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Codificada por: Fer (Lyra)

Fanfic Finalizada

Seul; Janeiro de 2024.
As memórias que me rodeavam ao enxergar aquele quadro em minha frente, colocado milimetricamente em um altar cheio de flores, não passariam de um mero detalhe. Eu estava vazia por dentro e isso não tinha absolutamente nada a ver com o fato da minha vida ter sido ceifada.
Ver meu rosto estampar um quadro póstumo, exibido para pessoas se curvarem e fingirem que possuíam qualquer sentimento de pesar pela minha partida, nada mais era do que um alívio.
Aquilo já não era mais a minha primeira morte. Talvez nem mesmo a segunda. Já havia perdido a conta de quantas vezes encarei o meu próprio fim.
A única diferença era que agora eu não tinha mais um corpo físico pesando por aí.
Ao lado do meu altar estava ele, o tão querido e educado esposo que cuidou de todos os meus problemas, apoiou todo o meu tratamento e acreditou até o fim que seria possível. Se houve algo que a crença de Taeho mais fez acontecer, esta foi a de que cinco dias após a minha triste morte ele ficaria rico com os bilhões de wones que receberia do seguro e os inúmeros outros itens que entrariam na sua herança. Assim, ele e Im Miyoung seriam o casal mais feliz do mundo: ela, a melhor amiga da falecida esposa dele, que acabou se apaixonado por ele ao encontrar no viúvo forças para viver sem a pessoa que ela mais amou e confiou em toda a vida; uma história e tanto, bem convincente para qualquer alheio que ouvisse.
Muito comovente ver ele sofrer minha morte. Tão apegado a mim que foi, que só bastou eu vestir um óculos escuro, cortar o cabelo mais curto e fazer uma franja e eu não fui reconhecida. Nem por ele, nem pelos outros queridos amigos e familiares.
Que vida patética vivi. Em vão por mim, mas gerando prazer a muitos. E saber que tentaram me alertar diversas vezes fazia com que o amargor tivesse uma descida efervescente por minha garganta.
Fechei os olhos, respirando fundo e apertando a pequena bolsa em frente ao meu corpo, controlando a raiva que subia em todo o meu ser e sussurrava em meus ouvidos que era a hora de iniciar ao menos a prévia do inferno que eu queria que todos soubessem pelo qual passei.
— Seja sábia. — a voz de ecoou por meu ouvido e sentir a presença dele tão próxima do meu corpo me deixou mais calma, mais segura, mesmo que ainda fosse difícil confiar o pouco que fosse em outra pessoa. — Mas se você decidir que aqui é o momento, estou do seu lado.
Apenas assenti, sabendo que suas palavras sempre seriam provadas a mim com verdade, mesmo que eu duvidasse bem no fundo do meu ser. O ser desgastado, surrado e cheio de inseguranças; o que restou de todas as mortes pelas quais passei.
Estávamos de frente ao meu mórbido altar. Ele posicionado atrás de mim como sempre esteve e eu não notei, pois estava cega me preocupando em recolher migalhas e concentrada demais em não perder nenhuma delas. Talvez o motivo de eu conseguir confiar em , mesmo que minimamente, era porque ele não deveria ser uma pessoa qualquer, ele era o meu protetor. Alguém que não se opunha em cuidar de mim.
— Eu consigo esperar. — Relaxei mais o corpo, fazendo o sinal da cruz para a minha própria foto. — Podemos ir? — Me virei para ele, tendo real noção de como estávamos mesmo tão próximos. — Não quero encontrar com nenhum deles.
— Podemos. — arrumou a minha franja, abrindo espaço para depositar um beijo em minha testa (seu novo costume desde que eu havia lhe deixado se aproximar) e isso, de certa forma, me fazia muito bem.
O acompanhei até a saída, vendo como o lado de fora era banhado em uma chuva forte de inverno. A passos firmes, continuei marchando, me sentindo sufocada e com anseio de chegar àquela água que caía como um banho quentinho, mesmo que as gotas estivessem extremamente geladas. Quando ergueu um guarda-chuva para me proteger, toquei seu braço para que não o colocasse sobre minha cabeça.
— Por favor, deixe a chuva cair — pedi, olhando-o nos olhos e sentindo que junto com aquelas gotas, minhas lágrimas se faziam presentes.
Ele não disse nada, apenas concordou em silêncio e nós ficamos ali, um olhando para o outro, parados na calçada à espera do carro. Quando o veículo chegou, abriu a porta para mim e eu entrei primeiro, já totalmente encharcada, observando-o dar a volta e tomar o lugar de motorista.
A sensação, porém, era de que minha alma também estava lavada.


