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Atualizada em: 13.09.2024

FRANKLIN MORRIS


Entrar no ringue para mim, há muito tempo, muitas vezes parece mais fácil até mesmo do que levantar da minha cama. Minha mãe me dizia, na esperança de que as coisas mudassem: “faça terapia!”. Eu tentei, eu faço terapia. Mesmo assim, não há, para mim, melhor terapia do que calçar as luvas e abraçar o couro puído dos tatames da corporação.
Cada rasteira é como se estivesse em uma nova sessão de conversa com o meu eu interior, cada soco serve como um empurrão para a realidade. E ao seu final, cada luta serve como um lembrete de que ainda estou aqui, estou respirando. As pessoas são reais, e os seus sentimentos mais ainda.
Mas com o escape da luta ou não, se a minha mãe soubesse de tudo que se passa dentro da minha cabeça desde que era criança, ela com certeza teria me obrigado a fazer terapia. Se eu a escutasse mais vezes, é bem provável que a entendesse melhor e fizesse algo sobre esse lado mais obscuro. Mas eu nunca pude dizer o que sinto, não de verdade.
Contudo, o que senti ao pisar novamente no tablado ao lado de Natasha alguns dias atrás é uma dessas misturas de sensações que nunca poderei explicar. Sempre achei que fosse capaz de censurar minhas emoções, que poderia controlar tudo em mim, mas isso! Foi algo muito maior, puro êxtase.
Por um minuto, foi como se a gravidade não fosse mais o suficiente para me prender ao chão. Como se flutuar, de repente, fizesse muito mais sentido do que andar, muito mais fácil. Como se seguir um caminho mais fácil fosse mesmo possível.E ainda que tudo sobre nossa luta se conecte ao exato momento em que nossas luvas se encontraram à pele do outro, houve algo de extracorpóreo nos movimentos que investimos, e um momento específico, onde nosso suor se tornou a nossa própria energia. Não obstante a isso, também houve o momento mais tarde, no estante de tiros, onde todas as sensações tão distintas que a luta me proporcionou só fizeram mais sentido.
Não sei o motivo pelo qual me senti tão atraído a ajuda-la, mas suas mãos tremelicantes, seu olhar de animal acuado ao segurar o rifle, tiveram sua parcela de incentivo. Ela me fez sentir exatamente como eu mesmo já me senti antes. Depois, seu sorriso ao acertar o alvo bem na cabeça, ao destroçar o papel sem piedade, a confiança crescendo em um peito inflado de puro orgulho foi a melhor parte do meu dia.
Estou pensando nesse exato sorriso até agora.

─ Knock, knock! ─ Estou na cozinha, tirando um pacote de pipoca do micro-ondas quando Jetson não bate na porta – como sempre – antes de entrar. Não consigo evitar de pensar que talvez seja um bom momento para pedir minha chave de volta, porque ele simplesmente não sabe o que respeito significa.
Ele bate, sem muita força, com dois packs de cerveja na ilha que separa os dois ambientes, sala e cozinha, e também junta ao conjunto de vidros marrons, uma garrafa de uísque ouro que não parece ter sido muito barato.
─ Isso é um presente para você. Por finalmente ter tirado sua cabeça da bunda e ter ido conquistar um pouco de atenção da sua loirinha ─ ele explica, assim que me pega encarando a garrafa com as sobrancelhas erguidas. ─ E não se preocupe em me devolver com qualquer outra merda que está pensando agora, só de ver sua baba escorrer ao lado dela já tenho algo impagável e infindável.
─ Vá beijar o diabo, vá ─ eu respondo e ele só ri. Jetson é o melhor amigo que qualquer pessoa poderia desejar. É sim o maior idiota de todos os idiotas, mas sempre tenta te surpreender, mesmo quando você não precisa, e eu o admiro ainda mais por isso.
Tem um bilhete amarrado na garrafa. Eu puxo o papel e leio.
Só beba depois de foder”, não me aguento e gargalho alto. Richards lança um olhar sobre o ombro, seus lábios abrindo ainda mais espaço para os dentes alinhados tomarem conta da sua expressão cretina.
─ Tenho certeza que os Dolphins vão destroçar os 49ners hoje ─ ele diz, com o controle já em suas mãos, apertando os botões que sintonizam o canal de esportes.
A primeira vez em que estive na residência dos Richards foi em uma noite de FNL. A competição é tão importante para família, e são torcedores tão fanáticos dos Miami Dolphins, que eles tornam cada jogo um evento familiar, uma festa, com direito a quesadillas e muito álcool, principalmente quando os irmãos de Jetson estão na cidade.
Elroy é comentarista esportivo em um canal local em São Francisco, ele é só alguns anos mais velho que Jet, mas com certeza muito mais boca suja. Levy, o caçula entre os três, mora com Elroy quando não está na faculdade, ele estuda Direito em Stanford, uma direção completamente contraria a dos seus irmãos que sempre buscaram qualquer profissão que não os exigisse ler quaisquer livros que não fossem aqueles só com figuras.
Na noite em que os conheci, não apenas vi os Dolphins ganharem de lavada em cima dos Oakland Raiders. Mas eu também, pela primeira vez desde que o meu melhor amigo, George, foi assassinado na minha frente, senti que tinha de volta um lar para chamar de meu, um que sempre teria suas portas abertas para quando eu quisesse voltar.
─ O que El apostou? ─ pergunto ao entregar uma das cervejas para Jet. Me jogo no sofá ao seu lado, esticando minhas pernas cansadas, e apoio meus pés na mesa de centro, branca e lisa.
─ Que os Dolphins levam ─ ele ri e dá de ombros. Eu o acompanho na risada leve de fim de dia, é claro que é isso que Elroy pensa. ─ E você acha que ele diria outra coisa? Precisariam ameaçar ele com uma arma na testa pra que desse outra resposta, huh? E olha que estamos falando hoje dos adversários da casa ─ ele argumenta. Aceno positivamente para Jetson enquanto dou um grande gole em minha cerveja gelada. Lhe entrego um dos potes com a pipoca recém fritada.
Ele enche a mão em sua bacia e enfia todo o conteúdo na boca em seguida, como o bom troglodita que é. Não são as quesadillas de Mary Richards, é claro, mas sempre fazem Jetson voltar à minha casa quando o time de Miami joga.
Isso e a televisão de 55 polegadas, é claro.
Logo, o jogo começa. Ao meu lado, Jetson parece não piscar. Para todos os Richards, sem exceção, os jogos dos Miami Dolphins são mais sagrados até mesmo do que as missas de domingo. Assim que terminam as quatro primeiras descidas do seu time do coração, ele está frustrado pois todas foram interceptadas. Seu telefone toca, é Elroy em uma chamada de vídeo.
─ O jogo está uma merda! ─ É a primeira coisa que ele fala quando Jetson atende, ele parece tentar com muita dificuldade tirar sua camiseta azul clara com o número 11, de DeVante Parker, um dos wide receiver do time. Ao seu lado, Levy está muito concentrado olhando para a televisão.
─ Acabou de começar, El ─ Jetson resmunga, com a maior cara de bunda que eu já vi, só não sei dizer se é por causa da negatividade de Elroy, ou se porque também está se desanimando com o jogo.
─ Tenho certeza que o Fitzpatrick vai dar um jeito em tudo, ou não o chamariam de Fitzmagic, huh? ─ eu argumento com paciência, tentando acalmar o ânimo entre os irmãos.
─ E desde quando é que você entende alguma coisa de futebol americano, Morris? ─ Levy responde com um tom irritadiço que faz Jetson rir e soltar um “uuuh” infantil. Quando viro minha cabeça em sua direção, rápido demais, ele enche a mão com um monte de pipoca gordurosa e enfia na boca, se calando mais uma vez.
─ Desde quando o seu irmão não para de invadir a minha casa para roubar minha televisão e é isso que assisto... ─ resmungo. Jet ergue sua mão livre em rendição enquanto mastiga sua pipoca de forma ruidosa.
─ Não é exatamente a minha culpa quando esse é o único tempo que sobra pra mim desde que arrumou sua namoradinha, irmão ─ ele rebate. Apesar das suas palavras objetivas, seu olhar é bem afiado. Jetson sabe exatamente o que está comprando ao puxar essa conversa. De repente, a televisão dos irmãos Richards fica muda.
─ Eu ouvi isso certo? Frankie agora gosta de garotas? ─ O Richards mais velho fala com a voz esganiçada, parecendo inspirado subitamente, ao menos o suficiente para começar a encher o meu saco. Ele parece notar pela tela do celular o meu olhar fuzilante na direção de Jetson, pois ele sabia o que estava fazendo. ─ Você precisa admitir Morris, é mais fácil levar um cachorro como acompanhante nas festas de Natal da família do que uma garota. ─ Faço de conta que estou prestando atenção no jogo, apenas para não responder, pois por dentro estou fervilhando tanto de raiva que poderia quebrar a garrafa de cerveja na cabeça do Jetson sem hesitar, agora mesmo. ─ Ah merda, vamos lá Frankie... conte mais para a gente sobre sua garota... ─ Vejo com o canto dos olhos Levy dar um pulo para fora do sofá.
─ TOUCH DOWN! Na sua cara de merda, Garappolo... ─ ele grita alto, batendo com a palma das suas mãos nos ombros de Elroy, que finalmente parece se esquecer do meu assunto e deixa para lá as perguntas pessoais, apesar que sei que ele irá voltar a perguntar.
─ Bem, estamos de volta ao jogo, baby ─ ele argumenta, aumentando o volume da sua televisão e ergue sua própria garrafa de cerveja em um brinde. Eu e Jetson fazemos o mesmo, ainda que eu faça com um tanto de má vontade. ─ Não fique chateadinho Frankie, voltamos a falar sobre isso outra hora. Agora, tenho que ligar para a mamãe... ela deve ter jogado todas as suas quesadillas para o teto agora, sabe como ela fica quando vê o barbudão jogar, hein, e esse passe...
Elroy assobia e desliga sua chamada, Jetson joga o telefone para o lado. Eu o encaro profundamente, pois quero chamar sua atenção para mim, mas ele é tão bom em não prestar atenção em nada mais quando está concentrado em algo específico. Ou quando quer fazer de conta também.
─ Você precisa parar de falar que eu estou namorando, Jet... ─ eu sibilo. Ele apenas dá de ombros, então acerto meu punho com força em seu braço, dói o suficiente para que ele se vire em minha direção com sua expressão estupefata. ─ Você sabe muito bem que El vai contar pra sua mãe... e com todo o respeito, mas você sabe que a Mary vai me encher o saco por um bom tempo! ─ Jetson explode em uma gargalhada aguda como um uivo, seus ombros chegam a chacoalhar com o divertimento.
Estou muito irritado, muito mesmo, quero enchê-lo de porrada inclusive, mas preciso admitir, talvez mais para mim mesmo que para Jet, que ouvir a palavra namorada e associá-la com a imagem de Natasha é bastante agradável.
Para melhorar isso, só ver o Dolphins acabarem com os 49ners para fechar nossa noite!

Evito voltar a falar sobre o assunto com Jetson na manhã seguinte, até mesmo porque sei que se cutucar demais a onça com vara curta, corro o perigo de piorar muito as coisas me arriscando a provocá-lo a ponto de ligar para sua própria mãe para aumentar um pouco mais a história de que tenho uma namorada imaginária.
E se isso não for humilhação suficiente, pode ser que a Mary entre em contato com a minha própria mãe, e aí sim estou bem ferrado, porque ela vai me ligar cheia de pretensões e curiosidades, perguntando quando vai conhecer a garota. Não quero ter que contar pra ela que, na realidade, sou só o capitão Bundão, e que o mais próximo de uma namorada que tenho está só nos meus pensamentos.
O telefone toca alto em minha mesa, o que me faz dispersar as cenas de discussão com a mamãe em minha mente. É engraçado, mas até nesses pensamentos eu a deixo decepcionada.
— Morris – digo, ao atender sem nem ao menos checar de onde vem a linha.
Natasha entra na sala logo em seguida, e eu derreto um pouco com seu sorriso largo e aceno de bom dia. É tudo que preciso para esquecer todo o besteirol que os idiotas dos Richards enfiaram na minha cabeça.
— Capitão, é Eddy. – Agora reconheço a ligação e resmungo em resposta, apenas confirmando para que continue a falar. — Roberts terminou os cruzamentos de mapa que encaminhou e acho que ele tem informações interessantes. Consegue vir até a 406? Já passei a mensagem para o capitão Richards. – 406 é a sala de reuniões do quartel onde, geralmente, utilizamos quando queremos um pouco mais de privacidade para falar sobre assuntos que não queremos que vaze para outros times. Coisas que não devem ser divididas na sala geral. A proteção acústica da sala cai muito bem, por isso nos encontramos lá.
— Ótimo, estarei aí em um minuto — respondo e finalizo a ligação. Meu coração retumba forte em meu peito, o som tão alto que acho que se estiver muito próximo de alguém, deve dar pra ouvir a movimentação. E mesmo que nem faça ideia quais os resultados que Roberts vai apresentar, tenho a sensação de que o dia começou de um jeito diferente. — Ivanski – chamo a atenção da mulher na mesa ao lado. Ela solta a pilha de pastas que está organizando em sua escrivaninha, e se vira para me encarar com aqueles benditos olhos verde-esmeralda.
— Capitão — ela afirma. O tom de sua voz é tão doce que quase posso sentir o mel que escorre de sua língua. Os dois primeiros botões de sua camisa estão abertos, o que me dá uma vista quase desconfortável de sua pele lisa. O distintivo pendurado no peito sobre o bolso parece reluzir.
— Eddy pediu encontrarmos ele, Roberts e Richards na 406, acho que talvez eles tenham alguma coisa para nós... – Enquanto explico, já estou fechando a porta em nossas costas para não perdermos muito tempo.
— Oh – exclama, surpresa. Seus ombros se encolhem por um segundo, e parece pensar em algo que talvez não queira dizer. — Espero que seja algo bom... – ela murmura, por fim. Afirmo com a cabeça em resposta e entramos no elevador, que chega um minuto após eu esmurrar o botão. Ficar em um lugar fechado ao seu lado é inebriante, não consigo fugir do seu perfume adocicado que preenche todo o espaço. O ar fica comprimido, e não consigo respirar até que as portas se abram novamente.

