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Codificada por Aurora Boreal 💫
Finalizada em: Dezembro/2024

“Only a night from old to new; Only a sleep from night to morn. The new is but the old come true; Each sunrise sees a new year born.”


New Year’s Morning — Helen Hunt Jackson


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Feliz ano novo para você, que nos assiste neste momento tão especial. Essa data, que também é uma oportunidade para celebrar a união, refletir sobre a importância de viver o presente e encontrar beleza no agora. E também uma desculpa para uma boa festa, não é?
A apresentadora recitava frases otimistas com uma alegria exagerada e visivelmente artificial, afinal, assim como , ela também estava trabalhando na noite de Ano Novo. Com um suspiro impaciente, revirou os olhos e, sem pensar duas vezes, desligou a televisão com o controle remoto.
Eram duas da manhã, e ela estava ali, lavando louças e limpando mesas em vez de celebrar. A última coisa que queria ouvir naquele momento eram discursos sobre esperança e positividade.
sabia que o turno da noite seria longo e exaustivo, mas aceitou sem pensar duas vezes. Não era como se o Ano Novo tivesse algo mais emocionante reservado para ela, afinal.
Ela trabalhava como barista em uma cafeteria e sentiu-se a pessoa mais burra do mundo ao perceber a grande roubada em que tinha se metido ao aceitar o turno da noite de Ano Novo, e sozinha. Na sua cabeça, era simples: quem estaria em um café naquela noite? Todos estariam em festas, longe dali, certo? Errado. A noite tinha sido mais movimentada do que qualquer dia comum, e agora, exausta, ela tentava dar conta das últimas tarefas com o que restava de energia.
olhou para trás e notou que o único cliente ainda estava no mesmo lugar. Com a cabeça baixa, distraído no celular, ela sabia que ele não tinha se incomodado por ela ter desligado a televisão.
Ter atendido Garfield naquela noite tinha sido um dos grandes indícios de que a noite tinha sido uma loucura.
Ele estava sentado sozinho no final do balcão, encostado na parede, desfrutando de seu café em silêncio. Ao reconhecê-lo, ela não pôde deixar de sentir uma onda de surpresa, mas logo se lembrou de que, por mais famoso que fosse, ele também merecia privacidade e não trocou mais do que algumas palavras com ele.
No entanto, quando derramou acidentalmente o café frio sobre a camisa, não teve escolha a não ser se aproximar. Por um instante, ela hesitou, seus olhos fixos na xícara quebrada sobre a mesa e no líquido que se espalhava lentamente. Ele parecia surpreso, olhando para a camisa manchada com uma expressão indefinível — um misto de constrangimento e distração que a fez se perguntar o que passava por sua mente naquele momento.
Ele era o tipo de pessoa que atraía atenção, mas, ao mesmo tempo, tinha uma aura de mistério que o fazia parecer ainda mais distante. Com um sorriso nervoso, pegou o guardanapo e estendeu para ele. Ele a olhou, um pouco envergonhado, e então fez algo que a pegou de surpresa: sorriu.
— Obrigada.
— Sem problemas. — Ela estica a mão, pedindo a xícara de volta. — Vou encher para você de novo.
Pela primeira vez naquela noite, quase uma hora após ele ter chegado, pedido seu café e mergulhado no celular — o dedo deslizando repetidamente pela tela, como quem se perde em um feed infinito —, o homem levantou a cabeça.
— Tem certeza? — Perguntou, educadamente.
— Sim. Mais açúcar?
Ao voltar para encher a xícara de café dele, ela pode sentir os olhos dele enquanto ele a observava silenciosamente no canto. Ele assentiu, observando-a despejar um pouco mais de açúcar em sua xícara.
Ela podia sentir o olhar dele fixo nela, e isso a fazia se sentir desconfortável, quase vulnerável. Qualquer olhar prolongado seria constrangedor, mas o dele era ainda mais.
— Obrigada. — Ele pegou a xícara, e por um breve instante seus dedos tocaram os dela, como um relance de calor inesperado. Seus olhos se encontraram, e ele sorriu de forma quase tímida, enquanto um leve rubor começava a colorir suas bochechas.
— De nada. — Ela desviou o olhar, sentindo-se nervosa com a interação. Ele sorriu divertido, notando a diferença de reação dela.
