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Revisada por: Júpiter

Última Atualização: 12/09/2024

— Com licença! — berrei ao sair pela porta da sala de aula assim que a professora se despediu, apressada em iniciar a corrida pela minha vida.
Ou eu chegava antes de Tori à biblioteca ou ela iria bancar a panaca comigo, como sempre, renovando o máximo que pudesse o empréstimo do único exemplar que poderia me ajudar na pesquisa sobre estudos de reabilitação para neurobiologia da psicopatia — do qual eu já sabia ter somente uma unidade disponível. Confesso que parecia uma louca, mas isso não importava naquele momento, eu me recusava a esperar por ela para ter o livro em minhas mãos, assim como jamais insistiria em ler on-line; odeiem ou não, mas não, eu ainda gostava muito da moda antiga, segurar um montinho cheiroso na mão e folhear as páginas. Também era muito interessante usar o meu post it transparente para fazer marcações em meus estudos. Além de que eu sabia muito bem como a senhorita Maxwell gostava de receber suas pesquisas solicitadas com fontes literárias antigas, de base.
Então, sim, para agradar minha professora favorita e odiada por muitos, eu alimentaria minha competição com Victoria Evans para ser a melhor, mesmo que isso me rendesse correr pelos corredores do prédio como se minha vida dependesse daquilo. Estar chegando nos últimos períodos da faculdade me rendeu uma coisa chamada “tô nem aí para o que vão pensar”. É inevitável, uma hora ou outra a vida universitária te presenteia com esse adorável método de autoproteção.
Era mais importante garantir minha nota máxima do que me preocupar com o que iriam pensar — até porque ficava uma coisa muito gostosa no ar todas as vezes que Tori esperneava, dizendo meu nome com sua voz irritada, por eu ter, outra vez, chegado antes dela em alguma coisa; poderia ser sim um grande trauma de infância, já que estudávamos juntas desde novinhas, e tive o desprazer de ela também optar por fazer psicologia na mesma universidade. Ainda assim era bem satisfatório ganhar dela em tudo.
Assim que desci o último lance de escada, a vi sair do elevador. Nossos olhares se cruzaram e semicerramos os olhos uma para a outra, nos encarando, com o desafio lançado. Pronta como já estava desde que Patricia Maxwell, em toda sua elegância, anotou no quadro o pedido de uma tese sobre a perspectiva do neurodesenvolvimento da psicopatia, eu tinha minha vantagem. Sabia que Tori optaria pelo elevador, achando ser mais rápido, mas a partir do momento que as aulas terminavam, o cubículo automatizado se enchia de forma surreal, e como eu estava mais perto da porta, conseguiria sair mais rápido.
E foi o que aconteceu.
Ela precisou se esquivar de muitas pessoas, enquanto eu corri para o final do corredor térreo, entrando na biblioteca com toda a minha felicidade de ser vitoriosa mais uma vez. Ser competitiva era um porre, mas eu bem gostava quando ganhava.
Bee, já está aqui dentro, não precisa mais correr... — Fui recebida pela bibliotecária, Antonia, uma senhora de meia-idade muito adorável. — Aceita uma água? — ofereceu, acredito ter sido educação por conta de me ver ofegante.
Me curvei brevemente, flexionando os joelhos, e logo me recompus, ajustando a mochila em minhas costas e o meu rabo de cavalo. Pensando melhor, ter escolhido algo mais esportivo para aquele dia, diferente da bolsa transversal pequena, levando o fichário na mão, foi uma decisão bem astuta.
— Depois eu pego, Tonia... Primeiro eu preciso colocar as mãos naquele livro que eu sou louca para ler! — Fiz uma careta para ela, agindo como se fosse o Smigol falando sobre seu precioso anel.
— Não brinca? Finalmente Maxwell deu o tema? — Antonia uniu as mãos na altura do peito, causando um barulho de palma e logo se autorrepreendendo devido à exigência de silêncio no ambiente.
— Sim, deu! Eu tô tão feliz, você sabe o quanto esperei para poder falar sobre isso, Tonia!
— Sim, eu sei... — Ela moveu os olhos para a porta e sua feição mudou. Eu acompanhei e logo vi Tori parada do lado de fora, com o vidro nos separando. Ela abria a porta, quando Tonia disse: — Desculpe, Victoria, a biblioteca já está com a capacidade total... Precisa esperar alguém sair, querida.
Segurei meu riso e ajustei a postura, ainda parada no mesmo lugar.
— Mas só estou vendo Bee e os dois ali na mesa, a capacidade é para quatro pessoas, Antonia — Victoria rebateu, ainda parada do lado de fora, mas entre o vão aberto da porta de abertura lateral.
— Tem outro rapaz do curso de direito por aí... — Tonia gesticulou.
— Mas ele tem a própria biblioteca, o que está fazendo aqui? — a outra reclamou ao vento, fechando a porta e dando as costas, furiosa.
Meus olhos encontraram os de Antonia e eu me aproximei, inclinada por cima da mesa dela, que nos separava, para fazer um toque de mão. Ela era uma das maiores testemunhas de como eu e Evans éramos uma com a outra, sempre presenciando nossas brigas entre as prateleiras por causa de livros, notas e tudo o que envolvia nossa competição antiga.
— Eu vou lá procurar — disse ao me afastar. Peguei o necessário e entreguei a mochila para ela colocar no guarda-volumes, como exigência.
— Vê se não se perde no horário hoje, hein! Quero fechar cedo e você precisa se alimentar e viver a vida lá fora, Bee! Está quase terminando os estudos, precisa agora estudar outro campo... De preferência que envolva anatomia.
— Antonia! — Senti minhas bochechas arderem, entendendo o que ela quis dizer, e controlei o volume da voz para não atrapalhar os alunos que já estavam ali. — Eu tô muito bem sozinha. Quando conseguir me tornar doutora e puder contribuir no veredito lá no tribunal, eu penso nisso. Minha regra, lembra?
— Besteira — revirou os olhos, pegando seu chá. — Para toda regra existe uma exceção, querida... E eu duvido que algum dia alguém irá conseguir tirar seu foco, por mais que tire os seus pés do chão, mocinha.
Respirei fundo e entrei no meu modo entediado, assentindo somente por respeito a ela. Não respondi e apenas segui meu rumo entre as prateleiras.
A universidade dispunha de prédios abarrotados de salas de aulas, divididos de acordo com a área estudada (apenas a de ciências sociais aplicadas era dividida em dois, pela lotação máxima) e cada um tinha em média de duas a três mini bibliotecas com ambientes para estudos, além do grandíssimo prédio da biblioteca principal — um dos motivos de eu ter escolhido a dedo onde me formar. A maior parte do meu tempo era gasto estudando ali desde que iniciei os estudos, por isso tanta intimidade com Antonia, então eu já conhecia o lugar como a palma da minha mão.
Deixei meu caderno e estojo em cima da primeira mesa que encontrei mais no fundo e peguei meu celular, usando o aplicativo para ver no catálogo em qual prateleira eu encontraria o exemplar. Assim que me informei, varri o ambiente com o olhar e logo a encontrei, vendo-a fechada — a parte mais interessante, para mim, era que para o lugar ser compactado, as prateleiras abriam e fechavam, tendo uma alavanca em cada extremo para serem giradas, levando a enorme estante de um lado para o outro.
Pelo número de série, imaginei que estaria na última divisão, porém lá em cima. Respirei fundo e prendi meu cabelo mais firme, como um ato repetitivo de nervosismo, e olhei rapidamente para Antonia, desistindo de pedir que ela me ajudasse, assim que a vi concentrada em digitar algo no computador. Há algum tempo que ela estava tentando escrever o próprio livro e eu achava adorável a forma como ela encarava as letras na tela e, depois de ler seus inúmeros rascunhos, eu com certeza me tornei uma fã e ansiava por finalmente poder saber que caralhos Henry havia deixado na carta para Monalisa antes de partir para o exército. Não quis atrapalhá-la.
Então fui sozinha.
— Vamos lá, Bee, você só precisa segurar o corpo e girar a alavanca — repeti para mim mesma em um sussurro, parando à lateral da estante. Das outras vezes que eu tentei fazer isso, sempre levou horas para que eu sequer conseguisse dar a primeira volta e mover centímetros do móvel.
Mas agora eu fazia academia. Isso ajudaria, não é? Pelo menos eu esperava que sim, ou então vinha sendo um dinheiro gasto sem necessidade. — Sim, um dos motivos de eu acordar às quatro da manhã e fazer exercícios diários às cinco todos os dias, incluindo os finais de semana, era para conseguir mover os brutamontes chamados de estantes, cheias de livros; era necessária certa vantagem contra Evans e o condicionamento físico seria um bom ponto, o campus era enorme.
Me esforcei, não movendo nada, porém não desisti logo de primeira. Demorou até o êxito vir e, quando veio, eu fui pegando o jeito da coisa, levando tudo para o lado direito. Até ouvir um berro.
— Tem gente! Tem gente! Ei!
Parei imediatamente de girar e curvei meu corpo para o lado, deixando só minha cabeça aparecer entre o vão das duas estantes quase coladas. Levei um susto ao ver que tinha realmente alguém ali, preso no espaço e quase todo torto.
Minha matemática não era boa, passava longe disso. Para não ser boa precisava ser ruim, o que não era o caso, ela era ridiculamente péssima. Tomei um certo tempo por esse delay para calcular: se os outros dois alunos lá na mesa da frente, no espaço de estudos com computadores, somados, era igual a dois e tinha eu, dava um resultado ímpar; a biblioteca tinha sua capacidade para quatro pessoas. O quarto ser, que permitiu que Evans não entrasse, por ser um intruso do curso de direito, estava ali, então, sendo espremido por mim. Na verdade, pela estante que eu estava empurrando.
— Oh, céus! — Me desesperei e recolhi a cabeça, tentando voltar tudo, sem conseguir, o que me deixou mais nervosa ainda. — Eu não consigo girar de volta... Droga! — reclamei, manhosa, e me afastei, passando a mão na testa para tirar o suor antes de me colocar entre o vão e o encarar ali, naquela posição delicada. Antonia estava tão concentrada que eu não quis atrapalhá-la, haja visto que nem mesmo o berro do rapaz ela ouviu.
Ele arregalou os olhos rasgados para mim e eu torci os lábios, completamente envergonhada.
Já podia ouvir a voz de Laura se eu contasse isso a ela e ainda lhe salientasse o quão bonito ele era.
“Você está vendo que os deuses literários colocaram este ser aleatoriamente bonito para você espremer entre as prateleiras no lugar que passa quase todas as horas do seu dia?”, tenho certeza de que ela diria algo assim, tentando contornar a sua opinião controversa de que jamais iria existir a chance de eu encontrar um, segundo suas palavras, “grande amor” na biblioteca.
Engoli a seco e pensei rápido.
— Você consegue vir? — Estendi minha mão para ele, sugerindo. — Eu te ajudo.
Pelo tamanho dele e o meu, aquilo com certeza não daria certo. Academia nenhuma iria me dar condicionamento físico para sustentar um corpo que poderia claramente sumir com o meu se estivesse em minha frente ou por cima de mim.
Ele pareceu confuso e medroso, mas tão derrotado quanto, então estendeu seu braço e tocou minha mão. Imediatamente um choque elétrico gostosinho me percorreu por todos os cantos, mas eu ignorei junto com o pensamento anterior sobre tê-lo em cima do meu corpo, segurando-o firme e me forçando a ir para trás, puxando ele.
Por pouco ele não caiu em cima de mim quando eu me desequilibrei para trás; o acidente foi impedido por suas mãos ágeis que me seguraram pelos ombros, porém o choque entre nossos corpos foi um pouco forte e isso fez com que o óculos dele caísse no chão. Eu, como uma boa e velha desastrada, rapidamente me afastei para pegar, mas não pude evitar meu nervosismo atrapalhando meus sentidos e acabei pisando sem querer.
Ouvi ele “gemer” em dor.
— Ooops... — disse baixo, arrependida desde o início, mas ainda peguei o acessório e coloquei entre nós, à vista. — Se não tinha como ficar pior... — O vi se esforçar para focar a visão no objeto torto em meus dedos. — Digo, a situação... O seu óculos não, ele é lindo... Ou pelo menos era... — desembestei a falar sem saber o que dizer realmente. Desta vez, fui eu quem gemeu sôfrego. Eu jamais conseguiria fazer qualquer coisa em minha vida sem incluir destruição.
— Tudo bem, não tem problema... — ele respondeu com a voz murcha e um sotaque entoado como uma flecha carregada.
Ótimo, ele era estrangeiro, e eu amo sotaques. Provavelmente era aluno do programa de intercâmbio da universidade que trazia alunos de todo o mundo com bolsa integral para uma formação acadêmica.
Laura iria me alugar por horas e me convencer de que eu definitivamente me tornaria a tia dos gatos, mesmo não tendo irmãos para ter sobrinhos. Tia dos filhos dela, talvez. Porque não tinha a menor chance de algum dia eu conseguir ficar com alguém sem causar algum estrago. Não contar a ela sobre esse ocorrido foi o primeiro alerta em minha cabeça.
— Claro que tem sim! — Não me contive, sentindo o remorso ao analisar a feição dele. — Você está bem? Me desculpa, eu estava muito ansiosa e não notei que tinha... que você estava ali! Deve estar todo machucado. — Tateei seu ombro, ainda maltratando seu óculos em minha mão, enquanto ele tentava pegar, e eu, com toda minha afobação, esqueci do detalhe.
Na minha cabeça não tinha nada organizado, piorando a bagunça quando toquei nele.
— Eu tô bem, de verdade... — tentou me convencer e estendeu o braço para pegar o óculos da minha mão. Tentei captar de onde poderia vir sua calmaria, porque eu estava ali, quase colapsando, e ele mantendo um fluxo tranquilo, como se nada estivesse acontecendo.
Como se uma louca não o tivesse feito ficar preso entre duas estantes.
Em segundos, eu me organizei pelo mínimo, como colocar a sujeira embaixo do tapete, deixando a situação menos caótica, ainda que estivesse começando a notar coisas demais ali. O principal fato, eu ter prensado o cara entre duas prateleiras e quebrado seu óculos, que parecia muito novo, começou a ficar quase em segundo plano e eu tive um leve alerta sobre a possibilidade de estar reparando demais em seus traços.
— Ah, claro... — Estendi e ele pegou. Enquanto analisava o estrago no meio da haste, eu o observei.
— Posso pagar pelo estrago... Ou melhor, compramos outro! Ele parece ser novo...
— Era sim — respondeu, triste. — Mas, tudo bem, essas coisas acontecem. Talvez seja um sinal divino para eu aceitar usar lentes. — Ergueu seu rosto, sorrindo para tentar me convencer, com o sorriso mais específico que vi em toda minha vida.
Além do detalhe de seus olhos rasgados, delineados como um felino, irem se fechando, era uma coisa surpreendente ver sua boca se tornar maior, mais larga, enquanto o lábio inferior se formava em uma linha, mostrando os dentes alinhados. Uma harmonia que trazia até um som de harpa, melodicamente encaminhando meus sentidos para uma calmaria. Ninguém diria que aquela boca pequena, sempre em bico quando falava, poderia se tornar tão hipnotizante assim.
Sorte de quem assistia a isso todos os dias, porque realmente era um sorriso muito bonito. Muito mesmo. O tipo que faria qualquer um não conseguir desviar o olhar e se prender, assim como eu.
Notando meu estado petrificado, limpei a garganta.
Precisava me organizar de verdade urgentemente, estava lidando com muita coisa ao mesmo tempo.
— Ou seja, um sinal para eu parar de competir com a Victoria Evans... — murmurei, lembrando de Laura me dizer que aquilo entre nós duas já ia longe demais, até pela nossa idade. Ele me encarou, confuso, e eu varri a aleatoriedade para longe. — Por favor, me deixa pagar o conserto ou por outro óculos... É o mínimo que posso fazer.
— Não se preocupe... Está tudo bem — ele insistiu, tentando colocar o óculos torto.
Ficou adoravelmente engraçado e eu ri fraco, com meu tique de sempre: franzir o nariz. Isso me dava muita vergonha, porque eu só conseguia lembrar de o meu pai agindo como se eu ainda tivesse cinco anos de idade quando eu sorria para ele assim, genuína.
— Ficou fofo — saiu sem que eu pudesse conter e, para não tocar na ponta de seu nariz, levei as mãos para trás do corpo. — Um novo estilo, talvez até eu possa aderir.
— Vai ser interessante fazer apresentações de seminários assim. — Ele tirou e guardou no bolso frontal de seu moletom.
Então o silêncio caiu entre nós. Eu só ouvia o barulho dos meus pensamentos misturados e em briga para ver qual iria se sobressair. Fiquei com medo de abrir a boca e falar alguma coisa no idioma do Tazmania dos Looney Tunes.
— Bem, eu vou indo, então... — Ele foi o provedor da quebra do silêncio, colocando as mãos nos bolsos da calça.
— Você está mesmo bem? — perguntei, para assegurar.
— Estou. De verdade — sorriu para mim com os lábios fechados e, de alguma forma, eu fiquei decepcionada porque criei a expectativa do sorrisão 10/10. — Fica tranquila, mas só... vê se não esquece de garantir antes que não tem outra pessoa entre as estantes — alertou, rindo fraco.
Fiz um gesto como continência e ele riu outra vez.
— Pode deixar! — ri junto e, ao desviar o olhar brevemente, sem nem saber o porquê, olhei a estante, no alto dela, e me lembrei do exemplar. Eu não ia conseguir pegar sozinha. — Será que eu poderia te pedir um favor? — perguntei, hesitante. A vergonha estava me consumindo.
— Pode, claro.
— Antes de ir, você não pode... É... — Fiz careta. — Pegar para mim algo na última prateleira? — apontei. — Está na divisão sete, mas eu não alcanço e Tonia está muito concentrada... Não quero pegar a escada, tenho medo de altura — sussurrei a última parte.
Ele se virou e assentiu, simples.
— Eu pego. Qual é o número de série dele?
— 1897-P. — A resposta estava na ponta da língua e ele pareceu surpreso.
Sem dizer mais nada, ele fez o que eu pedi e logo colocou em minhas mãos o livro que eu tanto estava ansiando pegar. Meu sorriso falou por si só e, como se estivesse sozinha, logo o levei para minhas narinas, sentindo o cheirinho.
Ao erguer o rosto para encará-lo, sendo necessário por conta da nossa diferença de altura, o peguei me analisando. Mantinha os olhos apertados, com certeza estava se esforçando para enxergar alguma coisa sem suas lentes de fundo de garrafa.
— Obrigada... — agradeci educadamente. — E me desculpa outra vez. Vou ficar mais atenta.
— Está tudo bem — sorriu, ainda de lábios fechados, outra vez. — Então eu vou nessa — apontou, parecendo meio sem jeito.
— OK... Bom... É... — Olá, hoje vamos aprender o idioma do Tazmania!
— A gente se... É... Tchau. — Ele se esquivou rapidamente, saindo.
— Tchau. — Meu próprio instinto se despediu baixinho.
Permaneci virada de costas para a saída dele por alguns segundos, abraçada ao livro, abarrotada da desorganização interna. Quando notei que o cheiro do perfume dele ainda estava forte, ficando como um rastro, percebi que seu rosto não era nada familiar. Eu vivia naquele lugar e nunca tinha o visto por ali, e eu conhecia todo mundo do prédio, principalmente quem frequentava a biblioteca.
De onde ele tinha saído?
E qual era seu nome? Eu não perguntei!
Me virei e meus ombros murcharam ao enfrentar o vazio de sua presença. Ele já tinha sumido. E, ao longe, na entrada, Antonia sorria, sugestiva, para mim. Encarei o livro em minhas mãos e peguei minhas coisas, regressando até ela.
— Sem nenhuma palavra sobre isso, por favor — pedi, envergonhada, colocando o calhamaço em cima de sua mesa.
— Pegou o nome dele, pelo menos? — ela já foi direto ao assunto.
— Por que me interessaria?
Antonia bipou a etiqueta do livro, me encarando com insistência.
— Ah, tá bom! — Desisti de bater de frente com ela. — Qual é o nome dele? De qualquer forma, isso não vai me interessar mesmo.
— Jeon Wonwoo. Está indo para o último período do curso de direito — ela começou. — Ele iniciou uma tese de alguma coisa criminal envolvendo neuropsicologia. — Seu sorriso parecia empolgado demais. — É parte daquele grupo de alunos que são do intercâmbio da Coreia do Sul, no programa. Tem boa-
— Qual o prazo? — cortei, pegando o livro de sua mão e esperando minha mochila.
— Está no seu e-mail com todas as instruções.
— Obrigada, Antonia. Bom final de semana — me despedi, já pronta para ir embora.
— Não vai ficar para estudar? Você nunca vai embora a essa hora... — Antonia perguntou, genuinamente confusa.
Não respondi, eu precisava organizar minha situação primeiro.



