Codificada por: Cleópatra
Última Atualização: 24/11/2024Massacre era uma palavra que se adequava melhor ao acontecido.
— Dizem que espiões de reino Spade invadiram a fronteira atrás do falecido Vice-Capitão Coldciani, mesmo sendo forte ele não teve chances, só conseguiu salvar a primogênita antes de ser assassinado.
— Oh, então ela não viu nada?
— Aparentemente não.
Dois cavaleiros reais fofocavam alto o suficiente para chegar aos meus ouvidos, senti raiva pelas palavras jogadas ao vento sem cuidado. Agora não tinha nada, responder não faria diferença.
— Me permita corrigir a história de vocês — comecei chamando a atenção deles e de mais algumas pessoas que andavam nas ruas. Ambos ficaram surpresos pela minha aproximação repentina.
— Quando os bastardos do reino Spade entraram na minha casa — girei a minha mão criando figuras gélidas que emitiam uma leve fumaça branca. — Estava com a minha mãe e meu irmãozinho num dos jardins, não possuo um grimório e minha mãe como a maioria sabe usava magia de cura e não de ataque, então logo fomos capturados.
As formas brancas se mexiam dentre as pessoas conforme minha narração, os envolvendo numa aura gélida apesar do sol alto.
— Não demorou muito para que estivéssemos completamente a mercê dos invasores, meu irmãozinho foi o primeiro — a figura dele se desfez no ar como se alguém tivesse a cortado no meio. — Em seguida a minha mãe — a cabeça se desfez, deixando apenas o corpo.
Quem parou para ouvir os relatos estava horrorizado — Não se chama tragédia por acaso, não é mesmo?
Um sorriso triste e distorcido puxou meus lábios para cima.
— Oe, pare com isso — um dos cavaleiros disse entre dentes olhando para os lados. — Você está fazendo uma cena.
— Mas não é disso que vocês estavam falando? — levantei um pouco a minha voz. — Não é sobre isso que todos vocês andam falando? A sobrevivente, as mortes e a tragédia? Achei que vocês quisessem ouvir a verdade. Ou será que é forte demais? Ainda nem cheguei na melhor parte!
Senti uma mão no meu ombro, quente, porém, impeditiva. Fechei as mãos em punho travando todos os gritos que a multidão merecia entredentes.
— Achei ter dito para me esperar. Deveria te escoltar até a residência Vermillion. — o capitão dos Cervos Cinzas disse calmamente e então se virou para o pequeno público.
— Pessoal, tivemos uma perca enorme no Reino de Clover. Para aqueles que ficam sobra apenas a dor, vamos nos lembrar de respeitar as memórias e nesse momento nos preocupar com aqueles que amamos.
As falas do homem soaram calmas, mas tinha tinham escondidas um aviso. Senti um aperto no ombro, as figuras se desfizeram por completo uma por uma a de meu pai, sendo a última delas. Esfreguei os olhos para me livrar das lágrimas acumuladas no fundo deles e então voltei a andar.
Escutei Julius respirar fundo e antes mesmo dele começar o sermão respondi.
— Você não pode realmente me culpar por isso. Todos os dias, tudo que ouço são pessoas falando e dando opinião sobre aquele dia, e nenhuma delas estava lá.
Meus passos pararam e meu corpo se virou na direção do mais velho, a dor era recente, ainda sangrava como uma ferida aberta. Não havia mérito nenhum em ser uma sobrevivente, quando tudo que vem junto com a vida é saudade e arrependimentos.
— Eu não aguento mais — minha voz saiu falha. — Seria melhor se-
— Não diga nada que você vá se arrepender depois — ele me interrompeu. — Ettori fez de tudo para que você escapasse, não jogue a vontade e o legado dele no lixo.
— Sei os tormentos do seu coração, mas eles vão embora com o tempo. — Julius sorriu, colocou a mão na minha cabeça. — Vamos, os Vermillions estão te esperando.
Não respondi, apenas aceitei sua mão estendida e segui andando ao seu lado pelas ruas da capital. Chegamos ao castelo não muito tempo depois, após passar pelos portões e os Cavaleiros Reais chegamos a uma praça. Nela havia três caminhos, cada um deles levando para uma família real.