Por um instante, eles ficaram ali, presos em um silêncio cheio de tensão sutil. Ele parecia hesitar, queria dizer algo, mas temia ser direto demais e acabar assustando-a. Ela, por sua vez, parecia distraída, mas receptiva. Inspirando fundo, ele decidiu arriscar e continuar a conversa.
— Trabalha aqui todas as noites? — Perguntou, tomando um gole de café.
— Quase.
— Deve haver muitos personagens interessantes que chegam a essa hora da noite.
— Bem... O que te traz aqui... — Ela olhou para o relógio na parede. — às 5:45 da manhã? Deve haver uma história, não? — Ele riu, os cantos dos olhos enrugando em diversão.
— Eu só não consegui dormir, então vim aqui para tomar um café.
rodou pela cidade por alguns minutos, vendo sua conta de táxi aumentar consideravelmente. Entre festas lotadas e pessoas passeando pelas ruas, ele percebeu que não havia muitos lugares abertos. O café, com sua luz amarelada e aparência simples, foi o único estabelecimento que encontrou após quase uma hora dentro daquele carro.
— Insônia?
— É uma bênção e uma maldição, eu acho. — Ele toma mais um gole e murmura em aprovação. — Isso aqui está muito bom! — Contou, olhando-a por cima do óculos. Ele se inclina um pouco mais perto do balcão depois que ela assentiu. — Posso saber seu nome? Não gosto de me referir a você como “a barista bonitinha” na minha cabeça.
— Ah. — Ela engoliu em seco, forçando um sorriso suave enquanto se concentrava em limpar o balcão ao lado deles, evitando o olhar dele. — Eu sou .
. — Ele repetiu, saboreando a maneira como seu nome soa em sua voz e tentando imitar a pronúncia dela. — É um nome francês?
— É um... — Ela refletiu por um segundo. — Quase latino.
— Você é espanhola?
— Não. Eu sou... — Ela parou para pensar por um segundo e riu levemente, como se estivesse rindo de uma piada interna consigo mesma. — De muitos lugares, na verdade. Mas nasci na Colômbia.
— Isso explica seu sotaque. É bem charmoso. — Ele se inclinou um pouco para trás, não querendo mais ficar inclinado no balcão e dar impressão que estava a encurralando. — Eu sempre quis visitar. A cultura, as pessoas e, claro, o café. — Ele levantou sua xícara com um sorriso brincalhão. — Você parece ter trazido um pedacinho dela para cá.
Ela abaixou a cabeça, tentando esconder o rubor que ela sabia que estava em seu rosto. A eloquência e segurança com que ele falava era intimidante e.. apaixonante?
— Obrigada, — Murmurou. — eu tento.
Ele percebeu o brilho nostálgico nos olhos dela e sentiu que havia uma história por trás de suas palavras. No entanto, não queria ser invasivo. Em vez disso, deu um gole no café e, com um leve sorriso, mudou de assunto.
— Estou começando a achar que você tem algum tipo de ingrediente secreto neste café. É viciante e muito saboroso.
— Ah, tem sim. Se chama ‘o café que sobrou depois de um dia inteiro'.
Eram quase seis da manhã, ela era a única presente no local, ela que não ia fazer um café novo para apenas um cara, nem mesmo o bonitinho e famoso. Ele riu, gostando da sua inteligência e honestidade inesperadas.
— Ah, entendi. O ingrediente secreto é 'barista cansada que só quer que esse turno acabe'. Anotado.
— Exato!
Ele leva a xícara até os lábios novamente, seu olhar nunca a deixando, tomando um gole do café como se estivesse contemplando seu sabor único. Ele se recostou na cadeira estofada, relaxado e curioso.
— Então... é Ano Novo. — Ele colocou a xícara vazia e apoiou os braços no balcão. — Imagino que a maioria das pessoas não esteja acordada a essa hora, mas aqui está você, de olhos bem abertos e servindo café.
— Alguém tem que fornece a cafeína para os notívagos. — Ela imitou a postura dele, inclinando-se no balcão do outro lado, mantendo uma distância pequena, mas respeitosa, entre eles. — Muitas pessoas escolhem passar em um café depois das caóticas festas de Ano Novo, mas geralmente depois das cinco, as coisas se acalmam.
— Aposto que você viu muitas pessoas cansadas passarem por aqui.
— Oh, eu vi muita coisa hoje... Você acredita que um cara apareceu às cinco da manhã pedindo café enquanto eu estava prestes a fechar?