Segundas-feiras são os dias mais chatos de pegar trânsito e me locomover de uma ponta de Manhattan à outra. Mesmo que eu me programe para seguir a rotina matinal de exercícios às quatro e meia com o personal, banho às cinco e quarenta para começar a me arrumar às seis e terminar em trinta minutos, não atrasando meu café para sair de casa no máximo sete e dez, eu ainda pegava o trânsito deplorável gerado pela preguiça coletiva do dia que dava o pontapé inicial de mais uma sequência de dias úteis na semana. Dificilmente eu chegava adiantada de segunda-feira, sempre acabava “atrasando” meu cronograma, e não tinha nada mais capaz de tirar uma Bee do seu estado de espírito tranquilo do que atrasos.
Felizmente, minha vaga no estacionamento já era taxada como propriedade e ninguém ousava estacionar nela; o ponto decepcionantemente triste era que ao lado do meu carro ficava Evans e seu conversível. Ela tinha a sorte de morar a poucos quarteirões da universidade, então, sempre que eu chegava, Victoria já estava em algum canto dentro do prédio, planejando como faria o meu período letivo mais tortuoso. De qualquer forma, mesmo não chegando com os vinte minutos de antecedência que eu gostava e chegava nos outros dias, ainda conseguia chegar antes do horário da primeira aula.
Estacionei o carro sem muitas preocupações e juntei minha bolsa e o fichário pesado que estavam no banco do passageiro, descendo do Jeep com certa dificuldade pelo peso em meus braços. Bati a porta usando o perfil do meu corpo e acionei o alarme, levando um susto ao me virar para a traseira e ver Seungkwan parado ali, inesperadamente, apoiado na lataria com uma pose nada séria, tendo seu olhar sugestivo para mim. Ele parecia uma musa, mas sem os pom-poms e todo o requinte chique.
— Ai, que susto! — reclamei, estranhando.
— Bom dia pra você também, nerd da neuro — Seungkwan sorriu com uma ponta dos lábios mais erguida que o normal. — Quer ajuda?
Franzi meu cenho, sabia que alguma coisa não parecia estar tão certa assim. Seungkwan nunca foi tão educado logo pela manhã com ninguém, até mesmo comigo, nem mesmo quando queria informações sobre Laura para publicar no — como ele chamava — noticiário da faculdade, um periódico produzido pelos alunos de jornalismo em parceria com os de comunicação no geral para gerar pontos extras. Boo tomava conta da parte de entretenimento e para ele isso se referia às fofocas generalizadas, portanto, ele sabia sobre tudo e todos daquele campus, nem mesmo o corpo docente passava ileso.
Com certeza ele queria alguma coisa de mim, eu conseguia ver em seus olhos espremidos e sua pose. Embora fôssemos amigos desde que eu entrei na universidade e ele me deu as boas-vindas, depois de pregar uma brincadeira do trote de recepção aos calouros por ele ser veterano, Boo ainda conseguia me surpreender às vezes.
— Ok, essa feição é nova. — Guardei a chave do carro de qualquer forma dentro da bolsa e dei os primeiros passos. — O que você quer? Eu não sei sobre Laura, não passamos o final de semana juntas. — Caminhei adiante, notando que ele começou a me seguir.
Boo pegou o fichário dos meus braços assim que me alcançou.
— Valha-me, pra que tudo isso? — reclamou baixo, provavelmente se referindo ao peso por conta das inúmeras folhas de anotações e o livro de neuropsicologia no meio, mas eu não falaria para ele sobre o calhamaço. — Não estou aqui para falar da Laura. — Se recompôs em sequência.
— Como não? Eu não sou popular, não sei da vida dos outros.
— Você conhece todo mundo, Bee.
— De vista — rebati, olhando-o e medindo sua feição.
— Dá no mesmo. As pessoas sabem quem é a nerd que trocou de lugar com as traças da biblioteca. Aliás, muita gente torce por você, sabia? A Evans é um pouco antipática demais para ter o povo do lado dela.
O caminho da minha vaga para a entrada do meu prédio não era muito longo. Quando já estávamos na ponta inicial da escada, eu parei de andar, me virando para ele e pegando meu fichário de volta.
— Fala logo, o que você quer? Já aviso que não vou fazer seu trabalho de conclusão. Você deveria ter vergonha, está no último semestre, Seungkwan! Pare de me procurar quando quer saber da vida dos outros — disse, vendo-o revirar os olhos. — Principalmente da vida da Laura!
— E o que eu digo para quem me procura querendo saber da sua?
Sua resposta me fez congelar no lugar.
Quem gostaria de saber sobre a minha vida?
Essa era nova, muito nova.
— M-M-Mas o quê? — gaguejei, sabendo que uma careta se formava em minha face. — Do que você está falando?
— Não sei, Bee… — ele se esticou para colocar o meu cabelo atrás da orelha, mesmo sabendo que isso implicava em um certo “chilique” em mim. Boo era um dos pouquíssimos seres humanos que eu deixava se aproximar tanto assim. — Talvez eu publique no periódico de hoje, posso usar isso como o Gossip Anônimo do Dia. O que você acha? Posso aproveitar que o dia dos namorados está chegando e fazer disso uma espécie de correio do amor. O cupido!
Revirei os olhos para seu cinismo.
— Deixa de besteira. Você está inventando — suspirei. — Quer inventar algo para estrear essa sua ideia de série de TV adolescente? Tudo bem. Só não use meu nome.
— Não é isso, garota. — Seungkwan esticou o braço, olhando para o lado e tocando meu rosto, seu indicador fez uma parceria com o polegar para segurar em meu queixo. — Só pense bem, tem alguém muito interessado em você.
— Essa é fácil. O Hoshi — respondi, lembrando dele. — Desde o início ele se diz apaixonado por mim, mas eu sei bem que paixão é essa...
— É, ele é meio perigoso. Mas não é ele, meu bem. — Boo recolheu sua mão, olhando para o lado, para algum ponto distante no jardim que separava o meu prédio do vizinho. — Bem, talvez hoje eu fique de olho no pessoal das ciências sociais aplicadas.
Tentei seguir seu olhar, mas não encontrei nada incomum ou facilmente reconhecível. Na verdade, Seungkwan estava me deixando confusa.
— Você não vai mesmo me dizer? Se for ideia de um novo especial para o periódico, só me deixa de fora... por favor — choraminguei. — Pretendo finalizar minha graduação sem muito holofote.
Ele se aproximou, me deixando um beijinho na bochecha e rindo fraco.
— Ah, Bee, quando eu for embora vou sentir falta de você... — Se afastou. — Boa aula, te vejo no almoço.
Seungkwan começou a caminhar para longe, em direção ao seu prédio, e eu fiquei ali, parada como uma estátua. Ele simplesmente havia enfiado um conjunto inteiro de pulgas atrás da minha orelha.
De duas, uma: ou Boo ia mesmo iniciar mais uma de suas peripécias e montar uma coluna de fofocas anônimas ou ele estava falando a verdade. Mas, se não era uma mentira, quem é que poderia estar indo atrás do maior fofoqueiro de toda a universidade, que não fazia nada de graça pelos outros, para saber sobre mim? Justo eu, a nerd da Psicologia, fissurada em livros, neuropsicologia e metódica demais.
Hoshi estudava comigo, ele podia perguntar de mim quando quisesse, e já fazia isso diariamente desde que ingressamos na faculdade. Ele nunca escondeu o seu interesse em mim, mas eu sempre me esquivei porque sabia de seu histórico e, não só isso, meu foco realmente era estudar e deixar para me preocupar com relacionamentos depois do diploma e com minha carreira em mãos.
Não seria possível que Boo Seungkwan simplesmente tivesse alugado uma mansão nos Hamptons na minha cabeça com aquela informação pela metade logo cedo. Logo em uma segunda-feira em que eu estava exausta já às oito da manhã por causa do trânsito da cidade.

📚


Bee? — Pude ouvir uma voz bem no fundo me chamando, mas eu não conseguia largar da mão de Louis Tomlinson, em cima daquele palco enorme, simplesmente para ver quem estava me chamando. — Bee? Tá viva? — Mas a insistência foi tão grande, que não me restou outra saída a não ser abrir os olhos.
Inclinei a cabeça, sendo alvejada pelos reflexos solares. Demorei a conseguir enxergar o rosto de Hoshi com perfeição. Ele sorria muito grande para mim e eu sequer havia me acostumado com a triste realidade de ter soltado a mão de Louis.
Sentiria muita falta daquele nosso toque.
— Hoshi? Oi — murmurei, coçando os olhos e bocejando.
— Não dormiu essa noite, é? — Ele se sentou ao meu lado no banco, colocando uma garrafinha de Coca-Cola para mim na superfície da mesa. — Sem açúcar e bem gelada!
Agora um pouco mais desperta, o analisei.
— Nem vem, eu não vou fazer nenhum trabalho seu. Abandonei essa vida de nerd boazinha — resmunguei, cruzando os braços. Mas com os olhos vacilando pela garrafa ali, bem na minha direção.
— Eu não te pediria uma coisa dessas jamais, Bee — Hoshi respondeu chateado, o que era muito fofo, pois quando ele trazia um tom manhoso, falava em bico. — E fico feliz que finalmente tenha parado de fazer as coisas para os outros.
— Laura me ameaçou. Não tive escolha — dei de ombros, inocentemente pegando a garrafa e abrindo. — Mas eu fico frustrada, porque ninguém faz nada direito.
— Deixe que as pessoas cuidem dos seus próprios problemas e dificuldades, Bee — sorriu, cordial, para mim e tocou a ponta do meu nariz com graça.
Revirei os olhos apenas, bebendo a Coca-cola da garrafa. Após conseguir virar metade dos 200ml, passei o dorso da mão na boca, tomando cuidado para não arrotar na frente dele por causa do tanto de gás.
— Então… no que posso te ajudar? — perguntei.
— Nada. Eu só fiquei preocupado — Hoshi disse casualmente, desviando o olhar brevemente. — Você não respondeu nenhuma das perguntas de hoje e eu te peguei cochilando algumas vezes. Está tudo bem?
Raspei a garganta meio sem jeito pela forma como ele falou, me fazendo perceber que alguém ficava prestando atenção em mim. Pela forma como eu retesei meu corpo em vergonha, o meu cabelo acabou caindo na frente do meu rosto novamente — nenhum problema para mim, inclusive.
— Está sim — respondi com um sorriso “amarelo”.
— Tem certeza? — ele insistiu.
Certeza seria uma colocação um pouco forte, mas estava tudo bem.
A não ser pela parte em que eu tive algo contra meus moletons no final de semana e, de repente, queria até prender o cabelo para vir para universidade. Por pouco não peguei meu telefone e pedi dicas para Laura de como eu deveria agir depois de ter me sentido um tanto impactada com uma pessoa. Se eu tivesse feito isso, porém, eu teria arrumado uma atormentação durante muito tempo.
Foi melhor tentar lidar sozinha com os inúmeros pensamentos irritantes me atormentando durante o final de semana, prejudicando minha atenção em coisas corriqueiras como: meus estudos, meu Real Madrid e meu pai.
No mais, apenas assenti para Hoshi, tentando focar em alguma coisa que não fosse o contato visual dele que sempre me desconcertou por ser tão profundo e confuso na minha cabeça. Desde o primeiro semestre, Hoshi demonstrava sua afeição por mim, não se importando muito com todas as negativas que lhe dei em todas as vezes que tentou algo; na verdade, Hoshi parecia muito satisfeito em me ter apenas como sua colega universitária, o único problema era quando juntava ele e Seungkwan no mesmo ambiente. No geral, os dois poderiam ser insuportáveis ao tentar minha atenção. A parte ainda não definida 100% quanto a ele era que vez ou outra eu me pegava disposta a tentar dar uma chance; mas isso só até eu pensar que isso se tratava sobre me “envolver”com alguém.
Não era algo que eu não gostaria, mas o momento não seria esse na minha vida. E eu sempre tive isso muito bem definido.
— Bom… Então tá — ele suspirou, por fim, se dando por vencido e eu sorri de lábios fechados, reconhecendo um corpo vindo do horizonte por trás dele. Enquanto Hoshi começou a gaguejar, parecendo buscar a forma correta de dizer o que tinha para me falar, eu foquei em Seungkwan se aproximando com sua caminhada confiante, um óculos de sol, sua bolsa transversal e um café do Starbucks.
Iced Americano, o favorito do meu fofoqueiro favorito.
— Bom dia, crianças — ele disse, animado, vindo diretamente em mim, mesmo que o cumprimento tenha sido para nós dois. Me deu um beijo na bochecha e se sentou do meu outro lado.
— Oi, Boo — cumprimentei ele, sorrindo para a Coca-Cola que recebi. Uma garrafinha maior e sabor original. — Beba logo antes que a Laura chegue.
Vi pelo canto do olho a feição de Hoshi em completo desgosto.
Antes que os dois começassem a brigar pela minha atenção, me levantei.
— Eu não vou te dar informações sobre ninguém — disse para Boo, pegando minhas coisas. — E não posso sair essa semana, Hoshi, tenho alguns compromissos marcados. — Me direcionei ao outro, já antecipando a resposta para o que ele muito provavelmente iria me propor antes de o outro chegar
— Você não sabe mentir, Bee. Seus compromissos durante a semana são com as traças das bibliotecas. — Seungkwan revirou os olhos, fazendo uma careta de impaciência. — Ela está visivelmente te dando mais um fora, você não está vendo? Não cansa?
Decidi não responder ou entrar no meio da discussão dos dois. Hoshi já não disse mais nada, estava com uma expressão de tédio. Deixei um beijo na bochecha dele também.
— Só ignorar, talvez alguém tenha corrigido demais algum artigo dele — disse em seu ouvido, finalmente caminhando adiante.
Precisava ficar o mais só possível, ainda que isso fosse o que eu mais fizesse durante todos os meus dias.
Os meus dias todos.