Meu destino era o castelo vermelho de torres altas que quase pareciam tocar o céu, a toca dos leões de Clover. Logo na frente das portas ornamentadas, um rosto familiar, um amigo. Fuegoleon é dois anos mais velho do que eu, tendo 15 anos, meu pai sempre teve uma boa relação com a família por terem se cruzado a muitas gerações, justificando o acolhimento agora que me tornei órfã.
O garoto parecia estar as margens de se debulhar em lágrimas, mas estava se segurando porque Mereoleona, a irmã mais velha, estava ao seu lado.
— Achei que ia me fazer esperar o dia inteiro pirralha — Mereo disse com a voz firme assim que me aproximei.
— Acredito que estou te deixando em boas mãos — Julius anunciou. — Lembre se do que Owen disse, sem usar magias até que esteja completamente curada.
Olhei para os meus braços enfaixados, gelados pelo pequeno truque de figuras feitos mais cedo. — Vou tentar.
Ele se afastou seguindo na direção da saída e assim que virei me vi sendo sufocada pelos fios de cabelo rubros de Fuegoleon que voaram no meu rosto. Agora as lágrimas deles escorriam pelo seu rosto, bati em suas costas algumas vezes, ele sempre foi o mais sensível dos irmãos.
— Você não passa de um bebê chorão — Mereo zombou. — Mas não nego que fiquei aliviada quando soube que estava bem.
A garota se virou sem dizer mais nada, aquelas provavelmente seriam as palavras mais gentis que conseguiria dela. — Vamos, vou te mostrar onde ficará já que será sua casa por um tempo.
Começamos a andar pelo castelo, depois de Fuego me soltar e se recuperar. Já havia visitado diversas vezes, porém, saber que seria a minha casa por um certo tempo me faz ver outra perspectiva. Ainda que os Vermillions façam parte da realeza, nunca os vi fazer diferença pelo nascimento, ao contrário de outra família que tinha um primogênito de nariz arrebitado. Os Leões de Clover valorizavam aqueles que eram corajosos e fortes dentro das suas habilidades.
Mereo parou em frente a uma grande porta a empurrando sem cerimônia. — Esse vai ser o seu quarto. Julius já mandou trazer todos os seus pertences, então, já está tudo certo.
Realmente tinha diversos baús com todo tipo de coisas, a minha casa não tinha sido destruída por completa, então ainda consegui recuperar boa parte dos meus pertences. Contudo, uma coisa em particular me chamou a atenção, o manto do vice-capitão dos Cervos Cinzentos que pertencia ao meu pai estava cuidadosamente dobrado em cima da cama, no dia do incidente meu pai estava fora de serviço, então a capa estava intacta.
— Vamos deixar você terminar de se instalar — Mereo anunciou.
— Eu não ligo de ajudar com os baús mais pesados — Fuegoleon levantou a mão se oferecendo.
Agradeci e vi Mereo sair do quarto dando uma última olhada para o lado de dentro antes de fechar a porta.
— Esses dois aqui são alguns objetos e livros — apontei para dois baús. — Se você puder colocar eles nas estantes, eu agradeço.
Andei até a janela do balcão que tinha no quarto e uma brisa suave entrou. Eles tinham me doado um quarto com uma bela vista para a capital. Enquanto olhava para fora, senti o olhar do garoto queimando nas minhas costas.
— Fale o que você quer me perguntar — anunciei ainda olhando para frente.
— Eu não quero te perguntar nada — Fuego respondeu com uma pausa estendida e incerta no meio da frase.
Balancei a cabeça e voltei para dentro do quarto me dirigindo a outro baú — Já nos conhecemos a tempo suficiente. Não precisa se segurar.
— O que aconteceu com os seus braços? — então era isso que estava se passando pela cabeça do Vermillion.
Não é se estranhar, afinal ambos estavam enfaixados até os ombros. Abri e fechei as mãos ainda com um pouco de dificuldade antes de puxar a ponta da fita e mostrar, era mais fácil do que falar.
— Quando levaram a vida do meu pai, minha magia saiu do controle. Como foi uma explosão mágica muito intensa e num período muito curto de tempo, então acabou afetando fisicamente o meu corpo.
A pele dos meus braços parecia muito mais clara do que o resto do meu corpo, quase transparente, fazendo com que as minhas veias ficassem visíveis. — Dr. Owen disse que o tecido da minha pele ficou parcialmente congelado, assim como as minhas juntas.