— Que cara descarado, perturbando a paz das suas rotinas matinais. — Ele pensou por um segundo e se inclinou um pouco mais perto e baixou a voz, como se estivesse compartilhando um segredo. — Mas cá entre nós, parece que foi uma boa decisão.
Seus olhos percorreram o rosto de , explorando cada traço com uma curiosidade quase palpável. Ela notou o olhar intenso e, sem conseguir evitar, um leve arrepio subiu por sua espinha.
— Então, — Ele pigarreou, voltando a se encostar na cadeira. — Teve algo mais ou você está me dizendo que essa foi a coisa mais louca que aconteceu aqui hoje à noite?
— Bem... — Ela pensou por um segundo. — Teve o cara vestido de cowboy que pediu um cheesecake e um suco de limão, comeu uma fatia e foi embora. Teve um casal que fez sexo no banheiro. Ah, e a garota que pediu três sacos cheios de pão e muffins e foi ao cinema. Nada muito louco, mas definitivamente não são histórias que você vê na véspera de Ano Novo.
— Um cowboy, um casal safado e uma cinéfila amante de pão, — Refletiu, rindo. — Acho que você estava me escondendo algo. Sua vida neste café é mais interessante do que você deixou transparecer.
— Nem toda noite é assim. A maioria das noites é bem tranquila, mas a véspera de Ano Novo traz um tipo diferente de público.
— Então... você não é apenas uma máquina de café. Você também é uma colecionadora de histórias intrigantes de clientes. Eu me sinto privilegiado por fazer parte do capítulo desta noite. Vamos falar sobre o Cowboy Cheesecake Man primeiro. Como foi a conversa? Ele pelo menos gostou da única fatia que comeu antes de sair?
— Não tenho ideia, eu estava muito ocupada tentando tirar o casal safado do nosso banheiro. Mas o Cowboy Cheesecake Man deixou uma gorjeta enorme, então, ele é oficialmente o melhor da noite.
— Espere, o Cowboy Cheesecake Man é o melhor? Acho que o melhor prêmio deveria ser para o insone que chegou às cinco da manhã para flertar com a barista bonita.
— Claro, claro. O insone com charme certamente pode até levar o prêmio principal. — Ela riu, divertida com a brincadeira. — Mas não despreze o Cowboy Cheesecake Man. Ele deixou uma gorjeta generosa. Isso conta muito pontos.
— Ah, ele deixou uma boa gorjeta, hein? — Ele assentiu, fingindo contemplação. — Bem, acho que não posso competir com isso. Quer me contar mais enquanto eu a ajudo com isso? — Questionou, apontando para a pia.
— Você quer limpar a louça suja comigo enquanto eu conto histórias estranhas? Que noite de Ano Novo, não? — Ele riu e se levantou, pronto para ajudar. — Eu não sou uma grande contadora de histórias e não sou muito de falar, mas posso tentar. Ok, então sobre aquele casal...
começou a falar, e escutava em silêncio, algo raro para ele, que costumava ser o que mais falava. Mas naquele momento, ele não sentia necessidade de interromper.
A atmosfera entre eles era aconchegante e íntima, apesar do café vazio e dos pratos esperando para serem lavados. Ele pegou alguns pratos e os colocou perto da pia, olhando para ela de vez em quando, observando suas expressões faciais e ouvindo cada palavra que ela dizia. Ela continuou a falar, descrevendo o caos daquela noite. Ele podia ver o um indício de um sorriso divertido em seus lábios.
Ele estava completamente cativado, não apenas pela história, mas por . Cada palavra que saía de sua boca o atraía mais, como se houvesse algo magnético em sua presença. Por um breve instante, ele se esqueceu completamente dos pratos sujos e do ambiente ao redor, mergulhado no sotaque indefinido e lábios cheios de .
Enquanto eles continuavam a limpar, a conversa continuou a fluir naturalmente. se viu compartilhando histórias de sua própria intimidade. Ela ouviu atentamente, ocasionalmente interferindo com uma pergunta ou um comentário, mantendo a conversa animada. A brincadeira fácil e os sutis tons de flerte continuaram, tornando a noite ainda mais agradável.
— Aposto que você teve que lidar com muitos convidados bêbados e possivelmente desagradáveis no passado, certo? — Disse, enquanto começava a ajudá-la a limpar as mesas sujas após terminarem as louças. Ela riu, apreciando sua disposição em ajudar.
— Oh, você não tem ideia. Pessoas bêbadas podem ser imprevisíveis e divertidas.