Meu carro não tinha a tão comum película preta nos vidros para gerar certa segurança e privacidade. O meu Jeep tinha a visão ampla para quem quisesse ver por dentro seus detalhes minimalistas em rosa. Não me incomodava, mas, pela primeira vez desde que papai havia me presenteado com Veronica, eu fiquei insatisfeita com a falta disso. E foi uma opção minha, vale ressaltar.
Estava estacionada há algum tempo no setor dos dormitórios. A Saint Peter era tão grande que parecia muito com uma mini cidade e tinha seus quatro prédios para alunos intercambistas, os nativos de outras cidades ou até mesmo os alunos como Hoshi, que, mesmo sendo de Nova Iorque, gostavam de ficar por lá. Inclusive, um primo meu chegou a me aconselhar o mesmo, mas eu ainda preferia o conforto da minha casa, simplesmente por ser individual e eu não precisar me misturar em uma moradia cheia de pessoas.
Sempre fui mais adepta a locais de rotinas mais intimistas.
Era mais uma manhã de quarta-feira e eu estava com o mesmo sentimento ansioso e confuso que não me fez descansar devidamente no final de semana, ainda que estivesse com meus estudos em dia; inclusive, eu sequer havia conseguido folhear as páginas do meu tão esperado calhamaço que Maxwell tinha indicado. E eu corri tanto por ele. Agora parecia em vão, porque algo em mim não estava ligando tanto assim pelo meu feito, principalmente com o fato de eu ter ganhado mais uma vez de Evans. De alguma forma, eu só estava me preocupando com uma coisa: se meu cabelo parecia bom ou não com aquele rabo de cavalo alto e minha franja bem alinhada na frente, tendo os fios maiores e laterais em perfeita harmonia.
Me olhar no espelho nunca foi o meu ato favorito, porque sempre iria encontrar algo que não me agradasse, além de não ser a maior das minhas preocupações o meu estado de aparência. Eu sabia muito bem que meus dentes escovados e o cabelo penteado estavam em ordem diariamente, o restante era o de menos. Minha preocupação sempre seria sobre meus estudos nessa fase da minha vida. Estar bem arrumada para alguém não era o meu foco.
Mas havia algo me cutucando no meu interior, bem lá no fundo alguma coisa me guiou a dirigir até o estacionamento do dormitório, parar embaixo de uma árvore e arrumar meu cabelo. Alguma coisa tão inconsciente que eu não estava encontrando. Era uma espécie de esconde-esconde com meus próprios neurônios e isso estava me deixando maluca em uma quarta-feira. A parte legal é que eu não teria a primeira aula, então todo esse tempo que estava perdendo com o meu TOC de ter tudo milimétrico — até mesmo com o cabelo amarrado — não estava me prejudicando em muita coisa.
— O que você pensa que está fazendo, Bee? — murmurei para mim mesma no instante em que comecei a procurar um brilho labial no porta-luvas do carro. Para a minha surpresa maior, tinha um que havia sido deixado por Laura.
Encarei o pequeno objeto entre meus dedos e, como se estivesse fazendo algo absurdo, olhei para os lados e nos retrovisores, garantindo não ter sequer uma pessoa que pudesse testemunhar tal anormalidade. Quando terminei de preencher meus lábios com esse tipo de gel grudento com gosto doce, olhando pelo retrovisor central, pude perceber como realmente Laura sempre esteve certa a respeito do meu cabelo preso e quando eu usava ao menos o mínimo de maquiagem.
Eu me sentia bem com isso, mas só até metade da primeira página. Ao contrário da minha melhor amiga, não levava o menor jeito com essa coisa de maquiagem.
Retornei meu corpo com a postura certa para dar a partida no carro, respirando fundo e não me dando muito tempo para pensar direito. Porém, logo que voltei a me concentrar no mundo real, fora da fantasiosa fábrica confusa do meu inconsciente, encontrei um conjunto de músculos e membros um pouco familiares vindo na direção contrária ao meu carro. Saindo do prédio B do dormitório masculino, estava Wonwoo.
O cara míope que eu tinha espremido entre as prateleiras da biblioteca.
O óculos torto e, pelo que eu pude notar, com duas fitas remendando as “pernas” laterais, era inconfundível. Assim como os ombros largos, o cabelo meio bagunçado e sua feição estrangeira. Ele estava com uma expressão de sono, de quem tentava se acostumar com a luz do dia, e os olhos se espremiam atrás das lentes grossas. De repente, uma sensação ansiosa tomou meu estômago, aumentando conforme ele se aproximava do meu carro por sua caminhada para o centro estudantil. Me preparei para lhe cumprimentar, olhando meu reflexo uma última vez no espelho retrovisor e, quando fui abrir a janela, tive um lembrete ácido de que isso não tinha o menor sentido.
— Não seja idiota, Bee! O que você está pensando? — ralhei comigo mesma, batendo a testa no meio do volante, o que claramente não foi uma boa ideia, se a minha intenção era passar despercebida.
Mas ser a rainha da coerência não era um traço de personalidade meu ao se tratar de qualquer tipo de coisa fora da minha bolha pessoal.
Com o som da buzina pela minha força colocada sobre o volante, acabei me assustando e encolhendo mais, mesmo que os meus 1,50cm não precisassem se espremer para isso no banco. Papai vivia me dizendo que eu sumia dentro do carro e era um bônus que os bancos possuíssem uma tecnologia não muito nova de levantarem o assento também.
Não contei quanto tempo fiquei naquela posição, mas fiquei o tanto que julguei ser necessário — e acho que isso levou muito mais tempo do que considerado normal.
— Mas... Qual o meu problema? — resmunguei, apertando o volante. — Ele é míope, não ia te enxergar — continuei falando comigo mesma na posição torta de quem queria se esconder.
Ao fazer minha constatação do ridículo, escutei a porta do passageiro abrir.
— Você pode me levar pra casa? Sei que não tem a primeira aula —Laura entrou dizendo com a voz sonolenta e, quando nos encaramos, ela me olhou estranho, segundos depois gritou em susto.
Eu gritei de volta, ainda encolhida e assustada com o susto dela.
— Quem é você e o que fez com a Bee? — ela me apontou o dedo quando parou de gritar, me analisando milimetricamente, e puxou o que estava entre os dois bancos: meu precioso livro, objeto de estudo da minha próxima tese. — Está se escondendo de quem? Por que seu cabelo está preso? Tem muita coisa acontecendo aí! — Ameaçou, o usando como arma.
— Abaixa isso! — disse esganiçado, tentando pegar meu livro e voltando o corpo ao normal. Ela o puxou para trás. — Laura!
— Primeiro me diz: o que você está fazendo aqui? — Ela foi enfática no local em sua pergunta e eu engoli a seco.
Nem mesmo eu sabia.
— Queria tentar ler meu livro em paz, já que não vou ter a primeira aula — menti.
— E o que houve com a biblioteca? — Laura arqueou uma sobrancelha. — Aliás, o que houve com você? — Seus olhos se arregalaram ao encontrar, em pé no painel, seu brilho labial. — Achei! Ele estava na Veronica esse tempo todo? — Se animou ao pegá-lo e jogar meu livro para o banco de trás.
Eu tentei impedir, claro, mas não deu tempo. Então me encostei no banco, desanimada com a cena deplorável do calhamaço esparramado no banco.
Tortura.
— Você deve ter deixado cair. Quando levei o carro para lavar, eles colocaram no porta-luvas — esclareci com a voz mais amena.
— Toma — ela me esticou o brilho labial e eu a encarei de lado. — Ficou mais bonito em você. — Hesitei, claro, mas estiquei o braço. Laura, porém, puxou de volta para si. — Primeiro, me conta: por que prendeu o cabelo e passou meu brilho labial? Por favor, me diga que você e o Hoshi-
— Não! — a interrompi antes de completar o absurdo.
— Não me diga que isso tem a ver com o jornaleiro, Bee!
— Primeiro: é fofoqueiro por profissão. — Tomei o objeto de sua mão, olhando para a frente a fim de ignorar seu revirar de olhos. — Segundo: não tem nada a ver com nenhum dos dois.
— Mas tem a ver com alguém! A-HÁ! — Laura bateu palmas de felicidade ao achar que havia desvendado um grande segredo. — Se não é Seungkwan, o que me deixa muito feliz, a propósito… Nem o Hoshi, o que me deixa triste… Seria quem? Você só tem eles dois e o Seokmin na sua bolha, Bee!
— Não. É. Ninguém — disse pausadamente, desfazendo o cabelo preso. — Só prendi o cabelo porque estava lendo e usei o brilho porque esqueci minha nécessaire com o meu hidratante. Satisfeita?
Laura pareceu pensar um pouco nas minhas justificativas. O fato de eu ter tentado ser o mais convincente possível para mim mesma, trazendo uma razão para aquilo tudo em uma manhã de quarta-feira, acabou por servir para convencê-la também. Para tirar um pouco do foco sobre mim, aproveitando a guarda baixa dela, inverti a situação.
— E o que você estava fazendo aqui? — perguntei.
— Coisas que você não colocaria nos seus post-its, MB — Laura sorriu cínica para mim e eu lhe mostrei o dedo médio antes de dar a partida no carro.
Eu sabia que ela estava buscando uma alternativa para cabular alguma aula chata; Laura não era de todo irresponsável. De qualquer forma, fosse lá o que ela tinha ido fazer por ali, ao menos minha melhor amiga havia me tirado de uma situação da qual eu me enfiei sem nem ao menos entender o porquê. Como sempre, Laura Chevalier era a minha heroína.

📚


, por favor! — Gregory implorou mais uma vez e eu bufei, irritada.
O Gato de Botas perde fácil para o meu calouro do segundo semestre com aqueles olhos redondos e amendoados de garoto perdido prestes a desistir. Pouco tempo de curso e ele já estava implorando por minha ajuda para uma atividade extra da qual havia se enfiado. Em outra época, eu teria aceitado pelo simples fato de não aceitar coisas malfeitas.
— Ela já disse que não. — Escutei a voz de Boo vindo como se fosse um grande salvador. Entre o ter me defendendo e causando o famoso terror que causava nas pessoas da Saint Peter ou a Laura berrando comigo por eu ter aceitado fazer o trabalho de mais um pobre coitado naquela universidade, eu preferia fingir que nada estava acontecendo.
— Mas… … — Gregory se humilhou mais uma vez e eu ignorei novamente. Porém, ele tirou a mochila das costas enquanto Boo colocava suas coisas em cima da mesa e me estendia o copo de suco de laranja, e começou a se ajoelhar.
— Chega! Não faça isso! — eu disse alto, por fim.
Isso me assustou. Assustou Seungkwan. Fez todos que estavam ali na biblioteca central naquele horário de pico, com os diversos alunos da Saint Peter, parassem o que estavam fazendo para me olhar. Eu congelei com meu próprio volume alto de voz, senti meu corpo arder pela atenção toda e fiquei com dó de Gregory — mas por segundos, porque o bocó continuou ajoelhado, talvez aterrorizado por me ouvir gritar, e quando eu notei que ele iria tentar mais uma vez o mesmo olhar pidão, o encarei feio.
Foi o suficiente para ele levantar e sair aos tropeços.
— Certo… Certo… Não aconteceu nada por aqui — Seungkwan alertou a todo mundo, trazendo meu casaco. Segurando meus ombros, assim que eu me vesti, ele sorriu para mim. — Gosto quando você é reativa assim, mas não te faz bem. — disse baixinho, deixando um beijo na minha testa. Ele sabia muito bem como eu vivia para evitar atenção demais. — Já acabou, ninguém mais está te olhando.
Assenti roboticamente, voltando aos meus sentidos e o deixando me guiar novamente para a mesa depois de me acalmar com naturalidade.
— Agora me conta. — Boo se sentou ao meu lado, me lembrando de tomar o suco que trouxe. — É verdade que você está mesmo obedecendo à Laura?
— Ela tem um ponto sobre isso. — Dei de ombros, lembrando do que Hoshi disse também. — E o Hoshi me fez ver que ela está certa. Ei — ri fraco —, não revira os olhos para ele. Hoshi é um cara legal. — Lhe dei um tapinha leve no ombro.
— Um cara só é legal até conseguir o que quer. — Ele se ajeitou no banco, ficando sentado de frente para o meu perfil. — Você precisa de alguém que realmente queira ficar com você por quem você é e não por quem você parece ser, .
Desta vez, quem revirou os olhos foi eu.
— Não começa com esse papo, por favor. — Bebi novamente do suco. — E tem outra, você e a Laura precisam parar de acreditar nessa narrativa de que eu quero ficar com ele. Aliás, de que eu vou ficar com alguém até me formar. Não posso perder meu foco e não está nos meus planos!
— Isso é tão tedioso, Bee! —Seungkwan passou as mãos no rosto. — Você é inteligente naturalmente, ter alguém não é sinônimo de burrice.
— É sim e eu posso provar com apenas um fato: Patricia Maxwell.
— É claro que você ia falar este nome — ele riu. — Quando você descobrir a verdade, quero estar presente para ver seu mundo caindo.
Semicerrei o olhar para ele, decidindo ignorar suas provocações que nunca acabavam em algum lugar produtivo. Assim como Laura, ele sempre tentava me convencer de que a vida individualista que eu tinha uma hora ou outra seria corrompida por alguma intercorrência natural da vida. E eu, cética do jeito que sempre fui, nunca levei aquilo a sério, afinal, amor à primeira vista não era um fato comprovado. Ao ver alguém, você se interessa fisicamente. É uma corrente de hormônios agindo e não um sentimento avassalador.
Essa coisa de amor à primeira vista tem muito mais a ver com a conquista do que com uma relação mais sólida.
— Falando sobre a verdade — de repente me lembrei de algo pertinente entre os inúmeros tópicos em minha mente —, você vai me dizer quem é que foi perguntar sobre mim justamente para você?
— Jamais. Vai contra o meu código de ética revelar a fonte —Seungkwan negou com um sorriso sacana no rosto.
— Qual é! Depois de tudo o que eu já fiz por você, Boo Seungkwan! — Novamente minha voz saiu alta. Atraí atenção com isso e os tapas que dei nele até que ele segurasse meus punhos.
— Não é você que não quer perder o foco, Bee? Pra que se preocupar com isso?
— Você é péssimo! — fiz uma careta de desaprovação, me soltando e pegando minhas coisas para levantar. Seungkwan me segurou quando eu já estava em pé, porém.
— Hoje tem jogo da seleção feminina de vôlei. Brasil e Coreia do Sul. Assiste comigo?
Igual Gregory, ele me pediu com o olhar também. Diferente de Gregory, eu não conseguiria dizer não.
— Você vai ficar gritando com a televisão? — perguntei e ele apenas sorriu forçado, como quem diria que “tentaria” ou se sentia culpado. — Eu preciso ler meu livro, então depois do jogo você vai embora. OK?
— Nem um jantarzinho? Eu te levo.
— Não. Você é esperto, vai fazer parecer que é um encontro só para provocar o Hoshi — ri dele, me soltando e lhe dando as costas.
, nós dois já parecemos muito com um casal. Sabe aqueles clichês de melhores amigos que se apaixonam? — Seungkwan me alcançou, não precisou de muito, e passou o braço pelos meus ombros, beijando a lateral da minha cabeça.
— É, só que você já está apaixonado há muito tempo — brinquei com ele.
— Ouch! — Boo riu, desta vez beijando minha bochecha. — Vou fazer o almoço para você hoje, mocinha. E, ao contrário de você, eu te deixo tirar uma foto minha bem bonita na sua cozinha e postar com um coraçãozinho.
Cutuquei sua cintura, fazendo-o se afastar de mim.
— A friendzone combina muito com você, Boo Seungkwan! — ri dele, mas não muito, porque logo encontrei Wonwoo caminhando para o lado dos dormitórios.
Podia ser a culpa por ter quebrado seu óculos novinho que estava me fazendo reparar mais na existência dele, porque nada explicaria o tanto que eu já o havia encontrado desde o incidente na biblioteca.