Fuego colocou os livros que tinha em mãos na prateleira e veio na minha direção, tomando a minha mão e olhando as marcas, seu toque era quente — provavelmente por conta da sua magia de fogo —, mas não machucava, pelo contrário era de certa forma reconfortante. Levantei os olhos para ver seu rosto, enquanto a maioria parecia ficar com dó, meu amigo pareceu ficar com raiva.
— Vou te ajudar — anunciou com determinação.
— Ajudar com o quê? — perguntei puxando a minha mão da sua e recolocando a bandagem.
— A treinar — respondeu —, você precisa fortalecer o seu corpo para poder usar a sua magia com a capacidade total, não precisa? Vou te ajudar a ficar mais forte, , como o segundo filho da casa Vermillion eu te prometo isso.
O garoto tinha a fama de ser o mais sério da família, uma promessa jamais seria feita sem intenção de realização. Um sorriso, agora genuíno, surgiu no meu rosto.
— Agradeço por isso, mas que tal terminar de colocar os livros nas prateleiras primeiro?
Hoje parecia ser uma exceção, uma vez que ela andava na frente de Fuego em direção ao castelo Silva. O motivo era fazer uma visita a capitã do esquadrão Águias de Prata, Acier Silva. A mulher estava esperando o quarto bebê da família, mas parecia que a gravidez estava apresentando alguns riscos.
Fomos recebidos na porta por alguns trabalhadores do castelo, alguns deles me olharam torto, mas por estar com os Vermillions e devidamente convidada não puderam fazer nada. Não demorou a nos levarem até o quarto de Acier onde ela estava descansando.
Foi inevitável lembrar da minha própria mãe, afinal ela esteve na mesma situação a pouco menos de um dois anos quando estava grávida de meu irmão mais novo, Senan. Acier estava exatamente como eu me lembrava, os cabelos claros acinzentados, rosto gentil e olhos num tom de roxo mais claro que pétalas de violeta.
Mereo entregou um buquê de flores com certa tristeza, a capitã era alguém que ela admirava muito. Fuego também tinha algumas lágrimas nos cantos dos olhos, mas travou os dentes evitando reações.
— Obrigada. Essas flores são lindas. — Acier disse gentilmente.
— O bebê vai nascer em breve, não é? — Mereo perguntou recebendo uma confirmação em resposta. A Vermillion então continuou — Uma vez que você de a luz, você vai voltar para o campo de batalha, não vai?
A voz dela soava quase que desesperada, uma súplica. Ao ouvir a fala da irmã Fuego não conseguiu mais segurar.
— Porque você está chorando? — ela se virou para o mais novo, como eu estava do lado dele segurei a sua mão tentando dar o mínimo de apoio.
— Eles devem ter contado.
— Os Cavaleiros Mágicos precisam de você, Acier — Mereo se aproximou da cama. – Então, porque você está arriscando a sua vida para-
— Como um Cavaleiro Mágico — interrompeu —, uma vez que você decide que vai para o campo de batalha, você luta pelas pessoas e pelo seu reino sem pensar duas vezes em arriscar a sua vida, certo? — A mais velha pegou a mão de Mereo e pousou em cima do seu ventre, fazendo com que ela sentisse o bebê.
— De um jeito parecido, uma vez que uma mulher carrega uma criança em seu ventre, ela vai tentar proteger a vida desse bebê a todo custo. Isso que significa ser uma mãe.
Mereo ajoelhou ao lado da cama sem ter realmente o que falar e talvez compreendendo algo que nunca pensei antes. Foi nesse momento que meus olhos se encontraram com o da mais velha pela primeira vez. Ela me olhou com doçura e em seguida desceu o olhar para a minha mão que ainda segurava ade Fuegoleon, senti minhas bochechas esquentarem e tratei de soltar a mão dele delicadamente, ganhando um riso.
— Você se parece cada vez mais com a sua mãe — ela disse e continuou sorrindo.
Agradeci solenemente, sem ter muito o que responder. Não permanecemos no castelo por muito mais tempo, porém na hora de ir embora encontramos com Nozel e os dois irmãos mais novos dele. Amigos não é uma palavra para nos definir, ele que era declaradamente um rival de Fuego não passava de um conhecido abusado.
De alguma forma nós três acabamos num dos jardins da casa Silva. Era a primeira vez que nos encontramos depois do enterro da minha família. A Casa Coldciani era considerada nobre em algum nível, e com meu pai de vice-capitão outros Cavaleiros Mágicos prestaram também suas condolências.
