Revisada por: Pólux
Última Atualização: 07/01/2025Quando acordei certa manhã meses atrás foi com isso que me deparei, era como um sinal do fim do mundo. Maldições se espalharam por todo terreno do velho monastério, o prédio abandonado na costa do mar Egeu era um dos poucos refúgios na Europa para feiticeiros jujutsu, além de servir de instituição de ensino para os novos usuários.
Uma organização, assustada pelo poder que os feiticeiros tinham, foi tudo precisou para que agora não restasse nada mais do que ruínas e uma história perdida. Na mente, apenas a lembrança do cheiro metálico do sangue dos outros estudantes misturados com a brisa salgada do mar e o aroma de terra revirada.
O sol ainda não nascera quando tudo começou, a junção da magia com as armas comuns era uma coisa perigosa. Afinal, podemos nos defender de maldições, mas como escaparemos de um bombardeio? Até que começasse a amanhecer, distinguir o que era céu e o que era mar foi praticamente impossível devido à fumaça das explosões.
Poucos de nós escapamos. Lembro como um dos meus superiores me empurrou na direção de um dos alunos mais velhos, a fim de me proteger, apenas para encontrar a morte depois disso.
— Você está bem, ? Parece um pouco pálida.
— Me surpreende que você está conseguindo distinguir a minha aparência sendo que estamos em um túnel abaixo da terra.
A resposta rápida e seca rendeu um som abafado e uma dor no topo da minha cabeça.
— Respeite seus superiores , sua fedelha — Miller resmungou. A mais velha era a minha professora, era usuária de uma técnica jujutsu refinada que conseguia mudar a estrutura dos objetos, podia fazer com que um algodão ficasse como uma bola de ferro maciça.
Uma pequena luz surgiu revelando o vice-diretor da escola.
— Vamos lá, não temos tempo para discutir agora, nossa prioridade é escapar, vivos e inteiros de preferência.
Assim que meus olhos se ajustaram à iluminação, vi que não éramos um grupo maior do que 5 pessoas. Além da minha professora, tinha mais 2 feiticeiros jujutsu de grau 1, sendo um deles o vice-diretor Telles e, o outro, um aluno do terceiro ano chamado Carter.
Nonato era a outra pessoa presente, um do segundo ano e eu era a última deles sendo aluna do primeiro ano. Em questão de ranking, éramos os mais baixos ali, agora, se considerarmos a natureza das nossas técnicas, todos reunidos ali tinham habilidades únicas e com potencial grandioso.
— O que fazemos agora? — Carter perguntou e o vice-diretor tomou a palavra.
— Vamos nos separar — respondeu começando a andar pelo túnel. — O diretor já tinha imaginado que isso poderia acontecer há algum tempo, então ele fez alguns contatos e outras instituições jujutsu aceitaram receber vocês.
— Miller, você vai para Suíça, Nonato e Carter, vocês vão para o Canadá, a escola deles vai abrigar vocês pelos próximos dois anos — ele continuou andando.
— , você vai para o Japão, já tínhamos conversado sobre essa possibilidade antes, só adiantamos essa mudança.
Concordei, de alguma maneira, a teoria da minha técnica tinha uma ligação com a parte oriental do mundo, então em prol de entender como ela funcionava, há algum tempo essa discussão de uma possível transferência já estava em pauta. Foi então que reparei que ele mesmo não havia dito seu destino.
— E você, vice-diretor?
Ele sorriu.
— Não se preocupe comigo.
As moiras, na antiga mitologia grega, também eram chamadas de parcas, as divindades que controlam e determinam o curso da vida.
O tempo, o caminho e o destino.
Por esse motivo, a instituição alugou uma casa na parte mais afastada do centro da cidade, onde eu poderia me esconder por um tempo. O homem que me acompanhava, que pediu que eu o chamasse de Akio-san, também cuidava de mim durante a estadia, além de me dar aulas intensivas de japonês.
Bem, ao menos tentava.
— Gostaria de saber como você passou de uma aprendiz para alguém que fala japonês fluentemente em 47 segundos — o homem, de trinta e poucos anos, arregaçou as mangas e se apoiou de costas no balcão da pequena cozinha da casa alugada.
— Não sei o quanto a escola contou sobre as minhas condições — respondi. — Prefiro manter a precaução e o sigilo das informações.
— Kismet, 16 anos, portadora da Dádiva das Moiras, capaz de manipular de alguma forma o tempo, o caminho e o destino. Foi encontrada pelo vice-diretor Telles durante uma de suas viagens, sem memórias e sem família. Desde então, viveu no monastério jujutsu, onde mais tarde descobriu suas habilidades especiais. Entrou com um pedido de transferência para a escola japonesa visando descobrir algo sobre o akai ito, ou como vocês chamam, a linha vermelha do destino — Akio-san falou como se estivesse explicando a uma criança como amarrar o cadarço do tênis, com voz calma e estável. — Então, sim, sei tudo sobre você, por mais que admire sua preocupação. Não é necessário manter sigilo comigo.
Levantei as mãos em sinal de rendição.
— Você que manda — suspirei, andando até a pequena mesa na cozinha. — É uma das minhas habilidades. Em teoria, avancei meu conhecimento linguístico de japonês no tempo.
— Por que não usou isso desde o início? Teria facilitado algumas coisas.
— Não é bem assim que funciona. Consigo avançar uma capacidade, mas não fazer com que ela surja magicamente. É necessário aprender antes de avançar.
— Isso parece complicado — ele comentou, virando-se para começar a preparar nosso jantar. O mais velho tinha se provado um ótimo cozinheiro, me poupando da preocupação de passar fome.
— Honestamente, não consigo pensar em uma maneira de explicar isso para você. Então, sim, é complicado. Mas, de forma simplificada, é como atrasar o crescimento de uma flor ou acelerar sua morte. O caminho está decidido; só consigo avançar ou não no tempo.
— Entendo, é uma habilidade bem especial.
Foi gentileza da parte dele usar "especial" entre tantos outros adjetivos possíveis, incluindo "perigosa". Se o vice-diretor não tivesse me resgatado ainda pequena, quem sabe o que poderia ter acontecido comigo ou com o mundo?
Os dias passaram rapidamente, entre tempos ociosos, conversas sem sentido e lições de comportamento de Akio, até que, enfim, chegou o dia da minha mudança. A escola me forneceu um celular e, como já fazia minha parte exorcizando maldições na Europa, todo o meu dinheiro havia sido transferido. Não teria problemas quanto a isso. A pequena casa que foi minha moradia durante algum tempo já estava vazia, do mesmo jeito que a encontramos quando chegamos.
— Vamos — Akio-san chamou da porta, parando para me olhar por um momento. — Não me diga que se apegou a este lugar tão rapidamente.
— Neste trabalho, podemos morrer de uma hora para outra. Passar dois meses em um único local para mim é algo memorável — respondi. — Então, sim, guardo certo apreço por este local.
Dei uma última olhada para as paredes e passei pela porta, seguindo o mais velho na direção do carro. Com poucos pertences, uma pequena mala foi mais do que suficiente para guardar minhas coisas.
Não demorou para que estivéssemos a caminho da escola. O mais velho ficou no lugar do motorista, e eu me sentei no banco de trás.
— Para seu conhecimento, os seus colegas de classe não sabem exatamente sobre suas técnicas, então mantenha o mínimo de informação. É para a própria proteção deles.
— Eles? — perguntei.
— Yu Haibara e Kento Nanami. Não acho que terá problemas em se entrosar — ele disse, olhando pelo retrovisor. — Os alunos do segundo ano já dão trabalho o suficiente.
Deixei a cabeça tombar para trás, olhando o teto por um momento.
— Você sabe que, pela minha idade real, eu deveria estar no segundo ano, certo?
— Sim, mas estamos com falta de novos alunos e te escondendo. Não há necessidade de seguir certas formalidades.
Não continuei o assunto, apenas olhei a paisagem pela janela enquanto ele dirigia pelas ruas. O colégio metropolitano de técnicas mágicas de Tóquio é uma das principais instituições de jujutsu no Japão, embora, por fora, a aparência fosse a de uma escola religiosa particular comum.
Logo na entrada, vi vários prédios espalhados pelo terreno cercado pelas montanhas. Segui o mais velho entre as construções de aparência tradicional. Akio me guiou até uma sala onde um feiticeiro de ranking superior nos esperava. Era um homem alto, de cabelos escuros e curtos, com um penteado peculiar que incluía duas linhas ao redor da cabeça e um cavanhaque.
— Este é Yaga Masamichi — Akio-san apresentou. — Foi escolhido para ser o próximo diretor da escola e também é o professor responsável pelo segundo ano.
Curvei-me levemente em respeito.
— É um prazer.
— Vejo que as aulas de japonês foram eficientes — ele disse, estendendo a mão para mim. — É um prazer conhecê-la, Kismet-san.
— Por favor, apenas está bem. Não sou muito familiar com o costume de usar sobrenomes e acredito que não seja conveniente nos próximos meses — respondi, apertando sua mão.
— Se pretende se esconder, não seria melhor usar um pseudônimo? — ele perguntou.
— Não é necessário — sorri levemente. — Nunca usei meu nome verdadeiro no monastério. Então, não teremos problemas.
Ele assentiu, compreendendo.