— Ah, aí estão vocês, finalmente – Jetson diz, erguendo sua sobrancelha daquele jeito vulgar que eu odeio. Sei que faz isso só para me provocar, porque ela está andando bem perto ao meu lado, mas seu trejeito me deixa mais incomodado que o normal.
— Me diga, o que encontrou? – pergunto à Roberts, pulo qualquer conversa fiada que Jet quisesse ter, praticamente o ignoro. Minha paciência já se esgotou o suficiente com suas piadinhas à noite passada.
Sobre a mesa, alguns mapas estão alinhados e ajeitados em uma ordem que parece cronológica, a luz forte ilumina bem o papel, a ponto de quase fazer algumas linhas desaparecer sob a claridade. Roberts aponta para um dos locais marcados em vermelho.
— Como me pediu, monitorei a região por alguns dias... ahm... aqui e aqui – ele diz, ao apontar outras marcações. — Não há nada de especial — comenta sem demora, me fazendo torcer o nariz em desapontamento. Porém, no segundo seguinte, Roberts circula um local em específico com a ponta dos dedos e puxa uma foto em preto e branco com sua mão livre, para cima dos mapas. É um galpão enorme, bem fechado e discreto apesar do tamanho massivo. Uma antiga fábrica abandonada, provavelmente. — Já aqui, eu acho que há algo... notei uma movimentação bastante insólita nos últimos dias, uma única van preta chegando e saindo o tempo todo — explica, ao jogar a foto do veículo próximo aos demais documentos. — Obviamente, é roubada. Eu chequei a placa.
— Isso sim é interessante — respondo, erguendo meus olhos para Roberts, que me responde com um sorriso de raposa. — Não é uma total surpresa, vindo dessa parte da cidade. – Não há bairros realmente perigosos em Miami, mas Little Haiti com certeza não é um lugar feito pra dar bobeira. Roberts concorda com um meneio de cabeça e volta a tamborilar com o seu indicar no papel.
— Não dá pra brincar na área mesmo... mas tem uma coisa ainda mais interessante. Tentei acompanhar o movimento da van nas últimas horas, como pude, claro, porque não consegui mandar alguém para instalar um localizador, mas o pessoal da inteligência detectou sua presença há algumas horas atrás por uns outros carros. Pararam janela a janela... – Ele mostra mais algumas fotos da movimentação, parando apenas em uma onde um homem grande e careca entrega um pacote pardo para outro e, na sequência, entrega um pote pequeno.
As imagens das câmeras de segurança não são muito claras, mas a transação é bem obvia para todos presentes. O que o homem careca entrega para o outro, no sedã preto é, claramente, uma amostra de metanfetamina. Já vimos isso antes, mais de uma vez, eles entregam a droga em vidros transparentes, para provar a qualidade do narcótico por sua aparência. Quanto mais transparente, mais forte é a toxicidade. Meu rosto gira para o de Roberts em um movimento rápido, ele pisca com um sorriso agora orgulhoso, ainda que o que descobriu não seja nada bom.
— Você acha que isso pode ter alguma coisa a ver com McCarter? — questiono assim que volto a analisar as fotos. Tento soar indiferente, mas meu coração parece que vai pular para fora do peito agora. Não quero soar esperançoso demais, não é a primeira nem a última vez que interceptamos traficantes em Little Haiti.
— Um pouco mais abaixo.
— Sommers? — Minha voz é quase um sussurro dolorido. Roberts faz que sim com a cabeça e baixa seu olhar mais uma vez para o mapa. Ele coloca um último relatório por cima de todo o material apresentado.
Meu peito todo dói, acho que estou tendo uma taquicardia, não consigo respirar. Era tudo que precisava agora, mais e mais provas para incriminar Trey Sommers e garantir que apodreça na cadeia, consumido por sua própria culpa. Se não conseguimos nada relacionado a “carga humana” de semanas atrás, ao menos agora temos algo que nos parece um pouco tangível.
─ Como disse, eu monitorei a van por alguns dias, isso porque consegui rastreá-la através do uso de um cartão de crédito interligado com a placa do veículo... Anthony Van Hought – Roberts conclui. Soco a mesa de supetão, expressando de forma emotiva tudo que se passa em meu cérebro agora.
Do outro lado da mesa, Natasha me encara com curiosidade, sem parecer entender toda a comoção por trás da análise do detetive. Será que deixei isso passar por ela? É impossível, eu não seria tão irresponsável. Jetson, parado ao seu lado tem um sorriso estampado em sua cara, tão empolgado quanto eu. Eddy se balança para frente e para trás, animado com o resultado.
─ Van Hought é um dos diversos nomes falsos que Trey utilizava ─ explico para a mulher, que começa a compreender a felicidade do momento. ─ Para despistar transações “inocentes”. – Faço aspas com os dedos, de inocentes suas transações não tinham absolutamente nada.
Conto para ela que encontramos uma mala com fundo falso escondido em um dos apartamentos ilegais de Sommers, nela continha diversos cartões de crédito com nomes diferentes. Ele os usava para desviar o dinheiro dos seus roubos, tudo para bancos externos em países neutros, também usava os cartões em nomes de terceiros, prejudicando muitas vezes inocentes, que mal sabiam que seus cartões estavam sendo utilizados para cometer crimes.
─ E agora, capitão, como prosseguimos? – Pergunto diretamente à Jetson, afinal de contas, ele é quem está no comando. Além disso, sei que meu limite com Sommers é bem pequeno, não sei em que momento cruzaria a fina linha entre fazer besteira ou não.
Jetson me olhar por um momento, depois para Natasha ao seu lado, então para Roberts e para Eddy por fim. Sei que ele considera todas as probabilidades, calcula os próximos passos e pensa como um verdadeiro líder. É o suficiente, Jetson fará o que é certo, goste eu ou não. Apesar da sua personalidade extrovertida e que, às vezes, acho que é cheia de falhas, ele é o melhor no que faz.
─ Eu seria um filho da puta de te tirar desse caso agora, Frank – ele diz, sabe que isso me deixará aliviado porque sempre estou pensando qual será o momento onde irá me afastar. Também porque confia em mim para essa situação, isso significa muito. ─ Use o esquadrão, leve um time para o galpão e estejam preparados. Se Trey estiver por trás disso mesmo, não vai ter coisa boa por lá. ─ Confirmo com um aceno.
─ Acha que podem estar movimentando o cartel que o McCarter começou novamente? Sem o chefão na jogada... – Jetson dá de ombros, mas parece pensar antes de responder.
─ Não dá pra descartar nada, não duvido que eles fariam de tudo pra continuar o que o vagabundo começou... o que me leva a pensar na quantidade de drogas que podem estar mantendo lá. Se encontrarmos qualquer coisa, Frank, qualquer coisa ligada à Sommers nesse momento... – Ele nem termina de dizer o que começou, até porque sei o que irá falar, que essa sim será a vingança que tanto esperei, ver o desgraçado apodrecendo até o último instante de sua vida.
Mas não consigo deixar de pensar que, na realidade, o que me faria realmente feliz é meter uma bala de fuzil no meio da sua testa.

Montar o time exige muito tempo, levo quase o dia todo para escolher a dedo quem deve estar comigo. Muito porque não temos tempo a perder, mas também porque me dou ao luxo de escolher os melhores, um por um. Quero estar ao lado dos melhores e, se possível, mais próximos a mim.
Percorremos um longo caminho até esse momento, e mesmo com McCarter a sete palmos e Sommers atrás das barras de ferro, não vou me permitir errar a ponto de estragar as coisas por falta de preparo. Não é só pelo trabalho ou pelo reconhecimento, mas por saber no fundo do âmago que fiz o certo, o melhor.
─ Quero participar – Natasha diz, parada em silencio ao meu lado, suas costas eretas e postura firme. Ela parecer notar que não coloquei seu nome na lista. É frustrante cortar suas asas antes mesmo que ela tente voar, mas não posso arriscar...
Reconheço seu talento e profissionalismo, mas ela está há muito pouco tempo entre nós. Balanço a cabeça em negação e abro a boca para falar, mas ela ergue a mão e me silencia antes mesmo que eu comece meu discurso sobre mantê-la em segurança.
─ Estou pronta, Franklin. Eu sei disso, você sabe disso... me viu atirar nos treinos. – Volto meus pensamentos ao exato momento em que estivemos tão próximos que poderia jurar que seu coração começou a bater em sincronia com o meu. E também me lembro, no momento anterior, como estava hesitante até que eu me aproximasse.
─ O que eu vi foram suas mãos tremendo só de segurar o fuzil. – Seus olhos escurecem de forma repentina, e se pudesse, ela me queimaria em um monte de nada.
─ Ouvi Jetson te dizer pra levar um de nós... russos, eu quero dizer. A última interceptação foi mérito nosso, em St. Petersburgo. ─ Jetson? Desde quando ela chama Richards pelo primeiro nome? Bem, não me interessa. Faço que não com a cabeça de novo, não preciso lidar com isso agora. Nem quero.
Até mesmo porque como posso explicar para a mulher à minha frente que somente a ideia de vê-la machucada me dá vontade de morrer? Só de considerar a possibilidade. Não posso explicar imaginar que assim que ela estiver cara a cara com o perigo, possa hesitar e suas mãos voltem a tremer na hora de apertar o gatilho. Esse é um risco muito grande, que mesmo sendo egoísta, não estou disposto a correr.
─ Yond pode entrar na lista se achar que...
─ Yond está saindo do prédio com o capitão Richards para lidar com outra situação agora Franklin – ela rebate. Encaro meus sapatos sob a mesa, controlando a respiração porque não quero ser explosivo com ela. Quando um soldado se voluntaria para ir à luta, seu capitão deve se sentir orgulhoso e não tão nervosinho a ponto de socar a mesa.
─ Natasha, eu...
─ Franklin, olhe para mim – ela demanda, e o faço sem pestanejar. Sua mão é firme, mas delicada, quando a apoia em meu ombro. Minha pele queima como se tivesse recebido um tiro, quase dói. Dói ainda mais encarar seus olhos e saber que sou um grande inútil quando se diz respeito sobre suas vontades. Não sou capaz de negar nada para essa mulher.
Natasha inclina seu corpo em minha direção, ela fica muito perto e seu rosto para na altura exata do meu. Seus olhos são ferozes e seu sorriso é letal, quase como encarar uma pantera de frente, o animal pronto para atacar sua vítima sem piedade. Por alguns segundos, tenho a idiota ilusão de que ela vá me beijar, e não consigo me mover, acho mesmo que talvez não esteja respirando.
─ Confie em mim, por favor, sei que posso fazer isso – ela murmura baixo, e sua boca parece muito macia, tão convidativa. As palavras que flutuam por sua garganta são como um encanto, estou absolutamente enfeitiçado. Que merda!
─ Tu-tudo bem, mas... esteja preparada, estamos caminhando por uma trilha que imagino que ainda não tenha traçado. – Seu movimento de cabeça é quase imperceptível, mas seus olhos não acompanham a sutileza quando ela os afasta para longe dos meus. Não sei por quanto tempo ficamos parados assim, eu a encarando enquanto ela foge para o nada. Até que Eddy bate com força na porta e entra em seguida.
─ Ieger está movendo os veículos agora, capitão, devemos sair em cinco... ─ ele diz, seu rosto de repente vermelho, encabulado por ter entrado no meio de um momento cheio de... tensão. Me levanto em um salto, mesmo porque não consigo ficar nem mais um minuto ao lado dela sem acabar com a distância entre nós e fazer o que já devia ter feito há um bom tempo. Principalmente quando a oportunidade tinha estado mais clara, e também não estávamos prontos para partir sem ter certeza de como voltaremos, ou se sequer voltaremos.

