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Revisada até o capítulo 24 por vênus. 🛰️
Do 25 em diante por Hydra
Atualizada em: 12/03/2025

FRANKLIN MORRIS


Entrar no ringue para mim, há muito tempo, muitas vezes parece mais fácil até mesmo do que levantar da minha cama. Minha mãe me dizia, na esperança de que as coisas mudassem: “faça terapia!”. Eu tentei, eu faço terapia. Mesmo assim, não há, para mim, melhor terapia do que calçar as luvas e abraçar o couro puído dos tatames da corporação.
Cada rasteira é como se estivesse em uma nova sessão de conversa com o meu eu interior, cada soco serve como um empurrão para a realidade. E ao seu final, cada luta serve como um lembrete de que ainda estou aqui, estou respirando. As pessoas são reais, e os seus sentimentos mais ainda.
Mas com o escape da luta ou não, se a minha mãe soubesse de tudo que se passa dentro da minha cabeça desde que era criança, ela com certeza teria me obrigado a fazer terapia. Se eu a escutasse mais vezes, é bem provável que a entendesse melhor e fizesse algo sobre esse lado mais obscuro. Mas eu nunca pude dizer o que sinto, não de verdade.
Contudo, o que senti ao pisar novamente no tablado ao lado de Natasha alguns dias atrás é uma dessas misturas de sensações que nunca poderei explicar. Sempre achei que fosse capaz de censurar minhas emoções, que poderia controlar tudo em mim, mas isso! Foi algo muito maior, puro êxtase.
Por um minuto, foi como se a gravidade não fosse mais o suficiente para me prender ao chão. Como se flutuar, de repente, fizesse muito mais sentido do que andar, muito mais fácil. Como se seguir um caminho mais fácil fosse mesmo possível.E ainda que tudo sobre nossa luta se conecte ao exato momento em que nossas luvas se encontraram à pele do outro, houve algo de extracorpóreo nos movimentos que investimos, e um momento específico, onde nosso suor se tornou a nossa própria energia. Não obstante a isso, também houve o momento mais tarde, no estante de tiros, onde todas as sensações tão distintas que a luta me proporcionou só fizeram mais sentido.
Não sei o motivo pelo qual me senti tão atraído a ajuda-la, mas suas mãos tremelicantes, seu olhar de animal acuado ao segurar o rifle, tiveram sua parcela de incentivo. Ela me fez sentir exatamente como eu mesmo já me senti antes. Depois, seu sorriso ao acertar o alvo bem na cabeça, ao destroçar o papel sem piedade, a confiança crescendo em um peito inflado de puro orgulho foi a melhor parte do meu dia.
Estou pensando nesse exato sorriso até agora.

─ Knock, knock! ─ Estou na cozinha, tirando um pacote de pipoca do micro-ondas quando Jetson não bate na porta – como sempre – antes de entrar. Não consigo evitar de pensar que talvez seja um bom momento para pedir minha chave de volta, porque ele simplesmente não sabe o que respeito significa.
Ele bate, sem muita força, com dois packs de cerveja na ilha que separa os dois ambientes, sala e cozinha, e também junta ao conjunto de vidros marrons, uma garrafa de uísque ouro que não parece ter sido muito barato.
─ Isso é um presente para você. Por finalmente ter tirado sua cabeça da bunda e ter ido conquistar um pouco de atenção da sua loirinha ─ ele explica, assim que me pega encarando a garrafa com as sobrancelhas erguidas. ─ E não se preocupe em me devolver com qualquer outra merda que está pensando agora, só de ver sua baba escorrer ao lado dela já tenho algo impagável e infindável.
─ Vá beijar o diabo, vá ─ eu respondo e ele só ri. Jetson é o melhor amigo que qualquer pessoa poderia desejar. É sim o maior idiota de todos os idiotas, mas sempre tenta te surpreender, mesmo quando você não precisa, e eu o admiro ainda mais por isso.
Tem um bilhete amarrado na garrafa. Eu puxo o papel e leio.
Só beba depois de foder”, não me aguento e gargalho alto. Richards lança um olhar sobre o ombro, seus lábios abrindo ainda mais espaço para os dentes alinhados tomarem conta da sua expressão cretina.
─ Tenho certeza que os Dolphins vão destroçar os 49ners hoje ─ ele diz, com o controle já em suas mãos, apertando os botões que sintonizam o canal de esportes.
A primeira vez em que estive na residência dos Richards foi em uma noite de FNL. A competição é tão importante para família, e são torcedores tão fanáticos dos Miami Dolphins, que eles tornam cada jogo um evento familiar, uma festa, com direito a quesadillas e muito álcool, principalmente quando os irmãos de Jetson estão na cidade.
Elroy é comentarista esportivo em um canal local em São Francisco, ele é só alguns anos mais velho que Jet, mas com certeza muito mais boca suja. Levy, o caçula entre os três, mora com Elroy quando não está na faculdade, ele estuda Direito em Stanford, uma direção completamente contraria a dos seus irmãos que sempre buscaram qualquer profissão que não os exigisse ler quaisquer livros que não fossem aqueles só com figuras.
Na noite em que os conheci, não apenas vi os Dolphins ganharem de lavada em cima dos Oakland Raiders. Mas eu também, pela primeira vez desde que o meu melhor amigo, George, foi assassinado na minha frente, senti que tinha de volta um lar para chamar de meu, um que sempre teria suas portas abertas para quando eu quisesse voltar.
─ O que El apostou? ─ pergunto ao entregar uma das cervejas para Jet. Me jogo no sofá ao seu lado, esticando minhas pernas cansadas, e apoio meus pés na mesa de centro, branca e lisa.
─ Que os Dolphins levam ─ ele ri e dá de ombros. Eu o acompanho na risada leve de fim de dia, é claro que é isso que Elroy pensa. ─ E você acha que ele diria outra coisa? Precisariam ameaçar ele com uma arma na testa pra que desse outra resposta, huh? E olha que estamos falando hoje dos adversários da casa ─ ele argumenta. Aceno positivamente para Jetson enquanto dou um grande gole em minha cerveja gelada. Lhe entrego um dos potes com a pipoca recém fritada.
Ele enche a mão em sua bacia e enfia todo o conteúdo na boca em seguida, como o bom troglodita que é. Não são as quesadillas de Mary Richards, é claro, mas sempre fazem Jetson voltar à minha casa quando o time de Miami joga.
Isso e a televisão de 55 polegadas, é claro.
Logo, o jogo começa. Ao meu lado, Jetson parece não piscar. Para todos os Richards, sem exceção, os jogos dos Miami Dolphins são mais sagrados até mesmo do que as missas de domingo. Assim que terminam as quatro primeiras descidas do seu time do coração, ele está frustrado pois todas foram interceptadas. Seu telefone toca, é Elroy em uma chamada de vídeo.
─ O jogo está uma merda! ─ É a primeira coisa que ele fala quando Jetson atende, ele parece tentar com muita dificuldade tirar sua camiseta azul clara com o número 11, de DeVante Parker, um dos wide receiver do time. Ao seu lado, Levy está muito concentrado olhando para a televisão.
─ Acabou de começar, El ─ Jetson resmunga, com a maior cara de bunda que eu já vi, só não sei dizer se é por causa da negatividade de Elroy, ou se porque também está se desanimando com o jogo.
─ Tenho certeza que o Fitzpatrick vai dar um jeito em tudo, ou não o chamariam de Fitzmagic, huh? ─ eu argumento com paciência, tentando acalmar o ânimo entre os irmãos.
─ E desde quando é que você entende alguma coisa de futebol americano, Morris? ─ Levy responde com um tom irritadiço que faz Jetson rir e soltar um “uuuh” infantil. Quando viro minha cabeça em sua direção, rápido demais, ele enche a mão com um monte de pipoca gordurosa e enfia na boca, se calando mais uma vez.
─ Desde quando o seu irmão não para de invadir a minha casa para roubar minha televisão e é isso que assisto... ─ resmungo. Jet ergue sua mão livre em rendição enquanto mastiga sua pipoca de forma ruidosa.
─ Não é exatamente a minha culpa quando esse é o único tempo que sobra pra mim desde que arrumou sua namoradinha, irmão ─ ele rebate. Apesar das suas palavras objetivas, seu olhar é bem afiado. Jetson sabe exatamente o que está comprando ao puxar essa conversa. De repente, a televisão dos irmãos Richards fica muda.
─ Eu ouvi isso certo? Frankie agora gosta de garotas? ─ O Richards mais velho fala com a voz esganiçada, parecendo inspirado subitamente, ao menos o suficiente para começar a encher o meu saco. Ele parece notar pela tela do celular o meu olhar fuzilante na direção de Jetson, pois ele sabia o que estava fazendo. ─ Você precisa admitir Morris, é mais fácil levar um cachorro como acompanhante nas festas de Natal da família do que uma garota. ─ Faço de conta que estou prestando atenção no jogo, apenas para não responder, pois por dentro estou fervilhando tanto de raiva que poderia quebrar a garrafa de cerveja na cabeça do Jetson sem hesitar, agora mesmo. ─ Ah merda, vamos lá Frankie... conte mais para a gente sobre sua garota... ─ Vejo com o canto dos olhos Levy dar um pulo para fora do sofá.
─ TOUCH DOWN! Na sua cara de merda, Garappolo... ─ ele grita alto, batendo com a palma das suas mãos nos ombros de Elroy, que finalmente parece se esquecer do meu assunto e deixa para lá as perguntas pessoais, apesar que sei que ele irá voltar a perguntar.
─ Bem, estamos de volta ao jogo, baby ─ ele argumenta, aumentando o volume da sua televisão e ergue sua própria garrafa de cerveja em um brinde. Eu e Jetson fazemos o mesmo, ainda que eu faça com um tanto de má vontade. ─ Não fique chateadinho Frankie, voltamos a falar sobre isso outra hora. Agora, tenho que ligar para a mamãe... ela deve ter jogado todas as suas quesadillas para o teto agora, sabe como ela fica quando vê o barbudão jogar, hein, e esse passe...
Elroy assobia e desliga sua chamada, Jetson joga o telefone para o lado. Eu o encaro profundamente, pois quero chamar sua atenção para mim, mas ele é tão bom em não prestar atenção em nada mais quando está concentrado em algo específico. Ou quando quer fazer de conta também.
─ Você precisa parar de falar que eu estou namorando, Jet... ─ eu sibilo. Ele apenas dá de ombros, então acerto meu punho com força em seu braço, dói o suficiente para que ele se vire em minha direção com sua expressão estupefata. ─ Você sabe muito bem que El vai contar pra sua mãe... e com todo o respeito, mas você sabe que a Mary vai me encher o saco por um bom tempo! ─ Jetson explode em uma gargalhada aguda como um uivo, seus ombros chegam a chacoalhar com o divertimento.
Estou muito irritado, muito mesmo, quero enchê-lo de porrada inclusive, mas preciso admitir, talvez mais para mim mesmo que para Jet, que ouvir a palavra namorada e associá-la com a imagem de Natasha é bastante agradável.
Para melhorar isso, só ver o Dolphins acabarem com os 49ners para fechar nossa noite!

Evito voltar a falar sobre o assunto com Jetson na manhã seguinte, até mesmo porque sei que se cutucar demais a onça com vara curta, corro o perigo de piorar muito as coisas me arriscando a provocá-lo a ponto de ligar para sua própria mãe para aumentar um pouco mais a história de que tenho uma namorada imaginária.
E se isso não for humilhação suficiente, pode ser que a Mary entre em contato com a minha própria mãe, e aí sim estou bem ferrado, porque ela vai me ligar cheia de pretensões e curiosidades, perguntando quando vai conhecer a garota. Não quero ter que contar pra ela que, na realidade, sou só o capitão Bundão, e que o mais próximo de uma namorada que tenho está só nos meus pensamentos.
O telefone toca alto em minha mesa, o que me faz dispersar as cenas de discussão com a mamãe em minha mente. É engraçado, mas até nesses pensamentos eu a deixo decepcionada.
— Morris – digo, ao atender sem nem ao menos checar de onde vem a linha.
Natasha entra na sala logo em seguida, e eu derreto um pouco com seu sorriso largo e aceno de bom dia. É tudo que preciso para esquecer todo o besteirol que os idiotas dos Richards enfiaram na minha cabeça.
— Capitão, é Eddy. – Agora reconheço a ligação e resmungo em resposta, apenas confirmando para que continue a falar. — Roberts terminou os cruzamentos de mapa que encaminhou e acho que ele tem informações interessantes. Consegue vir até a 406? Já passei a mensagem para o capitão Richards. – 406 é a sala de reuniões do quartel onde, geralmente, utilizamos quando queremos um pouco mais de privacidade para falar sobre assuntos que não queremos que vaze para outros times. Coisas que não devem ser divididas na sala geral. A proteção acústica da sala cai muito bem, por isso nos encontramos lá.
— Ótimo, estarei aí em um minuto — respondo e finalizo a ligação. Meu coração retumba forte em meu peito, o som tão alto que acho que se estiver muito próximo de alguém, deve dar pra ouvir a movimentação. E mesmo que nem faça ideia quais os resultados que Roberts vai apresentar, tenho a sensação de que o dia começou de um jeito diferente. — Ivanski – chamo a atenção da mulher na mesa ao lado. Ela solta a pilha de pastas que está organizando em sua escrivaninha, e se vira para me encarar com aqueles benditos olhos verde-esmeralda.
— Capitão — ela afirma. O tom de sua voz é tão doce que quase posso sentir o mel que escorre de sua língua. Os dois primeiros botões de sua camisa estão abertos, o que me dá uma vista quase desconfortável de sua pele lisa. O distintivo pendurado no peito sobre o bolso parece reluzir.
— Eddy pediu encontrarmos ele, Roberts e Richards na 406, acho que talvez eles tenham alguma coisa para nós... – Enquanto explico, já estou fechando a porta em nossas costas para não perdermos muito tempo.
— Oh – exclama, surpresa. Seus ombros se encolhem por um segundo, e parece pensar em algo que talvez não queira dizer. — Espero que seja algo bom... – ela murmura, por fim. Afirmo com a cabeça em resposta e entramos no elevador, que chega um minuto após eu esmurrar o botão. Ficar em um lugar fechado ao seu lado é inebriante, não consigo fugir do seu perfume adocicado que preenche todo o espaço. O ar fica comprimido, e não consigo respirar até que as portas se abram novamente.

— Ah, aí estão vocês, finalmente – Jetson diz, erguendo sua sobrancelha daquele jeito vulgar que eu odeio. Sei que faz isso só para me provocar, porque ela está andando bem perto ao meu lado, mas seu trejeito me deixa mais incomodado que o normal.
— Me diga, o que encontrou? – pergunto à Roberts, pulo qualquer conversa fiada que Jet quisesse ter, praticamente o ignoro. Minha paciência já se esgotou o suficiente com suas piadinhas à noite passada.
Sobre a mesa, alguns mapas estão alinhados e ajeitados em uma ordem que parece cronológica, a luz forte ilumina bem o papel, a ponto de quase fazer algumas linhas desaparecer sob a claridade. Roberts aponta para um dos locais marcados em vermelho.
— Como me pediu, monitorei a região por alguns dias... ahm... aqui e aqui – ele diz, ao apontar outras marcações. — Não há nada de especial — comenta sem demora, me fazendo torcer o nariz em desapontamento. Porém, no segundo seguinte, Roberts circula um local em específico com a ponta dos dedos e puxa uma foto em preto e branco com sua mão livre, para cima dos mapas. É um galpão enorme, bem fechado e discreto apesar do tamanho massivo. Uma antiga fábrica abandonada, provavelmente. — Já aqui, eu acho que há algo... notei uma movimentação bastante insólita nos últimos dias, uma única van preta chegando e saindo o tempo todo — explica, ao jogar a foto do veículo próximo aos demais documentos. — Obviamente, é roubada. Eu chequei a placa.
— Isso sim é interessante — respondo, erguendo meus olhos para Roberts, que me responde com um sorriso de raposa. — Não é uma total surpresa, vindo dessa parte da cidade. – Não há bairros realmente perigosos em Miami, mas Little Haiti com certeza não é um lugar feito pra dar bobeira. Roberts concorda com um meneio de cabeça e volta a tamborilar com o seu indicar no papel.
— Não dá pra brincar na área mesmo... mas tem uma coisa ainda mais interessante. Tentei acompanhar o movimento da van nas últimas horas, como pude, claro, porque não consegui mandar alguém para instalar um localizador, mas o pessoal da inteligência detectou sua presença há algumas horas atrás por uns outros carros. Pararam janela a janela... – Ele mostra mais algumas fotos da movimentação, parando apenas em uma onde um homem grande e careca entrega um pacote pardo para outro e, na sequência, entrega um pote pequeno.
As imagens das câmeras de segurança não são muito claras, mas a transação é bem obvia para todos presentes. O que o homem careca entrega para o outro, no sedã preto é, claramente, uma amostra de metanfetamina. Já vimos isso antes, mais de uma vez, eles entregam a droga em vidros transparentes, para provar a qualidade do narcótico por sua aparência. Quanto mais transparente, mais forte é a toxicidade. Meu rosto gira para o de Roberts em um movimento rápido, ele pisca com um sorriso agora orgulhoso, ainda que o que descobriu não seja nada bom.
— Você acha que isso pode ter alguma coisa a ver com McCarter? — questiono assim que volto a analisar as fotos. Tento soar indiferente, mas meu coração parece que vai pular para fora do peito agora. Não quero soar esperançoso demais, não é a primeira nem a última vez que interceptamos traficantes em Little Haiti.
— Um pouco mais abaixo.
— Sommers? — Minha voz é quase um sussurro dolorido. Roberts faz que sim com a cabeça e baixa seu olhar mais uma vez para o mapa. Ele coloca um último relatório por cima de todo o material apresentado.
Meu peito todo dói, acho que estou tendo uma taquicardia, não consigo respirar. Era tudo que precisava agora, mais e mais provas para incriminar Trey Sommers e garantir que apodreça na cadeia, consumido por sua própria culpa. Se não conseguimos nada relacionado a “carga humana” de semanas atrás, ao menos agora temos algo que nos parece um pouco tangível.
─ Como disse, eu monitorei a van por alguns dias, isso porque consegui rastreá-la através do uso de um cartão de crédito interligado com a placa do veículo... Anthony Van Hought – Roberts conclui. Soco a mesa de supetão, expressando de forma emotiva tudo que se passa em meu cérebro agora.
Do outro lado da mesa, Natasha me encara com curiosidade, sem parecer entender toda a comoção por trás da análise do detetive. Será que deixei isso passar por ela? É impossível, eu não seria tão irresponsável. Jetson, parado ao seu lado tem um sorriso estampado em sua cara, tão empolgado quanto eu. Eddy se balança para frente e para trás, animado com o resultado.
─ Van Hought é um dos diversos nomes falsos que Trey utilizava ─ explico para a mulher, que começa a compreender a felicidade do momento. ─ Para despistar transações “inocentes”. – Faço aspas com os dedos, de inocentes suas transações não tinham absolutamente nada.
Conto para ela que encontramos uma mala com fundo falso escondido em um dos apartamentos ilegais de Sommers, nela continha diversos cartões de crédito com nomes diferentes. Ele os usava para desviar o dinheiro dos seus roubos, tudo para bancos externos em países neutros, também usava os cartões em nomes de terceiros, prejudicando muitas vezes inocentes, que mal sabiam que seus cartões estavam sendo utilizados para cometer crimes.
─ E agora, capitão, como prosseguimos? – Pergunto diretamente à Jetson, afinal de contas, ele é quem está no comando. Além disso, sei que meu limite com Sommers é bem pequeno, não sei em que momento cruzaria a fina linha entre fazer besteira ou não.
Jetson me olhar por um momento, depois para Natasha ao seu lado, então para Roberts e para Eddy por fim. Sei que ele considera todas as probabilidades, calcula os próximos passos e pensa como um verdadeiro líder. É o suficiente, Jetson fará o que é certo, goste eu ou não. Apesar da sua personalidade extrovertida e que, às vezes, acho que é cheia de falhas, ele é o melhor no que faz.
─ Eu seria um filho da puta de te tirar desse caso agora, Frank – ele diz, sabe que isso me deixará aliviado porque sempre estou pensando qual será o momento onde irá me afastar. Também porque confia em mim para essa situação, isso significa muito. ─ Use o esquadrão, leve um time para o galpão e estejam preparados. Se Trey estiver por trás disso mesmo, não vai ter coisa boa por lá. ─ Confirmo com um aceno.
─ Acha que podem estar movimentando o cartel que o McCarter começou novamente? Sem o chefão na jogada... – Jetson dá de ombros, mas parece pensar antes de responder.
─ Não dá pra descartar nada, não duvido que eles fariam de tudo pra continuar o que o vagabundo começou... o que me leva a pensar na quantidade de drogas que podem estar mantendo lá. Se encontrarmos qualquer coisa, Frank, qualquer coisa ligada à Sommers nesse momento... – Ele nem termina de dizer o que começou, até porque sei o que irá falar, que essa sim será a vingança que tanto esperei, ver o desgraçado apodrecendo até o último instante de sua vida.
Mas não consigo deixar de pensar que, na realidade, o que me faria realmente feliz é meter uma bala de fuzil no meio da sua testa.

Montar o time exige muito tempo, levo quase o dia todo para escolher a dedo quem deve estar comigo. Muito porque não temos tempo a perder, mas também porque me dou ao luxo de escolher os melhores, um por um. Quero estar ao lado dos melhores e, se possível, mais próximos a mim.
Percorremos um longo caminho até esse momento, e mesmo com McCarter a sete palmos e Sommers atrás das barras de ferro, não vou me permitir errar a ponto de estragar as coisas por falta de preparo. Não é só pelo trabalho ou pelo reconhecimento, mas por saber no fundo do âmago que fiz o certo, o melhor.
─ Quero participar – Natasha diz, parada em silencio ao meu lado, suas costas eretas e postura firme. Ela parecer notar que não coloquei seu nome na lista. É frustrante cortar suas asas antes mesmo que ela tente voar, mas não posso arriscar...
Reconheço seu talento e profissionalismo, mas ela está há muito pouco tempo entre nós. Balanço a cabeça em negação e abro a boca para falar, mas ela ergue a mão e me silencia antes mesmo que eu comece meu discurso sobre mantê-la em segurança.
─ Estou pronta, Franklin. Eu sei disso, você sabe disso... me viu atirar nos treinos. – Volto meus pensamentos ao exato momento em que estivemos tão próximos que poderia jurar que seu coração começou a bater em sincronia com o meu. E também me lembro, no momento anterior, como estava hesitante até que eu me aproximasse.
─ O que eu vi foram suas mãos tremendo só de segurar o fuzil. – Seus olhos escurecem de forma repentina, e se pudesse, ela me queimaria em um monte de nada.
─ Ouvi Jetson te dizer pra levar um de nós... russos, eu quero dizer. A última interceptação foi mérito nosso, em St. Petersburgo. ─ Jetson? Desde quando ela chama Richards pelo primeiro nome? Bem, não me interessa. Faço que não com a cabeça de novo, não preciso lidar com isso agora. Nem quero.
Até mesmo porque como posso explicar para a mulher à minha frente que somente a ideia de vê-la machucada me dá vontade de morrer? Só de considerar a possibilidade. Não posso explicar imaginar que assim que ela estiver cara a cara com o perigo, possa hesitar e suas mãos voltem a tremer na hora de apertar o gatilho. Esse é um risco muito grande, que mesmo sendo egoísta, não estou disposto a correr.
─ Yond pode entrar na lista se achar que...
─ Yond está saindo do prédio com o capitão Richards para lidar com outra situação agora Franklin – ela rebate. Encaro meus sapatos sob a mesa, controlando a respiração porque não quero ser explosivo com ela. Quando um soldado se voluntaria para ir à luta, seu capitão deve se sentir orgulhoso e não tão nervosinho a ponto de socar a mesa.
─ Natasha, eu...
─ Franklin, olhe para mim – ela demanda, e o faço sem pestanejar. Sua mão é firme, mas delicada, quando a apoia em meu ombro. Minha pele queima como se tivesse recebido um tiro, quase dói. Dói ainda mais encarar seus olhos e saber que sou um grande inútil quando se diz respeito sobre suas vontades. Não sou capaz de negar nada para essa mulher.
Natasha inclina seu corpo em minha direção, ela fica muito perto e seu rosto para na altura exata do meu. Seus olhos são ferozes e seu sorriso é letal, quase como encarar uma pantera de frente, o animal pronto para atacar sua vítima sem piedade. Por alguns segundos, tenho a idiota ilusão de que ela vá me beijar, e não consigo me mover, acho mesmo que talvez não esteja respirando.
─ Confie em mim, por favor, sei que posso fazer isso – ela murmura baixo, e sua boca parece muito macia, tão convidativa. As palavras que flutuam por sua garganta são como um encanto, estou absolutamente enfeitiçado. Que merda!
─ Tu-tudo bem, mas... esteja preparada, estamos caminhando por uma trilha que imagino que ainda não tenha traçado. – Seu movimento de cabeça é quase imperceptível, mas seus olhos não acompanham a sutileza quando ela os afasta para longe dos meus. Não sei por quanto tempo ficamos parados assim, eu a encarando enquanto ela foge para o nada. Até que Eddy bate com força na porta e entra em seguida.
─ Ieger está movendo os veículos agora, capitão, devemos sair em cinco... ─ ele diz, seu rosto de repente vermelho, encabulado por ter entrado no meio de um momento cheio de... tensão. Me levanto em um salto, mesmo porque não consigo ficar nem mais um minuto ao lado dela sem acabar com a distância entre nós e fazer o que já devia ter feito há um bom tempo. Principalmente quando a oportunidade tinha estado mais clara, e também não estávamos prontos para partir sem ter certeza de como voltaremos, ou se sequer voltaremos.

Encaro meu rosto no reflexo da janela do Knight XV enquanto espero os soldados se acomodarem no veículo. Solicitei três SUV de porte militar para essa missão. Cada uma com seis pessoas dentro. Conto e repito seus nomes inúmeras vezes, pois é minha missão trazê-los de volta, inteiros.
O uniforme preto com o colete à prova de balas realmente os faz parecer como malditos soldados indo para a guerra. De repente, não se parecem mais apenas com os homens que conheço há tantos anos. Homens que acabaram de casar, presenciar o nascimento do primeiro filho, outros ainda esperam seus filhos virem ao mundo.
E bem na frente do carro está ela. Seu corpo parece duas vezes o tamanho real dentro do traje protetor. Seu rosto é poderoso, confiante a ponto de contrariar as minhas maiores inseguranças. Ela parece pronta e nada mais. Natasha me dá uma última piscadela orgulhosa e entra no veículo. Então não há mais volta, estamos todos a caminho de, mais uma vez, cruzar nossos destinos com o maldito Trey Sommers e até mesmo o diabo.
Ieger dirige muito rápido, como sempre. No fundo, estou torcendo para que vá um pouco mais devagar, ainda que saiba que não é possível controlar o tempo. Se ela não estivesse aqui, talvez a sensação fosse outra. Seus olhos estão voltados diretamente para os meus, e não piscamos, como se estivéssemos, da mesma maneira, marcando o momento. Como se houvesse muito a ser dito, porém sem tempo para isso agora. E de novo, aí está o tempo.
Os carros param há duas quadras de distância da entrada do galpão. Pesco com o canto dos olhos a cabeça de alguns cidadãos para fora de suas janelas, outros correm para a porta aberta mais próxima, afinal de contas não é todo o dia que uma equipe do FBI esquadrinha o local de sua moradia.
Caminhamos em fila, tentando manter quanta discrição for possível. Apesar disso, é certeza que se houvesse na redondeza algum olheiro do cartel, nossa presença já teria sido detectada e interceptada. Busco ao meu redor por câmeras escondidas, podemos estar sendo vigiados agora, o que é um pouco aterrorizante. E ainda assim, não há tempo para voltar atrás.
Comando o grupo com toda a calma que posso sustentar, e divido o time em duas equipes. A primeira deverá rodear o galpão, flanqueando qualquer possibilidade de fuga. A ordem de Jetson era trazer os bandidos conosco, vivos de preferência.
O segundo grupo deve invadir logo pela porta da frente, mesmo que sejamos esperados ou não, toda a preparação nas salas de treino é para esses exatos momentos, desde o dia em que colocamos os grandes chefes atrás das grades estamos aguardando por um punhado de provas a mais.
Sempre soube que eles não deixariam as atividades ilegais de lado, mesmo cercados por barras de ferro. É bem provavelmente por isso que não descansamos um minuto sequer, mesmo depois do momento de glória que foi pegar McCarter fugindo com o rabo entre as pernas. Tudo que fizemos nos trouxe a esse momento, pouco a pouco, laboratório a laboratório, contrabando a contrabando, tudo para que queimássemos o próprio inferno.
A equipe de inteligência liderada por Yond Zayev nos levou a crer que as últimas movimentações de Trey tinham alguma ligação com a Bratva, a máfia russa. Por isso tanta notoriedade foi dada ao caso e, faz da minha equipe, de extrema importância.
Aceno com o polegar para todos e espero que acenem de volta. Meus olhos correm uma última vez para a mulher no meio de tantos homens, o cabelo preso em um rabo de cavalo apertado na cabeça, seus olhos firmes e a respiração controlada. Ela deve estar mesmo preparada para isso, não posso ser hipócrita e dizer que não acredito que ela poderia chutar a bunda de qualquer um desses caras aqui. Inclusive eu.
Ao meu comando, os homens erguem sua artilharia pesada em mãos e partem para a grande porta de metal, chutando e empurrando o que está em sua frente ao dominar a entrada do galpão. Segurando meu próprio fuzil com os dedos duros, eu caminho a passos largos atrás do time, ladeando seus pés com os meus próprios. Meu coração dispara um pouco mais a cada metro que avanço, meu cérebro começa a liberar a adrenalina que preciso para me manter ligado.
─ Todo mundo pro chão, todo mundo pro chão – grito para quem quer que sejam aquelas pessoas ali.
Me desconcentro por um segundo para analisar o meu arredor, estantes, mesas e caixas, que devem estar cheias até a tampa das drogas que o oficial Roberts descobriu. Sempre foi o que suspeitamos, desde o princípio das investigações, só não tínhamos chegado à fonte antes.
Por um segundo, quase acredito que os homens vão apenas baixar suas armas e deixar tudo cair no chão, que irão se render. Mas é apenas um engano, é claro que não sujeitariam sem um pouco de briga antes.
─ Cuidado! – grito pra um dos meus, rápido e alto o suficiente para que ele se mova, antes do primeiro tiro atingir a porta em nossas costas. Já estávamos preparados e cientes de que luta aconteceria, mas seria um deleite para a alma que não precisássemos matar ninguém hoje. Só que a verdade é que, quando você trabalha para a corporação, você nunca sabe quando o próximo tiro vai matar o corpo de uma alma já perdida.
Lidero o grupo até onde é possível, mas no fim das contas, é cada um por si quando o tiro para zumbindo pelos seus ouvidos. Acerto um dos comparsas de Sommers no quadril, o outro tiro explode diretamente em seu peito, o sangue dos bandidos começa a rapidamente se empoçar por debaixo dos seus corpos pesados. São tantas pessoas urrando e gritando no local que minha mente quase se perde.
Gostaria que Trey estivesse aqui, só para ver, um por um, seus homens caírem chamando pela mamãe. E no fim do dia enfiar uma única bala em seu crânio e deixar que o capeta cuidasse do resto.
─ FRANK, CAPITÃO! PORRA! – Um dos nossos está ao chão, sua perna sangrando pra caralho e ele está tão branco que acho que vai desmaiar. Natasha está ao seu lado, o protegendo, sua arma presa em suas mãos firmemente, enquanto atira nos homens que ainda estão de pé.
Para meu alivio, a maioria dos inimigos já foi abatido, mas quando um único dos meus homens está sangrando, não consigo deixar de pensar e sentir no quanto isso é minha culpa.
─ ME CUBRA, VOU CHEGAR ATÉ VOCÊS! – eu grito em resposta. Ela se concentra a fazer o que digo e atira na direção dos homens que nos atacam, mesmo com o colega urrando de dor ao seu lado. Seu pente acaba no mesmo momento em que os alcanço. Deixo minha arma de lado e me agacho para analisar a gravidade do ferimento.
─ Parece bem feio agora, mas vai ficar tudo bem... ─ digo para ele, amenizando seu pavor. Ele tenta um aceno com a cabeça, mas o movimento é tão fraco que espero pelo segundo em que irá cair desacordado.
Puxo a cinta presa em meu quadril, a soltando facilmente da calça. Uso o acessório para fazer um torniquete na altura da coxa do agente. Trabalho o mais rápido que consigo, mas é realmente difícil fazer suas mãos funcionarem para isso quando elas parecem mais preparadas para tirar a vida de alguém ao invés de salvá-las.
─ RÁPIDO, FRANK! – Sua voz é alta aos berros, mas ao mesmo tempo tão doce e melódica, que rezo uma prece baixa e rápida, prometendo meu melhor à Deus, apenas para que possa ouvi-la um pouco mais, para o resto da eternidade se possível.
Não consigo enxergar quantos homens ainda estão de pé do outro lado do galpão, também não consigo confirmar de onde os estopins dos tiros vem, mas são muitos ao mesmo tempo, todos em nossa direção. Viro minha cabeça e meus lábios se abrem para soltar um urro de ódio e desespero assim que ouço seu corpo cair com um baque no chão ao meu lado.
Ao ver que estávamos cercados, e ainda estava concentrado em resolver a situação da perna do seu colega, ela não pensou duas vezes ao ver a arma apontada em minha direção e se jogou em minha frente, para que o tiro não acertasse em mim. E ela conseguiu, rápido assim, transformar o pior pesadelo entre os meus mais recentes, em realidade.

Seguro o peso da cabeça entre as mãos, querendo afundar no chão de concreto. Espero não entrar em um estado de catarse rápido demais, mas é difícil respirar. Acho que se pudesse teria quebrado algumas coisas até chegar aqui, poderia explodir outras. Mas sou o mais paciente que consigo, como um bom cachorrinho obediente... odeio estar aqui, esperando... impotente.
─ Avisei para ela que não estava pronta... – resmungo para mim mesmo em voz baixa, devo parecer um lunático falando sozinho coisas sem sentido.
─ Você sabe que está tudo bem, não sabe? Foi só um tiro de raspão... – Jetson responde ao mesmo tempo em que se senta na cadeira ao meu lado. Ele me alcança um copo de isopor fumegando com o café recém passado da máquina. Eu afasto o liquido com um aceno de mão. Ele bufa, impaciente.
─ Não interessa, Richards... ─ eu respondo. Uso poucas palavras, somente o necessário, porque não sei se consigo responde-lo sem soar muito grosseiro. Tem coisa demais acontecendo para esse cérebro fodido proceder. ─ Ela pulou na minha frente, porra!
─ É o que qualquer outro parceiro faria... ─ Jet balança os ombros com indiferença, mas ele não entende. Não consegue compreender o que ela significa para mim, não gosta de alguém dessa forma. Ele não poderia entender como é ficar apavorado com a ideia de alguém se machucar assim, ainda mais por você!
Não me dou mais ao trabalho de responde-lo, sinto a ansiedade consumir meu peito e me corroer de dentro para fora. Meu cérebro parece um monte de lama esparramada. Para meu alivio, o médico aparece no segundo seguinte, eu pulo de supetão e quase derrubo o copo de café que Jetson trouxe para mim, na esperança de me acalmar com uma bebida quente.
─ A detetive Ivanski está bem, um dos superiores pode visita-la já que não há família presente – ele afirma, com um pequeno sorriso nos lábios gentis. ─ Peço apena que tentem não perturbar demais a paciente com ordens, ela teve uma leve concussão ao cair. ─ Sinto meu corpo estremecer dos pés a cabeça, um misto de raiva e preocupação parece escoar por minhas veias. Poderia ter sido tão pior...

A porta do seu quarto parece pesar mais do que uma estátua de chumbo, ou talvez sejam os meus braços, sem força o suficiente para tentar abri-la com o mesmo nível de raiva que sinto.
Natasha está sentada em uma posição inclinada para trás, suas costas estão apoiadas no travesseiro enquanto seus olhos anuviados parecem tentar prestar atenção na televisão. Ela aponta para o aparelho enquanto abre um sorriso quase infantil, daqueles que a criança dá antes de aprontar alguma coisa.
O canal jornalístico local noticia a prisão de diversos traficantes ligados ao grupo do Trey Sommers, relata também a morte de diversos dos facínoras e ainda o baleamento de dois policiais, mas sem dar mais informações sobre esses. Eles parecem quase endeusar o ataque sanguinolento do nosso grupo, como se o número de mortes fosse muito mais interessante do que repassar mensagens de esperança, principalmente às famílias que sofreram na mão desses bandidos por tantos anos.
─ Eu sempre disse que um dia estaria na televisão – ela ri. Quero respirar aliviado, ao mesmo tempo em que me seguro para não gritar com ela. Quero que saiba que quase me matou do coração, que me fez enxergar vermelho... mas o curativo em seu pescoço é o que chama minha atenção primeiro, e não consigo dizer nada. ─ Foi só um machucadinho... – Sua voz sai bem baixinha, e ela tampa o ferimento com sua mão, como se tivesse notado o que eu percebi, como se pudesse me fazer esquecer o que aconteceu.
─ Te disse que não estava preparada para ir com o time – eu resmungo de volta. Minha voz também sai baixa, rouca e profunda, mas talvez seja melhor soar assim do que tirar tudo que quero do meu peito aos berros.
─ Franklin, eu derrubei pelo menos dez homens – ela diz, com firmeza. E, contrariando a raiva que sinto, preciso concordar com isso. Se ela não estivesse com o time, talvez o detetive alguns quartos ao lado, estivesse morto agora. ─ Eu é quem te chamei para dar uma olhada na perna do Anthon... – Eu nem mesmo estava me lembrando do nome do soldado, o que é bem cretino da minha parte, só me preocupo com ela.
─ Não devia ter se jogado na minha frente, não mesmo. ─ Me aproximo da sua cama e indico o lugar mais vazio do colchão para me sentar. Ela permite com um aceno de cabeça, então me ajeito ao seu lado, tentando não ocupar muito espaço.
─ Mas eu fiz, nada demais aconteceu, e sei que fiz o certo – ela rebate. Meu peito é tomado por um formigamento desconfortável. Só de pensar mais uma vez que algo poderia ter acontecido... só a ideia me faz querer vomitar.
─ Eu não sei o que faria... – Começo a dizer, mas ela segura minha mão com delicadeza e não sei o que falar, apenas acaricio as costas macias da sua mão de volta.
─ Demos outro passo mais próximo para acabar com o Sommers hoje,Frank, e para avançar precisamos pagar um preço, um pouco de sangue, mas não foi nada demais... – Natasha solta uma risada baixa, que não consigo corresponder, porque nada parece funcionar aqui dentro se ela não estiver por perto. Viva, a salvo, ao meu lado. Ela parece pensar por um minuto, encara seu colo em silencio e seus olhos parecem marejar um pouco. ─ Foi uma vitória, eu sei que foi... Me desculpe Frank, eu não queria...
Avanço meu corpo sobre o dela e encosto meus lábios nos seus. É rápido e inesperado, mas não teria outro tempo para isso. Esperei tempo demais fechado em minhas quatro paredes vazias. Fico parado em sua frente com a minha boca na sua. Espero que ela me permita entrar em sua luz, da mesma maneira que esperei até agora no escuro, por tanto tempo, para encontrar alguém assim, que me fizesse perder o ar por apenas existir.
Natasha não se move, meu coração se aperta um pouco com o sentimento de rejeição. A vergonha ácida começa a trabalhar em meu estomago vazio, me sinto um grande estupido. Me preparo para me afastar e correr, de volta pro quartinho vazio no fundo de mim, como sempre faço, mas então sua mão gira contra a minha e aperta seus dedos em minha pele que ferve com seu toque. Sua outra mão sobre pelo meu braço até alcançar meu cabelo, e puxa minha cabeça para grudar nossas bocas um pouco mais.
Feixes de luz explodem em frente aos meus olhos, minha cabeça parece anuviada, não sei se é por não respirar direito ou talvez por demorar a entender que ela está sim me beijando de volta, sem hesitar.
De repente, preciso do seu beijo como um alimento para curar todas as minhas feridas, que me rasgaram por tanto tempo, como se apenas seus lábios pudessem ter força o suficiente para derrubar as paredes de concreto que o tempo construiu, decepção após decepção, ao redor do meu coração.
Sua boca é uma melodia doce, cantada por anjos divinos. Preciso conter o desejo de consumi-la por inteiro, de fazê-la minha como desejei desde o primeiro momento em que a vi. Minha paciência quase se esvai quando sua língua se encontra com a minha em um toque tímido, e não me permito segurar o grunhido arrastado, eu apenas a aceito.
Puxo seu corpo ainda mais próximo, não aceito que haja distância entre nós agora, aninho seu tronco contra o meu como se, talvez, ao menos por um momento, fosse capaz de protege-la de qualquer coisa ruim. Ela se encaixa em mim, como se também me buscasse como sua própria moradia.
O tempo é uma coisa bem engraçada.
E mesmo que nem sempre possa controla-lo, que não saiba o tempo de todas as coisas, aparentemente há o tempo certo para cada uma das coisas, seja conhecer os seus piores pesadelos, assistir algum esporte com seus melhores amigos, fazer o seu trabalho da melhor maneira, mesmo que ele seja um pouco fodido. Mesmo que ele signifique ter a garota dos seus pulando em frente à uma bala por você, sem motivo, só por fazer.
Às vezes, o tempo pode ser um cretino sem emoções, e não parecer fazer qualquer sentido, mas ali, nos lábios de Natasha Ivanski, acho que talvez tenha encontrado o meu timing.


NATASHA IVANSKI


É curioso como algumas coisas somente acontecem, sem qualquer motivo aparente ou sem uma explicação razoável. Acontecem porque tem que acontecer e então, as vezes essas coisas te mudam para sempre.

Em um momento eu estava ali, segurando o fuzil pesado nas mãos, tentando me manter mais firme do que em qualquer outro momento em que precisei usar uma arma de fogo. No momento seguinte, estávamos cercados de homens muito ruins, muito piores que tantos outros que conheci. Todos prontos para nos matarem sem vacilar.
Mais um segundo e Anthon sangrava muito enquanto caído no chão, sua perna parecia totalmente destruída por um estopim direto em sua patela. Sentindo meus pés colarem ao chão, precisei pedir ajuda à Franklin, que se expôs sem nem ao menos hesitar. Ele se ajoelhou ao seu lado, suas costas vulneráveis. Seus olhos me diziam exatamente o que eu sabia, ele estava desesperado e com medo, sua atitude admirável, porém ignorante, só me mostrava isso. Ele não se daria ao luxo de perder nenhum homem.
No fim do dia, esse é seu trabalho, levar todos vivos para casa. Por um instante, Frank parece deixar de lado o ódio que sempre correu por suas veias, que sempre esteve estampada em seus comentários ácidos sobre Trey Sommers. Tudo em que se concentrou foi em nos guardar sob suas asas, como se um único homem solitário fosse capaz de salvar a humanidade.
E foi por esse único momento que meu coração perdeu uma de suas batidas quando, ao apontar a arma para proteger seu flanco, percebi com o olhar afiado um bastardo segurando uma Ruger de tiro único apontada diretamente para a cabeça de Franklin, que morreria por sua equipe sem qualquer oportunidade de se defender.
Em filmes, sempre vemos a famosa cena em que um roteiro se forma na mente do protagonista no exato momento onde algo está prestes a acontecer. O mesmo acontece comigo, mas imaginar a chance de que não houvesse um final feliz para Frank, ou que nem mesmo houvesse um final... é impensável.
Em um pulo curto, mas o suficiente para cobrir ao menos metade das suas costas, eu me joguei. Eu só precisava tirar sua cabeça da mira maldita do capanga desgraçado. Eu só precisava dar um tempo a mais para Frank, uma chance a mais.
E algumas coisas somente acontecem, todas elas com suas consequências, sejam essas boas ou ruins. E é bem provável que eu tenha um anjo muito bom guardando meus ombros, um que talvez tenha enxaqueca todas as noites logo depois que deito minha cabeça no travesseiro à noite. E dessa vez não foi diferente, pois o tiro destinado à Franklin pegou meu pescoço, de raspão, mas o suficiente para deixar mais uma cicatriz. Ao menos consegui tirar o capitão do caminho, era o que importava.
Não houve tempo de absorver qualquer dor, meu corpo já estava desacordado no chão antes que pudesse gritar. Quando meus olhos se abriram novamente, já estava deitada no quarto branco de hospital. E preciso engolir minhas lembranças, na expectativa de manter a sanidade e não botar, mais uma vez, minhas tripas para fora.