— Vamos. Gostaria de conversar mais um pouco com você — disse, conduzindo-me até uma sala privada na escola. Sentamos, ele me serviu uma xícara de chá-verde e começou a falar.
— O diretor Telles via grande potencial em você, já que sua técnica amaldiçoada permite alterar algumas coisas que os humanos não conseguem, como o tempo. Importa-se em explicar como funciona?
— Permita-me contar uma história antes de explicar como minha técnica funciona. Na mitologia, as Moiras eram as irmãs que determinavam o destino dos deuses e dos seres humanos, tecendo o fio da vida de todos os indivíduos. Cloto tecia o fio da vida, Láquesis o enrolava, determinando a sorte, e Átropos o cortava, determinando o fim.
— Na minha técnica, elas se manifestam como Chrono, representando o tempo; Trama, significando o caminho; e o Fio do Destino. Embora essa última eu não tenha muita certeza sobre o significado — confessei. — Não a vejo com frequência.
— Você consegue vê-las?
— De certa forma — respondi. — A linha do tempo tem um tom levemente azulado, a Trama, um brilho púrpura, e o Destino, como você pode imaginar, é vermelho.
Ambos os homens me ouviam com atenção enquanto explicava sobre como minha dádiva funcionava.
— Embora possa parecer algo forte e sublime, é muita ingenuidade pensar que se pode alterar o curso normal da vida e achar que não haverá punições. Por isso tenho algumas condições para poder usar.
— Para o Chrono, uma ação precisa sempre ser começada — peguei uma colher e joguei para cima, na minha cabeça imediatamente já pude ver a trajetória que ela faria até que voltasse para a minha mão. — Consigo avançar a trajetória da colher até seu ponto mais alto num piscar de olhos, terminando a ação. Fazer com que ela volte até o começo da ação, o momento que joguei a colher para cima, ou parar a ação no meio dela.
— A Trama funciona como uma sugestão a ser seguida, funcionando apenas com seres vivos — fiz a colher voltar para a minha mão. — Posso pedir para Akio-kun investir todo o dinheiro dele na bolsa de valores, ele pode não saber o porquê de querer fazer isso, mas eventualmente vai fazer. Dependendo do pedido consigo combinar com Chrono para ter a execução mais rápida ou não.
— A Trama também serve como apoio, desde que eu toque o meu companheiro posso controlar seus movimentos e ajudar no suporte para lutas mais intensas. Vice-Diretor Telles apelidou de Karakuri Ningyou — tomei um pouco do meu chá, a boneca articulada era bem famosa na terra do sol nascente anos atrás. — Fora isso consigo usar alguns outros ataques comuns e de restrições sem precisar de condições, são os que eu normalmente aplico em missões.
— E sobre a linha do destino? Afinal, ela foi o motivo de você pedir a transferência inicialmente.
Bati meus dedos levemente na mesa.
— É complicado, existem momentos que eu consigo ver, mas não entendo como funciona. A lenda fala sobre pessoas destinadas, tem um cunho romântico, mas não acho que é só isso.
— Entendo — ele cruzou as mãos na frente do rosto. — Bem, você me parece bem preparada para ingressar na escola, não vejo motivos para adiar seu início. Akio-kun pode levá-la para seu respectivo dormitório e, em seguida, apresentá-la para os outros alunos do primeiro ano.
— Será um prazer tê-la como uma de nossas feiticeiras, bem-vinda a Tóquio, .
— Você pode ficar à vontade para decorar — Akio-san disse. — Seus uniformes já estão no armário, vou aguardar lá fora. Saia quando estiver pronta.
Assenti com a cabeça e ele saiu, como fiquei bastante tempo parada, consegui pedir algumas customizações. As calças eram de um tecido mole que permitia uma boa movimentação, eu honestamente não me dava bem com saias, então tratei de as eliminar logo no começo. A parte de cima era como o blazer masculino, com a diferença que as mangas eram curtas, geralmente usava bastante os braços quando manipulava minhas linhas.
Assim que terminei, saí do quarto e, como esperado, o mais velho estava aguardando no corredor.
— Até que fica bem em você.
— Esse foi de longe o maior elogio que recebi de você, obrigada.
Saindo para a parte externa da escola, o sol brilhava, mas não tão intensamente por estarmos na parte da manhã, apenas o suficiente para esquentar. Devia ser algo em torno de umas 10 horas, mas não havia ninguém por perto, a escola era tão grande que poderia facilmente atravessá-la por completo e não ver ninguém.
Na distância, após andar por algum tempo, vi duas figuras paradas próximas à escadaria principal, uma delas era alta e esguia e a segunda silhueta era um pouco mais baixa, se movendo de um lado para o outro de forma inquieta.
— Yu Haibara e Kento Nanami — o meu acompanhante chamou assim que nos aproximamos. — Essa é a nova aluna do primeiro ano.
— Oh, Akio-san! Finalmente voltou da sua licença, que bom — o mais baixo falou, ele tinha o cabelo escuro e bem liso. Tinha um sorriso genuíno no rosto, à primeira vista, parecia ser do tipo de pessoa positiva, ou do tipo desapegada.
Já o outro, Nanami, tinha uma feição séria, julgava que ele não estava muito feliz. Fosse por alguma situação anterior ou pela minha presença.
Que belo grupo que formaríamos.
Me curvei de leve.
— Espero que possamos nos dar bem, me chamo .
— Você tem um sotaque engraçado — o mais baixo, Haibara falou. — É de onde? Algum lugar na Europa, não?
— Haibara-kun, infelizmente esse é um assunto restrito — Akio-san disse ao meu resgate, aquele garoto era bem perceptivo. — Vocês precisam apenas confiar em .
— Como podemos confiar em alguém que não conhecemos?
— Acredito que…
De repente, foi como se uma pequena vibração chegasse ao meu corpo, o canto da minha visão ficou com um tom azulado, do telhado do prédio a nossa direita, uma maldição pulou direto para Akio-kun. Era um emaranhado de carne grotesca e corpulenta, só consegui identificar uma cavidade que imaginei ser a boca por conta dos dentes e um único olho vermelho e preto no topo de tudo.
Minha mente conseguiu ler cada uma das ações e micro-ações do ambiente. O que eu não contei para o diretor Yaga é que, com a Chrono, consigo atuar em níveis microscópicos de ações. Fosse a respiração de Akio-kun ou a folha que estava caindo na árvore a 10 metros de nós, era como estar em um novelo de lã, cada ação num raio de 30 metros estava ligada a um fio de tom azulado. As ações maiores representavam fios de maior espessura e as ações mais irrelevantes eram finas como uma teia de aranha.
Ergui a minha mão direita, galgando minha energia amaldiçoada para efetuar o ataque.
Julgamento de Aisa.
A maldição que então estava "parada" no ar foi fatiada em 5 partes, claro que tudo isso num nanossegundo. Para as outras pessoas ali tudo ocorreu num piscar de olhos. Haibara deu um salto para trás desviando de um dos pedaços que caiu no chão e começou a se desfazer.
Sabia que a escola possuía uma barreira então não tinha maneira daquilo ter entrado aqui por acaso, também sabia que Akio-kun poderia ter reagido bem antes de eu tomar qualquer ação.
— Era para ser um teste? — questionei. — Bom saber que você confia em mim.
— Não foi uma ideia minha - ele respondeu. - Foi uma solicitação…
Pela segunda vez, eu senti a vibração no ar, mas essa era diferente de tudo que já tinha presenciado antes, era uma ação tão rápida que quase não consegui ler, uma pressão no ar se fez presente, tão forte que uma rajada de vento se formou pelo choque.
Minhas linhas de restrição agiram antes que eu pudesse me virar, e quando o fiz, vi que elas envolviam o suposto atacante. Porém, não encostava em seu corpo. Ele era claramente um aluno da escola, pois os botões das suas vestes tinham o símbolo jujutsu. Ergui os olhos para encontrar o rosto do atacante, mas antes disso acontecer, outra coisa se apresentou.
Um fio vermelho.
Vice-Diretor Telles e Miller estavam me acompanhando enquanto fazia o meu relatório. Não aconteceu muitas vezes, mas eu consegui ver o fio do destino durante aquela missão.
— O que é determinado pela providência, sorte, o que há de acontecer — vice-diretor anunciou os vários significados. — O fio que une duas pessoas. São inúmeros os significados. Até mesmo a mitologia nórdica tem o seu próprio arquétipo do que é destino; O que se traduz em tudo que é predestinado, o passado, presente e futuro entrelaçados.
— Soa como uma maldição para mim — respondi ainda deitada no sofá do escritório. — Não deveria existir algo como livre arbítrio ou seria isso uma ilusão também? Apenas um nome para justificar a relação de causa-efeito.
— Você está entrando num caminho de pensamento um tanto quanto controverso — minha professora me disse.
— Quando penso no destino, penso num enorme tapete — o vice-diretor chamou a atenção com a fala, ergui a cabeça para poder o enxergar. O mais velho girou na cadeira cruzando os braços em cima da barriga. — Nossos atos se comportam como fios, seguindo a sua teoria de técnica jujutsu, se entrelaçando e entremeando. Cada pequena ação e curva desencadeia uma série de consequências na obra final e isso não precisa necessariamente se isolar a somente nós, mas afeta as pessoas à nossa volta também. Ele continuou divagando em voz alta. — Entretanto, o que fizemos no passado, pode ser cobrado no presente. Já vimos algumas promessas que viram maldições.