Encaro meu rosto no reflexo da janela do Knight XV enquanto espero os soldados se acomodarem no veículo. Solicitei três SUV de porte militar para essa missão. Cada uma com seis pessoas dentro. Conto e repito seus nomes inúmeras vezes, pois é minha missão trazê-los de volta, inteiros.
O uniforme preto com o colete à prova de balas realmente os faz parecer como malditos soldados indo para a guerra. De repente, não se parecem mais apenas com os homens que conheço há tantos anos. Homens que acabaram de casar, presenciar o nascimento do primeiro filho, outros ainda esperam seus filhos virem ao mundo.
E bem na frente do carro está ela. Seu corpo parece duas vezes o tamanho real dentro do traje protetor. Seu rosto é poderoso, confiante a ponto de contrariar as minhas maiores inseguranças. Ela parece pronta e nada mais. Natasha me dá uma última piscadela orgulhosa e entra no veículo. Então não há mais volta, estamos todos a caminho de, mais uma vez, cruzar nossos destinos com o maldito Trey Sommers e até mesmo o diabo.
Ieger dirige muito rápido, como sempre. No fundo, estou torcendo para que vá um pouco mais devagar, ainda que saiba que não é possível controlar o tempo. Se ela não estivesse aqui, talvez a sensação fosse outra. Seus olhos estão voltados diretamente para os meus, e não piscamos, como se estivéssemos, da mesma maneira, marcando o momento. Como se houvesse muito a ser dito, porém sem tempo para isso agora. E de novo, aí está o tempo.
Os carros param há duas quadras de distância da entrada do galpão. Pesco com o canto dos olhos a cabeça de alguns cidadãos para fora de suas janelas, outros correm para a porta aberta mais próxima, afinal de contas não é todo o dia que uma equipe do FBI esquadrinha o local de sua moradia.
Caminhamos em fila, tentando manter quanta discrição for possível. Apesar disso, é certeza que se houvesse na redondeza algum olheiro do cartel, nossa presença já teria sido detectada e interceptada. Busco ao meu redor por câmeras escondidas, podemos estar sendo vigiados agora, o que é um pouco aterrorizante. E ainda assim, não há tempo para voltar atrás.
Comando o grupo com toda a calma que posso sustentar, e divido o time em duas equipes. A primeira deverá rodear o galpão, flanqueando qualquer possibilidade de fuga. A ordem de Jetson era trazer os bandidos conosco, vivos de preferência.
O segundo grupo deve invadir logo pela porta da frente, mesmo que sejamos esperados ou não, toda a preparação nas salas de treino é para esses exatos momentos, desde o dia em que colocamos os grandes chefes atrás das grades estamos aguardando por um punhado de provas a mais.
Sempre soube que eles não deixariam as atividades ilegais de lado, mesmo cercados por barras de ferro. É bem provavelmente por isso que não descansamos um minuto sequer, mesmo depois do momento de glória que foi pegar McCarter fugindo com o rabo entre as pernas. Tudo que fizemos nos trouxe a esse momento, pouco a pouco, laboratório a laboratório, contrabando a contrabando, tudo para que queimássemos o próprio inferno.
A equipe de inteligência liderada por Yond Zayev nos levou a crer que as últimas movimentações de Trey tinham alguma ligação com a Bratva, a máfia russa. Por isso tanta notoriedade foi dada ao caso e, faz da minha equipe, de extrema importância.
Aceno com o polegar para todos e espero que acenem de volta. Meus olhos correm uma última vez para a mulher no meio de tantos homens, o cabelo preso em um rabo de cavalo apertado na cabeça, seus olhos firmes e a respiração controlada. Ela deve estar mesmo preparada para isso, não posso ser hipócrita e dizer que não acredito que ela poderia chutar a bunda de qualquer um desses caras aqui. Inclusive eu.
Ao meu comando, os homens erguem sua artilharia pesada em mãos e partem para a grande porta de metal, chutando e empurrando o que está em sua frente ao dominar a entrada do galpão. Segurando meu próprio fuzil com os dedos duros, eu caminho a passos largos atrás do time, ladeando seus pés com os meus próprios. Meu coração dispara um pouco mais a cada metro que avanço, meu cérebro começa a liberar a adrenalina que preciso para me manter ligado.
─ Todo mundo pro chão, todo mundo pro chão – grito para quem quer que sejam aquelas pessoas ali.
Me desconcentro por um segundo para analisar o meu arredor, estantes, mesas e caixas, que devem estar cheias até a tampa das drogas que o oficial Roberts descobriu. Sempre foi o que suspeitamos, desde o princípio das investigações, só não tínhamos chegado à fonte antes.
Por um segundo, quase acredito que os homens vão apenas baixar suas armas e deixar tudo cair no chão, que irão se render. Mas é apenas um engano, é claro que não sujeitariam sem um pouco de briga antes.
─ Cuidado! – grito pra um dos meus, rápido e alto o suficiente para que ele se mova, antes do primeiro tiro atingir a porta em nossas costas. Já estávamos preparados e cientes de que luta aconteceria, mas seria um deleite para a alma que não precisássemos matar ninguém hoje. Só que a verdade é que, quando você trabalha para a corporação, você nunca sabe quando o próximo tiro vai matar o corpo de uma alma já perdida.
Lidero o grupo até onde é possível, mas no fim das contas, é cada um por si quando o tiro para zumbindo pelos seus ouvidos. Acerto um dos comparsas de Sommers no quadril, o outro tiro explode diretamente em seu peito, o sangue dos bandidos começa a rapidamente se empoçar por debaixo dos seus corpos pesados. São tantas pessoas urrando e gritando no local que minha mente quase se perde.
Gostaria que Trey estivesse aqui, só para ver, um por um, seus homens caírem chamando pela mamãe. E no fim do dia enfiar uma única bala em seu crânio e deixar que o capeta cuidasse do resto.
─ FRANK, CAPITÃO! PORRA! – Um dos nossos está ao chão, sua perna sangrando pra caralho e ele está tão branco que acho que vai desmaiar. Natasha está ao seu lado, o protegendo, sua arma presa em suas mãos firmemente, enquanto atira nos homens que ainda estão de pé.
Para meu alivio, a maioria dos inimigos já foi abatido, mas quando um único dos meus homens está sangrando, não consigo deixar de pensar e sentir no quanto isso é minha culpa.
─ ME CUBRA, VOU CHEGAR ATÉ VOCÊS! – eu grito em resposta. Ela se concentra a fazer o que digo e atira na direção dos homens que nos atacam, mesmo com o colega urrando de dor ao seu lado. Seu pente acaba no mesmo momento em que os alcanço. Deixo minha arma de lado e me agacho para analisar a gravidade do ferimento.
─ Parece bem feio agora, mas vai ficar tudo bem... ─ digo para ele, amenizando seu pavor. Ele tenta um aceno com a cabeça, mas o movimento é tão fraco que espero pelo segundo em que irá cair desacordado.
Puxo a cinta presa em meu quadril, a soltando facilmente da calça. Uso o acessório para fazer um torniquete na altura da coxa do agente. Trabalho o mais rápido que consigo, mas é realmente difícil fazer suas mãos funcionarem para isso quando elas parecem mais preparadas para tirar a vida de alguém ao invés de salvá-las.
─ RÁPIDO, FRANK! – Sua voz é alta aos berros, mas ao mesmo tempo tão doce e melódica, que rezo uma prece baixa e rápida, prometendo meu melhor à Deus, apenas para que possa ouvi-la um pouco mais, para o resto da eternidade se possível.
Não consigo enxergar quantos homens ainda estão de pé do outro lado do galpão, também não consigo confirmar de onde os estopins dos tiros vem, mas são muitos ao mesmo tempo, todos em nossa direção. Viro minha cabeça e meus lábios se abrem para soltar um urro de ódio e desespero assim que ouço seu corpo cair com um baque no chão ao meu lado.
Ao ver que estávamos cercados, e ainda estava concentrado em resolver a situação da perna do seu colega, ela não pensou duas vezes ao ver a arma apontada em minha direção e se jogou em minha frente, para que o tiro não acertasse em mim. E ela conseguiu, rápido assim, transformar o pior pesadelo entre os meus mais recentes, em realidade.

Seguro o peso da cabeça entre as mãos, querendo afundar no chão de concreto. Espero não entrar em um estado de catarse rápido demais, mas é difícil respirar. Acho que se pudesse teria quebrado algumas coisas até chegar aqui, poderia explodir outras. Mas sou o mais paciente que consigo, como um bom cachorrinho obediente... odeio estar aqui, esperando... impotente.
─ Avisei para ela que não estava pronta... – resmungo para mim mesmo em voz baixa, devo parecer um lunático falando sozinho coisas sem sentido.
─ Você sabe que está tudo bem, não sabe? Foi só um tiro de raspão... – Jetson responde ao mesmo tempo em que se senta na cadeira ao meu lado. Ele me alcança um copo de isopor fumegando com o café recém passado da máquina. Eu afasto o liquido com um aceno de mão. Ele bufa, impaciente.
─ Não interessa, Richards... ─ eu respondo. Uso poucas palavras, somente o necessário, porque não sei se consigo responde-lo sem soar muito grosseiro. Tem coisa demais acontecendo para esse cérebro fodido proceder. ─ Ela pulou na minha frente, porra!
─ É o que qualquer outro parceiro faria... ─ Jet balança os ombros com indiferença, mas ele não entende. Não consegue compreender o que ela significa para mim, não gosta de alguém dessa forma. Ele não poderia entender como é ficar apavorado com a ideia de alguém se machucar assim, ainda mais por você!
Não me dou mais ao trabalho de responde-lo, sinto a ansiedade consumir meu peito e me corroer de dentro para fora. Meu cérebro parece um monte de lama esparramada. Para meu alivio, o médico aparece no segundo seguinte, eu pulo de supetão e quase derrubo o copo de café que Jetson trouxe para mim, na esperança de me acalmar com uma bebida quente.
─ A detetive Ivanski está bem, um dos superiores pode visita-la já que não há família presente – ele afirma, com um pequeno sorriso nos lábios gentis. ─ Peço apena que tentem não perturbar demais a paciente com ordens, ela teve uma leve concussão ao cair. ─ Sinto meu corpo estremecer dos pés a cabeça, um misto de raiva e preocupação parece escoar por minhas veias. Poderia ter sido tão pior...

A porta do seu quarto parece pesar mais do que uma estátua de chumbo, ou talvez sejam os meus braços, sem força o suficiente para tentar abri-la com o mesmo nível de raiva que sinto.
Natasha está sentada em uma posição inclinada para trás, suas costas estão apoiadas no travesseiro enquanto seus olhos anuviados parecem tentar prestar atenção na televisão. Ela aponta para o aparelho enquanto abre um sorriso quase infantil, daqueles que a criança dá antes de aprontar alguma coisa.
O canal jornalístico local noticia a prisão de diversos traficantes ligados ao grupo do Trey Sommers, relata também a morte de diversos dos facínoras e ainda o baleamento de dois policiais, mas sem dar mais informações sobre esses. Eles parecem quase endeusar o ataque sanguinolento do nosso grupo, como se o número de mortes fosse muito mais interessante do que repassar mensagens de esperança, principalmente às famílias que sofreram na mão desses bandidos por tantos anos.
─ Eu sempre disse que um dia estaria na televisão – ela ri. Quero respirar aliviado, ao mesmo tempo em que me seguro para não gritar com ela. Quero que saiba que quase me matou do coração, que me fez enxergar vermelho... mas o curativo em seu pescoço é o que chama minha atenção primeiro, e não consigo dizer nada. ─ Foi só um machucadinho... – Sua voz sai bem baixinha, e ela tampa o ferimento com sua mão, como se tivesse notado o que eu percebi, como se pudesse me fazer esquecer o que aconteceu.
─ Te disse que não estava preparada para ir com o time – eu resmungo de volta. Minha voz também sai baixa, rouca e profunda, mas talvez seja melhor soar assim do que tirar tudo que quero do meu peito aos berros.
─ Franklin, eu derrubei pelo menos dez homens – ela diz, com firmeza. E, contrariando a raiva que sinto, preciso concordar com isso. Se ela não estivesse com o time, talvez o detetive alguns quartos ao lado, estivesse morto agora. ─ Eu é quem te chamei para dar uma olhada na perna do Anthon... – Eu nem mesmo estava me lembrando do nome do soldado, o que é bem cretino da minha parte, só me preocupo com ela.
─ Não devia ter se jogado na minha frente, não mesmo. ─ Me aproximo da sua cama e indico o lugar mais vazio do colchão para me sentar. Ela permite com um aceno de cabeça, então me ajeito ao seu lado, tentando não ocupar muito espaço.
─ Mas eu fiz, nada demais aconteceu, e sei que fiz o certo – ela rebate. Meu peito é tomado por um formigamento desconfortável. Só de pensar mais uma vez que algo poderia ter acontecido... só a ideia me faz querer vomitar.
─ Eu não sei o que faria... – Começo a dizer, mas ela segura minha mão com delicadeza e não sei o que falar, apenas acaricio as costas macias da sua mão de volta.
─ Demos outro passo mais próximo para acabar com o Sommers hoje,Frank, e para avançar precisamos pagar um preço, um pouco de sangue, mas não foi nada demais... – Natasha solta uma risada baixa, que não consigo corresponder, porque nada parece funcionar aqui dentro se ela não estiver por perto. Viva, a salvo, ao meu lado. Ela parece pensar por um minuto, encara seu colo em silencio e seus olhos parecem marejar um pouco. ─ Foi uma vitória, eu sei que foi... Me desculpe Frank, eu não queria...
Avanço meu corpo sobre o dela e encosto meus lábios nos seus. É rápido e inesperado, mas não teria outro tempo para isso. Esperei tempo demais fechado em minhas quatro paredes vazias. Fico parado em sua frente com a minha boca na sua. Espero que ela me permita entrar em sua luz, da mesma maneira que esperei até agora no escuro, por tanto tempo, para encontrar alguém assim, que me fizesse perder o ar por apenas existir.
Natasha não se move, meu coração se aperta um pouco com o sentimento de rejeição. A vergonha ácida começa a trabalhar em meu estomago vazio, me sinto um grande estupido. Me preparo para me afastar e correr, de volta pro quartinho vazio no fundo de mim, como sempre faço, mas então sua mão gira contra a minha e aperta seus dedos em minha pele que ferve com seu toque. Sua outra mão sobre pelo meu braço até alcançar meu cabelo, e puxa minha cabeça para grudar nossas bocas um pouco mais.
Feixes de luz explodem em frente aos meus olhos, minha cabeça parece anuviada, não sei se é por não respirar direito ou talvez por demorar a entender que ela está sim me beijando de volta, sem hesitar.
De repente, preciso do seu beijo como um alimento para curar todas as minhas feridas, que me rasgaram por tanto tempo, como se apenas seus lábios pudessem ter força o suficiente para derrubar as paredes de concreto que o tempo construiu, decepção após decepção, ao redor do meu coração.
Sua boca é uma melodia doce, cantada por anjos divinos. Preciso conter o desejo de consumi-la por inteiro, de fazê-la minha como desejei desde o primeiro momento em que a vi. Minha paciência quase se esvai quando sua língua se encontra com a minha em um toque tímido, e não me permito segurar o grunhido arrastado, eu apenas a aceito.
Puxo seu corpo ainda mais próximo, não aceito que haja distância entre nós agora, aninho seu tronco contra o meu como se, talvez, ao menos por um momento, fosse capaz de protege-la de qualquer coisa ruim. Ela se encaixa em mim, como se também me buscasse como sua própria moradia.
O tempo é uma coisa bem engraçada.
E mesmo que nem sempre possa controla-lo, que não saiba o tempo de todas as coisas, aparentemente há o tempo certo para cada uma das coisas, seja conhecer os seus piores pesadelos, assistir algum esporte com seus melhores amigos, fazer o seu trabalho da melhor maneira, mesmo que ele seja um pouco fodido. Mesmo que ele signifique ter a garota dos seus pulando em frente à uma bala por você, sem motivo, só por fazer.
Às vezes, o tempo pode ser um cretino sem emoções, e não parecer fazer qualquer sentido, mas ali, nos lábios de Natasha Ivanski, acho que talvez tenha encontrado o meu timing.


NATASHA IVANSKI


É curioso como algumas coisas somente acontecem, sem qualquer motivo aparente ou sem uma explicação razoável. Acontecem porque tem que acontecer e então, as vezes essas coisas te mudam para sempre.

Em um momento eu estava ali, segurando o fuzil pesado nas mãos, tentando me manter mais firme do que em qualquer outro momento em que precisei usar uma arma de fogo. No momento seguinte, estávamos cercados de homens muito ruins, muito piores que tantos outros que conheci. Todos prontos para nos matarem sem vacilar.
Mais um segundo e Anthon sangrava muito enquanto caído no chão, sua perna parecia totalmente destruída por um estopim direto em sua patela. Sentindo meus pés colarem ao chão, precisei pedir ajuda à Franklin, que se expôs sem nem ao menos hesitar. Ele se ajoelhou ao seu lado, suas costas vulneráveis. Seus olhos me diziam exatamente o que eu sabia, ele estava desesperado e com medo, sua atitude admirável, porém ignorante, só me mostrava isso. Ele não se daria ao luxo de perder nenhum homem.
No fim do dia, esse é seu trabalho, levar todos vivos para casa. Por um instante, Frank parece deixar de lado o ódio que sempre correu por suas veias, que sempre esteve estampada em seus comentários ácidos sobre Trey Sommers. Tudo em que se concentrou foi em nos guardar sob suas asas, como se um único homem solitário fosse capaz de salvar a humanidade.
E foi por esse único momento que meu coração perdeu uma de suas batidas quando, ao apontar a arma para proteger seu flanco, percebi com o olhar afiado um bastardo segurando uma Ruger de tiro único apontada diretamente para a cabeça de Franklin, que morreria por sua equipe sem qualquer oportunidade de se defender.
Em filmes, sempre vemos a famosa cena em que um roteiro se forma na mente do protagonista no exato momento onde algo está prestes a acontecer. O mesmo acontece comigo, mas imaginar a chance de que não houvesse um final feliz para Frank, ou que nem mesmo houvesse um final... é impensável.
Em um pulo curto, mas o suficiente para cobrir ao menos metade das suas costas, eu me joguei. Eu só precisava tirar sua cabeça da mira maldita do capanga desgraçado. Eu só precisava dar um tempo a mais para Frank, uma chance a mais.
E algumas coisas somente acontecem, todas elas com suas consequências, sejam essas boas ou ruins. E é bem provável que eu tenha um anjo muito bom guardando meus ombros, um que talvez tenha enxaqueca todas as noites logo depois que deito minha cabeça no travesseiro à noite. E dessa vez não foi diferente, pois o tiro destinado à Franklin pegou meu pescoço, de raspão, mas o suficiente para deixar mais uma cicatriz. Ao menos consegui tirar o capitão do caminho, era o que importava.
Não houve tempo de absorver qualquer dor, meu corpo já estava desacordado no chão antes que pudesse gritar. Quando meus olhos se abriram novamente, já estava deitada no quarto branco de hospital. E preciso engolir minhas lembranças, na expectativa de manter a sanidade e não botar, mais uma vez, minhas tripas para fora.