Assim que sua cabeça se enfia para dentro da porta, e a bota pesada de Franklin bate no piso de concreto frio, é quase como se conseguisse ouvir sua bonita voz se transformar em gritos, me dizendo que fui estúpida demais, que poderia ter morrido e tudo o mais. E bem, ele está certo.
Eu não poderia explicar, não há maneira de fazê-lo entender agora que não posso existir em um mundo do qual ele não faça parte. Não poderia explicar algo que nem mesmo faz sentido para mim, mas é o que sinto. Uma vida sem sua presença não é sequer uma vida.
Para minha surpresa, Frank somente me adverte, com palavras duras e fria, é claro, mas repete que me avisou, que não deveria ter seguido com o time para a ação. Seu olhar não se aproxima do meu por sequer um segundo, e sua distância é muito pior do que gritos, acho que se falasse comigo aos berros seria menos dolorido. Sua falta de confiança é quase insuportável, se ele não acredita em minha capacidade, acho que posso me tornar poeira agora mesmo sob seu olhar.
Se Frank sequer soubesse tudo que guardo em minha mente, se soubesse da história por trás da peça, talvez entendesse porque pular em sua frente não foi apenas instinto, mas porque eu faria qualquer coisa para protegê-lo, e se pudesse voltar no tempo, voltaria só para fazer tudo mais uma vez. E faria quantas vezes necessárias, só para que soubesse no fim do dia, Franklin ainda teria um futuro para construir.
Porém, apenas lhe peço desculpas, é o que posso fazer agora. Não porque eu sinta qualquer tipo de arrependimento ou remorso, mas porque preciso ter a certeza de que ele não me dará suas costas, não preciso de um novo buraco em meu peito. Acho que não sou capaz de suportar outra ferida, pelo menos, não na alma.
Mas é então que acontece.
Sua boca está grudada na minha, sem aviso ou sem um pedido de permissão, ele suga o meu ar como se eu já o tivesse roubado de seus pulmões primeiro. Agora só está o tomando de volta, porque pertence apenas a ele.
Demoro para entender isso, demoro para entender sua atitude e o porquê de estar fazendo isso, não consigo reagir rápido a algo tão novo e surpreendente, mas quando recupero o controle da minha própria mente, minhas mãos estão em seus cabelos.
Sinto na ponta dos dedos como se tocasse o céu azul em uma manhã de sol, e Franklin se torna todas as cores enquanto derretemos sob a maior estrela de todas. Minha cabeça gira no mesmo compasso em que meu coração pula, meu corpo reage como se pudesse correr a uma maratona. Sinto como se gritasse internamente, por um lado querendo um fugir, correr de forma instintiva para longe dessa surpresa tão deliciosa, mas berro de volta, do outro lado, para que me permita sentir, só uma bendita vez.
Conforme seus lábios se encaixam aos meus e dançam em sincronia, em um ritmo lento e prazeroso, deixo de pensar. Não penso na Vory v Zakone, não penso na Semyonova, não penso em tiros, gritos ou mentiras. O sangue deixa meus olhos por um momento. Não sou mais a filha da máfia, não há uma história sofrida para ser contada por uma alma ferida. Não sou , nunca mais serei.
Com sua boca doce contra a minha, finalmente, me encontro.

Demora para que consiga afastar minhas mãos de Franklin, e sei que ele hesita também ao se afastar. A sensação de vazio quando se vai é esmagadora, quando sua presença não pesa contra a minha é sufocante. É quase como se quisesse gritar, para ficar, para não me deixar. E é recíproco, vejo em seus olhos enquanto se levanta para atender uma ligação. Com os olhos marejados, Frank se vai, e não trocamos uma última palavra desde que nossos lábios se encontraram pela primeira vez, como se conhecessem desde sempre. Com um beijo na testa, sou um ponto colorido dentro do quarto branco demais, um milhão de borboletas revirando meu estomago.
Depois de um momento cheio de realizações quase surreais, me lembro de ligar para Nikita. Tenho certeza que Yond já o deixou a par de tudo, já repassou as informações sobre o ataque e o resultado inconsequente da minha reação. Tenho certeza que estará furioso, e é por isso que deixo o telefone longe do ouvido quando ouço o clique ao atender.
─ MENINA! – Sua voz é tão alta quando grita que quase fico contato.
─ Oi... – sussurro de volta. Meu tom de voz é baixo, porque só agora percebo que não faço nem ideia de como começar a me explicar para ele. Não tenho como lhe contar que, em apenas uma fração de segundos poderia ter acabado com tudo, todos os nossos planos. Não quando ele desistiu de tanto por mim, o quanto arriscou pela minha família. ─ Me desc...
─ Ah, menina, graças a Deus está viva... – Sua voz soa embargada, quase como se pudesse ter chorado. Mas não é possível, não para Nikita, certo? Ele é mais forte do que o mundo, então só posso concluir que agora mesmo está pensando em todo o planejamento, em nossa vingança. ─ Gostaria de poder visita-la, mas você sabe...
─ Não, está tudo bem. Estou bem – minto. Minto porque a verdade é que estou mais do que bem, que sinto uma explosão de coisas em meu peito e nem mesmo posso explicar isso para ele. Como dizer que estou flutuando e que talvez não saiba nem mesmo o que espero para o meu futuro. O nosso futuro. ─ Sei que vai levantar muitas suspeitas, além do mais, amanhã estarei em casa. Não se preocupe, Nikita.
─ Graças a Deus, ... – ele diz novamente, fazendo meu peito se contrair. Explico em partes o que aconteceu, porque não posso, e nem sinto vontade, de contar que acabei de trocar uma boa quantidade de beijos com Franklin, um policial americano.
Sinto a fisgada da sensação ruim que é não detalhar tudo para Nikita, em partes é como se estivesse mentindo para meu próprio pai.

Acordo já me sentindo mais agitada que o normal.
Os médicos assinam o documento de liberação, me sinto aliviada por não ficar mais nenhum segundo dentro do quarto sóbrio demais. Apesar de não ter tido nenhum pesadelo durante a noite, quanto menos precisar me aproximar dos fantasmas do meu passado, melhor.
O médico que me dispensa, informa que há um carro da corporação me aguardando na saída, e as mesmas borboletas que pareciam ter enfim se aquietado, começam a voar novamente. Troco a roupa hospitalar para o uniforme azul escuro, e apesar da pressa que sinto correr junto com meu sangue, dou um pouco mais de atenção a minha aparência, desde os cabelos até os dentes com o kit especial que o hospital disponibilizou na noite anterior.
A passos largos alcanço o hall de entrada do hospital, e meu sorriso murcha no mesmo momento em que vejo as costas de Yond, que me aguarda em sua posição de soldado, dura e inquebrável.
─ Olá, Zayev – digo, ao mesmo tempo em que toco seu ombro com delicadeza. Não quero assustá-lo com a minha presença sorrateira, mas ele apenas se vira com calma e sorri de forma amistosa. Não consigo disfarçar o quão decepcionada estou com sua presença, mas ou ele não nota, ou então finge muito bem.
─ Oi, é bom te ver viva e inteira. – Apesar do seu sorriso afável, sua voz em contrapartida é quase mecânica. Sei que, na realidade, sua grande preocupação é com a minha fatia enorme do bolo que é o plano de vingança contra os Koslov e sua trupe barbárie. E é claro, a fatia dele também.
A real é que meu sangue derramado só terá importância se for por cima do caixão do Mikhail.

Muitas pessoas parecem querer me cumprimentar assim que entramos no prédio da corporação. Muitos me saludam com tapinhas polidos nos ombros, outros tentam fazer discursos motivadores. A verdade é que qualquer um dos detetives aqui teria feito o mesmo. Qualquer um deles se jogaria na frente do seu capitão para protege-lo, mesmo que nenhum deles tenha coragem para bater de frente com Franklin no dia a dia, só botem o rabo nos meios das pernas e saiam correndo, nenhum deles o deixaria perecer na posição em que estava.
O que me faz pensar por um momento, e se fosse o contrário, se Franklin tivesse se jogado na frente dos seus homens, haveria o mesmo valor, ou ele só teria feito o que é treinado para fazer enquanto líder do grupo. E se fosse uma mulher, eles teriam se jogado em suas costas para tomar um tiro por ela? Eles fariam por mim?
General Nixon surge de um dos aquários em que parecia discutir com algum de seus oficiais. Um grande sorriso toma conta dos seus lábios rachados ao andar em minha direção, e com um movimento orgulhoso, ele segura em meu ombro e o aperta, sem muita força.
─ Devo parabeniza-la oficialmente, Ivanski. O capitão Morris fez questão de nos detalhar a ação de ontem, ele rasgou elogios sobre sua genialidade – ele diz, e não consigo esconder o sorriso satisfeito que toma conta do meu rosto junto com a pontada de orgulho que bate em meu peito.
─ Só fiz meu trabalho, senhor, o que qualquer um aqui teria feito. – Nixon concorda com um meneio de cabeça, seus cabelos levemente compridos balançam a ponto de cobrir sua testa marcada por linhas de expressão. Não consigo sequer imaginar o quanto custa chegar em sua posição, o quanto suas vantagens vêm com responsabilidades e compromissos, me estressa só de pensar.
─ Absolutamente. Mas nem todos sairiam ilesos... – ele afirma, com uma piscadela. O general me encaminha com as mãos em meus ombros até a porta da minha sala, a abrindo em seguida apenas para encontrar um escritório escuro e vazio.
─ Obrigada, senhor. É uma honra servir à corporação – digo, sem pestanejar, e o seu sorriso se alarga, o que só me faz ficar mais desconfortável com a meia mentira. É uma meia mentira, afinal de contas, porque não posso negar que a sensação agora é quase gloriosa. ─ O senhor viu o capitão Morris? Quero... agradecê-lo por seu apoio, e é claro, também parabeniza-lo pelo sucesso da operação, não tive a oportunidade antes.
─ Franklin se voluntariou para ajudar uma equipe secundária hoje, deve ser a adrenalina... – ele ri baixo, fungando por seu nariz pontudo, mas parece pensar por um segundo logo depois. ─ Se correr até o pátio, pode quem sabe pegá-lo antes de escapar... – A maneira como ele fala me deixa um tanto desconfortável, mas não hesito em seguir o que ele me instrui a fazer. Aperto sua mão rapidamente em agradecimento, ele me parabeniza uma última vez pelo ato de sacrifício e me esquivo de suas palavras, apertando os botões do elevador mais de uma vez, na esperança que o movimento faça o equipamento acelerar.
Quando ele demora a alcançar nosso andar, considero correr escadas abaixo, mas meu corpo ainda está bastante dolorido por ter me jogando contra o chão duro para me fazer de escudo contra Franklin. Por hoje, sou só um rato de escritório.

O general estava certo, alcanço a equipe terminando de entrar nos veículos assim que chego ao pátio do estacionamento. Meu coração nervoso parece disparar ainda mais com ansiedade quando vejo os cabelos de Frank balançarem contra o vento.
Me contenho para não gritar seu nome, para que me veja ali, mas antes que o faça sei que não é preciso. É como se Franklin sentisse minha presença tanto quanto sinto a sua, tão palpável, e ao mesmo tão distante como sempre. Ele vira seu rosto para o meu, mas não encontro o bonito sorriso que faz meu passado parecer quase suportável sobre os ombros. Apenas vazio. Ele não acena, não sussurra nada para que apenas eu consiga enxergar, não grita nada em retorno. É só um tanto de nada.
Antes que possa reagir, ele entra no blindado e se vai com a sua equipe. Meu coração parece despedaçar em milhões de átomos, e preciso me segurar contra meu próprio corpo para não cair ali mesmo de joelhos. O que foi isso?
Sinto algo escorrer por minhas veias, como um veneno ainda desconhecido, meu sangue parece fervilhar com a sensação desprezível. Se não estivesse tão espantada, poderia chorar.
É claro, o que diabos eu estava esperando, balões e flores? Franklin só me beijou, em um momento de raiva, e beijos não significam nenhum compromisso. Nesse caso deve ter sido a raiva, misturado a algum tipo de pena, uma maneira de agradecer. Algo tipo “ei, eu sei que quase morreu por mim, toma aqui um beijo pra ficarmos quites”, ou qualquer porcaria do gênero.
Sinto tanta raiva que poderia ficar aqui mesmo, montando um acampamento até que volte, apenas para que possa gritar com ele, somente para dizer que não preciso da sua pena, que não preciso da sua generosidade e que me agradeça, que só fiz a porcaria do meu trabalho e que qualquer outro faria o mesmo pelo “ó grande e poderoso capitão Franklin, a besta, Morris”. Um grande besta, isso é.
Sinto um rosnado preencher meus pulmões, e odeio a sensação, quero gritar com Morris e enchê-lo de pancada, fora do ringue, não de forma amistosa. Quero fazê-lo sangrar por mim como fiz por ele, ou melhor, por minha causa... ou ainda mais longe, pela porra da minha mão.
Fecho meus punhos com firmeza, meus dedos parecem tremer com a vontade de socar qualquer coisa, ou qualquer um que apareça em minha frente. Respiro profundamente, e com o canto dos olhos vejo uma silhueta para ao meu lado. Não preciso me esforçar muito para descobrir quem é. Ninguém mais, entre todos os americanos que conheci até então, poderiam ser tão inconvenientes.
O capitão Jetson Richards está parado ali como uma estátua, me encarando com seus olhos de raposa curiosa, o sorriso largo que nunca sai dos seus lábios. Ele parece analisar minha expressão e se divertir com isso, quase como se pudesse ler meus pensamentos. Mas ele não faz a menor ideia do que estou sentindo agora.
─ Relaxa, estou aqui só para parabenizar a mais nova heroína do grupo... – ele zomba, e o sarcasmo em sua voz é quase tangível, quase posso ver um pouco de veneno escorrer por sua língua. ─ Bem-vinda ao clube, querida.
─ Sei que queria que fosse você, Richards, da próxima vez fique a vontade para acompanhar a equipe e saltar na frente do bundão – resmungo. As palavras saltam das minhas cordas vocais antes mesmo que eu possa tentar controla-las. Jetson arregala os olhos em surpresa, mas rapidamente os cerra em seguida, quase como em advertência. ─ Me desculpe, capitão. Só estou... decepcionada.
─ Com Franklin? – Sua pergunta faz meu rosto esquentar. Meu Deus, esse tempo todo, fui tão óbvia assim? Dou de ombros, tentando ser evasiva. Só que Jetson não é idiota, e ele conhece Frank mais do que eu jamais poderia conhecer. ─ Bem-vinda ao clube, querida. – Ele se repete, mas sem a acidez de antes. Sinto quase como se quisesse estar levantando minha moral.
─ Só queria agradecê-lo por estar lá ontem, no hospital, sabe. – Em partes, estou falando a verdade, mas é muito mais do que isso, gostaria de poder ter agradecido por ele ter me feito sentir algo depois de tanto tempo, ainda que não acreditasse mais que pudesse sentir qualquer coisa do tipo novamente. Mas agora não importa, o bundão está riscado da minha lista. Voltamos aos planos originais, e é apenas isso.
─ Bem, se vale de algo eu estava lá também... – ele argumenta, me deixando surpresa. Não fazia ideia da sua presença, mas é claro que faz sentido, até mesmo porque ele não deixaria o melhor amigo sozinho, não quando esse provavelmente estava morto de preocupação com o que os idiotas do seu time poderiam fazer, o que prejudicaria sua carreira brilhante. É claro, é isso, agindo como o grande babaca que é. ─ Pode me agradecer quando quiser agora... – Sua boca se transforma em um biquinho infantil, Jetson não pode estar pensando que vou...
─ Eu não te beijaria nem morta. – E novamente, as palavras estão jorrando da minha boca sem eu nem mesmo poder considerar o que é melhor falar e o que é mais interessante em guardar só para mim mesma.
─ Ouch! – Richards espalma a mão em seu peito, mas logo em seguida solta uma daquelas risadas meio constrangidas, que fazem as coisas se transformarem em algo mais leve bem rápido. De repente, já não estou tão irritada.
Ainda quero gritar com Franklin, é claro. Ainda estou preparando o discurso sobre não aceitar nenhuma das suas migalhas. Talvez eu diga isso segurando uma arma em sua direção, ou depois de acertar um soco na sua boca perfeita e macia. Ah, que merda!
Volto a caminhar de volta para dentro do prédio. Jetson em meu encalço, é óbvio. Porque ele simplesmente não sabe quando é a hora de parar. Paro de supetão e me viro em sua direção, o encarando na profundeza dos seus olhos escuros e brilhantes como o luar da meia noite. O capitão ergue suas mãos em rendição, mas o sorriso... aquele sorriso infernal ainda está ali. Como ele consegue?
─ Tudo bem, tudo bem, vou te deixar em paz em um minuto, só me diga... O que Frank fez para estar soltando fogo pelas orelhas dessa forma? – Quero socar sua bunda até sua sala e o trancá-lo lá para o resto da vida, apenas por sua pergunta tão descabida. Contudo, sua pergunta sem papas na língua me faz querer escandalizar toda a verdade. Principalmente porque eu sei o que isso significaria para Franklin, ele não o deixaria em paz pelo resto da sua vida. Estou tentada...
─ Não é nada, Jetson, eu te disse, só quero agradecê-lo... – É a única resposta coerente que tenho para lhe dar. Ao menos agora, quando sei que a cada duas palavras posso soar como se pudesse voar até o ringue e descontar toda a minha raiva no couro desgastado que tanto funciona como conforto.
─ Impossível. – Sua voz é tão desconfiada quando seu olhar, que parece analisar cada uma das minhas respirações. Tento me desviar do seu “poder” de ler mentes, e tudo que posso fazer é dar de ombros, fingindo indiferença. ─ Franklin sempre consegue dizer ou fazer alguma merda, mas essa raiva... é nova, não é algo que vi antes. ─ Encaro o horizonte sem dizer nada, fugindo de toda maneira que posso do seu olhar. ─ Até parece que ele te beijou... ─ Paro de respirar, e ele para de falar para me analisar, até aí tudo bem, se seus olhos não se arregalassem no segundo seguinte. ─ OH MERDA, ELE BEIJOU VOCÊ NÃO FOI? AH MERDA, FRANKIE.
Não sei nem como, nem o que responder, não sou capaz de controlar o caos invasivo que é Jetson em minha cabeça, também não posso mentir ou dizer que foi o oposto disso. Tentar convencê-lo de algo que foi tão real seria impossível. É uma pena que a lembrança dos lábios de Franklin no meu agora sejam tão decepcionantes.
─ Ah, logo o garoto vai beber aquele uísque – ele diz, mais para si mesmo, que nem me incomoda em perguntar sobre o que poderia estar falando. ─ Sou eu quem te deve um obrigado agora, querida...
─ Que mer... do que está falando, Jetson? – O cérebro de Richards contém um universo muito singular e pessoal. Não é um lugar que tenha interesse em explorar, sinceramente, ainda mais sabendo que posso compreender tudo que sai da sua boca, e ainda pior, posso quem sabe ser simpática com muito do que diz.
─ Por salvar meu irmão ─ ele diz, simplesmente, e sua mão tocando meu ombro antes de me dar as costas e sair andando é muito real e compreensível. Mas seu olhar antes de me deixar, seu sorriso antes tão convincente, são diferentes do que vi desse capitão até agora.
Desde que conheci Jetson, é a primeira vez que sinto falta da sua presença no segundo em que se vai. Talvez seja melhor ter o seu caos do que esse silêncio cruel. Mas estou sozinha, mais uma vez, e com a cabeça quase explodindo. Desisto de tentar entender qualquer coisa, por um minuto só gostaria de não fazer parte desse quebra cabeça sem fim.

Frank não retorna durante toda a manhã, e acabo me conformando de que não terei a oportunidade de dizê-lo tudo que tenho ensaiado até então, o que está entalado em minha garganta. Por enquanto não poderei dizer a ele o quanto o acho um fodido por sequer pensar que pode brincar com meus sentimentos dessa forma.
Talvez por um momento tivesse mesmo acreditado em tudo isso, desde o dia em fomos para Key West, que qualquer coisa pudesse acontecer. Que talvez fosse uma segunda chance para me permitir sentir aquilo que tanto me assusta sentir de novo. Que pudesse cicatrizar de uma vez por todas a ferida que continua a sangrar mesmo depois de tanto tempo, a ferida que Ivan abriu em meu peito.
Agora, tenho a certeza de que não, acho que aquele dia só bebi demais e me deixei agir como uma adolescente mais uma vez. Preciso voltar a focar meus pensamentos e encontrar logo as informações que preciso sobre a Semyonova, acabar com tudo por aqui e deixar tudo nos eixos, ir de volta para casa. Estou cansada de não me sentir em casa.

John Mason bate na janela do escritório, chamando a minha atenção pelo vidro, desviando meus pensamentos infelizes por um segundo. Aceno para que ele entre na sala, John não hesita e abre a porta num movimento um tanto afobado. Os cantos dos seus lábios chegam quase às orelhas com seu sorriso de golden retriever.
─ Fiquei sabendo da sua atitude honrada de ontem ─ ele diz. Rolo meus olhos e faço um aceno com a mão, na expectativa de desviar do assunto, mas ele continua: ─ Todo mundo está falando do movimento matrix para salvar o capitão.
─ Não foi nada demais, John, só fiz o que qualquer um faria. ─ Digo as palavras de forma automática, repetindo o discurso pela milésima vez no dia, sem querer me aprofundar na mesma conversa sem graça. ─ Podemos falar de qualquer outra coisa... está livre? – Pergunto, e tenho certeza que o vejo empertigar seus ombros, principalmente porque ele vem me convidando para sair já faz um tempo e sempre desvio do assunto. E para não dar falsas esperanças, completo logo em seguida: ─ Porque preciso de um parceiro de pesquisa hoje. ─ Aponto para o computador e ele parece murchar, mas mesmo assim não nega, apenas puxa uma cadeira para o meu lado.
─ Claro, tudo pela heroína da corporação ─ ele brinca, em tom divertido e bate seu cotovelo em meu braço. Queria acompanhar a brincadeira, mas só fico mais irritada.
Não é como quero ser vista agora, muito pelo contrário, adoraria voltar a ser invisível.

Passamos algumas horas analisando fotos e arquivos. John é bastante amigável, e faz questão de passar um bom tempo me explicando sobre todas as armas que foram recolhidas depois da missão ao galpão de drogas de Trey Sommers.
De forma paciente, ele me informa precisamente de tudo que preciso saber. Me deixa a par da intuição que o grupo tem entre a relação das ações de Sommers e McCarter com a Bratva. Em minha mente, anoto tudo que preciso repassar para Nikita, principalmente quando Mason diz o nome Fyodor, que segundo ele, um dos capangas questionados acabou deixando escapar durante a interrogação.
Fyodor Prokofiov é autoritet dos Koslov, é o braço direito de Mikhail e controla diversas das suas organizações e missões. Me lembro do seu nome ter saído da boca do papa algumas vezes desde que era criança, ele parecia o odiar profundamente.
Prokofiov não estava presente na noite do massacre, mas sublinho seu nome em minha frente, com a promessa de trata-lo de forma especial quando encontra-lo. Se Mikhail diz que o mundo é azul, então Fyodor acreditará piamente, mesmo que fosse vermelho, e isso para mim é o suficiente para querê-lo morto. Pelo que John me elucida, ele foi o responsável por alguma das negociações de contrabando para Sommers, drogas ou pessoas, tanto faz, mas esse conhecimento me faz salivar ainda mais só com a expectativa de acabar com sua existência pouco a pouco.
─ Ei, Nat, não precisa ficar tão nervosa, vamos pegar os bastardos... – ele diz, quebrando meu pensamento. De tempos em tempos, Mason encosta seu joelho no meu sob a mesa, e não consigo me decidir se o movimento me incomoda ou se é apenas um carinho amistoso.
─ Estou nervosa por eles, vão se borrar de medo só de olhar para nossa cara quando os prendermos. – Ele ri do que digo, mas estou falando tão sério quanto um juiz sentenciando um réu culpado. Talvez ele esteja apenas tentando ser complacente e divertido, então me esforço para rir com ele.
E é no exato momento em que me permito um pouco de divertimento que Frank entra no escritório, não sendo nada gentil com a porta. O barulho repentino faz John pular em sua cadeira, um pouco de suor escorre por sua testa quando ele nota a presença do seu capitão.
─ Oficiais – ele diz, acenando com sua cabeça, o que Mason retorna com o mesmo movimento. Eu somente o ignoro, mas meu peito parece tão apertado que nem mesmo se quisesse conseguiria movimentar sequer um fio de cabelo.
Frank segue até sua mesa, ele joga a jaqueta pesada no encosto e liga seu computador, tudo de forma lenta e calculada, como se quisesse que cada um de seus passos fosse notado. Ele não diz mais nenhuma palavra, também não volta a dirigir seu olhar para nós, não tenta puxar nem mesmo um único assunto, sobre o que estamos fazendo, por exemplo. O nada pode ser muito mais irritante do que um comentário sarcástico as vezes. Só consigo pensar de volta... vamos lá desgraçado, não me dê o tratamento do silencio agora!
─ Caramba, Nat, estamos juntos aqui faz um bom tempo... – John diz, querendo parecer fugir da sala o quanto antes. Como se mesmo o peso do meu olhar para Frank fosse demais para ele. Mas não quero que ele se vá ainda, quero irritar um pouco o capitão, só para tirar dele qualquer reação que seja, qualquer migalha... tentei negar que não aceitaria isso antes, mas tenho minhas dúvidas agora. Se um pode jogar, dois também podem, é claro.
─ Ah, Johnny, quando estamos com alguém tão especial, o tempo mal parece passar – eu digo em um sussurro, e apoio minha mão na sua para acariciar sua pele com delicadeza. John parece se arrepiar com meu toque, mas não consegue dizer nada agora. ─ O que acha de tomarmos aquele café qualquer dia, poderíamos conversar sobre qualquer coisa que não esse trabalho. Eu adoraria saber quem você é de verdade. – Não consigo evitar de olhar de esguelha para Franklin, até porque talvez essa afirmação tenha sido mais para ele do que qualquer outra pessoa, algo que não admitiria nem mesmo sob ameaça.
Ao menos, posso ver com o canto dos olhos que o meu convite para Mason surtiu um pouco de efeito sobre Franklin. Enquanto seus olhos parecem encarar a tela do computador de forma neutra, sua mão se fecha em um punho firme e ele o aperta contra a mesa. Só assim noto que seus olhos encaram a tela com tanta fúria que poderiam atravessar o aparelho facilmente.
─ Cl-claro, isso seria incrível. – Mason parece quase quicar em sua cadeira, mas apenas me lança um sorriso bonito e sensato. Ah, Johnny, me perdoe por tudo isso.
─ Ótimo. Eu te mando uma mensagem mais tarde e marcamos isso, tudo bem? – Os olhos do capitão ao nosso lado parece rolar algumas vezes. Parece notar de repente que não tem meu número, mas Mason o tem. É claro, idiota, porque ele me pediu.
─ Ótimo, ótimo... – A voz de John é alta e esganiçada agora, e ele mal parece conter sua animação. ─ Eu vou agora, tudo bem? Vou até a sala de tiros porque tenho uma reunião marcada com o general, mas... por favor, me mande essa mensagem, por favor. – Ele parece quase me implorar por isso. Franklin funga uma risadinha ao nosso lado, mas Mason não percebe, quase dou risada também, mas me sinto mal em ofender John e acabar com sua animação. Ele não faz mesmo ideia de que nunca vou mandar essa mensagem.
Quando o oficial deixa a sala, espero que Frank vá dizer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, apenas para me irritar. No fundo, espero que vá pedir para que não mande mensagem para John, mas sim para ele. Sou uma grande estúpida.
Só que Morris não diz nada, nem mesmo me olha com o canto dos olhos, seu controle é algo incrível, e a raiva que sinto parece como uma bala no peito, eu poderia explodir em fúria se não estivesse tão magoada agora. Então salto em um movimento rápido até a porta.
─ Vou até a cafeteria, capitão, quer algo? – Ele não me responde, nem mesmo faz um movimento com sua cabeça. Quero manda-lo a merda, mas faço o que é mais sensato e dou as costas, saindo da sala. Meus olhos se enchem de lágrimas instantaneamente.
Sei que não somos nada, sei que foi apenas um beijo e nada mais, que não houve qualquer significado para nenhum de nós. O silencio do capitão me diz exatamente isso, ainda que a sua frente, um bloco de papel foi furiosamente rabiscado aponto de rasgar algumas folhas.

Quando retorno do intervalo que me permito ter, Franklin não está mais na sala. Até planejei por um segundo conversarmos como dois adultos, mas como ele não parece fazer questão, desisto.
Arrumo todas as minhas coisas e deixo a sala o mais rápido que posso, pois não quero correr o risco de voltar a encontra-lo por aí, ou qualquer outra pessoa. Só quero voltar logo para casa, quero contar para Nikita tudo que descobri durante minha tarde com John, afinal de contas, ainda não tive a oportunidade de voltar para casa. Tudo acontece rápido demais.
Estou a poucos metros do meu carro, as chaves estão enfiadas no fundo da bolsa e demoro para conseguir pesca-las com a ponta dos dedos, e é tempo suficiente para que ele se aproxime, antes mesmo que eu note sua presença por completo. Franklin puxa meu braço com gentileza, apesar da sua mão forte se prender firmemente em meu braço, e ele me faz girar em direção ao seu corpo.
Estamos tão próximos que consigo enxergar seu peito se movimentar por baixo da camisa justa, para baixo e para cima, para cima e para baixo, em uma respiração que se esforça para controlar. Seus olhos estão escuros, e é quase como se eu fosse uma presa cercada por seu caçador.
─ Me desculpe – ele diz, sua voz baixa e, ainda assim, segura, muito objetiva. Seu perfume se mistura com seu suor, invadindo minhas narinas de forma tão arrebatadora que me sinto tentada a repetir nosso beijo. E beijar sua boca sem permissão seria excelente, apenas se eu não estivesse tão decepcionada agora.
─ Está desculpado, seja lá pelo que for capitão. Boa noite – eu o respondo com calma, mas empurro seu peito. Seus músculos me fazem precisar controlar a vontade de correr os dedos por todo seu peitoral.
Lentamente, dou as costas para ele e termino o caminho até o carro, destravo as portas, abro o lado do motorista e jogo todos os meus pertences para o banco do passageiro. Franklin está em meu encalço, é claro, e só vejo seu braço direito se apoiar contra a lataria quando ele o faz, parado muito próximo as minhas costas. O tecido da manga praticamente encosta em minha cabeça.
─ Estou falando sério, me desculpe, devia ter conversado com você hoje. – Volto a bater a porta do carro e me viro para ele, sinto meus olhos ferverem agora, meu rosto está muito quente, mas não faço ideia se estou chorando ou não, se estiver, é de puro ódio.
─ Mas não falou comigo, Franklin, e isso foi muito fodido – rebato de volta. Ele inclina sua cabeça de um lado para o outro e concorda com um aceno rápido, mas não diz mais nada. Estou cansada de ser tratada com silêncio, então respiro profundamente e dou as costas, eu só quero poder ir embora, tomar um litro de vodka e chorar até desmaiar.
Aos poucos, sinto seu corpo se encostar às minhas costas, a ponta do seu nariz afaga meu cabelo em um carinho gostoso. Meus pelos dos braços se eriçam, minhas pernas começam a tremer e eu me sinto uma grande idiota, estou quente e mole, como ele pode ter esse efeito rápido sobre mim? Seu braço passa pelo meu, e ele segura o trinco da porta, me impedindo de fugir.
─ Por favor, não saia com John Mason – ele sussurra em uma voz baixa, dessa vez nada firme, muito pelo contrário, agora parece querer quebrar a cada silaba proferida. Meu coração se aperta, porque é claro que não vou sair com John Mason, mas não posso dar o braço a torcer. Não posso me permitir ser magoada de novo, enganada de novo, porque estou cansada disso. Giro meu corpo para o dele mais uma vez, seu rosto é bonito demais, convidativo demais e está muito perto, mesmo com a diferença de altura. Eu poderia beijar ele, e eu gostaria muito de beijar ele agora.
─ Por que eu não sairia com Johnny, Franklin? – Questiono sem demora. Ele retorce o nariz ao ouvir o apelido que dei para o policial. ─ Não acho que ele me beijaria por pena, pelo menos. ─ Não consigo controlar a minha maldita boca, e apesar de querer soar firme, sussurro cada palavra carregada de dor.
─ Pena? Eu não... – Ele para de falar e ri, fungando pelo nariz daquele jeito um tanto irritante que faz. Frank ajeita os cabelos para trás em um movimento vulnerável e quase perco meu controle, estou presa nessa confusão mental de querer e fazer ou não fazer, a sensação é horrível, aperto meus punhos para tentar parar de pensar demais. ─ Só não saia com Mason. Eu só... eu preciso de paciência, Natasha. ─ Frank aproxima ainda mais seu rosto do meu, até encostar seu nariz em minha bochecha e acaricia minha pele com a sua, em um movimento tranquilo. ─ Você é tão linda, eu não sei... eu fico perdido... ─ ele sussurra.
Com sua mão livre, Morris segunda minha cintura e deseja círculos com seu polegar. Mesmo com o tecido grosso da camisa consigo sentir o seu carinho, e me sinto estremecer por dentro, como se fosse uma parede gasta prestes a ruir.
Todas as borboletas, que passei o dia todo tentando matar, voltam a voar, ainda mais enfurecidas do que antes e me sinto enjoada por isso. Sua boca roça minha bochecha, e sinto como se fosse uma bomba atômica prestes a explodir quando ele encosta o canto dos seus lábios contra os meus.
Com muito esforço desvio meu rosto. Eu quero beijar ele, quero demais, mas todos os fantasmas contornando minha mente conseguem me impedir de fazê-lo. Tudo dentro de mim grita para que eu não esqueça do meu verdadeiro objetivo, para conquistar tudo que planejei depois de tanto sofrer. Me apaixonar por alguém que não sabe o que quer não estava nem próximo desses objetivos.
─ Frank, eu demorei tempo demais para entender que não sou um brinquedo para os outros, e eu não posso mudar isso agora e esperar para que decida o que realmente quer, sinto muito. ─ Ele fica sem saber o que dizer por um tempo, paralisado, mas então se afasta devagar e é a pior das torturas. Seus olhos estão congelados contra os meus, e de novo, vazios.
Com a mão que segurava o trinco, ele abre a porta do carro, e me espera entrar para então fechá-la com gentileza. Ele acena com a cabeça e também com uma das mãos uma última vez e vai embora. E eu espero até que entre no prédio da corporação novamente para ligar o carro e fugir.
Sei que preciso esquecer nosso beijo e voltar a me centrar nos meus planos, para reconquistar minha casa e minha vida. Sei que estou fazendo o certo, mas nem mesmo o certo pode impedir um coração de sangrar.

Seguro meus sentimentos bem presos em meu peito, ao máximo, ao menos até possa encontrar o caminho de casa. Mas assim que fecho a porta as minhas costas, começo a chorar, lágrimas ardilosas escorrem por minhas bochechas mesmo quando tento impedi-las.
─ Minha menina, que bom que está de volta. – Nikita atravessa a sala com passos rápidos e lança seus braços ao meu redor em um abraço bastante apertado. Ele esteve mesmo preocupado comigo, e eu presa em uma situação estúpida, que vergonha.
─ Me desculpe, Nikita, me desculpe mesmo... – digo entre soluços. Me sinto fraca e vulnerável por chorar tanto agora, por algo que não deveria ter significado nenhum. E dói, dói pra caramba me sentir assim.
─ Está tudo bem? O que aconteceu? – Goncharov parece um pouco desconcertado, talvez não tivesse notado meu choro até então. Para falar a verdade, acho que ele nunca me viu chorar, a não ser na noite em que minha família se foi.
─ Eu só... estou estragando tudo. Eu não tenho nada, não há nada de novo para nós. Não sei mais quem sou, não me lembro quais são meus objetivos. Estou perdida Nikita e eu... me desculpa. – Apoio minha cabeça em seu ombro e me permito chorar um pouco mais, até que as lágrimas comecem a ensopar sua bonita camisa de linho vermelha. Ele acaricia meus cabelos da mesma maneira que fazia quando corríamos para contar a ele que Sergei havia nos colocado de castigo, com carinho e compreensão.
... – Estremeço apenas ao ouvir meu nome de verdade, um nome que as vezes acho que nem reconheço mais. Ele parece perceber. ─ Natasha... minha querida menina, tudo que você precisa é viver. ─ Ele me afasta um pouco, me segurando pelos ombros, apenas o suficiente para poder olhar em meus olhos marejados, o que faz seu rosto ficar um pouco embaçado. Eu sei que está sorrindo, com a mesma compaixão que um pai olha e sorri para um filho. ─ Já tiraram o suficiente de você, não pode deixar que façam isso de novo agora...
─ E se... – Penso por um momento antes de falar, porque não sei como abrir meu coração para ele, mesmo que seja a figura mais paterna que tive em toda a vida. Ainda mais quando ele me olha desse jeito, como se enxergasse o fundo da minha alma. ─ E se isso, esses pensamentos e meus sentimentos confusos estiverem relacionados à uma pessoa? – Meu peito arde, não sei se é porque preciso me esforçar para admitir tudo para Nikita agora, ou então se é porque estou começando a admitir para mim mesma que esses sentimentos existem.
─ Oh – ele exclama, surpreso. Nikita coloca uma mecha de cabelo atrás da minha orelha e segura meu queixo em seguida, firmando meus olhos na altura dos seus. Um sorriso iluminado parte seus lábios. ─ Então essa pessoa tem muita sorte no mundo para ter sido notada por você.
─ E se isso atrapalhar nossos planos? Todo o tempo em que investiu em nossa vida, tudo que fez em nome da Vory v Zakone, eu não posso... – Mordo meus lábios com força para segurar a nova onda de lágrimas que chega aos meus olhos, teimosas, ao querer escorrer bochecha abaixo.
─ Nada que faça vai atrapalhar o que tenho planejado. – Apesar de sua expressão serena, a voz é séria e firme. ─ Vamos reorganizar tudo o que temos, criança, é tudo sobre você, sempre foi... ─ Engulo em seco. Não consigo sequer começar a imaginar o que poderia ser positivo em envolver Franklin com nossa vingança contra a Semyonova. E a pior parte é que meu coração palpita muito forte somente em pensar em seu nome agora.


FRANKLIN MORRIS


Porquê seu coração bate ou deixa de bater, há muitas maneiras de explicar, e posso afirmar que nenhuma delas é tão dolorida ou assustadora, quanto quando se assimila aos seus batimentos cardíacos coordenados com a existência de outra pessoa.
O momento em que você deixa de pertencer a si mesmo, e passa a coexistir por outro alguém, quando seus desejos não são mais obrigatoriamente seus, e suas decisões não são formadas porque você quer algo ou não, mas sim porque aquela pessoa está ali.
Ao mesmo tempo, peças que pareciam estar faltando em seu quebra-cabeça pessoal parecem se encaixar. Tudo parece muito simples.
Mas nem sempre é.
Não acho, sinceramente, que tenha conhecido o amor de forma pura, não àquele diferente ao fraternal. Por isso, nesse momento é terrível estar tão presente em minha cabeça, meu coração e até mesmo minha carcaça. Porque de repente, esse corpo já não me pertence, essa mente não é mais minha, nem mesmo carrega meus próprios pensamentos.
Há outra pessoa, que parece tomar conta da minha história sem nem ao menos ter batido à porta da minha vida, outra pessoa que nem mesmo me pediu permissão para entrar, ela simplesmente derrubou uma parede e fez moradia dentro de mim. Se materializou de forma tão concreta, que as vezes acho que esqueci meu próprio nome.
Se ela me dissesse que ama a chuva, eu passaria a não dormir em noites de tempestade. Não porque raios e trovões começariam a me assustar, mas porque tenho certeza de que isso me faria um passo mais próximo de tudo que ela ama, de tudo que eu poderia passar a amar também.
Não consigo deixar de imaginar a cada segundo que o relógio tica, o que se passa em sua cabeça quando nossos olhos se cruzam? Será que sua respiração falha como a minha, quando vejo um sorriso iluminar seu rosto bonito? Será que todos os seus órgãos parecem pesar uma tonelada ao ouvir como sua voz é suave ao pronunciar meu nome?
Não consigo deixar de imaginar como tudo seria caso ela sentisse o mesmo, como seria se eu conseguisse conquistar seu coração como ela tomou o meu para si, sem nem ao menos me dar um minuto para me preparar.
Por outro lado, não sei como lidaria com tudo isso, pelo menos não quando nem mesmo consigo conter meus próprios pensamentos. Para entender uma pessoa, é preciso nadar nas mesmas águas em que ela se afogou. Não acho que estou disposto a deixar que sua luz se apague em minha escuridão.
Se deixasse as coisas fluírem como meu coração desesperadamente grita para aceitar, precisaria estar ciente dos riscos que isso implica. É quase insuportável senti-lo suplicar para que me deixe levar. Ainda mais quando preciso encarar o espelho todos os dias, e a imagem que me olha de volta se parece tanto comigo, com ele, o pequeno Frankie que nunca fez nada de bom, nem mesmo conseguiu salvar o seu melhor amigo.
Como é possível embrulhar sua alma em um papel de presente se você nem mesmo consegue tocá-la sozinho? Se você não sabe sequer se ela ainda está lá? Esperando, em silêncio, para quem sabe, enfim, fazer parte de quem você sempre quis ser.
Olhando para o que restou dentro de mim agora, sinto como se tivesse fechado todas as estradas fáceis que alcançam o ponto bem no centro de mim. E mesmo assim, quero ser totalmente alcançável para ela, se tiver certeza que terá a paciência de andar uns quilômetros extra ao decidir caminhar comigo.
Não sei como consertar isso.
Não sei se há conserto para algo assim.

Meus móveis são todos brancos, só percebi isso agora. No breu, é tudo uma mistura de cinza, branco e alguma coisa tão sóbria que os meus olhos quase gritam por qualquer resquício de cor. Talvez esse espaço se pareça mais comigo do que posso admitir.
Todo esse tempo, achei que só precisasse me deitar para curar um pouco do meu coração quebrado e minha cabeça ferrada, mas todo segundo a mais que passo alisando o lençol, me faz pensar que poderia fazer um buraco no chão e, com um pouco de sorte, me tornar parte do móvel, do cinza.
Continuo a dirigir em uma estrada sem destino final, sigo sem rumo, sem qualquer esperança de um lugar que goste mesmo de ficar, que queira pertencer. Já tem um tempo que parei de dizer para mim mesmo que estou perdido, porque no fundo sei que não estou. Talvez não esteja perdido, somente esteja a caminho.
O problema é que ultimamente meus caminhos parecem tão cheios de curvas que só desacelero. Preciso aprender a respirar novamente e acalmar minha cabeça. Estive tão acostumado a gostar do silencio que agora, com tanto barulho alto ao meu redor, preciso me adaptar mais uma vez. A ser alguém normal, com uma vida normal, não apenas àquele quem sempre fui, com tantos fardos a carregar.
Bem-vindo à vida merda de Franklin Morris!
Ao meu lado, na mesa de cabeceira, a data no relógio digital parece gritar contra a minha cara com seu brilho neon: “é 16 de novembro de novo, otário”.
Merda, já fazem dez anos...

