concentrar em como levar oxigênio. ─ Às vezes tudo aqui vira a porra de um show, e você não precisa explicar nada para ninguém, sabe. Mas eu consigo ver de longe quando uma parada é pessoal, e dói pra caralho...

Mesmo depois de passar o dia todo fora em alguma missão com outra parte da equipe, Frank está parado ali, por um bom tempo, só me observando. Ele apareceu no exato momento onde achei que fosse explodir. Estava hiperventilando e chorando como uma idiota, e é bem provável que muitos tenham notado, pois apesar de estar vazio quando cheguei, assim que deixamos a academia o número de pessoas estava bem maior. Contudo, Frank não diz nada, o que é um grande alívio.
─ Posso? ─ ele pergunta e aponta para minhas luvas. Não tenho forças sequer para erguer as mãos, então aceno afirmativo com a cabeça e estendo os pulsos em sua direção.
Só então consigo me situar onde estamos: no vestiário, sozinhos. Se tinha alguém ali quando chegamos, é bem provável que Franklin tenha mandado sair rápido. Se esse foi o caso, para ser sincera, fico agradecida.
Quando retira minhas luvas, posso ver o estrago que meus golpes fizeram em minhas mãos. Os nós dos dedos estão moídos. Em certos lugares, o sangue até mesmo está seco. Devo ter torcido o pulso esquerdo, pois está roxo e dói como o inferno. Frank busca em passos rápidos um kit médico em um dos armários próximos e começa uma limpeza superficial nos ferimentos.
─ Não sei o que aquele saco de pancadas disse ou fez para a minha parceira, mas ela com certeza lhe passou uma lição bem dada... ─ ele diz. Um sorriso divertido e brincalhão dança em seus lábios, mas não consigo responder. ─ Desculpe, não precisa me dizer o porquê de estar tão nervosa.
─ Bratva... ─ digo em um sussurro repentino, sem pensar, e me arrependo no segundo seguinte. Frank me encara por um segundo, um olhar firme e ao mesmo tempo curioso. Preciso pensar rápido no que responder e não me comprometer. ─ Yond não te falou?
─ É claro que falou, eu sou o capitão ─ Frank deixa escapar uma risada baixa e grave. Quero rir de volta, para entrar no clima, mas não consigo. Não posso deixar de pensar que sei além do dobro que ele imagina. De repente, me sinto mal por não poder despejar toda a verdade em sua face. Não sem sofrer as consequências.
─ Só fiquei... infeliz. São mulheres, Frank... Consegue imaginar que inferno eles as fariam viver? Não posso sequer mensurar ─ sussurro com a voz carregada de emoção, que, apesar de tudo, é genuína.
Frank concorda com um meio de cabeça e se senta no banco ao meu lado. Por um segundo ele ergue sua mão, e acho que irá tocar meu ombro. Mas tão rápido quanto a ergue, também abaixa, desistindo ao afastar sua palma.
─ Não se preocupe, elas voltarão em segurança para suas casas. Posicionamos algumas equipes militares para interceptarem sua chegada. Te prometo que o máximo que irá acontecer com elas é um jet lag ─ diz, tentando mais uma vez soar divertido. Seus olhos, contudo, parecem preocupados, como se ele mesmo quisesse estar lá para resolver a situação com as próprias mãos. Por um instante, esqueço o passado e qualquer outra coisa e apenas me permito admirá-lo.
Franklin é bonito, na verdade ele é lindo. Mas é mais do que isso. Tem algo em seus olhos, um sentimento carregado de sofrimento por algo que não sei dizer o que é. E, mesmo assim, ele sabe o momento certo para parecer gentil e transmitir calma e serenidade. Sinto como se pudesse me afogar nesses mesmos olhos, como se aqui não fosse capaz de esconder nada, não precisa esconder nada. Receio que possa ler meus pensamentos.
─ Hmm, sei que não é o melhor momento, mas... ─ ele volta a falar, baixo, e muda sua postura ao girar seu corpo na direção do meu. ─ Tenho algo para contar. Algo que teremos que repassar para toda a equipe ─ ele diz. Meus músculos voltam a ficar tensos, como se já me preparasse para as notícias ruins. Frank percebe, pois solta uma risada baixa. ─ Relaxa, é uma boa notícia, e acho que depois de hoje todos precisamos de boas notícias, huh?

Apesar da seriedade, no fim das contas não é bem uma notícia o que Morris tinha a me dizer, mas só um comunicado que, mais tarde, quando tiver alinhado meus pensamentos na posição certa e ouvir da boca de Nikita a confirmação de que deu tudo certo, vou poder absorver com mais calma e, com certeza, com mais entusiasmo.
Franklin está à frente da sala de reuniões e o esquadrão está espalhado pela sala, juntos em grupos de quem tem mais afinidade. Percebo suas expressões curiosas, como se não fizessem ideia do que se passa na mente do seu capitão e, em partes, sentissem um misto de empolgação e receio por isso.
─ Pessoal, convoquei todo mundo aqui bem rápido. Prometo levar menos de cinco minutos ─ Frank diz, chamando a atenção de todos. Fico besta com os olhares que os detetives lhe dão. Não é apenas admiração em seus olhos, mas, acima disso, a sala exala respeito. Algo se aquece em meu peito, algo desconhecido, que não sei explicar. Mas o sentimento é instantâneo e sinto que quero mantê-lo em mim.
Morris leva realmente menos de cinco minutos para explicar o seu convite para toda a equipe, e, após muitos buchichos e murmurinhos, ele dispensa todos.
─ Então, o que acha? ─ ele questiona. Eu inclino a cabeça em resposta, uma careta se formando em meu rosto cansado. Ele ergue as mãos em rendição. ─ Ok, ok, desisto... Não precisa estar super feliz, mas pelo menos me diga que não quer mais estourar a cara do coitado saco de pancadas ─ ele resmunga, e não consigo segurar uma risada. Ah, cacete, o que foi isso? Meu peito parece saltar dois mortais para trás quando ele abre o sorriso mais bonito que já vi em toda minha vida.
─ Acho... eu... a-acho que vai motivar sua equipe, então... bem necessário... ─ gaguejo uma resposta qualquer, e ele ri baixo, mas concorda com um aceno e chama com um movimento da mão para que o acompanhe até nossa sala.
Frank me conta que, depois do nosso passeio noite passada, eu o fiz pensar bastante no quanto gostaria de ter colocado meus pés na água do mar, nem que fosse por um minuto, e que isso o fez pensar em todos os outros detetives, que também devem pensar o mesmo. Por isso ligou no minuto seguinte para o Capitão Richards, que acatou prontamente sua ideia de levar o time para um pequeno fim de semana de folga.
É claro que ele teria que fazer tudo muito bem organizado, e que também teríamos que trabalhar igual mulas nos próximos dias para conseguirmos essa folga sem correr risco de interrupções. Mas não dá para negar, a ideia de conhecer Key West é bem empolgante. A ponto de me fazer esquecer tudo por um momento tudo que está acontecendo em minha terra.
É uma merda egoísta, eu sei, mas também é uma mentira descabida dizer que não há uma pulguinha coçando atrás da minha orelha, sussurrando que eu posso respirar por um minuto pelo menos. Além disso, acho que o altruísmo de Frank é o que realmente me deixa animada. Sua alegria é contagiante.
─ Também acho que vai ser algo muito bom ─ ele pondera e morde seu lábio inferior enquanto pensa. Não consigo deixar de reparar, talvez com atenção até demais. ─ Afinal, o que pode ser melhor do que um monte de detetives sarados exibindo sua boa forma em praias paradisíacas? ─ ele argumenta, com uma gargalhada alta enquanto torce o nariz. ─ Sinceramente, acho que a melhor parte disso é, pelo menos um dia em nossa vida, poder beber como se não fôssemos oficiais... ─ afirma. É minha vez de dar risada, um som bobo que me faz parecer uma adolescente. Seus olhos me encaram com intensidade, e preciso ser forte para não me obrigar a desviar meu próprio olhar. ─ Espero que tenha um biquíni separado no meio dos casacos de pele ─ ele brinca, mas é o suficiente para fazer meu rosto queimar.
Penso em uma resposta atrevida, pois odeio sair por baixo em uma conversa. Mas quando penso em algo, Frank já voltou a digitar em seu computador, e me faz perder o fio da meada. Estou surpresa, e também agradecida, pois sei que depois de hoje, se não fosse por ele, provavelmente ainda estaria quebrando os dedos no saco de pancadas. E quem diabos sabe quantos olhares curiosos e julgadores estaria atraindo?
Me sinto aquecida, desde o peito até a ponta dos pés. Não é apenas pela atitude do Capitão Morris, em me acolher tão bem, mas também por tudo que ele parece ser.

No fim do expediente, dirijo tão rápido de volta para o apartamento que só acabo mais nervosa ainda, e demoro para conseguir estacionar o carro. Quase arrebento a porta assim que o elevador me deixa em nosso andar, e praticamente me jogo para dentro do apartamento, o que faz com que Nikita – sentado no sofá com seus olhos fixos na tela do computador – role seus olhos para me encarar, mesmo que não pareça muito surpreso com a minha entrada teatral.
─ E então? ─ pergunto impaciente; seus olhos são profundos contra os meus. Talvez eu devesse ter começado a conversa com um “boa noite”, mas meus intestinos embolados não me dão espaço para agir com calma e sem me contorcer a cada dois segundos.
─ Hmpf, acho que dá pra dizer que a nossa resposta à Semyonova foi bem sucedida ─ ele diz, um sorriso largo se abre em seu rosto. ─ Ao que tudo aparenta, o departamento de operações especiais em São Petersburgo conseguiu conter a carga no porto exatamente como imaginamos, no verdadeiro ponto de entrega. E em Neva Bay, como falamos, a falsa carga também foi interceptada por garantia, um monte de peixe recém-pescado... ─ ele ri, seu semblante é totalmente despreocupado.
Eu desabo em uma cadeira próxima a ele, largo a bolsa no chão com um baque. Minha nossa, sinto como se meu coração pudesse explodir agora. Sou tomada por uma onda de alívio tão forte que poderia chorar. Porém, por outro lado, não consigo deixar de considerar o quanto nossa intromissão nos planos de Mikhail só vai fazê-lo ainda mais furioso, a ponto de querer retaliar de vez a Vory v Zakone.
─ Teremos que ser mais espertos agora, ficar atentos... ─ digo com um suspiro longo e pesado. Nikita se levanta em um movimento rápido, nos enche um copo de uísque e me entrega em seguida. Engulo um gole, sedenta, e o líquido parece queimar garganta abaixo.
─ Ah, com certeza. Koslov está longe de ser um idiota. Ele já deve ter notado que algo estranho vem acontecendo enquanto continuamos plantando nossas sementes em sua colheita maldita ─ ele responde com um dar de ombros; eu apenas presto atenção em silêncio. Sei que toda informação, raramente compartilhada, é válida e deve ser absorvida com sabedoria. ─ Me reuni com Alexander mais cedo, só para validarmos a situação e concluirmos qual seria o melhor plano a seguir contra esse ataque infame. Mas apesar de ter dado tudo certo, não significa nem de longe que acabou.
─ Nada nunca acaba com esses bastardos de merda ainda vivos.
─ Você tem razão, garota. Se bem que... ─ Nikita para para pensar por um segundo antes de concluir. ─ Acho que Mikhail vai ficar silencioso por um tempinho. Ao que tudo indica, ele tem medinho da polícia ─ ele diz, com um sorriso maroto e uma piscada de um olho só. Eu devolvo o meu melhor sorriso, guardado o dia todo para quando esse momento chegasse, e ergo meu corpo em saudação.