— Sério? Você acha divertido lidar com pessoas bêbadas? Ou você é apenas uma alma paciente que vaga entre nós, meros mortais?
— Pessoas bêbadas podem ser irritantes, mas também são muito sinceras e nem sempre estão felizes. Pessoas bêbadas tristes são quase sempre interessantes.
— Você está certa. Eles podem ser uma mistura fascinante de emoções cruas e confissões inesperadas.
— Uma vez, um cara entrou aqui, claramente lidando com alguma coisa e pesado. Ele pediu uma dose de uísque. Achei curioso, já que isso é um café, não um bar, mas comecei a ouvir enquanto ele desabafava sobre amores perdidos e sonhos despedaçados. Foi como uma mini sessão de terapia improvisada — Lembrou, com um sorriso leve, a voz carregada de uma mistura de diversão e empatia.
— Acho que isso faz parte do charme. Um café não é apenas um lugar para tomar café. É um ponto de encontro, um lugar para as pessoas se abrirem e compartilharem suas histórias.
— Foi isso que te trouxe aqui hoje?
Ele parou por um momento, a pergunta o pegou desprevenido.
— Acho que sim. Mas eu não esperava ter sua companhia e histórias interessantes para me manter entretido.
— E falando sobre voyeurs, café colombiano e pessoas bêbadas.
— Sim, de fato. Uma combinação e tanto. — Ele sorriu, um brilho brincalhão em seus olhos e, em seguida, seu tom se tornando um pouco mais sério. — Posso perguntar uma coisa? Por que você está trabalhando na véspera de Ano Novo, afinal?
Ela parou o que estava fazendo por um momento, suas mãos pairando sobre as xícaras que estava empilhando. Ela olhou para ele, um pouco surpresa pela seriedade inesperada em seu tom.
— Bom, eu realmente não tinha planos para esta noite. — Ela pensou por um segundo, colocando os pratos sujos na bandeja. — Eu não tinha mais para onde ir. Um amigo pediu para trocar de turno. Então...
Ele percebeu a nota de melancolia na voz dela, talvez aquilo sugerisse que sua resposta ia além de uma simples mudança de turno. Com cuidado, colocou as xícaras sujas de lado e se recostou na mesa, os olhos fixos em .
— Ah, então é uma questão de acaso e conveniência.
— Algo assim, sim... E você?
Ele refletiu sobre a pergunta dela por alguns instantes, ponderando silenciosamente as próprias razões que o haviam levado até ali naquela noite.
— História parecida, eu acho. — Ele admitiu, melancolicamente. — Sem planos, ninguém para passar a noite. Só eu e meus pensamentos, uma xícara de café e agora... você.
— Acho isso difícil de acreditar. — Ele ergueu uma sobrancelha, questionando silenciosamente sua fala. — Um cara charmoso, bonito e famoso? Sim. Vamos quebrar o gelo aqui e dizer o óbvio. Você é um popstar sem lugar para ir à véspera de Ano Novo, é um pouco incomum.
— Bem, quando você coloca dessa forma, parece bem incomum, não é? — Ele sorriu, surpreso com a franqueza e abordagem direta de .
— Para ser honesto, estou me sentindo um pouco cansado dos holofotes ultimamente. Hoje à noite, eu só precisava de uma pausa, um momento de paz. E aqui estou. — olhou ao redor do café vazio, a atmosfera tranquila contrastando com as comemorações agitadas do lado de fora. — Mas e você? Por que uma mulher jovem, inteligente e bonita como você não tem para onde ir no Ano Novo?
Ela fez uma pausa, surpresa pelo elogio inesperado. Uma risada suave escapou, uma clara tentativa de disfarçar o impacto que as palavras dele tiveram sobre ela. Concentrando-se em empilhar os pratos limpos, ela procurou recuperar a compostura. Por um momento, parecia distante, presa em pensamentos antes de finalmente responder.
— Eu só... trabalho bastante.
— Parece que você é bem comprometida com seu trabalho. – analisou a expressão aparentemente cansada de . – É por escolha ou necessidade?
— Ambos. Não é assim com todo mundo?
— Até certo ponto, sim. — Ele se empurrou para fora do balcão e começou a andar pelo café, estudando as cadeiras e mesas vazias, procurando por louças perdidas. — Mas às vezes, mesmo que seja uma escolha, pode parecer mais uma necessidade do que uma escolha, certo? Porque a alternativa pode ser ainda pior. — Ele procurou por uma dica dos pensamentos não ditos dela em sua expressão fácil, mas não obteve sucesso. — É assim para você?