Soluço alto, rio em resposta à minha própria reação. A bile sobe tão rápido do estômago, que todos no bar parecem notar quando inclino meu corpo para frente, me segurando contra a bancada, como se estivesse prestes a destripar o mico.
─ Tudo bem bonitão, acho melhor parar por aqui... ─ A atendente loira de rosto comprido retira a caneca de cerveja da minha frente. Ela está tão preocupada que parece não conseguir desencostar os peitos da minha cara, quase como se dissesse que posso substituir aquela decima cerveja por outra coisa. Não tenho nem mesmo um pingo de ânimo para dizer que não estou interessado no seu jogo. Ao menos um perdedor sabe reconhecer quando não distribuir as cartas.
É claro que estou bêbado, tipo pra caralho. Tenho motivos o suficiente para beber até que o meu sistema digestório pare de funcionar, até que meu fígado se torne uma bomba relógio, tique taqueando os últimos segundos da minha existência. Ou da minha consciência, pelo menos.
Tirei o dia de folga, acho que precisava disso, honestamente. Quando informei Jetson, na mesma hora ele entendeu. Mais do que qualquer um poderia entender. Jet não questionou nem por um segundo e me mandou sair da sua sala antes que me fizesse sair na porrada.
Todos os anos, neste mesmo dia, tudo acontece da mesma maneira. Levanto sem qualquer animo, gasto energia o suficiente apenas para chegar até o bar mais próximo, bebo até não aguentar erguer o copo, coloco minhas tripas para fora, compro flores, vou até o mesmo lugar... e bem, o resto é só mais uma história de merda.
A pior parte é que agora tudo isso parece diferente. E é, não? Eu não tinha nenhuma razão para continuar nessa mesma porcaria de rotina, e agora ela está aí, em tudo que enxergo, no ar que respiro, na luz que invade as janelas sujas dessa espelunca em que estou.
É uma ironia de merda o dia estar tão bonito lá fora, o sol descendo aos poucos no céu, o fim de tarde dando seus primeiros anúncios de que logo irá embora. O alaranjado se misturando ao amarelo, se fundindo aos poucos com o azul cada vez mais escuro, os últimos movimentos da luz que dará espaço a escuridão antes mesmo que alguém perceba. Como um interruptor.
Nem mesmo notei a manhã passar, fiquei o tempo todo olhando para o teto, tentando esvaziar minha mente um pouco, o que parece impossível ultimamente. Depois, a tarde toda estive aqui, bebendo e preenchendo o espaço que consegui esvaziar. E mesmo com essa insistência em mutilar um pouco mais a minha cabeça, tem algo diferente rondando minha aura, quase uma nuvem pacífica...
Aos tropeços, deixo alguns dólares de gorjeta a mais para atendente, ao menos assim a farei feliz. Alcanço o maço de margaridas, suas favoritas, um pouco amassadas agora, e continuo meu ritual de todo 16 de novembro. A caminhada parece tomar o restante das forças que ainda guardava, e sinto que se não chegar logo ao cemitério, não terei tempo de me apoiar em algo para amenizar o impacto que terei ao cair de joelhos na calçada.
Chego ao Charlotte Jane, tonto e sem conseguir controlar minha respiração, observo as pessoas passarem. Algumas também estão fazendo seu próprio ritual. Famílias, pais e mães, esposas e esposos, irmãos, filhos, amigos... todos deixam sua dor escorrer pelos olhos através de suas lágrimas doloridas. Noto seus lábios se movendo rápido em preces, a saudade toma conta de suas expressões.
Quando chego à sua lápide me encosto na pedra dura. Admiro as flores deixadas ali em quantidade abundante, muitas margaridas, e me emociono ao notar que outros também lembraram que eram suas favoritas. Apoiada no concreto frio, há uma caixinha de madeira com a tampa transparente, dentro uma pequena coleção de palhetas. Por um segundo, é quase como se Simple Man tocasse direto em meu cérebro, no lugar mais profundo e carinhoso das minhas memórias.
"Forget your lust for the rich man's gold. All that you need is in your soul. And you can do this, oh baby, if you try. All that I want for you my son, is to be satisfied", meus olhos pesam com as lágrimas grosseiras. Não seguro o choro, nem mesmo quero tentar, deixo que a tristeza escoe pelo meu rosto e pingue com raiva e saudade no tecido escuro da camisa. Esse dia maldito é pesado demais, e toda a minha vida é sobre ele.
─ Oi Mr. G. – Minha voz é só um sussurro, e preciso fazer um esforço enorme para sequer falar, minhas energias são sugadas por minhas memórias e, rapidamente, estou esgotado por completo. Tanto que preciso me abaixar, um joelho apoiado no chão para que possa sustentar todo o meu peso. ─ É 16 de novembro de novo, não? O tempo passa rápido pra caralho...
É quase como se pudesse sentir o sangue correndo por minhas veias a cada bombeada do coração, que bate com força, raiva, remorso e tantos sentimentos ruins mais. Sinto o mesmo gosto amargo que senti naquela tarde, uma década atrás. Ouço suas risadas, George e Sandy correndo um atrás do outro. Charlie abrindo as cervejas que roubou da geladeira do seu pai, as brincadeiras sobre como o álcool era o que faltava para deixar nossa tarde completa, mas eu sabia que algo não estava certo.
─ Não acredito que sobrevivi a esses dez anos sem você, cara... ─ Em minhas narinas, quase posso sentir o cheiro gostoso do cachorro quente frito, e do sujo de maracujá com água de coco que Sandy levou para nós, só para descobrirmos mais tarde que ela estava longe de ser uma boa menina, já que dentro das garrafas térmicas, o suco estava super batizado com vodka.
Não consigo controlar uma risada engasgada, e nem posso entender como é possível rir e chorar ao mesmo tempo. Talvez seja uma reação a quantidade de bebida que tomei. Sou preenchido por tantas emoções de uma só vez, e não me sinto preparado para lidar com isso. É bem provável que nunca esteja.
─ Ao menos espero que esteja festejando aí em cima – resmungo, dando de ombros. O tom da minha risada é mais alto agora, quase superando o meu pranto. ─ Só consigo imaginar você, um canalha de merda, dando em cima de todas as anjas mais bonitas que tiverem aí... sei que faria proveito disso.
O silêncio parece então tomar conta de tudo, não consigo mais falar, nem raciocinar com coerência, e quando minha mão alcança a lapide de George, estou com os dois joelhos afundados no chão, engasgando em meus próprios soluços. No fundo do meu bolso está o chaveiro em formato de carro, a Ferrari azul. Alcanço o metal gelado e o aperto contra os dedos tremeluzentes, o fecho apertado em meus dedos e junto minhas mãos em uma prece, uma despedida. Então deixo o chaveiro ao lado da caixinha com as palhetas. Preciso morder os lábios para não soluçar alto demais. Ainda estou no processo de ficar sóbrio, o que não ajuda em nada.
─ Se vale de algo, irmão, nada mudou por aqui. Mesmo sem você, ainda sou o mesmo idiota de sempre... – Meus ombros chacoalham em conjunto a uma risada que escapa de forma involuntária, quando, na verdade, não há nada de engraçado nisso. ─ Fiquei sabendo que Sandy teve um bebê, acho que é uma garotinha... eu não ficaria surpreso se ela fosse a sua cara, sabe. Você sempre disse que Sandy carregaria um bebê seu, e ela te amava tanto... talvez isso tenha lançado um feitiço nela e agora se parece com você. Não vejo a hora de saber sobre isso, claro, isso se algum dia chegar a ver esse bebê... quem sabe. ─ Até porque é provável que Sandy nunca mais queira ver a minha cara, não quando ela só vá fazê-la lembrar do quanto fui inútil àquele dia. Ajeito meu corpo para me sentar, as costas escoradas na lápide polida recentemente.
─ Eu conheci uma garota, Georgie. Não, melhor, eu conheci A GAROTA. ─ Novamente, é apenas um sussurro que ecoa por minhas cordas vocais. Eu conto à George um segredo, um daqueles difíceis pra caramba, que se estivesse por aqui o faria rir da minha cara. Meu peito dói demais por saber que ele não está ali, sentado na varanda comigo, ouvindo isso de verdade.
Eu daria tudo para poder voltar no tempo, para senti-lo socar meu ombro com força, me afirmando com firmeza que ela só seria “a garota” se fizesse sentir como se meus olhos estivessem queimando ao admirá-la. Então eu respiraria fundo, e diria a George que talvez ele nem mesmo acredite no que diz, mas que ela está incendiando tudo que sobrou de mim.
Mas não seriam apenas sobras se meu amigo ainda estivesse por aqui. Eu ainda teria tudo. E talvez não seria tão difícil passar por tudo isso, ignorar Natasha por quase um ano inteiro, empurrando para o canto o fato de estar terrivelmente apaixonado por ela, sem nem sequer conseguir explicar porque não me sinto merecedor de sentir esse pingo de alegria. Talvez aqui, ao lado do seu túmulo cheirando a flores recém colhidas seja um pouco mais fácil, um pouco mais leve de admitir meus sentimentos tão reprimidos, esmagados dentro de um baú minúsculo escondido nos confins do meu coração.
─ Ela é linda, Georgie, e toda vez que sinto sua presença sinto como se pudesse morrer, e morreria feliz mesmo assim, mas é claro que... – As palavras fogem por um segundo, o vazio invade meus pensamentos e é quase cômico, se não fosse trágico. ─ Sou um idiota, Halliwell. Acho que consegui empurrá-la o suficiente para longe, sem nem mesmo tentar dizer que eu só queria tê-la em meus braços o tempo todo. Você sabe que eu sempre fui péssimo em dizer para as mulheres o que sinto. Ainda mais depois que você... merda! – Meus olhos voltam a marejar, me sinto tão tonto que preciso apoiar a cabeça nos braços que estão cruzados em cima dos meus joelhos dobrados. É quase como se eu pudesse chorar até não restar mais nenhuma lágrima.
Carrego a dor da morte de George por dez anos, e é muito, muito tempo. Uma década inteira em que insisto em me afundar em culpa, centímetro por centímetro, até que tenha esquecido que, para encontrar minha própria paz só seria possível se continuasse a viver. Me neguei a viver por tempo demais, até hoje.
─ Me perdoe George... Continuo dizendo para mim mesmo, todos os dias, que o que me conforta é que um dia nos reuniremos mais uma vez, mas merda cara, deveria ter sido eu, não? – Bato a cabeça contra a lápide, meus olhos se fecham com a dor pungente, continua difícil de controlar a respiração, que parece fazer meu peito se desmanchar a cada lufada de ar que engulo. ─ Sinto muito não ter conseguido te salvar, irmão, sinto mesmo.
Acima do cemitério, um trovão estronda alto no céu. Não percebi o momento em que o clima mudou tão radicalmente, mas tenho certeza de que o mundo pode cair a qualquer momento. E talvez seja coisa da minha cabeça, mas a enxurrada que preenche o céu e também inunda meus pensamentos, parece quase uma resposta vinda lá de cima, do paraíso.
Eu amo George Halliwell e sempre irei amar o meu melhor amigo de forma incondicional, mesmo que eu não faça ideia de onde ele está agora, sei que tenho sua benção para continuar a viver de verdade.
Em meio as gotas de chuva que começam a cair, deixo minha alma ser lavada junto com todo o peso de memórias ruins que decidi permitir sobrecarregarem meus ombros. Chegou, enfim, a hora de me perdoar.

Tempo depois, já totalmente sóbrio, decido dirigir até o prédio da corporação, o que me faz sentir mais calmo. Não sei se estou ficando maluco ou o que, mas em minha cabeça, sei exatamente o que preciso fazer para começar esse processo de redenção.
De tudo que tenho certeza nessa vida, a maior delas é que estou perdidamente apaixonado por Natasha, e tudo que mais preciso agora é sentir mais uma vez seus lábios nos meus. Preciso ter coragem para contar sobre tudo que aconteceu comigo, quem fui até me tornar quem sou hoje. De certa forma, ela me pediu isso, não pediu? Para me abrir.
Talvez eu esteja levando tempo demais para perceber que as coisas são mais fáceis do que acredito ser, talvez ela até mesmo diga que não quer se envolver com alguém como eu, e eu me afastaria, faria isso, eu entenderia de verdade caso não quisesse nada comigo. Mas não tenho mais motivos para não tentar, para ter certeza que dei o meu melhor.
Mesmo tendo passando tanto tempo construindo paredes ao meu redor, ela conseguiu destruir boa parte delas. E agora, só preciso dar o primeiro passo para começar essa nova história, seja com dúvidas, seja com dor, as mãos tremendo e voz falhando, mas preciso começar de alguma forma.
Me pego pensando se estou louco em me permitir sentir dessa forma, ainda mais depois de tantas merdas pelas quais passei, a lista é gigante. Mas se há algo em que sou bom é dar tiros, e talvez um tiro no escuro não possa fazer mal.
Em minha cabeça, sei exatamente o que quero dizer para Natasha, como explicar os motivos para me prender por tanto tempo dentro dessa personalidade cretina. O porquê de ter evitado falar com ela ontem, e o principal, porque nunca consegui superar a aversão que sinto a tudo que vejo no espelho. Que tudo que me encara de volta, me assusta.
Do fundo do coração, espero que ela possa ser paciente comigo, que sinta o mesmo que eu sinto. Que, como eu, veja como isso tudo parece tão certo e que entenda, tudo é sobre ela, farei o que me pedir sem hesitar. Só preciso que ela me queira tanto quanto anseio por sua presença agora.
Estaciono o carro entre tantos outros veículos, visto o casaco mais grosso que encontro no banco traseiro. A chuva está forte agora, os pingos espessos atingem o vidro com força, mas estou a poucos metros da entrada do prédio, alguns passos e alcanço a porta.
Saio do veículo e começo a caminha de forma rápida e precisa, quase como se a ansiedade que corrói meu peito chegasse até meus pés. Mal posso esperar para, finalmente, dizer tudo que preciso dizer. Para tirar o peso dos ombros, o aperto do peito e, pelo menos dessa vez, me permitir tentar ser um pouco feliz.
A água começa a escorrer por minha cabeça, ensopando meus cabelos, ombros e braços, e um pensamento meio idiota me ocorre, é como se estivesse lavando não apenas a carcaça, mas toda a alma, como vinha precisando há algum tempo. Meu interior estremece por inteiro, e não pela sensação de frio, mas porque estou estarrecido com o fato de que talvez tenha encontrado de uma vez por todas a parte que me faltava.
Se houve algum momento em que duvidei haver resquícios de alma em mim, agora posso senti-los todos, suave e delicadamente voltando para meu corpo. Sua sabedoria batendo sem força, sem pressa, em minha mente. Querendo tomar de volta para si o espaço que sempre foi seu por direito.
Antes mesmo que possa chegar próximo a porta de entrada meus pés estancam no chão como se a calçada fosse feita de areia movediça, não consigo nem mesmo considerar dar um passo para frente ou para trás. E meu coração despenca pelo que parecem metros e metros, e continua caindo em um buraco infinito. Se havia algo pulsando dentro de mim, esse algo parece agora ter ficado em silêncio. De forma quase constrangedora.
Natasha está saindo do prédio, e eu poderia sentir sua presença a milhares de quilômetros de distância, porque sua aura parece sempre quase uma explosão em meu campo de visão. O que dói como uma adaga no peito é que ela não está brilhando sozinha. John Mason está colado em seus calcanhares, e os dois riem juntos, como se tivessem ouvido a piada mais engraçada de toda a sua vida.
Eles saem tão rápido do prédio que demoram para entender que está chovendo quase forte demais. A sua expressão, seu rosto tão lindo, parece surpreso e divertido, tão feliz que quase sinto vontade de sorrir também, só por saber que está genuinamente feliz. Não sobrou mais nada da raiva que vi ontem à noite, quando a deixei entrar em seu carro e ir embora, sem nem mesmo me esforçar um pouco para explicar.
John retira o seu próprio casaco e coloca sobre suas costas, ela agradece com sorrisinho e abre a pequena sombrinha. Os dois correm pela chuva, se apertando embaixo do objeto minúsculo, ambos riem em puro divertimento enquanto tentam não se molhar muito até alcançarem seu carro.
Dou as costas, porque não quero ver ambos entrarem no mesmo veículo. Não quero bisbilhotar e ficar controlando se ele entrou com ela ou a deixou na porta, como um verdadeiro cavalheiro faria. Não quero ser o bastardo ciumento, ainda mais agora, não tenho direito nenhum sobre ela, nunca tive.
Natasha nunca foi minha, nunca me pertenceu. E, para ser bem honesto, eu bem que sei que ela jamais pertencerá a ninguém como pertence apenas a si mesma. De qualquer forma, também não quero transformar tudo isso em um drama desnecessário.
Ela está feliz, logo, estou feliz também, ou acho que estou. Não é como eu queria que as coisas tivessem acontecido. Pro diabo com isso, estou ainda mais fodido agora. Mas desde que plantei meus olhos nela, sempre tive a mais absoluta certeza, de tudo que sempre lhe desejei é que fosse feliz, para sempre.
Não sei se junto os pedaços do que sobrou dentro de mim, ou se apenas vou embora e deixo tudo para trás e faço de conta se esqueço, porque é claro que isso vai ser meio impossível de esquecer. Não estou furioso agora, e para falar a verdade, acho que não estou sentindo absolutamente nada. É quase como se, de forma automática, minhas emoções tivessem voltado para o quartinho pequeno, vazio e escuro no fundo do meu coração. A chave virou no trinco mais uma vez.
16 de novembro é o pior de todos os dias.

Dou apenas duas batidas na porta. São o suficiente para que Jetson arraste a madeira para o lado, me dando espaço para que entre enquanto já tem um copo de uísque estendido em minha direção. Ele sabe exatamente qual a linguagem que precisa usar comigo agora.
Bebo o conteúdo devagar, aproveitando o sabor agridoce. Penso em como seria entornar a garrafa inteira, sem parar, até o ultimo gole, mas sei que não vale a pena. Não quero precisar incluir alcóolatra na minha lista fodida, junto com todas as outras coisas que já tomam tanto espaço.
Me jogo em seu sofá, e nem mesmo me preocupo em tirar os sapatos encharcados. Jet não diz nada, ele conhece bem os meus limites, e sempre soube que esse é o pior dia do ano para mim. Ele só não faz ideia que agora também é oficialmente o dia do karma.
Solto uma risada baixa, fungando pelo nariz. Richards ainda permanece em silêncio, o que me preocupa muito mais do que se me bombardeasse com um monte de perguntas ignorantes. Ele se acomoda na poltrona que está logo atrás da minha cabeça. Sinto quase como se estivesse no consultório com minha terapeuta. Eu, um paciente em apuros e frustrado, e Jet, o médico paciente esperando pelo meu desabafo.
─ Estou apaixonado. – É tudo que digo. Porque na verdade, não sei se tenho capacidade para reviver todo o dia novamente, não acho que consigo contar detalhe por detalhe de todas as fases que enfrentei nas últimas horas. Não sem fazer com que minha cabeça doa tanto a ponto de quase explodir.
─ Chocante – ele resmunga. Inclino a cabeça para trás, tentando enxerga-lo o suficiente só para saber se está fazendo sua careta sarcástica ou não. Mas o movimento me deixan tonto, e concluo, se é o Jetson falando, obviamente é sarcasmo. Que diabos estou pensando?
─ Não importa mais, nada importa na verdade, ela está com Mason – concluo ao chacoalhar meus ombros, o que faz um pouco do conteúdo do copo de uísque cair em minha camiseta já encharcada.
─ Uhum. Ouviu isso boca dela ou são só as vozes na sua cabeça falando? – Sei que não é nem uma pergunta, mas soa quase como uma piada. E ainda assim, Jetson parece mais sério do que um padre rezando a missa.
─ Eu os vi saindo juntos da corporação, entre risadinhas e mãos bobas, sou um monte de merda Richards, mas não um babaca... sei reconhecer quando uma mulher está flertando com o cara – reclamo ao explicar. É claro que não a perguntei de forma objetiva para Natasha se estava saindo com dali com John, ou se eles se encontraram na saída por coincidência. Também não fiquei espiando tempo o suficiente para saber se tinham mesmo ido embora juntos, mas, é fato, não sou idiota.
Sempre soube o final da minha história, e nunca foi nada muito feliz.
─ Olha, considerando todo o tempo que te conheço, a sua experiência com mulheres, eu acho que também bastante chance de você estar sendo um babaca sim... – ele comenta, sem pensar muito. Forço meu corpo a se movimentar, até que esteja sentado novamente no sofá molhado por completo agora. Mas não me preocupo muito, deixo para pensar nisso depois, até porque está bem óbvio para mim que irei dormir nesse mesmo móvel essa noite.
Se não sou mesmo tão babaca sim, estou certo de que Jetson tem uma geladeira recheada com cerveja e outras bebidas, e pretendo dessa vez, só dessa vez, usufruir do meu posto de melhor amigo por algumas horas e continuar enchendo a cara como fiz boa parte do dia. E ele também não negaria, nem hoje, nem nunca.
Por um lado, quero mandar Jet se foder por duvidar do que estou dizendo, mas por outro lado tenho quase certeza de que ele não está me ouvindo direito. Além do que, ele pode não admitir, mas sei que está torcendo para que eu arrume logo uma namorada, só para que ele possa ser o pior melhor amigo e contar tudo que sabe sobre isso, para me envergonhar ainda mais, se isso sequer for possível.
Mas no fim das contas, ele continua sendo o meu melhor amigo, e talvez eu não conseguiria descobrir sozinho o que fazer agora se não tivesse para onde ir, não tivesse como estar aqui em sua sala, pingando toda a chuva acumulada em minhas roupas pelo seu chão.
─ Quer me contar sobre esse dia 16? – Questiona de forma sutil. Ele sabe que um dos meus limites são os assuntos que dizem respeito à George, mas hoje é um dia diferente, e hoje Jet está liberado de perguntar o que for preciso, desde que isso ajude a aliviar um pouco a pressão em meu peito.
─ Nada demais... – murmuro, tentando chacoalhar os ombros de novo, mas o movimento é tão desajeitado que derrubo mais bebida, e me pego pensando no quão bêbado já estou, de novo. Jet parece perceber o que preciso rapidamente, pois se levanta e vai a geladeira, pegando de dentro mais garrafas de cerveja para nós dois. A conversa pode ser longa. ─ Deixei o chaveiro para trás...
─ A Ferrari azul? – Exclama, surpreso. Concordo com um meneio de cabeça. ─ Minha nossa, é um grande passo... – Sua voz é mesmo surpresa, dessa vez sem espaço para sarcasmos ou brincadeiras idiotas. Concordo com um novo movimento de cabeça, a sala parece girar em meus olhos.
─ Passo para? – Pergunto em tom honesto.
─ Para seguir em frente, oras – ele diz, sem pretensão de prosseguir com outro comentário além disso. Jetson apenas diz o que quer dizer, sem qualquer maldade. ─ Quero dizer, já está em tempo, não? – Sei o que quer dizer, tempo de ser feliz, só que isso sim me parece meio idiota e até maldoso, principalmente para alguém como eu, tão fodido.
─ Eu tentei Jet, por cinco minutos talvez, mas tentei... e lá estava ela, me esquecendo tão rápido quanto me conheceu. Felicidade não funciona para mim cara, nada na minha vida é funcional o suficiente pra isso... – Jetson ri em resposta, alto e sonoro. Bate sua garrafa de cerveja na minha, em um brinde. – Estamos brindando a...?
─ À conclusão de que, além de burro, você também é cego meu amigo... ─ Fico admirado com sua resposta, em como Jetson consegue ir e voltar de sua personalidade cretina com tanta facilidade. Quero xingá-lo, é claro, mas quando abro minha boca uma gargalhada escapa, tão alta quanto a sua, e isso soa realmente bom, se for considerar tudo.
─ O que caralhos você quer dizer com isso?
─ Natasha também está apaixonada por você, idiota. – Suas palavras são tão fortes e pesadas como um soco bem no meio da boca, me atingem por completo, como um conjunto de flashes de dor e esperança, ao mesmo tempo.
─ Só que não faz o menor sentido, Jet... faz? – Não depois de vê-la correr para fora da corporação de braços dados com John Mason, a única coisa que havia a pedido para não fazer.
Talvez seja isso que tenha ferrado com qualquer possibilidade de, no mínimo, tentar me explicar um pouco. Porque em nenhum momento deixei claro que estava pedindo algo tão importante, e talvez por ter usado as palavras erradas possa tê-la feito imaginar que eu estava tentando mandar nela, o que seria muito idiota da minha parte.
─ Puta merda, Franklin. Ela parecia um coelhinho após duas xicaras de café ontem, depois que viu você sair sem dar qualquer pingo de atenção para ela. – Nego com um movimento do queixo, sem entender onde ele quer chegar. Do meu ponto de vista, isso parece ser quase insignificante para justificar o que Jet quer dizer. É claro que deveríamos ter conversado sobre a noite anterior no hospital, independente do que realmente aconteceu ou não. E pelo que sinto agora, não deve ter sido nada demais para ela.
─ E ainda sim, não foi comigo que ela foi embora hoje... ─ Ergo minhas sobrancelhas em sua direção e movimento as palmas da mão em sua direção, gesticulando minha conclusão tão óbvia.
– Frank, está claro que ela queria mais uns beijinhos... – Sou pego de surpresa, mas ao mesmo tempo não estou chocado, não de verdade. Por isso, nem me dou ao trabalho de perguntar como ele já estava sabendo disso tudo. É bem provável que Natasha te lhe contado tudo por livre e espontânea pressão.
E se for assim, quem sabe Jetson esteja um pouquinho certo? Mas, se estivesse, por que ela teria feito exatamente o contrário do que pedi? Sei que Natasha não é nada paciente, porque no fundo, foi isso que pedi, um pouco de paciência. Não estava pronto para contar tudo que estava entalado em minha garganta.
─ Você devia mandar uma mensagem para ela. – Jet é direto, não parece nem pensar demais e o plano perfeito já começa a fervilhar em sua mente maluca.
─ Não tenho seu número. – Ela quase engasga e deixa sua garrafa cair, o olhar que me lança é próximo ao de um feliz, e se pudesse, me rasgaria com seus próprios dentes. Ele alcança seu celular na mesa de centro e digita alguma coisa na tela, me estende o aparelho em seguida, com o nome de Natasha bem grande aparecendo na tela.
─ Como conseguiu? – Meus olhos com certeza estão arregalados agora, pois as pálpebras doem como se estivessem pegando fogo. Para falar a verdade, não consigo sentir muito bem a minha cara.
─ Lista de contatos da corporação, Morris, todos tem acesso... Por Deus, homem, em que caverna você tem vivido? – Sua voz permanece firme por dois exatos segundos, mas logo em seguida estamos os dois gargalhando mais uma vez.
O que parecem ser muitas cervejas depois, sinto que vou apagar a qualquer momento, então me ajeito no sofá e tiro somente os sapatos. Jetson já sumiu, consigo ouvir seus roncos altos à distância.
Encaro o teto frio, tentando processar todas as informações deste dia, e há coisas demais em que pensar. Preciso, de alguma forma, entender que a morte de George sempre será um peso que irei carregar, e não importa o que faça ou quanto queira evitar.
Mas, por outro lado, preciso me permitir carregar uma leveza em saber que consigo, aos poucos, cada vez menos, me sentir culpado por sua partida. Afinal de contas, não foi pelas minhas mãos que Halliwell se foi, mas sim Trey Sommers, e isso ainda era algo com que eu poderia lidar.
E, é claro, também há ela. Não faço a menor ideia de como posso começar qualquer coisa com relação a isso, nem mesmo se há algo acontecendo entre nós. E talvez Jetson esteja certo, ou muitíssimo errado, mas isso é algo que somente eu posso descobrir. Disso sei que sou capaz, afinal de contas, sou um oficial acima de qualquer outra coisa.
E há algo mais, sou paciente, muito paciente. E posso esperar pelo tempo que for. Diabos, eu desistiria de qualquer outra coisa mesmo que tenha que esperar, porque sinto lá no fundo que dessa vez, qualquer sacrifício vale a pena.
É algo pelo que realmente vale lutar.


NATASHA IVANSKI


into um cheiro muito gostoso de carne assada invadindo o ambiente. É tão bom que dá um aperto no coração, e a fome me faz abrir os olhos de supetão; a sensação é muito próxima a estar em casa.
Casa...
Sou tomada por uma culpa que é quase engraçada, pois a palavra que costumava me fazer sentir tanta dor praticamente se esvaiu do meu peito, e agora deu lugar a um sentimento tão neutro que é estranho. Aquilo que me tornava um ser cheio de angústias e tristezas parece agora só me fazer cavar esse grande buraco, vazio e escuro. E é só isso que resta.
Para Elizabeth, minha mãe, a única memória afetiva que a ligava fortemente aos Estados Unidos era o Dia de Ação de Graças. E, apesar de não ter nascido em uma família religiosa, agradecer a Deus por todas as boas novas com que sempre fomos presenteados ano após ano era uma forte tradição, e ela fazia questão disso.
Gratidão...
Se fecho os olhos por mais um segundo, consigo resgatar no fundo das minhas memórias mais seguras boas lembranças dessa data. Se puder desligar meus pensamentos, posso quase ouvir os passinhos de bebê do Niko, posso ouvi-los se transformarem em seus pés, maiores do que o normal para um garoto da sua idade, correndo pelos jardins, enquanto Katya colhia as flores mais bonitas para enfeitar a casa, porque, mesmo quando era frio demais, tão próximo do inverno, ela era boa o suficiente em jardinagem para nos trazer uma flor ou outra para decorar a mesa.
A mistura dos cheiros tão gostosos que me fazia acordar super cedo, só para estar um pouco mais envolvida na data que parecia tão especial, só para estar um pouco mais ao lado deles. Em minhas mãos, sinto o toque firme, porém doce, da minha mãe, que, mesmo ao ficar irritada por eu estar o tempo todo nas suas costas, dava um tempo da dureza para pedir ajuda ao amassar as batatas.
Em minha língua, o sabor delicioso da ave gorda que Sergei tradicionalmente caçava e trazia para os cozinheiros, a cada ano, a cada jantar, cada vez maior. E a felicidade dos funcionários da casa, sempre genuinamente querendo participar, como se fossem todos uma enorme família feliz.
Os gritos das crianças brincando no gramado, tantas famílias convidadas para nosso banquete, ainda que não estivessem ligadas a essa cultura de forma alguma, mas se faziam presentes. Ainda que tivessem crenças diferentes, o momento de agradecer e celebrar era mútuo, todos tinham algo pelo que estar gratos.
E agora, há o que agradecer? Tudo isso parece ter acontecido eternidades atrás, e não tenho muita certeza se agora esse dia tem qualquer significado. É uma grande, bela porcaria...
Rolo de um lado para o outro na cama, prolongando o momento de levantar. Mas ouço duas batidas na porta e, no momento seguinte, Nikita já está com o corpo escorado pelo ombro no batente. Em suas mãos, tem um buquê de tamanho pequeno, com girassóis bem amarelos, que parecem combinar perfeitamente com o clima ensolarado do lado de fora da janela.
─ Achei que fosse gostar. — ele diz com um largo sorriso. Nikita mantém as flores bonitas estendidas em minha direção, mas seu gesto gentil é o que me deixa paralisada.
Ao me levantar e pegar o buquê de suas mãos, não sei o que me alcança primeiro, a maciez das pétalas na ponta dos dedos ou as lágrimas que escorrem pela bochecha. Antes que eu pense sobre minhas atitudes, já joguei meus braços ao redor da sua cintura e o abraço com força, sem hesitar. Goncharov é minha única família agora, e por isso estou agradecida.
Quando já não tenho os olhos embaçados, consigo mais uma vez enxergar seu rosto que parece sorrir com todos os músculos possíveis. Sinto que também está grato por ainda me ter ao seu lado. É claro, essa não deve ser a história que Nikita gostaria de contar sobre sua própria vida, mas sei que está feliz por ao menos poder contar uma.
─ Acho que esse é o presente mais especial que já recebi. Obrigada, e obrigada por estar aqui e não desistir de tudo... — sussurro, ainda o abraçando. É sem dúvida o momento perfeito para lhe dizer o que sempre quis, mas nunca consegui.
Ter sua presença ao meu lado dia após dia é algo a apreciar sempre, é algo que preciso me lembrar constantemente, porque eu e Nikita dividimos dores que não deveriam ser compartilhadas de nenhuma forma.
Desde o massacre, não fizemos muita questão de lembrar de nenhuma outra data comemorativa. Em parte porque passamos muito tempo esquematizando nossos planos e treinando. Mas, mais do que isso, porque não fomos fortes o suficiente para continuar a repetir as mesmas tradições, o que é bem compreensível. Perdemos demais, praticamente tudo. E agora, acho que chegamos naquele momento onde sabemos que bem provavelmente só temos um ao outro.
Quando decidimos embarcar em nosso voo para a América, decidimos também pôr um ponto decisivo no que poderíamos ou não ficar remoendo, e não voltamos mais a conversar sobre o que havíamos sobrevivido. Nikita, ainda mais introspectivo do que eu, nunca entrou no assunto porque sabia que isso poderia nos quebrar em mil pedaços, o suficiente para não ter mais cola que unisse nossas partes.
Talvez tivesse que tê-lo dito que, poderia nem imaginar, mas o que me impedia de explodir em estilhaços era sua presença, sua coragem e até mesmo a fé que mantinha em mim, no que ainda poderíamos conquistar em memória à nossa família.
Se não fosse Nikita, eu não seria ninguém. Talvez, é claro, à exceção a ele.
Ele...
Não acho que daria para explicar com poucas palavras todas as sensações que Franklin me permitiu sentir com um único e singelo beijo, ou então com sua presença firme e, ainda assim, seus olhos tristes. Aos poucos, ele quase me fez acreditar que poderia voar tão perto do sol. E, como Ícaro, percebi tarde demais que quase me ceguei com seu brilho, e logo cheguei novamente ao chão. Sem asas.
Acho que posso agradecer por essa experiência também, só que não agora, em algum outro momento em que não esteja me afogando tanto nessa enxurrada de memórias e sentimentos atrelados a cada uma delas.
Às vezes acho que sinto tanto que, como uma bomba-relógio, estou programada para explodir.
─ Melinda está na cozinha... — Nikita cantarola após pigarrear forte; acho que acabou notando que encaro as flores por tempo demais, divagando em pensamentos que talvez não queira compartilhar. Mas o barulho me faz despertar. ─ Ela está cozinhando as batatas... — ele é delicado com as palavras, sabe que está lidando com uma mina explosiva que precisa de paciência para ser desarmada.
─ Ah, claro, eu vou ajudar ela... — respondo. Até porque não vejo mal nisso, só duas coisas podem acontecer aqui: ou Melinda Smirnov me faz sentir parte da sua família e passamos um bom Dia de Ação de Graças, ou então ela vai ser uma idiota e vou quebrar uns pratos bonitos, o que pode estragar o jantar. Estou torcendo mais pela primeira opção; a última coisa que quero é passar esse dia surtando.
─ Excelente, aproveita e junta essa mesma energia boa para a hora dos agradecimentos... ─ diz, estalando a língua. Seus olhos se estreitam, mas ele mantém o sorriso brincalhão e afetuoso, quase como se esperasse uma resposta sarcástica.
Eu ignoro, mas preciso morder a língua para não dar uma resposta esperta mesmo.

Me acostumei tanto a usar o uniforme da corporação no dia a dia, que é até esquisito trocar pelo vestido de seda vermelho. No mesmo instante em que paro na frente do espelho, quase consigo ouvir Katya gritar em minhas costas, sentenciando: “você sabe bem que vermelho não combina com você, te faz ficar velha”.
A recordação da sua voz ao me dar suas opiniões tão clínicas quanto arrogantes me faz querer sorrir. E talvez, eu até pudesse sorrir mais, se isso não fizesse o espaço oco em meu peito coçar tanto. Às vezes, preciso recorrer à inanidade, e fazer de conta que nada aconteceu.
─ Sinto sua falta também, irmãzinha... — sussurro para mim mesma. Os cantos dos olhos começam a arder. Não quero chorar de novo, por isso pisco diversas vezes, só para atrapalhar as lágrimas e assim, me recompor.
Ajudar Melinda não é nada difícil, como esperava. Na realidade, trocamos algumas palavras bondosas, que fazem o dia passar ainda mais rápido. Até mesmo consegui amassar as batatas sem engasgar com as lembranças. E quando achei que minha cabeça não aguentaria mais, me atentei a fazer outras coisas, como decorar a mesa por exemplo.
O problema é que logo percebi que não tenho a mesma delicadeza que a Katya para decoração, e isso doeu muito. Ainda assim, dei o meu melhor com as plantas verdes, laranjadas e folhas secas, e criei qualquer coisa que deveria ser um arranjo central para a mesa.
Também logo percebi que não sou esperta o suficiente como Nikolav, que sempre sumia tempo o suficiente pra não precisar ajudar em nada, mas tinha na ponta da língua a melhor desculpa... sempre dizia que estava monitorando os outros em seus afazeres. É uma droga, mas daria tudo para que pudesse “vê-lo” me monitorar agora enquanto mexia no celular.
Quando temos tudo arrumado, Melinda chama:
─ Todos para a mesa agora, vamos! — ela anda de um lado para o outro, anunciando para os seus convidados que o jantar está servido.
São só alguns familiares, dela e de Alexander. Mas as pessoas são o suficiente para que me sinta sobrecarregada e, quando menos percebo, estou isolada em um canto. Nikita, por outro lado, parece bem confortável e cumprimenta todos, papeando sobre assuntos diferentes. Ele parece quase feliz.
Não acho que poderia fazer o mesmo, não sei fingir tão bem quanto ele. Nem sou atriz como mama foi quando era jovem. Alguns convidados da Oryol sabem quem somos, mas mesmo assim, sinto que quanto menos atenção chamar, melhor.
─ Amigos, família... É um prazer tê-los conosco está noite. — Alexander chama a atenção. Como dono da casa e pakhan da família Oryol, era mais que esperado que começasse um brinde e agradecesse a presença de todos. E é claro que está agradecido, por que não estaria, ele tem uma família completa, mesa farta, amigos ou aliados, pessoas próximas em quem confiar. Smirnov tem seu legado intacto.
Quanto mais olho para o passado e faço essas comparações burras, mais o buraco em meu peito parece comichar. Sinto inveja de cada uma das palavras que sai da sua boca, mais inveja ainda de seus convidados. Sinto uma saudade nostálgica que é quase insuportável.
O ano de todos parece ter corrido perfeitamente, tudo em seu devido lugar e com muito sucesso, os trabalhos foram concluídos em perfeição. O pakhan parece tão contente que só falta colar uma estrela dourada na testa de cada um. Mas não na minha, nem mesmo na de Nikita.
Não somos ninguém aqui, não contribuímos com nada e nem trouxemos mais negócios à sua casa. Se ignorarmos o sucesso da operação em São Petersburgo, não tem nada mais que nos aproxime da Vory v Zakone agora.
Menos ainda da Semyonova.
─ Agradeço por nos ter recebido de braços abertos, sem questionamentos... por abrir as portas, não somente da sua casa, mas também de sua vida e nos fazer sentir em família. — Nikita diz, e meu estômago se revira. Alexander ergue sua taça de espumante e todos à mesa acompanham, em um brinde singelo.
Sei que deveria ter dito algo para complementar sua fala, mas somente a imagem da família reunida à mesa faz meu coração parecer prestes a pular para fora do peito a qualquer segundo. E não é como se não apreciasse tudo que os Smirnov fizeram por nós até o momento, não é sobre isso. Apenas há uma linha muito tênue que prefiro não cruzar sobre o que diz respeito à família, não há como comparar nossas histórias.
Alexander nos recebe por respeito à Bratva, não por amor.
─ Agradeço as oportunidades, sejam elas quais forem. — digo, e ergo minha taça também, mais uma vez todos acompanham, e é isso.

Quanto mais tempo passo no prédio da corporação, mais comum se torna a sensação de dormência que se espalha por todo o meu corpo, inclusive na mente. Como se eu pudesse esquecer o passado, que fosse por apenas alguns minutos. Como se o presente não fosse só uma grande pilha de mentiras entulhadas e empurradas para debaixo do tapete.
Depois de horas atrás da tela do computador, eliminando, limpando e organizando arquivos de casos antigos e recentes, quase sou capaz de acreditar nessa realidade. Por algumas horas, não sou , não nasci em Moscou e não faço parte da Vory v Zakone, nem mesmo sei o que é a Bratva.
Sou apenas Natasha, trabalho para o FBI em Miami, cidade que reconheço como meu lar, e minha família é Nikita. E isso parece o suficiente. Pelo menos até o momento em que minhas memórias mais queridas me preenchem, e sinto que cada vez mais fica duro viver sob uma teia de enganações.
Minto sobre quem sou, minto sobre o que sinto e isso é muito frustrante e dolorido, porque acima de tudo, sinto muitas saudades e não posso fazer nada sobre isso. Sinto falta das brigas com Sergei, e dos planos mirabolantes com meus irmãos. Sobre como seria nosso futuro, como fugiríamos e seríamos, um dia, donos das nossas próprias vidas.
Mais ainda além disso, sinto falta das conversas que tínhamos madrugada a dentro, dos almoços em datas especiais. Dos momentos que me faziam sentir como se ainda fossemos uma família comum, sem tanto peso a carregar nos ombros.

Ainda mais complicado do que viver mais um dia de Ação de Graças sem minha família inteira, é viver um segundo Natal sem sua presença. Sei que Nikita se esforçou muito no último ano, ele até mesmo preparou o ponche de frutas que a minha mãe gostava tanto. Só que não era a mesma coisa, nunca seria.
─ Você está encarando isso tem tempo demais. Tentada a ir? — Frank pergunta com um sorriso divertido nos lábios, o que me desperta para a realidade. Volto com tudo à bola de neve recheada com as mentiras que preciso contar todos os dias.
Sua pergunta, na verdade, me pega um pouco de surpresa. Estava imaginando já há alguns dias que nos ignoraríamos para sempre. Depois do banho de água fria com ignorância que ele tinha me dado, não achei nem mesmo que voltaria a olhar em seus olhos. Mas, é quase impossível de resistir, não?
─ Isso? Hm, não realmente. — respondo, e volto a mirar a tela do computador para não me perder em seu rosto lindo. O convite virtual propõe uma noite de celebração, com jantar e uma recepção festiva na casa do General Nixon, para celebrar a noite de Natal.
Não posso dizer que não estou curiosa, imagino mil coisas diferentes. Além de que, é claro, seria uma grande oportunidade para me aproximar do general e quem sabe conseguir informações mais confidenciais sobre as movimentações da Bratva, que me deixariam mais próximas dos meus objetivos.
Por outro lado, tenho a plena consciência de que uma festa de Natal seja muito mais do que posso pensar em suportar. E não é como se odiasse o feriado ou algo do tipo, mas o dia de Ação de Graças parece ter sido o suficiente, não acho que dá pra desenterrar o passado de novo e fingir que está tudo bem.
O olhar de Frank está preso em mim, consigo ver de soslaio que seus lábios se abrem e fecham algumas vezes, como se pensasse muito no que dizer. Para ser sincera, acho que gostaria de saber o que tem a dizer e, no fundo, espero que tenha aí no meio alguma desculpa por ter me feito de boba. Só que também tem aquele pingo de receio, de que suas palavras não sejam exatamente as que quero ouvir. Não sei se consigo suportar outra decepção, não vinda dele.
Contudo, seu sorriso tão bonito e gentil está ali, preso em seu rosto no segundo seguinte. A sensação de calmaria se espalha pela minha pele, centímetro a centímetro. Mesmo com sua cabeça sempre tão distante, sem dar abertura para que eu possa sequer começar a entendê-lo melhor, a presença física de Franklin é o suficiente para me fazer flutuar um pouco.
Ainda que a rejeição seja um peso a mais em minha bagagem, parece tudo bem, porque ele ainda está ali.
─ Você vai? Quero dizer, seu relacionamento com o general parece bem estreito... — a pergunta me escapa, genuína curiosidade. Me levanto rápido para disfarçar, não quero que pense que estou seguindo seus passos como uma maníaca. Fecho as pastas de documentos e as empilho, esperando o momento certo para fugir, com a desculpa de devolvê-las à sala de arquivos. ─ É importante, não? E também, claro, se divertir e tudo mais... Natal... uhul...
Ah droga, eu preciso aprender a controlar minha boca perto dele. Para minha surpresa, ele não me olha confuso, me achando doida ou algo do tipo, só solta uma risada gostosa e gira sua cadeira em minha direção.
─ Natasha... — ele sussurra como se fosse algo muito importante e secreto, e meu nome em seus lábios parece como uma poesia lida por anjos. Me deixa nervosa o suficiente para fazer as palmas da mão suarem. Frank apoia os cotovelos nos joelhos e junta suas mãos abaixo do queixo. Ele inclina seu corpo para a frente e descruza os dedos apenas por um seguro, para jogar o cabelo para trás. Seus olhos parecem duas esmeraldas afiadas em minha direção, e se eu não me cuidar, posso me ferir. ─ Minha ideia de como gostaria de passar o Natal é bem, bem diferente do que essa, e sendo bem honesto, não envolve ninguém que pretende estar lá... ─ ele afirma. Meu sangue ferve com sua resposta, meu peito queima tanto que posso entrar em combustão a qualquer segundo agora.
─ Oh. — exclamo em retorno, mas há muito mais para ser despejado agora, só que minha língua parece travar e não digo mais nada. De repente, não tenho nenhuma resposta espertinha para dar.
O espaço do escritório parece diminuir, as paredes começam a se fechar e o ar começa a se comprimir entre nós, quase como se fosse sugada para dentro de um cilindro. E tem uma nuvem de tensão sobre nossas cabeças, quase como se fossemos uma usina prestes a explodir.
─ Eu... — as palavras entalam secas em minha garganta, e acho que não raciocino muito bem, os pensamentos fogem como uma raposa, rápida e silenciosa.
Ao mesmo tempo que quero lutar contra esse sentimento, sei também que é impossível negar que tem sim algo acontecendo, ainda mais impossível é negar que Franklin não cause qualquer efeito sobre mim. Não posso e nem quero ser hipócrita para tentar discordar. Mas eu não posso, não serei um brinquedo para ninguém, meu coração está sensível demais para me permitir enganar assim.
─ Eu preciso levar isso ao arquivo. — digo concisamente, quase sem pausas, a palavras parecem saltar para fora da boca.
Recolho as pastas e fujo, sem dar um segundo de tempo para que Morris me prenda um pouco mais ali, porque se o fizesse, não sei como isso poderia acabar.