O homem deu uma longa pausa.
— E se a linha predestinada do destino nasceu de uma promessa que não foi cumprida em outra vida?
— Você pode tirar uma foto se quiser.
Pisquei meus olhos sendo repentinamente puxada de volta para a realidade após relembrar uma memória de tempos atrás. O tom sarcástico me fez franzir a sobrancelha e fazer uma careta.
— Não, obrigada.
Girei as minhas mãos desfazendo as linhas de restrição, não adiantaria nada. Aproveitei e coloquei alguma distância entre nós. Tão rápido quanto o flash vermelho apareceu, ele sumiu, deixando apenas uma sensação incômoda e amarga no fundo da minha língua.
— Gojo-kun achei que tinha pedido apenas para Getou-kun atacar — Akio-san chamou sua atenção.
— Qual é Akio-san, foi tudo tão rápido. A novata ainda está inteira, está vendo? Neh, Suguru, sua maldição não fez nem cócegas — o garoto de cabelos brancos se virou para um segundo rapaz que vinha andando preguiçosamente na nossa direção.
— Eu vi, ou melhor. Não vi — ele respondeu.
— Bom, isso prova que é tipo, super forte, não é? — Haibara tirou o foco da conversa. — Pelo menos eu achei.
— Você tem razão, Yu — o tal de Gojo completou e se virou olhando nos meus olhos por cima dos óculos de sol que ele usava. — Vi algo bem interessante. Não podemos trocar ela pela Shoko? Será bem mais divertido.
— Temos uma regra para idades e vamos manter assim — o mais velho ali respondeu. — Me desculpe , mas foi apenas um teste obrigatório para observar suas habilidades. Assim os alunos do primeiro ano podem confiar em você.
— Tudo bem — respondi e balancei a mão. — Reparei quando nenhum de vocês reagiu.
— Mesmo assim, ninguém aqui pareceu entender o que aconteceu — Nanami, que até então estava quieto, falou.
— Tenho bons reflexos e eu uso linhas amaldiçoadas — não era exatamente uma mentira, mas não era a verdade completa. Juntei as minhas duas mãos e das pontas dos meus dedos surgiram fios quase transparentes.
— Legal, você consegue se mexer como o Homem-Aranha?
— Satoru...
— Só uma curiosidade — respondeu ao amigo erguendo as mãos no alto. — Vocês são tão chatos.
O outro segundo anista balançou a cabeça.
— Bom, temos uma missão para ir, bem-vinda a Tóquio, .
— É isso ai — Gojo disse com uma postura desleixada — Espero te encontrar de novo mulher-aranha.
Não sei se consegui controlar minha expressão quando ele se afastou, o tipo de personalidade dele não era a que mais me agradava, um tanto quanto exibido e abusado.
— Bom, querendo ou não somos um time agora, então melhor nos esforçarmos para dar certo ou então essa experiência vai ser ruim para nós três — falei me virando para meus companheiros de sala.
— Ela tem razão, Nanami — Haibara comentou e estendeu a mão na minha direção. — Tenho um bom olho para as pessoas, então sei que você não é ruim. Espero que possamos nos dar bem.
Apertei a mão dele.
— Igualmente.
O outro pareceu um pouco relutante, mas estendeu a mão para mim, apesar de não falar nada, seria um pouco mais difícil conquistar a confiança dele.
— Ótimo, já que acabamos por aqui — Akio-san tirou um pequeno envelope do paletó. — Que tal irmos para a primeira missão?
— É um lugar bem propício para maldições — disse Haibara —, costumava ser um hospital psiquiátrico e depois virou um orfanato de crianças que perderam os pais durante guerras. A ocupação mais recente foi uma escola infantil, mas não ficou aberta por muito tempo, na verdade, nem chegou a abrir.
Ele continuou falando sem realmente ligar se estávamos prestando atenção.
— Um dos funcionários faleceu durante a reforma e outros 3 foram parar no hospital, desde então, tudo foi abandonado. Uma lenda se espalhou pela cidade e os moradores passaram a evitar o local.
— Parece verídico — respondi —, alguma informação da maldição?
— Aparentemente de terceira ou segunda classe, nada que nós três não possamos lidar. Falando nisso, pode falar mais sobre as suas linhas amaldiçoadas? Ajuda caso precise de apoio.
— Pode ser — respondi me ajeitei no banco. — Para ataques uso o Julgamento de Aisa, são linhas cortantes, posso manipular cada uma do jeito que eu quiser. Aisa ou Átropos, na mitologia grega, era a moira responsável por cortar a linha da vida.
— Karakuri Ningyo, funciona como uma marionete, consigo dar apoio físico controlando os movimentos de uma pessoa. Mas preciso tocar ela primeiro para criar um vínculo.
— E a última é... Restrição de Aracne, ela faz o que o nome diz. Por mais que agora eu já não tenha a mesma simpatia pelo nome como antes — resmunguei me lembrado do paspalho de cabelos claros. — Também deriva de uma lenda.
— Gojo-san vai tirar sarro de você, com certeza — Haibara comentou —, os segundo anistas são incríveis, você vai ver só. Não é mesmo, Nanami?
— Eles estão um ano na frente, é de se esperar — respondeu o loiro sem interesse.
— Admiro o Getou-san. Acho ele um feiticeiro incrível.
— Você é uma pessoa legal demais para ser um feiticeiro — falei despretensiosamente.
— Não sou do tipo que pensa demais nas coisas, dar o meu melhor em algo e saber que estou ajudando é uma ótima sensação.
Não tivemos tempo de finalizar a conversa, uma vez que chegamos ao prédio abandonado, deveria ter sido algo em torno de duas horas de viagem de carro até ali. A construção não era nem um pouco simpática, se estendia por muitos metros e, num palpite bem grosseiro, deveriam ter umas 100 salas à vista na fachada, além da parte abandonada no meio da reforma.
— Charmoso — comentei fechando a porta do carro e andando para o outro lado.
— Vou abaixar a cortina — Akio anunciou. — Por favor, tomem cuidado, essa é a primeira missão de vocês três.
— Surja das sombras e torne-se mais escuro que o breu e então purifique e exorcize aquilo que for impuro.
A tela então desceu deixando o ambiente mais escuro. Não vou para o campo já há algum tempo, pode ser que minhas habilidades estivessem um pouco enferrujadas, ainda que eu tivesse lidado com a maldição mais cedo. Ali era uma situação completamente diferente.
Os outros dois estavam andando na minha frente sem se preocupar muito se estava os seguindo.
— Nossa, esse lugar está realmente deplorável, não é mesmo? Sinto como se tudo pudesse desabar em um instante — dizem que certas palavras chamam ações. Isso se provou ser verdade, um passo em falso e foi tudo que precisou para materializar as palavras do garoto.
O chão frágil cedeu se abrindo bem no meio do caminho, Haibara estava na frente então ele acabou não conseguindo reagir. Nanami pelo contrário pulou para trás, gritando pelo amigo, mas sem conseguir se mover, o canto da minha visão ficou azulado e a linha do tempo brilhou rapidamente permitindo que usasse meus fios de restrição para pegar Yu pela perna antes que ele atingisse o nível mais baixo.
— Você está bem? — perguntei espiando pelo buraco abanando um pouco da poeira que subiu com o pequeno desabamento.
Ele olhou para mim de cabeça para baixo levantando os braços.
— Boa pegada, ! Oh, parece que tem um belo porão por aqui, vamos nos separar? Você pode ir com Nanami inspecionar os andares e eu dou uma olhada por aqui, encontro com vocês depois.
Abaixei ele até que ele estivesse no chão.
— Acho que somos nós dois, Nanami-san.
— Não precisa usar honoríficos, sei que não é da sua cultura, é desnecessário uso sem sinceridade — disse sem medir palavras. Parecia grosseiro em primeiro momento, quando, na verdade, estava me libertando de um costume forçado.
— É gentil da sua parte — respondi —, agradeço por isso.
Subimos alguns andares em completo silêncio, tudo que se ouvia eram nossos passos. Chegava a ser constrangedor de alguma forma, então resolvi tentar puxar assunto em prol do nosso convívio.
— Então, qual a sua técnica jujutsu? — perguntei, já que não tinha nenhum sinal de uma maldição.
Ele pareceu ponderar se realmente respondia, mas no fim deu seguimento na conversa.
— Minha técnica pode forçar um ponto fraco em qualquer oponente que eu enfrente, na área de 7/10 do corpo.
— Como? — pulei uma pilha de destroços enquanto ele continuava.
— Pense no alvo como uma linha reta, se você fizer um ataque no ponto certo será um acerto crítico. Consigo causar dano em coisas mais fortes do que eu. Se for algo com poder mágico fraco, consigo até o cortar em dois com essa espada sem ponta.
— É bem interessante — minha fala foi genuína. Nunca havia escutado sobre uma técnica como essa.O segundo andar estava limpo e ainda na escada subindo para o terceiro, senti uma distorção no ambiente. Tombei a cabeça para o lado. — Parece que nosso convidado está aqui.
— Fique em alerta — Nanami empunhou a espada coberta de selos de encantamento, ele não percebeu, mas toquei levemente na gola da sua jaqueta criando um link. Nunca se sabe o que pode acontecer.