Laura bateu a porta do meu armário muito forte e isso me assustou, fazendo com que eu pulasse no lugar, olhando ao redor em desespero pela vergonha da cena dela. Pedi desculpas às demais universitárias que também se assustaram e esperei que elas tivessem recebido o pedido mentalmente.
— Que isso? Pra que essa violência? — a encarei com uma feição de horror.
— Você vai embora. Agora. — Apontou para mim, soando mandona como sempre fazia ao se tratar da minha forma de me dedicar à universidade e às atividades que envolviam minha vida acadêmica.
— Tá louca? Tenho atletismo agora. É meu primeiro dia e-
Bee, você não precisa disso! —Laura me cortou, falando mais alto, e também dando um tapa não tão leve na estrutura de aço ao nosso lado. Outra vez me assustei, tomando um passo para trás e abraçando minha própria cintura. — Céus! Quando você vai viver fora desse campus?
— Quando eu me formar... — falei baixinho e ela revirou os olhos. — É sério, Laura — choraminguei.
— Eu duvido, você vai acabar fazendo mestrado e doutorado para se tornar uma Maxwell e nunca mais sair daqui. E nossos planos de Vegas? Ibiza? Você não pode ser crente para o resto da vida, Bee!
— Não quero ser a Maxwell, estou estudando para ser Bee, ter minha própria carreira... Neuropsicologia na área jurídica, lembra? — Abaixei a cabeça, olhando para os meus pés, sentindo minhas bochechas consumidas pela temperatura alta devido ao meu estado vergonhoso. Não me agradava ter olhares demais sobre mim e foi exatamente isso que Laura adquiriu ao chegar daquela forma e continuar berrando.
— Que seja. Você precisa descansar, sair desse lugar. Aproveitar o tempo livre que tem... — enumerou, diminuindo sua intensidade. — Bee, você precisa conhecer pessoas, um... um... grande amor não vai estar no meio dos milhares de livros nos quais você se enfia na biblioteca. Tem uma vida muito interessante fora dos seus post-its!
Precisei segurar ao máximo minhas reações corporais para evitar o sorriso em meus lábios. Ainda não tinha comentado com Laura sobre o ocorrido na biblioteca. Não é como se eu pudesse relacionar o tal do Wonwoo como um “grande amor” em potencial, do jeito que ela citou, mas eu poderia refutar a afirmação dela.
Nas bibliotecas da universidade, o que mais tinha eram pessoas.
Relaxei meu corpo, tentando não parecer alucinada demais. A verdade era que eu não conseguia parar de pensar em Wonwoo desde o ocorrido na semana passada, até mesmo pelo fato de nunca o ter visto pelos corredores ou pelo campus todo, ainda mais sendo um aluno do tão tradicional programa de intercâmbio asiático, e agora o ter visto mais vezes.
Infelizmente, não tive tempo de continuar a pressionar o grande porta-voz da universidade, o jornalista em formação que poderia tirar o emprego de grandes fofoqueiros da mídia, Boo Seungkwan, mas ainda iria procurá-lo pelo meio dos alunos da comunicação para saber mais sobre Wonwoo — tinha algo em mim me cutucando para fazer isso, aliás. Minha consciência estava pesando e o mínimo que eu deveria fazer era dar um novo óculos a ele ou, pelo menos, a armação. Ou pedir desculpas decentemente.
— Olha, eu prometo que hoje vou daqui direto para casa. É a última sexta-feira do mês, dia de jantar com meu pai e ele chega hoje à tarde de Dubai. Então não vou ficar aqui. — Voltei a abrir meu armário, tirando meu moletom de dentro e um elástico de cabelo; agora eu tinha bastante desses guardados nas minhas coisas.
Minha melhor amiga pode não ter feito sua observação sobre isso, mas ela tinha notado.
Bee, você pode faltar hoje, isso não vai ser o fim do mundo! É uma atividade extra e você já tem pontos suficientes para cinco turmas completas de preguiçosos — Laura insistiu. — Vem comigo, eu troco meus planos para irmos ao cinema como fazíamos antes... Vou até à igreja, se você quiser!
— Não! — encarei-a com horror. — Evans já tem uma falta, se eu faltar, vamos ficar empatadas e não quero comparações.
— Céus! — Laura sussurrou. — Você tem mesmo 21 anos? Nem quando teve conjuntivite você faltou, Bee... Você precisa de alguém pra te-
— Não termine! — Apontei o dedo, enfim perdendo minha paciência. — Eu não vou faltar. Começar o atletismo foi uma ideia para me desestressar com todos os hormônios que a atividade física emite. Então eu não preciso de homem nenhum, não tenho tempo.
— Se você tiver alguém, não vai precisar de atletismo pra desestressar. Pode fazer outro tipo de atividade física. E você já tem um personal que te arranca da cama com as galinhas para treinar! Sua desculpa não me convence.
— Sua depravada. A resposta continua sendo não. — Fechei a porta do meu armário e vesti meu moletom. — Bom passeio para você e tome cuidado, não confio nesse lado que você vai no Queens.
— Você não confia na sua própria sombra, Bee...
Fiz uma careta, amarrando meu cabelo. Laura sempre insistia, mas eu não mudaria de ideia: não precisava de alguém para me trazer felicidade.
Deixei-a para trás e segui adiante, saindo do vestiário para ir até o campo de atletismo. Achei estranho ver toda uma galera espalhada pela grama, todos bem-vestidos e com aqueles livros enormes que o mesmo povo dos primeiros semestres de Direito exibia embaixo dos braços por aí pelo campus. Logo pude ver que só faltava a minha presença na roda com o treinador da corrida e então me apressei, parando ao lado dele.
— Desculpe o atraso, senhor Humphrey — pedi baixo, tentando ignorar o máximo da presença de Evans e suas Bratz.
— Não se preocupe, senhorita Bee, você chegou no momento exato. — Ele ergueu o punho, apertando algo em seu relógio, e então relaxou os braços, levando a prancheta para baixo. — Olá, meninas! Eu sou Peter Humphrey e serei o treinador de vocês. Para começarmos aquecendo, vamos iniciar com 30 metros depois do alongamento. A ideia desse projeto é que vocês consigam conciliar a vida acadêmica com muita saúde, principalmente a psíquica, então... Sem competições, apenas aproveitem.
Quando ele mencionou “competições”, pude ouvir o riso nasalado de Evans e a encarei com escárnio, logo mudando a atenção para o senhor Humphrey, repetindo os movimentos dele para o alongamento. Depois de dez minutos alongando, ele nos guiou para a pista, sempre pedindo para ignorarmos os alunos da outra turma que estavam espalhados em grupos por ali pelo campo, pois era uma atividade externa que um professor do curso deles havia aplicado. E o curso era o de Direito.
No fundo, bem fundo, eu fiquei esperançosa em ver algum rosto familiar ali no meio e precisei lutar friamente para me concentrar em minha atividade e no propósito dela: relaxar minha mente.
Fechei os olhos e respirei fundo, me preparando na pose de largada. Quando abri as pálpebras, encarei Evans de soslaio, notando que ela estava concentrada, à espera do apito que nos daria a liberação. Podia sentir em minhas veias a adrenalina começar a correr, como se o objetivo de fazê-la comer poeira fosse uma corrente elétrica percorrendo todo o meu corpo, agindo feito um combustível para que tudo funcionasse.
Então o estridente apito soou e eu corri. Meus pés se moviam de forma extremamente rápida e eu mirei toda a direção da linha reta, antes da curva fechada que fazia a volta no campo, forçando meus olhos a demarcarem todo o trajeto com o resultado da vitória. Pelo menos me mantive focada até que as vozes de Evans e sua amiga, Ashley, ecoassem próximas demais.
— Eu ouvi falar que o tal nerd do penúltimo período de Direito é bom com as mãos. E a Amber disse que ele não dá as caras nunca, mas é o mais vitorioso do grupo de jogos. Qual deles ali deve ser ele, hein? O usuário é Tasty17... Sugestivo?
— Por que os nerds são sempre mais atraentes?
O problema não foi ouvir a voz de Evans, toda maliciosa, também não teve nada a ver com a resposta de Ashley e muito menos ter as duas conseguindo conversar durante uma corrida daquelas. Não.
Na verdade, eu não sei bem qual foi o problema. Só me vi girando o corpo em uma única passada, correndo de costas e pouco me lembrando da curva que estava bem próxima, encarando as duas com a feição séria. Por diminuir o ritmo, ficamos próximas. A qualquer momento do dia era possível vê-las falarem do mesmo assunto.
— Vocês não têm outras coisas pra falar, não? — soltei sem sequer filtrar. — Só se importam com isso?
— Ah, claro, você vai sugerir que a gente fale sobre psicopatia ou o culto de ontem à noite? — Victoria revirou os olhos.
— Isso é um centro universitário, Bee. E temos uma bela vista hoje para contemplar durante nossa maratona — Ashley completou.
— Você deveria aproveitar. Olhar não arranca pedaço e não faz ninguém pecador... Se soubesse das coisas que ouvimos falar sobre esse tal nerd, entenderia nossa curiosidade. Aliás, ele pode fazer seu tipo! Nerd com nerd!
— Não sou como você, Evans. Meu foco é outro, eu olho para outra direção — mirei a risca do chão, rapidamente, desviando do olhar penetrante dela, e notei que era a hora da curva. — E olhar com cobiça é pecado sim.
Ao encará-la de novo, vi um sorrisinho escapar por seus lábios. Ashley trocou um olhar rápido com ela e apontou para minha direção, dizendo:
— Você deveria melhorar seu foco, então...
Não tive muito tempo para entender, logo senti um impacto forte e me embolei nos meus próprios pés, sentindo o meu corpo vacilar e ir caindo (rápido, certamente, mas senti como se tudo estivesse em câmera lenta, como o planeta de Interestelar). Eu teria caído de costas, mas fui virada pelos ombros e acabei caindo toda torta, meio de frente, meio de lado, mas com o corpo encaixado em cima de alguém.
Ao focar minha vista, meu coração parou e eu esqueci de respirar, deixando meu cérebro sem oxigenação e causando um desespero interno. Os olhos de Wonwoo estavam tão pertos que, naquele momento, pareciam grandes demais — ou apenas estavam arregalados, não saberia diferenciar —, mas independentemente de tamanho, eu sabia que eram dele. Não tinha esquecido as orbes tão calmas e densas que habitavam aquele rosto de traços tão sutis, ainda que fossem controversamente marcantes — ou talvez essa segunda parte ficasse por minha conta mesmo. E mesmo que os olhos não fossem o ponto de reconhecimento, ainda tinha, mais abaixo, a boca de lábios finos que, se eu bem me lembrava, quando se abriam em sorriso poderiam me abocanhar e engolir por inteira de tão grande e aconchegante que era.
Maior do que a mansão alugada por Boo na minha mente e sua brincadeira sobre alguém querer saber de mim, o sorriso de Wonwoo habitava uma moradia sem metragem definida e tampouco tinha um contrato com data de saída marcada. Era doloroso confessar, mas eu poderia fazer isso sem muita culpa, não tínhamos contato, sequer havíamos nos encontrado durante os anos de curso; inclusive, seria (de fato e não unilateral) o segundo encontro apenas em duas semanas, claro. Porém, comparado ao tempo que dividimos o mesmo campus, isso era pouco.
Devagar, fui sentindo meu corpo de volta em meio ao meu afogamento naqueles detalhes tão próximos dele e pude começar a sentir um desconforto na região da cintura. Isso serviu para me fazer acordar definitivamente do transe, notando que não tinha em seu rosto as lentes grossas na armação redonda. Olhei dos olhos dele para sua boca e voltei algumas vezes durante aqueles segundos na inércia, me sentindo envergonhada quando dei por mim de toda a situação. Quando vi os óculos de Wonwoo um pouco acima de sua cabeça, no chão, e partido justamente na parte da "perna" da armação que se grudava à lente, me senti culpada. Mais um remendo seria feito ou, no pior dos cenários, nem mesmo um ajuste poderia resolver.
— Ah, céus! — reclamei, arregalando meus olhos. — Eu acho que dessa vez não tem conserto...
— Isso não importa agora... — ele respondeu um pouco abafado e com dificuldade. — Eu acho que... — pressionou os olhos, soltando um arrastado e curto gemido. — Você... Você está bem? — Senti seus dedos compridos em minha cintura.
— Sim, sim! Eu tô bem... Talvez você tenha amortecido a queda — ri, nervosa, e ele sorriu simples, de lábios fechados, assentindo.
— Então... Se importa de levantar? Eu acho que você está apertando alguma coisa aqui embaixo… E eu tô ficando sem ar.
Brevemente olhei para baixo, vendo que eu tinha um joelho entre suas pernas, com meu quadril "torcido" para o lado e o meu tronco de frente para o seu. Certamente o incômodo que eu estava sentindo era por estar me forçando contra suas partes baixas e a boca do estômago.
Trágico, confuso, desconcertante. Para não dizer de uma forma mais grotesca.
— Ah, me desculpe! — resmunguei, saindo de cima dele, mas não sem antes acabar o "chutando" com o joelho pela forma desengonçada que lhe dei liberdade. Ouvi seu grito de dor e me contorci por dentro. — Me desculpe mais uma vez...
Mais um pouco eu o mataria. Tenho certeza.
E eu não fui a única a pensar sobre isso.
— Cara, você está bem? — Olhei para a direção da voz e vi um homem alto parar na frente dele, estendendo sua mão. — Eu só fui pegar uma água e você resolveu se matar?
Wonwoo se virou quase totalmente de bruços, parecendo ter dificuldade para se levantar. Eu permaneci sentada no gramado, coberta pela vergonha do acidente e querendo cavar um buraco para enfiar minha cabeça e nunca mais tirar. Aceitando a mão do outro, ele se levantou, um tanto desnorteado.
— Você está bem mesmo? — Virou-se para mim imediatamente, batendo na própria roupa para tentar arrumar alguma coisa desalinhada (ou seja, nada). Consegui apenas assentir, inerte demais para formular qualquer resposta concisa, e ficamos nos encarando; eu tive uma breve certeza de que ele pouco conseguia enxergar de mim pela forma como parecia tentar focar sua vista. O som de alguém raspando a garganta nos tirou de tal conexão visual. — Ahn... Bee, esse é Mingyu, meu amigo. Mingyu, essa é a Bee.
Acompanhei o seu passo dado para o lado, permitindo que eu pudesse ver nitidamente o cara tão alto, agora dono de um nome. Entretanto, um detalhe me chamou a atenção, mesmo que inconscientemente.
Como ele sabia meu nome?
— Ah, a famosa nerd da neuro... — Mingyu murmurou e alguma parte neurológica minha prestou atenção, embora eu ainda estivesse bem confusa para fixar qualquer informação posterior. Vi de relance o cotovelo de Wonwoo bater na cintura do amigo, com seus olhos abrindo-se um pouco mais em conjunto com as narinas. Em seguida, Mingyu estendeu a mão para mim. — Muito prazer, falam muito de você no campus.
Falam?
Aceitei a mão, notando a força que ele colocou no aperto para me puxar para cima. Antes de me levantar por inteira, estiquei o outro braço de maneira a pegar o óculos quebrado.
— Obrigada... — agradeci, ajeitando meu blusão. — Eu... Bem, espero que tenha ouvido coisas boas.
— Ah, ouço sim... Acredite, muitas coisas interessan- Ai! — Outra vez Wonwoo tentou cutucar a costela de Mingyu com o cotovelo e eu desviei o olhar.
Para não deixar a situação mais constrangedora, me virei para Wonwoo diretamente:
— Agora você não tem saída a não ser me deixar pagar por isso.
— Eu também acho. Primeiro você esmagou, agora atropelou... Os neurônios queimaram?
Eu e Wonwoo encaramos Mingyu em sincronia e ele deu um passo para trás, fazendo um bico e passando um "zíper imaginário".
— Não precisa pagar, fica tranquila — Wonwoo respondeu docilmente, levando o indicador até a ponte de seu nariz, frustrando o costume de ajustar a armação do óculos. No meu estômago, as faíscas responderam em um uníssono, achando gracioso. Principalmente porque ele parecia tímido demais em qualquer coisa que fazia, ainda mais se tivesse que me encarar.
— Então me deixa retribuir de alguma forma. Mostrar que eu realmente sinto muito. Primeiro na biblioteca, agora te atropelei como um carro desgovernado... — insisti. — Talvez... Talvez não! Você vai me deixar lhe pagar um café! Tem aquela cafeteria aqui perto, com música acústica ao vivo, inclusive, é muito gostosa. Bem tranquilo!
— Ah, eu não acho que-
— Ele vai sim! — Mingyu deu o passo de volta até nós, passando o braço em volta dos ombros de Wonwoo. — Wonwoo adora ambientes tranquilos, ele é a calmaria em pessoa...
Encarei Wonwoo, esperando seu veredito e em completa ansiedade.
— Prometo que depois disso a gente pede uma medida de restrição para eu ficar longe de você ou um seguro de vida — tentei usar de humor, sorrindo simples e com culpa.
— Não! — ele respondeu, apressado, e um pouco exasperado. — Não é pra tanto. — riu nervoso, fraquinho, e eu pude ouvir uma sílaba sendo presa por Mingyu. O olhei de soslaio e o vi desviar o olhar para longe.
— Tudo bem, a gente te coloca em uma bolha anti- Bee, então. Mais simples — disse, ignorando o amigo.
Os ombros dele relaxaram e o sorriso aberto, aquele que havia me engolido por inteira na biblioteca, apareceu de surpresa.
Ele tinha achado graça do meu comentário.
E eu me desmontei por inteira, tal qual um LEGO sendo pisoteado.
— Se a indenização for boa, me coloca no seu seguro também... —Mingyu quebrou o “clima” novamente, me fazendo colocar os pezinhos de volta no chão. — Ele deve ter tido uma pancada um tanto forte, Bee, por isso não está respondendo com facilidade, mas Wonwoo vai sim. Quando? Amanhã?
— Pode ser amanhã, sim. No intervalo do segundo e terceiro período de aula. — Me mantive focada em Wonwoo, mesmo que respondesse à voz de Mingyu, e estendi o óculos para ele. Ou melhor, os restos. — Te vejo amanhã, então? — perguntei, sentindo a ardência em meu rosto, me obrigando a desviar o olhar e encarar qualquer ponto abaixo.
— Vê sim — Mingyu outra vez respondeu.
— Até amanhã. E, mais uma vez, me desculpa... — disse, por fim, antes de me virar de costas para os dois, sentindo meu tornozelo começar a doer pela primeira vez desde que havia tombado em cima de Wonwoo.