Sinto o tempo todo como se vivesse em uma prisão lotada de segredos.
Mas quando estou próxima de Franklin tenho uma sensação de liberdade que cresce pouco a pouco, e quase me sinto capaz de qualquer coisa que me deixa longe da minha verdadeira realidade. É um pouco confuso e pesado, e de vez em quando tenho a sensação de que nunca saberei lidar com isso.
A pior parte é que nunca senti nada do tipo antes, e aparentemente não sou madura o suficiente para lidar com isso. Como se tudo fossem erros acima de erros na tentativa do acerto, eu nunca sei o que dizer, muito menos como agir.
Com Ivan, eu acreditava que para mim havia um mundo de possibilidades, falsas esperanças. Agora, com Franklin, não consigo decifrar o que quer me dar, nem mesmo o que eu gostaria de receber em troca. Ao seu lado, meu peito parecia aberto para o que for, independente das consequências, como se fosse um tiro. E ainda sim, parece que estamos fugindo um do outro o tempo todo.
Só que não tenho tempo para isso, não posso ter. Eu não sei o quanto isso poderia nos custar, o que me assusta. Preciso me lembrar o tempo todo no que preciso focar minha mente e meu corpo.
Semyonova, Mikhail, Ivan...
Repito os nomes em meus pensamentos, para não esquecer qual é a verdadeira razão de estar ali, fingindo ser uma agente do FBI, carregando um distintivo tão real dentro de um universo que não existe. É apenas para reconquistar o lugar aonde pertenço de verdade.
À Bratva.
─ Ah, você tinha que ver o jeito que ele botava a mão na... — A porta de entrada para o telhado se abre e ambos, Capitão Morris e Capitão Richards, param de rir no mesmo momento em que me veem ali também. A expressão de Jetson flutua para um misto de choque e diversão, mas ele me encara quase como se eu fosse um alienígena muito engraçado.
─ Ah, eu não sabia que você estaria aqui... — Frank diz, parece incomodado ao esfregar suas mãos uma na outra. Está claro que ele ficou com vergonha, mas não sei o porquê. Talvez não me esperava ver em seu esconderijo, ainda mais com Jetson do seu lado, como se fosse um lugar exclusivo deles e, de repente, eu sabia do seu segredo.
─ Não, claro, sem problemas, meu intervalo acabou mesmo... — respondo, quase ao mesmo tempo em que ele se desculpa. Alcanço o saco de papel com alguns donuts dentro, e considero correr o mais rápido possível e penso no que isso poderia parecer.
Eu realmente não tenho tempo para lidar com isso agora. Nem a maturidade.
─ Sabe o quê? Eu acabei de lembrar que tenho que falar com o agente Carter sobre... alguma coisa. — Jetson dá as costas ao mesmo tempo que fala. Muito sutil. ─ Frank, vou te deixar com a nossa russkaya devushka agora... — Seu sotaque é horrível, mas nem tenho tempo de corrigi-lo, porque já fechou a porta num movimento rápido. Jetson estava aprendendo russo? Que engraçado.
Frank se aproxima, um pouco hesitante, os passos lentos e calculados. Evito seu olhar, porque não acho que consiga dizer nada normal depois de tentar fugir tanto. Apoio minhas mãos na barreira de proteção, mas não olho para baixo para não correr o risco de ficar ainda mais tonta. O sol brilha alto no céu, mas de repente, parece um pouco frio, pois sinto os cabelos em minha nuca se arrepiarem. Miami é tão diferente de Moscou.
─ Ah, me desculpe por mais cedo, eu não queria... — ele resmunga, mas dou de ombros, o que faz com que ele pare de falar. Não quero voltar no assunto, principalmente porque não posso explicar a ele como me senti, com seu olhar capaz de me fazer sentir tocada de um jeito invisível. Não agora.
─ Talvez eu sinta falta da neve! — É a primeira coisa que me vem à cabeça.
A neve, e o quanto dela cobria nossas calçadas nas noites mais congelantes de inverno. Eu me lembro com perfeição da camada super grossa sobre o teto de vidro nos jardins internos. Não tem como esquecer, era lindo e assustador.
─ O quê? — ele pergunta, confuso, e apoia seu corpo na barreira protetora como o meu. Posso ver com o canto dos olhos que ele não entende bulhufas e me divirto com a situação.
─ Em Moscou neva até os joelhos durante o inverno, e o Natal é sempre muito, muito gelado... uma vez, eu ouvi dizer que houve um inverno onde o gelo chegou na cintura, deixando um monte de gente presa na rua... — eu falo entre risadas nostálgicas. É difícil permitir que as memórias entrem, mas também é algo bom, e parece necessário agora. Tem dias que acho que sentir talvez seja a chave para tudo. ─ Isso... — gesticulo ao nosso redor. ─ Vai ser diferente.
─ Não faço ideia do que seja nevar no Natal, talvez algumas histórias também. — Seu olhar se desvia de mim para o horizonte, e ele também parece lembrar de coisas importantes da sua vida. Gostaria de saber o que pensa, sua história, tudo que já viveu até hoje, mas não posso, então apenas encaro o azul do oceano brilhando ao longe. ─ Abby, por outro lado, me disse que Nova Iorque parece qualquer filme que já vimos...
─ Abby? — minha voz sai um pouco mais esganiçada que o normal e engulo em seco. No mesmo instante sinto minhas bochechas queimarem, e a curiosidade repentina dá um pouco mais de espaço para a vergonha.
É claro que não pretendo admitir que senti uma pontada de ciúmes para ninguém, jamais, até porque não consigo explicar o sentimento, já que nunca tive nada parecido antes. E, de novo, não posso permitir que isso se torne algo costumeiro, não agora.
─ Minha irmã. Ela se mudou pra lá já tem alguns anos, com o marido e os filhos. — ele explica. Uma sensação boba de alívio percorre meu corpo, e meu pensamento muda rápido para Franklin brincando com crianças, como ele age perto delas e, por um segundo, imagino como teria sido se ele tivesse conhecido meus irmãos.
Minhas memórias me traem e invadem minha mente como um soco no estômago. Porque isso nunca seria possível, é claro, já que a minha vida mesmo não é nada parecida com esse papel digno de Oscar que estou me prestando.
Frank nunca conheceria Nikolav, nunca conheceria Katya, porque ambos estão mortos.
Me sinto enjoada, como se meus intestinos estivessem enrolados. Preciso aprender a controlar minhas memórias ao lado de Franklin ou qualquer outro da corporação. Também porque não são saudáveis, mas muito porque não quero correr o risco de colocar os planos em dúvida.
─ Você deveria ir à festa do general, não é tão ruim, sabe? A esposa dele conhece bem o pessoal, então tem muita bebida. — ele diz, seu tom divertido me puxa de volta para a realidade.
Quero me concentrar no que tem a dizer, mas minha mente insiste em voar exatamente aonde não quero ir. Nas mil atrocidades em que os Koslov podem ter feito aos meus irmãos. Já me peguei pensando nisso antes, mas toda vez que sequer começo a imaginar, minha cabeça parece rodar. Preciso inspirar profundamente para me concentrar, ou então posso acabar colocando meu almoço pra fora direto nos pés de Morris.
─ Você está bem? — ele pergunta, e a voz é genuinamente preocupada. ─ Parece que viu um fantasma... Aposto que odiou o convite da festa. — balanço minha cabeça em resposta, sem conseguir traduzir em palavras o que sinto.
É claro, porque Franklin não faz a menor ideia do que realmente está acontecendo em minha vida. Não faz ideia de quais são os meus sentimentos verdadeiros, não conhece a minha história e por isso jamais vai entender o peso que eu carrego em minhas costas. Uma mistura péssima de culpa e raiva.
─ Não, não tem nada a ver com a festa, é... complicado. — eu explico, jogando a cabeça para trás. Mantenho os olhos bem abertos, até que o sol incomode minhas retinas e eu sinta as lágrimas se acumularem. Como posso dizer à Frank que não me imagino celebrando o Natal porque estou quebrada por dentro? Pior do que um globo de neve estilhaçado.
─ Quer falar sobre isso? — ele questiona. E não há curiosidade em sua voz, apenas bondade e espaço livre e seguro para desabafar.
Mas não posso lhe responder, não posso abrir meu coração sem também estragar o plano. E ainda pior que isso, não faço a menor ideia de qual seria a reação que ele teria ao descobrir as mentiras, a verdadeira razão de estar ali? Será que me prenderia? Prenderia a todos os outros e entregaria tudo ao restante da corporação?
Ele me odiaria, é claro, tanto quanto odeio a mim mesma por não poder contar nenhuma parte de tudo isso. Rejeição é algo que eu até poderia aguentar, mas não ódio, não de Franklin. Não quando eu bem sei o quanto isso pode ser destrutivo para um coração.
E acima de tudo, não quero eu ser a responsável por apresentá-lo ao sentimento que envenenaria sua bondade. Porque ele pode manter essa sua máscara escura o quanto quiser, mas estou absolutamente certa de que não há espaço em sua alma para nada além de luz.
─ Eu estou aqui... — ele sussurra em um tom tão baixo que quase preciso me inclinar para poder ouvir. ─ Você pode falar comigo. Ou pode não falar nada se quiser, mas sempre estarei aqui.
Viro meu rosto para o seu, apenas para me perder em seu olhar, profundo e verdadeiro. Sinto como se Frank pudesse me consumir, e eu nem mesmo perceberia quando não restasse mais nada. Seus lábios se partem, mas não para sorrir, apenas para engolir o ar pesado em um longo suspiro.
Quero beijá-lo, por Deus, quero desesperadamente sentir o gosto da sua boca na minha, nem que seja só para uma última vez. Só que não posso, não posso sem ter a certeza de que esse único beijo seria o suficiente para destruir tudo de bom que há entre nós. Sem destruir a ele, por completo.
Por isso me contenho, e sempre guardarei nosso momento mais carinhoso em minhas melhores lembranças. Guardarei a sensação e o calor em meu coração para todo o sempre.
─ Bem, é bom ter te encontrado por aqui, porque eu queria te mostrar uma coisa que os rapazes e acharam e... acho que você vai gostar. — Agradeço mentalmente por ter quebrado o assunto, ele sabe que não vou falar nada sobre como me sinto, e é um alivio saber que me respeita a ponto de não forçar mais a barra.
Por fim, aceno em concordância, ele me guia até a escada de emergência e segura a porta até que eu passe, e então voltamos para nossa sala, deixando qualquer vulnerabilidade para trás.

Frank aperta o botão de ligar do computador novamente, e digita sua senha de acesso, aguardando até que a tela ligue mais uma vez.
─ Sente-se aqui um minuto, isso vai ser interessante. — ele diz, apontando para minha cadeira. Eu arrasto o móvel até o seu lado e me acomodo na almofada macia.
Tento relaxar meus ombros, ainda estou tensa por ter compartilhado momentos quase íntimos com ele, mas estou ansiosa para me mostrar o que quero, por isso tento prestar atenção. Cruzo os dedos, e desejo profundamente que seja algo com relação à Semyonova, porque já está mais do que na hora de dar um novo passo.
─ Isso foi depois da nossa missão. — ele começa a dizer, mas não consigo deixar de notar que ele torce o nariz, provavelmente se lembrando do resultado das nossas ordens. Meu corpo baleado e nossas bocas brincando de trocar saliva. ─ Roberts ficou de olho na região, e é óbvio, nada de importante aconteceu por ali, porque os caras não seriam tão idiotas. — Apesar de parecer um pouco irritado, Frank sorri, como se a próxima revelação fosse mudar o destino de tudo. ─ Analisei melhor as últimas gravações e pedi para que ele seguisse outra rota, dentro das mesmas regiões onde os veículos, provavelmente usados para entrega dos contrabandos passou...
─ E? — questiono com impaciência. As batidas do meu coração se aceleram, sinto o suor correr por minha coluna. Mal posso esperar para chegar a sua conclusão, fantasiando que teremos algo tão bom que realmente fosse mudar tudo.
─ Acho que temos algo para provar que o trabalho sujo acontece dos dois lados... – ele explica, e aperta um botão que muda de dela para um reprodutor de vídeos. Frank dá o play e as imagens começam a rolar.
A princípio, nada acontece, vemos apenas uma imagem de qualidade mediana em uma rua com pouco fluxo de veículos. Franklin, notando que estou praticamente roendo as unhas, pula um pouco do vídeo. Aproximo um pouco mais nossas cadeiras, para que eu tenha uma visão frontal completa do computador.
Nossos joelhos resvalam um pouco, e sinto a mesma faísca eletrizante que todas as outras vezes em que nos tocamos. O choque corre minha coluna de cima a baixo, e isso me acalma um pouco. Mas não tenho tempo para reações, estou concentrada na tela. Franklin também não tece nenhum comentário, tampouco afasta sua perna da minha.
E é no segundo seguinte do vídeo que preciso piscar diversas vezes para ter certeza do que estou vendo, para ter certeza que meus olhos não estão me enganando.
─ Pode voltar uns dez segundos? — eu pergunto, e ele concorda com um aceno e clica com o cursor no botão de voltar, exatamente no momento que solicitei.
Há um grupo de pessoas caminhando até a entrada de um prédio velho que parece abandonado. Um rapaz é escoltado por outros homens, muito maiores do que ele. Apesar da imagem um pouco desfocada, está bem claro que ele está algemado, porque seus braços estão para trás e um dos brutamontes que o acompanha está muito próximo às suas costas, quase parecendo segurá-lo no lugar.
O rapaz menor é praticamente careca, mas dá para perceber que seu cabelo é bem claro, um loiro quase branco. Em compensação, o rosto parece coberto por uma barba grossa, quase grossa demais para a aparência jovial. Ele parece mancar, mas continua caminhando para não apanhar do homem às suas costas. Bem, isso e também porque o homenzarrão segura um fuzil que parece bem mortal.
─ Pare, pare aí! — grito. Frank clica rápido com o cursor sobre a tela, congelando a imagem no exato momento em que o vídeo aumenta um pouco o zoom no rosto do rapaz. ─ Dá... dá pra melhorar a imagem um pouco? — eu pergunto, quase gaguejando entre as palavras.
Morris concorda com um novo aceno de cabeça e seleciona algumas informações. A imagem fica um pouco mais clara, não tão nítida, mas é o suficiente para ver melhor. O menino é bonito, tão bonito que faz meus olhos se encherem de lágrimas.
Não sei como ainda consigo respirar, preciso me concentrar muito para não ter uma crise de pânico. O ímpeto com que agarro o joelho de Franklin não é planejado, mas faz com ele se assuste, seus olhos buscam os meus com surpresa repentina.
Meu mundo volta à sua órbita assim que o toco, mas eu salto da cadeira logo em seguida. É um movimento automático, uma resposta do meu sistema que parece não funcionar corretamente. Eu preciso, rápido, de oxigênio, porque o que corre nessa sala não parece o suficiente.
É como se eu me transformasse numa grande pilha de nada.
Eu corro para fora da sala, ignorando a voz de Frank, que ouço no fundo me chamando com preocupação.
Não consigo respirar, não consigo...
Quando alcanço a porta de saída do prédio, quase me jogo para fora aos tropeços. Detetives parados logo em frente à entrada me encaram, como se eu fosse maluca. Aceno com a cabeça, fingindo estar bem. A última coisa que quero é alguém me seguindo, eu preciso de espaço.
Quase não alcanço meu carro, e preciso forçar várias vezes o ar pela garganta. A bile deixa um gosto forte na boca, mas me nego a colocar tudo para fora agora. No celular, com os dedos trêmulos, seleciono uma chamada para Nikita. Não é preciso de um terceiro toque para que ele atenda.
─ Oi, criança. Precisa de alguma coisa? — ele pergunta, e soa preocupado, porque não está acostumado com ligações assim de surpresa.
Mas agora é diferente, um caso de vida ou morte. Ele não faz ideia, isso vai além de qualquer plano contra a Semyonova, vai além de qualquer maneira que me imaginei destruir à vida de Mikhail, vai além da minha própria vida...
─ Nikita... — Minha voz está tão embargada que engasgo cada vez que preciso respirar. Não consigo enxergar mais nada em minha frente, é tudo uma mistura de lágrimas e vermelho. Vou precisar de muito tempo até conseguir voltar para dentro do prédio e arrumar uma boa desculpa para Franklin, e pior ainda, me desculpar por ter que ir embora.
Não vou conseguir me concentrar em mais nada hoje. Não depois do que vi, não depois de ter certeza absoluta de que não imaginei nada disso, que é real e o que Frank me mostrou mudaria o destino de tudo.
─ Nikolav... Niko está vivo!


FRANKLIN MORRIS


Não faço ideia do que foi que aconteceu ontem, mas me deixou confuso e até mesmo um pouco frustrado. Procurei Natasha por todos os cantos da corporação, até fiz questão de dar uma olhada no telhado, por garantia, mas não encontrei nem poeira de sua existência. Não posso nem mesmo imaginar o que viu no vídeo que poderia deixá-la daquela forma.
Foi quase como se tivesse perdido completamente a noção da realidade.
É claro que, lidar com tráfico humano é algo muito sensível, e sem dúvida afeta cada pessoa de uma forma diferente. Mas não posso imaginar o que poderia tê-la deixado tão mal a ponto de fugir, o que é bem preocupante. E ela também não chegou ainda, o que é ainda pior. Só espero que minha empolgação com o que encontrei nas filmagens não tenha piorado as coisas entre nós, não quero deixar tudo ainda mais difícil do que já é.
─ Você viu a Natasha por aí? — Yond ergue o rosto em minha direção, surpreso com meu questionamento. Ele parece pensar por alguns segundos, e então balança a cabeça negativamente.
─ Não, me desculpe, senhor. — ele chacoalha os ombros e eu aceno em resposta. ─ Talvez esteja na academia, por algum motivo ela parece gostar tanto de lá quanto o senhor... — não consigo evitar, sua resposta faz meus lábios se esticarem num sorriso que deve parecer meio bobo.
Um pouco de alívio toma conta do meu peito. Yond provavelmente está certo, e ela deve estar lá, descontando toda sua energia nos sacos de pancada como tantas vezes já a vi fazendo. Ainda não tive oportunidade de dizê-la o quanto a admiro dentro do ringue. Natasha usa seu corpo melhor do que poderia fazer com qualquer arma, melhor que muito dos outros agentes. Qualquer um que cruze seu caminho tem que ser muito mais do que bom para conseguir derrotá-la.
Apesar de eu ainda não a ter elogiado, não há um ou outro agente que não o tenha feito, porque sua aptidão para o combate físico é muito aparente. Não é só a habilidade, ou a precisão dos seus golpes. É o olhar profundo, os lábios presos em concentração absoluta. É o conjunto completo.
Dentro do ringue, ela está presente. Corpo e alma.
Isso só me faz admirá-la ainda mais. E é claro, também tem o fato de que estou me apaixonando perdidamente por ela, pela maneira que entrou em minha vida, pela reviravolta que tem feito dentro do meu peito. Só preciso fazer com que perceba isso.
No dia anterior, quando a encontrei no telhado, senti como se meu coração se aquecesse de uma forma que nunca senti antes, nem mesmo poderia tentar descrever a sensação de alegria em vê-la no meu lugar favorito. De saber que eu é quem tinha a levado lá pela primeira vez, e de saber que, de alguma forma, também tinha se tornado um lugar importante para ela. Meu lugar sagrado também era sagrado para ela agora.

Apesar da dica de Yond, Natasha também não está na academia, o que me deixa um pouco mais preocupado. Alguns agentes treinam nos aparelhos de musculação e outros praticam lutas com os bonecos Bob, uns até dividem o ringue.
Em um deles está John Mason. Odeio ter que imaginar, mas talvez ele saiba onde ela está, afinal de contas, a última vez em que os vi juntos, pareciam muito próximos. Então engulo todo meu orgulho, enfio o ciúme dentro de uma caixa cheia de vespas no fundo da minha mente, e as fecho a sete chaves. Não consigo mirá-lo nos olhos ao me aproximar, tudo tem limites.
─ Mason! — chamo, e não consigo conter o volume da voz, que sai mais alto do que pretendia. Ele, por outro lado, quase pula em seu lugar e bate continência assim que vê, totalmente desnecessário. Que idiota!
─ Capitão. — ele esganiça e ajeita sua postura o mais ereto que consegue ao ser pego de surpresa. — Há algo que possa fazer, senhor?
─ Hm, não. Eu só... — engulo o ar profundamente, um suspiro impaciente escapa, o que só prova o quanto fico irritado só com a sua presença. Talvez eu também seja um idiota. — Gostaria de saber se viu a Natasha por aí... — seus ombros parecem relaxar por um segundo e ele também soltar o ar de um jeito quase pesado. Ao mesmo tempo, sua expressão é de pura confusão.
─ Não, capitão. Para falar a verdade, ela não fala comigo há alguns dias já. — sua voz é quase um resmungo desajeitado, e ele coça a cabeça ao parecer pensar. Não dá para evitar, meu coração se aperta quase a ponto de parecer explodir. Eu me contenho para não sorrir, alguém tem que ser maduro por aqui.
─ Ah, entendi. Desculpe, achei que estivessem... juntos. — tento formular a frase de uma maneira sutil, ou ao menos tanto quanto possa ser. Quando se trata do que sinto por ela, parece cada vez mais difícil conter minhas expressões.
Mas sinto vergonha de mim por um momento, não deveria ficar especulando, só que não consigo me segurar. Além de idiota, talvez seja imaturo também. Não dá para evitar querer xeretar nessa situação. De repente, estou curioso demais para saber quais foram os motivos para ela ter dado a placa de trouxa do ano para ele, assim tão do nada. Eles realmente pareciam felizes.
─ Ah, acho que ela me deu um bolo, algo do tipo. — diz, coçando de novo a cabeça em movimento envergonhado. As bochechas de John estão vermelhas, e ele desvia o tempo todo seu olhar para os sapatos leves.
Me chame de filho da puta, mas não posso dizer que sinto pena. Nenhum pouco.
Ainda pior, não sinto nada por Mason. Ao menos, não seria nada, até ouvi-lo murmurar baixinho um “vagabunda”. Pisco várias vezes, considerando se realmente ouvi o que ouvi. Ele não poderia ser tão idiota a ponto de ofendê-la em minha frente, poderia?
─ O que disse, agente? — John ergue seu olhar para o meu, e vejo suas pupilas se dilatarem em surpresa, o filho da puta está apavorado! Meus pensamentos se tornam muito confusos rápido demais e tudo que consigo enxergar é vermelho turvo. Em minhas veias o sangue ferve ácido, e só consigo pensar em tantas maneiras de quebrar seus dentes.
─ Capitão? Eu...
─ Para o ringue agora, agente. Me espere lá. — sibilo entre os dentes, sem pensar nas consequências. Mason encolhe os ombros, sua expressão apavorada. Ainda assim, ele obedece minhas ordens, pois afinal de contas, eu sou o superior.
Meus passos até o vestiário são tão pesados, quase como se pudesse quebrar o concreto somente com a sola do sapato. Em menos de dois minutos, estou de volta, com calções e regata apropriados para o combate. De repente, minhas ações não são mais minhas.
Ajusto as luvas aos punhos enquanto entro no ringue. Apesar da respiração controlada, sinto meus dentes rangerem com a raiva. É isso ou morder a língua até sangrar. E não pretendo sangrar agora mais do que a boca desse babaca.
─ Frank, o que está fazendo? — a voz de Jetson chega em um grito tão alto que é como se estivesse parado ao meu lado.
Giro minha cabeça em sua direção. Jet me olha com os braços abertos, a boca também, como se estivesse esperando as palavras de tudo que está pensando chegarem às cordas vocais. Mas é então que vejo, no fundo dos seus olhos escuros, um pouco daquele divertimento de sempre.
Como o primeiro capitão, Richards precisa manter sua compostura. Por outro lado, como meu melhor amigo, ele sabe que isso é algo pessoal, e nem vai tentar se envolver porque sabe que não irei ouvir. Ele só precisa, por razões éticas, de um bom motivo para se afastar.
─ Capitão. O agente Mason desrespeitou em minha frente uma de nossas colegas, sem nem mesmo que ela pudesse se defender de suas palavras. — digo, Jet parece morder os lábios para não rir. — Além disso, senhor, ela é minha parceira e seria grande desconsideração não a defender...
Sei que ele está doido para ver como isso vai terminar. Dois mais dois é uma conta muito simples, até mesmo para Jet, e ele com certeza sabe também que estive esperando o momento para arrastar Mason para o tatame.
Assim que ele acena sutilmente com a cabeça e finge dar um passo descontraído para o lado, meu olhar se volta mais uma vez para John. Seu rosto está verde, e acho que ele pode vomitar todo seu café da manhã a qualquer momento. Em minha imaginação, torço não apenas para que eu o faça vomitar, mas também que ele apanhe tanto a ponto de ir pra casa chorando.
─ Senhor... — ele parece querer começar a se justificar, mas ergo meus punhos já enluvados e firmes em um cumprimento. Eu vou arrebentar sua cara, mas não por isso deixaria de respeitar as regras do ringue.
─ Lute, agente. — ele dá um soquinho em minha luva com um movimento tão rápido que nem sinto. Apesar dos punhos parecerem firmes, vejo que suas pernas tremem tanto quanto gelatina.
Avanço em sua direção. Eu nunca vi John lutar antes, mas imagino que não seja o melhor, pois de outra forma o veria aqui em cima mais vezes. Talvez ele só esteja aqui por causa dela, para de alguma forma ofendê-la com sua presença. Isso me deixa ainda mais puto.
Ele esquiva do primeiro soco que desfiro, mas o segundo movimento o acerta direto na boca do estômago, fazendo com que dê dois passos para trás, respirando com dificuldade. O meio sorriso que toma conta do meu rosto é impiedoso. Sinto tanta raiva que é quase como se pudesse ser consumido nas chamas do meu próprio ódio.
Mason ataca, mas noto o movimento da sua mão esquerda em direção a minha cabeça e desvio, contra-atacando no momento seguinte, em que acerto um chute em sua panturrilha. Novamente, ele cambaleia para trás com um gemido sôfrego escapando entre os lábios. Ele me encara com raiva e desgosto, e é o suficiente para avançar mais uma vez.
Agora é minha vez.
Meu punho é rápido em sua têmpora direita, o que sei que o deixa zonzo. Aproveito para acertar outro soco em seu rosto em seguida. Seu supercílio começa a sangrar, no segundo seguinte seu olho já está roxo e inchado. Lanço um terceiro soco direto em sua boca, que fica torta por uns segundos até que se recomponha.
Quando John tenta fugir, agarro seu corpo em um movimento mais rápido e forte. O empurro contra as cordas do ringue e ele tomba de cara no tatame. Me lanço sobre o seu corpo e num movimento, engancho minhas pernas contra as dele, o prendendo como uma algema.
Engancho meu braço direto em seu pescoço e preciso controlar muito a força do estrangulamento. A verdade é que eu queria, só um pouquinho, fazê-lo desmaiar. Mas John bate sua mão contra o meu braço no segundo seguinte, em desistência, e para sua sorte, eu sempre respeito as regras.
Aproveito um momento a mais para dar uma apertada em sua garganta e o solto logo em seguida, me levantando em um salto. Estendo a mão para ajudá-lo a se levantar, com dificuldade. Puxo seu pulso, como se fosse cumprimentá-lo, mas sussurro baixo em seu ouvido, de forma que somente ele ouça: ─ Espero nunca mais te ouvir falar mal da minha parceira. Na verdade, espero nunca mais te ver sequer falar com ela. Ou vamos conversar novamente como agora, talvez com um pouco mais de firmeza...
Quando viro meu rosto para olhá-lo, John está concordando tantas vezes com a cabeça que não consigo evitar sorrir para o agente, como um grande amigo. E é o sangue que escorre junto com a saliva pelos lábios feridos, deslizando pelo queixo vermelho, que me faz sentir orgulhoso. Saio do ringue já desatando o aperto das luvas.
─ Isso foi mais rápido do que eu queria... — digo para Jet, que me espera com os braços cruzados.
─ Que diabos? — ele pergunta de forma retórica, porque é claro que sabe a resposta. Ergo meu olhar para o seu e dou de ombros. — Por mim tudo bem, sempre é divertido te ver arrebentar qualquer cara por aí... só não acho que sua garota vá gostar muito... — murmura com a boca retorcida de lado, mas aponta por cima do ombro, onde próximo à porta de entrada posso vê-la, parada com a mais linda das divindades do universo.
Só que a sua cara não é a mais feliz.

Depois de me limpar, trocar de roupa e guardar as luvas de volta em seu lugar, ando até fora dos vestiários entre um misto de esperança e ansiedade de encontrá-la ainda ali. Mas acho que talvez seja melhor levar um sermão do que ter que lidar com ela fugindo novamente.
Mas, o que me surpreende um pouco, vejo que está me esperando. Sei disso porque assim que piso da área dos vestiários seus olhos estão fixamente direcionados aos meus. Poderia até me sentir um pouco animado, se não fossem os lábios apertados e punhos cerrados. Seu olhar é tão profundo e frio que eu quase mijo nas calças como John Mason parecia prestes a fazer no ringue.
Ainda assim, caminho em sua direção. Ela acompanha o meu movimento com o olhar por um segundo, mas parece impaciente, então também começa a andar em meu encontro. Nossos corpos param tão próximos que um centímetro a mais e nossos narizes se encostariam. Eu nem mesmo lembro mais qual era o motivo pelo qual a estava procurando.
─ Posso perguntar a razão pela qual acabou de destruir a cara bonita do John? — torço meu nariz em resposta, fungando pelo nariz algo que parece uma risada.
─ Se soubesse do que ele te chamou, não o acharia tão bonito assim... — resmungo em resposta. Ela trava seu olhar contra o meu, mas não pergunta mais nada. De repente, parece que ela perdeu todos os seus comentários espertos. — Olha só, eu não podia simplesmente...
─ E aí você acha que tem direito de sair socando as pessoas sem mais nem menos? — ela interrompe. Dou de ombros, me sentindo um completo idiota. Porra, eu acabei de defendê-la e é isso que recebo em troca?
Natasha revira os olhos e ameaça dar as costas, mas encosto em seu ombro antes que se vire. Não consigo evitar. Ela permanece parada nessa posição meio de lado por um momento, mas logo se vira novamente de frente para mim. Sua boca é tão bonita e cheia, sinto uma vontade absurda de beijá-la ali mesmo, na frente de todos os outros agentes.
Mas não posso fazer isso, não agora. Não pelo menos sem sequer saber se ela quer me beijar de volta. Dentre todos os meus desejos, mais secretos e profundos, o maior é aquele em que ela diz me querer tanto quanto a quero. Aqui e agora.
─ Sim, eu acho sim que tenho direito de dar uma lição em qualquer marmanjo idiota que falte com o respeito para com a minha parceira. — seu olhar suaviza, mas a linha dos seus lábios ainda permanece bem apertada.
– Eu posso me virar muito bem sozinha... — ela diz, num resmungo. Continuo admirando sua boca sem conseguir desviar o olhar, então ela puxa o lábio inferior para dentro da boca, sugando a carne com certo nervosismo. Sinto como se pudesse desfalecer apenas com o movimento sensual. É claro que ela não o faz para provocar, mas também não faz ideia do que me faz sentir agora.
Desde o meu coração até as minhas calças. Eu acho que vou acabar maluco!
─ Eu sei que pode... — minha voz soa mais como um murmúrio do que uma afirmação. E de novo, não consigo evitar tocá-la, agora no pulso, em um movimento carinhoso. Na verdade, estou esperando o segundo em que vai só se afastar e me deixar plantado de novo.
Mas ela me surpreende, de novo e de novo. Sua mão gira dentro da minha e seus dedos acariciam os meus de volta, e não tenho muita certeza, mas é quase como se pudesse ver um sorriso dançando nos lábios antes tão tensos. Ela é muito, muito linda e parece não fazer ideia do quanto. Tenho certeza que se continuasse me olhando assim por muito tempo poderia deitá-la ali mesmo, no meio da academia e fazê-la minha. Talvez, se não estivéssemos em meio a um monte de pessoas...
─ Ivanski, precisamos de você nos arquivos. — a voz de Jetson anuncia e é como se o peso do mundo fosse jogado em cima dos ombros, me amassando contra o chão da realidade. Abro minha boca, sem saber o que realmente quero dizer.
– Te vejo depois, nos tiros. — Natasha aperta meus dedos uma última vez e dá as costas tão rápido que mal a vejo se afastar.
Jetson toma seu lugar à minha frente. Enquanto o encaro, pondero sobre quais problemas teria se eu arrancasse um dos seus dentes agora, e qual deles eu arrancaria. Porque é claro que ele tem um daqueles sorrisos cretinos nos lábios.
─ Frankie, antes de me matar, peço desculpas. Mas estava quase embaraçoso vê-lo tão de pau duro... — ele solta uma risadinha sem graça, como se quisesse morder a língua logo em seguida.
O que fica ainda pior quando não consigo conter um sorriso lascivo.
─ Rá... — é o que resmungo em retorno, esfregando minhas mãos uma na outra ao dar as costas. Jet não faz ideia do quanto está certo.

Não consigo nem mesmo almoçar. Estou decidido a contar a ela tudo que sinto, independente do que me responda. É justo comigo mesmo tirar tudo isso do peito. E aí, se ela disser não, tudo bem, é não. Vou ter que aprender a viver com isso.
Enquanto estou andando até a sala de tiros, sinto como se segurasse meu coração nas mãos. Primeiro de tudo, porque estou mesmo prestes a entregá-lo de bandeja e gratuitamente, então não faz muita diferença em como o carrego.
Ela é a primeira pessoa que vejo ao entrar no espaço, por é quase como se tudo que sinto agora parecesse gravitar em sua direção. Mas ela está falando com o agente Mason, e perco qualquer pingo de compaixão que tinha da sua cara fodida. Rapidamente, estou preparado para arrebentar o que restou. Seu olho está tão inchado e escuro que é quase impossível de enxergar qualquer parte da córnea, e eu espero, de verdade, que isso fique assim por um bom tempo.
Assim que ele me vê, volta a encolher os ombros e diz algo para ela, que se vira em minha direção e acena com a cabeça. Ela volta a falar com John rapidamente, e ele concorda com a cabeça baixa. Desvio minha atenção e vou até o estande de tiros. Não tenho nada a ver com essa conversa, e mesmo sendo idiota, sei até onde posso meter o meu nariz ou não.
Visto o abafador auricular e os demais equipamentos de proteção, os óculos apertando o crânio. Em seguida, escolho uma das armas presas à parede. Analiso a Taurus .9mm em minhas mãos, e sei que apesar de pequena é ótima para passar o tempo. Carrego a arma com balas o suficiente para uma sessão de tiros completa.
O alvo imóvel ao fundo parece fácil demais, é muito simples atirar com a certeza de que o tiro vai acertar bem na parte central do papel. Tudo parece mais fácil quando não envolve nenhum sentimento.
Sinto sua presença no segundo seguinte, parada ao meu lado quase como se fosse uma extensão de mim. Engulo pesadamente, em seco. Ajusto meus pés na melhor posição e concentro meu peso na perna esquerda. Ergo os braços, segurando a arma bem em direção ao centro da mira. Direto no coração.
Dizem que é onde mais dói.
Respiro profundamente uma vez, fecho um dos meus olhos e seguro a respiração, concentrando minha visão no alvo alguns metros à frente. Sinto meus lábios se apertarem em uma linha firme e reta.
Meu dedo desliza facilmente pelo gatilho e o aperto, uma, duas, três, até dez vezes. Apesar do primeiro tiro acertar no peito do alvo, logo abaixo do coração, os demais acertam bem o meio do alvo, bem onde mirava.
Me lembro dos anos de prática, até que conseguisse acertar cinco tiros seguidos no mesmo lugar da mira. Agora, imaginar um corpo de verdade no lugar do alvo inanimado, tirar sua “vida” parece tão simples quanto respirar.
Ao meu lado, vejo os lábios de Natasha se moverem. Mas por causa dos tiros e dos abafadores, não consigo ouvir o que me diz.
─ Hun? O que disse? — pergunto, ao mesmo tempo em que aciono a trava da arma e a posiciono no lugar. Retiro os abafadores e volto às estantes, para devolvê-los ao lugar, junto com os demais.
─ Eu disse que pedi para John me contar o que aconteceu, e... do que me chamou também. — ela repete, dando de ombros enquanto dá a volta por trás das minhas costas até parar e então se encostar na parede ao lado da estante.
─ E... o que ele disse? — retiro os óculos de proteção e também o colete, os guardando junto com os demais equipamentos em suas caixas e pilhas.
─ Ahm, o que suponho ser a verdade. — ela parece torcer o nariz e não me contenho, soltando uma risada baixa em resposta. Natasha rola os olhos em minha direção e começa a vestir um colete do tamanho apropriado. — Eu disse pra ele ficar longe ou então você também arrebentaria a bunda dele... — seus ombros voltam a chacoalhar, e sinto uma vontade repentina de apertá-la em um abraço.
─ Você está certa, eu faria mesmo, sem pensar duas vezes. — afirmo e ela volta a rolar os olhos. Eu aponto para o seu colete, pois ela parece estar tendo um pouco de dificuldade para se ajustar no tórax magro. ─ Quer ajuda? — ela concorda com um aceno de cabeça. Eu a ajudo a apertar os fechos do equipamento, com delicadeza e sem pressa, aproveitando o segundo de proximidade. ─ Posso te perguntar uma coisa? — De repente, me lembro do porquê a procurava durante a manhã, antes de toda a confusão.
Não consigo deixar de notar que não aparenta mais estar tão nervosa ou ansiosa, como estava na tarde anterior. Não parece nem mesmo um pouco incomodada, mesmo depois de ter surtado e fugido.
─ Claro. — ela responde, dando um passo a mais para o lado para poder me olhar.
Seu perfume flutua em minha direção, tão delicioso, que preciso me concentrar para não me perder de novo. E ainda assim, aspiro profundamente, torcendo para que esse cheiro fique preso em minhas narinas por tempo suficiente para não esquecer jamais.
─ Por que saiu correndo ontem? Quando estávamos analisando o vídeo daquele rapaz algemado? — pergunto tentando ser sutil, mas sem conseguir. Não quero deixá-la incomodada de novo, não quero que sinta raiva de mim mais uma vez.
─ Ahm, nada demais, eu... — ela parece pesar cuidadosamente todas as palavras e desvia seu olhar para a estante, alcançando a mesma arma que usei. ─ Por um segundo, pensei que era alguém que conhecia, e fiquei um pouco assustada. Precisei de um minuto para me acalmar e acabei ficando nos arquivos até dar a hora de ir embora.
Alcanço um dos abafadores da estante e encaixo em sua cabeça, prendendo os cabelos atrás das orelhas delicadas. Ela não me encara nos olhos por muito tempo, e desvia o olhar para qualquer lado da sala. Sei que está mentindo, que tem algo mais que não quer me contar, mas não a pressiono, teremos tempo para voltar no assunto em outro momento.
─ Precisa de ajuda com isso também? — indico a arma com um meneio de cabeça. Ela parece pensar na proposta por alguns segundos, mas acaba concordando de volta, e abre um sorriso travesso antes de passar a língua por toda a extensão dos lábios. Minha nossa, eu realmente vou acabar morrendo.
Me ocupo com alguns dos equipamentos mais uma vez e a sigo até um dos estantes. Me posiciono atrás das suas costas como já fiz antes, e ela ajusta seu corpo na melhor posição para atirar. Deslizo meus dedos por seu braço até chegar em seu cotovelo, seguro firme logo na curvatura do osso, firmando sua mira.
Com a outra mão, encosto a ponta dos dedos em sua cintura, e me sinto um filho da puta, mas não consigo evitar de acariciar sua pele sobre o tecido da camisa, em um movimento delicado, mas que para mim, parece durar a eternidade. Anseio para que não rejeite meu toque. E ela não o faz. Graças aos céus, as proteções separam os estandes. Não quero ninguém espiando agora.
Natasha dá um passo para trás, seu corpo se encosta completamente no meu. Não há um centímetro dela que não possa sentir agora, e posso estar ficando maluco, mas tenho certeza de que ela inclina um pouco sua cabeça para trás, de modo que a apoia em meu peito.
Dessa vez nem tento evitar. Beijo o topo da sua cabeça, e aspiro profundamente o seu cheiro inebriante mais uma vez. Os cabelos macios fazem cócegas em meu rosto, mas é um momento tão íntimo e agradável que não quero estragar com uma risada.
Natasha segura a Taurus com apenas uma das mãos, mas não treme mais como já a vi fazer antes, e o metal não se move nenhum milímetro para longe da posição certeira. Ela segura minha mão e arrasta meus dedos até sua barriga por debaixo da camisa. A pele macia e quente parece se derreter ao meu toque. Nem mesmo escolhi tocá-la dessa forma e estou tão duro que se me mexer demais, sinto que as braguilhas podem estourar.
Enterro meu nariz nos fios do seu cabelo e beijo sua cabeça mais uma vez, a puxando um pouco mais contra mim. Perpasso meus lábios pela lateral da sua cabeça, pelo que consigo arrastar meus lábios entre o protetor, até alcançar seu ombro. Roço minha boca pelo tecido da camisa, desejando que estivesse usando blusa de alças. Mas ao invés disso, apenas apoio meu queixo em seu ombro coberto.
Pelo canto dos olhos, a vejo sorrir ao mesmo tempo que morde seu lábio inferior com força e fecha um dos olhos, tentando manter sua concentração no alvo de papel. Atrevido, roço a carícia dos meus dedos em sua pele até chegar às costelas. Ela parece endurecer um pouco e se desconcentrar, estamos tão colados que sinto o ar escapar dos seus pulmões.
Mas ela não hesita, e então atira.

─ E o que é que tinha no vídeo mesmo? — Jetson questiona, mas acho que no fundo não estou totalmente presente nessa conversa, talvez apenas de corpo. Meus pensamentos insistem em flutuar constantemente para outro lugar.
Tudo em que consigo pensar é ela, em sua pele macia e quente, em cada centímetro do seu corpo contra o meu. Meus dedos chegam a formigar só de relembrar a proximidade. Choques atravessam minhas extremidades, como se fossemos raio e trovão, complementando um ao outro no momento.
─ Han? Falou comigo? — Viro meu rosto em sua direção. Jet abre os braços em um movimento frustrado e faz uma careta idiota com as sobrancelhas levantadas.
─ Que porra, Frank! Não sei nem se quero saber onde foi que perdeu a cabeça. — ele resmunga, os olhos arregalados. Richards ajeita a coluna, mudando seu lugar na cadeira e apoia o cotovelo na mesa ao lado. ─ Ou então qual cabeça... — e indica a parte inferior do meu corpo.
Eu gargalho em resposta. Nem eu sei se consigo explicar no que exatamente estou pensando. Amigos, amigos, e qualquer outra coisa à parte. Não é algo que queira dividir, nem mesmo com Jetson. Principalmente com Jetson.
─ Não tinha nada demais no vídeo. — concluo, voltando ao assunto principal.
Precisava reportar a ele tudo que tomamos nota e só então planejaríamos os próximos passos. É claro que, antes de qualquer coisa, precisávamos descobrir quem é o rapaz do vídeo, para só então decidir o que poderíamos fazer com a informação. E mais do que isso, sinto de repente que preciso descobrir quem é o garoto, e até onde ele pode estar envolvido com Natasha. Não é possível que ela tenha ficado tão abalada por um simples desconhecido.
─ Só um garoto, entre 17 e 20 anos, não mais que isso... acho que estavam o levando para um prédio abandonado, sem razões aparentes, mas, estava algemado. — Jet ergue sua sobrancelha novamente, pensando sobre o assunto.
─ Certo. Nunca o vimos antes? — nego com um aceno. Em retorno, ele entorta seus lábios em uma careta e parece mastigar a parte de dentro da bochecha. ─ Tráfico, de novo? — Questiona.
─ Provável, mas por que apenas um? E por que um garoto? Geralmente são mulheres. — afirmo, e ele chacoalha a cabeça e os ombros ao mesmo tempo. Não sei dizer quem está mais perdido entre nós. ─ Você acha que ela o conhece? — ele gesticula mais uma vez com os ombros.
Não tenho certeza disso, mas é praticamente impossível que não tenha algo bem errado acontecendo aqui, a coisa toda parece feder demais, e ela também saiu correndo sem nem pensar em olhar para trás. Isso com certeza não é algo muito normal. Mas ainda vou perguntar sobre o assunto de novo, só tenho que encontrar um jeito de abordá-la sem parecer intrusivo demais. Até porque tudo que quero, no fim das contas, é conhecê-la e entendê-la um pouco mais. E, se necessário, ajudar também.