Olhei para trás quando tive a sensação que estava sendo observada, entretanto, a vibração estava vindo do outro lado do extenso corredor, na direção que estávamos andando. Algo não estava certo, mas não tive tempo de terminar meu pensamento, já que a maldição avançou para cima de Nanami, ele desviou com agilidade e eu pulei para trás logo sentindo meu tornozelo ser enrolado por algo viscoso e fedorento.
— Não é apenas uma, Nanami, é um par! — Gritei e procurei um lugar para poder lançar meus fios a fim de sair daquela distorção que parecia areia movediça. Contudo, o prédio já estava caindo aos pedaços, se eu escolhesse o lugar errado poderia causar um desmoronamento bem na minha cabeça.
As vigas de suporte ainda deviam ser fortes o suficiente, então foi a minha aposta e agradeci as forças maiores por estar certa. Nanami estava tendo certa dificuldade com a outra maldição, ela se movia rápido demais.
— De quanto tempo você precisa para acertar essa coisa no ponto certo? — perguntei em alerta para não ser atacada pela segunda maldição.
— Nada mais do que alguns segundos, acha que consegue fazer algo? — ele perguntou.
— Talvez, restrinja a área de ataque que consigo prender ela — juntei as pontas dos meus dedos fazendo com que as minhas linhas aparecessem.
— Você quer que eu seja a isca? — gritou de volta entre os sentimentos de surpresa e irritação.
— Resumindo, sim!
Não tinha outra opção, ele não era rápido o suficiente para acertar o ponto fraco da criatura sem precisar de auxílio. O garoto fez uma careta, mas não negou, meu colega se isolou na parte mais estreita do corredor apenas esperando pelo ataque. Uma vibração, como a que tive na escola, chegou até mim e a maldição se revelou saindo da parede.
Joguei as minhas linhas de restrição usando um pequeno truque para que elas se movessem mais rápido, Nanami viu a chance e atacou exorcizando a primeira delas. Quase que instantaneamente, a segunda saiu do chão se lançando na direção dele, puxei o fio de trama que preguei em suas vestes evitando o ataque, mas fazendo com que ele caísse de costas aos meus pés.
— Me desculpe por não ser tão gentil — o puxei pelo braço ajudando a se levantar. — Mas estamos com as opções severamente reduzidas aqui.
A maldição mergulhou no chão se escondendo novamente, ela atacaria em breve, uma vez que seu parceiro foi destruído.
— A maldição vai atacar de novo, precisamos sair daqui.
O que não esperávamos era que fosse reagir tão rapidamente, um estrondo surgiu fazendo o prédio inteiro tremer, o corredor atrás de nós de distorceu e num ataque de fúria a maldição nos lançou para fora do prédio, seguindo de perto. A criatura estava no ar pronta para nos devorar, ou fazer algo pior. Para assegurar nossa sobrevivência, puxei algumas linhas, prendi Nanami evitando a sua queda, fazendo o mesmo com o meu corpo. O puxão dos fios nos fez sair da trajetória da maldição, me dando uma chance de usar Aisa.
Batemos na lateral no prédio, ainda desviando de alguns destroços e pedaços de carne escura que se espalharam por todos os lugares.
— Isso é nojento — comentei olhando para cima e encontrando um Nanami um tanto quanto angustiado.
— Ei! — Voltei o olhar para o chão com o chamado. Haibara estava acenando — Vocês dois parecem estar se divertindo e acabaram com a maldição!
Nossos conceitos de diversão certamente eram diferentes. Soltei as linhas até que estivéssemos seguros no chão, Nanami não disse uma única palavra durante todo o trajeto.
— E então, o que encontrou no porão? — perguntei batendo as mãos nas minhas calças tirando um pouco de pó.
— Nada demais, muitos ratos, mas nenhuma maldição — ele deu de ombros.
Com a cortina desfeita, o gerente auxiliar se aproximou puxando um ou outro pedaço de entranha que ainda estava se desfazendo.
— Foi mais rápido do que eu esperava, bom trabalho vocês três. Informarei à escola que a missão foi bem sucedida.
— Isso quer dizer que vocês dois trabalharam em conjunto, não foi? — Yu comentou —, sabia que não ia demorar para se tornarem amigos.
— Se tornar amigo de , significa estar constantemente pendurado, dispenso — o loiro respondeu com voz baixa e saiu andando em direção ao carro.
— Ele tem medo de alturas, não tem, Yu? — perguntei vendo o mais alto se afastar.
— Com certeza.
O nosso pequeno grupo de desajustados acabara de retornar de mais uma missão bem sucedida, uma boa execução significa que ninguém morreu no processo, logo nos era permitido comemorar ingerindo um pouco de açúcar.
— Fico feliz de ter você por perto, sempre me cobre quando faço algum movimento errado.
— Pelo menos alguém do nosso trio gosta de mim — apoiei o rosto na mão e olhei de relance para o outro garoto. — Vai ficar bravo comigo de novo, Nanami? A culpa não é minha que as maldições adoram te lançar por aí, apenas impeço que você caia.
— Tenho certeza que Nanami confia em você — o outro garoto respondeu com um sorriso pegando um grande pedaço do bolo de morango em sua frente. — Já estamos trabalhando há algum tempo. Sinto que melhoramos absurdamente como um time.
Realmente, devia fazer algo em torno de dois meses que estávamos atuando juntos nas missões, por sorte não fomos muito longe de Tóquio, então sempre que tínhamos tempo extra, eu procurava por algo sobre a minha técnica. Embora não tenha tido muito sucesso. Também não vi os segundo anistas novamente, com exceção de Shoko, que conheci após ter torcido o tornozelo durante um treinamento.
A última integrante dos segundo-anistas geralmente não saía para missões, já que a técnica de reversão dela é especial, até que conversamos com certa frequência, considerando que ela não sai da escola. Embora muitas das coisas que ela fala, eu não compreenda exatamente, era alguém com quem podia contar para uma boa companhia.
Ficamos no café por mais algum tempo conversando bobagens, na verdade, Haibara falava e tanto eu quanto o loiro escutávamos. Fazendo comentários pontuais quando nos cabia a fala, mas, no geral, o interesse maior era realmente na comida.
Quando saímos do local o sol já começava a se pôr, pintando o conglomerado de prédios cinzas com um tom alaranjado, não levava mais de cinco minutos para chegar na escola, então seguimos andando pelas ruas movimentadas até entrar nos terrenos jujutsu.
Foi então que o vento trouxe uma palavra conhecida até os meus ouvidos.
Týchi̱.
Fazia muito tempo que eu não ouvia nada sendo proferido na minha língua natal, ainda mais um termo com o significado de sorte. Rapidamente virei a cabeça, sentindo os pelos do meu braço se arrepiarem com os olhos, rapidamente escanei as ruas procurando a fonte do som, sabendo ser específico demais para ser apenas uma coincidência.
Travei os dentes quando vi uma figura desaparecendo para dentro de um beco, estava completamente coberto e irreconhecível. Um medo pressionou meu peito, será que estava sendo seguida novamente? Descobriram que estou viva e vieram terminar o que não conseguiram ao destruir o monastério?
Minha vida finalmente voltou ao normal, mas não poderia aceitar colocar meus novos colegas e escola em perigo novamente.
— Algum problema? — a voz desinteressada, mas preocupada, de Nanami soou nos meus ouvidos.
Engoli seco e voltei para os dois garotos que estavam parados a alguns passos de distância, prestando atenção aos meus movimentos. Sem dar uma resposta, virei para encarar o beco novamente.
— Sim, só esperem um segundo.
Andei ainda desconcertada na direção do vulto que vi, meu coração batia rápido e pesado no peito esperando de alguma forma pelo pior. Minhas linhas flutuaram se preparando para um ataque iminente, à medida que me aproximava, quando lancei o primeiro olhar para dentro da falha entre prédios, uma revelação.
Eu sabia o que era e principalmente de quem era a técnica.
— Você é um dos clones do Carter — falei na minha língua nativa. A adrenalina desceu me forçando a apoiar a mão na parede suja como apoio.
— Mensageiro, não podia mandar o eu de verdade para te encontrar, ainda estamos nos escondendo — disse com um sorriso. — Miller tem uma mensagem para você.
A cópia tirou uma carta do bolso e me entregou.
— Miller? Ela não estava na Europa?
— Sim, mas não podia mandar a carta diretamente. Então ela me pediu um pequeno favor — o clone explicou. — Minha parte está feita. Fico feliz de ver que você está bem, e desculpe pelo susto.
Sua figura se dissipou no ar, não deixando nada além do vazio.
Carter deveria ter gastado uma quantidade absurda de energia mandando um clone até aqui, considerando que ele está na América do Norte. Em batalha, os clones serviam como um belo apoio, mas também consumia uma energia, manter um tão longe do corpo principal deve ter sido cansativo.
— É uma língua bem interessante que você está falando.
O ar se chocou, um fio de eletricidade pareceu subir do meu calcanhar até a nuca num arrepio desconfortável, arrancando de mim uma reação imediata e impensada. Quando me virei, as linhas de Aisa já me envolviam por completo, criando uma barreira protetora contra qualquer ataque.