Estou deitada em minha cama, de novo admiro aquela coisa presa em meu teto. Aquela coisa bonita, calma e brilhante que parece acalentar meu coração como uma canção de ninar. Ainda não sei o que é, não com absoluta certeza, mas aos poucos as coisas parecem ficar mais claras.
Estou aliviada por saber que a Semyonova não conseguiu concluir seu plano, que falhou em seu ataque contra os parceiros da minha família. Contudo, meu cérebro continua a piscar com aquele alarme de segurança, como se me dissesse que continuo precisando ser cautelosa o tempo todo.
E como se não bastante tudo isso, meu coração começa aos poucos bater mais forte por esse país, por essa nova identidade. Ao mesmo tempo em que reconheço meus deveres, minhas obrigações para com a família, meu coração parece bater mais forte pelo sentimento de pertencimento a este lugar. Me sinto ansiosa, e também assustada.
São muitos os pensamentos em minha cabeça. Tento desviá-los sempre que posso para um lugar mais fechado, mais calmo, para onde eles também possam respirar. Volto a encarar a coisa luminosa que flutua sobre a minha cabeça. É muito frustrante não ter certeza do que é, mas não posso negar que apenas ao admirá-la meu coração se acalma com a sua leveza. Minhas frustrações se dispersam por um momento, e a coisa parece tomar forma agora.
Ela tem um rosto. Ora parece lânguido, outrora quase extasiado. Eu consigo sentir o seu aroma, mentolado e ao mesmo tempo frutado. Abacaxi com hortelã. É a primeira coisa que me vem à mente. É delicioso, me aquece por dentro. A coisa continua a tomar forma, tem cabelos cacheados e sedosos, uma cor escura, amanteigada e suave.
Meus olhos começam a ficar pesados; tento lutar contra eles, pois quero ver essa forma final que a coisa vai tomar. Parece tão bonita, tão forte. Há lábios bem desenhados, finos, olhos claros e marcantes. É lindo.
Mas estou muito, muito cansada, e quanto a coisa que flutua em meu teto começa a tomar a forma do sorriso mais bonito que já vi em toda minha vida. Já estou apagada.


FRANKLIN MORRIS


Como se meditasse, deixo o ar entrar e sair com calma em uma respiração profunda. A verdade é que estou nervoso pra diabos, e tudo isso porque chegou o dia de irmos a Key West. Não sei nem ao menos explicar o porquê, mas é como se a porra da minha cabeça pudesse explodir a qualquer momento.
Devo ter ajeitado meu cabelo umas quinze vezes pelo menos, sem exagero. E parece que nem o espelho aguenta mais a minha imagem. Me sinto um grande monte de merda azeda e, por um minuto, penso que gostaria de voltar no tempo para evitar essa ideia idiota. Me sento mais uma vez na cama macia e engulo o ar com força, na esperança de conseguir sufocar e não precisar parecer um idiota na frente dos outros.
Para meu infortúnio, em cima do criado-mudo, meu celular vibra forte.

JETSON: Pronto pra ficar doidão??????

Solto uma gargalhada alta, jogando a cabeça para trás. Ao menos por um segundo as coisas parecem melhorar. Afinal, se tudo virar em merda, pelo menos sei que vou poder rir da cara de bêbado que sei que Jetson terá no final do dia. Ao menos disso essa excursão valerá, é uma certeza.
Para evitar trânsito com meu próprio carro, e também tê-lo que deixar no estacionamento, pego um táxi até o ponto de encontro combinado. Eddy já está lá, guardando as caixas térmicas conforme combinamos no dia anterior. Ele sorri para mim, largamente, como quem diz que dentro das caixas temos tudo o que precisamos: álcool pra caralho coberto de um monte de gelo para durar mais. Foi tudo o que todos os oficiais solicitaram; nada mais, nada menos. É curioso, mas parece que sempre foi assim em qualquer uma das vezes que nos encontramos fora do trabalho. Como se a equipe precisasse de algo forte o suficiente para apagar tudo que já vivem no dia-a-dia.
Acho que quando se leva uma vida como a nossa, com tudo que somos obrigados a fazer, mesmo sem querer, é preciso um estômago forte o tempo todo. É preciso ter frieza e calcular cada palavra, cada movimento dado. Imagino que seja exatamente por isso que ninguém se importa em afogar suas mágoas em litros de vodka ou cerveja barata. Seus fígados e estômagos estão sempre preparados para isso.
Depois de mim e Eddy, Jet é o primeiro a chegar. Isso também não me surpreende, até porque deixamos tudo organizado passo a passo, como sempre fazemos, e Richards parecia o mais empolgado de todos. Ele acompanha Ieger, um alemão de dois metros de altura com cara de poucos amigos.
Ieger é piloto de fuga, e como conhece todos os veículos da corporação, acaba, no fim das contas, sendo o motorista da rodada todas as vezes que precisamos. Não que ele reclame, até mesmo porque está em sua natureza seguir ordens, mesmo que isso signifique transportar um monte de agentes bêbados. Ieger vem de uma família que lutou tanto na primeira quanto na Segunda Guerra, e se acostumou com as exigências que sempre lhe foram impostas – muito embora tenha partido ainda criança para os Estados Unidos e, ao criar vínculos mais fortes com o país, passou a servir para a bandeira estrelada.
─ Eu espero, do fundo do meu coração, que aí dentro tenha mais álcool que em um tanque de fusca ─ Jet grita, seu semblante elétrico e de pura felicidade. Nunca vi seu sorriso largo mais iluminado. Parando para pensar bem, acho que talvez estivéssemos mesmo precisando desse tempo fora do prédio gelado da corporação. ─ Se for possível, gostaria de esquecer o meu nome no final do dia... ─ diz, apontando seu indicador em minha direção.
Dou de ombros em resposta, e quero rir; meu corpo todo parece pedir por isso, por uma boa gargalhada da sua cara, muito embora eu saiba que no fundo ele deva estar falando muito, muito sério. É bem provável que desde que assumiu o posto de líder do nosso pelotão, Jet parece nem mesmo dormir. Porra, ele tem olheiras quase iguais às minhas, e isso é preocupante pra caramba.
Aos poucos, os outros agentes começam a chegar. Cumprimento-os um por um, mas minhas mãos suadas coçam e meu pescoço dói com o torcicolo de tanto virar para procurar uma pessoa em específico. Sei que é bem idiota, mas passei a noite inteira pensando no que devo fazer para que tudo corra perfeitamente.
Acho que sou um grande burro de merda, essa é a verdade.
Como se meu coração revirasse dentro do peito, ele me puxa para baixo quando vejo Natasha chegar... acompanhada. O detetive Mason está ao seu lado, com um sorriso filha da puta de enorme. Se fosse possível, minhas mãos pingariam suor agora, como se tivesse corrido uma maratona para chegar aqui. Minha cabeça é preenchida por um blackout momentâneo, e não consigo enxergar por alguns segundos.
─ Hoje será ótimo, tenho certeza que... ─ Jet dá um tapinha em meu ombro, mas acompanha meu olhar xoxo para o outro lado, onde encaro. ─ Ah... ─ ele suspira e faz uma pausa nada discreta antes de solicitar: ─ Me ajude a carregar as coisas para dentro do ônibus, cara.
Eu o ajudo a colocar todas as caixas que precisamos dentro do veículo; preciso ocupar minha mente com o máximo de atividades para não me frustrar ainda mais. Me sinto muito burro em pensar que ter organizado tudo isso me faria especial. Nem mesmo sei por que caralhos quero ser especial. Nunca esperei nada de ninguém, nunca. Isso não vai mudar agora.
Entro no ônibus em silêncio e tomo um lugar ao fundo; quanto mais longe de qualquer pessoa ficar, melhor. Não sei por que diabos inventei essa história. Acho que simplesmente não sei como agir perto de pessoas. Aliás, não gente, mulheres... É claro que Richards tinha que estar certo de novo. Eu não posso levar a porra de um soco. Sou um masoquista idiota para me sentir atraído exatamente para quem me encheu de pancada, puta merda.
Enfio os fones de ouvido de forma irritada nas orelhas. Jetson está na frente do ônibus, e parece fazer qualquer idiota para o qual não dou a menor importância. Deve estar falando sobre como a ideia foi excelente e o dia será lindo e qualquer merda do tipo, que todos devem aproveitar para descansar para, assim que voltarem ao trabalho no dia seguinte, se sentirem energizados e renovados. Estou pouco me fodendo, tenho certeza que voltarei ainda mais puto e estressado.
Babaca de merda.
─ Você só tem duas opções... ─ Jetson diz depois de arrancar um dos meus fones e sentar ao meu lado. Viro meu rosto para o lado da janela, tentando ignorá-lo. ─ Pode ficar o dia todo com essa carranca ridícula ou então ir se sentar ao lado da garota e recomeçar o dia de um jeito melhor.
Ergo meu olhar, tentando disfarçar, para onde Jetson tenta apontar discretamente. Vejo a cabeça loira de Natasha em um dos bancos à frente, parece estar sentada sozinha. Um respiro aliviado percorre meu peito, mas afasto a sensação e volto a olhar para fora da janela enquanto Ieger liga o motor. Não consigo evitar, sou um babaca rancoroso.
─ Você parece uma criança de cinco anos de idade às vezes ─ diz meu amigo depois de uns minutos de silêncio, como se lesse meus pensamentos. É impossível fazer Jetson calar a boca quando ele tem um ponto de vista a expressar. Ainda mais se for um ponto que ele acredita ter a razão.
─ Você saberia bem disso, né? Afinal de contas, é uma criança de cinco anos você mesmo, Jetson ─ minha voz parece rasgar a garganta já seca, e meus pensamentos divagam entre socar a cara do Jet logo cedo ou ponderar um pouco melhor sobre o que ele diz, e só então decidir o que fazer.
─ Pegue seu mau-humor e leve-o para se foder, Morris ─ ele diz, cruzando os braços sobre o peito depois de deitar seu banco o máximo que pode, então ajeita os ombros e fecha seus olhos, descansando. ─ Sabe de uma coisa? Minha sobrinha Trish tem atitudes melhores do que as suas, às vezes. Ainda mais quando alguém está lhe dando conselhos e tentando ajudar...
─ Hm ─ bufo alto em resposta, quase uma risada. Volto a olhar o banco em que Natasha está sentada, e John Mason está mais uma vez sentado ao seu lado, papeando feliz. Sinto meu rosto esquentar e dou um soco no banco da frente, ainda vazio. Vejo com o canto dos olhos Jet rindo, com seus próprios olhos entreabertos, me observando.
─ Seu cabeça dura de merda ─ ele resmunga e volta a descansar as vistas. E tem razão, de novo. Minha cabeça dura nunca fez nada menos do que ferrar qualquer tipo de relacionamento que tenha tentado construir ao longo dos anos.
Aproveito para ajeitar meu banco e fecho os olhos também. Controlo minha respiração para que, quem sabe, ninguém perceba que por motivos que são obviamente internos, eu talvez esteja perdendo a cabeça. E o dia só começou.