Espero que o prédio fique praticamente vazio. O turno da noite é sempre o mais tranquilo, e o pessoal que fica por aqui costuma não sair da sua sala, a não ser que tenha que resolver alguma emergência.
Essa é a hora que mais gosto de usar a academia, porque está totalmente vazia, as equipes da noite não a utilizam durante o período de trabalho, geralmente fazem isso antes do expediente começar, como um aquecimento. Além disso, Natasha me disse que estaria aqui antes de ir para casa, que ficaria para alguns treinos até mais tarde porque precisava “esfriar”. Nem imagino o porquê.
Enxergo suas costas suadas assim que entro no local. Está socando uma punch ball com tanta força e determinação que parece prestes a arrancar o aparelho do lugar. É claro que ela também percebe minha presença, mas não me cumprimenta, nem mesmo me olhar, apenas continua com o seu treino concentrada. Morde e assopra, esse parece ser nosso estilo.
Deixo minha mochila em um dos bancos. Tiro a camisa em um único movimento sobre a cabeça e jogo o pano de lado. Busco as fitas de proteção dentro de um dos bolsos e enrolo as mesmas ao redor das mãos, a fim de não machucar os dedos enquanto estiver socando. Não estou com nenhuma pressa.
Natasha então troca de aparelhos, escolhendo um boneco Bob na sequência. A academia é tão silenciosa e escura nesse horário que é quase lúgubre e sinistra. Só não o é de fato, visto ao barulho seco que suas luvas fazem ao encontrar o emborrachado do aparelho.
Admiro o suor escorrer desde sua nuca, logo abaixo dos cabelos presos em um coque firme, até suas costas cobertas pela metade por um top justo. Sigo até o saco de pancadas ao seu lado, mas não consigo me concentrar no aparelho por muito tempo porque sua presença me deixa perdido. Preciso dizer o que estou sentindo de uma vez. Tenho guardado tudo por tanto tempo, de todo mundo, e não acho que isso seja justo, nem comigo e nem com ela. Talvez seja a hora.
Dizer que não estou receoso com sua resposta é uma grande mentira. Mas minha vida é um peso que não quero mais carregar sozinho, não quando não tenho mais dúvidas do que sinto. Então não há mais razões para esconder meu passado. E se for rejeitado, bem, acho que aí vou ter que dar um jeito de lidar com isso.
Ela continua socando com raiva o Bob enquanto me aproximo. Escolho um lugar mais próximo para me sentar num banco ao lado. Perto o suficiente para que possa me ouvir, e ainda assim, para que tenha seu espaço livre se quiser apenas ir embora.
─ Quando tinha dezessete anos, eu era ainda mais idiota do que sou agora. — murmuro. Ela não desvia os socos do aparelho. Isso é bom, eu não me importo, só preciso tirar tudo do peito. — Eu estava na praia com alguns amigos, tinha acabado de terminar a escola, estávamos nos divertindo... eu queria ser um contador, acredita? — engulo minha própria risada, o peso nos ombros parece diminuir a cada palavra que profiro. Não quero deixar escapar nenhum detalhe, mesmo quando chegar na pior parte. Porque eu sei, mesmo que conte tudo ou não, nunca vou me perdoar completamente.
─ George, meu melhor amigo desde... sei lá, a vida toda, decidiu brincar com umas mulheres, elas eram lindas, como se tivessem sido arrancadas direto das páginas de uma revista. — dou de ombros, fechando os olhos para tentar me lembrar o máximo que podia daquele dia. É muito pesado, mas agora é um momento de libertação. — Trey Sommers estava com elas, não sabíamos disso é claro, e ele atirou em todos nós. — cuspo as palavras com desgosto. Finalmente chamo sua atenção, porque ela para de bater no Bob e apenas me ouve.
─ Ele me acertou bem aqui... — Aponto para o lugar na cabeça, acariciando a cicatriz por baixo dos cabelos sempre compridos.
As palavras saem fáceis, mas meu peito dói, como se estivesse sendo espancado por cada uma delas. Ainda assim, me sinto um pouco medicado cada vez que volto a falar.
─ Halliwell não deu a mesma sorte. Trey acertou seu olho e a bala atravessou a cabeça... — Minha voz quebra um instante, aperto meus dedos com tanta força nas palmas das mãos que sinto machucarem onde a unha encosta. — Precisei de algumas cirurgias e tempo para me recuperar, mas Georgie... — Ela finalmente volta seu olhar para o meu e eu somente a encaro de volta. — George precisou de um caixão.
Natasha não parece aguentar o choque e cobre a boca com uma de suas mãos. Contudo, ela não se aproxima, não diz nenhuma palavra de conforto, só fica ali parada prestando atenção. De certa forma, fico agradecido por isso, porque não sei se poderia lidar com sua pena.
─ Não houve uma noite sequer nos últimos anos que eu não tenha sonhado com o sangue do meu melhor amigo espirrando na minha cara. — confesso. Desvio meu olhar para o chão, porque sei que as palavras seguintes serão as mais honestas, mas também as mais difíceis de dizer em voz alta. — Devia ter sido eu, sabe? Fui eu quem disse que a brincadeira seria estúpida e engraçada...
E então elas chegam, teimosas e quentes, escorrendo em rios bochechas abaixo. Sinto tanta culpa e vergonha que, se pudesse, cavaria um buraco ali mesmo para enfiar minha cabeça e ficar assim até o fim dos dias.
─ Depois disso, não conseguia sair de casa, não conseguia falar com ninguém, não podia ir à praia... — Dou de ombros, quase rindo em meio ao choro sôfrego. — Aquela noite em que te levei para conhecer Miami... e depois Key West, foram as primeiras vezes em anos, depois de fugir tanto...
Não consigo olhar em seus olhos como deveria, porque tenho medo do que possa enxergar de volta. Eu entenderia se ela me odiasse agora, se nunca mais quisesse se aproximar. Meu maior temor é que me veja com os mesmos olhos que me permiti olhar no espelho por tanto tempo. Como se fosse um monstro preso em sua própria escuridão gélida.
─ Jetson me ajudou muito, é claro. Depois que o conheci ele esteve lá sempre, mesmo sabendo a verdadeira motivação para ter ingressado na academia... ele nunca me criticou, pelo contrário, ele sempre me empurrou para cima, sempre para o crescimento... sede de vingança ou não. — Ela parece sorrir por um momento, mas ainda sinto tanta vergonha que não consigo acompanhar seu gesto. — Foram anos difíceis pra caralho...
Não quero mais falar sobre George, nem sobre Trey, não quero continuar batendo na mesma tecla o tempo todo. Porque eu sei que nunca vou ser capaz de me perdoar de verdade pela morte do meu melhor amigo. Eu só precisava desabafar, só precisava que ela soubesse dos meus segredos e entendesse minhas desculpas por ser tantas vezes tão evasivo.
─ Até você me dar aquele soco bem no meio da cara... eu meio que precisava daquilo. — Agora, ambos rimos baixo, apesar da dor crua e pungente. — E no segundo seguinte eu senti que queria te dizer tudo, te contar toda essa história pesada, senti que queria que me conhecesse de verdade, sem máscaras. — Apoio os cotovelos nos joelhos e cruzo os braços, respiro fundo e ergo meu olhar para o dela, sem desviar agora.
─ Aí... aí você tomou aquele tiro por minha causa, você pulou na minha frente e eu tive que te carregar desacordada até o carro. — Meu peito se aperta ainda mais forte, revivendo a mesma frustração que vivi antes. — E quando percebi que poderia te perder, mesmo sem sequer ser minha, acho que... acho que me fechei de novo. Não acho que posso perder alguém desse jeito de novo. — confesso, limpando as lágrimas dos olhos para desembaçar um pouco a visão. — E não consegui te encarar no dia seguinte porque eu fiquei com medo disso, medo de te encontrar para te perder de novo. No dia seguinte foi o aniversário de morte do George, eu não pude separar as coisas aqui dentro... — bato em meu próprio peito, com força. — Se eu soubesse que teria que te ver correr na chuva com o John, teria eu mesmo te levado um guarda-chuva... — Dou de ombros, o ciúme que senti quase palpável agora.
─ Aqui no escuro eu me conheço. Mas você tem sido luz, e ilumina toda essa parte da vida que me diz que eu posso sentir coisas boas que nunca mais achei que pudesse sentir novamente. Jet me disse logo de cara que eu ainda lamberia suas botas e... porra, ele sempre esteve totalmente certo. — Limpo a garganta em um pigarro, ele sempre esteve certo e isso agora é muito fácil de admitir. — Não preciso que sinta o mesmo... — Volto a encarar o chão e engulo em seco. Sem arrependimentos agora. — Sou fodido demais para ser amado, mas preciso admitir, acho que mais para mim mesmo que estou me apaixonando por você a cada dia que passa, e eu não acho que dê mais para só... — Sou calado, por sua boca e seu corpo.
Eu não vi quando ela se aproximou, não notei quando segurou meus braços até que se descruzassem e se sentou em meu colo, sua boca grudada na minha. Estou tão impactado com sua atitude que acho que meu cérebro não consegue responder rápido o suficiente. Porra, eu queria beijar ela tem tanto tempo. Meu Deus, é quase tempo demais! Isso está finalmente acontecendo e, de repente, não consigo mexer minha bunda para corresponder.
Além disso, tem algo a mais nesse beijo, não é inocente como o outro beijo que trocamos antes. É uma sensação visceral, de necessidade e presença. Há uma ardência muito mais latente em seu toque, seus dedos se enrolam em meu cabelo quase com ferocidade, como se lá no fundo ela estivesse com raiva de mim. E tudo bem, eu sinto raiva de mim mesmo o tempo todo.
Suas pernas se ajustam ao redor da minha cintura e me apertam, posso senti-la tão quente contra mim que preciso prender a respiração enquanto a beijo, ou de outra forma vou explodir dentro das calças. Preciso corresponder melhor ao seu toque, preciso!
Então seguro sua cintura com uma das mãos, abraçando-a até espalmar a mão em sua coluna. Com a outra, agarro sua anca, apertando sua carne lascivamente, porque não há nem sequer tempo para pudor agora. O tecido fino das suas roupas deixa o contato ainda mais íntimo, me fazendo perder o juízo dos pensamentos e sinto como se flutuasse entre a realidade e um mundo completamente novo. Um em que só eu e ela existimos.
Meus dentes raspam em seu lábio inferior, e ela corresponde com um gemido, seus dedos ainda mais apertados contra meus cabelos agora, quase sinto o couro cabeludo arder. E não me importo, trocaria qualquer coisa para sentir essa dor constantemente, desde que ela é quem estivesse me machucando.
Afasto nossos lábios por um segundo apenas para admirá-la, e também para respirar. Suas bochechas estão vermelhas e ávidas, muito por causa do cansaço do treino, mas também há algo a mais, vejo isso em seus lábios úmidos e convidativos. Estou tão enfeitiçado e não estou nem aí para isso, poderia ficar assim para sempre.
Beijo sua maçã do rosto e deslizo minha boca por sua bochecha e queixo, até chegar em seu pescoço, onde não me contenho em passar a língua, saboreando a pele salgada e macia. Preciso de mais disso, preciso tirar suas roupas e não fazer isso aqui mesmo é a coisa mais difícil do mundo. Mordo sua pele com delicadeza e ela solta um gemido arrastado em resposta. Seu tronco todo parece vibrar, e o atrito causado pelo tremelique me faz perder o último pingo de razão.
Abocanho seu pescoço com ainda mais apetite, sugando sua pele delicada para dentro da minha boca. Seu gosto é tão bom nessa região que poderia fazer disso meu café da manhã de todos os dias. Minha mente insana quase grita em como será o gosto no restante do seu corpo.
─ Eu quero muito você, quero agora, mas não vou fazer nada se você não quiser... — me afasto dos beijos em seu pescoço por um momento, só para encarar seus olhos. Espero, de verdade, que veja todos os meus pensamentos através deles agora, que entenda a veracidade de tudo que disse e sinto.
Não acho que seja do tipo romântico, nunca mandei flores para nenhuma mulher em minha vida. E é muito maluco pensar que por ela eu faria, qualquer uma dessas coisas. Por ela eu viraria o mundo de cabeça para baixo. Tudo que preciso é de um sinal de que ela está ok com isso.
─ Frank, tudo que quero é você. Não percebeu isso ainda? Desde o primeiro soco na cara... — Ela ri de um jeito doce. É o meu sinal, tudo que precisava ouvir.
Natasha precisa exatamente do mesmo eu, ela quer o mesmo que eu agora. Só não pode ser aqui, não correndo o risco de expô-la, ou a mim. E ainda além disso, não quero o risco de ter ninguém nos atrapalhando porque, sinceramente, se a beijar de novo agora, não serei capaz de parar. Nem quero.
Engancho meus braços por baixo de suas coxas e puxo seu corpo para cima, a levantando comigo. Vestiários. É o único lugar para onde posso leva-la agora... porra, isso não é nada convencional, nem romântico... pelo menos vai ter uma porta. Então ela beija meu pescoço, me trazendo de volta a realidade como se dissesse que está tudo bem ser dessa forma. Sua boca é demorada e molhada contra minha pele, e explora toda a extensão que consegue com seus lábios macios. Natasha solta gemidos que parecem canções ao fundo de sua garganta e acho que posso enlouquecer.
Não esperava nada disso quando decidi revelar tudo que penso e sinto. Talvez um beijo e um perdão, mas isso está bem longe de como pensei que ela poderia responder.
─ Meu Deus do céu... — É tudo que consigo dizer ao senti-la chupar a curva da minha clavícula e me fazer ficar ainda mais de pau duro. Meu cérebro me dá os comandos de forma automática, ainda bem, porque não sei como consigo tanto autocontrole. Sinto como se estivesse sendo tocado pelas mãos do paraíso.
Assim que alcançamos o vestiário masculino, mais próximo à academia, fecho a porta às minhas costas. Solto um dos braços com que a seguro apenas para girar a chave que está ali, nos trancando do lado de dentro. Mais uma vez agradeço pelo espaço estar sempre vazio a noite, não sei se aguentaria ter que ir dali para outro lugar.
Não é exatamente como imaginei o momento, e imaginei isso tantas vezes quanto posso contar. Ao mesmo tempo, parece perfeito, parece sincero. Como se toda a minha existência, minha vida neste mudo tivesse sido apenas uma ilusão até aqui. E agora, segurando seu corpo contra o meu, todas as peças perdidas parecem se encaixar.
Apoio seu dorso contra a madeira da porta e pressiono meu quadril contra o seu, apenas por um segundo, só pra ouvi-la gemer novamente. Acaricio sua cintura nua com minhas duas mãos enquanto me esforço para segurá-la apenas com meu torso e quadril. Natasha volta a atacar meus lábios, e provo então um novo tipo de beijo, como se a cada vez que nossos lábios se tocassem eu fosse novamente apresentado a ela, como se conhecesse uma outra faceta.
Perco o ar, ou talvez apenas tenha esquecido de respirar. Tempo suficiente para ficar tonto e perder um pouco dos sentidos. Não me importo, é a melhor sensação do mundo. Suas mãos deslizam por meu peito, aproveitando minha pele também nua com a ponta dos dedos sensíveis. Cada lugar que toca parece queimar, meu corpo todo parece prestes a entrar em combustão. A verdade é que poderia começar diversos incêndios apenas com o que sinto por ela agora.
Afastar nossas bocas parece algo realmente difícil a fazer agora, mas precisamos nos separar por um minuto ou só vamos fazer isso para sempre. O que não é uma ideia tão ruim. Ela desce do meu colo e tira os tênis, forçando um pé contra o outro. Faço o mesmo, mas não tiro minhas mãos da sua cintura, não quero correr o risco de descobrir que isso tudo não passou de imaginação. Suor escorre pela lateral da minha cabeça e acho que estou nervoso como o diabo, meus dedos tremulantes.
A desejo tanto, de corpo e alma, nunca desejei tanto alguém assim. É impossível não ficar receoso de cometer qualquer deslize, principalmente quando chegamos tão longe. Arrasto meus dedos cintura acima, e ela morde os lábios com força, o que me faz pensar que não acho que vá aguentar muito tempo. O tecido da calça, antes meio largo, agora parece apertado demais.
Passei tanto tempo querendo que ela me desejasse tanto quanto tenho a desejado, quis tanto ser beijado por ela como quis beijá-la que agora, com tudo assim tão real, me sinto até um pouco perdido e não sei por onde começar. Tenho absoluta certeza de que ela sabe o poder que exerce sobre mim, pois cada um de seus beijos é lento e doloroso contra minha pele, e seus olhos parecem adorar me ver tão rendido.
Ela continua a me provocar, correndo seus dedos pelo cós da calça. Minhas pernas parecem quase falhar com seu estímulo, mas esse é um jogo que dois podem jogar. Beijo seu rosto com delicadeza uma última vez e me afasto um pouco, seu olhar em seguida é quase confuso. Encosto minha boca em seu pescoço, depois clavícula, ombro e enfim seu tronco com beijos cálidos. Ela suspira quando deslizo meus lábios entre seus seios, respirando seu cheiro profundamente.
Engancho meus dedos na barra do seu top, e espero com o olhar que ela me dê mais uma segura confirmação de que posso continuar. Em resposta, ela apenas ergue seus braços sobre a cabeça e eu puxo o pano para cima. Tento não desviar meu olhar do seu, parece quase impossível, seus peitos pulam direto na minha cara e porra, seu corpo nu está faz muito tempo entre os meus devaneios mais inapropriados.
Acho que a encaro tanto que ela quase se encolhe, mas não quero que ela faça isso comigo jamais. Só quero que entenda que é o ser absolutamente mais lindo que já botei os olhos nessa Terra, e que nesse momento eu a adoro com toda sua divindade. Porque é assim que a vejo, como uma deusa.
─ Você é tão linda... — Ela rola os olhos, me fazendo rir baixo. O que mais poderia fazer para que acreditasse em mim, além de adorá-la com meus olhos, mãos e boca? Afasto os braços que cobre um pouco os seios e seguro seus pulsos atrás das costas, presenteando a mim mesmo com a visão perfeita do seu tronco descoberto.
Ela não é apenas linda, é arte. E arte não foi feita apenas para parecer bonita, mas para te fazer sentir algo e, caralho, ela não faz ideia de tudo que me faz sentir agora. E bem, seus peitos apontados direto na minha cara agora com certeza são o trabalho de um artista. Eu já disse antes, é a porra de um Botticelli!
─ Frank... — ela chama em um sussurro. É claro que me pegou encarando e, talvez, babando um pouco também. Me levanto um pouco novamente para acariciar sua bochecha com a ponta do nariz, a provocando. Solto seus punhos apenas para que ela abrace minha cintura, mas sou pego de surpresa quando ela agarra minha bunda, puxando meu quadril contra o seu com firmeza. Não sei explicar o barulho que escapa da minha garganta, quase um rosnado, que a faz rir.
Ataco seu pescoço com minha boca uma última vez, com bem menos delicadeza agora. Corro meus lábios por sua pele, explorando cada centímetro de sua fortaleza como se mal pudesse ver a hora de encontrar um tesouro. Ela geme alto quando minha boca encobre seu mamilo e agarra minha nuca, me puxando ainda mais contra ela. Meu bom Deus!
Me ajoelho em sua frente e ela sabe exatamente o que pretendo fazer. Com um sussurro peço que seja minha. Ela respira profundamente quando chupo a pele sensível da sua barriga, me deixando ainda mais excitado. Eu preciso tirar logo a porra das calças. Dobro um pouco do tecido da sua calça apertada, puxando alguns centímetros para baixo apenas para revelar um pouco mais de pele e uma calcinha de renda clara.
─ Porra, linda... — minha voz é só um som gutural agora, mas meus dedos continuam a deixa-la arrepiada.
Beijo e mordo suas coxas por cima do algodão, ela agarra meus cabelos em resposta como já fez antes. Eu preciso dela agora, não sei quanto mais consigo aguentar a tortura que eu mesmo criei. Encaro seus olhos, puxando mais suas calças para baixo. Ela me admira de volta, com carinho e tesão.
─ Por favor... — seu pedido é baixinho, quase difícil de ouvir. Mas seus olhos suplicam o suficiente para meu estômago se contorcer de ansiedade. Quero dizê-la que poderia passar a eternidade toda assim, de joelhos à sua frente, cedido completamente as suas vontades e seria o homem mais feliz do mundo por isso. — Frank, por favor... — Ela volta a repetir e, dessa vez, faço exatamente o que parece me pedir.
Ela separa suas pernas o suficiente para que eu consiga terminar de tirar sua roupa com mais facilidade, apesar de ter pressa, me aproveito do momento e confesso, vê-la se contorcer com o toque cada vez mais íntimo é a tortura mais prazerosa de todo o sempre. Ajusto meu peso contra o joelho e seguro uma de suas pernas. Massageio sua pele macia e delicada, então a apoio contra meu ombro. Sinto seu calcanhar roçar minhas costas, quase como se quisesse me fazer um carinho de volta.
Seus dedos ainda estão em meus cabelos, enrolando os fios levemente em seus dedos finos. Beijo desde sua panturrilha, traçando uma trilha de carícias com a boca até a parte interna de suas coxas, onde me demoro um pouco mais, mordendo e chupando a pele fina e sensível, apenas para vê-la se segurar em meus ombros. Não há muito mais que prolongar, ela me deu todas as confirmações que precisava e, se não quisesse estar comigo aqui, já saberia. Ela me quer, é isso tudo que importa. Então enfio minha cabeça entre suas pernas, beijando seu ponto mais íntimo.
E, minha nossa, ela tem exatamente o gosto que imagino ser do paraíso, sinto como se fosse do inferno até lá mais de uma vez em apenas um instante. Mas nada, nada se compara isso. Não sabia que estava tão faminto até prová-la. Ela se contorce em minha boca, e eu a beijo como se isso fosse a minha missão do dia. Natasha se apoia em meu corpo para não deslizar contra a porta, seus gemidos se tornam mais altos a cada investida que dou.
Não tenho pressa em chupá-la e beijá-la ali, fui bem paciente até então ao esperar por ela. Não arruinaria isso agora. Queria que sentisse a mesma felicidade que me fez sentir também. Em cada toque, cada conversa, cada olhar que trocamos até então. Vejo pelo prazer em seu rosto que está próxima do êxtase, e afastar minha boca e não deixar que desfrute do seu ápice é a coisa mais hipócrita e difícil que fiz até agora, mas quero que chegue ao seu limite comigo, quase estiver dentro dela e nossos corpos se tornarem apenas um.
Sinto como se nossa intimidade fosse muito além do que apenas física, mas também em nos conectarmos um com o outro de forma tão profunda que é quase possível enxergarmos nossas almas. E eu nunca senti como se merecesse essa luz e transparência, e mesmo assim ela está aqui, me entregando todo poder e brilho que seu corpo maravilhoso emana, quase me cegando.
Para meu alívio, ela não me olha com raiva quando me levanto e estendo a mão. Na verdade, ela não hesita ao segurar a minha e me acompanhar até um dos chuveiros. Nenhum lugar parece realmente apropriado para isso, mas imagino que ao menos ali é um lugar um pouco mais privado, também longe da porta. Paramos apenas por um momento para que eu corra até meu armário para alcançar uma camisinha no fundo dele junto com alguns pertences pessoais.
─ É bem injusto que só eu esteja completamente sem roupa aqui... — O tom de voz é impaciente e brincalhão ao mesmo tempo, mas ela entra em um dos box privativos para se ajustar no espaço pequeno. Seus braços cruzados em frente aos seios fazem com que eles fiquem ainda mais aparentes e porra, eu poderia ser ficar admirando seu corpo nu a noite toda, em puro deleite.
Acato sua reclamação e tiro o restante da minha roupa também. Agora não há mais nada entre nós. Só essa sensação um pouco embaraçosa na boca do estômago. Faz tanto tempo desde que transei com alguém pela última vez que fico um pouco apavorado de ser decepcionante. Além do que, ela fica me encarando sem dizer nada, e acho que isso é pior do que se ela desse risada. Eu acho. Ela nota minha preocupação, e se aproxima para envolver os braços em meu pescoço e seus dedos acariciam minha nuca, então me puxa para dentro do box com ela.
─ Eu sinto muito que não seja em um lugar mais ap... — Ela põe um dedo em meus lábios, não me deixando terminar de falar.
─ Capitão, por favor, me foda. Agora! — seus olhos são duros, mas seus lábios entreabertos me convidam a tomá-los para mim. E apesar de suas palavras me pegarem de surpresa, não preciso muito pensar para agir.
Enlaço meus braços em sua cintura e a puxo para cima, a segurando novamente em meu colo. Ela encaixa suas pernas ao meu redor e não quero demorar nenhum segundo mais, não quando tenho tudo preciso em meus braços. A apoio contra a parede e um gemido baixo escapa da sua boca quando suas costas batem na parede gelada.
Eu a beijo novamente, com a certeza agora de que é completamente minha. No segundo seguinte, nossos corpos se tornam um só ao me encaixar dentro dela, e o meu mundo parece implodir. Como se tudo que vivi até então, todos os traumas, tivessem me moldando apenas para alcançar esse momento, em que toda a dor acumulada explodisse em prazer. Pela primeira vez em anos, em meu interior, me sinto livre.
Livre do passado, livre da culpa. De repente, Natasha me tomou tudo, e lhe entregaria tudo mais que pedisse, sem hesitar. E ela me dá o mesmo de si, cada centímetro dela agora é meu também.
Sua boca está colada em meu peito, abafando o coral de gemidos que escapam dos seus lábios ferventes. Cada estocada é uma nova descoberta, e conheço mais de mim agora do que jamais pude antes.
Minha mente é como uma supernova, e nossas almas se fundem nessa explosão brilhante.
Cada parte de mim, escura e vazia, brilhante e cheia, já não me pertence, pois sou completamente seu. Me enterro em seu corpo, mais e mais profundamente. Suas mãos se agarram em meus ombros e me firmo em minhas pernas, porque sinto tanto tesão que preciso me segurar para não gozar antes da hora. Suas unhas arranham minha pele sem dó.
─ Mais forte! — ela suplica com um gemido e lhe dou o que me pede, porque ela é quem manda.
Eu sou apenas o soldado, ela é a capitã!
Suas costas batem contra a parada com mais força a cada investida mais profunda que dou, e não imagino outra maneira de estarmos mais conectados. Estou completamente intoxicado por seu corpo sendo tomado pelo meu, sendo preenchido pelo prazer e nem mesmo um oceano do melhor uísque me deixaria tão bêbado quanto me sinto agora.
Todo mundo tem um vício, e acabo de descobrir que o meu é estar enterrado dentro dela.
─ Franklin, eu... — Seu gemido é quase um grito sôfrego ao atingir seu prazer ao máximo. Não me seguro e explodo junto com ela também, gozando tão forte que preciso me apoiar em seu corpo para não me desfazer em uma pilha de desejo e cansaço.
─ Porra... — é só o que consigo dizer, deixando qualquer delicadeza de lado.
Suas pernas parecem tão moles quanto as minhas e ela se segura em meus ombros enquanto a ajudo a pisar novamente no chão, suas forças lentamente se recuperando. Seu cotovelo acerta acidentalmente o registro do chuveiro, que joga água gelada em nossas cabeças. Ela pula para o lado, cambaleante e eu solto uma gargalhada alta, a puxando de volta para baixo da água assim que começa a esquentar.
Natasha se aconchega em meu peito, esfregando seu nariz delicadamente na pele marcada com alguns apertões e chupões. Acaricio seus cabelos sob a água e ela chega a fechar os olhos em deleite. Um gemido baixo e arrastado escapa por sua boca encharcada e, automaticamente, começo a endurecer de novo. Ela percebe, pois crava seus olhos em mim com luxúria.
─ Bem... — ela ri baixo, mas roça sua perna entre o meio das minhas e então sobe sua coxa até que chegue na altura do meu quadril. Beijo sua boca de novo, torcendo que isso se repita para sempre.


NATASHA IVANSKI


Amarelo.
Sei que parece uma cor muito clichê para o Natal, nada surpreendente. E, mesmo assim, é a cor com que, de repente, minha mesa está decorada. Luzes pequenas da minha cor favorita a rodeiam com delicadeza. No canto do móvel, há um buquê de narcisos, também amarelos, que foi colocado de forma desajeitada em um copo com água.
Ao entrar, deixo minha bolsa pendurada no lugar de sempre e ligo o computador para então me inclinar sobre a madeira escura e tocar as flores suavemente com a ponta dos dedos.
— Reparei nos últimos tempos que gosta de amarelo. — Frank diz. Ele está escorado no batente da porta; eu nem mesmo ouvi quando ele chegou, tão distraída que estava admirando as flores que agora sei quem preparou com tanto cuidado.
Seus lábios estão largamente abertos em um sorriso tão bonito que não consigo conter o meu próprio. Espero até que ele feche a porta às suas costas para então andar até ele em passos rápidos. Me atiro em seus braços, que me seguram com firmeza, aninhando meu corpo ao seu peito musculoso. Inspiro profundamente seu cheiro mentolado. Amo seu perfume e o que ele me faz sentir, assim como amo seus braços ao redor do meu corpo e seus lábios contra os meus.
Faz uma semana e meia desde que Franklin e eu deixamos de lado nossas incertezas, e ele, muito mais corajoso do que eu, admitiu o que sente, ou melhor, admitimos o que sentimos um pelo outro. Até porque já não fazia mais sentido tentar esconder ou fugir disso.
Mas a verdade é que foi seu ato de coragem impulsivo que fez a chave virar. Não faço ideia do quão pesado deve ter sido para me contar sua história, e eu jamais poderia imaginar o tamanho da bagagem que ele ainda carrega, nem mesmo como consegue. Mesmo quando minha própria vida não fica muito para trás.
O quão difícil deve ter sido guardar isso tudo em seu peito por tanto tempo? Agora, mais do que nunca, eu o admirava, demais. Sua força, sua coragem. Talvez isso só tenha contribuído ainda mais para que me apaixonasse perdidamente por ele. O que só complica mais as coisas para mim mesma.
Como eu poderia, agora que sei quão parecidas são as nossas histórias, não me sentir ainda mais próxima da sua alma? Não poderia ser tão simples, só me apaixonar.
Agora, sinto como se nossos destinos se encontrassem no meio de uma encruzilhada de sofrimento, apenas para aliviar o peso da dor que o outro carregou por tanto tempo. Tanto sentimento entalado e engasgado que, quando o toco, sinto como se pudesse fundir minhas cicatrizes nas suas. Até esconder o pior de mim.
A pior parte é que não posso dizer a verdade, mesmo que quisesse. Mesmo que meu coração grite em agonia e desespero por isso, para que tenha o mesmo nível de bravura e arranque tudo para fora do peito.
Mas é diferente. Não cabe somente a mim, não é apenas sobre mim. É sobre a minha família, o meu legado. É sobre saber que Nikolav está vivo e, ainda assim, ser completamente inútil e não poder nem mesmo pedir ajuda.
— É lindo, Frank. Você é lindo! — beijo seu rosto diversas vezes, o fazendo rir com diversão. Ele segura minhas bochechas em suas mãos firmes e seus olhos se afundam contra os meus, como um oceano infinito.
— Não se anime tanto, as luzes foram ideia do Jetson. — ele diz, dando de ombros, como se isso não fosse tão importante assim. Mal sabe ele o quanto meu coração se aquece agora que entendo melhor sua dinâmica. — E as flores, eu roubei do jardim. Não conte ao General. — Frank pisca um olho de um jeito maroto que me faz rir.
— Agora sim, tudo faz sentido. — eu respondo, e é sua vez de rir alto.
Volto a me aproximar da mesa e, em um salto, me sento sobre a madeira firme. Alcanço apenas uma das flores no copo e a seguro com delicadeza para não arrancar suas pétalas. Frank pigarreia, chamando minha atenção.
— Falando no General... — começa a falar ao tirar um papel dobrado do bolso traseiro da sua calça jeans e me entrega. É um convite para um coquetel de Natal na casa do General Nixon, o mesmo convite que recebemos alguns dias atrás por e-mail. Torço meu nariz para Frank.
— Você sabe que não sou a maior fã...
— Fã do Natal, eu sei, você disse. — ele nem deixa que eu termine, apenas cruza os braços e um sorriso travesso dança em seus lábios sempre tão convidativos. Sua postura é a mesma de uma criança que vai aprontar qualquer coisa só para provocar. — Mas não tem mais desculpas, eu confirmei sua presença. — ele dá de ombros, rindo, e eu ergo os meus em descrença. Não acredito que ele simplesmente decidiu por mim!
A verdade é que, bem lá no fundo, talvez eu até queira ir a essa festa. E talvez o momento não seja o pior, agora que sabemos sobre Niko; talvez os próximos passos sejam mais simples. Não quero parecer tão desesperada o tempo todo, mas é claro que meu irmão é minha prioridade agora. Tirá-lo das mãos daqueles desgraçados é o plano, o nosso único plano.
A parte mais complicada, obviamente, será fazer isso sem revelar minha identidade. Por isso precisamos de mais informações sobre a Semyonova, que provavelmente só o FBI poderá nos proporcionar. E é por isso que ir a essa festa pode ser interessante; posso conseguir algo novo. Por Niko, poderia ser capaz de aguentar a pressão de uma simples festa de Natal.
Nikita insiste em dizer o tempo todo que tudo está ok, mas, dentro da minha cabeça, sinto o tempo todo como se o mundo pudesse explodir a qualquer instante. E a bomba sou eu.
— Tudo bem... — respondo com um suspiro pesado. Frank comemora, erguendo um punho cerrado no ar. Amasso o convite e o jogo contra o seu rosto, aproveitando que está de olhos fechados. — Mas não podemos ir juntos.
— Por que não? — ele questiona, abrindo os olhos de supetão e arregalando-os em descrença. Ou decepção.
— Isso... — aponto para nós dois seguidas vezes. — Ninguém faz a menor ideia. Não acho que vá ser muito bom para a sua imagem diante da equipe...
— E o que você sugere? Que eu simplesmente fique longe a noite toda? Acha que sou capaz? — ele cruza os braços sobre o peito, os ombros empertigados de um jeito que o faz parecer ainda maior.
A simples visão do tecido da sua camisa se apertando contra o corpo forte me deixa quente. É como se houvesse em mim um botão que só Frank soubesse apertar e, pronto, num segundo fico automaticamente acesa.
— Eu poderia conseguir uma carona fácil... quem sabe... — penso por um segundo. Inclino meu corpo para trás, apoiando as mãos contra a tampa da mesa. Raspo os dentes no lábio inferior de um jeito proposital. Seu olhar é de advertência; ele sabe exatamente o que direi a seguir. — Talvez John...
Não leva um segundo para Frank estar entre minhas pernas, seu tronco inclinado contra o meu, as mãos espalmadas nas laterais do meu quadril, me puxando ainda mais perto dele. Seu olhar é impossível, duro, mas todo o restante é convidativo. Estou tentada a beijá-lo, que se dane se nos virem. Seu rosto está tão próximo, só preciso chegar um milímetro para frente e poderia simplesmente atacá-lo.
— Isso foi muito...
— Estúpido e proposital. — termino sua frase em um sussurro sôfrego, antes que ele possa concluir. Frank concorda com um aceno de cabeça repetitivo.
Sua respiração é quente contra o meu rosto. Tudo nele é extremamente quente, e meu interior parece estremecer somente com a sua presença tão próxima. De repente, meu mundo parece em terremoto quando Franklin está por perto. Ele parece ativar o meu modo mais luxurioso, e é preciso muita concentração para controlar todo o desejo que sinto por seu corpo entrelaçado ao meu. Para sentir sua alma tão próxima à minha.
— Foi muito estúpido, Natasha. — ele resmunga. Sua voz é baixa e rouca, como se as palavras se arrastassem vagarosamente por toda a extensão da sua língua, e é quase como se pudesse senti-las tocando a minha própria.
Não consigo evitar, estico o pescoço o suficiente para a frente, inclinando a cabeça para o lado até encostar a ponta do meu nariz no canto da sua boca. Um suspiro sôfrego escapa por seus lábios e eu o quero, aqui e agora.
Morris aconchega os dedos ainda mais apertados contra minha carne, roçando-os em minhas coxas um segundo depois, em um movimento lento e gostoso. Minha reação natural é apertá-lo um pouco mais entre minhas pernas. Ele aproxima sua boca da minha e encosta nossos lábios com leveza. Uso a ponta da minha língua para provar da sua boca, e o pouco que posso sentir do seu gosto me dá a sensação de tocar o céu, como se voasse junto com as mil borboletas que estão em meu estômago agora.
O trinco da porta parece girar, e no mesmo momento Frank dá um salto para trás, se afastando. Tento me ajeitar na melhor posição sobre a mesa, mas, assim que Jetson enfia a cara para dentro do escritório, estou certa de que não somos nem um pouco convincentes.
Ele nos encara por um instante; sua boca se abre e fecha várias vezes seguidas, mas sem saber o que realmente dizer. Richards caminha até a cadeira logo em frente à mesa do segundo capitão no comando; ele quase tropeça e cai contra o móvel no meio do caminho. Então, apoia o queixo nos dedos cruzados e encara o chão. Jet fica paralisado por tanto tempo que posso ver nos olhos de Frank que ele está preocupado com a possibilidade de o amigo estar tendo um derrame.
— O que foi que eu perdi? — parece perguntar para si mesmo. A voz sai baixa e confusa, mas aos poucos os olhos parecem voltar à órbita correta.
— Não é nada... — eu começo a explicar, mas ele ergue a mão, me interrompendo de qualquer linha de raciocínio que pretendia criar para tentar salvar nossos traseiros.
— Sem desculpas, querida. Eu enxergo muito bem, sou o melhor atirador dessa porra de equipe. — sua fala é quase dura. Mas, apesar de parecer um pouco desapontado, no fim das contas Jet não é capaz de esconder um sorriso, que cresce aos poucos em seus lábios bem desenhados. — Por que não me disseram? Eu não posso, toda vez, ter que sair adivinhando tudo sozinho por aí, amigos...
— Jet, ninguém pode saber ainda. — Frank diz, seguindo o que eu havia proposto antes. Fico aliviada que ele tenha entendido minha linha de pensamento. — Ainda é tudo muito novo. Não quero sujar a carreira dela.
Minha nossa, ele está preocupado comigo? E não é como se eu não quisesse que as pessoas soubessem; não estamos fazendo nada proibido, estamos? Só não quero prejudicá-lo. Ainda mais quando a merda atingir o ventilador e eu precisar sumir, porque isso vai acontecer, cedo ou tarde.
Oh Deus. Meu peito parece ficar apertado só com a ideia. Do tempo que compartilhamos juntos até então, não o utilizei muito para pensar sobre isso. Prefiro aproveitar qualquer instante juntos para beijar sua boca sem ficar considerando muito o depois. Se eu pensar demais, não aproveito. Mas, se aproveitar demais, parece que deixo de pensar de forma racional.
Frank parece perceber minha expressão enjoada e se aproxima o suficiente para que seu quadril se encoste em minha perna dobrada para fora da mesa. O gesto é muito gentil e me acalma um pouco, mas também não evita esmagar um pouco mais do meu coração. Como é que eu seria capaz de magoá-lo?
— Pro diabo que ninguém pode saber... — Jetson resmunga, levantando-se em um movimento tão rápido que quase derruba a cadeira para trás. — Demorou tempo demais pra esse babaca botar um sorriso de verdade nessa cara. E nenhum de vocês vai estragar isso agora, estão ouvindo? — Frank ri, alto, quase uma gargalhada.
Involuntariamente, seguro seu cotovelo, e minhas bochechas esquentam no mesmo instante. Richards segue o meu movimento com seu olhar afiado, e agora ele nem mesmo tenta esconder o sorriso gigantesco.
Acho que estive errada todo esse tempo. Jetson Richards, apesar desse sorriso pateta e de tantas brincadeiras sem graça, tem o maior coração do mundo. E eu adoraria tê-lo também como meu amigo.
— Vejo vocês dois hoje à noite? — ele dá uma piscadinha ao perguntar, e Frank acena com a cabeça. Quando ele está prestes a sair, eu o chamo.
— O que veio nos dizer mesmo? — questiono com curiosidade, mas Jet apenas dá de ombros, esforçando-se para lembrar.
— Honestamente... não sei, acho que era só o destino me dizendo pra dar uma passada aqui. — ele diz, fazendo-nos todos rirmos da situação.
O capitão Richards é o único, entre todos, de quem não me importo saber toda a verdade. Afinal de contas, ele é quem irá juntar os pedaços do coração de Franklin quando eu o quebrar.

Me admiro mais uma vez no espelho alto. Suor quente escorre por toda a extensão das minhas costas, parece quase queimar minha coluna. Acho que nunca estive tão nervosa em toda a minha vida. Ao menos não por tantos motivos ao mesmo tempo, tudo acumulado dentro da minha cabeça.
O vestido branco de mangas compridas, por outro lado, ajusta-se perfeitamente ao meu corpo, como se tivesse sido costurado apenas para mim. Uma fenda sutil na perna esquerda transforma completamente o seu formato, deixando-o um pouco mais informal e, talvez, um pouco mais maduro também.
Pelo reflexo, ao fundo, vejo Nikita parado ao lado da cama. Seu sorriso é, como sempre, muito simpático e amistoso.
— Pode me alcançar aqueles sapatos? — pergunto, indicando com a cabeça um par de scarpins envernizados.
Ele traz o par e entrega para mim, deixando que use seu ombro como apoio para calçá-los. Sorrio em agradecimento. Ainda sem dizer nada, ele volta até a cama e se senta confortavelmente no colchão macio. Seus cabelos agora estão muito compridos e, apesar das bolsas escuras logo abaixo dos olhos, ele parece até mais novo.
— Fico feliz que tenha feito planos para hoje. — diz com suavidade na voz. Em retorno, balanço minha cabeça em um movimento negativo. Não é sobre isso.
— É só uma festa de trabalho, você bem sabe que agora, mais do que nunca, precisamos de mais informações. — ele concorda com um aceno, mas seu sorriso me diz claramente que não está nada convencido.
— Sei que está se envolvendo com alguém, fico genuinamente feliz por isso... — ele comenta, e eu abro minha boca para interromper o que está dizendo, porque não sei se é o melhor momento para falar do assunto. Será que ele faz ideia de que é um policial de quem estamos falando? Porém, Nikita ergue sua sobrancelha, e é o suficiente para que eu entenda que devo apenas esperar minha vez de falar. — Eu vejo como fica quando recebe mensagens em seu celular, quase brilha... Todos nós merecemos um pouco de descanso.
— Não é nada demais, não pode ser nada demais... — resmungo em voz baixa. — Eu não tenho tempo para me apaixonar demais, nós temos outros planos, outros...
— Objetivos. Eu sei, querida. — Nikita estende sua mão e, assim que a seguro, ele me puxa levemente para me sentar ao seu lado. — Você tem todo o direito de gostar de alguém. Não teve muitas chances de isso acontecer da melhor maneira antes... — nego com um meneio de cabeça, e não dá pra evitar: no segundo seguinte, meus olhos estão marejados.
Foi exatamente por ter me apaixonado que perdi tudo. Gostaria de ter escutado mais o papai, de ter aceitado desde o princípio que o amor nada mais é do que um sentimento transacional. Afinal de contas, dá para comprar amor em qualquer esquina e fazer de conta que é eterno. Qualquer um acreditaria nisso.
— Tive chances sim, e só estraguei tudo para nós. Você sabe tudo que aconteceu com Ivan, isso não dá pra se repetir... Não agora que sabemos que Nikolav está vivo e nós temos que... — Nikita volta a me interromper ao erguer sua mão, e agora não está mais tão amistoso, mas sim, impaciente.
— Natasha, pare de agir como uma máquina. Você cometeu erros? Sim, mas todos cometemos. Pode libertar o que tem aí dentro... — ele aponta direto para o meu coração. — É claro que tem muito em jogo, mas os seus limites são apenas seus. Não precisa fazer tudo pensando nos próximos passos.
— Mas Niko...
— Nikolav ficará bem, vamos dar um jeito nisso. — ele diz calmamente, como se estivesse tentando me passar a segurança de que preciso, e quase funciona.
— Mas e depois?
— E depois, virá o depois. Vamos fazer o que for preciso para reconquistar nosso lar, e eu sei que posso contar com você para isso, mais do que ninguém. Mas, enquanto o momento certo não chega, tente não pensar muito no assunto, e não esqueça de viver. Esse Natal é seu presente agora, tente aproveitar um pouquinho... — ele segura minha mão e aperta de leve. Logo em seguida, Nikita deixa o quarto, e meu coração se aperta um pouco mais ao ouvi-lo cantarolar “Pinheirinhos que alegria”.
Não tem como não sentir o peito pesado. Sinto como se pudesse me afogar em meio a tantos pensamentos e receios, acima de tudo. O tempo todo, sinto como se a gravidade fosse tão pesada que continua, segundo a segundo, me puxando mais para baixo, para o escuro.
Tudo que construí até então, tudo que falsamente imaginei depois de pisar neste país, como se de verdade pudesse ser outra pessoa, é nada mais que isso... falso. E como eu poderia contar para Frank toda a verdade e arruinar essa história de ninar? É claro que ele me odiaria, juraria me caçar e prender assim como fez com Trey Sommers.
E, ainda mais profundo que isso, como posso salvar minha casa se, de repente, nem mesmo sei mais onde pertenço? Como salvar minha família se, do outro lado, posso destruir o que agora parece um porto seguro? A verdade é que não posso quebrar o coração de Franklin sem primeiro me quebrar completamente, mais uma vez.