Me mantive em silêncio, sentada num dos bancos, enquanto os dois garotos trocavam palavras, alguns residentes das outras alas do castelo passavam pelos corredores, membros do esquadrão Águias de Prata também. Aqueles que me cumprimentam respondia com um aceno breve de cabeça, para o restante fingia estar engajada no meio do assunto dos meninos.
— Quanto tempo vai ficar ela na residência Vermillion? — Nozel perguntou.
— Até eu conseguir entrar para os Cavaleiros Mágicos — respondi me fazendo presente na conversa, chamando a atenção de ambos.
— Não sabia que você estava interessada nos Cavaleiros Mágicos — Fuego comentou.
— Em outras situações provavelmente não estaria mesmo, tenho os meus motivos, não posso ficar com os Vermillions para sempre Fuego. — Me levantei e antes que ele pudesse falar alguma coisa e continuei. — Melhor eu ir, nos encontramos mais tarde.
Nozel Silva me olhou com uma feição esnobe que gritava algo nas linhas de “já vai tarde”, enquanto meu inocente amigo apenas tinha preocupação nos olhos. Apesar da minha magia ser fria, preferia estar entre as paredes quentes do castelo vermelho.
Assim que cheguei, fui informada que Dr.Owen estava me aguardando para fazer um exame e como estava fora, ele me aguardava na companhia de Theresa numa das diversas salas de estar.
— , achei que demoraria um pouco mais, por isso me permiti aceitar o convite de Theresa — ele fez menção de se levantar, mas balancei a mão.
— Fique tranquilo Doutor — respondi —, pode tomar seu chá com tranquilidade.
— Porque não nos acompanha — Theresa tomou uma xícara vazia do carrinho. — Tenho certeza que Owen não vai se importar.
Puxei a cadeira e me sentei com eles na pequena mesa, recebendo uma bonita xícara ornamentada com um chá de fragrância floral e fumegante.
— Bom, acho que não temos a necessidade de nos movermos — o Dr. Owen comentou e olhou para Theresa em seguida, que assentiu para ele. Dito isso, ele pediu meu braço e retirou as faixas, analisando as juntas e esticando os meus dedos.
— Aparentemente já está tudo normal, Theresa me disse que você andou treinando, mas não parece ter afetado — ele soltou meu braço. — Honestamente eu não sei como você pode evitar que essa situação aconteça novamente.
— Normalmente a mana não deveria interferir fisicamente no corpo de seu usuário, claro que a pele de mana ajuda a aprimorar seus atributos físicos, mas a sua magia aparentemente corroeu de dentro para fora.
— Dizem que algumas vezes quando o mago aprimora a sua magia ao máximo ele pode incorporar no próprio corpo — Theresa comentou —, mas eu nunca vi isso acontecer em vida e também nunca, conheci alguém que estendesse a própria magia desse jeito. São apenas histórias de tempos primórdios.
Olhei para minha mão abrindo e fechando em seguida, talvez eu devesse procurar alguma informação sobre. — Posso perguntar para Julius, afinal ele é um entusiasta de magia, talvez possa saber alguma coisa sobre.
— Bom vamos ter tempo de sobra — Theresa levantou a xícara até os lábios. — Afinal você tem a pior compatibilidade com Fuego possível, agora que você está apta para usar novamente podemos testar até onde vai a sua magia de criocinese.
Minha técnica permitia retirar ou reduzir a temperatura de qualquer tipo de matéria para gerar gelo, e a manipular de várias formas, alterando até ambientes. Abri e fechei a minha mão, para Fuegoleon que tinha praticamente fogo correndo em suas veias realmente era o pior cenário.
Ouvi mais algumas orientações e retornei para meu quarto com uma série de pensamentos, resolvi tomar um banho para ver se eu clareava meus pensamentos e quando vi já estava praticamente na hora do jantar. No meio do caminho até o salão acabei encontrando com uma das cuidadoras de Leopold, o pequeno Vermillion tinha um ano, era apenas alguns meses mais novo que meu falecido irmão. Ele tinha os cabelos avermelhados como os outros dois mais velhos, mal tinha dentes e estava sempre balbuciando alguma coisa.
Assim que ele colocou os olhos em mim, ele começou a se mexer.
— , não há dúvidas que Leopold lhe adora — ela esticou ele na minha direção e eu sorri.
— Acho bom porque o sentimento é mútuo — peguei ele no colo e cutuquei a bochecha do bebê ganhando um som animado.