Assim que sua cabeça se enfia para dentro da porta, e a bota pesada de Franklin bate no piso de concreto frio, é quase como se conseguisse ouvir sua bonita voz se transformar em gritos, me dizendo que fui estúpida demais, que poderia ter morrido e tudo o mais. E bem, ele está certo.
Eu não poderia explicar, não há maneira de fazê-lo entender agora que não posso existir em um mundo do qual ele não faça parte. Não poderia explicar algo que nem mesmo faz sentido para mim, mas é o que sinto. Uma vida sem sua presença não é sequer uma vida.
Para minha surpresa, Frank somente me adverte, com palavras duras e fria, é claro, mas repete que me avisou, que não deveria ter seguido com o time para a ação. Seu olhar não se aproxima do meu por sequer um segundo, e sua distância é muito pior do que gritos, acho que se falasse comigo aos berros seria menos dolorido. Sua falta de confiança é quase insuportável, se ele não acredita em minha capacidade, acho que posso me tornar poeira agora mesmo sob seu olhar.
Se Frank sequer soubesse tudo que guardo em minha mente, se soubesse da história por trás da peça, talvez entendesse porque pular em sua frente não foi apenas instinto, mas porque eu faria qualquer coisa para protegê-lo, e se pudesse voltar no tempo, voltaria só para fazer tudo mais uma vez. E faria quantas vezes necessárias, só para que soubesse no fim do dia, Franklin ainda teria um futuro para construir.
Porém, apenas lhe peço desculpas, é o que posso fazer agora. Não porque eu sinta qualquer tipo de arrependimento ou remorso, mas porque preciso ter a certeza de que ele não me dará suas costas, não preciso de um novo buraco em meu peito. Acho que não sou capaz de suportar outra ferida, pelo menos, não na alma.
Mas é então que acontece.
Sua boca está grudada na minha, sem aviso ou sem um pedido de permissão, ele suga o meu ar como se eu já o tivesse roubado de seus pulmões primeiro. Agora só está o tomando de volta, porque pertence apenas a ele.
Demoro para entender isso, demoro para entender sua atitude e o porquê de estar fazendo isso, não consigo reagir rápido a algo tão novo e surpreendente, mas quando recupero o controle da minha própria mente, minhas mãos estão em seus cabelos.
Sinto na ponta dos dedos como se tocasse o céu azul em uma manhã de sol, e Franklin se torna todas as cores enquanto derretemos sob a maior estrela de todas. Minha cabeça gira no mesmo compasso em que meu coração pula, meu corpo reage como se pudesse correr a uma maratona. Sinto como se gritasse internamente, por um lado querendo um fugir, correr de forma instintiva para longe dessa surpresa tão deliciosa, mas berro de volta, do outro lado, para que me permita sentir, só uma bendita vez.
Conforme seus lábios se encaixam aos meus e dançam em sincronia, em um ritmo lento e prazeroso, deixo de pensar. Não penso na Vory v Zakone, não penso na Semyonova, não penso em tiros, gritos ou mentiras. O sangue deixa meus olhos por um momento. Não sou mais a filha da máfia, não há uma história sofrida para ser contada por uma alma ferida. Não sou , nunca mais serei.
Com sua boca doce contra a minha, finalmente, me encontro.

Demora para que consiga afastar minhas mãos de Franklin, e sei que ele hesita também ao se afastar. A sensação de vazio quando se vai é esmagadora, quando sua presença não pesa contra a minha é sufocante. É quase como se quisesse gritar, para ficar, para não me deixar. E é recíproco, vejo em seus olhos enquanto se levanta para atender uma ligação. Com os olhos marejados, Frank se vai, e não trocamos uma última palavra desde que nossos lábios se encontraram pela primeira vez, como se conhecessem desde sempre. Com um beijo na testa, sou um ponto colorido dentro do quarto branco demais, um milhão de borboletas revirando meu estomago.
Depois de um momento cheio de realizações quase surreais, me lembro de ligar para Nikita. Tenho certeza que Yond já o deixou a par de tudo, já repassou as informações sobre o ataque e o resultado inconsequente da minha reação. Tenho certeza que estará furioso, e é por isso que deixo o telefone longe do ouvido quando ouço o clique ao atender.
─ MENINA! – Sua voz é tão alta quando grita que quase fico contato.
─ Oi... – sussurro de volta. Meu tom de voz é baixo, porque só agora percebo que não faço nem ideia de como começar a me explicar para ele. Não tenho como lhe contar que, em apenas uma fração de segundos poderia ter acabado com tudo, todos os nossos planos. Não quando ele desistiu de tanto por mim, o quanto arriscou pela minha família. ─ Me desc...
─ Ah, menina, graças a Deus está viva... – Sua voz soa embargada, quase como se pudesse ter chorado. Mas não é possível, não para Nikita, certo? Ele é mais forte do que o mundo, então só posso concluir que agora mesmo está pensando em todo o planejamento, em nossa vingança. ─ Gostaria de poder visita-la, mas você sabe...
─ Não, está tudo bem. Estou bem – minto. Minto porque a verdade é que estou mais do que bem, que sinto uma explosão de coisas em meu peito e nem mesmo posso explicar isso para ele. Como dizer que estou flutuando e que talvez não saiba nem mesmo o que espero para o meu futuro. O nosso futuro. ─ Sei que vai levantar muitas suspeitas, além do mais, amanhã estarei em casa. Não se preocupe, Nikita.
─ Graças a Deus, ... – ele diz novamente, fazendo meu peito se contrair. Explico em partes o que aconteceu, porque não posso, e nem sinto vontade, de contar que acabei de trocar uma boa quantidade de beijos com Franklin, um policial americano.
Sinto a fisgada da sensação ruim que é não detalhar tudo para Nikita, em partes é como se estivesse mentindo para meu próprio pai.

Acordo já me sentindo mais agitada que o normal.
Os médicos assinam o documento de liberação, me sinto aliviada por não ficar mais nenhum segundo dentro do quarto sóbrio demais. Apesar de não ter tido nenhum pesadelo durante a noite, quanto menos precisar me aproximar dos fantasmas do meu passado, melhor.
O médico que me dispensa, informa que há um carro da corporação me aguardando na saída, e as mesmas borboletas que pareciam ter enfim se aquietado, começam a voar novamente. Troco a roupa hospitalar para o uniforme azul escuro, e apesar da pressa que sinto correr junto com meu sangue, dou um pouco mais de atenção a minha aparência, desde os cabelos até os dentes com o kit especial que o hospital disponibilizou na noite anterior.
A passos largos alcanço o hall de entrada do hospital, e meu sorriso murcha no mesmo momento em que vejo as costas de Yond, que me aguarda em sua posição de soldado, dura e inquebrável.
─ Olá, Zayev – digo, ao mesmo tempo em que toco seu ombro com delicadeza. Não quero assustá-lo com a minha presença sorrateira, mas ele apenas se vira com calma e sorri de forma amistosa. Não consigo disfarçar o quão decepcionada estou com sua presença, mas ou ele não nota, ou então finge muito bem.
─ Oi, é bom te ver viva e inteira. – Apesar do seu sorriso afável, sua voz em contrapartida é quase mecânica. Sei que, na realidade, sua grande preocupação é com a minha fatia enorme do bolo que é o plano de vingança contra os Koslov e sua trupe barbárie. E é claro, a fatia dele também.
A real é que meu sangue derramado só terá importância se for por cima do caixão do Mikhail.

Muitas pessoas parecem querer me cumprimentar assim que entramos no prédio da corporação. Muitos me saludam com tapinhas polidos nos ombros, outros tentam fazer discursos motivadores. A verdade é que qualquer um dos detetives aqui teria feito o mesmo. Qualquer um deles se jogaria na frente do seu capitão para protege-lo, mesmo que nenhum deles tenha coragem para bater de frente com Franklin no dia a dia, só botem o rabo nos meios das pernas e saiam correndo, nenhum deles o deixaria perecer na posição em que estava.
O que me faz pensar por um momento, e se fosse o contrário, se Franklin tivesse se jogado na frente dos seus homens, haveria o mesmo valor, ou ele só teria feito o que é treinado para fazer enquanto líder do grupo. E se fosse uma mulher, eles teriam se jogado em suas costas para tomar um tiro por ela? Eles fariam por mim?
General Nixon surge de um dos aquários em que parecia discutir com algum de seus oficiais. Um grande sorriso toma conta dos seus lábios rachados ao andar em minha direção, e com um movimento orgulhoso, ele segura em meu ombro e o aperta, sem muita força.
─ Devo parabeniza-la oficialmente, Ivanski. O capitão Morris fez questão de nos detalhar a ação de ontem, ele rasgou elogios sobre sua genialidade – ele diz, e não consigo esconder o sorriso satisfeito que toma conta do meu rosto junto com a pontada de orgulho que bate em meu peito.
─ Só fiz meu trabalho, senhor, o que qualquer um aqui teria feito. – Nixon concorda com um meneio de cabeça, seus cabelos levemente compridos balançam a ponto de cobrir sua testa marcada por linhas de expressão. Não consigo sequer imaginar o quanto custa chegar em sua posição, o quanto suas vantagens vêm com responsabilidades e compromissos, me estressa só de pensar.
─ Absolutamente. Mas nem todos sairiam ilesos... – ele afirma, com uma piscadela. O general me encaminha com as mãos em meus ombros até a porta da minha sala, a abrindo em seguida apenas para encontrar um escritório escuro e vazio.
─ Obrigada, senhor. É uma honra servir à corporação – digo, sem pestanejar, e o seu sorriso se alarga, o que só me faz ficar mais desconfortável com a meia mentira. É uma meia mentira, afinal de contas, porque não posso negar que a sensação agora é quase gloriosa. ─ O senhor viu o capitão Morris? Quero... agradecê-lo por seu apoio, e é claro, também parabeniza-lo pelo sucesso da operação, não tive a oportunidade antes.
─ Franklin se voluntariou para ajudar uma equipe secundária hoje, deve ser a adrenalina... – ele ri baixo, fungando por seu nariz pontudo, mas parece pensar por um segundo logo depois. ─ Se correr até o pátio, pode quem sabe pegá-lo antes de escapar... – A maneira como ele fala me deixa um tanto desconfortável, mas não hesito em seguir o que ele me instrui a fazer. Aperto sua mão rapidamente em agradecimento, ele me parabeniza uma última vez pelo ato de sacrifício e me esquivo de suas palavras, apertando os botões do elevador mais de uma vez, na esperança que o movimento faça o equipamento acelerar.
Quando ele demora a alcançar nosso andar, considero correr escadas abaixo, mas meu corpo ainda está bastante dolorido por ter me jogando contra o chão duro para me fazer de escudo contra Franklin. Por hoje, sou só um rato de escritório.