Frank está encostado no capô do seu Volvo. Ele é tão bonito que meus olhos chegam a arder e a se encher de lágrimas por um momento. Não dá para olhar por muito tempo ou talvez eu queime a retina.
Ele está usando uma camisa branca de linho que abraça seu corpo justamente nos lugares mais musculosos, e ele é enorme, como uma máquina criada para fazer exatamente o que faz. Por outro lado, usa calças mais gentis, que não o apertam. E ele parece, talvez pela primeira vez desde que o conheci, completamente confortável.
Também parece feliz; aos meus olhos, é o que seus lábios parecem dizer ao se movimentarem para cima dos dentes. É quase como encarar um anjo. Porque ele emana pura luz, uma energia morna e confortável, como se fosse feito de sol num fim de tarde. E é aqui que compreendo que estou completamente perdida por esse homem, desejando seus braços ao meu redor e sem motivo para tentar negar isso; não seria capaz. O que é minha completa ruína.
— Minha nossa... — ele assobia entre os dentes. Retiro o que pensei segundos antes: apesar da aparência angelical, seu olhar é nada mais que diabólico e luxurioso; o fogo parece aumentar em suas íris a cada momento mais que levo para alcançá-lo. — Que você é linda é óbvio, mas isso...
Sinto minhas bochechas queimarem, meus olhos seguem o processo de arder e queimar com as chamas que agora correm também por minhas veias. Meu corpo todo parece prestes a entrar em combustão.
— Frank... — encaro o chão, mas ele segura meu queixo e levanta meu olhar para que alcance o seu. Fico completamente sem palavras ao encará-lo de volta, porque dentro dos seus olhos, que sempre achei tão parecidos com um mar calmo, agora parece estourar uma galáxia inteira.
— Não estou brincando. — ele sussurra, seu semblante muito mais sério agora. — Gostaria que pudesse ler cada um dos meus pensamentos agora, até mesmo os mais impróprios... — seus lábios alcançam os meus, apenas roçando carne contra carne de forma delicada.
Meu mundo é uma explosão de cores sob seu toque, e é quase dolorido enxergar lá no fundo um futuro onde poderíamos dar certo, não fossem tantos segredos e mentiras. Apenas meu coração e o seu, aprendendo mutuamente a se completarem.
Mas não é assim que as coisas funcionam, não nessa realidade pelo menos. Me afasto um passo para trás, mas beijo seu queixo, desenhado pelos deuses, antes de me mover totalmente.
— Você também está absolutamente deslumbrante. — digo, afastando uma mecha de cabelo que insiste em cobrir seu olho. — Inclusive em meus pensamentos mais impróprios. — minha voz é baixa, mas sei que ele pode me ouvir, pois ri com vontade e me segura pela cintura, puxando meu corpo contra o seu.
Frank ataca minha boca com ferocidade, as mãos também deslizam de um jeito selvagem em meus cabelos até segurar minha nuca contra o seu beijo. Não hesito em corresponder, é claro. E não apenas porque sua boca parece perfeitamente se encaixar na minha, mas porque gosto muito de tê-lo tão perto, tão entregue e incrivelmente meu. Preciso apenas aproveitar isso enquanto tiver tempo.
Nikita está certo, como sempre. Independentemente do que o futuro esteja nos preparando, não há razão para, ao menos uma vez, não me permitir sentir um pouco viva, mesmo que vá doer depois. Mas, por enquanto, eu me festejo nesse banquete doce que é a boca de Franklin contra a minha.
Seguro seu pescoço com minhas duas mãos, para que perceba que não quero que se afaste. O beijo é tão bom quanto verdadeiro, e essa é a pior parte. Meus dentes raspam em sua pele úmida, e ele solta um grunhido em retorno. Não poderia querer nada mais agora, não poderia mais desejar alguém tanto quanto o desejo.
Nos afastamos apenas quando não há mais oxigênio a sorver no ar, mas não me separo de seus braços. Não quero ir agora; quero ficar um pouco mais nesse momento. Em meu âmago, desejo, talvez, que seja por toda a eternidade.
Frank acaricia o tecido liso que cobre minha cintura por mais alguns instantes e, então, se distancia somente alguns centímetros. Ele planta um beijo carinhoso em minha testa antes de buscar meus olhos com os seus. Há algo tão lindo sobre ele nesta noite que faz meu coração doer ainda mais.
— Vamos? — questiona, embora sua expressão pareça dizer que basta eu confirmar para deixarmos de ir a essa festa idiota e ficarmos só nós dois, e isso seria o suficiente.
— É claro, vamos sim. — respondo, e, por um momento, parece que ficou um pouco decepcionado. Sei que não devo agir como se tudo fosse a resposta para o meu futuro, não devo agir como uma máquina. Eu trocaria qualquer reunião para apenas ficar com Frank, mas há muita coisa em jogo neste momento, e ir a essa festa talvez seja importante para que tudo aconteça como deve acontecer.

Frank leva menos de 20 minutos para completar o trajeto entre Coral Gables e Edgewater, bairro nobre onde fica a gigantesca casa em que o general Nixon, sua esposa e filho adolescente vivem.
Ele para o Volvo em um estacionamento improvisado para os convidados da festa, e noto que estaciona ao lado do Dodge de Jetson. Estremeço só de imaginar o que Jetson pode estar pensando em aprontar para nós dois. Mesmo que tivéssemos pedido que fosse discreto, não tenho certeza de que essa seja uma palavra de seu vocabulário.
— Tudo certo? — Morris pergunta ao meu lado. Apenas concordo com um aceno. — Você não parece muito confortável... — meneio a cabeça, com o nariz já franzido. Ele afasta uma mecha de cabelo sobre minha bochecha e a prende atrás da orelha. Automaticamente, meus lábios se rasgam em um sorriso afetado.
— Só pensando em quantos tipos de vergonha Jet está planejando nos fazer passar esta noite. — explico em voz baixa. Frank solta uma risada alta em resposta, tão divertido que chega a inclinar a cabeça para trás, encostando no banco de couro.
— Não precisa se preocupar com isso. Sinceramente, acho que Jetson nem vá nos incomodar... Ele vai estar tão animado por me ver acompanhado de você que nem deve chegar muito perto. — sua voz é calma, apesar das risadas, e também baixinha, como se isso fosse o suficiente para me acalmar.
Sua mão alcança minha bochecha, e ele desliza seu indicador em um carinho tão gostoso que, um segundo depois, é como se minha pele estivesse acesa com seu toque. Frank parece perceber cada uma dessas reações, pois desce seu carinho para a pele exposta do pescoço e clavícula. Entreabro os lábios, apenas para liberar um suspiro pesado, preso no fundo da garganta.
— Nesse exato momento, ele deve estar planejando cada detalhe do nosso futuro... — digo, já com os olhos fechados para aproveitar ainda melhor as suas carícias.
— Hum. — ele murmura baixo em resposta. Sinto seu tronco se inclinar em minha direção e aperto mais os olhos. Seus lábios estão em meu ombro no instante seguinte, o hálito quente afagando a pele, fazendo os pelos de todo o meu corpo se arrepiarem. — Não me lembro dele falando nada sobre planos ou... futuro. — Franklin segura meu joelho, descoberto pela fenda do vestido.
Seus dedos são gentis ao apertarem carne e osso e, então, percorrem toda a extensão da pele, em direção à coxa. A sensação é quase explosiva; faz-me inclinar a cabeça apertada contra o banco, ansiando por mais e mais.
Sua carícia me faz enxergar estrelas sob as pálpebras escuras. Quero pedir que não pare nunca, implorar para que me faça enxergar o universo inteiro. Mas estou completamente muda. Minha respiração torna-se cada vez mais pesada, como se o oxigênio necessário para continuar a viver pesasse duas toneladas em meus pulmões.
— Espero que possa me contar todas as suas próprias teorias do que irá acontecer daqui para a frente... — sua voz é tão baixa que soa quase rouca, e um misto de sensações lascivas toma conta do meu corpo e mente.
Frank pressiona seus dedos na parte mais sensível do interior da coxa, e não consigo evitar um gemido em resposta. Mesmo de olhos fechados, posso sentir que está sorrindo. Ele tem plena consciência do que me causa com suas provocações. E ele gosta muito disso. Seus lábios alcançam minha orelha e, sem piedade, ele morde o lóbulo, sugando a pele para dentro da sua boca quente, quase me fazendo pular no assento.
— Se me contar as suas, prometo contar as minhas também... — diz, deslizando os dedos ainda mais próximos da minha calcinha, completamente encharcada agora.
Espalho uma das minhas mãos em seu braço firme, tentando trazê-lo ainda mais perto. Frank parece entender o recado, pois afasta o tecido da lingerie e empurra os dedos contra o meu centro, em chamas. Ele não faz ideia do quanto preciso dele agora.
Meus gemidos tornam-se mais constantes e tenho certeza de que também soam mais altos. Por um segundo, preocupo-me se corremos o risco de alguém nos ver ali, mas assim que ouço seu grunhido em resposta à minha excitação, perco tudo. Não sou nada além de sua, nem mesmo quero ser.
Então ele para, no exato momento em que me sinto próxima de explodir em suas mãos. Ele ri, maldoso, ao ouvir meu lamento frustrado, e beija a lateral da minha cabeça. Abro os olhos para fitá-lo com os dedos dentro da boca, completamente incrédula. Não acredito que ele parou!
— Espero poder contar todas essas ideias mais tarde, mas agora... precisamos ir mesmo. Vamos? — o som que sai da minha boca soa quase como um rosnado, mas consigo entender o motivo de ter parado por aqui: um segundo a mais e não sei onde poderíamos chegar. Por isso, respiro profundamente algumas vezes até centrar meus pensamentos e, por fim, concordo.

Frank anda ao meu lado até a porta de entrada. Sua mão está levemente apoiada na minha coluna. Seu gesto me faz sentir importante e especial, mas não é nada possessivo, apenas um carinho. Meu coração se aquece ainda mais quando meus olhos alcançam os dele, que parecem sorrir em aprovação.
Leva apenas um minuto para que o general e uma senhora muito bonita e elegante, que deve ser sua esposa, abram a porta. Frank faz menção de se afastar, mas basta apenas um olhar para decidir que, independentemente de nossas frustrações, quero que ele permaneça ao meu lado. Ele parece entender, pois movimenta sua mão para firmá-la ainda mais na minha lombar.
— Capitão, fico muito feliz que tenha vindo. — diz Nixon, estendendo a mão para apertar a de Franklin, que o cumprimenta com a palma livre. O general então se vira em minha direção e abre um sorriso gentil. — Agente Ivanski, é ótimo vê-la esta noite também, seja bem-vinda à minha casa.
— Nós é que agradecemos o seu convite. — aquiesço com um sorriso largo. O toque de Franklin parece estremecer levemente ao me ouvir dizer a palavra "nós", como se não esperasse isso, e era exatamente o que eu ansiava que ele entendesse. Só quero que perceba que, sim, estamos nessa juntos.
Em minha mente, quase consigo ouvir a voz de Nikita me dizendo, como mais cedo, que mereço um pouco de felicidade, e a sensação boa quase me faz encher os olhos de lágrimas. Há muito tempo, me sinto genuinamente feliz e, no fundo, acho que não me importo com quaisquer comentários que isso possa gerar.
— Esta é minha esposa, Andrea. Querida, creio que se lembre do capitão Morris. — diz o general para a esposa, que concorda rapidamente com um aceno delicado. — Natasha está conosco há pouco mais de meio ano e vem nos surpreendendo com seu potencial afiado. — ele completa, e sua esposa, com um bonito sorriso, também acena em minha direção.
Orgulho enche meu peito com seu elogio, mas também sinto o coração endurecer um pouco. O que pensariam se soubessem o real motivo de eu estar ali? Ainda que nada do que tenha feito os tenha prejudicado, e mesmo que eu não tenha motivos para fazê-lo, não estou sendo totalmente verdadeira em minhas motivações para parecer tão empolgada com cada missão, e isso também me machuca.
— Venham, vou levar vocês para um pequeno tour pela casa e deixá-los no jardim, onde estão os demais convidados. — Andrea diz, parecendo bastante animada. — Me dê seu casaco, querido. — ela solicita a Franklin. Rapidamente, ele lhe entrega a peça de roupa, que Andrea guarda de bom grado em um closet no corredor de entrada.
Com um aceno de cabeça e mais uma saudação de boas-vindas, Nixon se afasta. Sua esposa nos mostra a casa realmente muito rápido, mesmo sendo enorme. Imagino que Franklin já conheça o espaço, mas nos acompanha por educação.
Entrelaço meus dedos aos seus. Ele me olha surpreso, mas aperta nossas palmas, uma contra a outra, de uma maneira quase sôfrega, como se realmente precisasse desse toque. Meu mundo parece finalmente girar em sua verdadeira órbita, e eu não consigo evitar me perguntar se mereço tanto.
Assim que ela termina de nos mostrar os diversos e grandiosos cômodos da generosa mansão, nos acompanha, por fim, até o jardim de inverno, onde a recepção está acontecendo. O lugar é tão parecido com o nosso próprio jardim em Moscou que sinto como se pudesse sufocar. O teto abobadado de vidro está coberto com folhas muito verdes, mesmo para o inverno. Até as glicínias caem em cascatas delicadas pelas janelas ladeiras, dando um tom quase romântico à decoração.
Fios de lâmpadas de luz quente iluminam todo o recinto, parecendo aquecer o chão de pedra gelada. Mesas redondas estão dispostas ao redor da sala, com bonitos arranjos adornando o tampo dos móveis. Ao fundo, uma mesa grande de doces é o que chama a atenção, com uma cascata de chocolate e uma pilha de taças de champanhe sendo reabastecidas constantemente. Para finalizar, no canto da sala há uma árvore de Natal branca, com uns três metros de altura, decorada com centenas de luzes e adornos de cristal e prata.
Basta um segundo admirando o espaço, e logo sinto meus olhos se encherem de lágrimas pesadas. Sinto tanta falta da minha família que nem mesmo respirar profundamente é o suficiente; minha garganta parece se fechar em um bolo pesado de angústia e solidão. Balanço a cabeça repetidas vezes para afastar os pensamentos invasivos. Não posso dar espaço para pensar sobre isso agora. Mais tarde, quem sabe. Por enquanto, decidi que aproveitaria o momento, e é o que farei.
— Eles não economizam em nada, não? — digo, com os lábios próximos ao rosto iluminado de Franklin. Ele ri baixo em resposta, com uma mão cobrindo a boca para não ser pego no ato, e parece gostar de acompanhar minha zombaria infantil. Apesar disso, a fineza da decoração escolhida pelo casal é nada menos que memorável.
— Nunca, nem mesmo um pouco. — responde em um sussurro baixo, seus lábios encostando gentilmente nos meus cabelos. Seus dedos firmes acariciam meus ombros, um toque tão carinhoso. — Quer dizer que não precisamos esconder nada, então? Não preciso ficar do outro lado da sala, te admirando apenas com o canto dos olhos, fingindo que meu coração não parece querer explodir cada vez que te admira um pouco mais? — não sei o que dizer. Frank tem essa capacidade de conseguir me fazer engolir qualquer coisa que pense em falar.
Fica cada vez mais claro que seus sentimentos crescem a cada dia em que passamos juntos, ainda mais quando trocamos tantas carícias e palavras gentis, seja secretamente ou não. Sei disso porque, por mais complicadas que sejam as consequências de tudo isso, sinto exatamente o mesmo.
Eu seria uma grande hipócrita se tentasse dizer que as borboletas no meu estômago não voam ainda mais freneticamente neste jardim quando estou perto dele. É claro que ele ser o mais próximo que já estive de um deus grego facilita muito as coisas para me sentir ainda mais atraída por ele, mas é muito, muito mais do que isso.
São seus lindos olhos amorosos, seu sorriso bondoso, sua alma caridosa e a constante vontade de sempre ser alguém melhor. Tudo isso me emociona, me instiga e me faz querer tê-lo cada vez mais próximo. E são nesses momentos que me esqueço e nem mesmo me interesso pelo quão perigoso isso possa vir a ser futuramente. No momento, me apego às palavras de Nikita: importante mesmo é viver o presente.
— Não, não precisamos esconder nada... — respiro fundo ao respondê-lo, sem conseguir esconder meu largo sorriso, que só consigo reproduzir em sua presença, porque ele me faz querer sorrir o tempo todo. Frank segura minha mão e beija as costas da mesma com um roçar leve de lábios.
— Ótimo. — ele afirma. Sua outra mão volta a acariciar meu ombro, e então acena com a cabeça para trás do meu corpo, apontando para algo que ainda não posso ver. — Porque Jet está vindo em nossa direção, e ele parece um cachorrinho para o qual acabamos de jogar uma bola de tênis. — gargalho alto, jogando a cabeça para trás. O som é tão genuíno que quase me assusta, fazia tempo que não me lembrava de ser capaz de rir assim.
Aproveito o momento descontraído para virar meu corpo na direção do amigo. Jetson nos alcança com passos largos e rápidos, como se fosse capaz de voar nos próprios pés. Seu sorriso é quase maior que sua própria cabeça, parece querer sair do rosto e se tornar maior do que o tamanho, quem sabe, do mundo todo.
— Eu fico tão, mas tão feliz quando as pessoas fazem as coisas do jeitinho que eu pedi. — ele diz entre risadinhas, tocando o ombro de Franklin em um cumprimento. Até penso em uma piadinha para respondê-lo, afinal de contas esse é o Jetson, o maior dos piadistas entre nós. Seu nível de humor vai de mil a milhão em questão de segundos.
Mas, penso por um momento, e ao ver que está certo, decido apenas não dizer nada. Se não tivesse nos flagrado em nossa sala, é bem provável que eu não teria perdido tanto tempo remoendo pensamentos até decidir aceitar meus próprios desejos. Não teria abraçado minhas vontades de aparente bom grado, muito menos estaria aqui, abrindo mão do esforço que tinha feito até então para ser tão invisível quanto fosse possível.
— Concordo com você, obrigada, Richards. — digo. Jet chega a inclinar sua cabeça para o lado, totalmente incrédulo com minhas palavras. — Se você soubesse ser educado, soubesse bater à porta antes de entrar, é provável que não estivéssemos aqui agora, não assim... — e apenas para fazer com que ele se sinta ainda mais empolgado, entrelaço meus dedos com os de Franklin, apertando minha mão contra a sua. Jet parece prestes a desfalecer em seus joelhos.
— Eu só... bem... — ele precisa parar por um segundo e respirar profundamente. Seus olhos se voltam para o chão, admirando os sapatos por um instante antes de voltar a nos encarar. — Só estou realmente feliz por isso. Duas pessoas ótimas ficam ainda melhores juntas. Tudo o que sempre quis para Frank foi felicidade plena, e acho que você merece um descanso da sua própria cabeça, amigo.
Frank gesticula com a cabeça, seus lábios entortados em um sorriso tímido. É sua única resposta, mas sei que o olhar que trocam significa muito mais para ambos do que jamais saberei. Acho que nunca terei uma amizade assim tão sincera, mas me sinto muito bem apenas em admirá-los, pois é palpável o quão especial é.
— Cara, você realmente é um motivador e tanto... — Frank coça a cabeça ao dizer, seus ombros se levantam algumas vezes também, e sei que ele quer soar maduro, quase indiferente ao momento dos dois, mas Jet lhe dá um soco no ombro e arranha a garganta com um pigarro alto.
— Tudo pelo Frankie. — ele diz, com uma piscadela em seguida.
Do outro lado da sala, vejo Yond acenar para mim algumas vezes seguidas, em uma tentativa de ser discreto, mas falhando miseravelmente.
— Vou deixar vocês conversarem à vontade e alcançar aquela mesa de doces... — beijo as costas da mão de Franklin com leveza. Ele arregala um pouco os olhos em resposta, bem provavelmente não esperando meu gesto. Tudo isso ainda é muito novo, e não apenas para mim.
Mas seu sorriso é cálido e doce, e faz meu coração amolecer ainda mais. Ele concorda com um meneio de cabeça, então dou um tapinha no ombro de Jetson e me afasto.

Poucos passos são o suficiente para alcançar Yond. Ando até ele com o máximo de calma que consigo, mas não dá para disfarçar minha ansiedade latente. É preciso muito autocontrole para não gritar com ele, para não exigir que me diga logo o que precisa dizer, o porquê de ficar acenando tão freneticamente.
— Então? — pergunto, sem muitas delongas. Não posso me dar ao luxo agora de tentar soar calma demais, sei que preciso ir direto ao ponto, porque, de outra forma, meu estômago não aguentaria o que parece ácido me corroendo de dentro para fora.
— Boa noite, agente. — ele diz, limpando a garganta, como se quisesse disfarçar nossa conversa que, aparentemente, começou calorosa em excesso. Reviro os olhos para ele, mas noto que colegas da corporação estão próximas demais, por isso tento entrar em seu jogo. Meu sorriso pode parecer falso, mas é difícil forçar uma expressão tão singela quando, na verdade, sinto como se fosse derreter.
Sigo seus passos quando Yond começa a se afastar, o suficiente para não nos ouvirem ou não chamarmos tanta atenção. Ele escolhe um canto um pouco mais vazio, onde possamos conversar com mais calma. Volta a limpar a garganta e dá uma última olhada por cima do ombro, desconfiado, como se precisasse checar se realmente estamos sozinhos. Sinceramente, não sei como nunca suspeitaram dele.
— Tenho notícias sobre o sr. . — ele diz, olhando de tempos em tempos por cima do meu ombro, como se buscasse confirmar que ninguém está espionando nossa conversa.
Será que Zayev desconfia que há mais espiões entre nós? Não imagino que isso possa acontecer, pode? Não faria sentido, já que toda a Vory v Zakone está espalhada por Moscou tentando sobreviver e mantendo a fidelidade à família, carregando sua honra e legado.
Além disso, eles sabem que Nikita e Yond estão aqui, deixando tudo pronto para atingir os inimigos com tudo no momento certo. E ainda, não acho que a Semyonova teria a audácia de tentar pôr os pés nos Estados Unidos, não quando sabem que não são bem-vindos. Ao menos não os Koslov, eles são bundões demais para isso.
— E então? — pergunto novamente, sentindo a impaciência tomar conta. Se há algo para falar sobre Niko, espero que me conte sem enrolação. Ainda mais porque não temos tempo para isso quando o garoto é feito refém. Odeio imaginar o que tem passado nas mãos dos malditos Koslov por tanto tempo.
— Há um Vor entre os inimigos, alguém que foi muito próximo ao seu pai de maneira... discreta. — ele afirma. Minha mão estremece ao alcançar uma taça de champanhe de um garçom que passa ao nosso lado. Meu coração aperta de emoção ao saber que os homens do meu pai ainda são, mesmo depois de tudo, leais. — A ideia foi do sr. Alexander. — explica, baixando os olhos para a mesa. Yond pega um doce de aparência deliciosa e enfia inteiro na boca. Não sei se está tentando aproveitar o momento ou só tentando se misturar para não levantar suspeitas. — Mas sinto dizer, as coisas não estão realmente boas...
Eu sabia! Sabia que Nikita estava escondendo muito mais do que aparentava. Minha garganta se fecha com a sensação desesperadora que me invade. Meu cérebro parece dissolver dentro do crânio, e cada possibilidade que vem à minha imaginação ameaça fazer todos os meus órgãos pararem de funcionar. Não acho, de verdade, que um dia vá ter paz.
— Acho que estão tentando fazer o garoto acreditar que é um deles. — Yond diz, sua expressão de puro nojo. Por um momento, parece que vai vomitar. Ofereço um lenço que está sobre a mesa para que se recomponha. Ele limpa o suor da testa com o tecido belamente dobrado. — Se entendi corretamente, eles têm tentado fazê-lo crer que a Vory v Zakone o torturava... Não sei quais são os planos que Mikhail tem para ele, mas vamos dar um jeito. — promete, provavelmente ao ver meus olhos se arregalarem tanto a ponto de quase explodir.
— Vamos sim, é claro que vamos, nem que seja a última coisa que eu faça nesta vida. — afirmo com uma promessa. Quase vejo o cuspe raivoso saltando da minha boca. — Obrigada, Yond, de verdade, por me manter informada... É muito mais do que aquele Goncharov de merda tem feito...
Yond Zayev dá um aceno discreto de cabeça, parecendo acanhado e um pouco desconfortável, como se não tivesse certeza de estar fazendo o certo ao me contar o que os outros não querem falar. Ele volta a falar, detalhando seus planos mais recentes com Alexander e Nikita, mas sinto meu corpo todo vibrar com força. Não consigo prestar atenção de verdade, não consigo pensar em mais nada.
Minha mente volta o tempo todo aos meus últimos momentos com minha família. Até pouquíssimo tempo atrás, achei que todo o sangue dos tinha escorrido para baixo da terra. Achei que tivesse restado apenas eu e minha insignificância dentro daquilo tudo que meu papa fez por seu país.
Mas agora, sabendo que Nikolav está tão perto e tão distante ao mesmo tempo, que por algum motivo a Semyonova o mandou para os Estados Unidos para tentar fazer o seu trabalho sujo, que ele pode se sentir solitário ou indefeso... Por Deus, eu poderia arrancar a espinha de Mikhail agora mesmo com as minhas próprias mãos. Só preciso acabar com isso logo, seja como for.
Do outro lado do salão iluminado, vejo Frank nos encarando. Um sorriso gentil se abre em sua boca maravilhosa. Isso me acalma por um instante, como um sopro de realidade. Sua presença consegue acalentar meus receios como uma canção de ninar.
Ao mesmo tempo, sinto como se mais um pedaço do meu coração precisasse ser quebrado para conseguir juntar forças e moldar um sorriso falso em meus lábios.
Eu nunca imaginei que vir para este país pudesse ser tão difícil.
Mas muito menos que pensar em deixá-lo pudesse ser ainda pior.

Não sei há quanto tempo estamos aqui sem fazer nada, não consegui acompanhar o relógio. Nos sentamos à mesa para o banquete que foi a Ceia dos Nixon, mas as conversas apenas flutuaram sobre a minha cabeça. Não sei se respondi às perguntas como deveria. Para falar a verdade, não sei se conversei mesmo com alguém.
Ainda que quisesse, como poderia pensar em qualquer outra coisa que não fosse Niko e tudo de horrível que deve estar sofrendo, sem imaginar que estou viva também, que não paro de planejar como posso salvá-lo? Só queria poder gritar para ele agora, que ouvisse meus pensamentos, que soubesse que ainda estamos juntos nessa.
A sensação de impotência é terrível e me deixa arrasada: não poder fazer nada agora, não poder fazer com que saiba que estou aqui. Só posso desejar do fundo do meu coração que ele fique bem, que aguente firme, até que eu possa fazer algo efetivamente.
— Está tudo bem? Parece distraída... — Franklin pergunta, inclinando seu corpo em minha direção, o suficiente para que apenas eu possa ouvir sua voz baixa em meu ouvido. Se não fossem seus toques sensíveis e ocasionais em meu joelho, acho que poderia ter me desfeito em uma poça de nada no chão.
— Tudo certo, só estou... — Mas não consigo terminar de falar. Estou sobrecarregada, essa é a verdade. Não consigo ficar em paz, tudo em minha vida parece uma kalinka infinita de acontecimentos para os quais não estou, jamais estaria preparada.
— Não precisa explicar, podemos ir embora se quiser. É quase meia-noite mesmo... — ele diz, conferindo a hora em seu relógio de pulso.
Concordo com um aceno rápido de cabeça; o que mais quero é ir embora o quanto antes desse lugar. Se não escapar logo, tenho receio de dizer algo que não deveria. Preciso de oxigênio, respirar e pensar. Preciso das mãos de Franklin contra o meu corpo e esquecer o restante, porque, mesmo com suas palavras doces, é exigência demais sobre minha concentração neste momento.
— Por favor. — meu suspiro em resposta é tão pesado que ele se levanta rapidamente, sem nem mesmo precisar pensar, sua mão esticada em minha direção para que eu levante também. E eu o adoro um pouco mais por isso. Com um movimento leve, ele me puxa até o general e sua elegante esposa.
— Ah, já vão? Que pena... — diz o general Nixon, arrastando seu olhar para nossas mãos unidas, e lhe dá uma piscadela em seguida. — Pensei que pudessem ficar para ver os fogos da meia-noite, mas imagino que tenham outros planos para o feriado... Feliz Natal para os dois! — Nixon cumprimenta Frank e depois me beija estalado no rosto. Está claramente alterado pela bebida; isso fica mais explícito quando as bochechas vermelhas de Andreia, sua esposa, ficam ainda mais escuras.
Nos despedimos rapidamente de alguns dos outros agentes presentes e, por fim, de Jetson, que, se tivesse um letreiro preso à sua testa, estaria piscando agora milhares de frases idiotas e pervertidas.
Assim que bato a porta do Volvo, solto todo o ar que parecia estar preso em meus pulmões há Deus sabe quanto tempo. Meus pensamentos ainda borbulham com as informações que Zayev me repassou, mas não consigo me concentrar e bolar algo inteligente, não de verdade.
A confusão mental é ainda pior, com Frank ao meu lado, me olhando como olha agora. Há uma chama forte e profunda em seus olhos claros, e cada parte da minha alma queima com a sua presença tão única.
— Você quer que eu te leve para casa agora? — ele pergunta, e sua intenção é bem clara. Sei qual resposta ele quer ouvir. Ele não quer que eu vá para casa, eu também não quero ir. Não quero ter que lidar com Nikita agora, com a minha outra vida. Só quero um momento normal, nesta vida...
Inclino meu corpo em sua direção, alcançando sua boca em um beijo lento e carregado de sentimentos não proferidos. Seus lábios têm o melhor sabor que já provei, o calor de sua língua tem capacidade de me fazer flutuar e esvaziar a mente. Não poderia me importar menos com isso; tudo que desejo mesmo é poder esquecer, nem que seja só por um minuto, e pensar só nele, em nós, e como é uma loucura que isso possa fazer sentido no meio de tanto sofrimento.
Sinto como se sua boca despejasse todo o seu calor e uma sensação de tranquilidade dentro da minha, apagando as piores frustrações em meu coração, preenchendo as lacunas que, até então, me faziam sentir tão vazia. Sinto-me completa de algo que nunca tive antes, algo que não sei distinguir ou explicar, mas que está ali e é bom, finalmente é bom.
— Quero ir com você, onde for... — confesso ao separar meus lábios dos seus. Frank estremece, morde minha boca e separa nossos corpos por um segundo, mas rapidamente deslizo minha mão de sua camisa até a calça, e não preciso tocá-lo demais para saber que deseja o mesmo que eu. Ele solta um suspiro profundo quando o toco por cima do tecido; um gemido rasga sua garganta antes que engula o ar de novo.
— Para a minha casa, então...


FRANKLIN MORRIS


Minhas mãos quase falham ao abrir a porta.
De repente, meu estômago parece pegar fogo com o nervosismo. Não é como se não tivéssemos feito isso antes, não é a primeira vez, só nunca aconteceu aqui.
Nenhuma mulher esteve aqui antes. E pode parecer a mentira mais mal contada da história, porém é apenas a minha realidade. Nunca me senti confortável para abrir essa porta para quem quer que fosse, nunca tive vontade de deixar essa parte exposta.
Mas com ela parece diferente. A ansiedade que sinto agora não está relacionada a vê-la entrar e ter disponível cada parte de mim, mas me corrói a alma querer tanto que entre e goste do que vê.
Nunca agi de outra maneira; minha mente sempre foi minha pior inimiga, de forma que sempre lutei contra tudo que a bloqueasse, tentando ser agradável. Contudo, nunca senti tanto receio como agora: receio de que talvez não pudesse oferecer o suficiente.
Mas que merda, Franklin, é uma porra de uma casa!
Meus joelhos travam assim que acendo a luz e ela passa por mim, entrando como se estivesse em sua própria casa. A observo tirar os sapatos de salto e deixá-los ao lado do sofá branco.
Imagino Natasha usando um robe de seda, segurando uma xícara fumegante enquanto nos preparamos para tomar café juntos, antes de irmos à corporação. Preciso engolir duas lufadas de ar para voltar a me concentrar; não posso continuar a sonhar acordado.
São só algumas semanas, por Deus.
Ela desliza seus dedos compridos pelo tecido de camurça do sofá enquanto parece analisar criticamente o cômodo. Torço para que não olhe a cozinha sobre a ilha que separa os dois ambientes. Jetson havia visitado na noite passada para assistir ao futebol, e a bagunça se acumulou.
Fecho a porta às minhas costas, passando a chave sem tirar os olhos dela. As palmas das minhas mãos estão molhadas, e o chaveiro novamente quase escorrega entre meus dedos. Não consigo me controlar, e é quase ridículo. Estou envergonhado.
— Sua casa é bonita. — ela diz, girando o corpo em minha direção. Natasha apoia o quadril no encosto do sofá, gesticulando para mim. — É... limpa.
— Limpa? — questiono, e não sou capaz de esconder a diversão em meu rosto. Nem mesmo tento conter a risada; a ansiedade parece me consumir de uma maneira quase irritante, e é a única reação que tenho: risada.
E, ainda assim, suas palavras me despertam. Giro meu olhar pelo local. Ela está certa, é limpo demais. Tudo parece clinicamente colocado em seu devido lugar e, para falar a verdade, parece bastante sem vida e entediante. À exceção da cozinha agora.
Não há quadros nas paredes, só um vaso com flores mortas sobre a mesa de jantar e uma garrafa de whiskey pela metade. Sinto as bochechas esquentarem e a sensação corrosiva, como puro ácido, preenchendo meu estômago de um jeito esquisito.
Que merda, ela odiou!
— Sim, é muito confortável... Eu adorei! — seu sorriso é tão gentil quanto as palavras que saem de seus lábios, e estou tão surpreso que não consigo sequer respondê-la. — Bem, essa é a hora que você me oferece algo para beber, não? — ela conclui, quebrando o silêncio constrangedor que eu mesmo causei.
— É claro. — respondo, quase me enrolando nas palavras. Está quente demais e parece faltar oxigênio no espaço. Tiro meu casaco, soltando-o no encosto do sofá, esperando me refrescar ao menos um pouco. — O que você prefere? Vinho, whiskey, vodca... água? — pergunto, notando que realmente tenho sonhado demais. Ainda há muito para conhecer sobre ela, muito a descobrir sobre seus sonhos e desejos, sobre seu passado. Natasha prossegue sendo uma grande incógnita para mim.
— O que for beber, para mim está ótimo. — me responde ao mesmo tempo em que já alcanço o armário de bebidas, pescando uma garrafa de vinho e um saca-rolhas.
Demora um pouco até que minhas mãos parem de tremer de maneira perturbadora. Preciso prender o ar por uns bons segundos e só assim abrir a garrafa. Encho duas taças até a metade e retorno à sala. O sofá, de repente, parece o melhor lugar da casa. Ao menos ali não parecerá que estou tremendo tanto; quanto mais perto do chão, menor a queda. Me sento no móvel confortável e uso a mão livre para bater no tecido em tapinhas, chamando-a para se sentar ao meu lado.
Entrego-lhe sua taça, e seu nariz automaticamente está na boca do vidro, conhecendo o aroma delicado da bebida. Talvez esteja encarando demais, mas não consigo desviar meu olhar de cada um de seus movimentos. Tudo nela parece perfeito demais.
Natasha sorve um grande gole da bebida, chegando a fechar os olhos, saboreando com prazer. Sua língua corre pela extensão de seus lábios; o gesto é natural e impensado, mas quase me faz escorregar do sofá para o chão gelado.
Automaticamente estou duro, uma rocha desconfortável dentro das calças que são, ironicamente, de um tecido bastante leve. Isso acontece sempre que estou ao seu lado e nunca consigo evitar. Tudo em Natasha é sensual demais para que faça de conta que não fico excitado. Engulo metade da minha bebida de uma só vez, aproveitando o calor do álcool rasgando garganta abaixo.
— É delicioso. — ela diz, aproveitando mais um gole do vinho escuro. Não foi o suficiente vê-la lamber os lábios; agora ela limpa com o indicador uma gota teimosa que parece querer escorrer por seu queixo.
— Ah, sim, delicioso demais. — respondo, totalmente hipnotizado. Estico meu braço no encosto do móvel, alcançando seu ombro com meus dedos e acaricio seu ombro pela parte cavada do vestido sem modéstia. Sua pele é tão macia, o toque se assemelha à mais pura das sedas.
Ela ri baixo em resposta ao meu toque e ajeita o corpo no sofá, posicionando-se da maneira mais confortável para que eu possa continuar fazendo carinho. Seus olhos em minha direção parecem dois gêiseres, explodindo contra o espaço vazio que sou eu. Estou rendido aos seus encantos por completo, sem que ela sequer se esforce por isso.
— Faria o que quisesse... — digo em voz baixa, e é tarde demais quando percebo que na realidade proferi as palavras em tom normal, quando acreditava estar somente pensando. Seus olhos estão presos aos meus, mas seus lábios se abrem em surpresa, e ela parece pensar no que irá dizer.
Que merda!
— O que disse? — pergunta com a voz tão baixa que não a teria ouvido se não estivéssemos sozinhos. Meus dedos estão tão apertados contra o vidro da taça que preciso colocá-la sobre a mesa de centro, para não correr o risco de quebrar o objeto.
— Bem... E-eu só disse que... q-que e-eu... bem, que eu faria o que precisasse pra ficar confortável aqui, você sabe. — gaguejo a primeira desculpa que vem à minha cabeça, mas Natasha torce o nariz, obviamente sem acreditar em nada do que eu disse.
Em um movimento calmo, ela também apoia sua taça ao lado da minha e se arrasta no sofá, levanta-se em um pulo felino e para à minha frente. Ao mesmo tempo em que estou paralisado, sinto como se pudesse explodir com o tanto de desejo que sinto agora.
Os olhos de Ivanski não desviam dos meus nem por um segundo, enquanto suas mãos se dirigem às suas costas, puxando o zíper do vestido com tanta facilidade que me surpreendo com o movimento habilidoso.
Ela deixa o tecido cair lentamente pelo corpo, e, ao mesmo tempo em que quero implorar que pare com a tortura, aproveito cada segundo em que demonstra me querer tanto quanto a quero.
Ver seu vestido caindo por seu corpo é como admirar um artista revelando sua maior obra de arte, e sou incapaz de sequer respirar quando o pano alcança o chão. Sua lingerie é vermelha e de renda, quase transparente. Por que diabos tinha que ser vermelha?
Um rosnado sobe por minha garganta quando ela separa minhas pernas com os joelhos e sobe em meu colo, encaixando as coxas ao redor do meu quadril. Estou dolorido em minhas calças, mas ela parece não se importar com meu sofrimento.
Provavelmente porque não a deixei chegar ao seu ápice mais cedo. Sua vingança me deixa ainda mais excitado.
— Irá fazer o que eu preciso? — ela sussurra. Seus dedos já trabalham nos botões da minha camisa.
Aceno afirmativamente com a cabeça. Ela geme baixo em resposta, e preciso morder os lábios com força para não agarrá-la ali mesmo. Não o faço, pois quero saber até onde irá. Estou ansioso por isso.
— Sim, linda. — ela sorri ao me ouvir chamá-la de forma tão carinhosa. Em resposta, puxa violentamente o tecido da camisa, quase arrebentando os botões que faltam para abri-la com uma pressa repentina. Ela abre o tecido até que meu peito esteja completamente nu, então desliza os dedos pela pele quente, fazendo-me arrepiar de desejo.
— E se disser que preciso de você? — murmura baixo, aproximando o rosto do meu, quase encostando nossos narizes. Suas íris estão coladas às minhas, e nem mesmo considero desviar nossos olhos; não quero escapar de me afogar em seu oceano.
— Então sou seu. — respondo sem pestanejar, e ela fica, por alguns segundos, paralisada. Então me beija. Nossos lábios se encontram numa dança doce, e o desejo se esparrama por nossas línguas, como se recitassem uma apaixonada poesia.
Seguro sua cintura nua, puxando-a tão próximo quanto possível. Uma de suas mãos agarra minha nuca, nossas bocas tão coladas transformadas em uma só. Sua mão livre corre por meu peito com luxúria, até alcançar meu membro sobre o tecido da calça.
Um gemido alto escapa por sua garganta ao sentir o quanto a desejo. Anseio ainda mais por seu toque e não há por que adiar isso. Tenho tudo que preciso em meus braços agora.
Levanto-me com seu corpo preso em meu colo, sigo em passos trôpegos até meu quarto e deito seu corpo sobre os edredons ainda muito bem arrumados.
Natasha é tão linda, tão linda que a luz da lua que encobre sua pele não faz jus ao seu próprio brilho; nada poderia deixá-la ainda mais bela. Sinto como se todo o meu corpo pudesse se desfazer apenas com o mais leve de seus toques, e me pego surpreso ao constatar que nunca senti nada parecido antes.
Desejá-la tanto é quase tão doloroso quanto prazeroso, e tenho absoluta certeza de que faria, sim, o que ela quisesse, o que precisasse, o que pedisse ou comandasse, pois não há nada que eu não seria capaz de fazer por essa mulher. Tudo para que seja feliz, independente do quanto isso pudesse custar.
Qualquer coisa por ela valeria a pena.
Tiro minha calça e peça íntima, jogando as roupas sobre uma cadeira de madeira clara no canto do quarto. A flagro admirando o ambiente desconhecido, parecendo curiosa com a sobriedade do espaço.
Ela sorri assim que me percebe analisando-a, então ajeita seu corpo na cama de modo a parecer ainda mais à vontade no espaço. É como se já tivesse estado ali antes, como se pertencesse a esse exato lugar em minha vida. Apenas o pensamento me faz estremecer.
Não há nada sobre ela pelo que não esteja encantado; tudo que faz ou diz me deixa completamente perdido, e só consigo pensar, todo o tempo, no quanto a desejo. Quero fazê-la feliz, ao mesmo tempo em que penso, a cada segundo, sem hipocrisias, no quanto amo estar enterrado nela, fundindo tanto nossos corpos quanto nossas almas, que já parecem pertencer uma à outra.
Natasha retira o restante de suas roupas enquanto a observo, voluptuoso, e me deleito com sua postura tão aconchegada, como se já fosse habituada à minha casa e isso faz com que meu coração se aqueça mais e mais.
Tê-la próxima à minha vida, minha rotina, sem máscaras sobre meu passado, é tudo que mais desejei nos últimos meses. É muito óbvio agora que ela me conquistou no momento em que meus olhos encontraram os seus.
Assim que entrou em minha vida, já não me pertenci; nada mais era meu, nada era eu. Apenas ela e dela.
— O que foi? — pergunta com sua voz baixa, quase um murmúrio tímido que me faz abrir um largo sorriso. A desejo ainda mais agora, com os cabelos bagunçados ao redor de sua cabeça e as bochechas, que, apesar do ambiente escuro, posso ver que estão avermelhadas.
— Eu estou... Eu... Você é a pessoa mais linda que já vi em toda a minha vida. — gaguejo novamente, mas ela apenas sorri e se põe de joelhos na cama, estendendo sua mão em minha direção. Seguro sua palma com firmeza, na esperança de que compreenda que tudo que tenho lhe entrego ali.
Ela faz com que me deite sobre a cama e, assim que o faço, sobe em meu quadril, sentando-se em minhas coxas. A proximidade e o calor de sua intimidade atingem minha pele como brasa fervente. Correspondo seu toque com um aperto em suas coxas, somente para aliviar o desejo de tocá-la de uma maneira mais íntima.
Natasha abaixa seu tronco sobre o meu, seus lábios alcançam a pele do meu peito em um beijo delicado, fazendo-me enxergar estrelas ainda que de olhos abertos. Deixo o toque em suas pernas para acariciar seus cabelos e suas costas macias, quase como se entrasse em transe com sua presença e carinho.
Cada segundo que passamos juntos me faz acreditar genuinamente que sou especial para ela tanto quanto ela é para mim. Depois de tanto tempo, afirmar ser tão feliz aperta meu peito a ponto de quase não conseguir respirar, e ainda assim não há motivo para questionar o sentimento.
— Também acho que é a pessoa mais linda que já conheci... — sua voz é baixa contra minha pele, e seu hálito quente me faz vibrar sob seu corpo. Ela parece gemer baixo quando nossos corpos se encontram intimamente em um espasmo. — Tudo que mais adoro nos Estados Unidos está bem aqui! — afasta-se apenas o suficiente para gesticular por todo o meu corpo. Minha risada em resposta é tímida e sincera; ela nunca para de me surpreender.
— Fico lisonjeado. — minha voz é rouca e baixa. Espalho minha mão em seu rosto, fazendo com que me olhe nos olhos mais uma vez. — Sou seu. — afirmo novamente, para que desta vez me ouça com mais clareza.
Não quero fingir outra coisa; acho que não há necessidade de fazer de conta que tudo isso é apenas uma brincadeira ou mesmo algo casual. Não a desejo apenas porque é linda ou sexy ou totalmente independente e segura, nem porque quase morro de tesão a cada toque seu, mas porque é tudo que preciso para me manter são, de corpo e alma. E isso é precioso.
— Sou sua. — ela diz em um tom quase inaudível, mas pude ouvi-la claramente, e meu corpo estremece com a paixão que sinto por tudo que ela é.
— Ah, Nat... — é tudo que sou capaz de dizer, então apenas puxo seu rosto com delicadeza para o meu e beijo seus lábios, esperando transbordar tudo que sinto agora. E, de novo, tomo-a para mim, como se realmente fosse minha.