Seul; fevereiro de 2024.
— Quer mais?
Ergui o rosto para e assenti, sorrindo junto.
Era uma vista muito bonita: atrás dele tinha a enorme “parede” de vidro que nos permitia ter uma visão ampla de Seul e sua paisagem noturna enquanto jantávamos em sua casa.
— Este é o melhor kimchi que eu já comi em toda a minha vida! — disse enquanto mastigava uma boa porção. — Todo esse tempo e você ainda não me disse onde foi que aprendeu a cozinhar desse jeito!
Enquanto me servia com mais ensopado de kimchi, riu fraco.
— Minha mãe — ele disse simples, se endireitando na cadeira. — Quando estava na faculdade de economia, meu pai adoeceu e meu irmão e eu nos dividimos em turnos no restaurante dela em Daegu.
O observei com um pensamento pertinente em mente.
Quando peguei Taeho e Miyoung aos beijos na minha festa de aniversário, estava lá. Ele me encontrou totalmente perdida, sem saber como reagir e o que fazer, mas me acalmou e disse que poderia me ajudar com o que quer que eu decidisse a partir dali. Foi nesta minha primeira morte que eu descobri que ele era, além de diretor financeiro da minha empresa, um grande amigo em potencial.
Não demorou muito e eu comecei a descobrir a verdadeira face do meu esposo e a suposta melhor amiga de infância. De tão intragável que foi, acabei me perdendo na sede de vingança e em todos os sentimentos que foram morrendo dentro de mim a cada nova descoberta, que acabei esquecendo de olhar para ele e tentar entender como e de onde veio sua vontade de me ajudar — embora agora todo o sentimento por minha parte estivesse mudado; de certo modo, quando eu pensava numa perspectiva, só conseguia enxergá-lo. Afinal, eu decidi planejar minha morte física para retornar como uma espécie de fardo ou maldição para os dois, tal qual uma ave que se prepara para voos temerários.
— O que foi? — me questionou, curioso.
Suspirei, bebendo um pouco de água ao organizar minhas ideias.
— Você tem uma boa família. Uma boa carreira. Passou anos me ouvindo pegar no seu pé com coisas executivas… Mas nunca tivemos qualquer aproximação, nada que nos ligasse. — Franzi o cenho, tentando ler sua feição; não encontrei nada. — Até você me ver perdida naquele coquetel. Sem saber se expunha ou se fugia de mim mesma. Por quê? Por que me abrigar aqui na sua casa? Se envolver numa história de vingança que pode nos levar à prisão… Por que me mimar com todo esse conforto se eu nunca nem sequer lhe dei um bom dia?
… — iniciou, respirando fundo, mas sem hesitar. — Eu não tinha como não ajudar o amor da minha vida.
Engoli a seco com sua confissão. Confusa e retraída.
— O que você disse? — perguntei, baixo.
— Sempre fui apaixonado por você. — Bebeu seu vinho, fazendo uma pausa. — Desde que pisei na Lotus pela primeira vez e a Miyoung me apresentou a CEO que todos temem no mundo empresarial. Quando percebi que você era infeliz sem saber, prometi a mim mesmo que estaria lá quando precisasse. Não vou te dar detalhes ou dizer como e quando foi que isso começou, apenas aconteceu. Eu não posso explicar, porque nem mesmo eu sei. A única certeza que tenho é a de que… Bem, o seu conforto é o que eu tenho como motivação.
— Você… — Algo passou a fazer sentido em minha cabeça, mas eu estava atordoada demais para conseguir formular uma sentença imediata. — O que quer dizer com perceber que eu era infeliz sem saber?
— Taeho era mais solícito com sua melhor amiga do que com a própria esposa — disse, casualmente. — Miyoung nunca deixou você ser o real foco dentro da sua própria empresa. E não ter seu pai ou sua mãe para te protegerem desses tipos de males que surgem silenciosos ou como lobos em pele de cordeiros, me fez enxergar que talvez você fosse boa demais para conseguir ver o inferno em que te colocavam.
— É um pouco engraçado, se for olhar agora… — Ri, nasalado. — Mas eu sempre me senti assim, rodeada por lobos sorridentes. Pessoas sábias que me adulavam demais, mas na verdade elas adoravam o que eu tinha. O que eu poderia oferecer a elas. Esse incômodo sempre existiu.
— Mas você chegou num ponto em que lutar contra isso te fazia se sentir a pior pessoa do mundo?
— Sim. — Suspirei. — Me intoxiquei de tanto altruísmo, que acabei cegando todos os meus horizontes. Quando abri os olhos e consegui sair dessas torres tóxicas em que me prenderam, era tarde demais.
— Nunca é tarde demais, . É sempre sobre estar pronto.
— É, você pode estar certo. — Estiquei o braço por cima da mesa, estendendo a mão para ele. — Tenho certeza de que eu não estaria pronta se não fosse por você. Obrigada por me fazer conseguir reviver.
— Eu jamais deixaria uma semente ruim acabar com o meu jardim. — Ele tocou em minha mão e eu senti a maciez de sua pele acariciar minhas feridas. Todas as vezes que Taeho me tocou com brutalidade ou sequer se esquivou de mim, me trazendo a sensação de sujidade, de rejeição e insuficiência, simplesmente eram apagadas a cada toque aconchegante que me proporcionava.
O telefone dele tocou e ele se levantou, indo até a bancada, num rompante que interrompeu nosso momento. Mirei a paisagem em minha frente, vendo a noite iluminada da grande capital coreana através do vidro. Respirei fundo, insegura, mas hesitante ao pensar nas palavras dele; na declaração fácil que saiu por seus lábios. Algo dentro de mim vibrou, não posso mentir, mas ainda era cedo para oferecer qualquer reciprocidade.
Cobrindo minha vista, surgiu na minha frente, em pé.
— O que houve? — Me assustei com a feição séria dele.
— Irão abrir seu testamento amanhã — ele respondeu.
Engoli o bolo na garganta e apenas assenti, voltando a mirar a paisagem.
— Amanhã será o dia do albatroz voar. — disse, pensativa.
Enfim a última etapa póstuma aconteceria.