Minha mente se acalma com o trajeto. É a única coisa que me faz não prestar atenção em todo o resto e, então, me lembrar de respirar. Cada uma das 42 pontes da Overseas Highway, necessárias para chegar ao ponto mais ao extremo sul dos Estados Unidos, é impressionante – o que me permite desviar o pensamento de qualquer outra coisa ruim que possa vir a cruzar minhas ideias.
E ainda assim, apesar da longa distância que percorremos, chegamos rápido ao destino final. E quando Ieger para o ônibus no estacionamento do parque Fort Zachary Taylor, minhas mãos não tremem. Meu coração está tranquilo como as ondas do mar.
Eu não posso estragar as coisas assim tão fácil.
Conversamos rapidamente com o guarda do parque sobre nossa estadia durante esse dia, e ele nos leva até o ponto da praia onde deixou nosso equipamento reservado. Entre as praias de Key West, Fort Zachary Taylor não tem a melhor infraestrutura de todas, mas como já estávamos preparados e organizados para ir até o local, deixamos tudo o que podemos reservado e ajustado. Em partes, me sinto um idiota por ter me esforçado tanto para que tudo funcionasse em sua perfeição.
Não consigo deixar de desviar meu olhar para Natasha e John a cada cinco minutos que se passam, como um ciumento desvairado. Em um destes olhares, não consigo desviar em tempo – ela me pega espiando e acena com a mão, abrindo o lindo sorriso que aprendi a adorar em tão pouco tempo.
Mas não consigo me aproximar mais do que isto, ser mais gentil do que isto; muito menos consigo fazer com que John se afaste, e o pior de tudo é que não consigo dizer ao meu coração que pare de se incomodar tanto quanto meu cérebro afirma desejar. Por isso, volto minha atenção a Jetson na esperança de conseguir desviar meus pensamentos idiotas. Eu o ajudo a armar as tendas, mesas e cadeiras alugadas, para que todos possam se acomodar.
Logo os agentes começam a ocupar os lugares disponíveis. Aproveito para ligar ao fornecedor de veículos especiais para a praia e confirmo o serviço previamente contratado. Ele me informa que logo mais os buggies estarão à disposição na entrada do parque.
— Eu tô me sentindo um grande idiota — digo ao me aproximar de Jetson, sentindo enfim que o melhor a fazer é desabafar.
— Hmm — ele apenas murmura baixo em resposta. Seu olhar desliza para trás das minhas costas, como se quisesse me ignorar. Mas, depois de um tempo, não resiste e me alfineta: — Então admite que está sendo mais infantil que a Trish?
Eu pisco. Quero rir em resposta, mas me seguro, não aceitando dar o braço a torcer.
— Tudo que irei admitir agora é que... bem... sim, eu queria impressioná-la, o que aparentemente não valeu de porra nenhuma — dou de ombros, e é a vez de Jetson rir alto, quase como se dissesse “era só o que eu precisava ouvir, cara”. De repente, tenho a certeza de que ainda ouvirei sobre isso por um bom tempo. — Não faz diferença... Que se dane — resmungo e me levanto para dar as costas a Jetson, que não tenta me impedir.
Quando me viro, dou de cara com Natasha. Em seus lábios bem desenhados, há um novo sorriso, diferente e animado, curioso, quase infantil. Como se seus olhos descobrissem um novo mundo. E, porra, é simplesmente deslumbrante.
— Esteve fugindo da sua parceira a manhã toda — ela reclama com um muxoxo. Chacoalho meus ombros, tentando parecer indiferentes. Não posso me dar ao luxo de admitir que estou com ciúmes das suas conversinhas e risadinhas com John Mason. Ela acena com a cabeça e abaixa seu olhar para os próprios pés, e me sinto culpado na mesma hora. — Guardei um lugar para você no ônibus, até acenei, mas acho que não percebeu... Talvez eu devesse ter te chamado — cicia, mais para si mesma.
Merda! Bela grande porcaria de merda!
— Oh — é tudo que posso dizer! — Sinto muito, acho que estou cansado hoje, um pouco distraído... Fiquei organizando os detalhes até tarde na noite passada e não dormi o suficiente — solto a primeira desculpa que consigo inventar.
— Ah, é mesmo... O coitado trabalhou muito para impressionar... a equipe! — Jetson dá uma piscadela, chamando nossa atenção. Ele nunca vai aprender a como não se meter! — Acredite, Nat. Morris não se sentar ao seu lado foi pura sorte sua... — Apelidos agora, Jetson? — Ele ronca! — ele se inclina em sua direção, sussurrando baixo como se eu não pudesse ouvir. Ela gargalha, e eu adoro o som da sua risada. É como se o céu inteiro pudesse se abrir nos mais lindos raios de sol apenas com o som que flui por sua garganta.
— Tenho até medo de perguntar como descobriu isso, capitão! — ela responde, atrevida, me fazendo rir alto também. Não importa quanto tempo se passe, ou com quem quer que seja, sempre será prazeroso ver alguém responder Jet à altura. Ele nunca consegue aceitar que seja mais espertinho do que ele, então isso vale mais do que todos os prazeres dessa vida.
— Já dividi a cama com este rapaz, senhorita — Jetson suspira ao se levantar. Ele dá um tapinha no ombro dela e uma piscadinha marota. — E posso dizer, é incrível! — dá um pulinho e passa por nós, nos deixando sozinhos.
— Você sabe que ele não...
— Ah, eu sei, eu sei sim — ela me responde antes que eu possa terminar meu raciocínio. Então, apoia sua mão em meu peito, e a pele sob o tecido parece queimar em pura brasa. — Com todo o respeito, mas o capitão tem a boca muito aberta — ela ri alto e eu a acompanho. Minha mente parece girar 360 graus; agora tudo parece mais calmo.
Talvez o dia não seja assim tão ruim.

— Me ajude a lembrar da próxima vez a trazer um babador ao invés de uma camiseta reserva para você — diz Richards ao meu lado, seu tom zombeteiro me faz revirar os olhos.
Na verdade, nem mesmo posso negar, ele está totalmente certo. Tenho a encarado o dia todo. Não sei qual é o meu problema, não consigo sair da minha maldita cadeira de praia por muito tempo. É quase um roteiro ensaiado: eu levanto, alcanço uma cerveja e, quando vejo, estou mais uma vez sentado ao lado de Jetson, como uma boa cadelinha treinada.
Não me lembro, sinceramente, de já ter me sentido dessa forma em qualquer momento da minha vida. É como se algo além da gravidade me prendesse ao chão com tanta força que, se tentasse andar, cairia de cara na areia fina. Sinto como se estivesse preso em areia movediça e, quanto mais tentasse andar ou me mexer, ainda mais profundamente eu afundaria.
E não bastasse essa trava ridícula em meus pés, ela tem o bendito Mason em seu encalço o tempo inteiro. Não quero parecer tão infantil sobre isso, afinal de contas, não tenho poder nenhum sobre essa garota, muito menos para dizer simplesmente que não estou contente com essa situação e que gostaria que ele afastasse seu traseiro de perto dela.
— Eu sou realmente idiota, não? — pergunto entredentes enquanto ainda os encaro. Meu peito queima como se tivesse polvilhado algo efervescente direto em meus pulmões. Jetson ri ao me encarar, e escora o corpo para o lado, o suficiente para alcançar uma cerveja para ele e outra para mim.
— Sim — ele afirma, convicto. Eu pesco com o canto dos olhos seus dentes alinhados em um sorriso enorme. Como se realmente quisesse me tirar do sério. — Mas isso não é o pior, Frank. Ainda mais ridículo é que a besta não simplesmente vai até lá e mete o pé na bunda do John babaca. Sabe como é, huh? Mostrar o seu lugar, até porque você chegou primeiro — ele diz, apontando com a boca da garrafa para mim. Nego com um aceno de cabeça.
Jetson é naturalmente um otário, disso todo mundo sabe. Mas sugerir que eu deva mijar em Natasha como se fosse um poste para marcar território? Para o diabo com isso.
— Mostrar meu lugar como você fez com aquela última garota que conheceu no bar e foi rejeitado? Como era o nome dela mesmo? — pergunto. Jet encolhe os ombros e eu rio. Tenho algumas boas histórias sobre ele que pretendo um dia contar para os seus filhos.
— Aos que não conseguem mostrar o seu lugar — ele ergue sua garrafa e eu brindo, batendo os vidros com um “clink”. — Mas eu falo sério, Frank. Você pode se fazer de turrão, mas isso tudo é muito mais fácil do que faz parecer. É como eu vejo, ou ela não olharia para cá a dois minutos... e eu sinceramente não acho que seja para mim, por mais que eu também não consiga entender o porquê — ele solta um muxoxo. Minha gargalhada é tão alta que todo mundo presente, mesmo em espaço aberto, pode ter ouvido. Também é uma gargalhada sincera, e tento me apegar ao que Jet diz, porque é mesmo bem provável que eu esteja complicando as coisas mais do que o necessário. Como sempre.