Desde que eu era criança eu me lembro de ter um colar, com um pequeno medalhão, aparentemente era algo passado de geração para o filho ou filha mais velho da família Coldciani. Então, enquanto andava para a sala de jantar, o pequeno mexia no pingente balançando a corrente para todos os lados, cumprimentei o restante dos moradores da casa Vermillion cordialmente e me sentei num pequeno sofá enquanto os preparativos ainda eram feitos. Leo ficou no meu colo enquanto brincava com os meus dedos e de longe vi Kirsch e sua mãe que carregava a pequena Mimosa em seus braços.
Logo vi Fuego passando pela porta e Leo também porque ele começou a balbuciar ainda mais. O filho do meio veio na minha direção juntamente com a cuidadora que pegou Leo do meu colo, os bebês e crianças eram levados para outra sala enquanto os mais velhos e jovens, no meu caso, se reuniam na mesa principal.
Eram raras às vezes que eu tinha tanto contato direto com a realeza como agora, então eu sempre ficava apreensiva. Fuego e Mereo eram diferentes do resto assim como o pai deles, mas mesmo assim eu ficava de alguma forma inquieta.
— Vamos, você se senta conosco.
— O quê? Você enlouqueceu? — disse em voz baixa para o garoto. — É lugar para gente do seu sangue, não o meu, eles me tolerarem, é uma coisa, agora me colocar no mesmo patamar da realeza de vocês já é demais.
— Você nunca se recusou a jantar, porque isso agora? — ele perguntou no mesmo tom baixo aproximando o rosto do meu.
— Porque você, sua irmã e seu pai são diferentes. Eu não me importo de ficar com vocês porque gosto de vocês e vocês gostam de mim, pelo menos é o que eu acho. — ele continuou me olhando seriamente — Agora o resto sei que só me suporta por vocês.
— Bobagens — ele retrucou em voz alta.
Antes que eu pudesse rebater, um braço me pegou pelo pescoço e me arrastou para a mesa.
— Mereo, não!
A mais velha riu — Você é minha amiga pirralha, se alguém tiver algo contra você que venha resolver direto comigo, hoje você de sentará ao meu lado.
Se eu tentasse resistir, é provável que ela levasse minha cabeça separada do corpo, então cedi as suas vontades me deixando arrastar até onde queria. Realmente, eles eram um bando de leões indomáveis.
— Recebi uma carta?
— Sim, aqui está senhorita. Com sua licença. — uma das trabalhadoras do castelo, Vermillion me entregou um envelope e eu agradeci antes que ela pudesse retomar seus afazeres.
Fechei a porta do meu quarto e me sentei à mesa, analisando o envelope com cuidado. Na frente apenas meu nome escrito de maneira delicada com uma bonita caligrafia, já no verso o brasão marcado na cera mostrava que viera da residência dos Silva.
Abri o envelope e puxei a carta. Lendo o conteúdo, Lady Acier Silva estava me convidando para tomar chá durante a tarde, não sabia dizer o que ela queria exatamente com aquilo, mas não tinha como recusar um convite direto.
As servas me receberam na entrada da residência e me guiaram pelos corredores até um bonito jardim.
— ! — Acier estava sentada numa cadeira, ela fez menção de se levantar, mas eu me apressei.
— Por favor, não precisa se levantar — ela pegou a minha mão entre as dela e eu senti que meu rosto esquentou um pouco.
— Você é realmente gentil — ela sorriu —, por favor, sente-se.
Com um sinal de mão, ela chamou as acompanhantes que serviram chá e mais guloseimas variadas. Como bolos, pães, pequenas tortas com confeitos, eu imaginava que ela não poderia comer metade do que havia ali, sendo tudo preparado para minha visita. Além de um banquete físico, também era visual.
— Por favor, se sirva — ela pediu indicando.
Cruzei as mãos sobre o colo, escolhendo com cuidado minhas palavras.
— Lady Acier, me desculpe, mas porque o convite repentino? Estou ciente que tinha algum tipo de relação com a minha mãe, mas não entendo.
Ela nunca tirou a expressão leve do rosto, e pelo contrário me observou com atenção enquanto eu falava.
— Me perdoe pelo meu egoísmo — foi a primeira fala que deixou sua boca acompanhado se um sorriso fraco. — De alguma maneira sinto que posso me desculpar com Malori e Ettori ficando de olho em você, pelo menos enquanto eu posso.