A sala estava fria, mas não me incomodava.
Na verdade, o que estava me preocupando era ver através da tela do computador aberto em minha frente, transmitindo as imagens da câmera instalada na sala de reuniões do prédio administrativo da Lotus Industries, minha empresa. Ao meu lado estava Junho, o único que eu e confiamos a contar todo o plano dramático que eu tinha; ele demorou a aceitar, mas acabou cedendo e aceitou participar quando notou como tudo estava se desenhando com a possibilidade de Taeho tomar, de fato, o meu lugar como CEO (haja visto que o conselho estava mesmo comprando a história dele de viúvo sofredor).
Lembro quando meu pai começou a me treinar para assumir o império que ele tanto trabalhou para construir com minha mãe. Eu era apenas uma recém formada da escola, indo para a faculdade, quando ele exigiu que eu aprendesse seu ofício. De certo modo, isso foi bom, afinal. Papai era uma pessoa muito reservada e viciado em trabalho como ninguém, enquanto me ensinava e apresentava o mundo do qual eu deveria fazer parte, como mandava seus planos, nós dois nos aproximávamos mais. Ser CEO da Lotus não tinha muito a ver somente com ter herdado ela, mas sim com o amor que eu tinha pelos meus pais. Com esse processo, eu acabei gostando e tomando como meu dever continuar algo que resultou de tanto esforço deles, que, inclusive, por muitos anos, serviu como motivo de ausência.
Quando eu conheci a Lotus de verdade, eu entendi o porquê papai e mamãe muitas vezes não puderam aparecer em apresentações da escola ou coisas parecidas. De forma alguma eu deixaria Taeho e Miyoung tomar proveito de tamanho império.
A Lotus era parte da minha história. Foi a vida que eu escolhi.
E foi pensando nisso que minhas ideias mudaram na noite anterior à abertura do testamento.
— Vai começar — Junho me alertou, deixando um café em minha frente.
— Você tem certeza de que dará certo? — perguntei, receosa.
— Não tem nada com o que se preocupar, querida. — Me ofereceu um sorriso, sentando-se novamente.
Nós dois começamos a prestar atenção nas filmagens, escutando as conversas paralelas, até que Taeho começou a mostrar seu verdadeiro “eu”.
— Por que todos vocês estão aqui? — ele estranhou ao ver os diretores de diversos setores da Lotus.
Meu coração acelerou ao ver tomar seu lugar com muita calma e resiliência. Troquei um breve olhar com Junho, enquanto o áudio se misturou em respostas misturadas à Taeho e ele foi acalmado por Miyoung, sentando-se de frente com .
Então o advogado, Bonseok, se sentou na cadeira que sempre fora minha.
A sensação, porém, não foi de incômodo nenhum. Eu estava muito decidida com minha escolha repentina.
— Podemos começar? — Bonseok tomou atenção de todos e o uníssono de “sim” foi ouvido. — O motivo de termos presente o quadro de diretoria da Lotus é porque está escrito no testamento tal exigência da senhorita Chwe.
Certamente, Taeho se opôs, mas outra vez Miyoung o acalmou. Ela estava muito confiante.
— Por favor, senhor Park, seja breve — Miyoung, por sua vez, exigiu docemente. — Isso tudo é muito estressante para nós.