Suas mãos pararam de trabalhar e, por um breve momento, ela pensou que podia mentir e ignorar com uma resposta casual, mas algo nos olhos dele a fez hesitar.
— Sim, é assim para mim.
Havia uma pitada de tristeza na voz de , um cansaço que não se limitava ao físico. Ele percebeu que aquelas palavras escondiam mais do que ela deixava transparecer, porém, preferiu não insistir.
Havia algo indefinido nos olhos de . Ao mesmo tempo que pareciam cheios de vida e curiosos, prontos para uma nova descoberta, também havia um toque de melancolia, como se ela já tivesse vivido sete vidas em uma só.
— Às vezes a vida não nos dá muitas escolhas, não é?
Ela não respondeu, apenas sorriu suavemente, um gesto que parecia ao mesmo tempo uma confirmação silenciosa e uma despedida do assunto. Em seguida, voltou a limpar as mesas com a mesma calma de antes. Percebendo que ela não daria mais detalhes, ele decidiu não insistir. Em vez disso, permaneceu em silêncio, observando-a enquanto ela trabalhava, cada movimento simples e meticuloso parecendo mais significativo do que deveria.
Depois de alguns momentos de silêncio, ele falou novamente, mudando de assunto para aliviar a atmosfera pesada.
— Então, há quanto tempo você trabalha aqui?
— Um pouco mais de um ano agora, eu acho. A dona é mãe de uma amiga, foi assim que consegui o emprego.
— Parece nepotismo para mim. — Suas palavras eram brincalhonas, provocantes, mas também misturadas com curiosidade genuína sobre o passado dela. Ela revirou os olhos, sorrindo divertida com a acusação nem um pouco verdadeira. — Posso te perguntar mais uma coisa? – Ela parou de limpar momentaneamente, uma pitada de surpresa e leve cautela se misturaram em sua expressão, mas ela assentiu. — E a família? Você não tem parentes com quem possa passar a noite?
— Uau, você realmente não desiste. — Rindo, evitou olhá-lo diretamente, não queria que ele visse a expressão desanimada. — Eu tenho uma mãe, uma irmã e uma prima. Todas elas moram na Colômbia, no Brasil e, eu acho, na Espanha. Não tenho certeza.
— Você não mantém contato com elas?
— Hmmm, — Ela pensou por um segundo. — Eu vi minha irmã ano passado, minha prima talvez no carnaval de 2013 e minha mãe... Acho que eu tinha vinte e poucos anos da última vez que a vi.
— Vinte? — Seus olhos se arregalaram de surpresa. — Deve ser difícil. — Começou, mas fez uma pausa, procurando as palavras certas.
— Não somos muito próximas. É uma longa história. – Ele percebeu a resignação em seu tom, um cansaço que parecia carregar algo mais profundo. Embora não quisesse bisbilhotar nem invadir a vida dela, sentiu crescer dentro de si o desejo de entender o que ela escondia por trás daquela fachada exausta. — É melhor assim, acredite em mim. E você? Qual é a sua história de Ano Novo?
— Bem, meu último Ano Novo passado foi passado em grandes festas, cercado por câmeras, champanhe e sorrisos falsos. — Ele se inclinou mais perto, sua voz caindo para um murmúrio baixo, como se estivesse compartilhando um segredo. — É um circo, e eu era a atração principal. Então, este ano, decidi quebrar o ciclo. Eu não queria lidar com tudo isso. Só queria um pouco de paz e sossego, um tempo para mim.
— Sem família esta noite também? – Ele apenas negou com a cabeça, mas diferente dela, não parecia ter uma história sobre isso. — Uma celebridade sozinha na véspera de Ano Novo. — Um leve sorriso brincou em seus lábios.
Ele se recostou, sua expressão ficando séria novamente, uma pitada de vulnerabilidade em seus olhos enquanto falava. — Às vezes, eu só quero uma noite como esta. Apenas uma noite de paz e tranquilidade, sem... falar, eu acho. O que é irônico nisso tudo é que eu estou perfeitamente satisfeito de passar a noite falando com uma certa barista que conheci.
A menção ao trabalho dela a fez sorrir, enquanto um leve rubor tingia suas bochechas. Ao ouvir sua confissão, a sinceridade dele a pegou de surpresa. O astro pop — aquele rosto famoso que ela conhecia apenas por trás de uma tela — estava agora ali, sentado à sua frente, revelando sua exaustão e seu desejo simples por um pouco de paz.