O general estava certo, alcanço a equipe terminando de entrar nos veículos assim que chego ao pátio do estacionamento. Meu coração nervoso parece disparar ainda mais com ansiedade quando vejo os cabelos de Frank balançarem contra o vento.
Me contenho para não gritar seu nome, para que me veja ali, mas antes que o faça sei que não é preciso. É como se Franklin sentisse minha presença tanto quanto sinto a sua, tão palpável, e ao mesmo tão distante como sempre. Ele vira seu rosto para o meu, mas não encontro o bonito sorriso que faz meu passado parecer quase suportável sobre os ombros. Apenas vazio. Ele não acena, não sussurra nada para que apenas eu consiga enxergar, não grita nada em retorno. É só um tanto de nada.
Antes que possa reagir, ele entra no blindado e se vai com a sua equipe. Meu coração parece despedaçar em milhões de átomos, e preciso me segurar contra meu próprio corpo para não cair ali mesmo de joelhos. O que foi isso?
Sinto algo escorrer por minhas veias, como um veneno ainda desconhecido, meu sangue parece fervilhar com a sensação desprezível. Se não estivesse tão espantada, poderia chorar.
É claro, o que diabos eu estava esperando, balões e flores? Franklin só me beijou, em um momento de raiva, e beijos não significam nenhum compromisso. Nesse caso deve ter sido a raiva, misturado a algum tipo de pena, uma maneira de agradecer. Algo tipo “ei, eu sei que quase morreu por mim, toma aqui um beijo pra ficarmos quites”, ou qualquer porcaria do gênero.
Sinto tanta raiva que poderia ficar aqui mesmo, montando um acampamento até que volte, apenas para que possa gritar com ele, somente para dizer que não preciso da sua pena, que não preciso da sua generosidade e que me agradeça, que só fiz a porcaria do meu trabalho e que qualquer outro faria o mesmo pelo “ó grande e poderoso capitão Franklin, a besta, Morris”. Um grande besta, isso é.
Sinto um rosnado preencher meus pulmões, e odeio a sensação, quero gritar com Morris e enchê-lo de pancada, fora do ringue, não de forma amistosa. Quero fazê-lo sangrar por mim como fiz por ele, ou melhor, por minha causa... ou ainda mais longe, pela porra da minha mão.
Fecho meus punhos com firmeza, meus dedos parecem tremer com a vontade de socar qualquer coisa, ou qualquer um que apareça em minha frente. Respiro profundamente, e com o canto dos olhos vejo uma silhueta para ao meu lado. Não preciso me esforçar muito para descobrir quem é. Ninguém mais, entre todos os americanos que conheci até então, poderiam ser tão inconvenientes.
O capitão Jetson Richards está parado ali como uma estátua, me encarando com seus olhos de raposa curiosa, o sorriso largo que nunca sai dos seus lábios. Ele parece analisar minha expressão e se divertir com isso, quase como se pudesse ler meus pensamentos. Mas ele não faz a menor ideia do que estou sentindo agora.
─ Relaxa, estou aqui só para parabenizar a mais nova heroína do grupo... – ele zomba, e o sarcasmo em sua voz é quase tangível, quase posso ver um pouco de veneno escorrer por sua língua. ─ Bem-vinda ao clube, querida.
─ Sei que queria que fosse você, Richards, da próxima vez fique a vontade para acompanhar a equipe e saltar na frente do bundão – resmungo. As palavras saltam das minhas cordas vocais antes mesmo que eu possa tentar controla-las. Jetson arregala os olhos em surpresa, mas rapidamente os cerra em seguida, quase como em advertência. ─ Me desculpe, capitão. Só estou... decepcionada.
─ Com Franklin? – Sua pergunta faz meu rosto esquentar. Meu Deus, esse tempo todo, fui tão óbvia assim? Dou de ombros, tentando ser evasiva. Só que Jetson não é idiota, e ele conhece Frank mais do que eu jamais poderia conhecer. ─ Bem-vinda ao clube, querida. – Ele se repete, mas sem a acidez de antes. Sinto quase como se quisesse estar levantando minha moral.
─ Só queria agradecê-lo por estar lá ontem, no hospital, sabe. – Em partes, estou falando a verdade, mas é muito mais do que isso, gostaria de poder ter agradecido por ele ter me feito sentir algo depois de tanto tempo, ainda que não acreditasse mais que pudesse sentir qualquer coisa do tipo novamente. Mas agora não importa, o bundão está riscado da minha lista. Voltamos aos planos originais, e é apenas isso.
─ Bem, se vale de algo eu estava lá também... – ele argumenta, me deixando surpresa. Não fazia ideia da sua presença, mas é claro que faz sentido, até mesmo porque ele não deixaria o melhor amigo sozinho, não quando esse provavelmente estava morto de preocupação com o que os idiotas do seu time poderiam fazer, o que prejudicaria sua carreira brilhante. É claro, é isso, agindo como o grande babaca que é. ─ Pode me agradecer quando quiser agora... – Sua boca se transforma em um biquinho infantil, Jetson não pode estar pensando que vou...
─ Eu não te beijaria nem morta. – E novamente, as palavras estão jorrando da minha boca sem eu nem mesmo poder considerar o que é melhor falar e o que é mais interessante em guardar só para mim mesma.
─ Ouch! – Richards espalma a mão em seu peito, mas logo em seguida solta uma daquelas risadas meio constrangidas, que fazem as coisas se transformarem em algo mais leve bem rápido. De repente, já não estou tão irritada.
Ainda quero gritar com Franklin, é claro. Ainda estou preparando o discurso sobre não aceitar nenhuma das suas migalhas. Talvez eu diga isso segurando uma arma em sua direção, ou depois de acertar um soco na sua boca perfeita e macia. Ah, que merda!
Volto a caminhar de volta para dentro do prédio. Jetson em meu encalço, é óbvio. Porque ele simplesmente não sabe quando é a hora de parar. Paro de supetão e me viro em sua direção, o encarando na profundeza dos seus olhos escuros e brilhantes como o luar da meia noite. O capitão ergue suas mãos em rendição, mas o sorriso... aquele sorriso infernal ainda está ali. Como ele consegue?
─ Tudo bem, tudo bem, vou te deixar em paz em um minuto, só me diga... O que Frank fez para estar soltando fogo pelas orelhas dessa forma? – Quero socar sua bunda até sua sala e o trancá-lo lá para o resto da vida, apenas por sua pergunta tão descabida. Contudo, sua pergunta sem papas na língua me faz querer escandalizar toda a verdade. Principalmente porque eu sei o que isso significaria para Franklin, ele não o deixaria em paz pelo resto da sua vida. Estou tentada...
─ Não é nada, Jetson, eu te disse, só quero agradecê-lo... – É a única resposta coerente que tenho para lhe dar. Ao menos agora, quando sei que a cada duas palavras posso soar como se pudesse voar até o ringue e descontar toda a minha raiva no couro desgastado que tanto funciona como conforto.
─ Impossível. – Sua voz é tão desconfiada quando seu olhar, que parece analisar cada uma das minhas respirações. Tento me desviar do seu “poder” de ler mentes, e tudo que posso fazer é dar de ombros, fingindo indiferença. ─ Franklin sempre consegue dizer ou fazer alguma merda, mas essa raiva... é nova, não é algo que vi antes. ─ Encaro o horizonte sem dizer nada, fugindo de toda maneira que posso do seu olhar. ─ Até parece que ele te beijou... ─ Paro de respirar, e ele para de falar para me analisar, até aí tudo bem, se seus olhos não se arregalassem no segundo seguinte. ─ OH MERDA, ELE BEIJOU VOCÊ NÃO FOI? AH MERDA, FRANKIE.
Não sei nem como, nem o que responder, não sou capaz de controlar o caos invasivo que é Jetson em minha cabeça, também não posso mentir ou dizer que foi o oposto disso. Tentar convencê-lo de algo que foi tão real seria impossível. É uma pena que a lembrança dos lábios de Franklin no meu agora sejam tão decepcionantes.
─ Ah, logo o garoto vai beber aquele uísque – ele diz, mais para si mesmo, que nem me incomoda em perguntar sobre o que poderia estar falando. ─ Sou eu quem te deve um obrigado agora, querida...
─ Que mer... do que está falando, Jetson? – O cérebro de Richards contém um universo muito singular e pessoal. Não é um lugar que tenha interesse em explorar, sinceramente, ainda mais sabendo que posso compreender tudo que sai da sua boca, e ainda pior, posso quem sabe ser simpática com muito do que diz.
─ Por salvar meu irmão ─ ele diz, simplesmente, e sua mão tocando meu ombro antes de me dar as costas e sair andando é muito real e compreensível. Mas seu olhar antes de me deixar, seu sorriso antes tão convincente, são diferentes do que vi desse capitão até agora.
Desde que conheci Jetson, é a primeira vez que sinto falta da sua presença no segundo em que se vai. Talvez seja melhor ter o seu caos do que esse silêncio cruel. Mas estou sozinha, mais uma vez, e com a cabeça quase explodindo. Desisto de tentar entender qualquer coisa, por um minuto só gostaria de não fazer parte desse quebra cabeça sem fim.

Frank não retorna durante toda a manhã, e acabo me conformando de que não terei a oportunidade de dizê-lo tudo que tenho ensaiado até então, o que está entalado em minha garganta. Por enquanto não poderei dizer a ele o quanto o acho um fodido por sequer pensar que pode brincar com meus sentimentos dessa forma.
Talvez por um momento tivesse mesmo acreditado em tudo isso, desde o dia em fomos para Key West, que qualquer coisa pudesse acontecer. Que talvez fosse uma segunda chance para me permitir sentir aquilo que tanto me assusta sentir de novo. Que pudesse cicatrizar de uma vez por todas a ferida que continua a sangrar mesmo depois de tanto tempo, a ferida que Ivan abriu em meu peito.
Agora, tenho a certeza de que não, acho que aquele dia só bebi demais e me deixei agir como uma adolescente mais uma vez. Preciso voltar a focar meus pensamentos e encontrar logo as informações que preciso sobre a Semyonova, acabar com tudo por aqui e deixar tudo nos eixos, ir de volta para casa. Estou cansada de não me sentir em casa.

John Mason bate na janela do escritório, chamando a minha atenção pelo vidro, desviando meus pensamentos infelizes por um segundo. Aceno para que ele entre na sala, John não hesita e abre a porta num movimento um tanto afobado. Os cantos dos seus lábios chegam quase às orelhas com seu sorriso de golden retriever.
─ Fiquei sabendo da sua atitude honrada de ontem ─ ele diz. Rolo meus olhos e faço um aceno com a mão, na expectativa de desviar do assunto, mas ele continua: ─ Todo mundo está falando do movimento matrix para salvar o capitão.
─ Não foi nada demais, John, só fiz o que qualquer um faria. ─ Digo as palavras de forma automática, repetindo o discurso pela milésima vez no dia, sem querer me aprofundar na mesma conversa sem graça. ─ Podemos falar de qualquer outra coisa... está livre? – Pergunto, e tenho certeza que o vejo empertigar seus ombros, principalmente porque ele vem me convidando para sair já faz um tempo e sempre desvio do assunto. E para não dar falsas esperanças, completo logo em seguida: ─ Porque preciso de um parceiro de pesquisa hoje. ─ Aponto para o computador e ele parece murchar, mas mesmo assim não nega, apenas puxa uma cadeira para o meu lado.
─ Claro, tudo pela heroína da corporação ─ ele brinca, em tom divertido e bate seu cotovelo em meu braço. Queria acompanhar a brincadeira, mas só fico mais irritada.
Não é como quero ser vista agora, muito pelo contrário, adoraria voltar a ser invisível.

Passamos algumas horas analisando fotos e arquivos. John é bastante amigável, e faz questão de passar um bom tempo me explicando sobre todas as armas que foram recolhidas depois da missão ao galpão de drogas de Trey Sommers.
De forma paciente, ele me informa precisamente de tudo que preciso saber. Me deixa a par da intuição que o grupo tem entre a relação das ações de Sommers e McCarter com a Bratva. Em minha mente, anoto tudo que preciso repassar para Nikita, principalmente quando Mason diz o nome Fyodor, que segundo ele, um dos capangas questionados acabou deixando escapar durante a interrogação.
Fyodor Prokofiov é autoritet dos Koslov, é o braço direito de Mikhail e controla diversas das suas organizações e missões. Me lembro do seu nome ter saído da boca do papa algumas vezes desde que era criança, ele parecia o odiar profundamente.
Prokofiov não estava presente na noite do massacre, mas sublinho seu nome em minha frente, com a promessa de trata-lo de forma especial quando encontra-lo. Se Mikhail diz que o mundo é azul, então Fyodor acreditará piamente, mesmo que fosse vermelho, e isso para mim é o suficiente para querê-lo morto. Pelo que John me elucida, ele foi o responsável por alguma das negociações de contrabando para Sommers, drogas ou pessoas, tanto faz, mas esse conhecimento me faz salivar ainda mais só com a expectativa de acabar com sua existência pouco a pouco.
─ Ei, Nat, não precisa ficar tão nervosa, vamos pegar os bastardos... – ele diz, quebrando meu pensamento. De tempos em tempos, Mason encosta seu joelho no meu sob a mesa, e não consigo me decidir se o movimento me incomoda ou se é apenas um carinho amistoso.
─ Estou nervosa por eles, vão se borrar de medo só de olhar para nossa cara quando os prendermos. – Ele ri do que digo, mas estou falando tão sério quanto um juiz sentenciando um réu culpado. Talvez ele esteja apenas tentando ser complacente e divertido, então me esforço para rir com ele.
E é no exato momento em que me permito um pouco de divertimento que Frank entra no escritório, não sendo nada gentil com a porta. O barulho repentino faz John pular em sua cadeira, um pouco de suor escorre por sua testa quando ele nota a presença do seu capitão.
─ Oficiais – ele diz, acenando com sua cabeça, o que Mason retorna com o mesmo movimento. Eu somente o ignoro, mas meu peito parece tão apertado que nem mesmo se quisesse conseguiria movimentar sequer um fio de cabelo.
Frank segue até sua mesa, ele joga a jaqueta pesada no encosto e liga seu computador, tudo de forma lenta e calculada, como se quisesse que cada um de seus passos fosse notado. Ele não diz mais nenhuma palavra, também não volta a dirigir seu olhar para nós, não tenta puxar nem mesmo um único assunto, sobre o que estamos fazendo, por exemplo. O nada pode ser muito mais irritante do que um comentário sarcástico as vezes. Só consigo pensar de volta... vamos lá desgraçado, não me dê o tratamento do silencio agora!
─ Caramba, Nat, estamos juntos aqui faz um bom tempo... – John diz, querendo parecer fugir da sala o quanto antes. Como se mesmo o peso do meu olhar para Frank fosse demais para ele. Mas não quero que ele se vá ainda, quero irritar um pouco o capitão, só para tirar dele qualquer reação que seja, qualquer migalha... tentei negar que não aceitaria isso antes, mas tenho minhas dúvidas agora. Se um pode jogar, dois também podem, é claro.
─ Ah, Johnny, quando estamos com alguém tão especial, o tempo mal parece passar – eu digo em um sussurro, e apoio minha mão na sua para acariciar sua pele com delicadeza. John parece se arrepiar com meu toque, mas não consegue dizer nada agora. ─ O que acha de tomarmos aquele café qualquer dia, poderíamos conversar sobre qualquer coisa que não esse trabalho. Eu adoraria saber quem você é de verdade. – Não consigo evitar de olhar de esguelha para Franklin, até porque talvez essa afirmação tenha sido mais para ele do que qualquer outra pessoa, algo que não admitiria nem mesmo sob ameaça.
Ao menos, posso ver com o canto dos olhos que o meu convite para Mason surtiu um pouco de efeito sobre Franklin. Enquanto seus olhos parecem encarar a tela do computador de forma neutra, sua mão se fecha em um punho firme e ele o aperta contra a mesa. Só assim noto que seus olhos encaram a tela com tanta fúria que poderiam atravessar o aparelho facilmente.
─ Cl-claro, isso seria incrível. – Mason parece quase quicar em sua cadeira, mas apenas me lança um sorriso bonito e sensato. Ah, Johnny, me perdoe por tudo isso.
─ Ótimo. Eu te mando uma mensagem mais tarde e marcamos isso, tudo bem? – Os olhos do capitão ao nosso lado parece rolar algumas vezes. Parece notar de repente que não tem meu número, mas Mason o tem. É claro, idiota, porque ele me pediu.
─ Ótimo, ótimo... – A voz de John é alta e esganiçada agora, e ele mal parece conter sua animação. ─ Eu vou agora, tudo bem? Vou até a sala de tiros porque tenho uma reunião marcada com o general, mas... por favor, me mande essa mensagem, por favor. – Ele parece quase me implorar por isso. Franklin funga uma risadinha ao nosso lado, mas Mason não percebe, quase dou risada também, mas me sinto mal em ofender John e acabar com sua animação. Ele não faz mesmo ideia de que nunca vou mandar essa mensagem.
Quando o oficial deixa a sala, espero que Frank vá dizer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, apenas para me irritar. No fundo, espero que vá pedir para que não mande mensagem para John, mas sim para ele. Sou uma grande estúpida.
Só que Morris não diz nada, nem mesmo me olha com o canto dos olhos, seu controle é algo incrível, e a raiva que sinto parece como uma bala no peito, eu poderia explodir em fúria se não estivesse tão magoada agora. Então salto em um movimento rápido até a porta.
─ Vou até a cafeteria, capitão, quer algo? – Ele não me responde, nem mesmo faz um movimento com sua cabeça. Quero manda-lo a merda, mas faço o que é mais sensato e dou as costas, saindo da sala. Meus olhos se enchem de lágrimas instantaneamente.
Sei que não somos nada, sei que foi apenas um beijo e nada mais, que não houve qualquer significado para nenhum de nós. O silencio do capitão me diz exatamente isso, ainda que a sua frente, um bloco de papel foi furiosamente rabiscado aponto de rasgar algumas folhas.