Então ela suspirou e continuou falando — Eu e Malori crescemos praticamente juntas e ficamos juntas até completarmos quinze anos, entrei para os cavaleiros mágicos e ela preferiu se especializar em magia de cura. Por muito tempo foi a única amiga verdadeira que tive e por diversos motivos deixei que a distância entre nós aumentasse cada vez mais.
— No fim ela partiu desse mundo sem que eu pudesse agradecer pelos anos de amizade. — a voz dela ficou levemente embargada.
— Não sei se tenho muita propriedade para falar isso porque eu não sou a minha mãe, mas sei que ela não te culpou pela distância e sim tinha muito orgulho de ter feito parte da sua vida. Mesmo que as cartas não fossem respondidas e os encontros não fossem possíveis.
Olhei para mesa por um momento para em seguida voltar a ver o violeta de seus olhos — Tenho certeza que ela foi grata pela sua amizade, não precisa se culpar ou tentar compensar isso de alguma forma através de mim.
A mulher me olhou com uma expressão que não soube ler, porém, serena.
— Agradeço pelas suas palavras — ela se encostou na cadeira se fazendo confortável. — Já que são seus pensamentos, posso pedir que me permita lhe conhecer melhor?
A partir desse ponto, sem ter responsabilidades ou arrependimentos atrelados, nossa conversa fluiu. Conversamos sobre tudo, ela me contou histórias e aventuras, lembranças dos dias de mocidade e curiosidades sobre meus pais eu nunca pensei em escutar um dia.
— Quando éramos mais jovens conversávamos sobre nossos filhos — Acier colocou a mão no rosto —, adoraria que vocês fossem tão próximos quanto é com Fuegoleon.
Dizer que o primogênito dela me odiava não parecia ser uma boa resposta, então tentei contornar.
— Nunca tivemos muita chance de nos aproximar, tenho certeza que vamos ficar mais próximos a partir de agora. — Eu devia me sentir culpada por mentir tão descaradamente para uma mulher grávida.
Acier manteve o sorriso no rosto e olhou para algo além de mim. — Parece maravilhoso, não é Nozel?
Senti meu corpo travar enquanto virando de leve a cabeça para ver que o garoto estava parado atrás de mim. Senti meu rosto esquentar ganhando uma risada graciosa da mãe dele.
— Está começando a entardecer, seria melhor entrar — ele disse ignorando tudo que foi dito antes.
— Sim, provavelmente você tem razão — ela concordou — talvez você possa acompanhar nossa visitante até a casa Vermillion. Pedirei para alguém me acompanhar.
— Como você quiser, mamãe — ele respondeu chamando dois guardas e uma moça.
— Estou ansiosa para nossos próximos encontros querida.
Agradeci a hospitalidade e acompanhei Nozel, claramente ambos só estavam seguindo o pedido pelo bem-estar de Acier ele não queria me levar até o castelo vermelho e eu não queria sua companhia.
— Não entendo a decisão de minha mãe de te ter por perto, mas vou respeitar o desejo dela — anunciou num tom esnobe assim que já estávamos um pouco distantes.
— Não é uma situação a qual eu imaginaria acontecer, mas se Lady Acier quiser me ver vou atender. Se for por ela ou Fuegoleon você continuará a me ver por perto, quer goste ou não.
Dei alguns passos mais rápidos a fim de parar em sua frente, o forçando a olhar para mim diretamente. Nozel era apenas um ano mais velho, diferente de Fuego que já tinha bons centímetros de altura a mais, ele estava quase no nível dos meus olhos.
Claros como os de Acier, mas longe de serem amigáveis.
— Honestamente não sei se me odeia por algo que fiz ou pela minha própria existência, não estou pedindo para ser meu amigo, mas me suporte, pelo bem da sua mãe.
Seus olhos se fecharam levemente, os deixando ainda mais afiados, o garoto deu um passo para trás e se virou. — Você pode retornar sozinha a partir daqui.
Nozel me deu suas costas e silêncio, fechei as mãos e saí do local rumando para o castelo Vermillions, o jeito que ele se colocava acima das pessoas era realmente desprezível. Como alguém como ele tinha uma mãe como Acier?
— ! Ouvi dizer que você foi até o castelo Silva, não sabia que era amiga de Nozel.
Fuego estava voltando dos campos de treinamento quando nos encontramos, claro que ele saberia o que acontece dentro da casa dele.