Após o horário do meio-dia, ligo para a corporação para dar um double check de que está tudo ok. Tenho tempo de sobra para isso, ao que tudo indica. Os detetives que permaneceram no local, incluindo Yond, me relatam que está tudo sob controle. Apenas briefings e reuniões, gente entrando e saindo. Nada fora do comum.
— Bem, ao menos isso está correndo como deveria... — suspiro baixo assim que guardo o telefone na mochila ao lado da cadeira em que Jetson continua esparramado.
— Ah, cacete. É isso! — ele se levanta em um pulo suave, quase felino. — Chega, cara! Você vai pegar essa caçamba de músculos, vai levá-los até aquela mulher e impressioná-la com isso — ele começa a me empurrar, seus nós dos dedos firmes ao agarrar minha regata. Tento impedi-lo, sem parar para pensar no que as pessoas que estão ao redor podem pensar da cena.
Na verdade, isso deve ser muito natural para todo mundo, até porque Jetson sempre faz tudo e mais um pouco que pode para me envergonhar na frente de toda pessoa do universo.
— Ok, ok... porra! Ok, Richards, chega, eu vou... — digo ao empurrá-lo uma última vez. Jet parece se dar por vencido, pois concorda com a cabeça e se afasta, ainda que permaneça no aguardo. Puxo o tecido por cima do pescoço e estendo para ele, que assobia sem pudor, me fazendo rir e soltar uns xingamentos. Por fim, me dá as costas e volta ao seu lugar, depois pega uma nova cerveja ao se sentar, parecendo bem satisfeito.
Ao girar, varro o local com o olhar até enxergá-la. Natasha está parada, finalmente sozinha, com os pés na água enquanto admira o horizonte. O sol bate em seu rosto, deixando-a ainda mais iluminada. Tento não me concentrar demais no fato de que está vestindo apenas um biquíni pequeno demais para qualquer sanidade decente. Não sou esse tipo de cara, nem quero ser, mas é natural e acho que não consigo ser coerente nessas horas. Ela sorri em minha direção e acho que meu cérebro termina de derreter. Caminho até ela, paro ao seu lado e correspondo, mas não sei sobre o que falar.
— Finalmente está pegando um sol... ahm... aí — ela diz, quebrando o silêncio. Aponta o meu peito nu e parece corar. Ela está encarando? Não pode ser. Preciso tentar não parecer tão animado com minha percepção, e também preciso parar de acreditar que Jetson está certo – muito embora, de novo, ele está certo.
Pelo menos, todo o trabalho diário na academia tentando descontar as minhas frustrações, no final das contas, tem dado um bom resultado. Acho que passei tanto tempo empurrando minha autoestima para baixo que agora parece realmente difícil trazê-la de novo à tona. Aparentemente, puxar para a superfície é bem mais embaraçoso do que esconder no fundo da gaveta. Eu preciso aprender a me olhar mais no espelho, afinal, que tipo de homem eu sou? A porra de um rato, talvez.
Preciso coordenar minhas palavras com meus pensamentos. Acho que está mesmo na hora de parar de ser um completo idiota, se pretendo ao menos ter um dia legal, já que passei tanto tempo o organizando. Até mesmo porque não faz nem mais sentido tentar negar – fiz tudo isso pensando apenas em fazer com que ela ficasse genuinamente feliz, só para ver aquele sorriso em seu rosto de novo.
— Ah, é verdade. E pra ser sincero, já estava ficando bem enjoado das piadas sem graça do capitão. E aí, bem, te vi aqui sozinha — digo, meus ombros se movimentam de cima para baixo. Reforço o “sozinha”, apenas para tentar marcar aquele lugar sem precisar mijar no pé de ninguém. — Pensei que seria uma boa ideia fazer com que molhasse mais do que os dedos dos pés…
Ela ri, e eu tenho certeza que percebeu que estive todo esse tempo admirando-a, sem pausas. E na moral, nem faço mais questão de esconder.
— Então percebeu, enfim? — ela pergunta. Giro meu corpo rápido em sua direção, mas a encaro demais sem realmente entender o que ela tanto queria. Parece que tudo que vejo é apenas ela ali, tempo demais, sem sair do lugar. — Estava te esperando... — ela sussurra tão baixo que duvido um pouco se a ouvi de verdade.
Meu estômago parece virar um bloco de gelo, tão pesado que afunda até minhas pernas. Mordo meu lábio inferior sem saber o que responder; por outro lado, seus olhos parecem duas esmeraldas tão bem polidas que quase me queimam, tamanho o brilho. Sinto quase como se quisesse gritar, para que não me olhe dessa forma, porque poderia facilmente perder a cabeça. Ela toca meu braço, minha pele se arrepia de modo automático. É quase como se estivesse assustado, encarando uma assombração.
— Achei que fosse justo, você meio que me prometeu isso... — ela ronrona. Sua voz é tão suave que sinto como se pudesse entrar em um transe catártico.
Concordo com um movimento de cabeça. Seguro sua mão delicada com afabilidade e caminho um pouco mais para dentro da água gelada. O sol forte ilumina seus cabelos, como se os fios fossem feitos dos próprios raios da estrela. Sou tão burro por ter demorado tanto tempo para me aproximar. Não consigo deixar de pensar em como tudo em minha vida poderia ser diferente se eu não agisse sempre assim, sempre afastando tudo que poderia me fazer bem.
Natasha para de andar quando a água gelada atinge seus joelhos. Seu corpo estremece um pouco e me pego pensando se é por causa do frio. Mas ela parece ansiosa, talvez até mesmo com um pouco de medo. Aperto meus dedos em sua mão, na esperança de que a eletricidade que sinto correr por minhas veias lhe passe segurança. Acaricio sua pele com meu polegar, aproveitando o momento.
— O quão estúpida eu sou por me sentir assim? — ela pergunta, mais para si mesma, fungando. Balanço a cabeça negativamente, mas não consigo formar uma frase como desejo, para que pudesse dizer algo em conforto. — Nunca pisei no mar antes, Frank... — ela completa, sussurrando baixinho enquanto tenta esconder o seu rosto ao encarar o sol com dificuldade.
Então me lembro da ideia que tive na noite anterior. Em quantas horas permaneci pensando na mesma coisa, a ponto de dormir em frente ao computador apenas imaginando como poderia ser caso tudo desse certo. Fui dormir me sentindo como um adolescente mijão.
— Não, não, espere! Isso está errado — resmungo, em alto e bom som, o suficiente para que ela se vire para mim e encare meus olhos com confusão. — Preciso te mostrar uma coisa, vem... — explico e a puxo com leveza pelo braço para fora da água.
Sem hesitar, Natasha me segue, mesmo sem saber aonde eu pretendo levá-la, o que me deixa muito contente. Meus lábios chegam a doer por causa dos meus sorrisos constantes. Jetson nos dá um sinal positivo quando passamos, um sorriso sacana se abre em minha direção. Nem me dou ao trabalho de parar para responder.
Os buggies que contratamos estão parados na entrada do parque, como combinamos com o fornecedor. Natasha me olha, parecendo admirada, enquanto subo em um deles, conferindo se a chave está na ignição.
— Confia em mim? — pergunto. Em resposta, ela balança a cabeça afirmativamente, ainda sem pensar antes de responder. Dou dois tapinhas no banco logo atrás das minhas costas e ela se aproxima. Estendo minha mão, ela aceita de bom grado e pula no banco junto comigo. — Se segure.
Natasha enlaça seus braços em minha cintura, e o calor de sua pele contra a minha é mais dolorido que o diabo, mas aproveito a sensação. Eu nunca tive medo do inferno, mesmo.
Dou a partida, fazendo com que o buggy dê um tranco para trás. Natasha ri, o som da sua felicidade é como felicidade escorrendo para fora da sua garganta. Exatamente como fantasiei.
Dirijo com a velocidade máxima que o veículo permite, o que é o suficiente para fazer com que seus cabelos macios e cheirosos voem ao nosso redor. Dirijo até quase o outro lado do parque. Um lugar calmo e vazio, o que só o faz o lugar mais bonito entre todas as ilhas. Estaciono na areia e desço do veículo; ajudo-a a descer também, o que ela faz com um salto gracioso.
Natasha analisa a paisagem ao nosso redor. Seus olhos brilham como estrelas, de pura animação. De repente, tudo parece certo, encaixado no exato lugar onde precisa estar. Me aproximo um pouco, e estendo minha mão apenas para colocar uma mecha teimosa do seu cabelo atrás de sua orelha.
— É realmente bonito, Frank, obrigada — ela responde com sua voz doce. É quase um sussurro, baixo para que apenas eu possa ouvir. Como se o restante da natureza ao nosso redor não pudesse saber dos seus sentimentos, sinceros o bastante para fazer meu peito se apertar em algo novo. Preciso me lembrar o tempo todo do autocontrole, para não estragar tudo agora.
— Achei justo que se fosse a primeira vez, fosse em um lugar especial.
Ah, merda, isso soou tão errado.
Natasha solta uma risadinha. Não digo mais nada, não quero correr o risco de falar mais asneiras. Me viro para a água e a convido para caminharmos com os pés no mar gelado. Ela me segue, mas sua presença ao meu lado é tão forte que parece quase tangível; elétrica como aquele choque que tomamos de surpresa ao colocar o dedo na tomada sem pensar.
O clima está perfeito, como eu pensei que pudesse estar, e não consigo evitar em pensar que é quase como se algo mais forte do que nós também quisesse que as coisas aconteçam dessa forma. Ou talvez, quem sabe, fosse a minha própria confiança crescendo exponencialmente apenas por conseguir ser eu mesmo, sem máscaras.
Entro na água o suficiente para que atinja minha cintura, já Natasha está coberta quase até o peitoral. Ainda parece estremecer um pouco, mas não é nada comparado aos tremores de antes. Agora, parece mais confiante, mais segura.
— Obrigada — ela diz, mais uma vez.
Dou de ombros em resposta, já que com palavras tudo parece sempre impossível de responder. Sinto como se não estivesse fazendo nada mais do que a minha obrigação: fazê-la feliz, mesmo conhecendo-a há tão pouco tempo. Eu confio em Natasha, plenamente.
— Não poderia ser de outra forma — respondo. Ela concorda com um aceno e ergue seu queixo bonito para o horizonte. Em um movimento leve, seus dedos correm pela água, quase como se a acariciasse. Me pego imaginando como seria ter seus dedos enlaçados em meus cabelos.
— Não tem praias assim na Rússia, e o meu pai... — ela diz, e então para subitamente. Parece pensar um pouco antes de continuar, quase como se tivesse de repente entrado em um assunto proibido. — Ele não era o tipo de cara que levava sua família para viajar e se divertir. Nunca fomos tão longe, não assim... — ela afirma e joga água com sua mão em concha para a frente, fazendo o mar calmo tremer à sua volta. — Hey, aquilo é uma estrela do mar?
Não consigo nem mesmo prestar atenção no que acabou de me perguntar, porque estou mais uma vez a encarando. Isso parece mais e mais recorrente, não consigo evitar. Talvez não queira evitar. É tão bom ver a felicidade nos olhos de alguém. Principalmente quando essa pessoa é de alguma forma importante para você.
Natasha parece perceber que estou encarando-a há muito tempo, que apenas olho e não digo nada. Talvez eu até esteja um pouco com a boca aberta, como se estivesse paralisado mentalmente. Ela joga uma nova concheada de água em minha direção, que acerta direto no meu rosto.
— Ah, não — respondo, e é apenas o que digo antes de jogar meu corpo em sua direção. Assim, aproveito a brincadeira para quebrar o clima estranho que deixei no ar com a minha mania de encarar estaticamente.
Não sei por quanto tempo ficamos nessa de um perseguir o outro. Ela parece uma criança, brincando na praia pela primeira vez, jogando água em minha direção e correndo em um pega-pega divertido. Quando saímos da água, o sol está começando a descer lentamente céu abaixo, mudando de sua cor forte para um tom alaranjado que só faz Natasha parecer ainda mais angelical do que o comum.
Voltamos até o buggy, e, assim como antes, ajudo-a a subir no veículo. Dou a partida e começo nossa jornada de volta ao grupo, nem mesmo me preocupando se alguém notou nosso “sumiço” ou não.
Ela volta a apoiar seus braços ao redor do meu tronco, mas, dessa vez, para a minha surpresa ainda maior, Natasha apoia o queixo em minhas costas e, por um segundo, posso jurar que sinto seus lábios roçarem minha pele como leveza, por apenas um instante.
Quando chegamos, o grupo está reunido próximo às tendas. Parecem estar montando algo como uma fogueira, todos segurando cervejas em suas mãos. Alguns parecem mais felizes do que deveriam estar; outros estão largados em cadeiras de praia, mas todos parecem relaxados e felizes. É tudo que importa. No fim, tudo parece ter dado certo, o dia parece ter sido especial para todos.
Assim que ela desce do buggy, se vira para mim e deixa o capacete de proteção no banco do passageiro. Logo atrás de nós, vejo John Mason perceber nosso retorno e, muito cara de pau, acena para Natasha, a chamando para que se junte ao grupo.
— Estão nos chamando... — ela diz ao encarar rapidamente o chão. Tento segurar meu coração, que parece querer sair da boca. Ainda mais quando percebo que talvez, muito talvez, ela esteja chateada que o nosso momento juntos acabou.
— Seu amiguinho está chamando você — resmungo. Não consigo evitar a acidez em meu tom, e para ser sincero, não estou me importando com isso. Quero mais é que saiba mesmo o quanto fiquei desconfortável.
Estamos em uma onda de sinceridade, huh? Afinal, somos parceiros, não é isso? Natasha ri baixo, me afastando dos meus pensamentos e me puxando de volta à realidade.
— Tinha imaginado que poderia ser por isso mesmo que me evitou a manhã toda — ela diz com um biquinho. Não respondo, apenas espero que prossiga e tento fingir indiferença, apesar de achar que eu só deva parecer um tonto agora. — Pensei que era coisa da minha cabeça, mas você... estava com ciúmes, Capitão Morris.
— Ci-ciúmes? — gaguejo. Merda! Ajo ainda mais ridiculamente quando percebo que ela me pegou com a boca na botija, ainda mais quando bem achei que tivesse sido um pouco menos discreto. — Só achei curioso isso com o Mason. Não é como se ele tivesse olhos para outra pessoa, então pensei... — dou de ombros, sem dizer mais nada.
Natasha se aproxima dois passos. Ela está tão perto agora que eu consigo sentir sua respiração bater quente contra a minha garganta. Meus pelos se arrepiam quando seus dedos tocam meu antebraço. Meus olhos voam direto para os seus,; suas pupilas parecem firmes em minha direção.
— O mais curioso disso é que eu só tenho olhos para...
— POMBINHOS! — Jetson grita, e Natasha dá um pulo ao se virar na direção da sua voz. Ainda me sinto paralisado com o que se passou na minha frente agora, só posso concluir que devo estar imaginando coisas. — Vamos, vamos voltar ao Sloppy Joe’s, finalizar nosso passeio da melhor forma, meus caros. Bebendo! — ele grita, com um sorriso de orelha a orelha. É bem provável mesmo que Jet tenha uma percepção melhor das coisas, que eu jamais terei. Mas nesse momento, eu gostaria de quebrar sua cara.
Desvio meu olhar uma última vez para Natasha, que abre um sorriso tímido e me dá as costas. Ela anda a passos lentos até a equipe, mas vejo que a palma da sua mão continua estendida em minha direção atrás das suas costas, como se me pedisse para segui-la.
Eu a acompanho sem conseguir raciocinar direito, e talvez isso ainda demore um bom tempo para voltar ao normal. Mas eu aguento as pontas. Até acho que posso curtir um pouco tudo isso.
No fim das contas, acho que as coisas saíram melhores do que eu planejei.