Assim que passei com o carro pelo portão principal, notei o quão adiantada eu estava. Mirei o relógio no painel digital e soltei um gemido sôfrego pela minha falta de tato. Se qualquer pessoa passasse a analisar minha situação, iria notar que estava muito nítido o meu. Sete e vinte da manhã e eu já estava estacionando na minha vaga de sempre, em um horário que, normalmente, eu saía de casa.
Permaneci algum tempo ali dentro do carro, encarando meu reflexo várias vezes para garantir que eu não tinha nada fora do lugar — exceto pelo estômago vazio, causando um buraco em minhas costas. E, então, depois de quase quinze minutos parada, saí correndo para a entrada principal. Se eu tivesse muita sorte, Wonwoo passaria por ali àquela hora.
Desci, fechando a porta do carro com cuidado, tentando ser calma e não me atropelar nas próprias atividades. Do banco de trás, apanhei o fichário em meus braços e a bolsa, colocando-a pela alça em meu ombro, então segui adiante, não esquecendo o alarme. Minha sequência de todos os dias, certamente. Cruzei todo o gramado e parei na escadaria do prédio que tinha o curso de direito, sentando-me no pequeno muro para esperar ver o rosto que eu tanto queria ver. Rezando, claro, bem baixinho, para que a divindade fosse boazinha comigo e não colocasse Boo Seungkwan ali àquela hora; eu não tinha o preparo para encontrá-lo e explicar que raios estaria fazendo tão cedo no campus, parada em frente a um prédio que eu não tinha acesso normalmente.
Aproveitei o tempo de espera para continuar umas anotações de rascunhos de algumas coisas que estavam em minha memória para complementar os estudos do próximo final de semana e, logo que vi o movimento das pessoas começar a aumentar, devido ao relógio continuar correndo, comecei a me sentir mais ansiosa, sem saber direito se deveria ficar com o rosto erguido ou não para que ele pudesse me ver se passasse por ali — não podia deixar tão notável assim o tamanho da minha ansiedade, não é?
Mas o relógio estava quase batendo na hora da minha primeira aula. Ainda tinha minutos para eu esperar mais um pouco e correr para o prédio certo, sem ter o risco de chegar um minuto sequer atrasada, chegando, como eu sempre gostava, na hora exata, entretanto, minha ansiedade não enxergava assim.
Quando decidi desistir, decepcionada, me levantei e juntei minhas coisas, porém, ao me virar para descer e dar a volta para o outro prédio, pude ver algo que amaciou minha decepção. Ou melhor, alguém. Eu vi Mingyu no meio de um monte de gente, agradecendo sua altura quilométrica por me permitir vê-lo e não gerar aqueles tipos de mal entendidos de tempo, por eu estar indo exatamente na hora que ele chegava e perder de encontrar quem eu queria. E não foi exatamente o fato de vê-lo que me deixou feliz, foi ver ao seu lado, um pouco — coisa mínima — mais baixo, o rosto de nariz pontudo e olhos espremidos por forçar a vista, com aquele cabelo que parecia ter medo de um pente e de moletom preto muito largo.
Wonwoo tinha uma careta de quem estava sério, parecendo estar forçando mais e mais o olhar para enxergar algo ao longe, e meu estômago vazio, sendo oficina perfeita para borboletas inquietas, consumidas por muito açúcar, enviou a mensagem certa para meu cérebro: talvez ele estivesse tentando me enxergar. Que eu era o algo ao longe.
Olhei para trás e vi que não tinha ninguém, e quando retornei para frente, Mingyu e Wonwoo estavam muito perto, como dois postes, me cobrindo.
— E ela não esqueceu mesmo... — Mingyu disse melódico, sem parar seus passos. — Bom dia, Bee — me cumprimentou e eu vi que Wonwoo o encarava feio. — Até mais, Bee — despediu-se de mim e dele com um aceno, dizendo algo em outro idioma para Wonwoo, mantendo sua caminhada para subir os degraus.
Varri os pensamentos, deixando de ser uma mosca morta, e sorri abertamente para Wonwoo, olhando-o de volta.
— Ei! — disse alto. — Que legal te encontrar aqui... Estava passando atrás de um amigo e... Esse é o seu prédio?
Ele pareceu levar um tempo para compreender. É óbvio que não tinha caído na minha mentira. E é mais óbvio ainda que não existia nenhum amigo — não nesta situação.
Acho que, se eu fosse me ouvir, iria ter a mesma reação.
Ou poderia ser o fato de ele parecer não ter despertado totalmente ainda — gosto mais dessa opção.
— Erm... Oi — respondeu, tímido. — É... É sim...
— E o que você foi fazer na minha biblioteca, hein? — brinquei, dando um soquinho meio desajeitado em seu ombro por meus braços estarem ocupados.
— Ah... Eu fui... — Wonwoo pausou, respirando fundo. — Eu fui atrás disso aqui — ergueu um livro pequeno e meus olhos reconheceram de imediato. — Neuropsicologia. Precisava entender algumas coisas para um seminário importante. Mas acabei tendo que comprar em um bazar no Queens, pegaram quando retornei lá... — Ao fim de sua justificativa, Wonwoo levou a ponta do dedo da mão vazia para a ponte de seu nariz, empurrando o nada.
O livro em sua mão era o que eu tinha saído apressada a alguns dias atrás para conseguir antes de Evans. O livro que ele mesmo pegou para mim. Por um momento, pensei no ponto que sequer tinha passado pela minha cabeça: eu poderia ter comprado um exemplar, isso não seria problema. Entretanto, ignorei, porque meu cérebro estava focado em outra coisa.
Ele tinha tique. Ele tinha o costume de erguer a armação do óculos.
E sua reação ao perceber o que fez me derreteu em peso na consciência.
De novo, não é? Porque eu já tinha notado isso quando terminei de destruir seu óculos no dia anterior.
Droga.
Era muita coisa para eu me concentrar de uma vez só. O tique, a voz rouca de quem tinha acabado de acordar, o rosto meio inchado — certamente porque ele tinha acordado àquela hora mesmo e simplesmente se trocado e ido do dormitório para a parte letiva — e tinha os lábios que, quando ele falava, se fechavam em um bico, mas ao se abrirem para sorrir ou dizer palavras que exigiam uma abertura maior, se tornavam gigantes, mais do que prontos para me engolir. Não tinha como me concentrar exatamente em uma única coisa.
Wonwoo era inteiramente sobre detalhes e eu queria descobrir todos.
Descobrir por descobrir, claro. Estava sendo interessante, inclusive, analisar essa atração repentina da minha mente por alguém que eu não conhecia; a carência poderia estar vindo de uma forma diferente.
— Neuropsicologia é minha maior paixão! — disse, empolgada, focando no que ele disse. — Se desse para casar com uma matéria, com certeza eu pediria a neuro em casamento, talvez no Empire State.
Ele foi abrindo um sorriso lento, mas de lábios fechados.
E novamente eu me peguei na expectativa de ver aquela boca aberta, sorrindo por inteira.
— Me avise se precisar de alguma ajuda com os preparativos — brincou, olhando no relógio em seguida. — Eu... Você se incomoda? Tenho uma prova agora no primeiro período e...
— Não, claro que não! Desculpe tomar seu tempo — respondi, desesperada. — Estava passando por aqui e-
— Se você quiser, como tenho essa prova, podemos tomar aquele café no intervalo da manhã.
Meu queixo só não foi ao chão porque, por cima dos ombros de Wonwoo, eu vi a figura pálida e sorridente de Seungkwan erguendo um celular para a nossa direção. Fechei os olhos para contar até três e, quando os abri, vi o olhar perdido dele em minha frente, provavelmente decepcionado pela minha falta de resposta.
Preocupada demais com qualquer besteira que eu pudesse falar, tirei do meio do meu fichário a minha caneta preta de grifar meus próprios livros, não me lembrando que ela tinha uma durabilidade até que considerável na pele, e puxei a mão dele, virando a palma para cima.
— Me encontre aqui às... — anotei com calma e soltei. — Dez e vinte. Tudo bem? — ele assentiu, olhando para a própria pele marcada. — Anotei para você não esquecer. — tomei coragem de dizer.
— Não tem como. Toda vez que eu me olho no espelho agora, me lembro de você. Ou então quando tenho que me sentar na primeira fileira para enxergar e ouvir bem as explicações.
Ri, nervosa, fazendo uma careta.
— Me desculpa...
— Fica tranquila. Uma hora eu tinha que aprender a usar lentes — ele sorriu, fraco, para me consolar, e olhou para o relógio novamente, parecendo hesitante. — Preciso mesmo…
— Tudo bem! Te vejo mais tarde, então.
— Sim. Até mais, Bee... — Wonwoo se despediu, subindo a escada.
Evitei o máximo que pude, mas não aguentei e me virei para a direção, o vendo sumir pelo meio das pessoas, e me colocando completamente perdida na figura dele.
— Não acredito que Bee vai chegar atrasada hoje porque estava conversando com o nerd do intercâmbio! — A voz de Seungkwan me fez fechar os olhos, prendendo o surto por me lembrar do horário. Ao me virar para ele, prestes a explodir, Boo me segurou pelos ombros. — Fica tranquila, acabou de sair uma notificação que, devido ao trânsito, alguns professores estão atrasados, então a sua aula do primeiro período está suspensa.
Soltei a respiração lentamente, mas logo me arrependendo, porque o sorriso dele já me dizia tudo sobre sua curiosidade.
— Não! Não vou falar sobre isso — disse, apressada.
Bee... Você precisa saber que foi o-
— Não! — o cortei rapidamente, fazendo o movimento de zíper imaginário. — Vou aproveitar esse atraso para comer alguma coisa. Tchau, Boo. Bom dia!
Me virei rápido, quase tropeçando em meus próprios pés ao correr para longe dele, dali, bloqueando qualquer pensamento sobre o que eu tinha tido a coragem de fazer naquela manhã.

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— Bom... — iniciei assim que a garçonete se afastou. — Eu adoro vir nesse lugar. Embora Laura e meu pai acreditem que eu passe mais tempo na biblioteca do que até mesmo em casa, tenho os dias em que prefiro ficar aqui, rodeada dessa calmaria... Esse garoto... — olhei para a direção do pequeno espaço da música, onde um rapaz que eu sempre via na Saint Peter estava cantando enquanto tocava um violão — não sei o nome dele, mas ele é bom. A voz dele é agradável para o ambiente. Você devia vir mais vezes! O café deles é incrível, o barista faz cada desenho... Às vezes me pego com vontade de vir aqui só para ver os desenhos dele.
Por um momento, pausei, notando como estava falando apressada e tirando todo o sentido do que queria de fato dizer. Encarei Wonwoo, vendo que ele estava com os olhos espremidos e a cabeça levemente tombada para a direita, parecendo se forçar a me entender.
— Está tudo bem? — perguntei, confusa. Vi que ele nem tocou na caneca cheia de café.
— Oi? — Wonwoo respondeu, voltando sua atenção em um estalo. As suas orelhas ficaram vermelhas, assim como todo seu rosto, e ele, outra vez, levou o dedo até a ponte do nariz pelo costume de subir a armação do óculos. Armação esta que eu tinha destruído. — Me desculpe, eu acho que... — suspirou. — Acho que devo parar de julgar a professora de penal por dizer que não escuta quando está sem óculos... Isso é mais sério do que eu pensava — riu, fraquinho, tímido.
Quando ele estava com vergonha, seu sorriso de lábios fechados ficava ainda mais minúsculo e seu corpo todo se encolhia. Ele se tornava extremamente pequeno, a ponto de caber no meu bolso. E, além dessa vontade de o tentar fazer caber no meu jeans, também tinha o cabelo não muito bem penteado me causando um anseio inenarrável — a minha vontade era de pentear os fios até mesmo com as minhas próprias mãos, de bônus eu sentiria a textura, se eram macios ou não.
Algo se remexeu no meu estômago. Algo bem leve e gostoso, que vinha tomando uma certa frequência quando eu estava na companhia dele.
Franzi o nariz, fazendo uma careta.
— Me desculpa... — foi o que consegui dizer, tentando disfarçar minha feição.
— Tudo bem, de verdade. Não se preocupe — Wonwoo sorriu com os lábios fechados novamente, em uma tentativa de me convencer. Mas não tinha como. — Então... o café…
— Você não gosta, não é? — Segui o rumo do assunto, constatando, para me desviar a atenção de tentar mais uma vez convencê-lo a deixar lhe dar um óculos novo.
Desta vez a careta foi dele.
— Está muito óbvio?
— A gente finge que não, pode ser? — perguntei, fingindo seriedade. — Só para não ser você a quebrar meu coração igual eu quebrei seu óculos.
Wonwoo pareceu ter recebido um tapa no rosto e eu, somente depois de alguns segundos, compreendi o que disse. Qual era o meu problema, afinal?
Porém, a resposta dele me deixou sem rumo.
— Você é quem tem cara de que quebraria meu coração. — Puxou os lábios em um sorriso divertido, daquele modo que era perfeito para me engolir, enquanto levou a caneca de café para bebericar o líquido. Nem mesmo a careta repetitiva de quem achou ruim foi capaz de me tirar o foco.
Somente o som estridente do meu celular tocando em cima da mesa pôde me devolver a atenção, ainda mais quando movi o olhar e vi o contato. Ler o “Pai” com um coração em cima da foto que tiramos durante uma das nossas trilhas mais perigosas na América do Sul foi como ter os letreiros da Times Square em época de Natal bem à minha frente.
Rapidamente, peguei o aparelho e levei ao ouvido.
— Licença — disse rápido para Wonwoo, me virando, ou agachando, para quase me esconder embaixo da mesa. — Alô? — atendi a chamada.
Bee! Que bom que você finalmente pôde atender seu pai… — Do outro lado, o senhor Bee era irônico do jeito que só ele conseguia. Revirei os olhos, voltando a ficar sentada corretamente à mesa. Wonwoo encarava atentamente o garoto tocando algumas notas de uma música tranquila da Taylor Swift no violão, me dando certa privacidade.
— Desculpa, papai, eu estive ocupada. — Mordi o lábio, me sentindo culpada por um momento. Deveria dar mais valor ao meu redor do que aos livros, mas isso era muito difícil, ainda mais quando meu pai viajava dia sim e o outro também, se fosse possível. E sempre era. — O senhor está bem?
Já falamos sobre os livros, Bee… — ele suspirou. Sempre o mesmo discurso de que eu deveria colocar minha energia em outras coisas. O apelido de “traça de livros” já tinha chegado em minha residência, inclusive. — Sim, estou bem, e você? Está com a Laura agora? Ela conseguiu te levar em um lugar com música? Agitado? — completou logo em seguida, curioso demais.
— Não, estou com... — arregalei os olhos e, no mesmo instante, Wonwoo virou o rosto para mim rapidamente, voltando para o lado quando nossos olhares se cruzaram. — Estou naquele café do campus. Sozinha.
Sei... Não tem nem como duvidar… — suspirou. — De qualquer forma, eu preciso que você faça uma coisa. Alfred está me ligando sem pausas, ele precisa de um segurança para a Laura e quer que eu mesmo escolha, mas não posso! Ainda estou em Dubai.
Já pude imaginar o que iria sobrar para mim. E eu até teria rebatido sua fala sobre Dubai com desgosto, haja visto que nosso jantar mensal, que sempre ocorria na penúltima sexta-feira do mês como uma promessa, havia sido adiado porque ele não tinha terminado seus negócios nos Emirados Árabes. Passei por cima disso, Wonwoo não merecia ouvir uma estranha discutindo relações com o pai solteiro no telefone.
— É, eu sei... — respondi com desânimo, sem saber exatamente sobre o que eu desanimei, a ausência dele ou o pedido do vovô Alfred. — Mas espera aí! O senhor Chevalier quer um segurança para ela? — Notei Wonwoo me olhando de soslaio, assim que eu elevei a voz, finalmente centralizando minha mente. — A Laura não vai gostar disso.
Não é problema nosso. Ele cuida dela, ele sabe o que é melhor para ela, assim como eu sei o que é melhor para você.
— Papai... Não somos mais crianças! — ralhei, fechando os olhos.
Não me importa. Para mim, você vai ser para sempre a minha Abelhinha. Resolva isso e assim que voltar de Dubai nós podemos ir ao show da Taylor que você quer muito.
— Embora isso seja chantagem, eu aceito. Vou ver o que posso fazer pelo senhor. — Ajeitei minha postura. — Agora preciso desligar, era só isso?
Você está com alguém, Bee? — meu pai perguntou de uma forma que eu sabia ser o seu tom sugestivo.
Tinha inúmeras opções de o porquê da insistência dele. Geralmente, quando eu dizia que estava sozinha, a primeira resposta já valia. Ele nunca tinha insistido mais de uma vez.
Olhei ao redor, procurando por algum possível segurança por perto. Tínhamos um acordo de que seguiríamos à risca o que vovó falava sobre a “casa de ferreiro ter o espeto de pau”, e ele, como dono de uma das maiores redes de segurança privada do país (agora expandindo para a Europa e o Oriente), não colocaria um brutamontes à minha volta. Mas pensar sobre isso me fez lembrar que não tinha uma outra especificação: para ser segurança ou qualquer outro cargo que se enquadre na segurança privada de um civil, não precisava ser um monte de músculos.
— C-claro que não! — gaguejei, mais nervosa por ter alguém me seguindo e vigiando do que outra coisa. — Era só isso?
Sim...
— Então tá bom. Eu vou arrumar um segurança corajoso para a Laura. O avô dela não vai sequer ter preocupações... — sorri mais como um ato em reflexo pela minha convicção. — Tchau, papai, não esquece o que eu pedi…
Jamais. Logo, logo vou estar com você, filha.
— Tá bom. — Tá bom? Só isso?
— Pai… — resmunguei. Eu estava chateada para dizer um “eu te amo” à nossa maneira ou mencionar a saudade. — Você sabe que estou com saudade.
Também estou, . Devo voltar logo. Prometo. Algum dia já quebrei alguma promessa?
Suspirei, não tinha resposta. Encarei Wonwoo em silêncio, ouvindo a respiração do meu pai do outro lado. Mesmo que ele não pudesse ver, eu sorri.
— Não. Nunca. Volte logo — encerrei, colocando o celular em cima da mesa e passando a mão no rosto. — Me perdoa por isso, tem uns dias que estou ignorando as chamadas dele porque esqueço o celular no silencioso — menti um pouco, ele não tinha que saber que também ignorei meu pai por dias porque estava chateada com ele e seu atraso no retorno. — Ainda não estou rica o suficiente para ser tirada do testamento — brinquei.
— Não se preocupe... — ele sorriu, cordial, mas logo emendou: — Você precisa de um segurança?
Analisei seu rosto, notando como ele parecia mesmo interessado.
De repente, entrei em pânico. Não, sem chance, de forma alguma! Wonwoo não tinha porte para ser segurança de Laura, e não é físico, no caso. Ela era um problema grande demais para ele aguentar. Laura precisava de alguém que fosse tão... radical? É isso! Ela precisava de alguém que fosse tão radical quanto ela e Wonwoo era doce demais para isso.
Antes que eu pudesse responder, ele completou:
— Não é para mim. — Seus olhos se arregalaram, gesticulando. — Eu tenho um amigo que pode servir para o papel.
— Jura? — respondi, aliviada e empolgada por aquilo. Não sei por quê. — Digo... Você pode falar com ele? Eu te passo o endereço, telefone e tudo, ele só precisa ir até a sede da Bee e lá eles encaminham...
— Claro! Eu posso falar com ele... Você tem um telefone para ele contatar?
— Tenho. — Puxei o meu rapidamente, sem entender de imediato que ele estava falando de um cartão. Quando pensei sobre isso, minha empolgação e expectativa já estavam altas, tanto que seu contato já tinha um nome digitado. — Fala o seu, eu te passo tudo direitinho e você encaminha para ele — continuei no mesmo tom para não parecer que estava em uma luta interna com meus pensamentos. Ao invés de esperar que ele dissesse, dei o telefone para que digitasse. — Melhor você digitar.
— Pronto! — me devolveu e eu vi o nome alterado, sem o “Saint Peter” do lado, com um emoji de óculos no lugar. Não evitei o meu sorriso. — Me passa as informações e eu falo com o Mingyu.
Mingyu? Bom saber. Era o cara alto e forte que se apresentou como amigo dele no último acidente. Ele parecia ser tão radical quanto Laura.
E eu poderia agradecer a ele, pois, graças ao conjunto todo — incluindo meu pai —, agora eu tinha o número de Wonwoo salvo. Era um curto passo para eu conseguir dar para ele o óculos novo que minha consciência insistia em gritar como dever.