O feixe de luz que invade a janela me atinge diretamente nas pálpebras.
É claro e quente, tão confortável como a sensação boa em meu peito. Giro na cama, tateando o colchão ao meu lado. Está vazio, e quase dói não senti-la presente. Sou tomado por um breve momento de desespero ao imaginar que talvez tenha ido embora sem sequer se despedir.
Levanto em um movimento rápido, porém silencioso. Tive muitos anos para praticar a discrição em todos os meus passos, e poderia passar despercebido em qualquer lugar facilmente. Talvez, por muito tempo, tenha me sentido dessa forma: invisível.
Meu coração se desmancha de alívio ao perceber que ela ainda está ali, seu corpo esguio coberto apenas por uma camisa que mal cobre sua pele. Constato com diversão que é uma das que uso de uniforme na corporação, azul-escuro, com "FBI" gravado em relevo no peito. Apesar do tronco protegido pelo pano, suas pernas nuas são lisas, e, por um instante, tenho vontade de pular da cama e agarrá-la pelos membros descobertos.
Contudo, percebo o que está fazendo e travo por completo. Decido apenas deixá-la continuar com sua observação. Não sou capaz de intervir. Em cima do roupeiro há algumas fotos, todas de muitos anos atrás, com minha família, meus amigos antigos, minha antiga vida.
Um aperto toma conta dos meus pulmões, e pareço não conseguir respirar. Não porque ela está observando minhas fotos ou porque está descobrindo mais, pouco a pouco, sobre tudo o que fui um dia, mas sim porque nem mesmo lembrava dos retratos ali. Abandonados junto com tudo o que me obriguei a apagar da memória, agora passavam despercebidos.
Quando se passa tempo demais abraçando a solidão, fica fácil esquecer tudo que o rodeia, porque nada parece tão importante a ponto de merecer seu próprio tempo.
Observo seus cabelos caírem pelas costas em bonitas ondas e respiro fugaz o ar de Miami, talvez pela primeira vez em um longo tempo, sem deixar que pese trezentas toneladas em meu peito e, pior, em minha consciência. É curioso como acreditamos o tempo todo que gostaríamos de desaparecer quando, na realidade, tudo o que desejamos é ser encontrados.
Ainda assim, o genuíno sentimento da mais pura felicidade pode ser bastante aterrador na mente de quem o ignorou pelo que pareceram eternidades, e é quase difícil aceitar que, sim, dessa vez é real e não há necessidade de começar a cavar para enterrá-lo mais uma vez.
Tum. Tum. Tum.
Meu coração ribomba forte com a constatação de que, finalmente, meus braços estão abertos para dar as boas-vindas a tudo o que sempre quis: leveza e paz.
Ela me presenteou com essa possibilidade, e acho que nunca poderei agradecer o suficiente.
Minhas pernas não estão agitadas como de costume, não sinto vontade de sair para correr e reorganizar os pensamentos como sempre faço. Porque não há nenhum pensamento pesado em minha mente. Dessa vez, não tenho pressa alguma, quero apenas aproveitar um momento com a minha garota.
Alcanço minha peça íntima no chão e a visto com morosidade. Assim que me levanto para pegá-la, Natasha se vira em minha direção antes mesmo que eu dê o primeiro passo. Seus olhos gentis transbordam um sentimento que não reconheço. Tenho receio de que seja pena. Sei exatamente o que está se passando em sua mente, então me adianto.
— Este é Georgie... — digo com o porta-retratos já em mãos. Ela acaricia o vidro bem no local em que está seu rosto, então desliza o dedo até o meu. Giro meu olhar para sua expressão divertida e estou aliviado. Não gostaria de ter que falar novamente sobre o passado, parte boa ou parte ruim.
— Você era bem magro. — ela diz. Seus ombros se empertigam enquanto esconde uma risada. Seguro sua cintura, considero primeiro lhe fazer cócegas, mas desisto ao sentir seu calor em meus dedos. Prefiro aquilo à provocação. Pelo menos agora.
— O mundo seria injusto se eu sempre tivesse sido assim. — respondo, apontando meu corpo com o dedo indicador. Natasha dá um tapa em meu braço, mas dos seus lábios uma gargalhada é o que escapa. Volto minha atenção à fotografia.
— Esse é Charles, e essa, Sandy... — meus olhos se enchem de lágrimas por um momento, preciso engolir em seco na esperança de não as deixar escorrer. Eu e minha parceira já tivemos alguns momentos sensíveis; não há julgamentos entre nós, mas não quero repetir isso agora. Afinal de contas, ainda é Natal. O que me lembra... — Tenho algo para te dar.
Me afasto apenas o suficiente para pegar uma caixa no fundo de uma gaveta do roupeiro. Estendo o presente para ela que, em um movimento tímido, o retira de minhas mãos. A mulher é devagar com o papel, delicada com as fitas, como se segurasse uma preciosidade em suas mãos.
Imagine só se soubesse que segura meu coração também.
Quando termina de abrir a caixa e tira o par de luvas de boxe novinho em folha, Natasha solta um gritinho agudo e pula em meu colo, quase nos levando ao chão. A seguro apenas a tempo de nos manter em posição.
— Você gostou? — pergunto em voz baixa, as mãos suadas com o nervosismo. Quando se trata dela, quero que tudo seja perfeito. Tomo consciência de que desejo tanto sua felicidade que não mediria esforços para que fosse. Feliz.
— Se gostei? Eu amei, Franklin! Esse foi o presente mais maneiro que ganhei em toda a minha vida. — responde. Acho divertido o jeito como pronuncia “maneiro”. Apesar do sotaque forte, sua voz soa bastante infantil e, realmente, ela parece uma criança com um novo brinquedo.
— Que bom! Notei em seus últimos treinos que sua luva está bastante puída. Não queria ver mais tantos machucados em suas mãos... — seu sorriso é afável, mas seus olhos estão cabisbaixos, e ela torce o nariz em minha direção. — O que foi? — questiono, um pouco preocupado.
— Frank, não lhe comprei nada... nós não... não comemoramos o Natal da mesma forma na Rússia e... — calo-a com um abraço. Esmago seu corpo contra meu peito e planto um beijo em sua cabeça. Seus cabelos ainda têm o mesmo cheiro gostoso do perfume que usava na noite passada. Respiro profundamente, tentando absorver o máximo de sua presença.
— Tenho tudo o que preciso bem aqui...

Antes mesmo de sair do banheiro, ouço a música vindo da cozinha.
Tentei convencer Natasha a se juntar a mim em um banho para relaxar, mas ela insistiu que queria fazer um café da manhã para nós dois. Segundo ela, era o mínimo que poderia fazer depois de tê-la presenteado sem que ela tivesse feito o mesmo em troca.
Nat conseguia ser muito teimosa às vezes. Desisti da ideia de arrastá-la comigo para o chuveiro, mesmo com minha mente ativa e meu corpo aceso apenas com a ideia de poder ensaboar suas costas e lavar seus cabelos. Não queria desperdiçar meu dia de Natal sendo esbofeteado.
Por isso, apenas disse que estava em casa e que ela poderia ficar à vontade para fazer o que bem entendesse. As palavras pesaram mais em minha consciência do que eu esperava e, naturalmente, mais uma vez, estou ansioso com as possibilidades que surgem a todo instante. Com ela, tudo é uma surpresa, e não estou acostumado a isso.
Um cheiro bastante doce atinge minhas narinas junto com o som de algo vindo da cozinha. Visto uma calça de moletom às pressas, pois a curiosidade fala mais alto do que a paciência para escolher o que vestir.
Natasha continua usando apenas minha camisa, agora com um avental por cima e também um par de meias que só Deus sabe de onde ela tirou, provavelmente de alguma das minhas gavetas. Meu rosto queima só de pensar nela revirando minhas coisas e descobrindo mais sobre mim. A culpa é minha, afinal, eu disse que a casa era dela também.
— O que você está fazendo? — pergunto, apoiando os cotovelos sobre a ilha que divide o espaço entre a sala de estar e a cozinha. Ela solta um grito assustado ao mesmo tempo que pula, quase derrubando uma forma no chão. Não consigo evitar uma gargalhada. — Me desculpe, não percebi que você estava tão concentrada...
— Tive que improvisar... não consegui fazer isso como minha mãe – ela faz uma careta ao mencionar sua mãe, mas decido não perguntar nada; sei que dirá o que precisar quando estiver à vontade. — Era para ser uma pastilá de Kolomna... – Seu beicinho chateado é tão lindo que estou tentado a mordê-la. — Vem aqui, me ajude a tirar isso da forma...
Não penso duas vezes antes de dar a volta no balcão, alcançando o prato que ela me indica com um gesto de cabeça. Natasha retira o doce da forma com delicadeza, franzindo a testa para sua textura. Parece tão chateada que me corta o coração. Enfio meus dedos no doce quente e puxo um pedaço, assoprando antes que queime os dedos. Assim que sinto estar frio o suficiente, enfio inteiro na boca.
É simplesmente delicioso! O caramelizado do açúcar contrasta com algo ácido que me faz ir aos céus. É como comer uma fruta madura recém-colhida da árvore. Meus olhos chegam a se fechar com o prazer, e apenas murmuro um “humm”, sem conseguir me expressar com quaisquer outras palavras.
— Você é muito complacente. — ela diz, me fazendo rir em resposta, mas quando abro novamente os olhos, sua expressão é bastante séria, por isso me recomponho. — É verdade... Minha mãe me fazia cortar tantas maçãs para o Natal americano que é injusto que eu não tenha aprendido a fazer o doce como elas.
Elas? Mais uma vez estou voando ao redor de sua mente, tentando descobrir o que tanto esconde sobre seu passado. Sei que escancarar toda sua história não é nada fácil. Eu mesmo tive que fazê-lo contra minha vontade, mas precisei admitir a necessidade de me abrir com Natasha para, só assim, conseguir ser honesto. E me libertar.
Gostaria que ela fizesse o mesmo, mas sei reconhecer que cada um tem o seu tempo. Por isso, novamente, não tento insistir no assunto. Ela me dirá o que precisar quando quiser, e isso é o suficiente. Ao menos por enquanto.
— Posso ser complacente sim... mas isso. — digo, apontando para o doce sobre a bancada. É algo similar a uma bala, e está bastante claro que não está totalmente cozido, precisaria de mais tempo no forno, mas é realmente saboroso e não minto sobre isso. — É uma delícia, quase tão gostoso quanto...
Oh céus.
— Quanto? — ela questiona. Seu semblante é imoral, transparece todos os seus pensamentos e, mais uma vez, em menos de um minuto, ela consegue me fazer sentir elétrico.
— Quanto pavlova! — respondo, pragmático. Natasha apenas torce o nariz em resposta, se aproximando enquanto enfio um novo pedaço do doce farelento garganta abaixo.
— Querido... — diz, e seu tom de voz me arrepia da cabeça aos pés. Antes mesmo de se posicionar à minha frente, percebo que me inclino para trás, apoiando os cotovelos sobre a bancada.
Parece praticamente impossível ser intimidado por um ser tão dócil e pequeno. Contudo, ela faz tudo parecer muito mais difícil quando me encara com seus olhos claros e gigantes.
— Estamos somente nós dois aqui... não há ninguém da equipe escutando atrás das portas... você pode me falar tudo que está pensando. — ela conclui, dando ênfase ao fato de realmente estarmos sozinhos. Estremeço ao sentir suas mãos alcançarem o laço que prende o elástico da minha calça no quadril.
Oh, Senhor, dai-me controle...
Minha mente voa longe, flutuando entre pensamentos impudicos e a consciência de seus lábios alcançando meu peito desnudo, deslizando beijos cálidos por toda a extensão da pele. Sua boca é morna e úmida, e a cada centímetro de suas carícias em que a vejo ir tronco abaixo, sinto que estou prestes a derreter.
As pernas gelatinosas são o primeiro sintoma de que sou capaz de transcender meu próprio corpo com seus carinhos. O segundo é o rosnado que sobe vagarosamente pela garganta assim que ela puxa o único tecido que estou vestindo para baixo, me deixando completamente exposto.
Por fim, é sua boca, sua maravilhosa e bem desenhada boca que está ao meu redor antes mesmo que eu proteste. E preciso admitir: seria um belo babaca mentiroso se dissesse que não queria exatamente que isso acontecesse.
Enquanto seus lábios envolvem o mais íntimo de mim, sinto como se fosse capaz de levantar voo e explorar todo o universo. Sinto como se não houvesse nada tão fenomenal quanto a sensação de tê-la ali, com sua boca gloriosa tomando meu corpo para si, como se eu jamais tivesse me pertencido. E talvez fosse verdade, talvez eu só a tivesse esperado demais para isso, para entender que nada de mim era meu agora.
Mas dela, e somente dela.
Preciso fechar os olhos, controlar a respiração e apertar meus lábios para não perder a compostura. Ao mesmo tempo, sinto-me na obrigação de dizer-lhe o quão próximo me sinto de tocar o céu. Sua língua me leva à insanidade, e não sei quanto tempo vou aguentar.
Seguro o topo de sua cabeça com uma das mãos, enquanto continuo apoiando a outra na bancada, tentando manter o equilíbrio. Estou, a cada segundo, mais próximo de atingir o meu ápice e escorregar direto em uma explosão cósmica. Já consigo até mesmo tocar as estrelas que dançam em minhas pálpebras, deslizo pela Via Láctea.
Natasha aumenta a velocidade de seus movimentos, e quase me sinto desabar sobre o mármore da bancada. Os nós dos meus dedos já estão brancos. Não os vejo, mas tenho certeza disso pela força que faço para me manter em pé.
E, em segundos... êxtase. É como esperado: se erguer um de meus dedos, posso tocar uma nuvem que tropeça em frente aos meus olhos.
Só volto à realidade quando a sinto segurar meus pulsos para se pôr de pé. Nos encaramos por um momento. É curioso, mas não há nenhum sinal de timidez ao nosso redor, apenas adoração.
Veneração.
E eu acho que talvez nunca tenha sido tão feliz em toda a minha vida.

Natasha cutuca seu doce com o garfo. Está pensativa há alguns minutos, o que me deixa um pouco frustrado. Talvez isso nunca passe, talvez eu esteja para sempre preso em minhas inseguranças de não ser suficiente.
— Frank...
— Nat... — dizemos em uníssono, o que nos faz rir também em conjunto. — Pode falar. — digo, gesticulando com a mão para que continue.
Seus olhos são tão bonitos e gentis que eu não seria capaz de obrigá-la a dizer nada se não quisesse. E é provável que não precisássemos de diálogo agora. Afinal, para que nos enrolarmos em palavras quando o silêncio bastava?
Havia um sentimento tão forte pairando sobre nossas cabeças que nenhuma conversa seria suficiente para explicar.
— Feliz Natal... — ela diz, com um sorriso dançando nos lábios macios. Percebo o quanto seus dentes são alinhados, enfileirados de maneira perfeita. O movimento de sua boca é mágico quando fala, o bastante para me hipnotizar.
— Feliz Natal, linda. — respondo. Estendo minha mão sobre a mesa, para que ela a segure se assim desejar. E ela o faz, apertando seus dedos em minha palma. Uma nova risada baixa, de puro nervosismo, escapa da minha boca, e ela me encara, os olhos quase fechados de tanto que os aperta com curiosidade.
— O que foi? — pergunta, ao mesmo tempo em que movimenta os ombros para cima e para baixo, quase como se quisesse parecer indiferente, orgulhosa.
— Não é nada demais, só estou surpreso. — admito. Seus olhos continuam a questionar minhas baboseiras. Fecho seus dedos em um aperto firme, porém carinhoso. — Não me lembro de ter passado o Natal com alguém há um bom tempo... É claro que os Richards sempre tentam me arrastar para um almoço, mas sou bom em esquivar.
— Ah, disso eu sei muito bem. — ela diz, mais uma vez me obrigando a rir.
— O que estou querendo dizer é que não participo de nada há tempos: feriados, aniversários, eventos em geral... — explico, dando de ombros. — Acho que me acostumei à solidão, abracei a solidão. Então, isso... não sei, parece muito bom. Obrigado! — concluo meu pensamento. Seus olhos estão embargados por lágrimas que escorrem, pouco a pouco, por suas bochechas.
Seguro seu pulso com mais firmeza para puxá-la em minha direção, até que esteja sentada no meu colo. Aninho-a em meus braços da forma mais aconchegante que posso. Afasto seus cabelos para um lado e descanso meus lábios em seu pescoço nu. Sei que algo a incomoda, mas mil respostas idiotas passam pela minha mente, e tenho receio de perguntar até mesmo como ela está. Não quero ser invasivo.
Então espero, em silêncio. Quero que sinta que estou com ela e, mesmo que nunca saiba o que sente de verdade, para mim, apenas poder tocar sua pele é o suficiente.
— Eles todos se foram, Franklin... — ela diz. Sua voz sai engasgada e tão carregada de dor que sinto meus músculos se retesarem em resposta. — Não há nada que eu possa fazer sobre isso... Mamãe, Papai, Katya... eles se foram há tanto tempo, ao que parece... E Niko... achei que o tinha visto naquele vídeo, por isso fiquei tão incomodada. — ela continua a falar. As palavras são quase pesadas, e reconheço o sentimento de culpa que eu mesmo carreguei por tanto tempo. — Peço desculpas por não ter te contado nada antes, mas talvez... só talvez, se eu nunca precisasse admitir que a violência e a crueldade do mundo os levaram... talvez assim não fosse real. Mas isso... — ela aponta para nós dois. — Isso parece muito bom, e eu tenho medo.
Ela gira o corpo o suficiente para enterrar o rosto em meu ombro. Abraço seu corpo encolhido, puxando-a ainda mais para perto de mim. Estou furioso, sem nem ao menos saber o que realmente aconteceu, mas não consigo entender como a porra vida pode ser tão cruel ao ponto de tentar ofuscar a luz de um anjo.
Não quero saber por quais motivos ela perdeu sua família, nem mesmo tenho certeza de que quero saber exatamente como aconteceu. Não acredito que teria coragem de evitar pensar em mil maneiras de revidar, pois é isso que todos os meus demônios me gritam para fazer. Vingança. Isso é tudo o que sei.
Aperto meus braços com mais força ao seu redor. Natasha segura minha nuca com suas mãos úmidas de suor. Levo meus lábios aos dela porque é tudo o que posso fazer. A beijo com carinho, desejando que seja suficiente para aliviar ao menos um pouco de sua dor.
Jamais poderia imaginar que nossas histórias pudessem, mesmo com suas discrepâncias, ser, por fim, tão similares. E, ainda pior, não fazia ideia do quanto odiaria saber que tanto tenha acontecido em seu passado. De outra forma, poderia ser quase um alívio ter alguém com quem dividir o peso. Mas saber que aconteceu com ela parecia aumentar o peso em toneladas.
— Sinto muito que isso tenha acontecido com você. Sinto ainda mais por não poder mudar nada em seu passado... — confesso. Sinto sua respiração pesada, quase sôfrega. Encosto minha testa na dela e encaro suas pálpebras apertadas. — Mas isso... — toco meu próprio peito e alcanço em seguida minha palma em sua pele, no ponto onde, sob a pele, músculos e ossos, bate seu coração. Suas vibrações estão nas pontas dos meus dedos. — Isso parece bom, e eu prometo que, mesmo com toda a merda que vier, mesmo com toda a escuridão... — continuo. Meus olhos estão consumidos por lágrimas, e não as contenho; não preciso esconder nada ao seu lado. — Eu te prometo, vou fazer isso dar certo.


NATASHA IVANSKI

As vezes gostaria de ser capaz de criar uma realidade alternativa.
Uma onde não houvesse dor e sofrimento, onde não precisasse sentir culpa e pudesse tocar a felicidade com mais do que apenas as pontas dos dedos. Pois é assim que me sinto agora, tocando apenas um mínimo de algo que poderia ser, em outras circunstâncias, glorioso.
É ainda pior sabendo que a culpa não é de ninguém além de minha. Talvez eu fizesse tudo diferente, se tivesse uma segunda oportunidade. Será que faria?
Entre a cruz e a espada.
Daria um mundo inteiro para estar sentada no sofá de casa, para ouvir suas vozes e sentir seus perfumes, cada um deles, cada um dos que vi sangrar até virar apenas pó sob o céu.
Estou consciente de que foram minhas escolhas que me trouxeram até aqui, reconheço meus erros e nem mesmo consideraria virar às costas para isso, mas não posso evitar de pensar quais caminhos o destino teria reservado a mim e à minha família. Mas não há muito sentido em ficar pensando sobre tudo que faria diferente, principalmente agora que sei que Nikolav está vivo e que preciso alcança-lo de qualquer maneira.
— Está aí, Ivanski? – pergunta, abanando sua mão em frente ao meu rosto. Minha risada em resposta é um pouco envergonhada, é claro que eu só estava presente de corpo. Tem sido assim o tempo todo nos últimos dias, e com seus olhos afiados obviamente já notou.
Desde o Natal. Não pude esconder tudo, precisei esvaziar ao menos uma coisinha ou outra do meu peito. O peso das mentiras e segredos tem piorado mais e mais, e é ainda pior quando ele é tão gentil e amável, faz a culpa pesar o dobro de toneladas.
É impossível não se apaixonar por , a cada dia mais, a cada segundo mais. Passei tanto tempo odiando como os homens da Bratva tratavam as mulheres que, nem em um milhão de anos imaginaria que isso fosse possível. É como se o Capitão fosse um ser de outro mundo, um em que o meu destino é mais gentil e relacionamentos saudáveis e funcionais não são uma história de ninar.
— Estou, estou sim, me desculpe – respondo, minha voz tão baixa quanto o volume do rádio. Ele estende sua mão e toca meu joelho, o que me faz girar o olhar em sua direção. — Só estava pensando no trabalho...
— É claro... – comenta, soando desconfiado. Talvez me conheça melhor do que imagino, ele só não faz ideia da pior parte. — Você acha que as novidades de Kyle serão vantajosas? – pergunta assim que aciona a ré do veículo. Estou tão distraída que nem mesmo percebi que já chegamos na corporação.
Fiquei pensando sobre a mensagem de texto que o agente Roberts nos enviou durante todo o trajeto. É claro que quero saber tudo o que tem a dizer, tudo que descobriu, mas meu coração parece perder algumas batidas só de pensar no quanto Niko possa estar envolvido. Não faço ideia de onde a Semyonova chegou com sua lavagem cerebral, não sei até qual ponto sensível do Nikolav atingiram, tudo que sei é que preciso tirá-lo de perto desses malditos sanguessugas e leva-lo para casa, onde quer que isso seja agora.
— Não acho que ele solicitaria uma reunião se não tivesse boas informações... – afirmo com veemência. concorda com um aceno de cabeça enquanto sai do carro. Antes que possa sequer sair, ele está do meu lado, com a mão no trinco prestes a abrir minha porta.
Do outro lado do estacionamento, vejo alguns agentes parados na entrada do prédio. Seus olhares não desviam de nós nem por um segundo, nem mesmo quando os encaro cerrando os olhos. A sensação é um tanto corrosiva, como se nos julgassem, me julgassem. Afinal, muitos queriam estar nessa mesma posição, do lado do Capitão.
parece notar meu olhar desconfortável para os policiais, mas somente entrega minha bolsa e se enfia mais uma vez dentro do carro para alcançar sua mochila. Assim que aciona o alarme do veículo, para em minha frente com seus lindos olhos a me encarar.
segura uma mecha do meu cabelo entre seus dedos e admira os fios, os acariciando como uma pedra preciosa. Por um segundo, penso em esquivar do seu toque, mas me sentiria suja e me arrependeria no segundo seguinte. Como eu poderia desviar dele se anseio suas mãos em meu corpo todo o tempo?
— Sei que falamos sobre não esconder isso, mas se te incomoda, eu entendo, posso me afastar por alguns minutos... – ele comenta, sua voz soa tão cabisbaixa quanto seu olhar. Merda! Eu disse que me arrependeria. — Ao menos até chegar ao elevador, se estiver vazio... – completa, o tom um pouco mais divertido agora, e não consigo, nem tento, segurar minha risada.
É incrível como consegue fazer a roda da vida girar tão rápido de um jeito tão confortável e seguro. Ao seu lado, meu humor é estável, sempre feliz, não poderia ser de outra forma. Seguro sua mão e entrelaço nossos dedos de maneira carinhosa. Ando em direção ao prédio, da maneira mais confiante que consigo.
— Só não sei como reagir aos olhares, não quero estar sob os holofotes da fofoca alheia... Ainda mais sendo uma forasteira – dou de ombros, mas me viro para dar uma piscadela para ele. solta uma risadinha sem graça, mas sinto seu dedo acariciar minha pele como se quisesse me consolar.
Sei que me entende, ele sempre reforça em seus discursos o quanto demorou para ser aceito por seus colegas ao começar sua carreira na polícia, logo depois do tiro e todas as pesadas decisões que precisou tomar. E faz questão também de sempre relembrar o quanto isso o motivou. Talvez seu toque sútil queira dizer isso, que não preciso me preocupar tanto.
O olhar dos agentes queima em minhas costas assim que passamos por eles, ainda de mãos dadas, em direção ao elevador. faz questão de deseja-los bom dia, e como bons soldados, eles respondem “bom dia, Capitão”. Faço o mesmo, certa de que não deixariam de me responder, ao menos não em sua frente.
Assim que alcançamos o elevador, de soslaio vejo que me encara, um sorriso bobo dança em seus lábios, quase como se estivesse escondendo um segredo. Não resisto e me viro para ele: — O que? – pergunto.
— Acabei de constatar algo interessante – ele diz, ainda com seus dentes à mostra.
— Hmm, é mesmo? Quer me contar sobre essa sua constatação surpreendente? – pergunto, e de maneira involuntária aproximo meu tronco do seu. Dou um beijo cálido em seu ombro, e mesmo sobre a camisa ele parece estremecer. também não consegue ficar longe, mas ciente do meu desconforto anterior, não se aproxima demais, apenas encosta seus lábios em minha testa.
— Você passa tanto tempo se perguntando se é bem-vinda, se está em casa... Tudo o que vejo em você é meu próprio lar. – Sua voz sai baixinha, e meus joelhos parecem se derreter em sua frente. Como é possível uma pessoa ser assim tão amável?
A naturalidade com que diz todas essas coisas me deixa surpresa toda vez, mal consigo acreditar que tive a sorte de encontra-lo. Depois de tudo, depois de Ivan, quase desisti de acreditar que poderia um dia merecer algo assim.
— Eu sou completamente ap... – Começo a dizer, mas antes que termine, a porta do elevador se abre e damos de cara com Jetson, como sempre, é ele que está ali para nos fazer travar no meio de qualquer coisa.
— Ah minha nossa, se não são vocês... – Sua voz é quase emocionada, um falso exagero que é até divertido. Se estivéssemos em um livro de romance, Jet seria nosso maior fã.
Isso não me incomoda nenhum pouco, aliás, muito pelo contrário, sinto cada vez mais que devo agradecê-lo, afinal de contas, de diversas formas se não fosse por sua insistência, e eu não teríamos nos aproximado. A começar por tê-lo convencido a aceitar um novo parceiro.
Quando os vejo, não imagino uma dupla mais coerente, um completa o que falta no outro e de todo o esquadrão, ambos são os investigadores mais completos. Me admiro que ainda não tenham descoberto minha verdadeira identidade, e isso é quase doloroso. Não é a forma pela qual gostaria de superá-los.
— Ah sim, somos nós... e estamos indo para o mesmo lugar, suponho – diz, o tom de voz entrega sua leve irritação, talvez quisesse um minuto a mais no elevador, uma palavra a mais, como se fosse a coisa mais importante do mundo a se dizer.
E talvez eu quisesse o mesmo. Um pouco mais de tempo.
— Se por mesmo lugar estiver falando da 406, está absolutamente correto – Jet comenta, seu humor parecendo se elevar a cada segundo, como se tudo que precisasse no mundo era de um pouco mais de trabalho e seu melhor amigo. É bem fofo, mesmo com sendo mais rabugento do que deveria.
Jetson entra no elevador conosco e aperta o botão do quarto andar, seus pés parecem querer dançar no assoalho escuro, quase como se estivesse segurando sua vontade de tagarelar algo que poderia soar muito irritante. E isso seria muito típico de Jetson!
— Espero que tenham aproveitado o Natal... – Richards provoca, e apesar do tom de voz quase sutil, posso vê-lo piscar um olho para com minha visão periférica.
— Ah, aproveitamos bastante, mais do que imagina – devolve sua afronta de pronto, Jetson chega até mesmo a girar seu corpo com velocidade em sua direção, e é obvio que foi pego de surpresa. Sinto minhas bochechas esquentarem. Gostaria de não estar presente nesse tipo de situação entre os dois amigos, é desconfortável demais.
— Acham que Roberts conseguiu levantar todas as informações que precisávamos sobre o uso dos cartões de Van Hought? – Solto a pergunta para ver se assim entendem que aquele assunto pode ser discutido depois, entre os dois, sem minha presença. Ambos me ignoram, continuam a se encarar sem nem ao menos piscar. Pigarreio alto, em minha garganta, algo parece arranhar a ponto de arder. — Ainda estou aqui, sabem? – Jetson arrasta seu olhar para o meu, mas não muda sua posição.
— É, é, acho que ele quer nos mostrar algo diferente, como sempre... – diz abanando a palma da sua mão em minha frente como se me dispensasse. Logo volta a me ignorar, como se sua discussão sobre meu relacionamento com fosse muito mais importante do que descobrir o que a máfia anda aprontando, porque é claro, é apenas a Bratva. Pff, homens!
— Bem, espero que já tenham abaixado a crista até chegarmos lá – resmungo, sentindo a impaciência tomar conta da minha língua. — Ao menos o suficiente para prestarem atenção quando o detetive nos disser porque diabos o cartão de um homem acabado continua a ser utilizado! – Minha voz sai um pouco mais alta do que o esperado, mas não tenho culpa se suas atitudes infantis me irritaram a tal ponto. Ambos viram seu corpo para o meu, e sinto como se diminuísse dois centímetros abaixo de seus olhares.
— Natasha... – começa.
— Ivanski! – Jetson termina.
Não seguro uma gargalhada. É como se encarasse gêmeos de mães diferentes. Personalidades similares demais em corpos tão distintos. Dou de ombros em resposta, e os olhares inconvenientes cessam por ali mesmo.
Respiro aliviada quando a porta do elevador se abre, pulo para fora em apenas um segundo, querendo me esquivar de qualquer outro questionamento. Um capitão incomoda muita gente, dois capitães incomodam, incomodam muito mais!
— Ah, aí está... – digo ao mesmo tempo em que acelero meus passos na direção da mesa onde Roberts está inclinado sobre pilhas de papel.
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Acho que esperava por mais. Queria ouvir Roberts dizendo que encontrou informações ligadas a qualquer um dos membros da Semyonova, qualquer um mesmo. Talvez quisesse apenas ter uma notícia sobre um dos Koslov, ao menos assim saberia que todos os planos ainda estavam de pé.
É bem provável que já tenha me desviado demais do combinado original, mas se soubesse de qualquer coisa, tivesse qualquer nova informação, teria a certeza de que as coisas continuavam como deveriam ser, no curso certo ainda que com alguns desvios.
Mas não, nada. Ao menos não diferente do que já sabíamos.
Desde a morte de McCarter e a ação no galpão – que me custou um degrau mais próximo à minha própria morte -, não houve mais nenhuma movimentação da Bratva em parceria com qualquer grupo criminoso nos Estados Unidos.
Não que esperássemos isso, é claro, afinal de contas um bom mafioso sabe o momento exato para movimentar suas peças, mas confesso que seria ótimo que tivessem dado qualquer passo, para frente ou para trás, tanto faz, mas que se mexessem um pouco. O silêncio é muito frustrante, desesperador. E não sendo o bastante, não vejo Nikita desde a véspera de Natal. Ele tem estado em encontros com os parceiros de Alexander, principalmente após descobrirmos sobre Niko em cativeiro. De qualquer forma, não sei nada sobre nossas próximas jogadas e a sensação é péssima.
— Você e realmente combinam... – ouço Jet dizer logo atrás das minhas costas, sua voz é baixa, porém firme, e me faz arrepiar até a nuca. — Acho que são os únicos de toda a equipe que não se importam em preencher a papelada... – ele termina de se explicar, enquanto apoia uma de suas mãos no encosto da cadeira em que estou sentada.
Não consigo evitar um sorrisinho, principalmente porque Jetson está certo, não me importo com quaisquer documentos e muitas vezes vejo fazer o mesmo. Dou um impulso para girar a cadeira, Jet está me encarando com um daqueles sorrisos que dançam nos lábios, e pisca um de seus olhos de um jeito divertido.
— Pode me acompanhar, por favor? – O superior me questiona e, por um momento, eu hesito, mas logo em seguida me levanto e o sigo porque é o Jetson e não há porque desconfiar de nada sobre ele. O Capitão Richards passa por algumas portas e sempre que acho que entraremos em um local diferente, ele desvia. Quando chegamos ao elevador, as palmas das minhas mãos estão suando um pouco.
Acho que nunca passamos tanto tempo juntos a sós, mas não há nenhum incomodo nisso, fico apenas ansiosa para saber o que ele vai dizer depois. Por fim, Jetson para em frente à porta da sala de arquivos e antes de entrar, dá mais uma de suas piscadinhas marotas.
— Acho que não preciso mais me incomodar com isso, agora o problema é meio que seu... – diz, na verdade, soa quase como um resmungo. Ao mesmo tempo, alcança um molho de chaves em seu bolso e abre uma das gavetas de metal. Ele revira um pouco os arquivos, parecendo quase impaciente e quando encontra a pasta que procurava a puxa de supetão. — Ahá! Aqui está...
Meu estomago parece dançar salsa e meu coração dispara com o receio de saber o que Jet segura em suas mãos, mas ele parece tão tranquilo que tento me acalmar também. Não deve ser nada demais.
— É um resumo de todos os casos de ... – O capitão me conta, ao mesmo tempo em que segura a pasta em minha direção. Alcanço o documento e aperto os arquivos em meus dedos como se fosse um tesouro. Jetson acaba me dar um grande voto de confiança e isso significa o mundo para mim, porque ele sabe o quanto me importo com , é o mesmo tanto que ele se importa.
Me sinto destruída, pois de repente, sei que quebrarei seu coração também.
— Acho que pode tomar conta disso agora... – diz com um largo sorriso. Em meus olhos, lágrimas brotam de um jeito quase estúpido. — Assim como toma conta dele também... – Engulo em seco. Um bolo grosso se forma em minha garganta quando ele me deixa sozinha, a sala de repente mais fria do que de costume.
Me sinto cheia de sombras, e você não pode correr das sombras, a única opção é convidá-las para dançar. E caramba, eu poderia dançar profissionalmente com quão pesada é a escuridão arrastada pela minha história.
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— Ei, tem um minuto? – Yond pergunta, aparecendo do nada na porta da sala de arquivos. Estive analisando os arquivos que Jetson me entregou por pelo menos uma hora inteira. Meu coração, agora mais calmo, está cheio de orgulho dos feitos de . Conhecer sua história, sua evolução faz com que me sinta segura, em paz, em casa. Em certo ponto, ele é tão parecido comigo que é quase assustador.
Contudo, a chegada de Zayev me deixa ansiosa de novo. Ele não costuma me chamar se não tiver algo importante a dizer, até mesmo porque é um dos combinados que fizemos desde o início, seria suspeito que mantivéssemos uma relação próxima demais para pessoas que supostamente não se conhecem de fora do escritório.
— Claro! – Aponto a cadeira mais próxima para que se sente. Como muito bem pontuado por , a sala de arquivos é um lugar muito discreto para aqueles que querem escapar, seja de algo ou alguém. Aparentemente também é para os que querem esconder ou dividir um segredo.
— Serei breve – ele diz enquanto se aconchega no móvel. Suas sobrancelhas se erguem ao me encarar e junta suas mãos sobre o colo. Meus órgãos parecem dar um salto para trás com o nervosismo, só quero que ele desembuche de vez. — Consegui infiltrar um telefone na tocaia dos Semyonova... Acho que conseguirá falar com o seu irmão ainda hoje – Zayev diz, simples, como se não significasse nada. É como se todo o oxigênio ao nosso redor não fosse o suficiente para conseguir manter a minha respiração funcionando. Meu coração ribomba em ritmo frenético e leva um tempo para que meu cérebro consiga discernir suas palavras com clareza.
— Isso... Isso é sério? – Minha voz é embargada quando o questiono. Sinto as lágrimas escorrerem bochecha abaixo, pingando em meu colo como uma chuva quente e salgada. É claro que não posso acreditar! Não ouço a voz do meu irmão há anos...
Apenas o sorriso sincero – e talvez o primeiro que tenha visto até então – que Yond dá me faz crer de verdade em sua afirmação. Meu peito parece implodir em um buraco negro, como se o universo todo girasse apenas ao redor desse buraco negro fosse sugado com tudo para dentro dele, e ainda sim, tudo fizesse sentido. Eu ouviria a voz de Nikolav, eu poderia saber de sua própria boca como está, e não apenas suposições sem certezas.
— Como conseguiu isso? – pergunto, as palmas da mão tão suadas quanto como ficariam no fim de um treino no ringue.
— Também tenho meus contatos, senhorita . — Sua resposta é firme. Estremeço ao ouvi-lo me chamar por meu antigo sobrenome, demoro sequer a perceber que ainda é possível que se refiram a mim por meu passado, até mesmo porque muitas vezes mal me lembro de lá. Do que aconteceu lá.
Talvez esteja tentando demais enterrar tudo que aconteceu, porque quero acreditar que ainda é possível ter um final feliz. Afinal, não está escrito em nenhum lugar na bíblia que é pecado sonhar, certo?
— Agradeço que tenha – afirmo, um sorriso se prende aos meus lábios, um sorriso genuíno. Yond concorda com um aceno de cabeça e se levanta, rapidamente se despede e se vai, tão breve quanto chegou.
Me enterro novamente nos arquivos de , conhece-lo dessa forma me faz respirar com tranquilidade, como se tudo pudesse ser tão fácil, e seria ao seu lado. Pena que nem sempre tudo é como desejamos, e muito menos podemos ter tudo o queremos.
Ao menos, é assim que meu mundo funciona. Sempre foi assim.
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Sua luva de couro seco encontra novamente a lateral do meu quadril. A dor se espalha em um segundo, a pele parece se rasgar por dentro e queima como o inferno.
— Uff! – reclamo ao mesmo tempo em que levo a mão ao local. Espremo o couro da minha própria luva nova, meu presente de Natal, contra a pele dolorida.
Com o canto dos olhos, vejo se aproximar e inclinar seu corpo em minha direção. Ergo meu olhar para o dele, que me encara com um misto de curiosidade e preocupação. Chacoalho a cabeça, assoprando a mecha da franja que cola grudenta em meus lábios.
— Tudo certo? – ele pergunta, meio hesitante. Concordo com um aceno porque não há ar suficiente em meus pulmões para formular uma frase inteira. A verdade é que minha cabeça está em qualquer outro lugar, muito, muito longe daqui. Mais precisamente no celular que Yond irá me entregar mais tarde, para que possa falar com Nikolav.
Minha mente continua a divagar e não há o que consiga realmente prender minha atenção, tudo que mais desejo nesse mundo agora é ouvir a voz do meu pequeno irmão, que pelos vídeos da câmera de segurança que me mostrou há alguns dias, já não é tão pequeno assim.
Um ano e meio fez com que Niko envelhecesse toda uma eternidade. Ele parece ter muito mais do que apenas 16 anos agora, e a última vez em que o vi tinha só 14 anos, talvez tivesse acabado de completar isso. Uma única maldita noite o fez perder toda sua inocência e juventude, o havia obrigado a se tornar um homem antes do tempo. E eu sequer poderia imaginar o que tinha passado até então na mão dos Koslov.
Meu estômago se revira o suficiente para que eu erga minha luva na direção de , ele se aproxima mais um passo e tento ajeitar minha postura com o movimento mais rápido que consigo. Não quero ter que explicar porque pareço tão fora de mim.
— Quer dar um tempo? – ele pergunta, me fazendo negar veementemente.
— Não, está tudo bem – respondo, mas em minha cabeça grito: “é claro que não, ou terei que despejar em você todas as mentiras que gostaria que não fossem verdade”.
Me posiciono novamente no ringue e apoio o peso do meu corpo em meu lado direito, já com o punho erguido em sua direção. bate rapidamente com sua luva na minha e se afasta, sua postura mudando rapidamente para a de ataque.
Ele dá um passo à frente e lança seu punho em minha direção, desvio com apenas milímetros separando seu soco da minha bochecha. abre um meio sorriso lascivo que faz suor correr por toda a extensão da minha coluna, e é o suficiente para me trazer de volta a realidade. A realidade que criei em seus múltiplos detalhes e aprendi a adorar.
Assim que se aproxima para me acertar um segundo soco, respondo com um movimento rápido, acertando meu joelho em seu quadril. E ainda assim, ele consegue segurar minha coxa e puxar meu corpo mais próximo para o seu. Seu rosto está tão próximo que sinto sua respiração gelada bater em meus olhos.
— Isso está fácil demais, linda – ele diz, quase como se reclamasse, seus dentes brilhantes ainda à mostra, quase como presas de uma fera escondida. Meu corpo todo se arrepia e sinto minha pele se retesar, suas palavras acordam todos os meus sentidos e, pela primeira vez hoje, consigo centrar meus pensamentos no momento. Consigo até mesmo me esquecer um pouco da ansiedade que corroía meu estomago até então.
Empurro seu peito, cambaleando para trás quando ele é obrigado a largar minha perna e se afastar. Me posiciono mais uma vez no tatame. Mal espero que faça o mesmo e o ataco antes que esteja preparado.
Contudo, é tão experiente em combate que consegue desviar apenas um segundo antes que acerte seu rosto. Giro meu corpo com agilidade, já na expectativa de que estará pronto para revidar. Me surpreendo ao vê-lo ainda com suas costas viradas em minha direção e não espero, pulo contra sua coluna, enrolando uma das minhas pernas ao redor da sua cintura, pronta para lhe dar uma chave de leão e finalizar a luta. Só que, mais uma vez, sabe exatamente o que está fazendo.
É claro que já previa meu ataque, ele apenas acionou sua armadilha. Sabia que se parecesse vulnerável eu não hesitaria em ataca-lo, porque meu estilo é não pensar muito antes de agir, tudo que faço sempre é apenas partir para o ataque, o que só prova que nem sempre a força bruta supera a estratégia.
Assim que termino de enganchar minha perna em sua coxa, ele segura meu joelho com uma das mãos e com a outra segura o espaço livre entre a minha cintura e costelas e gira meu corpo ao redor do seu, me fazendo bater as costas com força no tatame. Ele cai comigo, prendendo minhas pernas com as suas e meu tronco com seu braço direito. Não consigo me mover.
Preciso fechar meus olhos e respirar com força para me lembrar até mesmo onde estou. Tudo que vejo são estrelas piscando em minhas pálpebras e preciso de água, muita água. Sinto se inclinar até seus lábios encostarem com leveza em minha testa suada, onde ele planta um beijo delicado antes de se afastar. Quando abro novamente os olhos, a primeira coisa que vejo é sua mão estendida em minha direção.
E ainda que me sinta humilhada, ele não zomba, ele nunca faz isso. Alcanço sua palma, apertando-a contra a minha e me levanto em um único impulso. O capitão puxa meu corpo para mais próximo ao seu, uma única gota de suor escorre por seu peito nu, através dos seus músculos definidos e como um clique em um interruptor, estou acesa.
— Você está legal? – Me pergunta, sua voz parece me fazer acordar do único pensamento sobre lamber seu peito. Balanço a cabeça.
— Sim, sim... Eu só... – digo, embananada nas palavras, mas antes que possa terminar ouço um assobio do lado de fora do ringue. Jetson está com os braços apoiados nas cordas laterais e segura um sorriso maroto nos lábios, como um adolescente que acabou de conseguir convidar a pessoa que gosta a sair com ele.
— Vocês dois conseguem me deixar tremendo por dentro – ele diz em uma voz meio estridente, como uma menina apaixonada e não consigo segurar uma risada em resposta. Jet joga uma toalha para mim e para assim que nos aproximamos da borda do ringue. Seco minha testa antes de enrolar o tecido em meu pescoço. — Não estou brincando, olhem aqui... estou suando... – Ele continua a falar enquanto aponta para sua própria testa. gargalha alto, sem dizer mais nada.
E é só então que noto alguns rostos virados em nossa direção. Não apenas curiosos por nos verem juntos, mesmo que ainda estejamos sendo discretos, mas porque sempre que entramos no ringue, é quase como ganhar um ticket gratuito para um espetáculo.
Não me admiro com esses olhares, pois cada vez que vejo entrar em seu palco, também não consigo sequer piscar. Ele é majestoso, no mínimo. Não há sequer um de seus movimentos que não sejam calculados, e seus músculos e ossos se movimentam em um ritmo ditado pelo próprio deus da guerra. Não faço ideia do porquê me deixou acertar um soco em sua boca à primeira vez que nos vimos.
— Veio só para admirar ou tem algo a dizer, capitão? – pergunta. Jet solta um risinho anasalado antes de concordar. Não parece divertido, na realidade ele parece não ver a hora de terminar aquilo.
Mas faz a gentileza de esperar até que esteja fora do ringue. Me sento na beirada da estrutura e apoio os braços na corda de proteção, assim como o capitão fazia minutos atrás.
— Na verdade, pombinhos, sim – ele diz com um suspiro pesado escapando dos lábios bem desenhados. Sua postura se torna mais firme e não são mais os olhos amigáveis de Jetson que vejo, mas sim do capitão Richards. Minha coluna parece congelar sob seu olhar prudente, e de modo automático estendo meus dedos na direção de , buscando seu calor reconfortante.
— Roberts me disse que estamos mais próximos do que nunca – ele prossegue, sua voz é dura apesar do tom baixo, como se contasse um difícil segredo. — Depois de analisar tantas vezes aquele maldito vídeo agora está bem claro que eles têm um prisioneiro de alto escalão...
— E como vocês podem afirmar isso? – pergunto um tanto exasperada e quase mordo a língua assim que a as palavras terminam de jorrar sem direção para fora da minha boca. Ao mesmo tempo, alcanço o olhar de , ele parece tão curioso quanto eu. Do outro lado, o olhar que Jet remete sobre o meu me faz encolher uns bons centímetros.
— Porque nós sabemos onde ele está...
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Devo estar encarando a tela do celular há pelo menos 20 minutos. Não sei o que fazer, não sei o que dizer. No fundo, acho que tenho medo de discar o número e ao atenderem o toque, não ser a voz de Nikolav do outro lado da linha.
Passei tanto tempo acreditando que tinha perdido todos que amei... me acostumei com o vazio latente. Agora é como se a vida me desse uma segunda chance, mesmo depois de todos os erros - todos que eu mesma cometi -, que ainda assim tivesse alguém olhando por mim. Talvez fosse papa, mama... Ou Katya. Não importa, se a vida está me dando essa segunda chance agora, é porque ainda tenho tempo de fazer as coisas do jeito certo. É o que quero crer de verdade.
2...2...57, digito número por número, pausando um segundo entre cada toque na tela para respirar. Sinto gotas de suor descerem do meu couro cabeludo como uma cascata de puro nervosismo.
Toque.
Toque.
Toque.
— Alô? – Algo em minha garganta se fecha, não consigo respirar, não há força suficiente para empurrar o oxigênio através dos pulmões. Tenho certeza que a voz que ouço é de Nikolav, apesar de soar muito mais maduro, não consigo controlar as lagrimas que escorrem dos meus olhos como se tivessem ficado presas ali por tempo demais. Esperando o momento certo para se libertarem.
— Niko? – pergunto com a voz entrecortada. Meu peito está apertado em um bolo de músculos e ossos, preciso me apoiar na parede para não escorregar direto para o chão.
? é você... puta que pariu é verdade... – ele suspira, sua voz tão baixinha e melodiosa quanto uma canção de ninar que costumávamos cantar uns para os outros em casa.
Casa.
Consigo tocar todo meu passado com a ponta da mente, e mesmo as partes doloridas, mesmo os pesadelos são encobertos por uma luz quente agora.
— Sim, sou eu, brat – eu falo, quase querendo rir, gargalhar de emoção. Só que as palavras não saem. De repente, não sei o que dizer, há tanto para perguntar, quero saber cada detalhe sobre o que fez e como foi seu último ano. Como diabos ele sobreviveu.
Estive tão empolgada com a ideia de ter meu irmão novamente que nem por um momento pensei em como talvez as coisas não tenham sido boas para ele no último ano. Não considerei nem mesmo por um momento que agora Nikolav sabe de tudo que aconteceu, sabe sobre Ivan, sobre minha traição para com a nossa família, sabe sobre tudo que tentei lhe contar e o que isso causou. Talvez Niko me odeie, e não tenho certeza se poderia lidar com isso.
— Era para você estar morta ... você esteve morta todo esse tempo... Como... Como você... Como? – Posso ouvir a ansiedade crescer em sua voz, tenho que contar meu próprio nervosismo para continuar essa conversa.
— Niko... – começo a falar, mas ele continua a fazer perguntas incompreensíveis do outro lado da linha. — Nikolav, me escute... Você está seguro agora? Está sozinho? – Ele para de falar por apenas um segundo, quase consigo ouvir as engrenagens do seu cérebro funcionando.
— S-sim... Estou com o homem que me entregou o telefone, ele... Ele veio me trazer para um banho de sol... Estou com eles, você sabe... Mikhail me fez... Você sabe... – ele continua a falar coisas sem sentido, mal consigo entender uma pequena frase sua.
— Niko, respire, respire fundo e me escute, eu tenho um plano para você escapar daí... – digo rapidamente.
Só então ele para de falar, e começo a explica-lo sobre o plano que Nikita, Alexander e eu desenvolvemos algumas noites atrás.
Nós pegaremos o meu irmão de volta.