NATASHA IVANSKI


No mundo em que cresci, sempre me apresentaram diferentes expectativas com relação a inúmeros tópicos de uma vida nada comum. Ao mesmo tempo, sempre senti como se fosse uma prisioneira da minha própria existência. Sonhar com o príncipe encantado, por exemplo, sempre pareceu muito perigoso – mesmo que a Katya fizesse isso incontáveis vezes durante um mesmo dia –. Só que, por outro lado, sonhar com riquezas de fundos obscuros sempre foi muito, muito real e palpável.
Acho que nunca tive a perspectiva de torcer por uma família saudável, um futuro emocionalmente estável, ainda que desejasse isso com todas as minhas forças. Só que... não, isso não poderia acontecer no meu mundo, principalmente quando tudo que eu sempre tive, esteve direta e eternamente ligado ao sobrenome que recebi no berço.
Eu estava marcada, para toda a eternidade.
As garotas do mundo real se preparavam durante sua juventude para a vida perfeita que arquitetavam e planejavam. Enquanto elas fofocavam aos cacarejos sobre como envelheceriam ao lado de quem amavam verdadeiramente, em uma casinha de cercas brancas e cadeiras de balanço combinando, desse meu lado do mundo, tentávamos nos habituar à ideia de que nunca seríamos nada além de um troféu. Que viveríamos uma vida boa, mas sem escolhas além do tecido do vestido para a próxima festa.
Uma vez, lembro da mama dizendo: “se você quer aprender a ser forte, primeiro, precisa aprender a lutar sozinha”.
Bem, eu fiz, mãe. Eu fiz.

Sonhei com a Katya na noite passada. Minha irmã sempre invade meus sonhos, geralmente bem ruins, e dessa vez foi muito real, muito mais do que eu gostaria. Dizem que sonhar com entes queridos sempre significam boas novas, mas para ser honesta, eu trocaria tudo por uma noite sem sonhos.
No sonho, ela usava o vestido branco de noiva que sempre descrevia como o dos seus sonhos, quando fantasiávamos enquanto adolescentes. O chá de mentirinha estava servido em nosso quarto colossal na mansão em que fomos criadas.
Enquanto me servia da bebida imaginária, Katya detalhava sua vida, em como estava feliz com seu casamento, como sua vida era perfeita da forma que sempre quis, sempre sonhou. Sua casa logo estaria cheia de crianças, foi o que me disse, enquanto alisava a barriga redonda. Amava tanto seu esposo, ele era perfeito e amável com ela, um verdadeiro príncipe saído de um conto de fadas. Ivan, ela me diz que é o seu nome. Eu o reconheço, tenho certeza que já o ouvi em algum lugar, mas não tenho ideia de onde.
Até que seus bonitos olhos verdes corram pelo lugar, seu corpo forte aparece do nada, abraça minha irmã por trás e lhe planta um beijo na nuca. No sonho, ela sorri e dá diversas risadinhas ao se virar para beijá-lo nos lábios com ternura.
E então volta seus olhos para os meus, antes cheios de vida e felicidade, logo cheios de desespero, lágrimas correndo por suas bochechas redondas, sua boca se abre e fecha, diversas vezes, como se quisesse gritar algo, mas sem sair nenhum som. E só então o sangue jorrar para fora dos seus orifícios, manchando a seda do vestido dos sonhos. Rasgando-a, de dentro para fora.
E Ivan sorri, sorri e sorri.
Assim que me levantei após acordar, não tive tempo o suficiente para chegar ao sanitário. Vomitei o que pareciam ser minhas tripas ali mesmo, no chão ao lado da cama. O gosto da bile estava tão forte que precisei escovar os dentes mais de uma vez.
Mas mais do que a sensação ruim de vomitar me causa, meu estomago parece continuar a se corroer, milímetro por milímetro, claramente não apenas com o enjoo que o pesadelo me causou. Mas sim ódio, ódio puro e doentio.

─ Teve uma boa noite de sono? ─ Nikita pergunta com um sorriso dançante nos lábios um pouco ressecados. É bem provável que minha cara esteja mais amassada do que o normal, ainda mais depois do pesadelo que tive e não pretendo lhe contar. Esse tipo de coisa guardamos para nós mesmos. Para despistar, eu balanço a cabeça em um aceno positivo, espero sinceramente que perceba que não estou no melhor momento para começar o dia falando. ─ Chegou tão cansada ontem que não me reportou nada diferente...
─ Desculpe, realmente estava bem cansada. ─ Minha resposta é educada, mas não quero evoluir a conversa, nem sei como fazê-lo. Não quando tudo que vem em minha mente quando pisco os olhos é o rosto destorcido de desespero da minha irmã.
Nikita torce o nariz, pois ele também percebeu que é a primeira vez desde que pisamos em solo americano que não quero dividir nada com ele. Não quero falar sobre nada na verdade, muito menos sobre a minha família morta.
─ Nada demais aconteceu, pra falar a verdade, acho que só me serviu para me aproximar um pouco mais das pessoas... Não que isso faça diferença... eu-eu acho.
Tudo soa exatamente como é, uma bela mentira. Porque passei o tempo todo durante o tempo em que estivemos na praia flertando como uma menina boba com o capitão Morris. E se preciso ser honesta sobre isso, não acho que esteja arrependida.
Se é o certo, sinceramente não sei, mas me permiti pelo menos uma vez, por alguns breves momentos, me perder em seus lindos olhos e, ainda que de mentirinha, acho que me senti normal. Nunca, nada em minha vida poderia ser considerado normal, e já vivi o suficiente para saber até onde as coisas podem dar certo ou não. Conheço muito bem os meus limites.
─ Isso deve ser bom ─ resmunga Nikita, alto o suficiente para fazer com meu cérebro volte ao ponto central de nossa conversa. Presto atenção em seus movimentos, não pretendendo me perder tão cedo em mais devaneios de adolescente.
E bem, naturalmente, foi tudo muito bom. Para a cabeça em primeiro lugar, mas melhor ainda para o coração. Não parei para pensar se me dar tanto ao luxo poderia ter sido demais, e talvez eu me arrependa depois, mas não tenho como voltar atrás.
Agora, tudo que posso esperar é que as coisas não fiquem estranhas entre mim e Franklin, principalmente quando começamos a nos dar bem. Sei o quanto esse relacionamento é importante para os nossos planos, e também tenho consciência de que não posso estragar tudo justamente neste ponto, onde as coisas parecem se encaixar. Preciso me lembrar que é tudo um jogo, uma peça para a qual minhas aulas de atuação não me prepararam tão bem quanto imaginava.
─ Aham, é sim, muito bom. ─ Volto a prestar atenção em Nikita, porque sempre que me permito, meu pensamento parece se dispersar na grande mentira em que estou envolvida.
Mas não sou capaz de pensar em nada além da tarde anterior, e é realmente difícil quando as sinapses decolam do seu cérebro para pousar diretamente em um lugar muito, muito próximo ao seu coração.
Bem provável porque jamais tenha deixado o peito tão aberto a novas possibilidades, a seguir as linhas que ainda não havia escrito. Todas as vezes que me permiti fazer o que quisesse sem considerar as consequências dos meus atos, as coisas deram bem errado. E por isso não havia mais me permitido seguir qualquer caminho que não fosse planejado de forma racional, longe de apenas sentir o que fosse capaz de sentir.
Quando estava em Key West, pareceu muito divertido agir por impulso, fui tomada por uma sensação nova, diferente e excitante, mas agora, revivendo a mesma cena por outro ângulo, nossa, talvez eu só tenha parecido uma grande idiota. Quando suas ações são leves e puras, tudo parece bem legal, mas sem cautela as coisas podem pesar para um lado completamente diferente. Eu preciso me cuidar mais com isso, aparentemente cautela é uma palavra que não faz parte do meu vocabulário.
A pior parte em tudo isso é que não posso afirmar com certeza absoluta o que senti de verdade, o que continuo sentindo agora. Minha cabeça parece uma casa bagunçada, com uma quantidade exagerada de poeira voando e tomando conta de cada pedacinho, insistente em voar mais alto com as batidas do meu coração. Isso tudo é uma droga, mas parece se encaixar no lugar perfeito, um fato certo, tão certo quanto esperar que a lua tome o lugar do sol ao que ele se põe.
E se eu negar que nos fundos dessa casa há um jardim onde mil borboletas decolaram em um voo frenético assim que coloquei meus braços ao redor do peito firme de Franklin, isso seria uma mentira descarada e sem propósito.
Confiança.
Espero que seja esse o sentimento que corre fácil em minhas veias agora, que tranquiliza minha alma e por alguns minutos me faz esquecer que tudo deu errado na minha vida até agora, que tudo foi minha culpa.