— Calma, super-heroína, não precisa disso tudo — Gojo levantou as mãos em sinal de rendição. Enquanto ainda tentava me recuperar, ele levantou a mão em minha direção encostando o indicador num dos fios fazendo um pequeno corte.
— Então foi assim que fatiou aquela maldição.
Ignorei sua repentina realização, desfazendo minha proteção.
— Não apareça do nada atrás das pessoas — respirei fundo tentando acalmar meu coração batendo rápido.
— Tão abalada por conta de um pequeno susto? — ele respondeu, sua fala cínica imediatamente lavou de mim toda a preocupação dando lugar ao desdém por sua personalidade ruim.
— É sempre intrometido assim? — rebati.
— Respondendo uma pergunta com outra pergunta, evasiva. Que tipo de informação você está escondendo? — ele se inclinou na minha direção. — Sabe , você me deixou realmente curioso da última vez.
O garoto me olhou por cima dos óculos escuros, seus olhos eram de um azul vibrante, e pareciam cintilar como a superfície de um lago cristalino no verão. Já tinha ouvido algumas coisas sobre ele, inclusive como era um feiticeiro excepcional, se tinha alguém que podia descobrir a verdade sobre a minha técnica, era Satoru Gojo. O que significava que, quanto mais próximo a mim, mais possibilidade de ficar sabendo algo que não deveria.
— Então, sugiro que você passe a ignorar essa curiosidade, para o meu bem e o seu também — passei por ele desviando rapidamente de sua figura. Na rua, Nanami e Yu estavam me esperando, porém, antes que eu pudesse me afastar mais, senti um aperto no meu pulso me segurando no lugar.
Acima das nossas cabeças o poste que fornecia um pouco de luz no fim de tarde estourou e se retorceu inclinando em nossa direção. Pensei num primeiro momento que ele estava caindo, mas não, a base estava bem fixa no chão enquanto o topo se fez de caracol.
— Gojo-san! ! — Yu veio correndo na nossa direção.
O garoto soltou meu braço erguendo ela em seguida.
— E aí Yu?
— Que loucura que aconteceu com o poste, vocês estão bem? — perguntou preocupado. — , seu nariz!
Levantei a minha mão sentindo um líquido viscoso escorrer e pingar do meu lábio, uma súbita tontura me fazendo abaixar a cabeça e cobrir a boca com a mão. Yu me segurou pelos ombros e Nanami, que tinha se aproximado, estendeu um lenço em minha direção, ganhando em retorno um agradecimento murmurado.
— Ei, novata, você está bem? — Gojo fez menção de colocar a mão no meu ombro.
— Estou, não é nada — respondi virando e deixando de lado também o apoio de Haibara. — Melhor voltarmos para a escola, me desculpe Nanami, compro um novo para você.
Sem esperar uma resposta ou que me seguissem, andei com passos rápidos em direção aos terrenos da escola. Naquela noite, com sorte, não me encontrei com mais nenhum deles. Akio-san disse estar ocupado, mas retornou dizendo que viria me visitar assim que possível.
Deitada na cama, encarei o teto. Nunca havia passado por uma sensação como aquela, nenhuma delas, nem o choque elétrico ou a náusea, ao menos não por conta de energia amaldiçoada. Esse pensamento me fez lembrar de outro assunto, a carta que recebi do mensageiro.
É aí pirralha, todos esses meses e você nem tentou me procurar. Sua professora fica triste assim.
Enfim, durante o meu tempo nessa terra gelada, achei registros de algumas transações, sabe que vender filhos com grande potencial para famílias poderosas é uma “coisa” no mundo jujutsu.
Suyen Zenin, primeira filha de um clã famoso no Japão, foi vendida para uma família de nobres noruegueses ainda criança. Infelizmente não tem o motivo, mas como foi intermediado pela escola Suíça, tem alguns dados. Não tenho como confirmar porque não tive fontes reais, apenas conversas de pessoas mais velhas, mas dizem que na sua juventude, após se casar, ela se mudou para a Corinto, que coincidentemente foi onde o vice-diretor Telles te achou.
Meus instintos gritam que ela poderia ter alguma relação com você, as datas de transações meio que batem com a sua idade, talvez valha a pena pesquisar um pouco aí em Tóquio. Coloquei cópias dos registros com a carta.
Me agradeça e venha com novidades a próxima vez que nos encontrarmos, sim?
Miller.
Foi tudo que Akio disse depois de ler o conteúdo da carta, já tinha passado algumas boas horas olhando para o conteúdo e a informação ainda parecia que não tinha sido registrada pela minha cabeça. O mais velho colocou o papel de lado e olhou na minha direção.
— Infelizmente esse tipo de registro ficaria guardado pelo próprio clã. É muito difícil até para alguns membros da família conseguir esse tipo de informação — sua mão se levantou para o rosto, esfregando a testa como se fosse o ajudar a pensar. — Posso pedir para o diretor intervir e tentar alguma autorização, mas não tenho certeza se vamos conseguir algo.
Ponderei por um momento se comentava sobre o meu pequeno encontro com Satoru Gojo, mas, antes de eu pensar em abrir a boca, ele questionou:
— Mais alguma coisa que você quer me falar?
— Até mesmo para um feiticeiro a sua percepção é afiada, Akio — primeiro reclamei, depois respirei fundo. Estávamos no meu quarto, ele sentado próximo à mesa de estudo e eu na cama. Juntei as mãos e comecei a relatar.
— Quando encontrei Satoru Gojo pela primeira vez. Vi a linha vermelha, embora eu não entenda o que isso signifique — levantei a cabeça. — O que penso, é que vai além de uma lenda sobre almas gêmeas.
— O estranho é que hoje, quando nos encontramos novamente e ele segurou no meu pulso — esfreguei o local onde seus dedos se fecharam. — Aquilo que existia de matéria a nossa volta reagiu, a lâmpada de um poste estourou e o próprio metal pareceu se torcer na nossa direção, como se fosse uma atração.
O rosto de Akio se fechou numa expressão séria quando seus olhos se voltaram para mim. — Por acaso você sabe o tipo de pessoa que o Satoru Gojo é?
Balancei a cabeça negando, meus colegas de primeiro ano com certeza tinham um respeito pelas habilidades dele, mas nunca passamos desse comentário. Quem ele era, qual era a sua técnica ou porque sua existência era tão comentada, não tinha ideia.
— Satoru vem de uma família de feiticeiros jujutsu, uma que já foi tão renomada quanto a própria família Zenin, são parte dos pilares da comunidade — começou a contar. — Mesmo sendo um estudante, ele já mostra níveis absurdos de energia amaldiçoada e uma técnica jujutsu poderosa.
— Mukagen — continuou —, é uma técnica herdada, passada dentro e apenas na família Gojo. Até onde eu sei, consiste numa manipulação precisa do espaço ao nível microscópico e até quântico, é uma habilidade refinada que tem diversos níveis de aplicação.
— O que a técnica dele tem a ver com a minha, exatamente? — questionei. — Porque, do jeito que falou, parece que está pensando em algo a mais.
Ele respirou fundo e se inclinou para frente apoiando ambos os braços nos joelhos.
— Os humanos normais quando estão na escola, aprendem sobre a teoria da relatividade, até mesmo você já deve ter ouvido sobre isso. Espaço e tempo não podem ser desvinculados, são uma unidade. Essa mesma teoria diz que vivemos num espaço com quatro dimensões. — Akio parou por um momento levantando os dedos. — Sendo três dimensões de espaço e uma de tempo. Qualquer evento ocorrendo na natureza, seja uma bola caindo ao chão, seja a explosão de uma estrela, deve ser caracterizado pela sua posição nesse espaço-tempo quadrimensional.
— Você vai ter que explicar isso de uma maneira muito mais simples.
— Certo, vamos lá — continuou —, se eu pegar meu celular e jogar para você, na física comum falamos da posição inicial, o momento que jogo, a posição final; o momento que você pega o celular e o tempo que ele levou para chegar até você, certo? É o mesmo princípio do seu fio de Chrono, onde a ação começa, onde ela termina e o tempo que leva para fazer isso.
— Ao ter a relatividade, falamos de dois eventos no espaço-tempo, separados por uma distância. Quando se analisa esses dados, conseguimos dizer o local e a hora em que ele ocorreu, ocorre ou ocorrerá.
— Então você está dizendo que as nossas técnicas são um complemento uma da outra?
— Não sei se eu diria complemento, mas que elas podem funcionar juntas é inegável. A questão do poste provavelmente é porque a gravidade é formada pela deformidade do espaço-tempo, causada por dois corpos. Então, por um segundo vocês dois se tornaram o ponto de referência de gravidade.
— Minha cabeça está doendo — reclamei e joguei meu corpo para trás encarando o teto do meu quarto. — Como isso é possível?
— A junção do espaço com o tempo causa efeitos peculiares — disse —, não sei como vamos investigar isso mais a fundo, mas supondo que as suas técnicas de alguma forma se “ajudam” e que o fio vermelho pelo menos significa algum tipo de familiaridade. Vocês dois tem muito mais a ver do que se imagina.
Estiquei a minha mão para cima encarando os dedos abertos
— Diretor Telles costuma especular sobre a akai ito, a linha vermelha do destino, ser uma maldição ou algum tipo de promessa não cumprida. Existem pessoas que conseguem criar ou manipular maldições com palavras, não é mesmo?