FRANKLIN MORRIS

Não é muito engraçado como as coisas podem mudar completamente de um momento para o outro?
A vida é uma grande montanha russa, com altos, baixos e até mesmo loopings. Mas se você souber aproveitar a vista, os altos são sempre as melhores partes e valem MUITO a pena esperar.
Algumas vezes, por estar em um lugar escuro, você acredita estar enterrado quando, na realidade, talvez você apenas tenha sido plantado, ou algo tenha sido plantado em você. Algo bom e diferente, surpreendente. Algo que te faz cavar por toda a escuridão, até alcançar novamente a luz e poder respirar ar puro.
É assim que me sinto, depois de tanta escuridão sob a terra.
Posso respirar novamente.
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— Quarenta e três, ... – Jetson diz entre gargalhadas. Sua voz soa quase de um jeito infantil, e ele gira a Taurus TX22 nos dedos como se a pistola fosse mesmo de brinquedo.
Ergo minha sobrancelha ao encará-lo, incisivo, e é o suficiente para que ele pare de brincar com a arma no mesmo instante. Jetson sabe muito bem o quanto respeito qualquer objeto que possa ferir outra pessoa, principalmente uma arma, jamais deveria tratar uma como se não significasse nada assim.
— Tudo bem, tudo bem cap... mas olha só, quarenta e três é o recorde do mês! — No segundo seguinte, continua com a falação, ignorando meu aviso, ele gira em seus calcanhares apenas para piscar um olho para Natasha que está com as costas apoiada na parede logo atrás de nós.
— Aposto que ela consegue bater isso fácil... – provoco, apontando meu dedo na direção da mulher mais linda desse mundo. Minha.
Nat dá um salto para a frente, e em movimentos rápidos ela se aproxima de Jetson e tira a pistola de suas mãos. Ele mal tem tempo de ficar boquiaberto antes que ela se afaste, alcançando o estande de tiro com poucos passos.
Ivanski recoloca o protetor auricular, puxa o pente vazio da arma e no lugar ajusta dois carregadores de 16 balas. Aproveito para levar mais dois pentes e os apoio no balcão à sua frente. Ela ajusta a alça de mira e também a massa de mira na melhor posição e admira a estrutura da arma em frente ao seu rosto, levantando-a na direção dos alvos ao fundo da linha de tiro.
Seus olhos brilham para o objeto mortal em suas mãos e me pego, por um momento, bastante surpreso. Quando chegou aqui, Natasha não conseguia empunhar um fuzil sem tremer dos dedos aos cotovelos, e agora descarrega uma arma como se fosse uma atiradora de elite. Não fico admirado por pensar “quem diabos é essa mulher? ”, de vez em quando.
Estamos sozinhos na sala de tiros, já é bastante tarde, e por isso não há problemas em “brincarmos” um pouco por ali. Então também não vejo problemas em provocar Jetson, sei que ele geralmente leva as coisas na esportiva, mas também o conheço o suficiente para saber que não fica nada feliz com ficar para trás. Ainda mais para um novo detetive. Me apoio na parede divisória das linhas de tiro e pisco para Jet, murmurando um “espere para ver”. Tenho treinado com Natasha há algum tempo, e sei que ela poderia acabar com qualquer outra pessoa da corporação em uma competição de artilharia.
— Manda ver, linda – digo assim que ela me olha uma última vez, quase como se pedisse permissão para seguir com a zombaria. E é então que ela se vira para acenar com sua cabeça para Jetson antes de se posicionar mais uma vez, firmando seu pé de apoio no chão.
A loira ergue a arma na direção dos alvos, fecha um de seus olhos e respira fundo. Em um movimento curto ela destrava o botão de segurança da arma e desliza o dedo pelo gatilho, então atira, 5, 10, 13, 16 vezes. Depois o segundo pente, 16 tiros perfeitos.
Quando suas balas acabam, ela trabalha seus dedos com agilidade no aço, soltando os pentes vazios e alcançando os outros dois pentes que deixei no balcão, os encaixa com presteza na pistola e volta a mirar contra os bonecos de papel, continua a atirar. Um, dois pentes. Assim que termina o massacre ao alvo, apoia a arma na bancada, travando mais uma vez o gatilho de segurança. Ela respira profundamente antes de largar a Taurus de uma vez por todas.
Não me contenho ao me aproximar e a beijo, estou orgulhoso demais de sua evolução para fazer de conta que não quero fazer isso. Seguro sua cintura com firmeza, apertando a ponta dos dedos contra o tecido de sua roupa, a puxando mais perto. Ela corresponde meu beijo, dançando seus lábios nos meus de um modo tão macio e urgente que é preciso de muita sobriedade para que fiquemos por aí mesmo. Afinal de contas, Jetson está ali. E a pior parte é que ele, absolutamente, não liga.
É apenas por isso que nos afastamos, um bonito sorriso estampa seus lábios perfeitos, preciso de muita concentração para não a beijar de novo, e de novo, e de novo, nos últimos tempos parece que é só nisso que penso.
— Cinquenta e dois – comento para Jetson ao mesmo em que giro meu corpo para encará-lo. Natasha faz o mesmo, mas não tira seu braço da minha cintura. — E é assim que a minha garota destrói você... Cinquenta e dois tiros e... – Pauso apenas para admirar o alvo estraçalhado atrás das nossas costas, contando os buracos. — Vinte e sete desses na cabeça...
— Vocês precisam parar com isso, sabe. Não sei lidar com... É, isso — ele quase resmunga, gesticulando, seu dedo apontado em nossa direção em um movimento acusatório.
Gargalhamos tão alto, todos os três, que quase não consigo respirar por um tempo.
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Observo Natasha com o canto dos olhos, ela instrui uma outra mulher, detetive, nova na corporação, em uma luta corpo a corpo. Vejo-a demonstrar técnicas precisas de estilos de luta que nem eu mesmo conheço. Em um movimento, ela mostra à sua companheira de ringue como torcer o braço de quem a atacar, e com outro movimento ainda mais ágil como derruba-lo no chão. Não estou inteiramente surpreso de que saiba tanto quanto aparenta saber, mas a observo com curiosidade.
Noto, dia após dia, que há tanto sobre ela que não conheço. Não digo isso apenas por causa do desabafo que fez comigo logo após o Natal, o que foi o suficiente para me tocar de quão insensível tenho sido com a minha própria família, quão desatento. Não obstante a isso, também noto que não sei nada além disso sobre sua vida, só sei que mora com um tutor que a acompanha desde criança, que é seu padrinho, que só tem ele no mundo. E a mim, é claro, ela sempre terá a mim.
Se me perguntar sua cor favorita saberei dizer que é amarelo, sua comida favorita sei que é carne assada, se perguntar que tipo de carros gosta sei que são conversíveis e clássicos. Por outro lado, se me perguntar o que fazia antes de chegar aqui... não tenho a menor ideia.
E talvez, bem nos mais profundos pensamentos, isso me deixe um pouco preocupado. Não que eu desconfie sobre seu passado, sobre seu bom caráter ou o que quer que seja, tenho certeza de que ela é uma pessoa maravilhosa e de coração puro, mas é estranho derreter nos braços de alguém sem querer o que há no “antes”. Como foi sua infância, sua adolescência, quantos trens precisou pegar errado até aprender a não se perder mais? Tantas perguntas sem resposta que é impossível não ficar levemente incomodado. Só uma coceirinha, uma pulga atrás da orelha, mas que, de repente, não para mais de incomodar.
Não que eu também tenha contado a ela tudo que se passa em minha cabeça, até mesmo porque é uma carga que nem eu mesmo consigo carregar completamente, mas ainda assim, sempre acho que preciso de mais. Em partes por curiosidade, é claro, mas também porque não quero que nada fique entre nós, quero que sejamos tão transparentes quanto água, tão cristalino quanto diamantes. E não quero nunca, jamais, que tenha motivos para duvidar de mim.
Sei que se abrir e falar sobre o que aconteceu com sua família, ainda que não tenha me dado muitos detalhes, provavelmente foi a coisa mais difícil que teve que fazer, foi muito mais corajoso do que jamais poderia pedir que fosse. Sei disso porque também tive que contá-la sobre George, e o fiz no meu tempo, da minha maneira. É por essa razão que não pressiono para que me fale sobre tudo, que me conte sua história a todo instante, sei que ela o fará quando quiser. E por mim, está tudo bem.
É a primeira vez em toda a minha vida que dou espaço para meu coração, para ouvir o que ele me diz antes mesmo de pensar sobre o que vou falar, e cada vez que a vejo, meu coração me afirma veementemente que está tudo bem e posso confiar em Natasha. Decido que é isso que preciso seguir, ao menos uma vez. Mal não fará.
Meu telefone vibra no bolso da calça. Alcanço o aparelho e admiro o nome da minha mãe, brilhando na tela que pisca “Amélia ”. Meu dedo pende entre o botão de atender e desligar por alguns segundos, mas sei que preciso disso. Tenho sido negligente há tempos demais com meus pais, eles merecem um descanso, e talvez atender sua ligação lhe dê um pouco de paz no coração. Quanto tempo faz que não falo com ela? 8, 9 meses? Merda!
— Ei, oi mãe! — digo, com um pouco de vergonha, assim que aceito sua chamada. Ela fica muda por um momento. — Mãe?
— Oh, oh querido, só estou... surpresa, que tenha atendido... Como está? — Sua voz, do outro lado da linha, é um pouco rouca e parece se quebrar um tanto ao me responder. Ah, cacete! Realmente faz tempo que não lhe dou satisfações, huh?
— Me desculpe, mãe, tenho estado bastante ocupado... – minto, enquanto a vergonha parece subir por minha garganta como óleo quente. A verdade, porém, seria bem pior. Dizer que não falei com ela porque não quis a quebraria em mil pedacinhos impossíveis de recolar. Não sei se ela poderia, nem deveria, me perdoar. — Como você está? Eu... sinto sua falta — confesso em um lamento e, de repente, noto que o que digo é verdade, sinto muito sua falta, papai, Abby, Andrew e as crianças, minha família.
— Também sinto sua falta, . É para isso que servem ligações e mensagens de texto... – Posso senti-la puxar minha orelha pelo outro lado do telefone e sinto uma vontade incontrolável de rir. Mesmo morando há apenas 1h20 de carro, em Palm Beach, não tenho feito muito esforço nos últimos anos para visita-la, o que é muito filho da puta da minha parte, sei bem disso.
A verdade é que depois da morte de George, algo sombrio se enterrou em minha cabeça e me deixei consumir por todo e qualquer pensamento ruim, e mesmo datas especiais ou almoços em família já não me pareciam nada atrativos, não tinham nada que gritasse requerer minha presença de verdade. Só que agora, depois de tanto tempo, depois de enxergar o outro lado da moeda, nem mesmo a vergonha de não ter sido presente parece sobressair a vontade que sinto em tê-los por perto mais uma vez. Só mais um pouco.
— Eu sei, sinto muito. – É sincero o que digo, não sinto vontade de fingir ou esconder, quero que realmente saibam como me sinto, como me sinto sobre eles. — Como posso compensar isso para você?
— Passando o Ano Novo conosco... Abby estará conosco hoje à noite, Andrew virá amanhã, seu pai vai tocar piano como sempre e vou chamar algumas amigas minhas. Será divertido... — ela é incisiva, sua voz cirúrgica, como se realmente já tivesse planejado aquilo, mesmo sabendo qual era a possível resposta que eu daria. Ainda assim, não hesita, afinal não tem nada a perder com isso. — O que acha, filho?
— Ah droga, eu vou trabalhar amanhã... – Ouço um muxoxo do outro lado da linha e meu coração se aperta, estou cansado de sempre decepcioná-la. Ao menos dessa vez não é uma mentira, não é nem mesmo uma desculpa. Como não tinha planejado nada até então, e tinha estado fora durante o Natal, tinha mesmo me programado para ficar no escritório.
— Tudo bem, querido, quem sabe na próxima v...
— Posso ir almoçar com vocês no dia primeiro, o que acha? – Eu pergunto, sem deixa-la terminar de falar. Não quero deixa-la para baixo por outro Ano Novo, essa sempre foi uma data nossa, de felicidade e comemoração. Não quero ser de novo o cara que estraga isso para ela outra vez. Além do mais, posso dar um jeito de sair da corporação ao menos um dia. Acho que é para esse tipo de situação que serve ser o capitão de qualquer coisa. Seria legal ver Abby e seu marido, Andrew, de novo. Mamãe, papai e as crianças..., com certeza as crianças.
— Ah , que boa sugestão, vamos adorar tê-lo conosco aqui, sentimos muito a sua falta – ela matraqueia com a voz agora mais alta, dá para ouvir no tom esganiçado que ela está flutuando alto de tanta felicidade. E não posso negar, meu coração se aquece com a sua alegria também. Tudo que sempre quis foi deixa-la orgulhosa, que não precisasse se lembrar de mim apenas pelo que havia acontecido, que não lhe perguntassem sobre o filho que sofreu uma tentativa de assassinato, mas sim pelo filho de quem só guardava lindas recordações. Esperava, sinceramente, não ter estragado isso para ela mesmo antes de sequer tentar.
Ao menos agora eu tinha algo pelo que lutar, algo que valia a pena agarrar com todas as forças porque, de alguma forma, eu precisava ter algo que valesse o esforço. Eu precisava disso como precisava de oxigênio. E bem, agora eu precisava apresentar a ideia à minha família.
— Será ótimo, mãe. Hum... Você se importa se eu levar alguém? – questiono, minha mente dando mil cambalhotas só de imaginar como será o momento em que ela conhecerá Natasha, o que pensará sobre ela. E quero muito que gostem uma da outra. Para falar a verdade, não imagino um mundo onde alguém pudesse não gostar de qualquer uma dessas duas mulheres, fico bem tranquilo com relação à isso.
— É claro, querido. Vou colocar um lugar a mais na mesa para o seu amigo Jetson – Mamãe me responde educadamente, ela também gosta muito de Jetson, se diverte muito com sua presença e, bem, posso sentir um sorriso cravado em seus lábios, tenho certeza que ela mal pode acreditar que realmente estarei lá. Talvez ainda tenha dúvidas de que eu apareça e essa vai ser a parte divertida, fazê-la realmente se surpreender.
— Na verdade, mãe, não é o Jet. Quero apresenta-la para uma garota... – Minha voz sai mais hesitante do que planejei, não por receio do poderia pensar com relação à Natasha, mas porque no fundo tenho medo de que possa causar um infarto em minha mãe, sem querer. Não me lembro de ter apresentado nenhuma garota pra ela a vida toda. — Mãe?
— Pode dizer isso de novo, com a voz mais alta, querido? Ele está trazendo uma garota... – ela sussurra a última frase, e até sei com quem está falando.
— Oi Ana, espero vê-la por aí também! — Amélia gargalha do outro lado da linha, se regozijando com minha novidade. Ana, sua melhor amiga fofoqueira, nunca sai de sua casa e sei com certeza absoluta que assim que pisar em frente à porta todos os vizinhos estarão espiando pela janela. Para ver a garota do .
— Querido, qualquer convidada sua será mais que bem-vinda... Espero os dois, farei aquela torta de nozes pecan que você adora — Ela parece comentar mais para si mesma do que qualquer outra pessoa, dá quase pra ouvir seu cérebro trabalhando com tudo que quer fazer agora que sabe que estarei presente, e isso me deixa bastante orgulhoso, sua felicidade é contagiante. Caramba, como sinto sua falta. — Vou te esperar ansiosamente, meu querido . Será maravilhoso. Vou ir agora, prometi jogar carteado com Ana e ela mal espera pela surra que darei nela... — ela ri baixinho e ouço Ana reclamar no fundo.
— Nos vemos, mamãe. — Ouço o som de beijo do outro lado da linha e um clique, ela já desligou.
Agora vem a parte mais fácil. Contar para Natasha.
-
Me apoio no capô do carro ao vê-la se aproximar, não consigo conter minha felicidade quando vejo seus olhos e lábios sorrirem em direção aos meus. Cruzo meus braços em frente ao peito e ela continua sorrindo, agora de um jeito quase curioso, provavelmente lendo minha expressão de criança que acabou de aprontar alguma maluquice.
Ela é muito linda! Será que eu a mereço?
— Por que eu tenho a impressão que você tem algo muito importante a me dizer? – Ela prontamente me pergunta. Será que sou assim tão obvio e deixo transparecer tudo que sinto? Sinceramente, espero que não, assim ficará muito fácil para que entenda tudo que sinto por ela, e nem mesmo sei descrever o desespero que eu sentiria caso os seus sentimentos não fossem recíprocos.
Ou talvez seja bom, é difícil saber. De qualquer forma, deixo para lá, temos outros assuntos a lidar.
— O que planeja para o Ano Novo? — Pergunto sem muita enrolação, porque pelo menos do meu lado os planos já estão feitos. Natasha dá de ombros enquanto lhe dou um beijo na testa antes de abrir a porta para que entre em um movimento gracioso. Dou a volta no veículo e assumo o lugar do motorista.
— Temos um turno no dia 31, não? – Me questiona em resposta, olhando o calendário na tela do seu celular.
— Sim, sim – respondo, sem muita paciência, porque estou ansioso pra dizer a ela que fiz planos por nós, e espero que não se incomoda por isso. — E depois você irá jantar com o seu tutor — comento, me lembrando do que ela tinha me dito que faria. Sinto que ela tenha, em algum momento, planejado em me convidar, mas não o fez, e para falar a verdade não me importa, prefiro passar a noite toda no escritório para não deixar muitas outras coisas acumularem. De outra maneira, teria que visitar os Richards, e não acho que Mary sossegaria agora que sabe que não estou sozinho. — E no dia seguinte?
Ela dá de ombros e parece pensar por um momento, mas logo vira seu rosto para o meu. Ivanski torce o nariz e ergue as mãos em rendição, como se realmente estivesse esperando uma notícia desagradável.
— Não me diga que está pensando em outro jantar na casa do general? – Eu nego com um movimento de cabeça ao mesmo tempo em que ela me pergunta e, incapaz de esconder meu divertimento, solto uma gargalhada alta, vinda do fundo do peito, que ecoa pelo ar ao nosso redor. — Eu sabia que você estava com cara de quem aprontaria...
— Nada tão complicado – eu afirmo, com um aceno e um sorriso gentil se alargando em minha boca, para tranquiliza-la. Abano o ar com a mão antes de girar a chave na ignição e dar a partida. — Vamos visitar a minha mãe...
Quase ouço seu corpo estancar no banco do carro. Natasha parece engolir o ar com força, quase a ponto de se engasgar, seus olhos se arregalam e fica tão vermelha que talvez sua cabeça exploda. Bem, talvez não seja tão fácil assim.
-
Jetson dá dois soquinhos no batente da porta e entra sem esperar que eu responda. Também não pede licença, como sempre, mas não me incomoda nenhum pouco. Na realidade, é bom ter sua presença, já que temos andado por caminhos bem diferentes nos últimos tempos. Richards se tornou o soldadinho de brinquedo do general Nixon agora, e ele não reclama, é claro, a oportunidade vale muito mais do que qualquer dor na bunda. E, sejamos honestos aqui, não importa o que, tudo na vida tem um preço.
— Pensei que pudesse estar com fome... – Meu amigo comenta, estendendo em minha direção um prato cheio de carne assada e uma salada colorida. Gesticulo para a cadeira em frente à minha mesa para que se sente também.
O cheiro da comida é delicioso, provavelmente veio de alguma cozinha das centenas de restaurantes em Miami. Eddy passou mais cedo mesa a mesa dos que estão trabalhando durante essa noite para pedir alguns dólares, assim poderia montar nossa própria ceia de Ano Novo. É muito gentil de sua parte, ceder seu tempo parar preparar isso para todos quando já estão entediados o suficiente apenas por não poderem estar com suas famílias.
Eu os entendo, e para falar a verdade, não pedi para que minha equipe ficasse, assim como Jetson também não pediu à sua. Todos se voluntariaram, e é tão engraçado que quase chegar a ser irônico, que doem seu tempo sem mesmo ganhar nada em troca. Bem, não ao menos um jantar decente ou champanhe, ou um beijo ao soar da meia noite.
— Obrigado, não precisava. – Meu agradecimento é honesto, sua camaradagem não passaria despercebida, claro. Até porque provavelmente dá para ouvir meu estômago roncar de longe.
— Não é porque sua namorada te trata tão bem que não posso fazer uns agradinhos de vez em quando, ainda é meu melhor amigo – ele retruca, abrindo os lábios em uma risada sonora logo em seguida. Eu o acompanho ao mesmo tempo em que enfio o garfo em um pedaço de carne.
É tão saboroso que quase me sinto em casa! Minha mão treme ao lembrar que logo mais, em apenas algumas horas, apresentarei Natasha para minha família, e depois de ficar tanto tempo tão longe de todos chegarei, aparentemente, cheio de novidades.
— Aliás, onde está sua pombinha fofinha? – Ele pergunta com um tom de voz tão infantil que quase me faz cuspir a comida em outra gargalhada, mas me controlo, pra não parecer mal educado nem nojento demais, então só dou de ombros em resposta.
— Acho que com Yond, alguma tradição russa... o Ano Novo deles é todo esquisito, não tem nada a ver com o nosso – digo, esperando não transparecer minha falta de conhecimento sobre o país natal dela. Jet torce o nariz e eu completo: — E não precisa ficar com ciúme, Jet. Ainda tem sua parcela do meu coração...
— A-ha-ha, bastante engraçado... — A resposta parece simples, mas o gesto com o dedo do meio é que deixa tudo mais divertido. Volto a comer a maravilhosa comida que Richards trouxe para mim e assim ficamos em silencio por um tempo, ao menos até que ele dê uns tapinhas na mesa, buscando minha atenção mais uma vez. Apenas o encaro em respostas e é claro, há um sorriso dançante em seus lábios, porém não como os presunçosos de sempre, é muito mais genuíno.
— Estou feliz por você, de verdade – Jet diz sem que nem mesmo tenhamos entrado no assunto, mas eu o incentivo a continuar a falar com um aceno de cabeça, seja lá o que é que vem depois, tenho certeza que se ele não falar logo vai acabar explodindo. — Quando ela chegou, achei que fosse quebrar o seu coração, mas é ótimo saber que, dessa vez, estava errado.
— Ah, estou mais do que feliz que esteja errado, Jetson — Meu tom também é brincalhão, mas minha boca ainda está cheia de comida, o que faz com que ele volte a mostrar o dedo do meio. — É brincadeira... mas... você está feliz? As vezes sinto como se não fizesse metade por você do que faz por mim, e você é meu melhor amigo.
— Quando não estive feliz, ? – Sua pergunta me atinge direto no peito como um golpe de karatê. Tudo que posso fazer é concordar com outro aceno, mesmo porquê não consigo me recordar de nenhum momento, desde que o conheci, em que estivesse triste. Nem mesmo quando falava sobre o pai que abandou sua mãe e os irmãos ainda tão pequenos.
Estou prestes a respondê-lo, mas antes que o faça, ouvimos os gritos de comemoração do lado de fora. Por um segundo fico apreensivo, porque geralmente estou esperando o pior de qualquer situação, mas é aí que olho meu prato e lembro que está tudo bem. Pesco com o olhar meu relógio de pulso e clico em sua tela até que se acenda.
00h.
Tudo recomeça agora, e pela primeira vez em tanto tempo, tudo parece encaixado em seu devido lugar.
— Feliz Ano Novo, – ele diz, e um novo sorriso típico estampa seu rosto. Alivio percorre minha coluna, sei que está tudo bem.
Jet estende seu braço sobre a mesa, sua mão fechada em punho em minha direção, eu acerto seus dedos com um soco leve que faz nossos ossos se chocarem por um segundo. Se Jetson está feliz, então está tudo bem, não preciso me preocupar e estou feliz também.
— Feliz Ano Novo, irmão.
-
Ela se encara mais uma vez no espelho retrovisor e suspira, suas mãos puxam a bainha da blusa para baixo, como se quisesse cobrir ainda mais a pele que já está toda coberta. Ajusta seus cabelos lisos para trás e checa se o seu gloss está no lugar.
— Você tem ideia do quão bonita está? – Ela revira os olhos ao girar o rosto em minha direção, mas eu estou só sendo honesto, se ela pudesse só um pouquinho se ver como eu a vejo.
— Cala a boca, ! – É tudo que responde, a voz tremendo com o nervosismo. De repente, ela se parece com uma daquelas adolescentes chatas e metidas a rebelde, mas sua atitude só me faz gargalhar alto. Estendo minha mão em sua direção, com a intenção de acariciar sua bochecha, mas antes que me aproxime o suficiente ela dá um tapinha teimoso em minha palma, me afastando.
— Só estou falando a verdade, bobinha — comento, chacoalhando um pouco os ombros para cima e para baixo. Assim que percebo que falar não vai ajudar em nada, volto minha atenção à estrada. Ela volta a se ajeitar no banco, parecendo tão incomodada que quase sinto pena. — Às vezes gostaria de poder te mostrar como a vejo através dos meus olhos... – Sua resposta é uma risada simples, sem graça quase. — Não sei se poderia, se a visse como te vejo não iria querer voltar a enxergar nada mais no mundo, porque não há nada mais lindo... — Natasha não responde dessa vez, mas sinto seu corpo quase entrar em combustão ao meu lado. Estou realmente apenas sendo sincero. Bem, de qualquer forma parece surtir efeito, pois ela para de se remexer. Ao menos até que eu estacione o carro no portão de entrada da casa.
As paredes amareladas ainda são as mesmas da última vez em que estive aqui, o jardim também o mesmo, o velho Impala 61 vermelho do papai está na beira da garagem. Rufus, o mastiff idoso da Abby quase não consegue latir, virou só uma enorme bola misturada de pelos brancos e pretos. A única diferença está no balanço amarrado à arvore logo ao lado da casa.
— Eu estou nervosa pra caralho. Pra caralho! – A loira reclama ao meu lado, seus dentes parecem trincar com a ansiedade. Quando tento segurar sua mão, sinto sua palma tão molhada que é o suficiente para rir de novo. Ela me solta para que possa enxuga-la no jeans claro.
— Não precisa se preocupar, eles sentem tanto a minha falta que nem vão te perceber aqui... – digo de modo cínico e volto a rir quando Natasha acerta um soco em meu ombro. — Ai ai. Ok, é sério agora... você é educada, linda, inteligente, muito muito linda mesmo, não existe qualquer possibilidade de não deixar minha família toda babando... já disse que é linda?
— Fran...
— Tio ! – ouço a voz de Annie gritar enquanto a porta da frente se abre com um estrondo e uma menina que quase desconheço corre em minha direção se agarrando em minha perna. Porra, sua cabeça bate em minha cintura agora!
— Ana banana! Minha nossa, você está parecendo um troll de tão grande... — ela gargalha alto assim que me abaixo para abraçar seu corpinho magrelo e fazer cócegas ao mesmo tempo.
— Você precisa ver o Evan, ele parece uma girafa agora... e também cheira como uma. – Ela ainda tem uma vozinha de sinos encantadora, apesar de estar tão diferente desde a última ligação por vídeo que fiz para Abby, ainda é só uma menininha delicada.
Uma bola se aperta em meu peito. Sinto como se pudesse ser mais uma vez puxado para baixo, para aquele lugar escuro e úmido abaixo da terra. Por um minuto, o oxigênio se prende em minha traqueia e estou receoso de que não chegue a tempo em meus pulmões.
— Ah, meu querido... – Mamãe dispara para fora da porta, suas pernas quase se atrapalham até que chegue a mim. Seus olhos estão marejados e não consigo controlar minhas próprias lágrimas quando enlaço meus braços ao redor dos seus ombros. E é como se tudo estivesse mais uma vez em seu lugar.
Há aqueles que digam que um abraço pode curar tudo. Acho que se esse abraço for de mãe, cura tudo e um pouco mais.
— Me deixe te ver... – ela diz enquanto segura meu rosto em uma de suas mãos, como se analisasse cada milímetro, procurando por falhas. — Há quanto tempo não corta o cabelo? você fica tão mais bonito quando está com o cabelo curto... você precisa... — Então para de falar antes mesmo de terminar sua frase. É quando percebo que notou Natasha parada mais ou menos um metro atrás de nós, encolhida como se pudesse desaparecer caso continuasse bem silenciosa.
Me dirijo rapidamente ao seu lado e seguro sua mão. Aperto meus dedos contra os seus, que tremem um pouco contra o meu toque. Aproximo um pouco mais meu tronco do seu, o suficiente para que nossos ombros se encostem levemente de forma que se sinta um pouco mais segura.
— Mãe, essa é a Natasha, minha... bem, minha — digo de um jeito enrolado, sem saber exatamente como apresenta-la. Talvez devesse ter pensado mais nisso antes, que merda, não tinha parado para analisar o que somos até então, nunca tinha precisado antes.
Amélia parece examiná-la pelo que parece toda uma eternidade, seus olhos correm dos pés à cabeça da minha garota, analisa nossos dedos entrelaçados e então volta a admirar o seu rosto com curiosidade. Por fim, respira, parecendo quase aliviada. Em poucos passos, ela caminha até parar em frente à Natasha e segura seu ombro em um toque firme.
— Minha querida, é um alivio vê-la... carne e osso, sabe? Quando disse que traria uma garota, eu logo imaginei o Jetson com uma saia kilt novamente, como naquele feriado de São Patrício, se lembra? – Pergunta especificamente para mim, mas seu tom é sério, como se contasse para a outra uma coisa muito importante que marcou sua vida. Concordo, erguendo um pouco mais meu queixo, mas seguro uma gargalhada alta com as memórias. Foi uma festa inesquecível!
Ao meu lado, Natasha não se contém e ri, em alto e bom som. Todos ficamos em silêncio e a encaramos, seu rosto agora parece um pimentão, mas ela apenas chacoalha os ombros.
— É só que isso é... é tão Jetson! – Ela diz, simples e minha mãe também dá uma risada em resposta, então todos ali estão rindo também, inclusive minha linda irmã Abby que está apoiada no batente da porta. Minha mãe dá um puxão de leve no ombro de Natasha e solto sua mão. Logo Amélia está levando-a para dentro, dando tapinhas em suas costas.
— Me deixe então te contar sobre a vez que chegou completamente bêbado com esse melhor amigo, os dois de roupa íntima, cada um com uma flor desenhada na bochecha numa festa de primavera da vizinhança...
Não sei se me sinto aliviado com o rumo da conversa ou não, mas meu peito parece livre de toda a escuridão, de uma vez por todas.
-
Nunca imaginei que esse momento pudesse acontecer, nunca me preparei para que nada do tipo acontecesse, nem mesmo posso dizer que em algum dia fiz questão. Sempre vi meu futuro como um grande nada, enorme e escuro, com tanto peso que mal poderia carregar. Jamais considerei que, em qualquer que fosse a situação, haveria luz aqui dentro.
O dia foi tão agradável que não consigo considerar um futuro onde não queira fazer isso mais e mais vezes. Talvez tenha demorado demais, espero que não tenha demorado tanto que não possa consertar meus erros totalmente, mas a sensação de conforto me dá a certeza de que não devo perder nenhum segundo a mais. Consigo me ver trazendo meus filhos aqui, para que corram nessa mesma grama, brinquem no mesmo balanço que as crianças tanto adoram, que fiquem horas e horas, tomando refrigerante quase quente com meu pai na garagem, onde ele lhes mostra suas ferramentas e peças de carros antigos.
Quero que eles tenham tudo que desperdicei fingindo não amar por tanto tempo.
A melhor parte do dia foi durante o próprio almoço quando Abby nos contou que está grávida do terceiro filho. Evan e Ana pareceram tão animados com o novo irmãozinho que minha mãe e meu pai caíram no choro mais uma vez. Não houve um segundo sequer que não apreciei como a joia mais rara, e preciso agradecer a ela por tudo isso. Se não fosse por Natasha, por toda a luz que trouxe para minha vida não acho que isso teria acontecido tão cedo. Se não fosse por ela e sua história, por todos os sentimentos bons aos quais havia me apresentado, talvez eu nem mesmo me lembrasse do verdadeiro significado da saudade, e talvez seria apenas um outro dia 01 de janeiro, sem qualquer outro sentimento agregado.
Admiro-a sentada ao piano ao lado do papai, tocando Love of my Life da Queen. É incrível como ela não para de me surpreender, mesmo depois de tantas coisas boas e, quem sabe, até mesmo de ter me mostrado outra maneira de enxergar a vida. Não acho que seja possível que as coisas fiquem ainda melhores agora, de verdade.
— Pode me dar uma mãozinha aqui? – Mamãe me cutuca no ombro, fazendo com que desperte do meu transe ao admirar os dois “cantores”. Concordo com um aceno de cabeça e a sigo até a cozinha, onde ela me entrega um pano seco e pede para que enxugue a louça, o que começo a fazer de bom grado. Ainda mais depois de uma refeição maravilhosa, o mínimo que podia fazer era ajuda-la com qualquer coisa que me pedisse.
— Obrigada por hoje, foi muito especial – eu comento, sem pensar muito, porque talvez se começar a pensar e planejar muito, nunca consiga realmente expressar o que sinto. Amélia me dá um sorrisinho de lado ao mesmo tempo em que me entrega um prato limpo.
— Eu é quem agradeço, de verdade filho, sentimos muito a sua falta por aqui , é muito vazio quando não está... – ela afirma com convicção, como se realmente eu fizesse assim tanta diferença, de um jeito que nunca nem mesmo havia considerado. Meu nariz começa a coçar no mesmo momento, sinto as lagrimas começarem a invadir os olhos daquele jeito que faz a gente se sentir meio bobo.
— Não tenho nem mesmo como me desculpar... – Eu começo a falar, pra tentar me justificar e explicar, ainda que não tenha como fazê-lo de verdade, mas ela deixa a louça de lado e me dá um tapinha no ombro para interromper meus pensamentos antes mesmo que eles comecem a vazar pela boca. Seu sorriso é tão largo e bonito que me emociono ainda mais.
— O importante é que está aqui agora, filho... – Sua voz não passa de um sussurro agora, e eu só posso concordar com um balançar da cabeça, envolvo seus ombros com meu braço livre e beijo sua testa com todo o amor que consigo transmitir. — Não sei tudo sobre a garota, mas acho que devo agradecê-la por isso também? – É uma pergunta retórica, claro, e mamãe me faz dar uma risadinha que diz tudo. Sem dizer nada, porque não sei muito bem o que dizer, alcanço um copo na secadora.
— Natasha é muito especial... não achei que fosse possível, mas acho que ela conseguiu me tirar daquele lugar onde fiz questão de me jogar de cabeça. – Uma nova risadinha chega, uma bem sem graça dessa vez. Mamãe se apoia na pia, me encarando ao tirar as luvas de plástico, que joga dentro da cuba sem muita paciência. Ela está muito mais entretida com o meu assunto.
— É bom vê-lo apaixonado, querido. É um caminho desconhecido para mim, como sua mãe... mas se está feliz também estou, é claro. Tudo que sempre quis foi isso , que tivesse alguém que pudesse segurar sua mão da maneira que talvez eu não consiga fazer, ou ler os seus pensamentos como nenhum de nós consegue alcançar... se é ela quem faz isso por você, espero que não a solte mais – ela finaliza seu pensamento com um sorriso bonito que só mães podem dar quando estão genuinamente felizes, e acho que talvez meu coração tenha crescido um pouquinho de tamanho.
— Você sabe que tudo isso é novidade pra mim também, mãe, compartilhar meus pensamentos... meu passado... – comento de forma amargurada e ela concorda, porque mais do que ninguém ela sempre conheceu o lado mais escuro. Foi mamãe que no fim das contas segurou uma mínima luzinha acesa, um fósforo, para que eu não me perdesse de vez no breu que era minha cabeça. — Não sei em que momento isso mudou, que eu mudei, mas mudei. Você acha que sabe tudo sobre todas as coisas, e aí alguém aparece e reescreve todo esse livro dentro de você, te apresenta uma nova história – dou de ombros, uma sensação de leveza deixando meu peito enquanto admito tudo que realmente sinto e tenho prendido, escondido em um baú discreto em meu coração. — Ela faz essa coisa, de pegar tudo e transformar em algo que nem poesia poderia descrever, se transforma de repente na única luz que poderia iluminar meu caminho até estar em casa, em abrigo para que não sinta mais frio, um sussurro na minha consciência que só me faz acreditar que é ela... desde o momento em que a vi pela primeira vez. Mesmo com todas as minhas peças quebradas e algumas faltando... ela esteve ali, e eu não tenho mais dúvidas do que isso é – despejo tudo em minha mãe, e é a melhor coisa que poderia fazer, é leve e saudável, é bom. Seus olhos estão marejados quando eu digo, a certeza queimando em meu peito:
— Eu a amo.



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Nota da autora: sem nota!

❯ hydra's note: TÁ DIZENDO QUE AMA AQUI, Ó! A GENTE AMA ELE, GOSTA DELA, GOSTA DELA!!!

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