Quando retorno do intervalo que me permito ter, Franklin não está mais na sala. Até planejei por um segundo conversarmos como dois adultos, mas como ele não parece fazer questão, desisto.
Arrumo todas as minhas coisas e deixo a sala o mais rápido que posso, pois não quero correr o risco de voltar a encontra-lo por aí, ou qualquer outra pessoa. Só quero voltar logo para casa, quero contar para Nikita tudo que descobri durante minha tarde com John, afinal de contas, ainda não tive a oportunidade de voltar para casa. Tudo acontece rápido demais.
Estou a poucos metros do meu carro, as chaves estão enfiadas no fundo da bolsa e demoro para conseguir pesca-las com a ponta dos dedos, e é tempo suficiente para que ele se aproxime, antes mesmo que eu note sua presença por completo. Franklin puxa meu braço com gentileza, apesar da sua mão forte se prender firmemente em meu braço, e ele me faz girar em direção ao seu corpo.
Estamos tão próximos que consigo enxergar seu peito se movimentar por baixo da camisa justa, para baixo e para cima, para cima e para baixo, em uma respiração que se esforça para controlar. Seus olhos estão escuros, e é quase como se eu fosse uma presa cercada por seu caçador.
─ Me desculpe – ele diz, sua voz baixa e, ainda assim, segura, muito objetiva. Seu perfume se mistura com seu suor, invadindo minhas narinas de forma tão arrebatadora que me sinto tentada a repetir nosso beijo. E beijar sua boca sem permissão seria excelente, apenas se eu não estivesse tão decepcionada agora.
─ Está desculpado, seja lá pelo que for capitão. Boa noite – eu o respondo com calma, mas empurro seu peito. Seus músculos me fazem precisar controlar a vontade de correr os dedos por todo seu peitoral.
Lentamente, dou as costas para ele e termino o caminho até o carro, destravo as portas, abro o lado do motorista e jogo todos os meus pertences para o banco do passageiro. Franklin está em meu encalço, é claro, e só vejo seu braço direito se apoiar contra a lataria quando ele o faz, parado muito próximo as minhas costas. O tecido da manga praticamente encosta em minha cabeça.
─ Estou falando sério, me desculpe, devia ter conversado com você hoje. – Volto a bater a porta do carro e me viro para ele, sinto meus olhos ferverem agora, meu rosto está muito quente, mas não faço ideia se estou chorando ou não, se estiver, é de puro ódio.
─ Mas não falou comigo, Franklin, e isso foi muito fodido – rebato de volta. Ele inclina sua cabeça de um lado para o outro e concorda com um aceno rápido, mas não diz mais nada. Estou cansada de ser tratada com silêncio, então respiro profundamente e dou as costas, eu só quero poder ir embora, tomar um litro de vodka e chorar até desmaiar.
Aos poucos, sinto seu corpo se encostar às minhas costas, a ponta do seu nariz afaga meu cabelo em um carinho gostoso. Meus pelos dos braços se eriçam, minhas pernas começam a tremer e eu me sinto uma grande idiota, estou quente e mole, como ele pode ter esse efeito rápido sobre mim? Seu braço passa pelo meu, e ele segura o trinco da porta, me impedindo de fugir.
─ Por favor, não saia com John Mason – ele sussurra em uma voz baixa, dessa vez nada firme, muito pelo contrário, agora parece querer quebrar a cada silaba proferida. Meu coração se aperta, porque é claro que não vou sair com John Mason, mas não posso dar o braço a torcer. Não posso me permitir ser magoada de novo, enganada de novo, porque estou cansada disso. Giro meu corpo para o dele mais uma vez, seu rosto é bonito demais, convidativo demais e está muito perto, mesmo com a diferença de altura. Eu poderia beijar ele, e eu gostaria muito de beijar ele agora.
─ Por que eu não sairia com Johnny, Franklin? – Questiono sem demora. Ele retorce o nariz ao ouvir o apelido que dei para o policial. ─ Não acho que ele me beijaria por pena, pelo menos. ─ Não consigo controlar a minha maldita boca, e apesar de querer soar firme, sussurro cada palavra carregada de dor.
─ Pena? Eu não... – Ele para de falar e ri, fungando pelo nariz daquele jeito um tanto irritante que faz. Frank ajeita os cabelos para trás em um movimento vulnerável e quase perco meu controle, estou presa nessa confusão mental de querer e fazer ou não fazer, a sensação é horrível, aperto meus punhos para tentar parar de pensar demais. ─ Só não saia com Mason. Eu só... eu preciso de paciência, Natasha. ─ Frank aproxima ainda mais seu rosto do meu, até encostar seu nariz em minha bochecha e acaricia minha pele com a sua, em um movimento tranquilo. ─ Você é tão linda, eu não sei... eu fico perdido... ─ ele sussurra.
Com sua mão livre, Morris segunda minha cintura e deseja círculos com seu polegar. Mesmo com o tecido grosso da camisa consigo sentir o seu carinho, e me sinto estremecer por dentro, como se fosse uma parede gasta prestes a ruir.
Todas as borboletas, que passei o dia todo tentando matar, voltam a voar, ainda mais enfurecidas do que antes e me sinto enjoada por isso. Sua boca roça minha bochecha, e sinto como se fosse uma bomba atômica prestes a explodir quando ele encosta o canto dos seus lábios contra os meus.
Com muito esforço desvio meu rosto. Eu quero beijar ele, quero demais, mas todos os fantasmas contornando minha mente conseguem me impedir de fazê-lo. Tudo dentro de mim grita para que eu não esqueça do meu verdadeiro objetivo, para conquistar tudo que planejei depois de tanto sofrer. Me apaixonar por alguém que não sabe o que quer não estava nem próximo desses objetivos.
─ Frank, eu demorei tempo demais para entender que não sou um brinquedo para os outros, e eu não posso mudar isso agora e esperar para que decida o que realmente quer, sinto muito. ─ Ele fica sem saber o que dizer por um tempo, paralisado, mas então se afasta devagar e é a pior das torturas. Seus olhos estão congelados contra os meus, e de novo, vazios.
Com a mão que segurava o trinco, ele abre a porta do carro, e me espera entrar para então fechá-la com gentileza. Ele acena com a cabeça e também com uma das mãos uma última vez e vai embora. E eu espero até que entre no prédio da corporação novamente para ligar o carro e fugir.
Sei que preciso esquecer nosso beijo e voltar a me centrar nos meus planos, para reconquistar minha casa e minha vida. Sei que estou fazendo o certo, mas nem mesmo o certo pode impedir um coração de sangrar.

Seguro meus sentimentos bem presos em meu peito, ao máximo, ao menos até possa encontrar o caminho de casa. Mas assim que fecho a porta as minhas costas, começo a chorar, lágrimas ardilosas escorrem por minhas bochechas mesmo quando tento impedi-las.
─ Minha menina, que bom que está de volta. – Nikita atravessa a sala com passos rápidos e lança seus braços ao meu redor em um abraço bastante apertado. Ele esteve mesmo preocupado comigo, e eu presa em uma situação estúpida, que vergonha.
─ Me desculpe, Nikita, me desculpe mesmo... – digo entre soluços. Me sinto fraca e vulnerável por chorar tanto agora, por algo que não deveria ter significado nenhum. E dói, dói pra caramba me sentir assim.
─ Está tudo bem? O que aconteceu? – Goncharov parece um pouco desconcertado, talvez não tivesse notado meu choro até então. Para falar a verdade, acho que ele nunca me viu chorar, a não ser na noite em que minha família se foi.
─ Eu só... estou estragando tudo. Eu não tenho nada, não há nada de novo para nós. Não sei mais quem sou, não me lembro quais são meus objetivos. Estou perdida Nikita e eu... me desculpa. – Apoio minha cabeça em seu ombro e me permito chorar um pouco mais, até que as lágrimas comecem a ensopar sua bonita camisa de linho vermelha. Ele acaricia meus cabelos da mesma maneira que fazia quando corríamos para contar a ele que Sergei havia nos colocado de castigo, com carinho e compreensão.
... – Estremeço apenas ao ouvir meu nome de verdade, um nome que as vezes acho que nem reconheço mais. Ele parece perceber. ─ Natasha... minha querida menina, tudo que você precisa é viver. ─ Ele me afasta um pouco, me segurando pelos ombros, apenas o suficiente para poder olhar em meus olhos marejados, o que faz seu rosto ficar um pouco embaçado. Eu sei que está sorrindo, com a mesma compaixão que um pai olha e sorri para um filho. ─ Já tiraram o suficiente de você, não pode deixar que façam isso de novo agora...
─ E se... – Penso por um momento antes de falar, porque não sei como abrir meu coração para ele, mesmo que seja a figura mais paterna que tive em toda a vida. Ainda mais quando ele me olha desse jeito, como se enxergasse o fundo da minha alma. ─ E se isso, esses pensamentos e meus sentimentos confusos estiverem relacionados à uma pessoa? – Meu peito arde, não sei se é porque preciso me esforçar para admitir tudo para Nikita agora, ou então se é porque estou começando a admitir para mim mesma que esses sentimentos existem.
─ Oh – ele exclama, surpreso. Nikita coloca uma mecha de cabelo atrás da minha orelha e segura meu queixo em seguida, firmando meus olhos na altura dos seus. Um sorriso iluminado parte seus lábios. ─ Então essa pessoa tem muita sorte no mundo para ter sido notada por você.
─ E se isso atrapalhar nossos planos? Todo o tempo em que investiu em nossa vida, tudo que fez em nome da Vory v Zakone, eu não posso... – Mordo meus lábios com força para segurar a nova onda de lágrimas que chega aos meus olhos, teimosas, ao querer escorrer bochecha abaixo.
─ Nada que faça vai atrapalhar o que tenho planejado. – Apesar de sua expressão serena, a voz é séria e firme. ─ Vamos reorganizar tudo o que temos, criança, é tudo sobre você, sempre foi... ─ Engulo em seco. Não consigo sequer começar a imaginar o que poderia ser positivo em envolver Franklin com nossa vingança contra a Semyonova. E a pior parte é que meu coração palpita muito forte somente em pensar em seu nome agora.


FRANKLIN MORRIS


Porquê seu coração bate ou deixa de bater, há muitas maneiras de explicar, e posso afirmar que nenhuma delas é tão dolorida ou assustadora, quanto quando se assimila aos seus batimentos cardíacos coordenados com a existência de outra pessoa.
O momento em que você deixa de pertencer a si mesmo, e passa a coexistir por outro alguém, quando seus desejos não são mais obrigatoriamente seus, e suas decisões não são formadas porque você quer algo ou não, mas sim porque aquela pessoa está ali.
Ao mesmo tempo, peças que pareciam estar faltando em seu quebra-cabeça pessoal parecem se encaixar. Tudo parece muito simples.
Mas nem sempre é.
Não acho, sinceramente, que tenha conhecido o amor de forma pura, não àquele diferente ao fraternal. Por isso, nesse momento é terrível estar tão presente em minha cabeça, meu coração e até mesmo minha carcaça. Porque de repente, esse corpo já não me pertence, essa mente não é mais minha, nem mesmo carrega meus próprios pensamentos.
Há outra pessoa, que parece tomar conta da minha história sem nem ao menos ter batido à porta da minha vida, outra pessoa que nem mesmo me pediu permissão para entrar, ela simplesmente derrubou uma parede e fez moradia dentro de mim. Se materializou de forma tão concreta, que as vezes acho que esqueci meu próprio nome.
Se ela me dissesse que ama a chuva, eu passaria a não dormir em noites de tempestade. Não porque raios e trovões começariam a me assustar, mas porque tenho certeza de que isso me faria um passo mais próximo de tudo que ela ama, de tudo que eu poderia passar a amar também.
Não consigo deixar de imaginar a cada segundo que o relógio tica, o que se passa em sua cabeça quando nossos olhos se cruzam? Será que sua respiração falha como a minha, quando vejo um sorriso iluminar seu rosto bonito? Será que todos os seus órgãos parecem pesar uma tonelada ao ouvir como sua voz é suave ao pronunciar meu nome?
Não consigo deixar de imaginar como tudo seria caso ela sentisse o mesmo, como seria se eu conseguisse conquistar seu coração como ela tomou o meu para si, sem nem ao menos me dar um minuto para me preparar.
Por outro lado, não sei como lidaria com tudo isso, pelo menos não quando nem mesmo consigo conter meus próprios pensamentos. Para entender uma pessoa, é preciso nadar nas mesmas águas em que ela se afogou. Não acho que estou disposto a deixar que sua luz se apague em minha escuridão.
Se deixasse as coisas fluírem como meu coração desesperadamente grita para aceitar, precisaria estar ciente dos riscos que isso implica. É quase insuportável senti-lo suplicar para que me deixe levar. Ainda mais quando preciso encarar o espelho todos os dias, e a imagem que me olha de volta se parece tanto comigo, com ele, o pequeno Frankie que nunca fez nada de bom, nem mesmo conseguiu salvar o seu melhor amigo.
Como é possível embrulhar sua alma em um papel de presente se você nem mesmo consegue tocá-la sozinho? Se você não sabe sequer se ela ainda está lá? Esperando, em silêncio, para quem sabe, enfim, fazer parte de quem você sempre quis ser.
Olhando para o que restou dentro de mim agora, sinto como se tivesse fechado todas as estradas fáceis que alcançam o ponto bem no centro de mim. E mesmo assim, quero ser totalmente alcançável para ela, se tiver certeza que terá a paciência de andar uns quilômetros extra ao decidir caminhar comigo.
Não sei como consertar isso.
Não sei se há conserto para algo assim.