— Sim, existem alguns clãs com casos semelhantes — o assistente respondeu. — Aonde quer chegar?
— Se fosse uma maldição comum, todos os feiticeiros deveriam poder enxergar, então, por que só é visível em certos momentos? É preciso ter algum tipo de treinamento? — baixei o braço. — Ou algum tipo de olhos especiais?
Akio pareceu ter algum tipo de realização, surpresa tomou sua feição, sua boca pareceu querer falar algo, mas parou antes mesmo de começar. O assistente que esteve comigo desde a chegada ao Japão se levantou rapidamente passando a mão no rosto enquanto os pensamentos faziam uma confusão nos seus olhos.
— Vou iniciar algumas pesquisas, se concentre nas suas missões e nas atividades da escola enquanto eu não retornar com resultados.
— O que aconteceu? — me sentei e perguntei.
— Posso ter uma ideia da onde começar a procurar, mas não vai ser tão fácil — o mais velho andou até a porta. — Continue com cautela , e não comente sobre seus pensamentos com mais ninguém.
Assim ele se foi me deixando sozinha, com mais perguntas do que antes, minha têmpora latejava pela onda de informações jogadas em cima de mim de repente. Era sobre a minha potencial mãe, parte de um clã tradicional, umas loucuras de espaço e tempo e um mistério que estava longe de ser desvendado.
O que eu não tive de emoção desde que saí da Grécia, tive em um dia. Respirei fundo, fechei meus olhos e imaginei o som das ondas do mar batendo na costa, sempre que me deitava para dormir no monastério, aquele som ritmado me fazia ficar calma, em pouco tempo comecei a ficar sonolenta.
Só não sabia que do lado de fora alguém escondido no breu da noite me tinha em mente.
Era um bar localizado na parte mais escura da cidade com um único cliente. O barman colocou pela terceira vez uma dose de whiskey para o homem parado em sua frente, ele tinha os cabelos escuros desgrenhados e girava uma foto antiga na mão.
— Se me permite, é a terceira dose que toma sozinho essa noite.
— Você não devia se enfiar nos assuntos dos outros, velhote — ele respondeu numa quase ameaça. — Mas é uma comemoração.
— Sobre o-
Um único movimento e o cadáver do funcionário caiu no chão sem vida, sem motivo ou explicação.
— Avisei para não se enfiar no assunto dos outros.
De uma vez, o líquido âmbar desceu a sua garganta proporcionando uma queimação, o homem levantou o copo na altura dos olhos observando o seu reflexo, a cicatriz no canto da boca nunca o deixaria esquecer do que a sua família havia feito.
Ele tirou uma nota amassada do bolso e passou pelo balcão a colocando em cima do cadáver caído do outro lado.
— Não conte para ninguém, meu amigo, é um segredo, mas depois de tantos anos a minha sobrinha está de volta - o homem se levantou. — Fique com o troco, pelo menos até um ladrão entrar aqui e levar tudo.
Com isso, a figura sumiu na noite de novo, levando a única lembrança viva de Suyen Zenin com ele.
— Não sabia que gostava desse tipo de assunto — uma voz disse por cima do meu ombro me puxando de um texto repleto de palavras difíceis que eram mais interpretadas do que entendidas.
Estava sentada na biblioteca da escola fazendo um pouco de pesquisa relacionada ao que Akio me disse. Apesar da maioria dos livros serem sobre maldições, feitiços e relacionados ao mundo jujutsu, também tinha algum material sobre o que eles chamavam de assuntos mundanos.
— Shoko — cumprimentei a garota quando levantei os olhos do livro. Ela puxou a cadeira do meu lado a arrastando de forma exagerada se sentando em seguida olhando os outros volumes espalhados pela mesa.
— Física, física, física, parece que você está procurando algo — ela comentou pontuando os livros e em seguida esticando o pescoço para ver minhas anotações. — Está procurando algo?
— De certa forma — respondi não querendo dar detalhes, afinal ainda estava ali escondida. Poucas pessoas sabiam as verdadeiras condições da minha técnica. — Não chegou nenhum corpo para a autópsia?
Ela fez algo parecido com um bico se deitando sobre a mesa brincando com a capa de um dos livros
— Já faz alguns dias.
— Estamos chegando na época de maldições — tentei a ajudar —, logo você vai… Ter trabalho de novo.
— Espero que sim, você não tem missões? — ela parou de mexer os braços deixando eles caírem ao lado do corpo enquanto fechava os olhos esperando a resposta.
— Hoje não, Haibara e Nanami foram sozinhos dessa vez — respondi. — Tenho um compromisso de pesquisa com Akio.
Tomei um momento para olhar o relógio na parede.
— Inclusive, preciso ir Shoko. Com licença — me curvei levemente e levei alguns livros de volta aos seus devidos lugares, exceto um que a segunda-anista pediu para deixar.
Com calma, andei até o lado de fora do prédio, jogando a mochila num dos ombros, olhando para o céu enquanto aguardava o gerente auxiliar. Era como se o mar estivesse nele, uma imensidão azul sem uma única nuvem no céu.
— Aproveitando? — Virei meu rosto para encontrar Akio parado ao meu lado.
— Não, apenas esperando.
— Vamos então — o homem ajeitou as mangas do paletó e eu me coloquei a andar ao seu lado na direção do estacionamento. — Encontrei alguns registros públicos em uma biblioteca a algumas horas de Tóquio, achei que poderíamos dar uma olhada.
— Registros públicos? — perguntei.
— É tolice manter toda informação importante em apenas um local, se acontecer algo, todo o conhecimento seria perdido. Há muitos anos, alguns dados do nosso mundo foram espalhados e colocados a cuidados de outras instituições — entramos no carro, ele ligou o motor e então partimos explorando as ruas de Tóquio.
— Não consegui muita coisa por ser um registro restrito — comentou —, porém, parece ser uma boa pista.
Apoiei meu braço no vidro e encostei a bochecha na palma da mão.
— Precisamos começar de algum lugar, mesmo que seja uma informação falsa, devemos verificar. Que tipo de registro é?
— Aparentemente de nascimento — o mais velho disse. — Antigamente, costumava se listar todos os feiticeiros que nasciam de grandes famílias e suas habilidades.
— Com toda briga que parece ter entre os clãs, pensei que esse tipo de informação ficasse apenas entre a família.
— Os registros de uma possível venda com certeza, mas sobre o nascimento não, não deve ter tanta importância assim, não é incomum feiticeiros morrerem jovens — vi que ele me olhou pelo canto de olho. — Sobre seus outros problemas, teve algum avanço?
Balancei a cabeça negando
— Estive na biblioteca tentando entender como funciona da perspectiva física, para saber como nossas técnicas agem em conjunto teríamos que treinar juntos e de preferência numa sala confinada. Não acho que distorcer o espaço-tempo seja algo seguro em um lugar aberto.
— Com certeza você deve estar certa, entretanto, não podemos te revelar, não enquanto não temos certeza de que está segura.
— Sim, eu sei — concordei e olhei pela janela, depois de um longo suspiro retomei a fala. — Vice-Diretor Telles geralmente é bom com esse tipo de mistério. Seria ótimo se pudéssemos contatá-lo.
— Impossível, o vice-diretor realmente sumiu do mapa. Não temos notícias nenhuma dele há algum tempo. O máximo que podemos fazer é tentar falar com sua antiga professora Miller.
— Jura? — perguntei —, não achei ser possível.
— Sim, ainda temos um contato direto na Europa, podemos tentar mandar uma mensagem para ela buscar alguma informação específica por lá.
— Já vai ajudar muito.
Silêncio se instaurou no veículo, o cenário passando pela janela foi mudando conforme avançamos em direção ao interior. Logo não se via mais prédios e o trânsito praticamente desapareceu. A sensação é de que estávamos entrando numa área rural, o tipo de lugar improvável para guardar informações relevantes sobre qualquer assunto.
Após contornar uma pequena praça no centro da pequena cidade, Akio estacionou no que parecia ser a prefeitura, o único prédio com dois andares. Na frente, parado próximo à porta, alguém parecia estar nos esperando. Era um senhor, com algo em torno de 60 anos, vestia um suéter verde musgo e tinha o corpo ligeiramente curvado para a frente.
— Sr. Ozu — Akio se curvou e estendeu a mão. — Sou Akio Kimura, acredito que Yaga Masamichi avisou sobre a minha vinda.
O homem passou os olhos pelo gerente e depois para mim antes de aceitar sua mão e cumprimento.
— Sim, claro. Estava os esperando, por favor me acompanhem.
Assim que pisamos no interior da prefeitura, senti um frio correr a minha espinha, os passos do velho eram tão silenciosos que chegava a ser perturbador. No fim do corredor do térreo, quase escondida dos olhos, havia uma porta com uma placa indicando “permitida apenas a entrada de funcionários”. Ela se abriu com um rangido ruidoso indicando um caminho que seguia para baixo.
— É uma surpresa alguém como vocês se interessarem por esses registros velhos — Ozu comentou com uma voz rouca chegando a um andar no subsolo. Sua mão tateou um ponto na parede e com um alto clique a luz acendeu revelando um segundo corredor.