Tento ignorar Frank dura toda a manhã, mas não consigo evitar de checar com o canto dos olhos a cada dois segundos, só para ver se ele também está olhando para mim. Ainda pior, torcendo para que, talvez, quem sabe, ele esteja encarando de volta.
De repente, quero perguntar como ele dormiu, se conseguiu descansar o suficiente, se ficou pensando o tempo todo em nosso dia como eu pensei, se perdeu seu sono por causa disso. Mas não o faço, não posso cruzar a linha, sei que se o fizer não há volta. E dessa vez, não vou me permitir ser aquela que estraga tudo.
O capitão Richards insistiu aos policiais para que estendessem o seu dia de folga caso tivessem horas extras, que se recuperassem do dia anterior, já que muitos haviam exagerado. Por isso, as salas parecem um pouco mais vazias.
Mas eu não poderia ficar em casa, não depois do meu pesadelo. Tenho certeza que se ficasse minhas memórias, das ruins às piores, me invadiriam e quebrariam, pedacinho a pedacinho, como fazem sempre que há uma oportunidade. Também não posso admitir, nem ao meu capitão como a mim mesma, de que ficar ali ao seu lado, ainda que em silêncio, parece muito mais confortável do que me sentir presa entre as quatro paredes sóbrias do meu quarto.
Eu nunca, jamais poderia lhe contar que não posso ficar sozinha, não sem ficar com a visão vermelha e turva, sem engasgar em minha própria respiração. Que se minha mente fica desocupada tempo demais, planejo a morte dos meus inimigos de forma lenta e dolorosa e mato, pouco a pouco, o que ainda há de humano em mim. Doeria demais admitir que não consigo lamentar a morte da minha família, que não consigo engolir a culpa sem sentir que posso explodir como uma granada, que posso explodir também tudo que estiver ao meu redor e que não quero, de forma alguma, explodi-lo comigo.
─ ... hmm... Olá? ─ Frank acena uma mão em frente ao meu rosto, pisco para voltar a entrar em foco. Sei que esteve falando comigo por um bom tempo, mas eu sequer ouvi qualquer palavra que saiu de sua boca. Sua presença, tão desconhecida e familiar ao mesmo tempo, me deixa confusa.
─ Me desculpe ─ murmuro de volta com uma risada tímida, que escapa como um soluço por minha garganta seca.
Frank concorda com um aceno, seus cabelos parecem tão macios ao roçar seu rosto bem desenhado. Um sorriso calmo brinca em seus lábios, mas seus olhos, os olhos mais bonitos que já vi, não desviam dos meus, o que faz minha alma estremecer por completo.
Gorgolejo uma outra risada, ainda mais baixa que a anterior. Me sinto estúpida por não conseguir categorizar meus sentimentos como deveria fazer, por nem mesmo reagir a uma conversa simples. É como se estivesse presa em uma sala sem janelas, com luzes fortes e artificiais. Meus olhos ardem, meus pensamentos parecem se dissolver em meu cérebro. E mesmo assim, não consigo dar as costas e continuo a encarar as luzes, como se precisasse investigar todas as reações.
─ E então, você vai? ─ Frank questiona, mas de novo, não tenho a menor ideia do que está falando, pois não ouvi o que disse. Orgulhosa demais para perguntar sobre que diabos ele está falando, apenas aceno afirmativamente com a cabeça, mais animada do que deveria. Preciso me concentrar, mas é tão difícil com seu perfume invadindo todo o espaço.
─ Ótimo! Todo mundo vai participar, ao menos os sobreviventes... ─ diz e ri, divertido. O som parece uma cachoeira, forte e vibrante, pura. Quase dou risada também, apenas para prorrogar sua diversão por um segundo a mais. Não quero que pare de rir, nunca.
É a primeira vez que Frank cita o dia anterior, mesmo que de forma subjetiva, e que não seja sobre a “nossa” tarde especificamente. De verdade, não me importo, talvez seja melhor mesmo não entrarmos no assunto. Ainda que nada tenha acontecido, agora me parece constrangedor a forma como praticamente me atirei em seus braços. Foi por pouco, muito pouco, preciso me lembrar.
Não sei o que teria acontecido se Richards não tivesse nos chamado a tempo. Teria cometido um erro ao qual não posso me permitir, não posso atrapalhar os planos de Nikita e Alexander, a prioridade é salvar o que restou da minha família, do nosso nome e honra. Eu provavelmente bebi mais do que deveria e não estava pensando direito, é claro que foi isso.
Não volto a falar com Franklin, na verdade me esforço para não chamar sua atenção. Talvez ele fique um pouco chateado e confuso, mas não posso me permitir bagunçar ainda mais as coisas. Acho que tenho estragado as coisas por tempo demais. Prefiro que ele sinta raiva de mim do que me coloque um milímetro a mais contra a parede.
Só voltamos a falar estritamente sobre o trabalho. Ainda que a ideia de ir à Key West tenha sido para esquecer um pouco, por algumas horas, sobre suas funções, assim que botam suas traseiras sobre as cadeiras de couro velho, tudo volta à tona. Para os policiais, e também para pessoas como eu e Yond, que nos escondemos atrás da cortina de nossa grande peça, apenas em busca de informação.
Enquanto Frank compartilha suas últimas atualizações, desvio meus pensamentos à Semyonova, buscando captar o que puder descobrir e relacionar com seus próximos passos, o que posso entender sobre sua movimentação já enraizada em solo americano. Sei que Mikhail não é nada menos do que um psicopata fodido, mas não consigo imaginar que seja descuidado, nem por um segundo.
Se conseguimos interceptar a carga de tráfico humano, foi por muito pouco, não fossem as informações da inteligência do FBI, e - por trás dos panos - a agilidade de Goncharov e Smirnov, teríamos perdido todas aquelas mulheres para um mundo muito, muito sombrio. Se algo tivesse dado errado, o custo seria alto demais, e o preço é algo pelo qual não posso pagar.
Se há uma lição que aprendi com o tempo que dividi com um Koslov, é que com certeza nenhum deles faz algo pela metade. Tudo que Ivan disse que faria, ele fez. Menos me proteger, menos ser honesto comigo, e sempre que me lembro de ouvir sua voz no telefone, segundos antes dos tiros começarem, sinto como se meu mundo ruísse em destruição e caos.
Mikhail só está em silêncio porque sabe que não é o momento para chamar atenção, ele sabe que falta pouco para conseguir o último território que precisa para estar em maioria. Ele é esperto o suficiente para entender que seu traseiro é o que está na reta. E por isso que preciso me concentrar no plano!
Assim que finalizamos nossos relatórios, Franklin me deixa sozinha. O escritório vazio fica rapidamente mais gelado, como se sua presença é que mantivesse um pouco de vida no lugar. Estou em um freezer com o motor ligado no máximo, me sinto congelar mais e mais, a cada segundo que passa. Contudo não me importo, ou finjo não me importar. Preciso levar qualquer notícia razoável para Nikita, estou cansada de chegar com as mãos abanando dia após dia. Quero que ele confie em mim, preciso que me veja. Como uma verdadeira Vory v Zakone, não mais uma garotinha órfã quebrada em peças demais para que valha a pena ser colada.
Mas não tenho tempo suficiente para me concentrar, para anotar algo útil para nós. Poucos minutos depois de ficar sozinha, Eddy passa pelos corredores, batendo nas portas e nas paredes dos aquários, gritando que Franklin pretende quebrar a cara de alguns soldados hoje. De repente entendo... é para isso que ele estava me chamando!
Uma sensação de desapontamento parece pesar em meu estômago, mas não admito que talvez tenha pensado que estivesse falando de outra coisa. É tudo tão confuso, que no fim das contas eu agradeço por qualquer sanidade restante que ainda tenho, e enquanto isso me levanto para seguir ao ginásio de lutas.
Não está tão cheio como geralmente fica quando ele está no ringue, mas ainda há uma quantidade considerável de detetives presenciando a cena. É claro, só um completo panaca perderia o show que Frank dá no tatame.
É como se ele tivesse nascido para isso, como se o couro suado e cheio de memórias complementasse o seu ser. Frank parece precisar de uma luta como o pulmão precisa de oxigênio para continuar a funcionar.
Seus movimentos são pura arte. Um a um, ele derruba os soldados que parecem de brinquedo, fracos e imaturos demais. Parecem nunca ter lutado antes. É quase como se não houvesse, no mundo, preparo suficiente para derrubar o tanque de guerra que é o Capitão Morris.
Meu estomago parece pesado como chumbo, tudo abaixo do meu quadril parece formigar ao enxergar, num movimento em câmera lenta, o suor escorrer pelas costas definidas e nuas do capitão. Como se lambesse o salgado da sua pele lisa, marcada somente pelas cicatrizes que o seu oficio lhe custou.
Uma sensação quente parece escorrer do meu couro cabeludo até a ponta dos pés, uma corrente elétrica disparada até o centro do meu corpo. E agora vejo, foi exatamente para isso que ele me chamou, para que o visse, para que o sentisse à distância, para que cada musculo cansado e pensamento distorcido vibrasse com o desejo de estar ali, dando o meu melhor ao seu lado. Ele simplesmente me conhece, sem nem mesmo saber quem sou de verdade.
Meus passos são rápidos, calculados de maneira que quase se transformam em uma corrida eufórica até os vestiários. Começo a me despir antes mesmo de alcançar meu armário e conseguir abri-lo. Embolo a camisa e o distintivo, ajusto o top firme sobre o tórax. Retiro as botas num salto e jogo em cima do tecido amassado. Por baixo da calça de brim pesada, já visto minhas legging ¾.
Eu sempre estou preparada para uma luta!
No fundo do armário, alcanço as luvas e as visto ao mesmo tempo em que deixo o vestiário. Me aproximo do ringue novamente, as vozes dos soldados presentes ovacionam Frank em coro, o lugar parece ter enchido rápido. Alguns rostos nunca vi antes.
Ele segura o braço e o tronco de um detetive entre suas pernas definidas, o imobilizando com força o suficiente para fazer com que o homem entre em desespero e precise dar umas batidinhas no tatame, em desistência. O coro das vozes dos policiais puxa-saco é ainda mais alto quando Franklin solta o soldado e se levanta, sua expressão quase humilde demais Ele ajeita os cabelos suados e grudentos para o cocuruto da sua cabeça, as luvas escuras e puídas ficam molhadas com o movimento.
Bastardo!
Johnny Mason parece se preparar do outro lado do ringue para dividir o tatame com Frank. Ele calça suas luvas, as ajeitando firme contra o punho, parece até mesmo apertar demais, como se estivesse com receio de ter suas mãos quebradas.
Mas me adianto antes que ele entre. Toco seu ombro com delicadeza, para que perceba minha presença ali. Assim que me vê, John abre um largo sorriso. É bonito, mas nada além de uma sensação amistosa atinge meu peito, quase solidária. Eu só não quero que Franklin destrua a cara do meu colega por motivos irracionais, uma vez que ele parece não gostar muito do detetive.