Meus móveis são todos brancos, só percebi isso agora. No breu, é tudo uma mistura de cinza, branco e alguma coisa tão sóbria que os meus olhos quase gritam por qualquer resquício de cor. Talvez esse espaço se pareça mais comigo do que posso admitir.
Todo esse tempo, achei que só precisasse me deitar para curar um pouco do meu coração quebrado e minha cabeça ferrada, mas todo segundo a mais que passo alisando o lençol, me faz pensar que poderia fazer um buraco no chão e, com um pouco de sorte, me tornar parte do móvel, do cinza.
Continuo a dirigir em uma estrada sem destino final, sigo sem rumo, sem qualquer esperança de um lugar que goste mesmo de ficar, que queira pertencer. Já tem um tempo que parei de dizer para mim mesmo que estou perdido, porque no fundo sei que não estou. Talvez não esteja perdido, somente esteja a caminho.
O problema é que ultimamente meus caminhos parecem tão cheios de curvas que só desacelero. Preciso aprender a respirar novamente e acalmar minha cabeça. Estive tão acostumado a gostar do silencio que agora, com tanto barulho alto ao meu redor, preciso me adaptar mais uma vez. A ser alguém normal, com uma vida normal, não apenas àquele quem sempre fui, com tantos fardos a carregar.
Bem-vindo à vida merda de Franklin Morris!
Ao meu lado, na mesa de cabeceira, a data no relógio digital parece gritar contra a minha cara com seu brilho neon: “é 16 de novembro de novo, otário”.
Merda, já fazem dez anos...

Soluço alto, rio em resposta à minha própria reação. A bile sobe tão rápido do estômago, que todos no bar parecem notar quando inclino meu corpo para frente, me segurando contra a bancada, como se estivesse prestes a destripar o mico.
─ Tudo bem bonitão, acho melhor parar por aqui... ─ A atendente loira de rosto comprido retira a caneca de cerveja da minha frente. Ela está tão preocupada que parece não conseguir desencostar os peitos da minha cara, quase como se dissesse que posso substituir aquela decima cerveja por outra coisa. Não tenho nem mesmo um pingo de ânimo para dizer que não estou interessado no seu jogo. Ao menos um perdedor sabe reconhecer quando não distribuir as cartas.
É claro que estou bêbado, tipo pra caralho. Tenho motivos o suficiente para beber até que o meu sistema digestório pare de funcionar, até que meu fígado se torne uma bomba relógio, tique taqueando os últimos segundos da minha existência. Ou da minha consciência, pelo menos.
Tirei o dia de folga, acho que precisava disso, honestamente. Quando informei Jetson, na mesma hora ele entendeu. Mais do que qualquer um poderia entender. Jet não questionou nem por um segundo e me mandou sair da sua sala antes que me fizesse sair na porrada.
Todos os anos, neste mesmo dia, tudo acontece da mesma maneira. Levanto sem qualquer animo, gasto energia o suficiente apenas para chegar até o bar mais próximo, bebo até não aguentar erguer o copo, coloco minhas tripas para fora, compro flores, vou até o mesmo lugar... e bem, o resto é só mais uma história de merda.
A pior parte é que agora tudo isso parece diferente. E é, não? Eu não tinha nenhuma razão para continuar nessa mesma porcaria de rotina, e agora ela está aí, em tudo que enxergo, no ar que respiro, na luz que invade as janelas sujas dessa espelunca em que estou.
É uma ironia de merda o dia estar tão bonito lá fora, o sol descendo aos poucos no céu, o fim de tarde dando seus primeiros anúncios de que logo irá embora. O alaranjado se misturando ao amarelo, se fundindo aos poucos com o azul cada vez mais escuro, os últimos movimentos da luz que dará espaço a escuridão antes mesmo que alguém perceba. Como um interruptor.
Nem mesmo notei a manhã passar, fiquei o tempo todo olhando para o teto, tentando esvaziar minha mente um pouco, o que parece impossível ultimamente. Depois, a tarde toda estive aqui, bebendo e preenchendo o espaço que consegui esvaziar. E mesmo com essa insistência em mutilar um pouco mais a minha cabeça, tem algo diferente rondando minha aura, quase uma nuvem pacífica...
Aos tropeços, deixo alguns dólares de gorjeta a mais para atendente, ao menos assim a farei feliz. Alcanço o maço de margaridas, suas favoritas, um pouco amassadas agora, e continuo meu ritual de todo 16 de novembro. A caminhada parece tomar o restante das forças que ainda guardava, e sinto que se não chegar logo ao cemitério, não terei tempo de me apoiar em algo para amenizar o impacto que terei ao cair de joelhos na calçada.
Chego ao Charlotte Jane, tonto e sem conseguir controlar minha respiração, observo as pessoas passarem. Algumas também estão fazendo seu próprio ritual. Famílias, pais e mães, esposas e esposos, irmãos, filhos, amigos... todos deixam sua dor escorrer pelos olhos através de suas lágrimas doloridas. Noto seus lábios se movendo rápido em preces, a saudade toma conta de suas expressões.
Quando chego à sua lápide me encosto na pedra dura. Admiro as flores deixadas ali em quantidade abundante, muitas margaridas, e me emociono ao notar que outros também lembraram que eram suas favoritas. Apoiada no concreto frio, há uma caixinha de madeira com a tampa transparente, dentro uma pequena coleção de palhetas. Por um segundo, é quase como se Simple Man tocasse direto em meu cérebro, no lugar mais profundo e carinhoso das minhas memórias.
"Forget your lust for the rich man's gold. All that you need is in your soul. And you can do this, oh baby, if you try. All that I want for you my son, is to be satisfied", meus olhos pesam com as lágrimas grosseiras. Não seguro o choro, nem mesmo quero tentar, deixo que a tristeza escoe pelo meu rosto e pingue com raiva e saudade no tecido escuro da camisa. Esse dia maldito é pesado demais, e toda a minha vida é sobre ele.
─ Oi Mr. G. – Minha voz é só um sussurro, e preciso fazer um esforço enorme para sequer falar, minhas energias são sugadas por minhas memórias e, rapidamente, estou esgotado por completo. Tanto que preciso me abaixar, um joelho apoiado no chão para que possa sustentar todo o meu peso. ─ É 16 de novembro de novo, não? O tempo passa rápido pra caralho...
É quase como se pudesse sentir o sangue correndo por minhas veias a cada bombeada do coração, que bate com força, raiva, remorso e tantos sentimentos ruins mais. Sinto o mesmo gosto amargo que senti naquela tarde, uma década atrás. Ouço suas risadas, George e Sandy correndo um atrás do outro. Charlie abrindo as cervejas que roubou da geladeira do seu pai, as brincadeiras sobre como o álcool era o que faltava para deixar nossa tarde completa, mas eu sabia que algo não estava certo.
─ Não acredito que sobrevivi a esses dez anos sem você, cara... ─ Em minhas narinas, quase posso sentir o cheiro gostoso do cachorro quente frito, e do sujo de maracujá com água de coco que Sandy levou para nós, só para descobrirmos mais tarde que ela estava longe de ser uma boa menina, já que dentro das garrafas térmicas, o suco estava super batizado com vodka.
Não consigo controlar uma risada engasgada, e nem posso entender como é possível rir e chorar ao mesmo tempo. Talvez seja uma reação a quantidade de bebida que tomei. Sou preenchido por tantas emoções de uma só vez, e não me sinto preparado para lidar com isso. É bem provável que nunca esteja.
─ Ao menos espero que esteja festejando aí em cima – resmungo, dando de ombros. O tom da minha risada é mais alto agora, quase superando o meu pranto. ─ Só consigo imaginar você, um canalha de merda, dando em cima de todas as anjas mais bonitas que tiverem aí... sei que faria proveito disso.
O silêncio parece então tomar conta de tudo, não consigo mais falar, nem raciocinar com coerência, e quando minha mão alcança a lapide de George, estou com os dois joelhos afundados no chão, engasgando em meus próprios soluços. No fundo do meu bolso está o chaveiro em formato de carro, a Ferrari azul. Alcanço o metal gelado e o aperto contra os dedos tremeluzentes, o fecho apertado em meus dedos e junto minhas mãos em uma prece, uma despedida. Então deixo o chaveiro ao lado da caixinha com as palhetas. Preciso morder os lábios para não soluçar alto demais. Ainda estou no processo de ficar sóbrio, o que não ajuda em nada.
─ Se vale de algo, irmão, nada mudou por aqui. Mesmo sem você, ainda sou o mesmo idiota de sempre... – Meus ombros chacoalham em conjunto a uma risada que escapa de forma involuntária, quando, na verdade, não há nada de engraçado nisso. ─ Fiquei sabendo que Sandy teve um bebê, acho que é uma garotinha... eu não ficaria surpreso se ela fosse a sua cara, sabe. Você sempre disse que Sandy carregaria um bebê seu, e ela te amava tanto... talvez isso tenha lançado um feitiço nela e agora se parece com você. Não vejo a hora de saber sobre isso, claro, isso se algum dia chegar a ver esse bebê... quem sabe. ─ Até porque é provável que Sandy nunca mais queira ver a minha cara, não quando ela só vá fazê-la lembrar do quanto fui inútil àquele dia. Ajeito meu corpo para me sentar, as costas escoradas na lápide polida recentemente.
─ Eu conheci uma garota, Georgie. Não, melhor, eu conheci A GAROTA. ─ Novamente, é apenas um sussurro que ecoa por minhas cordas vocais. Eu conto à George um segredo, um daqueles difíceis pra caramba, que se estivesse por aqui o faria rir da minha cara. Meu peito dói demais por saber que ele não está ali, sentado na varanda comigo, ouvindo isso de verdade.
Eu daria tudo para poder voltar no tempo, para senti-lo socar meu ombro com força, me afirmando com firmeza que ela só seria “a garota” se fizesse sentir como se meus olhos estivessem queimando ao admirá-la. Então eu respiraria fundo, e diria a George que talvez ele nem mesmo acredite no que diz, mas que ela está incendiando tudo que sobrou de mim.
Mas não seriam apenas sobras se meu amigo ainda estivesse por aqui. Eu ainda teria tudo. E talvez não seria tão difícil passar por tudo isso, ignorar Natasha por quase um ano inteiro, empurrando para o canto o fato de estar terrivelmente apaixonado por ela, sem nem sequer conseguir explicar porque não me sinto merecedor de sentir esse pingo de alegria. Talvez aqui, ao lado do seu túmulo cheirando a flores recém colhidas seja um pouco mais fácil, um pouco mais leve de admitir meus sentimentos tão reprimidos, esmagados dentro de um baú minúsculo escondido nos confins do meu coração.
─ Ela é linda, Georgie, e toda vez que sinto sua presença sinto como se pudesse morrer, e morreria feliz mesmo assim, mas é claro que... – As palavras fogem por um segundo, o vazio invade meus pensamentos e é quase cômico, se não fosse trágico. ─ Sou um idiota, Halliwell. Acho que consegui empurrá-la o suficiente para longe, sem nem mesmo tentar dizer que eu só queria tê-la em meus braços o tempo todo. Você sabe que eu sempre fui péssimo em dizer para as mulheres o que sinto. Ainda mais depois que você... merda! – Meus olhos voltam a marejar, me sinto tão tonto que preciso apoiar a cabeça nos braços que estão cruzados em cima dos meus joelhos dobrados. É quase como se eu pudesse chorar até não restar mais nenhuma lágrima.
Carrego a dor da morte de George por dez anos, e é muito, muito tempo. Uma década inteira em que insisto em me afundar em culpa, centímetro por centímetro, até que tenha esquecido que, para encontrar minha própria paz só seria possível se continuasse a viver. Me neguei a viver por tempo demais, até hoje.
─ Me perdoe George... Continuo dizendo para mim mesmo, todos os dias, que o que me conforta é que um dia nos reuniremos mais uma vez, mas merda cara, deveria ter sido eu, não? – Bato a cabeça contra a lápide, meus olhos se fecham com a dor pungente, continua difícil de controlar a respiração, que parece fazer meu peito se desmanchar a cada lufada de ar que engulo. ─ Sinto muito não ter conseguido te salvar, irmão, sinto mesmo.
Acima do cemitério, um trovão estronda alto no céu. Não percebi o momento em que o clima mudou tão radicalmente, mas tenho certeza de que o mundo pode cair a qualquer momento. E talvez seja coisa da minha cabeça, mas a enxurrada que preenche o céu e também inunda meus pensamentos, parece quase uma resposta vinda lá de cima, do paraíso.
Eu amo George Halliwell e sempre irei amar o meu melhor amigo de forma incondicional, mesmo que eu não faça ideia de onde ele está agora, sei que tenho sua benção para continuar a viver de verdade.
Em meio as gotas de chuva que começam a cair, deixo minha alma ser lavada junto com todo o peso de memórias ruins que decidi permitir sobrecarregarem meus ombros. Chegou, enfim, a hora de me perdoar.