— Foi um convite da Capitã, eu nunca serei amiga de Nozel — ergui a mão em punho na frente do rosto. — Se eu pudesse bateria naquele rosto esnobe dele até virar uma polpa!
Meu amigo levantou a mão e desceu ela no topo da minha cabeça num movimento de lâmina.
— Um Cavaleiro Mágico sempre mantém a calma, controle suas emoções.
Coloquei ambas mãos na cabeça fazendo uma careta, ele não fazia ideia da força que tinha. — Não faço parte de nenhum esquadrão ainda, posso me permitir sair do controle.
— Sem desculpas, uma pessoa justa não sucumbe aos seus próprios sentimentos!
Respirei fundo, chegando a soltar uma fumaça branca pela boca, eu poderia ficar horas falando com ele que nada mudaria.
A noite passou rapidamente assim como os dias, treinos com Fuego, visitas ao castelo Silva e farpas com Nozel. Esse foi o resumo das minhas semanas até certo dia chuvoso de novembro.
Nuvens escuras era a única coisa sobre a capital do Reino de Clover, refletindo o pesar de uma nação. Lady Acier Silva faleceu poucos dias após dar à luz a filha caçula, Noelle.
A família estava em frangalhos, Solid chorava audivelmente, sendo o único som correndo pelo funeral. Nebra que era a segunda mais velha, tentava segurar os sons, mas não as lágrimas. O único parado como uma estátua, ausente completamente de pensamentos e sentimentos, era Nozel.
O rei, toda a realeza e alguns cavaleiros prestaram suas homenagens antes da lápide ser posta, rapidamente todos eles se foram. Como se deixar que alguém descansasse da vida fosse apenas um soprar de velas. Já havia passado por isso antes, a maioria dos altos rankings apenas segue formalidades, são poucos que realmente se importam.
Julius me cumprimentou rapidamente após falar com a família e me pediu para o visitar na sede do esquadrão. Algumas gotas de chuva começaram a cair fazendo com que as pessoas se afastassem ainda mais rápido.
Fuego seguiu andando com o restante da sua família, mas parou quando percebeu que eu não o segui.
— O que foi?
— Você não deveria falar com ele? — comentei e Fuego seguiu o meu olhar vendo que Nozel ainda estava parado mesmo embaixo da chuva que caía.
— Se eu for é capaz deixar a situação ainda pior, não conheço sua dor, poderia ser um insulto ao seu luto — respondeu. — Você entende a dor dele, talvez possa ajudar muito mais do que eu.
Meu amigo estava certo, mas meu coração conflitante. Silêncio foi a minha primeira resposta, Fuego colocou a mão no meu ombro e se afastou correndo na direção da saída, eu me mantive embaixo de uma árvore observando a figura desolada parada em meio a chuva.
Quando percebi, meus passos já me levavam para perto de Nozel, ele não se mexeu, mas disse.
— Saia daqui.
Ignorei seu pedido me colocando ao seu lado, olhando de perto a lápide. — Raiva não faz ficar mais fácil.
— E o que você sabe sobre isso? — ele se virou com fúria. Aposto que para ele era quase uma humilhação mostrar fraqueza pelo luto de alguém amado. Por mais que seus olhos estivessem marejados e escondendo toda a dor que ele estava sentindo, seu rosto estava sem expressão.
Por um momento entendi quando todos me olhavam com pena, porque sua imagem refletia a minha de meses atrás. — Essa é a última coisa que você poderia falar para mim.
Minha fala não soou rude, ou odiosa, apenas seca e realista.
Os olhos dele se abriram e a realização rompeu aquela máscara de indiferença, o fazendo perceber a bobagem dita.
— Sei que você não se importa, mas pelo menos aceite as condolências de alguém que sabe o que você está passando e não palavras vazias de alguém que veio por obrigação.
A chuva ficou um pouco mais forte, podia sentir os pingos de chuva caindo sobre as vestes já encharcadas, as deixando cada vez mais pesadas. Olhei para cima, vendo que demoraria um bom tempo para a tempestade passar.
— Você pode chorar hoje Nozel.
Ele não disse mais nada e eu também não, ele não precisava das minhas palavras, apenas minha companhia. Sua dor tomou a forma e correu com lágrimas por seu rosto, sofrida, arrastada como os trovões revirando os céus. Seu choro não pedia pena, ou compaixão, apenas regava a lápide se sua mãe com saudade.