O capitão está de costas, aquecendo seus braços largos mais uma vez, se preparando para que alguém junte um pouco de coragem o suficiente para enfrenta-lo. Frank é muito bom no que faz, ele sabe disse e não faz nenhum pouco de questão de esconder o quanto batalhou para estar na posição onde está, o que precisou sacrificar e o quanto sangrou para isso, literalmente.
De certa forma, isso me deixa entre um misto de excitação e inspiração, não consigo decidir o que é mais forte agora. Seria uma baita falsídia fazer de conta que homens fortes e bem posicionados não exalam atração sobre mim. Talvez, no fim das contas, eu sempre tenha gostado do poder.
Dou um outro tapinha, agora no couro rígido do tatame, e salto com leveza pelo meio das cordas que cercam o ringue, meus pés se ajeitam de forma automática no couro gasto. Se esse tatame pudesse contar histórias levaria eternidades para que pudesse relatar tudo que viu. Por um segundo, me pego pensando no que diria se pudesse contar a minha também.
─ Ainda tem forças para mais uma rodada, capitão? ─ As palavras saem da minha boca em um tom quase palpável, pesando o mesmo que ferro em minha língua. Apesar da confiança que rasga meu rosto, não consigo conter meu nervosismo. Não por estar prestes a sair no braço com alguém que entende de porradaria, mas sim porque passei a admirá-lo e toda a sua bagagem de forma quase dolorida de expressar.
Sei que está rindo antes mesmo do seu corpo girar completamente em minha direção, mas seus lábios contornam os dentes alinhados de um jeito quase feroz, o que me pega de surpresa. Cada um dos meus pelos está arrepiado, como se tivesse acabado de receber uma forma onda de choque por toda a extensão do meu couro. É claro, ele estava me esperando.
Morris estica os braços para seu ex-parceiro, Jetson, ajustar suas luvas. O primeiro capitão no comando parece cansado, de ressaca, seu olhar pesado indica que provavelmente gostaria de fazer parte do grupo que continuou com um segundo dia de folga. Contudo, assim que me vê, ele ajeita sua postura e faz questão de apertar ainda mais o velcro nos punhos do Frank, como se quisesse estimulá-lo a se esforçar ainda mais.
A atitude de Richards é um tanto quanto infantil, mas não me surpreende em nada, pois já o vi agir da mesma maneira antes. É inevitável, não consigo me conter em provocar ambos, ao me agachar em um dos joelhos e estender meus próprios punhos para que o oficial Mason faça o mesmo.
Ele ajeita as luvas em um movimento carinhoso, mas firme, e também me ajuda a colocar o protetor bucal, o que é bom, porque sei que o próximo soco que receber não será nada leve. Não preciso olhar para Frank para ter a certeza que seus olhos estão queimando em meu traseiro, afinal de contas, no fundo ele é como qualquer outro homem que não suporta ser confrontado por uma mulher. Ainda mais uma de quem já apanhou antes.
“Você pode ter ambição, mas não muita. Você deve almejar ter sucesso, mas não sucesso demais, ou de outra maneira irá ameaçar o homem”.
─ Pronto, capitão? ─ silvo baixo para ele, mas sei que me ouve. Minha língua corre por meu lábio inferior, como se veneno escorresse por ali. Me preparo para a batalha.
Meu cérebro foca rapidamente, como deve ser, e me oriento sobre meus arredores. Conheço os movimentos do seu corpo e sei que Frank está, assim como eu, bastante ansioso. Seu lábio inferior treme enquanto pensa em uma resposta rápida, mas percebo que ele considera bem suas palavras. Sei muito bem que qualquer palavra dita não há como ser retirada.
─ Sabe que não vou pegar leve dessa vez, certo, querida? ─ O apelido me faz perder os sentidos por um segundo, e suas malditas íris verdes poderiam muito bem perfurarem minha pele até chegar a alma nesse momento. Sinto meu rosto queimar, e preciso me esforçar para não desviar meu próprio olhar.
Movimento os dedos dentro da luva para me acostumar com o espaço limitado e então me sinto totalmente preparada. Frank remexe seu corpo também, estala o pescoço ao erguer uma das sobrancelhas, me instigando a avançar contra ele. Felizmente, conheço seus jogos muito bem, o observei por tempo o suficiente para entender como se mexe, por onde começa a atacar. Franklin é praticamente perfeito, não há sequer um de seus passos que seja dado em falso, tudo é medido com idônea precisão.
Morris arrasta seus pés para o lado esquerdo, e em uma resposta ágil, me movimento para a direita, desviando de sua aproximação. Ele volta a erguer sua sobrancelha, e por um segundo, sei que ele não entende meu recuo. É claro que ele espera que eu pule em seu pescoço como fiz em nosso primeiro treinamento. Mal sabe ele que desde o dia fatídico me preparei para esse momento, e tive tempo o bastante para saber que essa luta seria diferente. Totalmente nossa, em que possa, finalmente, demonstrar o meu crescimento.
Essa necessidade de aprovação de merda talvez seja algo preso sob minha pele desde sempre. Algo que talvez nunca consiga me livrar completamente em minha essência. Sempre foi assim... nunca a menininha do papai, porque esse papel ficava para a Katya. Nunca o bebezinho que precisava de cuidados, pois esse era Niko. Eu nunca tive um lugar exato e... Afasto os pensamentos tão rápido quanto os deixo entrar. Não é tempo para isso.
Frank parece desistir da nossa dança e difere um primeiro golpe. Ainda estou distraída, pois seu punho atinge meu queixo em uma porrada certeira. E se não fosse por milímetros, sua mão forte teria moído meus dentes como se fossem feitos de bala dura.
Ergo meu braço direito para segurar uma nova tentativa de golpe de Franklin, meu antebraço queima com a força do soco. Ele realmente não mentiu quando disse que não pegaria leve. Respiro profundamente, uma, duas vezes. Reorganizo meus pensamentos e compreendo que não estamos brincando dessa vez, não é apenas um teste para ser aprovada como parte da equipe. Eu já estou dentro, já faço parte do time, agora só preciso mostrar que ele fez a escolha certa.
Lanço meu punho na direção do seu rosto bonito, mas ele desvia tão rapidamente que nem mesmo percebo seu movimento de esquiva. Ele gira tão veloz quanto um feixe de luz. Tento rodar meu corpo para outra direção, mas sua luva se choca duramente contra a minha lombar e eu perco o ar por um segundo. Meus músculos, ante o rim, latejam sob a carne amaciada e sensível pelos seus golpes.
─ Uh! ─ O lamento é involuntário, oxigênio invade meus pulmões com violência dolorida quando me esforço para engolir todo o ar possível, ignorando as punções pontiagudas em minha lateral.
─ Está tudo bem, querida? ─ Frank pergunta com um risinho babado, o som sai embaralhado por causa do protetor em seus dentes.
Mas eu entendo cada uma das palavras, e sua ironia é o suficiente para que o meu cérebro libere uma forte onda de adrenalina que me faz rosnar como um cachorro raivoso. Solto o meu peso contra o pé esquerdo, buscando aliviar a dor pungente. Com o punho direito, desfecho um movimento com pressa em sua direção, e a luz se encaixa perfeitamente no ponto logo abaixo do músculo peitoral maior, quase em suas costelas, o que o faz cambalear para trás.
Seu olhar surpreso é vítreo e tão frio quanto o Monte Everest ao me encarar em resposta, mas eu aproveito sua distração para avançar novamente contra ele. Dessa vez, o capitão é mais ágil, e seu punho atinge minha clavícula, explodindo em um dor lancinante. É tão intenso que até mesmo meus sentidos parecem ficar confusos, pontos pretos brilham em frente aos meus olhos.
Me lanço contra Franklin em uma explosão nervosa, um urro gutural escapa por meus lábios. Mas ele apenas contorna o meu corpo e me empurra contra as cordas do ringue. Seguro contra as cerdas grossas, e antes que consiga girar de volta, sinto seu corpo se encaixar contra o meu, firme e enrijecido, ao mesmo tempo em que parece derreter com um calor quase sobrenatural.
Ou talvez seja apenas eu mesma, me tornando uma poça de calor e mil sensações diferentes. Ele se afasta, o suficiente para que eu gire rápido e tente acertar um novo soco. Nos socamos tantas vezes, acertando e errando, é quase como um tango provocante. Um causa dor no outro, apenas para que possa sentir um pouco mais.
Ele volta a se aproximar das minhas costas, mas acerto meu cotovelo contra sua costela, o fazendo cambalear para trás. Frank solta uma risada divertida, ele não parece estar levando tudo aquilo tão sério quanto eu. E talvez seja o melhor a fazer, ao nosso redor, não ouço mais nenhuma voz, não vejo ninguém quando desvio meu olhar por um milésimo de segundo. Me pergunto se todos foram embora, se não há mais ninguém ali para observar.
Mas não há tempo para checar se alguém presencia nossa cena, pois é a vez de Frank atacar. Ele está tão convencido de que pode me jogar no chão que só consigo pensar nas aulas de defesa pessoal que Nikita precisou me dar o que pareceram centenas de vezes, até que finalmente entrassem em meu sistema.
É isso que preciso fazer, o de sempre, me defender um pouco mais.
Tomo ciência da forte presença de Franklin ao se aproximar, quente e perto demais, o suficiente para torcer meu pescoço se quisesse. Rodeio meu corpo em sua direção e Morris acompanha minha cena. Ele lança seu braço em minha direção, parecendo comprar a ideia de que estou indefesa no momento. Me concentro um pouco mais, me lembrando do passo a passo do Goncharov.
Seguro seu braço pelo cotovelo e o torço, sem aplicar muita força, só quero imobiliza-lo. Com a dor repentina, Frank dobra os joelhos em reflexo ao movimento dos membros superiores. É o momento perfeito para meu movimento final. Encaixo minha perna esquerda por trás da sua e, em um salto, encaixo a outra perna entre o meio das suas, o fazendo bambear e sua cara ir de encontro ao chão.
Não sei dizer se é o suor escorrendo fresco por seus cabelos, ou se é o fato de que, mais uma vez, tenho esse homem tão forte embaixo de mim, à minha disposição, que inclino meu corpo, em um movimento tão rápido quanto automático e impensado, e planto um beijo em sua nuca úmida.
Meu estomago se retorce em arrependimento no mesmo momento em que percebo o que fiz, principalmente porque Morris está parado duro como uma pedra. Ele poderia se virar, poderia continuar a luta, com um único movimento ele me derrubaria sem dificuldade, mas ele parece preferir fingir que foi derrotado.
Frank bate no chão com leveza, apenas dois tapinhas fracos, mas mais uma vez ouço os gritos da nossa pequena plateia. Eles estavam ali afinal, que merda. Tento não me remoer em pensamentos com a possibilidade de terem visto explicitamente o beijo que dei em nosso capitão.
Assim que o solto do meu falso golpe, Franklin Moris gira seu corpo, mas não se levanta. Faço o mesmo e me jogo ao seu lado, deitando no tatame enquanto meus olhos parecem explodir em chamas coloridas que flutuam em uma dança maluca no teto do ginásio.