Ali as portas eram todas diferentes, de madeira e outros materiais. Muitas delas tinham selos e talismãs ou impedindo algo de entrar, ou de sair. Uma chave foi puxada do bolso do mais velho abrindo a primeira das portas.
— Faz muito tempo que ninguém me pede permissão para entrar aqui, acredito que o último faça, uns quinze anos — ele ligou a luz e eu pude ver cerca de 5 corredores razoavelmente extensos com livros de todos os tipos. — O que vocês desejam ver deve estar na prateleira 1-C, desculpe, mas toda essa poeira não faz muito bem para mim.
— Continuaremos sozinhos a partir daqui, não se preocupe — Akio respondeu.
— Obrigado, quando sentirem fome podem vir a minha casa, a última casa da rua principal. Vamos ficar felizes em receber vocês.
O prefeito se retirou, nos deixando a sós com anos e mais anos de documentos da família Zenin, se tivesse que dizer, vinham até de outras eras. Akio, tirou o paletó e colocou apoiado numa pequena mesa de madeira encostada na parede próxima à porta.
— Vamos pegar os itens de aproximadamente 30 a 40 anos atrás.
— É bastante coisa — falei me abaixando na frente da prateleira tentando achar as datas correspondentes às que ele pediu. Peguei cinco livros e entreguei para Akio, juntando outros cinco volumes e segurando nos braços antes de me juntar a ele na pesquisa.
As páginas eram amareladas e as informações eram organizadas de forma categórica, como se realmente os membros da família fossem apenas mercadoria. Quando comecei a olhar o segundo volume, mais de uma hora depois, consegui encontrar alguma informação relevante.
— Encontrei — disse conferindo que o livro era de 34 anos atrás do ramo principal. — Zenin, Suyen nascida em 26 de outubro de 1972.
— E o que mais? — Akio se levantou para se aproximar.
— Nada — respondi —, as páginas depois dela foram arrancadas. De 1972 a 1976.
— Arrancadas — Akio comentou, parecendo mais um pensamento que escapou do que realmente uma fala pensada. — Parece que alguém resolveu esconder algo, mas o que é fica para descobrirmos.
Ele tirou um lenço do bolso e então limpou as mãos antes de ajeitar os cabelos para trás, estalando a língua em desgosto. — Todas as famílias tradicionais do nosso mundo são problemáticas.
— É a primeira vez que eu te vejo zangado — comentei genuinamente surpresa. O homem que não devia ter mais do que 35 anos estava sempre calmo e centrado, mas seus pensamentos naquele momento pareciam estar levando a melhor.
Akio fez uma careta e em seguida puxou o terno da cadeira.
— Vamos dar uma volta, depois de todo esse tempo aqui, precisamos de um pouco de ar, além de questionar o prefeito é claro.
Passei pela porta depois dele indicar com a cabeça para eu sair.
— Se ninguém entra aqui há mais de 15 anos, essas páginas foram arrancadas antes disso.
Após deixarmos a biblioteca subterrânea, se é que posso chamar disso, fomos recepcionados por um dia já em seu fim. O céu claro começava a deixar de existir, deixando a noite cair. A cidade tinha apenas algumas ruas de pavimento e as casas todas tinham árvores, jardins ou algum tipo de plantação. Parecia um lugar pacífico de se viver, no meio das montanhas, quase isolado do mundo. Na distância, depois dos pastos de criações, no pé das árvores de cerejeira, havia um lago extenso de águas calmas.
— Com licença — Akio disse entrando na casa do prefeito, depois de ser recepcionado e convidado a entrar. Não era muito familiar com todos os costumes japoneses, então apenas me limitei a seguir o mais velho, de maneira alguma gostaria de soar desrespeitosa.
— Ara, ara, vocês dois que estão mexendo com aqueles arquivos velhos? — a esposa do prefeito, Izumi, se aproximou em passos lentos enquanto nos servia de algum tipo de chá. — Espero que consigam achar o que procuram.
Silêncio, não havia nada além da louça das canecas batendo.
— Se me permite, prefeito — comecei a falar e ele levantou a mão me interrompendo.
— Por favor, me chame de Hidetaka — ele corrigiu e eu continuei.
— Prefeito Hidetaka, com todo o respeito, mas porque escolher uma cidade como essa para guardar arquivos tão importantes?
— A resposta está na sua pergunta, jovem, quem imaginaria que uma cidade como essa teria arquivos tão importantes — rebateu com a voz baixa e suave. — Pode não parecer, mas temos alguns usuários de jujutsu na área, muitos deles escolheram se aposentar e aproveitar que ainda estão vivos. Depois de ficar nessa vida por muito tempo é preciso descansar, caso contrário, você é levado a loucura.
— Acho que chegar a uma idade avançada já é algo memorável — falei sem pensar e em seguida me redimi. — Me desculpe, não quis ofender.
O mais velho deu uma risada contida.
— De maneira alguma, não acho que é uma mentira. Imagino que vocês queiram me perguntar alguma coisa, já que Akio está mais calado do que o normal.
— Um dos livros, especificamente um de 1972, está com algumas páginas faltantes.
O prefeito se tornou mais sério e abaixou a cabeça levemente.
— Tinha certeza que vocês iriam chegar nesse volume — um longo suspiro depois e ele voltou a falar. — Era algum dia durante o inverno, talvez uns 20 anos atrás? Algo do tipo. Estava há pouco tempo no cargo, os nossos campos estavam cobertos de gelo e até então não tinha ninguém na rua, foi quando Izumi me disse que viu alguém indo na direção da prefeitura.
Por um momento ele olhou para a esposa buscando uma confirmação.
— Estava ventando e a neve caía. Me perguntei o que um morador estaria fazendo na rua àquela hora da noite, todos tinham conhecimento que eu estava em casa — Hidetaka deu uma pausa. — Foi quando eu me dei conta que não era um morador, tão pouco um turista, numa cidade como essa, todo mundo se conhece e não é fácil alguém passar despercebido.
— Fui até lá, mesmo aos protestos da minha recente esposa. Mas, tão rápido quanto a pessoa entrou, ela saiu, quando cheguei, vi apenas as portas arrombadas. A princípio não conseguimos descobrir o que estava faltando já que tudo estava em perfeita ordem. Somente quando olhamos os livros um por um foi que descobrimos as páginas faltantes.
Izumi terminou de colocar os pratos na pequena mesa e se sentou na minha frente.
— Suspeitamos ser alguém que sabia exatamente o que estava procurando, não foi obra de uma maldição ou algo do tipo, a prefeitura foi invadida por um humano comum.
— Provavelmente alguém querendo sumir do mapa — o prefeito concluiu. — Sabe, muitas pessoas não gostam dos Zenins, alguns até do próprio clã.
— Depois disso, a última pessoa que fez uma visita 15 anos atrás — Akio-san instigou —, foi com permissão?
— Sim, era um servente da família Gojo — respondeu —, um homem. Disse estar fazendo uma pesquisa referente a alguns documentos encontrados na residência principal.
— Se não me engano, o herdeiro deveria ter algo em torno de 1 ano quando ele apareceu por aqui — completou a esposa servindo os pratos.
— Prefeito Hidetaka, por acaso você sabe sobre o que seria essa pesquisa? — perguntei e os dois se entreolharam, pensando se poderiam falar ou não.
— Tomo responsabilidade pelas informações — Akio interviu buscando uma maneira dos dois falarem. Talvez uma informação como aquela pudesse ajudar em algum ponto na resolução da minha técnica amaldiçoada.
Um longo suspiro e o mais velho passou a mãos levemente pelos cabelos brancos.
— Eu não me lembro bem ao certo, mas era relacionado a uma carta.
— Uma carta de amor — Izumi corrigiu. — Vocês sabem como os clãs Gojo e Zenin tiveram um desentendimento quase milênios atrás, a carta era datada desse período de um membro do clã Gojo para uma suposta mulher do clã Zenin.
— Pelo que o servo disse na época, já que eles estavam buscando informações sobre os “seis olhos”, a carta mencionava algo sobre poder ver o destino.
Tive que me forçar a não demonstrar nenhuma reação a fala dele, então apenas tentei manter a minha feição de atenção. Ao meu lado pude ver Akio levemente surpreso, mas isso também não interferiu grandemente em sua reação, não o suficiente para o casal suspeitar de algo.
— Interessante — Akio abaixou a cabeça para os pratos disfarçando ao pegar a xícara de chá entre os dedos. — Qual a relação do destino com a carta do amor, ele não estaria procurando algo sobre o akai ito, não é mesmo?
Repentinamente a minha admiração pelo assistente ultrapassou todas as barreiras, ele fazia a fala parecer tão natural que até mesmo eu cairia no papo dele facilmente.
— Me desculpe, mas não sabemos o fim dessa investigação — Hidetaka respondeu. — Mas vocês podem olhar os arquivos que entreguei para o rapaz na época, se estiverem tão curiosos assim.
Continuamos a refeição sem mais grandes conversas, estava calada, pois as teorias estavam gritando na minha cabeça. Seria capaz que essa suposta ligação que tinha com o garoto vinha de milênios atrás? Se a teoria do vice-diretor Telles fosse verdade e a linha vermelha fosse uma maldição ou, no caso, uma promessa não cumprida. Faria sentido se fosse entre dois amantes. Mas eles estando mortos, significa que suas almas foram reencarnadas?