Tempo depois, já totalmente sóbrio, decido dirigir até o prédio da corporação, o que me faz sentir mais calmo. Não sei se estou ficando maluco ou o que, mas em minha cabeça, sei exatamente o que preciso fazer para começar esse processo de redenção.
De tudo que tenho certeza nessa vida, a maior delas é que estou perdidamente apaixonado por Natasha, e tudo que mais preciso agora é sentir mais uma vez seus lábios nos meus. Preciso ter coragem para contar sobre tudo que aconteceu comigo, quem fui até me tornar quem sou hoje. De certa forma, ela me pediu isso, não pediu? Para me abrir.
Talvez eu esteja levando tempo demais para perceber que as coisas são mais fáceis do que acredito ser, talvez ela até mesmo diga que não quer se envolver com alguém como eu, e eu me afastaria, faria isso, eu entenderia de verdade caso não quisesse nada comigo. Mas não tenho mais motivos para não tentar, para ter certeza que dei o meu melhor.
Mesmo tendo passando tanto tempo construindo paredes ao meu redor, ela conseguiu destruir boa parte delas. E agora, só preciso dar o primeiro passo para começar essa nova história, seja com dúvidas, seja com dor, as mãos tremendo e voz falhando, mas preciso começar de alguma forma.
Me pego pensando se estou louco em me permitir sentir dessa forma, ainda mais depois de tantas merdas pelas quais passei, a lista é gigante. Mas se há algo em que sou bom é dar tiros, e talvez um tiro no escuro não possa fazer mal.
Em minha cabeça, sei exatamente o que quero dizer para Natasha, como explicar os motivos para me prender por tanto tempo dentro dessa personalidade cretina. O porquê de ter evitado falar com ela ontem, e o principal, porque nunca consegui superar a aversão que sinto a tudo que vejo no espelho. Que tudo que me encara de volta, me assusta.
Do fundo do coração, espero que ela possa ser paciente comigo, que sinta o mesmo que eu sinto. Que, como eu, veja como isso tudo parece tão certo e que entenda, tudo é sobre ela, farei o que me pedir sem hesitar. Só preciso que ela me queira tanto quanto anseio por sua presença agora.
Estaciono o carro entre tantos outros veículos, visto o casaco mais grosso que encontro no banco traseiro. A chuva está forte agora, os pingos espessos atingem o vidro com força, mas estou a poucos metros da entrada do prédio, alguns passos e alcanço a porta.
Saio do veículo e começo a caminha de forma rápida e precisa, quase como se a ansiedade que corrói meu peito chegasse até meus pés. Mal posso esperar para, finalmente, dizer tudo que preciso dizer. Para tirar o peso dos ombros, o aperto do peito e, pelo menos dessa vez, me permitir tentar ser um pouco feliz.
A água começa a escorrer por minha cabeça, ensopando meus cabelos, ombros e braços, e um pensamento meio idiota me ocorre, é como se estivesse lavando não apenas a carcaça, mas toda a alma, como vinha precisando há algum tempo. Meu interior estremece por inteiro, e não pela sensação de frio, mas porque estou estarrecido com o fato de que talvez tenha encontrado de uma vez por todas a parte que me faltava.
Se houve algum momento em que duvidei haver resquícios de alma em mim, agora posso senti-los todos, suave e delicadamente voltando para meu corpo. Sua sabedoria batendo sem força, sem pressa, em minha mente. Querendo tomar de volta para si o espaço que sempre foi seu por direito.
Antes mesmo que possa chegar próximo a porta de entrada meus pés estancam no chão como se a calçada fosse feita de areia movediça, não consigo nem mesmo considerar dar um passo para frente ou para trás. E meu coração despenca pelo que parecem metros e metros, e continua caindo em um buraco infinito. Se havia algo pulsando dentro de mim, esse algo parece agora ter ficado em silêncio. De forma quase constrangedora.
Natasha está saindo do prédio, e eu poderia sentir sua presença a milhares de quilômetros de distância, porque sua aura parece sempre quase uma explosão em meu campo de visão. O que dói como uma adaga no peito é que ela não está brilhando sozinha. John Mason está colado em seus calcanhares, e os dois riem juntos, como se tivessem ouvido a piada mais engraçada de toda a sua vida.
Eles saem tão rápido do prédio que demoram para entender que está chovendo quase forte demais. A sua expressão, seu rosto tão lindo, parece surpreso e divertido, tão feliz que quase sinto vontade de sorrir também, só por saber que está genuinamente feliz. Não sobrou mais nada da raiva que vi ontem à noite, quando a deixei entrar em seu carro e ir embora, sem nem mesmo me esforçar um pouco para explicar.
John retira o seu próprio casaco e coloca sobre suas costas, ela agradece com sorrisinho e abre a pequena sombrinha. Os dois correm pela chuva, se apertando embaixo do objeto minúsculo, ambos riem em puro divertimento enquanto tentam não se molhar muito até alcançarem seu carro.
Dou as costas, porque não quero ver ambos entrarem no mesmo veículo. Não quero bisbilhotar e ficar controlando se ele entrou com ela ou a deixou na porta, como um verdadeiro cavalheiro faria. Não quero ser o bastardo ciumento, ainda mais agora, não tenho direito nenhum sobre ela, nunca tive.
Natasha nunca foi minha, nunca me pertenceu. E, para ser bem honesto, eu bem que sei que ela jamais pertencerá a ninguém como pertence apenas a si mesma. De qualquer forma, também não quero transformar tudo isso em um drama desnecessário.
Ela está feliz, logo, estou feliz também, ou acho que estou. Não é como eu queria que as coisas tivessem acontecido. Pro diabo com isso, estou ainda mais fodido agora. Mas desde que plantei meus olhos nela, sempre tive a mais absoluta certeza, de tudo que sempre lhe desejei é que fosse feliz, para sempre.
Não sei se junto os pedaços do que sobrou dentro de mim, ou se apenas vou embora e deixo tudo para trás e faço de conta se esqueço, porque é claro que isso vai ser meio impossível de esquecer. Não estou furioso agora, e para falar a verdade, acho que não estou sentindo absolutamente nada. É quase como se, de forma automática, minhas emoções tivessem voltado para o quartinho pequeno, vazio e escuro no fundo do meu coração. A chave virou no trinco mais uma vez.
16 de novembro é o pior de todos os dias.

Dou apenas duas batidas na porta. São o suficiente para que Jetson arraste a madeira para o lado, me dando espaço para que entre enquanto já tem um copo de uísque estendido em minha direção. Ele sabe exatamente qual a linguagem que precisa usar comigo agora.
Bebo o conteúdo devagar, aproveitando o sabor agridoce. Penso em como seria entornar a garrafa inteira, sem parar, até o ultimo gole, mas sei que não vale a pena. Não quero precisar incluir alcóolatra na minha lista fodida, junto com todas as outras coisas que já tomam tanto espaço.
Me jogo em seu sofá, e nem mesmo me preocupo em tirar os sapatos encharcados. Jet não diz nada, ele conhece bem os meus limites, e sempre soube que esse é o pior dia do ano para mim. Ele só não faz ideia que agora também é oficialmente o dia do karma.
Solto uma risada baixa, fungando pelo nariz. Richards ainda permanece em silêncio, o que me preocupa muito mais do que se me bombardeasse com um monte de perguntas ignorantes. Ele se acomoda na poltrona que está logo atrás da minha cabeça. Sinto quase como se estivesse no consultório com minha terapeuta. Eu, um paciente em apuros e frustrado, e Jet, o médico paciente esperando pelo meu desabafo.
─ Estou apaixonado. – É tudo que digo. Porque na verdade, não sei se tenho capacidade para reviver todo o dia novamente, não acho que consigo contar detalhe por detalhe de todas as fases que enfrentei nas últimas horas. Não sem fazer com que minha cabeça doa tanto a ponto de quase explodir.
─ Chocante – ele resmunga. Inclino a cabeça para trás, tentando enxerga-lo o suficiente só para saber se está fazendo sua careta sarcástica ou não. Mas o movimento me deixan tonto, e concluo, se é o Jetson falando, obviamente é sarcasmo. Que diabos estou pensando?
─ Não importa mais, nada importa na verdade, ela está com Mason – concluo ao chacoalhar meus ombros, o que faz um pouco do conteúdo do copo de uísque cair em minha camiseta já encharcada.
─ Uhum. Ouviu isso boca dela ou são só as vozes na sua cabeça falando? – Sei que não é nem uma pergunta, mas soa quase como uma piada. E ainda assim, Jetson parece mais sério do que um padre rezando a missa.
─ Eu os vi saindo juntos da corporação, entre risadinhas e mãos bobas, sou um monte de merda Richards, mas não um babaca... sei reconhecer quando uma mulher está flertando com o cara – reclamo ao explicar. É claro que não a perguntei de forma objetiva para Natasha se estava saindo com dali com John, ou se eles se encontraram na saída por coincidência. Também não fiquei espiando tempo o suficiente para saber se tinham mesmo ido embora juntos, mas, é fato, não sou idiota.
Sempre soube o final da minha história, e nunca foi nada muito feliz.
─ Olha, considerando todo o tempo que te conheço, a sua experiência com mulheres, eu acho que também bastante chance de você estar sendo um babaca sim... – ele comenta, sem pensar muito. Forço meu corpo a se movimentar, até que esteja sentado novamente no sofá molhado por completo agora. Mas não me preocupo muito, deixo para pensar nisso depois, até porque está bem óbvio para mim que irei dormir nesse mesmo móvel essa noite.
Se não sou mesmo tão babaca sim, estou certo de que Jetson tem uma geladeira recheada com cerveja e outras bebidas, e pretendo dessa vez, só dessa vez, usufruir do meu posto de melhor amigo por algumas horas e continuar enchendo a cara como fiz boa parte do dia. E ele também não negaria, nem hoje, nem nunca.
Por um lado, quero mandar Jet se foder por duvidar do que estou dizendo, mas por outro lado tenho quase certeza de que ele não está me ouvindo direito. Além do que, ele pode não admitir, mas sei que está torcendo para que eu arrume logo uma namorada, só para que ele possa ser o pior melhor amigo e contar tudo que sabe sobre isso, para me envergonhar ainda mais, se isso sequer for possível.
Mas no fim das contas, ele continua sendo o meu melhor amigo, e talvez eu não conseguiria descobrir sozinho o que fazer agora se não tivesse para onde ir, não tivesse como estar aqui em sua sala, pingando toda a chuva acumulada em minhas roupas pelo seu chão.
─ Quer me contar sobre esse dia 16? – Questiona de forma sutil. Ele sabe que um dos meus limites são os assuntos que dizem respeito à George, mas hoje é um dia diferente, e hoje Jet está liberado de perguntar o que for preciso, desde que isso ajude a aliviar um pouco a pressão em meu peito.
─ Nada demais... – murmuro, tentando chacoalhar os ombros de novo, mas o movimento é tão desajeitado que derrubo mais bebida, e me pego pensando no quão bêbado já estou, de novo. Jet parece perceber o que preciso rapidamente, pois se levanta e vai a geladeira, pegando de dentro mais garrafas de cerveja para nós dois. A conversa pode ser longa. ─ Deixei o chaveiro para trás...
─ A Ferrari azul? – Exclama, surpreso. Concordo com um meneio de cabeça. ─ Minha nossa, é um grande passo... – Sua voz é mesmo surpresa, dessa vez sem espaço para sarcasmos ou brincadeiras idiotas. Concordo com um novo movimento de cabeça, a sala parece girar em meus olhos.
─ Passo para? – Pergunto em tom honesto.
─ Para seguir em frente, oras – ele diz, sem pretensão de prosseguir com outro comentário além disso. Jetson apenas diz o que quer dizer, sem qualquer maldade. ─ Quero dizer, já está em tempo, não? – Sei o que quer dizer, tempo de ser feliz, só que isso sim me parece meio idiota e até maldoso, principalmente para alguém como eu, tão fodido.
─ Eu tentei Jet, por cinco minutos talvez, mas tentei... e lá estava ela, me esquecendo tão rápido quanto me conheceu. Felicidade não funciona para mim cara, nada na minha vida é funcional o suficiente pra isso... – Jetson ri em resposta, alto e sonoro. Bate sua garrafa de cerveja na minha, em um brinde. – Estamos brindando a...?
─ À conclusão de que, além de burro, você também é cego meu amigo... ─ Fico admirado com sua resposta, em como Jetson consegue ir e voltar de sua personalidade cretina com tanta facilidade. Quero xingá-lo, é claro, mas quando abro minha boca uma gargalhada escapa, tão alta quanto a sua, e isso soa realmente bom, se for considerar tudo.
─ O que caralhos você quer dizer com isso?
─ Natasha também está apaixonada por você, idiota. – Suas palavras são tão fortes e pesadas como um soco bem no meio da boca, me atingem por completo, como um conjunto de flashes de dor e esperança, ao mesmo tempo.
─ Só que não faz o menor sentido, Jet... faz? – Não depois de vê-la correr para fora da corporação de braços dados com John Mason, a única coisa que havia a pedido para não fazer.
Talvez seja isso que tenha ferrado com qualquer possibilidade de, no mínimo, tentar me explicar um pouco. Porque em nenhum momento deixei claro que estava pedindo algo tão importante, e talvez por ter usado as palavras erradas possa tê-la feito imaginar que eu estava tentando mandar nela, o que seria muito idiota da minha parte.
─ Puta merda, Franklin. Ela parecia um coelhinho após duas xicaras de café ontem, depois que viu você sair sem dar qualquer pingo de atenção para ela. – Nego com um movimento do queixo, sem entender onde ele quer chegar. Do meu ponto de vista, isso parece ser quase insignificante para justificar o que Jet quer dizer. É claro que deveríamos ter conversado sobre a noite anterior no hospital, independente do que realmente aconteceu ou não. E pelo que sinto agora, não deve ter sido nada demais para ela.
─ E ainda sim, não foi comigo que ela foi embora hoje... ─ Ergo minhas sobrancelhas em sua direção e movimento as palmas da mão em sua direção, gesticulando minha conclusão tão óbvia.
– Frank, está claro que ela queria mais uns beijinhos... – Sou pego de surpresa, mas ao mesmo tempo não estou chocado, não de verdade. Por isso, nem me dou ao trabalho de perguntar como ele já estava sabendo disso tudo. É bem provável que Natasha te lhe contado tudo por livre e espontânea pressão.
E se for assim, quem sabe Jetson esteja um pouquinho certo? Mas, se estivesse, por que ela teria feito exatamente o contrário do que pedi? Sei que Natasha não é nada paciente, porque no fundo, foi isso que pedi, um pouco de paciência. Não estava pronto para contar tudo que estava entalado em minha garganta.
─ Você devia mandar uma mensagem para ela. – Jet é direto, não parece nem pensar demais e o plano perfeito já começa a fervilhar em sua mente maluca.
─ Não tenho seu número. – Ela quase engasga e deixa sua garrafa cair, o olhar que me lança é próximo ao de um feliz, e se pudesse, me rasgaria com seus próprios dentes. Ele alcança seu celular na mesa de centro e digita alguma coisa na tela, me estende o aparelho em seguida, com o nome de Natasha bem grande aparecendo na tela.
─ Como conseguiu? – Meus olhos com certeza estão arregalados agora, pois as pálpebras doem como se estivessem pegando fogo. Para falar a verdade, não consigo sentir muito bem a minha cara.
─ Lista de contatos da corporação, Morris, todos tem acesso... Por Deus, homem, em que caverna você tem vivido? – Sua voz permanece firme por dois exatos segundos, mas logo em seguida estamos os dois gargalhando mais uma vez.
O que parecem ser muitas cervejas depois, sinto que vou apagar a qualquer momento, então me ajeito no sofá e tiro somente os sapatos. Jetson já sumiu, consigo ouvir seus roncos altos à distância.
Encaro o teto frio, tentando processar todas as informações deste dia, e há coisas demais em que pensar. Preciso, de alguma forma, entender que a morte de George sempre será um peso que irei carregar, e não importa o que faça ou quanto queira evitar.
Mas, por outro lado, preciso me permitir carregar uma leveza em saber que consigo, aos poucos, cada vez menos, me sentir culpado por sua partida. Afinal de contas, não foi pelas minhas mãos que Halliwell se foi, mas sim Trey Sommers, e isso ainda era algo com que eu poderia lidar.
E, é claro, também há ela. Não faço a menor ideia de como posso começar qualquer coisa com relação a isso, nem mesmo se há algo acontecendo entre nós. E talvez Jetson esteja certo, ou muitíssimo errado, mas isso é algo que somente eu posso descobrir. Disso sei que sou capaz, afinal de contas, sou um oficial acima de qualquer outra coisa.
E há algo mais, sou paciente, muito paciente. E posso esperar pelo tempo que for. Diabos, eu desistiria de qualquer outra coisa mesmo que tenha que esperar, porque sinto lá no fundo que dessa vez, qualquer sacrifício vale a pena.
É algo pelo que realmente vale lutar.



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