E é então que ele ri, alto, uma gargalhada espontânea que faz meu corpo parecer entrar em combustão com sua felicidade repentina. Logo estou rindo também, muito embora eu nem saiba o porquê. Apesar disso, não digo nada. Não há o que dizer. Frank também fica, aos poucos, em silêncio enquanto se levanta, me estende sua mão, a qual aceito sem pestanejar.
Dou as costas para ele, que também não parece me olhar, mas tenho certeza que no fundo ouço a voz de Jetson dizer algo como: “na próxima vez, vamos chamar os bombeiros”.
-
Não volto a vê-lo até o final da tarde. Mas ouço várias pessoas falando sobre o nosso confronto mais cedo. Aparentemente, a pequena luta foi aclamada pelos oficiais, muitos que nem mesmo conheço me cumprimentam no refeitório da corporação quando faço minha pausa para o almoço.
Ao contrário do que pensava, não consigo voltar a me concentrar completamente nos arquivos que tinha começado a analisar pela manhã. Sempre que tento organizar os papéis, aquela lista de nomes salta em minha mente. E o mix de sentimentos que tenho vivido cobrem os meus olhos com comoções que não quero me permitir sentir, não aqui e agora.
Enxergo um a um da minha família, todos aqueles que se foram de uma forma tão dolorida. E então Frank pula em frente aos meus pensamentos, e tudo se mistura me deixando nauseada. A pior parte é que não consigo entender a mistura em minha mente, tudo parecia tão fácil há pouco tempo atrás.
Só consigo acalmar minhas emoções assim que saio em direção ao treinamento da tarde, previamente agendado pelo capitão Richards na sala de tiros. Apesar de seguir os protocolos, não sei até onde isso vai dar certo, principalmente quando minhas mãos parecem tremer como se pouco a pouco, meu sistema estivesse falhando.
Visto os protetores de ouvido e entro na sala. Vários detetives estão nos estandes, atirando contra os moldes de papel, mirando em suas cabeças e tórax, tiros disparados um atrás do outro. Meus dedos parecem endurecer, como se tivesse enfiado minhas mãos em um balde de concreto ainda úmido.
─ Ei, bom te ver por aqui. ─ John surge em minha frente num salto, vestindo é claro, seu sorriso de cachorrinho bem treinado que ele costuma dar toda vez que fala comigo.
─ E onde mais eu estaria, John? ─ rebato. Um segundo depois me arrependo, temendo ter soado grosseira demais. Mas o tempo passa e John não se movimenta, então imagino que esteja tudo certo. E mesmo assim, não me sinto nada confortável para a prática. ─ Por onde devo começar? ─ pergunto em um resmungo. Mason é especialista em armas de forte artilharia, ele conhece AK’s, Bushmaster e Korobov’s melhor do que qualquer outro homem na corporação.
─ Por aqui, Nat ─ ele diz ao apontar com a cabeça para um estande vazio e me dá uma piscadela antes de dar as costas. Acompanho seu caminhar até o soldado que faz a liberação das armas, atrás de grades fortemente reforçadas. Ele volta pouco tempo depois, trazendo consigo um rifle M16 calibre 5.56mm.
Admiro a metralhadora enquanto a encaixo em minhas mãos que parecem muito pequenas. O metal é tão forte e poderoso quanto as Kalashnikov’s que Ivan contrabandeava a mando do seu pai, e que ocasionalmente conseguia escapar com uma por tempo suficiente para eu destroçar algumas paredes.
A lembrança treme em minha mente e, de repente, sinto como se fosse vomitar. Prendo minha respiração por um segundo e de tempos em tempos, controlando o ar que entra em meu peito, para não surtar enquanto seguro uma arma tão letal.
John me guia até me posicionar no local certo do estante, ele não faz ideia do que estou sentindo ou pensando agora. Posiciono a arma ao lado do meu corpo e me preparo para atirar, mas solto um suspiro alto demais, que faz Mason se aproximar, parecendo preocupado com a minha estabilidade mental. “Deixa que eu te ajudo”, é o que consigo ouvi-lo dizer ao posicionar seu corpo em um encaixe desconfortável ao meu lado.
Não espaço suficiente para nós no pequeno estande, mas ele insiste e permanece ao meu lado enquanto solto a trava da arma, sentindo o poder já conhecido lentamente querer escoar pelo cano. Fecho os olhos para me concentrar, e quando o faço, a primeira imagem a aparecer em frente aos meus olhos é o rosto de Ivan, com seu sorrido presunçoso e cara de anjo caído diretamente do céu para transformar minha vida em um inferno.
Aperto o gatilho da arma, mas ela ricocheteia com força, me fazendo bater com o recuo na costela do oficial que me acompanhava. John cambaleia um passo para trás, soltando um “ouch” forte e alto. Aciono novamente a trava de segurança da arma e a apoio no estando e dou dois passos largos para alcançar onde Mason está.
─ Minha nossa, Johnny, me desculpe ─ eu murmuro com a voz abafada pelo protetor e os tiros no local. Ele balança a cabeça negativamente em resposta, mas solta um gemido de dor assim que tenta falar. Tão rápido quanto a luz, Franklin está ao nosso lado.
Eu nem mesmo havia percebido sua presença, o que deveria ser bastante óbvio, já que ele está sempre presente nos treinamentos de tiros, uma vez que dos dois capitães ele é o encarregado de armas e combate corpo a corpo.
─ O que houve? ─ ele questiona, mas sua voz é dirigida para mim. Ele nem mesmo olha para John, e me pergunto por um segundo se ele sequer se importa com a saúda do seu oficial.
─ Acho que a arma é mais pesada do que pude aguentar... ─ respondo em voz baixa, quase um lamento, mas não desvio meu olhar do seu porque é simplesmente impossível. Ao nosso lado, Mason se contorce mais uma vez, segurando suas costelas. Minha nossa, que fracote!
─ Vá até a enfermaria passar uma pomada nessa lesão, Mason. ─ John parece querer protestar por um segundo, ele até abre a boca para dizer algo, mas Frank o cala com apenas um olhar severo que o expulsa da sala de tiro. ─ O que aconteceu? De verdade? ─ Dessa vez ele realmente está falando apenas para mim. Dou de ombros em resposta, porque não compreendo do que quer dizer.
─ Acho que pode ser o pe...
─ Natasha, se me disser de novo que é o peso da arma vou atirar em minha própria cabeça ─ ele rosna, sua voz tão firme que me faz estremecer com a dureza. ─ Acha que nunca notei sua tremedeira quando precisa segurar um rifle? ─ Frank aponta para o estante onde estava poucos minutos antes. Mas não consigo responde-lo, não posso explicar para ele que cada vez que seguro uma arma vejo o homem que destruiu minha vida inteira. ─ Venha.
Ele volta a se posicionar no estande de tiro e segura a M16 em minha direção. Hesito por alguns segundos, mas Morris sustenta meu olhar com o seu e me dou por vencida, sabendo que não poderia negar o seu comando muito mais tempo. Controlo novamente minha respiração enquanto ele me entrega o rifle em mãos, ajusto a arma contra o meu corpo.
Quase salto com um susto ao sentir a mão de Franklin em meu ombro. Ele desliza seus dedos firmes pelo meu braço coberto pelo tecido da camisa, até chegar no cotovelo, que ergue alguns centímetros.
Sua outra mão se apoia contra minhas costas, de forma inesperada, e ele caminha com seus dedos delicadamente, num movimento calmante, e desliza sua palma pela extensão do braço até minha mão, onde ajusta sua posição no gatilho da arma.
─ Pronto, agora continue a segurar dessa forma... ─ Frank diz. Aperto os dedos contra o metal frio e vejo com o canto dos olhos que ele destrava o rifle. Engulo em seco e sinto minha coluna endurecer. Morris também percebe, pois dá um passo a mais em minha direção.
Seu corpo se encaixa contra o meu, e é como se houvesse centenas de agulhas me picando nos exatos lugares onde nossos corpos se encostam. Frank apoia a mão - a mesma que usou para me mostrar a altura onde segurar a arma - em minha cintura com firmeza. Fagulhas de puro fogo parecem percorrer desde minha barriga até minhas pernas enrijecidas.
Sua outra mão se apoia na divisória dos estantes ao nosso lado, tenho certeza de que com todo o barulho ao nosso redor e essas paredes, ninguém pode nos ver exatamente agora. Arrisco a tentar olhar com o canto dos olhos para Franklin, mas ele apoia seu queixo em meu ombro, quase como em um movimento natural e despercebido, seus próprios olhos estão voltados para a mira de papel ao final do corredor. Me obrigo a virar meu rosto também.
─ Você pode fechar os olhos por um segundo e prender a respiração também, não é vergonha nenhuma hesitar antes de usar uma arma de fogo... ─ Sua voz, apesar de alta, é um pouco abafada pelo som dos tiros ao nosso redor. Tenho certeza que só posso ouvi-lo porque está muito próximo a mim.
Me sinto péssima ao lembrar que ele não faz ideia de que, para mim, na teoria, usar um rifle como esse é mais do que simples. Quase como encontrar em uma agenda um número para uma ligação. Fácil como cortar um pão quente e recém assado. O que Franklin não faz ideia é que, se eu fechar os olhos, seja por um segundo, vou enxergar à minha frente coisas que ninguém desejaria ver.
─ Não vou a lugar algum... ─ Não tenho certeza se é realmente isso que ouvi Franklin dizer, pois agora sua voz soou mais baixa do que antes. De qualquer forma, respiro profundamente e tento me concentrar em sua voz, em suas mãos apertando levemente meu corpo. Estou muito ciente da sua presença ao meu redor, em mim por completo.
Posso estar ficando maluca, mas sinto Frank deslizar a ponta do seu nariz em meu ombro num movimento delicado, sinto como se o mundo realmente pudesse explodir ao nosso redor e não seriamos afetados em nada. Ajeito o rifle em meus dedos, tentando me lembrar de novo que não posso me deixar cruzar essa linha. Fecho meus olhos e prendo o oxigênio em meus pulmões.
Aperto o gatilho em um movimento suave do indicador, ainda que as mãos estejam firmes, atiro com vontade. O ricochete da arma não parece tão forte agora, consigo controlar o movimento do meu ombro, mesmo quando a cada tiro a arma pareça querer caminhar para trás.
Após 20 tiros, a mira de papel tem a cabeça totalmente destruída. Não senti receio, não senti nem mesmo a presença invasiva de Ivan ou qualquer outro pensamento. Não vi papa morrendo em meus braços após ser baleado. Nada. Apenas eu e o pesado rifle de assalto.
Demoro até mesmo para perceber que as mãos de Franklin não estão mais em meu corpo. Quase sinto um vazio frio no lugar onde seus dedos seguravam. O procuro ao meu redor com os olhos, quero agradecer mais uma vez por ter me feito sentir como se fosse capaz. Vejo que ele está do outro lado da sala, conversando com outro oficial. Seu olhar rapidamente se prende ao meu, abro o sorriso mais grato que posso lhe dar. Frank pisca discretamente e volta a falar com o homem.
Algo forte se acende em meu peito, o suficiente para que me faça apoiar novamente a arma contra o corpo. Recarrego o pente com mais agilidade do que tive antes, e seguro o metal como o capitão me instruiu. Volto a destruir a mira algumas vezes mais durante o dia.



PÁGINA INICIAL | PRÓXIMOS CAPÍTULOS


Nota da autora: sem nota!


Se você encontrou algum erro de codificação, entre em contato por aqui.