— Certamente, senhorita — com indiferença, o advogado respondeu, distribuindo cópias a todos. — Por determinação da própria senhoria Chwe , antes de seu falecimento, a Lotus será herdada por sua única parente mais próxima, Zhang Meifen, que está aqui representada pelo quadro de diretores da empresa.
— Infelizmente, ela não pôde comparecer, pois está finalizando alguns processos em Hong-Kong antes de se mudar para Seul — Hoseok, o diretor jurídico da Lotus, esclareceu.
— Mas o que? — Taeho se excedeu, esganiçado. — Isso é alguma piada?
— Taeho… — Miyoung o chamou baixou, apontando para o papel que receberam. — Você e haviam se separado? — perguntou.
Percebi confuso, sem entender a situação e pedindo para sair da sala.
O primeiro plano era eu entrar na sala de reuniões e descarregar em todas as provas que tinha de seu único interesse em minha morte para que pudesse herdar meu dinheiro, meu império. Mas depois da conversa que tive com ele a respeito de seus sentimentos, de suas perspectivas e pensei sobre minhas inseguranças, mudei de ideia e procurei por Junho.
A princípio, essa ideia de ter um divórcio antes do meu falecimento era um pouco difícil. Porém, Junho conseguiu reformular todos os documentos, fazendo parecer que haviam sido feitos antes de Chwe morrer. O divórcio, a decisão de Meifen herdar tudo, mesmo que fosse a única prima que eu tinha por parte de mãe, já que meu pai era filho único, na China, tudo decidido porque eu queria escolher uma nova vida.
E se estava me oferecendo essa chance, eu gostaria de fazer.
Enquanto a confusão estava instalada na sala de reuniões e Taeho se indignava por ver que todos os documentos estavam datados e preenchidos corretamente, sem nenhuma fraude aparente, rompeu a sala em que eu estava com Junho.
— Vou deixar vocês a sós — ele disse, me deixando com .
Me levantei, vendo-o pálido e confuso.
— O que foi isso? — perguntou, se aproximando com hesitação. — Eu achei que-
— Eu mudei de ideia. — respondi imediatamente. — Eu… , eu não quero isso. Eu não quero que essas pessoas se tornem sombras no meu presente. Eles podem ficar apenas no meu passado e eu posso aproveitar essa segunda chance que tenho de escolher um novo caminho. Uma nova vida.
— Você tem certeza? Você quer mesmo deixar tudo isso para trás? — ele se aproximou mais, parecia mesmo preocupado.
— Sim. Eu quero. — Toquei seu rosto. — Eu quero escolher uma nova vida. E eu posso. Um novo nome, um novo endereço… Uma nova história. E vou ficar muito feliz e grata se você quiser fazer parte disso.
— É claro que eu quero, .— também colocou a mão em meu rosto.
— Então ótimo. Eu estou pronta para deixar tudo isso para trás. Você pode me ajudar a seguir em frente?
apenas assentiu, agora segurando meu rosto com as duas mãos para me puxar e tomar meus lábios em um beijo calmo, eficaz em me fazer sentir a vida ressurgindo em meu corpo por inteiro.
Foi parecido com abrir asas como um paraquedas e surgir em algum resgate. Ao fim, eu mesma fui como um albatroz partindo para o meu próprio resgate.


Fim


Nota da autora: Espero que tenham gostado.

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