— Bom dia, senhorita Bee. No que posso ajudá-la?
O sorriso de Lindsay era sempre o mesmo em minha direção, e eu já vinha há um bom tempo tentando decifrar se ela era simpática comigo porque sua posição na empresa exigia isso ou se era mesmo verdade o que Angeline dizia sobre a recepcionista mais antiga da matriz: que ela tinha um interesse profundo no meu pai, coisa de paixão avassaladora mesmo. Eu bem a ajudaria, se ela quisesse, mas desvendar sorrisos ainda não era o meu papel, e mesmo que eu estivesse a pouco de me formar, precisaria passar por outro processo longo de estudos, uma próxima fase, para enfim poder fazer a análise comportamental e definir perfis psicopatas, sociopatas etc — não dava para eu me intrometer por ora, meu pai que se virasse.
Por mais que eu fosse a dita herdeira de toda a Bee’s Safe Private Security & Investigations, meu pai sempre deixou explícito que minhas andanças por ali não eram liberadas 100%, até porque não fazia sentido. Era um local sério, de trabalho. Então eu usei meu máximo de simpatia, sorrindo de volta para Lindsay, como se não fosse apenas sete da manhã, a fim de usar de seus serviços e que ela não mencionasse a minha presença ali.
— Eu preciso falar com Amaya, ela já chegou? — perguntei.
Lindsay se esforçou, mas não conseguiu não murchar o sorriso.
— Se é que ela foi embora... — suspirou. — Pode ir, sabe onde encontrá-la, não sabe?
Apenas assenti e me virei para as catracas de liberação, vendo ficar verde a que ela liberou para que eu pudesse passar. Segui até o elevador e, assim que a porta se abriu, digitei o número do andar onde uma das funcionárias favoritas do meu pai trabalhava. Não só dele, Amaya também era um anjo sobre a Terra para mim e, se ela não fosse tão nova, eu, com muita certeza e afinco, já teria feito dela a minha madrasta.
Ri sozinha com meu pensamento, ouvindo um “segura aí” bem alto quando a porta começou a se fechar e, instintivamente, coloquei meu braço no vão, não deixando isso acontecer. Logo vi um rapaz de boné, roupa meio social e mochila nas costas entrar, um tanto ofegante. O logo de sua bagagem era o da universidade e eu o analisei por completo, tentando reconhecer seu rosto, mas sem sucesso. Tinha alguma coisa estranha, eu nunca vi tanta gente desconhecida naquele campus nos últimos anos como vinha acontecendo ultimamente.
Ou talvez eu só estivesse reparando mais e isso acontecia desde um fato em específico.
— Pode apertar o doze pra mim, por favor? — ele pediu, seu rosto quase se contorcendo por ter que falar comigo.
— Ah, sim... Claro.
Apertei o número e a porta demorou a fechar, ficando aquele silêncio constrangedor. Limpei a garganta, tomando coragem para perguntar:
— Você estuda na Saint Peter?
Sua feição não mudou em nada ao me encarar, tirando a atenção do crachá que estava sendo bem posicionado na altura do peito, preso à camisa.
— Sim. Você também? — respondeu.
— Estudo — sorri educadamente, estendendo a mão. — Bee, sétimo semestre de Psicologia.
Por uma fração de segundos, vi uma hesitação, mas ele logo estendeu seu braço, me dando sua mão para apertar.
— Hansol — disse simples. — Faço Administração. — E, como se estivesse entendendo algo, maneou a cabeça para o lado e tentou perguntar: — Você é a filha do-
— Sim — o cortei, fazendo uma careta.
— Ah, legal. É muito interessante esse programa de estágio filiado à universidade. Você vai herdar uma empresa com missão e valores intuitivos.
— Obrigada. Mas pode guardar isso para o quadro de elogios da Lindsay ou dizer nas reuniões anuais. Eu não tenho muito a ver com a Bee’s.
— Bom, falar abertamente em público não é muito o meu forte. — Agora foi ele quem fez uma careta, parecendo aliviado de certa forma.
A porta se abriu no andar dele e Hansol suspirou, não de cansaço ou algo do tipo, parecia mais um ponto final para a conversa. Um tanto elegante, diga-se de passagem.
— Eu vou indo nessa, senhorita Bee... Foi um prazer. — Passou para o lado de fora.
, pode me chamar só de . Se me ver por aí, claro — ri, rolando os olhos. — E não esqueça: no coquetel anual, eu vou te cobrar pra ir lá no palanque pra dar algumas palavrinhas.
Hansol assentiu, acenando por fim e sumindo, conforme a porta se fechava.
Virei para o espelho atrás de mim e emiti uma sílaba baixa, satisfeita com a minha simpatia. Não era tão comum que todos os funcionários da empresa tivessem sequer a liberdade de tocar minha mão em cumprimento e muito disso vinha de mim mesma, da minha limitação por contato, conversas etc.
Tinha realmente alguma coisa acontecendo. A fase adulta finalmente se instalando?
O barulho do elevador e a voz robótica falando sobre meu destino me tiraram da autoanálise e eu saí rápido, indo afobada até a sala de Amaya, no final do corredor. Não precisei bater à porta, ela logo abriu, me recebendo com um olhar desconfiado.
— Não vou investigar a Lindsay pra você.
— Poxa, todo mundo aqui já sabe sobre ela... Menos o meu pai? — respondi de imediato. — Bom dia, May! Não foi pra casa mais uma vez?
— Estou ocupada com uma coisa importante... — Amaya me deu passagem e eu entrei. — De que você precisa?
— Direta como sempre. — Virei para ela, parada no meio da sala. — Preciso investigar uma pessoa e você é a melhor que eu conheço para isso... Se eu for até a equipe de investigações, meu pai vai ficar sabendo e eu não quero prestar essa conta em específico com ele.
, eu não posso — ela logo se prontificou a negar e eu sabia o que vinha em seguida, somente pela sua feição de compaixão. — Seu pai deu ordem a todo mundo daqui para não aceitar esse pedido.
— Que pedido? — fingi surpresa. — De investigar a minha mãe? — Emiti um som anasalado, colocando as mãos na cintura. Amaya me analisava como se pudesse me ler de alguma forma. — Não se preocupe, eu não tenho o mínimo interesse em saber dela, May. — Me aproximei, colocando as mãos em seus ombros. — Eu preciso que você investigue um cara para mim. — Senti as bochechas arderem, ainda mais quando ela arregalou os olhos, mudando sua feição para surpresa.
— O quê? Um cara? Por quê? Ele fez alguma coisa para você?
Fez, e eu ainda tô tentando descobrir, quando souber, te conto.
— Na verdade, fui eu quem fez para ele — suspirei, me afastando outra vez. — O prendi entre as prateleiras da biblioteca e depois caí em cima dele em outra ocasião, causou um estrago no óculos que ele usava e eu queria recompensar, dar um novo. Mas ele se recusa, May! Então eu quero só chegar e “toma aqui, bota isso e agora eu juro que saio do seu pé”.
— Por que parece, para mim, que você não quer sair do pé dele? — Amaya prendeu os lábios entre os dentes, me olhando com os olhos cerrados.
Não soube o que responder, parecendo encontrar um imenso vazio na minha mente. Eu não consegui negar ou ralhar com ela por seu pensamento infundado.
Felizmente, ela não insistiu.
— Certo, você quer que eu-
Neste exato momento, saindo da segunda sala que tinha ali dentro, Boo Seungkwan abriu a porta, me encarando com os olhos arregalados.
— Nós vamos — ele disse alto, apontando para Amaya.
— Mas o quê? Você... Ele... — olhei de um para outro. — Ele estava aí ouvindo esse tempo todo?
— Seungkwan chegou mais cedo hoje. Essa semana ele está comigo. — May revirou os olhos. — Não me olhe assim, foi ideia sua deixá-lo andar livremente por esse prédio. E ele é seu amigo, qual o problema?
— Ele é um fofoqueiro — encarei Boo. — Sem uma palavra sobre isso no seu bloquinho, tá me ouvindo? — apontei o dedo, dizendo firme, e ele ergueu os braços. Murchei os ombros em seguida, sabendo que não teria mais volta. — O nome dele é... Jeon Wonwoo.
Seungkwan desfez a feição de interesse e ficou completamente em seu modo entediado. A empolgação que ele tinha demonstrado simplesmente deixou de existir no mesmo segundo que eu proferi o nome de Wonwoo. Nós ficamos nos encarando em silêncio; enquanto eu esperava uma reação diferente dele e Amaya, fui engolida pela incredulidade dela e a antipatia dele.
E eu não cheguei nem perto de dizer o nome de Hoshi.
— Esse nome é novo. — Amaya arqueou as sobrancelhas.
Ao menos serviu para romper o silêncio.
— Nossa, eu… — Da melhor forma que pôde, Boo fingiu olhar em seu relógio de pulso com preocupação. — Esqueci que tinha uma coisa importante… — parecendo meio perdido, pegou suas coisas. — Boa sorte, Amaya — disse sem muito desenvolver e ela apenas acenou, não levando nada em consideração. Ao passar por mim, Boo beijou minha testa. — Nos falamos depois.
Ele saiu e no instante seguinte Amaya abriu um sorriso cheio de intenções maliciosas.
— O que foi isso? — Ela foi em direção ao frigobar e pegou duas águas, jogando uma para mim.
— Não faço ideia — suspirei.
— Ah, faz sim… Não se faça de inocente, Bee! — May riu fraco. Se encostou em sua mesa. — Você sabe que o Seungkwan é apaixonado por você. Ele sequer esconde, tem momentos que eu acredito que o fetiche dele é ser rejeitado por você.
— Não fala assim, May. Essa história já foi resolvida há muito tempo. O Boo sabe que ele é meu melhor amigo e-
— E ele, sem opção, aceitou. Ou ele te mantém na vida dele sob seus termos ou… — deixou a frase morrer e eu respirei fundo. May notou meu desconforto sobre o assunto, não era algo que eu gostava de discutir muito. Eu não enxergava Boo com esses olhos e ele mesmo sabia disso. Era um assunto muito bem resolvido. — Bom, me fala mais sobre esse míope. Como foi que aconteceu? Uma nova pessoa na vida de Bee e não é um livro ou uma super professora!? Uau…
Revirei os olhos, jogando a tampinha da garrafa em Amaya. De repente meu corpo todo voltou a ter a mesma perspectiva de quando chegou ao prédio, com a mesma ansiedade de dizer a ela o que eu precisava que fizesse.
Eu só precisava fazer isso do mesmo jeito Bee de sempre para não criar uma narrativa absurda: sendo objetiva.
— É o que eu já disse, nada mais. Preciso compensar o estrago que fiz — dei de ombros.
— Ou foi ele quem fez o estrago?
— May! — ralhei e ela gargalhou.

📚

Embora eu fosse adepta a todo tipo de esporte e gostasse muito de futebol, eu não era boa em nenhum deles. Em uma Olimpíada, eu seria ótima sendo parte da torcida ou, se existisse uma modalidade sobre planejamento, a medalha de ouro seria possível. Mas isso não me impedia de fazer nada, principalmente me meter nas aulas de vôlei que Seungkwan fazia desde que entrou na Saint Peter — uma das coisas que culminou no nosso encontro de neurônios foi o fato de gostarmos quase que das mesmas coisas; ele adorava esportes tanto quanto eu.
Talvez fosse o primeiro dia que eu teria um pouco mais livre desde que o semestre tinha começado, então decidi tentar uma partida de vôlei; Laura estava fora do meu radar e confesso que não a procurei também. Muito provavelmente meu inconsciente havia criado um mecanismo próprio para evitar a minha melhor amiga, afinal, ela me conhecia muito bem e eu já estava começando a notar que algumas coisas queriam escapar pela minha boca.
Sob hipótese nenhuma o nome de Wonwoo deveria ser citado a ela. Não antes de eu resolver e colocar entre nós dois a definição do nosso enredo: eu quebrei o óculos dele, dei outro e cada um seguiu seu caminho. Simples e prático.
Quando entrei na quadra, só tinha Boo — para a minha felicidade. Socializar com os colegas dele não era meu hobby favorito; na verdade, socializar não era o meu hobby no geral. Ele estava sacando algumas bolas e, quando viu que o cesto estava vazio, respirou extremamente fundo e alto, caindo deitado no chão, de barriga para cima. De costas para mim, ele não tinha me visto entrar.
— Achei que encontraria o time aqui. — Me sentei ao lado dele, oferecendo minha garrafa de água. Boo se assustou, claro.
— Oi, — sorriu para mim, se sentando. — Obrigado. — Pegou a garrafa. — Hoje começam os jogos regionais…
— E você não foi ver? — Me espantei. Por mais que não fosse oficialmente do time, Boo estava sempre junto (mas não era o mascote, isso ficava a trabalho de Evan, um veterano de Sociologia que adorava se vestir com a roupa de tigre, o símbolo esportista da Saint Peter).
— Não, ando um pouco ocupado com alguns processos seletivos. Falta pouco, não quero terminar a faculdade sem opções.
— Isso explica seu sumiço — comentei.
Os ombros de Boo estavam baixos, ele nunca baixava tanto a guarda assim. Nem mesmo para mim. Peguei a garrafa de volta, limpando a tampa antes de beber enquanto o analisava. Depois do ocorrido na Bee’s, eu e Boo não tínhamos nos visto mais. Isso já tinha uns três dias mais ou menos. Nem mesmo as mensagens de boa noite ele tinha me enviado.
Sem resposta dele, resolvi tomar a atitude.
— E alguma dessas opções vai te afastar da sua melhor amiga? — Coloquei a garrafa no chão e ele me encarou, surpreso.

— Você acha que vai precisar voltar para Seul? — Desviei o olhar do dele.
— Não! — A resposta foi muito assertiva. — Já te disse que não volto pra lá. Eu sou Boo Seungkwan, me dê algum crédito!
Ri fraco, voltando a encará-lo. Ainda assim, algo estava diferente.
Eu só precisava perguntar.
— O que está acontecendo?
Seungkwan me encarou por alguns segundos, a expressão serena, porém. Se eu o conhecia bem, podia jurar que ele estava encontrando as palavras certas. E, da última vez que eu o vi carregar a mesma feição, no segundo seguinte o ouvi falar sobre seus sentimentos por mim.
Minha espinha ficou gelada e eu me arrependi de perguntar.
— Você — disse por fim. — Você que acontece, — riu fraco com um sorriso ladino. — Tem alguma coisa diferente em você que eu não sei o que é. E acho que nem você sabe.
— De que você está falando? — arqueei as sobrancelhas em julgamento.
— Me desculpa por aquele dia. — Ele pareceu reunir muitas forças para isso, uma prova para essa conclusão foi o olhar desviado e o rosto virado para outro lado antes de voltar a me encarar. — A verdade é que foi o Wonwoo quem me perguntou sobre você. Eu só não achei que as coisas tomariam essa proporção.
Meu coração parou no instante em que ele mencionou o nome de Wonwoo junto com a informação que vinha escondendo de mim há bons dias.
Engoli a seco e continuei o encarando, sem piscar.
Eu nunca quis tanto que Seungkwan continuasse a falar.
— Logo depois que você quase matou o cara entre as prateleiras — mostrei a língua para ele por seu exagero —, ele me encontrou na gráfica e perguntou se você estava bem.
— E o que você disse? — perguntei, receosa.
Era muito bom conhecer e ser amiga de Boo Seungkwan.
Era muito preocupante conhecer Boo Seungkwan.
— Vocês foram tomar um café, não foram? — ele deu de ombros com desdém. — Não disse nada demais.
— Mesmo? — insisti.
… — Boo se aproximou de mim, pegando em minhas mãos. — Não existe nada que eu goste mais em você do que a sua felicidade. Se é um míope, nerd igual a você, mas de Direito, então tudo bem para mim.
— Não, Boo! — bufei, soltando minhas mãos. — Você está vendo coisa onde não tem. Eu só quero compensar o que estraguei. O óculos era novo!
— Tá? — Ele se levantou e estendeu a mão para mim. — O que eu tinha para falar, já falei. Se for para discutir com a parede, eu faço isso no meu dormitório. — Fiquei olhando sua mão estendida. — Vem, vamos jogar um pouquinho.
Ponderei. Uma parte de mim queria discutir com ele e dizer que estava extremamente equivocado, fosse lá o que estivesse passando em sua cabeça sobre minhas intenções com Wonwoo; a outra queria muito saber em detalhes como foi que Wonwoo o abordou para saber sobre mim; e tinha a que queria entender melhor o que de fato estava acontecendo.
Ficar perdida dentro de mim mesma estava me frustrando demais.
— Você vai pegar leve comigo? — fiz um bico, pegando sua mão.
— E quando foi que eu peguei pesado? — Boo me puxou e ficamos bem próximos. Fiquei olhando em seus olhos sem resposta. — Quem perder paga o jantar.
Subitamente, Boo me soltou e foi atrás de uma bola solta na quadra.