Se já não bastasse a pista sobre a minha possível família de origem ser Zenin e a minha técnica reagindo involuntariamente com a do Gojo, ainda tinha mais esse mistério para resolver. Esperava encontrar alguma luz para os meus pensamentos no Japão, mas aparentemente só estou afundando ainda mais.
— Não me agrada também — respondeu —, vamos apenas terminar o nosso serviço o mais rápido possível e ir embora.
Logo estávamos de volta a biblioteca subterrânea, aqueles arquivos sobre a minha potencial mãe foram registradas por fotos antes de voltar nossa pesquisa para outro assunto. O velho Hidetaka nos deu uma indicação de onde começar a procurar e foi exatamente o que fizemos.
— Sobre essa tal briga antiga — comecei a falar enquanto me abaixava para pegar alguns registros, eram tão velhos que nem poderiam ser chamados de livros, apenas um amontoado de papéis amarrados com um cordão.
— Supõe-se que no período edo ou keicho os líderes das respectivas famílias se mataram. O líder da família Gojo era um usuário da Técnica Amaldiçoada Ilimitada e usuário dos seis olhos como o Satoru, e o clã Zenin tinha um usuário da técnica das dez sombras — o assistente terminou de falar enquanto folheava o que tinha em mãos. Akio se sentou na cadeira e me olhou antes de voltar a falar, provavelmente ponderando suas palavras — Satoru provavelmente já deve ter percebido alguma coisa sobre a sua dádiva das moiras, talvez seja interessante pensar em revelar para ele pelo menos parte dos acontecimentos.
— Isso não o colocaria em perigo também? — questionei. Já que a minha identidade escondida era justamente para evitar que outros locais tenham o mesmo destino que o monastério na Grécia.
— Honestamente, não. Acredito que possa ser uma parceria benéfica já que podemos investigar mais sobre as suas técnicas.
Bati os meus dedos na mesa e fiquei em silêncio, sem realmente dar uma resposta, apenas pesquisando dentre os documentos. Passaram mais algumas horas e estávamos quase desistindo, considerando também o horário e o fato de termos que retornar para Tóquio, quando encontrei uma carta enfiada entre algumas folhas dobradas. Ao menos parecia uma carta à primeira vista, apesar de incompleta.
Quando meus dedos entraram em contato com o papel, senti como se um sussurro estivesse tentando chegar aos meus ouvidos, olhei para trás para os corredores extensos do local apenas para garantir que não havia nada se esgueirando atrás de mim. Com isso, tomei o papel nas mãos e virei encontrando no verso dele algumas escrituras.
Lembraram os padrões de talismãs, mas o desenho em si, o conjunto, nunca tinha visto antes. Além disso, o próprio conteúdo da carta parecia incompreensível para mim, a única frase que consegui decifrar foi uma escrita no fim.
“Almejo pela aurora que permitirá que nosso romance floresça sem clamar por um solo banhado em sangue”.
Mais uma vez um tremor passou pelo meu corpo, me forçando a engolir seco e me aproximar de Akio com uma desculpa.
— Consegue ler alguma coisa aqui, sem ser a última frase?
Levantando os olhos das folhas em sua frente, sua atenção se voltou para mim. Assim como havia feito, ele olhou o verso e fez uma feição confusa que se intensificou quando o conteúdo permaneceu inconsistente até mesmo para ele.
— Não muito, está bem danificado. Fala algo sobre quididade, essência ou natureza real de algo, mas esse material é estranho, e a cor da tinta… Acho qu-
Um tremor repentino fez com que a luz piscasse, uma energia subitamente surgiu nos fazendo sair da sala e olhar ao redor. Parecia imperceptível, mas, no fundo do corredor, havia uma pequena distorção e um rastro de energia amaldiçoada.
— Ótimo — a voz de Akio ecoou de forma ácida. — Parece que alguém não nos quer bisbilhotando documentos. Parabéns, você acabou de ganhar permissão para exorcizar uma maldição.
— Surja das sombras e torne-se mais escuro que o breu. E então purifique e exorcize aquilo que for impuro.
Como se fosse possível das janelas tudo pareceu ainda mais escuro, toda a visão ganhou um tom distorcido, revelando a energia amaldiçoada acumulada no prédio. A cortina que Akio baixou cobriu apenas o prédio da prefeitura e a minha leitura do ambiente indicou que a maldição estava se movendo.
Em todas as últimas missões estava com o meu grupo de calouros, Yu e Nanami, fazia muito tempo que eu não tinha um momento sozinha, de certa forma me deixava animada. Pois não precisava me preocupar em esconder as verdadeiras propriedades da minha técnica amaldiçoada.
Saí da ala dos arquivos e subi as escadas para o térreo da prefeitura, juntei as pontas dos dedos de ambas mãos vendo os pequenos fios de energia se formarem entre eles.
Existiu um mito na Grécia sobre uma disputa de tapeçarias entre Atena e Aracne, o mito dizia que após uma competição de tapeçarias, Atena ficou furiosa por sua adversária ilustrar as desilusões amorosas de Zeus, seu pai. Transformando então Aracne numa aranha, e imediatamente, Aracne começou a tecer um manto de seda com fios que produzia em si mesma.
Algumas das minhas linhas tinham funções que quebravam tabus, mexiam com o fluxo natural do mundo, mas, ao mesmo tempo, tinha aplicações bem úteis.
Restrição de Aracne
Com o feitiço lançado coloquei as mãos nas paredes e os fios começaram a se estender por todo centímetro de construção dentro da prefeitura, não tinha parâmetros de como era essa maldição, não sabia dizer se poderia a restringir. Contudo, poderia a localizar com a menor das vibrações.
Estava no hall de entrada quando o puxão aconteceu, era uma coisa boa que a maldição se revelou, porém, ela estava próxima demais e avançava para matar.
Os fios que estavam ao meu alcance foram manipulados para travar a bocarra da criatura e evitar que ela se fechasse envolta de um dos meus membros. Ao mesmo tempo, o brilho azul se fez presente e a linha do tempo, Chrono deixou o tempo mais lento me dando a possibilidade de escapar.
Assim que o curso dos minutos voltou ao natural, a maldição recuou, galgando força para avançar e romper as linhas de Aracne na minha direção. Com investidas brutas e bestiais consegui perceber que não era uma criatura qualquer, possuía o mínimo de inteligência para atacar e desviar.
Já estava no fim do corredor e tudo que consegui fazer naquele espaço contido foi me defender. Movimentei os fios mudando o curso do seu caminho, em certo momento a maldição já não podia recuar e o caminho de ataque estava completamente livre na minha direção.
Bati o pé no chão algumas vezes e gritei para chamar sua atenção.
— Vem sua coisa feia! Alguém te mandou aqui para acabar comigo não foi?
Um rosnado gutural rompeu o ar e fez tremer as janelas, incitando uma nova investida, porém com planejamento antecipado. Usei Chrono e a sua habilidade de diminuir o tempo para colocar as linhas cortantes do Julgamento de Aisa em minha frente, como a maldição já havia iniciado seu movimento de ataque consegui fazer um jogo de tempo. Avançando o ato do ataque e levando a maldição direto para sua morte em fatias, sem a chance de desviar.
Se tivesse que fazer uma comparação, era como uma cena de desenho antigo, onde um dos personagens pausa a cena e desenha um buraco na frente da outra animação apenas para cair quando tudo volta ao normal.
Claro que não fiquei na área de alcance da carne podre que voou e toda gosma que saiu do corpo morto, usei o movimento que geralmente aplicava em Nanami e puxei meu corpo para trás saindo da zona de respingo.
Akio resolveu aparecer e ao ver que a maldição havia desaparecido me parabenizou batendo duas palmas.
— Bom trabalho.
Quase em simultâneo as portas da prefeitura se abriram, revelando um prefeito ofegante.
— Pelos deuses o que aconteceu aqui? Vi a cortina aparecendo!
— Não se preocupe, prefeito Hidetaka — o assistente levantou a mão vindo na minha direção com certa pressa. — Já cuidamos de tudo, estaremos de partida agora. Verifique os amuletos da barreira da cidade, eles podem falhar conforme o tempo. Obrigado por nos receber.
— Mas espera, Akio!
O assistente me pegou pelo pescoço, me forçou a curvar e me levou de volta para o carro, deixando tanto o velho quanto eu sem explicação.
— O que aconteceu? — questionei tentando ver se tudo que trouxe ainda estava comigo.
— Não foi ninguém da cidade que conjurou a maldição — respondeu enquanto ligava o carro e começava a dirigir, deixando a cidade para trás. — Provavelmente foi alguém com ligação à família Zenin, que recebeu uma ordem para evitar bisbilhoteiros, você não quer entrar no caminho de mais assassinos, quer?
Não tive o que responder, fiquei em silêncio.
— Assim como diversas outras pessoas, os habitantes do vilarejo não passam de ferramentas das famílias mais fortes, meras marionetes humanas. Não precisamos envolver eles nos nossos problemas, não é mesmo?
Olhei para a estrada que estava à nossa frente cortando as árvores e sendo iluminada apenas pelos faróis do carro. O céu estava o mais escuro que podia, soturno, respirei fundo e apoiei a cabeça no apoio do banco antes de responder o questionamento do assistente.
— Não, não precisamos.