“Te encontro em 10 minutos.”
Li e reli a mensagem inúmeras vezes, me sentindo idiota e emocionada. Igual àquelas pessoas carentes que, infelizmente, não conseguem diferenciar o que é para ser e o que não é.
Fazia 20 minutos que Wonwoo tinha me respondido, depois de eu dizer que estava na biblioteca, e sequer duvidei de toda a sua solicitude ao dizer que viria até mim, continuando a esperar por ele como uma boba, não conseguindo mais me concentrar em minha estruturação de um trabalho superimportante sobre psicopatia infantil. Eu precisava criar uma dinâmica para avaliar uma criança com esses traços, mas tudo o que conseguia pensar era que poderia estar sendo grudenta demais com alguém que devia não ter o interesse — este, no caso, que nem eu mesma sabia qual era por minha parte, além de saber que só queria conversar com ele, ter sua companhia de alguma forma.
Só tinha ideia de que era gostoso falar com Wonwoo e as trocas de mensagens não tinham sido tão poucas desde o café, quando ele teve o cuidado de salvar seu número como “Jeon W + emoji de óculos”, mas também não durava a cada minuto do dia, até porque tínhamos rotinas de estudos muito pesadas e cheias. A questão era que eu estava me acostumando, e, se ele me disse que em 10 minutos viria até mim, certamente eu iria esperar pelo menos uma mensagem sobre o atraso. E também não seria eu a cobrar isso.
Então eu gastei tempo vendo a conversa e esperando por ele ficar on-line e me mandar alguma coisa, mas nada veio, só tinha a caixinha dentro da minha bolsa berrando que eu estava ficando louca de vez e que pulei de cabeça em uma piscina muito rasa. Como um estalo, sozinha voltei a me concentrar no meu afazer, me sentindo vazia por não ter ideia do que montar, já que minha cabeça estava consumida por outra coisa em paralelo. Esse era o meu maior medo: perder o foco por pouco. Não é como se eu estivesse desvalorizando alguém, porém eu tinha nadado um mar inteiro e estava quase chegando à costa para morrer afogada, reprovar em uma matéria no sétimo semestre seria um caso sério.
— A mãe natureza deve te odiar agora pelo tanto de folha que você já jogou nessa lata. — Ergui meu rosto ao ouvir a voz dele, vendo-o se sentar em minha frente, do outro lado. — Me desculpa, fiquei sem bateria e tive que falar com minha mãe pelo telefone do Mingyu — fez uma careta. — Ela geralmente me liga mais tarde, mas hoje estava com os Kim e... Bem, é um monte de senhora querendo saber como é a vida na América.
Ele havia comentado por mensagem sobre seus pais ainda viverem na Coreia do Sul, de onde ele tinha vindo, por isso me senti “familiarizada” em sua justificativa. Assenti levemente, tentando ajeitar a carranca em minha face que eu sabia existir. Um dos meus maiores problemas: ser expressiva. E, pelo tom de suas desculpas, imaginei que deveria estar se sentindo culpado pela forma como eu o encarava.
— Eu vim o mais rápido que consegui — reforçou.
Me ajeitei na cadeira, relaxando o corpo.
— Tudo bem — sorri, amena. — De verdade. Meu problema tem outro nome — resmunguei, apoiando o rosto entre as duas mãos com os cotovelos apoiados na superfície.
— Então acho que cheguei para te resgatar... — Wonwoo colocou sua mochila na cadeira ao lado e repetiu o mesmo que eu, ficando extremamente adorável com suas bochechas apertadas e os olhos minúsculos. — E qual é o nome dele? Vamos lá, futura neuropsicóloga, hoje serei seu terapeuta.
— O nome dele é “Ponto Extra”.
— Hum, nome composto. Não gosto, estes são os mais difíceis — assentiu, recostando-se na cadeira. — Talvez você devesse pedir ajuda para a tal da nerd do extra. Já ouviu falar sobre ela?
Outro apelido, claro.
Neguei com a cabeça, mesmo sabendo que era sobre mim que ele estava falando.
— Dizem por aí que tem uma aluna de Ciências Humanas que é bem aplicada em tudo, além de nunca ter tirado menos que a nota máxima, completou o quadro de atividades extras ainda no primeiro semestre e agora faz isso por hobby.
— Sério? E o que você acha disso? — fingi ignorância, me mantendo na mesma postura. — Ela deve ser daquelas pessoas insuportáveis que só pensam em estudar.
— Eu acho o contrário.
— É? — Minha voz mudou, saindo um pouco falhada, e eu me ajeitei, ficando ereta e atenta.
— Sim. Ela deve ser muito inteligente e é admirável para qualquer universitário ter tantas condecorações assim — Wonwoo disse tranquilamente, ainda do mesmo jeito. — Você é muito inteligente, Bee, e deve merecer todos os resultados por seus esforços. Mas deveria começar a descansar, se extrair demais, uma hora não terá mais nada.
Senti que meus olhos se arregalaram e o sorriso dele foi acompanhando, aumentando conforme minhas pálpebras se abriam mais.
Levei um tempo até lembrar que Boo confessou ter sido Wonwoo a perguntar para ele sobre mim, e, quando me dei conta, fiquei preocupada com o tipo de coisas que devem ter sido ditas. E eu sabia que ele jamais me daria detalhes.
Ajeitei minha postura, notavelmente desconcertada, e engoli a vergonha, com as bochechas queimando, para dizer:
— Tenho medo do que Seungkwan deve ter te contado sobre mim.
A reação dele foi engraçada, como se tivesse sido pego cometendo um ato proibido.
— Agora eu estou com medo do que ele disse a você. — Ajeitou-se, ficando em uma posição alarmada.
— Fica tranquilo, o máximo que ele vai fazer é colocar no periódico — dei de ombros, tranquila, mas em tom de brincadeira. — Dentre todos os fofoqueiros nesta universidade, você foi atrás do rei deles.
— Vou pagar caro por ter tentado descobrir o nome da garota que quase me esmagou entre livros. — Ele franziu o nariz, cruzando os braços. — Tudo porque me preocupei por você ter ficado preocupada demais só por causa de um óculos.
Tentei não derreter com a feição dele se contorcendo em timidez pelo que disse, assim como lutei comigo mesma para não colapsar com sua confissão. Respirei fundo, mas nem tanto para não aparecer, e me alinhei.
Organização primeiro, surtos depois, respostas mais tarde ainda.
— Além de tudo, você ainda teve o azar de ir justamente no meu melhor amigo — ri, sendo acompanhada por ele.
— Você acabou de falar que ele é um grande fofoqueiro…
— Mas ele é! Melhores amigos também têm defeitos… — ri fraco, me inclinando um pouco para completar: — Só não conta pra ele essa parte de “melhor” antes de “amigo”, ok? Ou então o ego vai lá em cima e ele versus Laura é algo um pouco insuportável de aguentar. É segredo.
Wonwoo me lançou uma piscadela em confirmação.
— Então eu te deixei preocupado? — engatei logo em seguida, aproveitando o fio da coragem. E, se eu fosse pensar bem, não tinha muito o que ligar para o fato de eu estar mais falante, interessada, menos introvertida ao se tratar dele. Tinha algo diferente, um impulso ainda não identificado.
Contudo, era uma sensação boa e poderia ser isso o que instigava essa nova superfície que eu estava emergindo.
— Na verdade — ele raspou a garganta —, eu... eu queria saber mesmo quem você era, principalmente.
— Ah...
— E quando descobri que quase fui esmagado pela celebridade de toda Saint Peter, me senti lisonjeado — completou, e eu pude identificar seu tom de humor velando a sua timidez em confessar algo que parecia ser difícil.
Eu conseguia me ver em Wonwoo a cada vez que ele se contorcia na escolha de palavras. Pessoas introvertidas como nós dificilmente acreditam que estão fazendo as escolhas certas.
— Não sou uma celebridade. Para ser bem honesta, odeio holofotes e ser... vista. — Murchei os ombros, voltando a apoiar os cotovelos na mesa e a colocar o rosto entre as palmas das mãos. — Me propus a ser uma profissional de excelência, fazer o meu nome. Para alcançar isso, eu preciso estudar. É só isso que faço — dei de ombros.
— E faz muito bem — Wonwoo sorriu e piscou para mim de uma forma diferente, menos tímido, também menos recluso. Como se uma camada de gelo estivesse sendo quebrada.
— Obrigada — respondi por fim.
Para salientar o clima de silêncio que se instalou entre nós dois, enquanto nos encaramos em uma conversa muda, apenas de olhares, meu celular começou a vibrar em cima da mesa. Desta vez não era meu pai, a tela de bloqueio recebia inúmeras notificações, uma seguida da outra, com “Laura + um emoji de uma Lua pela metade” (porque ela tinha o meu salvo com a outra parte, claro) brilhando.
Suas perguntas só se resumiam a Wonwoo e disse que não iria me atrapalhar, mas que queria saber tudo. Eu li por cima, tentando não desviar totalmente dele. No café, eu atendi a ligação porque era meu pai, não que Laura não fosse importante também, mas agora eu não podia dar atenção a ela.
Eu sequer sabia onde estava o meu foco no momento.
“Deu vida a algum personagem do Nicholas Sparks?”
“Quem é o gatinho?”
E tudo o que conseguia pensar, olhando para as notificações e para ele, era que eu provavelmente estaria bem perdida, afinal, a caixinha dentro da minha bolsa também podia provar isso.
— Eu tenho uma coisa pra você! — Aleatoriamente estalei a lembrança, virando o telefone com a tela para a superfície e pegando dentro da minha bolsa a embalagem. — Sei que você falou que não precisava, mas eu não acho... Então... Se não for o seu grau correto, tem um papelzinho aí que garante a troca! — tagarelei, somente notando a atenção dele quando estendi a caixinha.
Bee... — Wonwoo disse melódico.
. Você pode me chamar só de .
Ele me olhou nem um pouco convencido e tomou a caixinha em mãos, demorando a abrir o retângulo preto com laço dourado e ver ali dentro uma embalagem para óculos, que também demorou a ser aberta.
Wonwoo sorriu simples, mas nada muito aberto.
— Eu não posso aceitar — estendeu de volta para mim, fechando a caixa, e eu neguei, tocando sua mão para que voltasse para a direção dele. O choque me percorreu por inteira, era a primeira vez que o tocava de forma consciente, sem envolver qualquer acidente ou minha afobação.
E o toque me fez sentir uma certa ansiedade no estômago. Mas uma daquelas que automaticamente trazem um sorriso ao seu rosto. Precisei ser forte e lutar contra aquilo.
— Por favor. Se não for usar, leva para casa só para eu me sentir menos culpada. Com uma dívida paga — insisti.
Bee... Digo, . — Wonwoo olhou para o acessório e depois para mim novamente, desistindo de refutar. Provavelmente o meu lance com expressão o fez desistir, porque eu estava bem decidida a convencê-lo.
— Por favor... — repeti, agora mais baixo e unindo as mãos em pedido.
— Se eu aceitar e você pagar essa — fez aspas com os dedos — “dívida”, como farei para ver você outra vez?
Engoli a surpresa que travou minha garganta, me desmontando por completo. Wonwoo me encarava sem qualquer sombra de hesitação ou vergonha, ele parecia bem decidido à forma que me rebateu com aquela pergunta.
Abri e fechei a boca algumas vezes, tomando tempo para entender o que minha cabeça estava matutando sobre e como deveria responder, até, por fim, encontrar a resposta bem ali, deitada no lugar onde estava o tempo todo: a coragem que ainda não poderia ser chamada de coragem; que, inclusive, eu deveria arrumar um jeito de descobrir logo o que era, de fato, pois se tratava de uma coisa menos abrangente, era mais específico, só dele para mim e vice-versa.
Desviei o olhar algumas vezes, até focar o que estava rabiscado na folha em minha frente, no meio do fichário aberto. Mordi o lábio, incerta, desconfiada, insegura, dentre outras mil coisas negativas no momento, e, antes que eu desistisse e recuasse, respondi:
— Você pode me ajudar com essa dinâmica. Envolve criar todo um cenário de tribunal, é um caso que eu montei e agora preciso entregar a dinâmica completa para o doutor Davies.
— Pois considere feito. Esse é o professor que mais me amou durante o curso, fui o melhor em prática jurídica com ele — Wonwoo não tardou. Aliás, ele logo estendeu o braço por cima da mesa, me oferecendo sua mão em um aperto. — Pode me mandar tudo, vou analisar e o que precisar, te ajudarei.
Encaixei minha mão na sua, sentindo a maciez e reparando o quão pequena fiquei naquele cumprimento.
Para ser real, eu ficava e me sentia pequena por inteira perto dele, mas não por inferioridade ou pelo tamanho do corpo, mas porque parecia que ele tinha o tipo exato para me oferecer o que eu sempre achei impossível. Era uma exceção para as exceções de alguém que poderia me fazer acreditar que um grande amor seria encontrado numa biblioteca.
E não tinha lugar melhor para isso ter acontecido justamente comigo e toda minha negação.



— Aqui está, Antonia.
Coloquei em cima da mesa o livro que alguns dias antes eu havia pegado na biblioteca depois do leve acidente que me fez conhecer Wonwoo. Ela ergueu o olhar para mim com um sorriso atencioso, porém muito curiosa, do qual eu já podia ver carregar as diversas perguntas e comentários que a qualquer momento sairiam por sua boca, me deixando sem jeito.
Além disso, eu não estava me sentindo muito bem; tudo parecia estar correndo em câmera lenta.
— E o que achou? — Antonia perguntou ao pegar o calhamaço para fazer o registro de devolução; ao mesmo tempo que se movia e bipava a etiqueta dele, mantinha em mim o seu olhar analítico de uma fofoqueira comum. — Você demorou o prazo completo de empréstimo, isso não é costumeiro… Suas devoluções sempre foram rápidas demais…
— Não tive tempo para focar nisso. Eu demorei para ler mesmo — tentei soar o mais tranquila possível, desviando do olhar incisivo dela. Todo mundo tinha uma opinião sobre mim nos últimos dias da qual não vinha fazendo o menor sentido. — Mas eu o achei bem completo. Senhora Maxwell vai ficar muito orgulhosa do meu artigo — completei com a resposta à pergunta dela.
— Como sempre — ela riu fraco, colocando o livro na cesta de reservas.
Achei estranho.
— Ele não vai voltar para a prateleira? — questionei.
— Não. A sua amiga Evans está aqui para pegá-lo. — Antonia cruzou os braços em cima de sua mesa, maneando a cabeça para a direção das prateleiras daquele espaço.
Soltei um muxoxo em desgosto pela informação. Em outra ocasião, eu ficaria mais feliz de saber que Victoria tinha ficado dependente de mim para ler um livro, mas naquela data em específico eu só estava pedindo para que o universo me abençoasse e eu não precisasse passar por nenhuma situação entediante. Porém, parecia que Antonia não partilhava do meu interesse, pelo contrário.
Estava muito nítido que ela queria falar sobre o ocorrido passado, mas eu não me sentia disposta. Havia sido uma manhã muito cheia, com muita teoria, e eu estava sem paciência para nada, em uma crise de humor que há muito não tinha. Sempre que começava a chegar perto de completar o período limite entre uma consulta e outra com meu endocrinologista, parecia que tudo virava de cabeça para baixo; o nervosismo para ver meus exames chegava a ser ridiculamente exaustivo. E eu teria a consulta com ele no meio da tarde.
Ter o tipo 1 de diabetes era uma coisa da qual eu já estava muito bem acostumada, afinal, desde que nasci, eu já convivia com isso, mas, a cada período que passava, os receios com as possibilidades de inconstâncias no tratamento me engoliam e faziam com que eu tivesse tudo, menos o controle. Viver em uma condição da qual o meu próprio organismo se torna responsável por me atacar é simplesmente a maior das controvérsias que poderia existir na vida da Bee.
Nesse momento limite, então, eu não queria saber o que as pessoas tinham para falar sobre mim, sobre minha vida e o que elas acreditavam que eu deveria fazer ou não. Principalmente pelo simples e redundante fato de que a vida era minha. Mas também estava sem forças para me mover dali, embora o olhar esperançoso de Antônia e a presença de Victoria Evans em algum canto dali me causassem perturbações.
— Antonia, serão apenas esses… Credo, você está da cor de um papel, Bee!
Em poucos segundos após ser mencionada, Tori apareceu. Ela parou ao meu lado, olhando meu perfil e proferindo palavras em seu tom de voz alto demais, com o timbre esganiçado e irritante de sempre.
Fechei os olhos por alguns segundos e respirei fundo, me apoiando na superfície da mesa. O que me causou certo arrependimento, porque, quanto mais eu me esforçava, parecia que qualquer estabilidade corporal ia sumindo. Talvez fosse a minha pressão abaixando. Também fazia muito tempo desde minha última alimentação, passei um longo período nos fundos da biblioteca principal, sentada no gramado, lendo o livro devolvido na santa paz.
Bee…
— Está tudo bem. — Me esquivei da tentativa de toque vinda de Evans, ao que ela fez menção de tocar em meu ombro logo quando abri os olhos. — É só isso, Antonia?
— Sim. Está tudo certo — Antonia sorriu para mim. — Por favor, vá se alimentar… Você não parece nada bem.
— Quer que eu te acompanhe até a lanchonete? — Victoria se virou para mim.
— Não precisa! — Me esquivei mais uma vez, afastando-me por completo da mesa que nos separava de Antonia e também me mantendo longe de Tori. Não era só por ser ela, mas poucas pessoas eram aceitáveis no meu espaço pessoal e ela estava próxima demais. — Até mais, Antonia.
Me despedi apenas de uma e saí dali, sentindo meus pés completamente molengas e os passos um pouco confusos. No geral, eu não tinha momentos como esse em que ficava nesse mal-estar, mas porque dificilmente pulava refeições e seguia à risca a minha dieta.
Naquela manhã, eu só tinha comido em casa, não consegui me alimentar no intervalo entre as aulas e nem depois do período letivo.
Nada responsável da minha parte e eu estava completamente consciente disso — ou não, haja visto que meu provável estado hipoglicêmico iria me tirar a consciência se eu não consumisse uma quantidade considerável de glicose logo.
Os corredores do prédio que eu percorria todos os dias durante a semana estavam mais longos que o comum, mas eu consegui sair e descer os degraus em direção ao estacionamento, mas, quando comecei a pisar no gramado, a fim de cruzá-lo e chegar em Veronica, minha fadiga aumentou a ponto de o meu fichário estar pesando uma tonelada. Precisei me escorar na primeira árvore que eu vi, enxergando meu Jeep já tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe. A minha visão turva me impediu de continuar, meu corpo tremia e o ato de piscar já não era tão imperceptível, mais por eu o estar fazendo tão devagar.
Senti que realmente estava zerada de todas as minhas forças e, quando meu corpo começou a escorregar para cair ao chão, minha cintura foi rodeada por algum braço. Não tive tempo e condições de reclamar ou refutar a atitude de quem estava me pegando no colo.
Mas meu coração, que já estava apertado, acelerou em susto quando a imagem embaçada do rosto de quem estava me carregando para algum lugar tomou uma forma conhecida. Eu não estava me enganando, mesmo que quase totalmente fora da minha consciência.
— Wonwoo? — resmunguei.
Ele abaixou o rosto, me olhando com a cabeça apoiada em seu ombro.
— Shh, vou levar você para a enfermaria, mocinha. — Escutei sua voz, completamente funda, mas ainda assim aveludada e confortável para meus ouvidos.
— Wonwoo… — resmunguei de novo, completamente automática, apertando uma das mãos em sua nuca e a outra escorregando por seu ombro e pousando em seu peito, conforme meus olhos foram se fechando.

📚


Minha cabeça estava pesada, minhas pálpebras estavam carregando areia, mas eu consegui abrir os olhos. Demorei a me acostumar com a claridade, mas aconteceu.
— Você acordou!
Olhei para o lado, vendo uma enfermeira usando o uniforme da enfermaria com o logo da Saint Peter. Ela colocava uma bandeja em cima da mesinha ao lado da maca e eu percebi estar com um soro conectado em meu braço.
— Injetamos glicose e soro para você se hidratar. Você chegou aqui com hipoglicemia, Bee — ela explicou, parando ao meu lado e colocando um aparelho de pressão em meu pulso. — Há quanto tempo estava sem se alimentar?
— Pulei uma refeição… — respondi, fraca, sentindo a boca seca e pesada.
— Sabe que não pode — me advertiu, tirando o aparelho de mim. — Está regular outra vez. Tem sorte de que seu amigo estava passando perto. Hoje o campus esvaziou rápido pelo clima.
— A-amigo? — gaguejei.
Se eu bem me lembrava, o nome dela era Stella.
Stella se aproximou novamente, agora me ajudando a sentar.
— Sim, um rapaz alto te trouxe — respondeu, ajeitando o travesseiro. — Você estava confusa e acordada, mas apagou logo que o soro começou a correr. Típico de um cansaço.
— São dias muito corridos. — Minha voz já estava mais firme agora. Aceitei o copo de água, puxando o líquido pelo canudo, e aquilo melhorou mais a sensação de secura dentro da boca.
— Mas nem toda correria deve receber mais atenção do que a própria saúde, principalmente você, mocinha. — Stella passou a mão em meu rosto e eu continuei bebendo a água. Estava muito cedo para receber sermão. — Seu amigo deve voltar logo. Ele foi pegar algo para você comer.
— Suco de laranja sem açúcar com alguns cubos de gelo e um sanduíche de pão sem glúten — pensei alto, devolvendo o copo para ela. Stella fez uma careta. — Seungkwan, ele sempre tem esse cardápio para mim — esclareci.
— Ah. Sempre importante manter bons amigos assim por perto. Você tem muita sorte — ela sorriu, se afastando e indo para a mesinha. — Seu soro deve acabar logo e aí volto para checar se está melhor.
— Obrigada — agradeci, acompanhando-a pegar a bandeja e caminhar para sair de dentro do espaço fechado pela cortina hospitalar.
Porém, quando estava prestes a passar pelo vão que formava a “porta”, Stella parou. Ela viu algo.
— Olha ele aí. — Se virou para mim e eu não entendi. — Seu amigo.
Logo que ela disse, ele apareceu.
Wonwoo surgiu.
Eu não estava louca, não foi um sonho. Ele tinha mesmo me pegado no colo, surgindo de repente no meio do gramado do campus enquanto todo mundo fugia do tempo.
Nossos olhos se encontraram e ele murchou os ombros, mas eu entendi que foi uma resposta do seu corpo ao ver que estava acordada e sentada. Talvez até meu rosto estivesse melhor. Pode-se dizer que, em resposta, eu também senti meu corpo relaxar ao vê-lo ali — não é como se eu fosse achar ruim caso Boo aparecesse, sendo o amigo citado por Stella, mas é que ver Wonwoo trouxe um teor diferente, desconhecido (como vinha sendo).
Ele tinha uma caixinha pequena em uma mão e uma garrafinha em outra.
— Você acordou — disse, ainda parado no mesmo lugar.
— Sim e já pode comer — Stella se intrometeu, eu continuei quieta, sem palavras.
Wonwoo pareceu acordar, sorrindo de lábios fechados para ela e assentindo.
— Trouxe um sanduíche de frango sem glúten e qualquer carboidrato. O suco de laranja tem gelo para não ficar muito ácido. E sem açúcar! — ele foi dizendo conforme entrava no espaço. — Não sei muito bem do que você gosta, então tentei escolher o mais simples.
— Obrigada. — Virei o rosto para ele, que já estava ao meu lado. — Eu gosto exatamente disso. — Tentei ser serena e não muito ansiosa.
— Que bom. — Wonwoo se atrapalhou um pouco, não sabendo onde colocar a caixinha do sanduíche e a garrafinha, olhando para a cama e a mesinha ao lado. — Eu… Bom… Melhor colocar-
— Pode colocar aqui. Eu consigo abrir. — Bati no espaço onde meu braço estava descansando.
— Certo — ele assentiu, forçando a vista. O rosto sem a armação do óculos me lembrava da minha empreitada. Ele ainda não tinha aceitado usar o que eu havia dado. Isso me deixou um pouco triste. O observei abrir a garrafa e a caixinha.
— Você não vai mesmo aceitar o óculos? — perguntei, sendo direta.
Ele ergueu o rosto para mim e, de alguma forma, estávamos perto. Reparei que Wonwoo usava uma camiseta branca sem mangas e uma calça de moletom preta com o bordado da Adidas. Em seu pescoço tinha um fone sem fio pendurado e o cabelo meio bagunçado, como sempre.
Abriu e fechou a boca algumas vezes, me olhando nos olhos.
Quanto mais eu o via, mais detalhes se fixavam em minha memória.
Acompanhei o delineado de seus lábios se movendo conforme ele respondeu, calmo:
— Eu fui para a academia. Achei melhor deixar no dormitório.
— Ah… — assenti, desviando o olhar. — Mas você conseguiu enxergar alguma coisa? — comentei baixinho, tentando soar um pouco cômico.
Demorou, mas seu rosto tomou uma feição divertida.
— Não — respondeu em sussurro, rindo comigo.
— Então como me encontrou? — brinquei novamente, bebendo o suco.
— Foi fácil. Seu fichário rosa — apontou o item na poltrona mais adiante. Rimos novamente. — Na verdade, eu estava voltando para meu dormitório e aí vi um caminho de papéis coloridos, eles me levaram até seu fichário rosa.
Estranhei, não era isso que eu me lembrava. Mas não o chamaria de mentiroso ou algo do tipo, eu sabia que, em episódios hipoglicêmicos, era bem comum ter confusão mental. Não acharia estranho a visão de Victoria Evans preocupada comigo ser uma invenção da minha mente.
— Obrigada — disse, por fim. — Vou ficar te devendo uma.
— Não foi nada — ele sorriu de lábios fechados. — Eu fico feliz pelo rastro de papéis. Aliás, você tem muitos tipos de post-it.
— Eu gosto de itens de papelaria. Mais do que pode imaginar. — Fiz um bico e mordi o sanduíche. — Tenho um cartão de fidelidade em uma loja online. Já ganhei muitos brindes. — Olhei de canto de olho para ele. — E eu não deveria te contar isso. Vai achar que sou maluca.
— Não tenho essa moral. Eu também tenho meus vícios e esquisitices.
— Aí! Viu só? Você acabou de me chamar de esquisita — acusei.
Wonwoo se desconcertou e ficou preocupado. Eu achei uma graça.
— Você não é o primeiro — murmurei, soando brincalhona.
Bee! — Escutei a voz chegar antes da pessoa, interrompendo o que Wonwoo iria dizer. Seungkwan surgiu como um furacão. — Você perdeu o juízo? — Ele veio direto até mim, atropelando Wonwoo.
— Ei, eu tô bem — tentei acalmá-lo.
— Se estivesse bem, não estaria aqui! — Boo rebateu, virando-se brevemente para Wonwoo. — Stella já me contou tudo. Obrigado!
— Disponha. Fiz isso por ela — Wonwoo respondeu restrito, um passo distante de onde estava e com as mãos nos bolsos do moletom. O brilho em seu rosto e a diversão de nosso diálogo já não estava mais ali em seus detalhes.
— Como você tem sua consulta com o endocrinologista agora à tarde, Stella me autorizou a te levar — Seungkwan voltou-se para mim e eu franzi o cenho com sua ditadura. — Não me olhe assim. Seu pai não retornou e você tem evitado a Laura, tenho certeza que pretendia ir sozinha.
— E qual seria o problema? Eu não sou uma criança, faça-me o favor.
— Faça-me o favor você, Bee! Desde quando pular refeições é uma atitude adulta e responsável de alguém que tem diabetes? — ele continuou irredutível e eu encolhi o corpo, olhando-o de lado com todo o meu mau humor. — Eu vou te acompanhar na consulta. Aliás, você não pode dirigir.
Troquei um olhar com Wonwoo, pensando comigo mesma que, se Boo não surgisse, certamente ele seria a pessoa que não me deixaria ir embora. Seria ele demonstrando tamanha preocupação comigo, afinal, era isso o que ele estava fazendo ali desde que me encontrou no campus.
Ele só tinha um jeito menos explosivo.
E eu gostava. Combinava comigo.
Digo, combinava com o meu jeito.
— Primeiro, você pode começar falando mais baixo e ser menos agressivo comigo — respondi Boo, me ajeitando. — Segundo, tudo bem, você está certo sobre eu dirigir. Mas, se você continuar brigando comigo desse jeito, eu te tiro da minha lista de pessoas favoritas. Já passou, o Wonwoo me ajudou e eu melhorei. Pronto.
— Eu fiquei preocupado quando soube… Desculpe. — Ele relaxou mais o corpo, segurando minha mão.
Notei o olhar de Wonwoo seguindo esse movimento e em seguida desviar para outro canto. E eu não entendi porque estava tão ligada nele ainda.
— Você vai me dar um ataque do coração qualquer dia, Bee. — Suspirando, Boo se inclinou para beijar minha testa e eu me remexi desconfortável, não por ele, claro.
— Para de ser dramático. — Olhei para o soro acima da minha cabeça. — Acabou.
— Eu chamo a Stella — Wonwoo se prontificou, saindo rápido.
Desta vez, fui eu quem o acompanhou, ficando descontente com o vazio que a ausência de seu corpo ali presente causou. Seungkwan continou falando, agora mais calmo, menos reativo, mas eu não estava entendendo nem mesmo os meus próprios pensamentos.
Não estava feliz por ter chegado àquele estado, mas, de certo modo, fiquei satisfeita por ter sido cuidada de alguma forma por Wonwoo.
Isso me tiraria um sorriso em uma ocasião a qual eu não estivesse me sentindo tão exausta.

📚


Quando cheguei em casa, depois de um banho quente e comer algo preparado por Seungkwan, me embolei completamente no edredom em minha cama, descansando meu corpo e refletindo as orientações do doutor Smith, embora meus exames não apresentassem nada muito grave, apenas o puxão de orelha para eu pegar mais leve em minha rotina. Dormi depois de um tempo, acordando somente ao sentir um toque dócil.
Eu não precisava de muito para saber que era meu pai.
— Pai! — Me levantei, o abraçando, que estava sentado na beirada da minha cama.
— Oi, abelhinha. — Ele me abraçou de volta.
Assim ficamos por um tempo.
Eu estava com muita saudade dele. Me sentia sim sozinha, afinal, éramos nós dois — e foi assim por muito, até Laura entrar na nossa vida (e digo nossa porque ela era praticamente da família).
— Você está melhor? — Papai me afastou, segurando em meus ombros, analisando onde seus olhos conseguiam alcançar. Sua feição de preocupação denunciou que ele já sabia do ocorrido.
— Sim. Está tudo bem — garanti. — Não sei o que o fofoqueiro do Seungkwan te disse, mas está tudo bem.
— Ele não é um fofoqueiro. Não fale assim de alguém que cuida tão bem de você.
— Você não diria que ele cuida, se visse a forma como ele fala comigo — resmunguei, manhosa. — Mas está tudo bem. Doutor Smith disse que está tudo bem comigo, só-
— Exigiu que você pegue leve — ele completou e eu o encarei com tédio. — Sim, Seungkwan me contou tudo. E ele não está errado. Se não fosse ele, seria a Laura.
— Vocês insistem em me tratar como uma criança. Toda vez é isso de ter que ser acompanhada nas minhas consultas. — Cruzei os braços, encostando o corpo no encosto da cama.
— Filha, quando você aprender a se cuidar, aí poderá viver o mundo sozinha. Do contrário, seja Laura, Seungkwan ou eu… Você sempre será acompanhada. — Papai tocou meu rosto. — Você sempre foi assim, só consegue dar espaço a uma coisa por vez.
— Não quero falar sobre meus defeitos — revirei os olhos, segurando em sua mão. — Como foi sua viagem? Sua outra família está com tudo em ordem?
Meu pai fez uma careta para mim, rindo nasalado. Eu gostava de brincar com ele, dizendo que tinha outra família, por isso viajava tanto.
— Está sim — ele respondeu, entrando na brincadeira. — E você, pelo jeito, também está criando uma nova família…
— Quê? — Não entendi.
— Seu telefone. — Apontou para a mesinha de cabeceira. — Não parou de tocar. E Seungkwan me disse que alguém cuidou de você antes dele chegar… Seja quem for, preciso agradecer.
Peguei meu celular, vendo as inúmeras notificações de mensagens de Wonwoo.
Por quanto tempo eu tinha dormido?
— Preciso mesmo agradecer… Uau. — Ergui o rosto para meu pai. — Eu não vejo esse sorriso sempre.
— Deve ser porque vive viajando — desconversei.
— Sempre com resposta para tudo… — ele riu, se levantando. — Bem, responda seu novo amigo e desça para jantar. Seungkwan fez alguma coisa muito gostosa para a gente comer.
Apenas assenti, recebendo um beijo dele na bochecha antes de chegar perto da porta.
— Pai — o chamei, fazendo-o parar com a mão na maçaneta. — Eu senti sua falta.
— Eu também, abelhinha.
Quando ele fechou a porta, desbloqueei o celular.
Wonwoo estava me perguntando se eu tinha melhorado, descansado e como havia sido na consulta. A última mensagem dele eram alguns emojis rindo porque meu fichário acabou ficando com ele.
“Como foi possível? Não sei”, entendi o comentário, afinal, era um objeto grande.
“Me avise quando acordar, quero saber como você está”, não evitei sorrir com o pedido singelo.
Respirei fundo, respondendo simples: “Acho que a sensação é de ser esmagada, mas estou bem”.
Aproveitei para responder Laura, dizendo que eu estava melhor. Ela tinha lotado nossa conversa com várias perguntas. Fiquei feliz por saber que minha melhor amiga, embora eu estivesse sendo ausente, ainda se preocupava comigo — e sabia que a última coisa da qual eu gostaria era receber atenção demais por ter passado mal.
Logo recebi uma resposta de Wonwoo.
“Nada se compara a ser esmagado por você, acredite”, a primeira me deixou assustada.
“Se quiser, podemos nos encontrar no final de semana e eu devolvo seu fichário”, a segunda me devolveu a respiração.
“Tem muitos papéis coloridos, não cabe no meu dormitório”
“É pouco espaço para o Mingyu e tanto post-it”, então eu ri.
Wonwoo tinha um senso de humor típico de um nerd. Nada era absolutamente engraçado, mas, por vir dele, me fazia rir.
De alguma forma, minha mente acreditou que ele queria um encontro.
Um encontro daqueles clichês.
Foi um pensamento muito claro, talvez o primeiro deles ao se tratar dele em específico desde que o esmaguei acidentalmente na biblioteca.
E isso me deixou petrificada com o celular contra o peito.
Eu nunca havia ido a um encontro antes.



Continua...


Nota da autora: Espero que tenha gostado! Porque eu simplesmente amo este universo.

Nota da beth: O grito que eu dei quando ele trouxe exatamente a mesma coisa que ela costuma comer sem ter sido combinado!!!! E o pai dela que, mais viajando do que estando presente, percebeu o sorrisinho que ela deu lendo as mensagens? O destino realmente sabe o que faz, não é mesmo? 💜

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