— Você só diz isso porque quer que eu lhe dê mais café colombiano, não é? — Ela o provoca, piscando.
— Ah, você me pegou. — Riu, uma pitada de brincadeira em seu tom, fingindo derrota. — Eu tenho planejado secretamente a noite toda para conseguir mais daquele delicioso café colombiano. Mas, por favor, não conte a ninguém meu segredo. Não posso deixar que as pessoas saibam que eu, uma celebridade, sou viciado em cafeína e posso ser subornado com café. Especialmente colombiano.
— Sinto muito, Sr. Celebridade, mas vou dar essa informação para a primeira revista que chegar até mim.
— Não, se a mídia descobrir que minha obsessão pelo café colombiano... — Exclamou, seus olhos arregalados em uma falsa angústia.
— É melhor você parar de me dar todas essas informações. — se inclinou na mesa, imitando sua expressão corporal também. — Se a revista People ou o The New York Times ligassem, eu não conseguiria dizer não. O mundo precisa ter uma reportagem tão preciosa.
— Quem sabe o que os tabloides fariam com uma história tão... relevante. – Riu, divertido da atuação exageradamente dramática da mulher.
— Deus, já posso ver as manchetes. 'Exposed: Um caso de vício e amor com o café colombiano: a indústria mundial do café em choque'.
Ele assistiu rindo, encantado com a sinceridade do som de sua risada. Sorriu involuntariamente, Não era sempre que ele ouvia alguém rir de forma tão espontânea, sem nenhuma tentativa de impressioná-lo.
— Uau, olha isso.
O olhar dele, o modo como percorreu seu rosto, deixou um pouco constrangida, mas também fez seu coração bater mais rápido. Ela engoliu a risada, tentando disfarçar a reação.
— O quê?
— A sua risada, é... Não, é só... — Ele balbuciou, parecendo embaraçado pela primeira vez na noite. — Você tem uma risada bonita. — Disse, simplesmente. — É... revigorante, eu não ouvia esse tipo de risada há séculos. É... diferente, genuína.
— Ah... Obrigada. — Murmurou, evitando contato visual por um momento, suas mãos subconscientemente brincando com o pano de prato. — Uau, você é realmente... bem direto para um cara que se diz introvertido de coração.
— Eu tenho meus momentos. — Admitiu, dando de ombros. — Além disso, acho bastante libertador compartilhar meus pensamentos aqui com você, sabendo que não há câmeras nem público, apenas... nós.
— Você que pensa, a People e o New York Times estão logo ao lado. — Ela brincou, entregando a bandeja a ele, sem desviar o olhar dele dessa vez.
— O quê? — Ele fingiu choque, seus olhos se arregalando e uma mão voando para sua boca, brincando junto com ela. — Bem, se for esse o caso, acho melhor parar antes que nossas confissões secretas se tornem virais.
— Há uma pequena discrepância aqui. Seu segredo é sobre café colombiano, e o meu é sobre meu horrível relacionamento mãe-filha.
— Você não precisa falar sobre sua mãe se não quiser. Se for um assunto delicado, podemos deixar para lá.
— Ou você pode me contar um segredo e estamos quites.
riu da sugestão dela, achando-a encantadora. Tinha mais do que alguns segredos, mas sabia que a maioria deles não seria exatamente apropriada para uma conversa educada. Após alguns segundos, decidiu compartilhar um segredo mais leve.
— Tudo bem, combinado. Mas promete não rir?
— Não. Não posso prometer uma coisa dessas. Mas continue.
—Então, isso é bem embaraçoso, mas... — Ele fez uma pausa. — Eu sei todas as letras das músicas de "Mamma Mia". Cada. Uma.
— Toda pessoa decente conhece todas as músicas de Mamma Mia. Eu namorei um cara que não entendeu quando eu terminei com ele usando a letra de "The Winners Takes It All".
se surpreendeu com a confissão dela e soltou uma risada alta. A ideia de terminando com alguém ao som daquela música, era hilária. Sorriu diante do segredo dela, sentindo-se pego de surpresa. Aquela pequena barista, com seus olhos cansados e uma história marcada por silêncios, escondia um amor secreto por um musical cafona.
— Mamma Mia. — ele refletiu, rindo levemente. — Eu nunca imaginei que você fosse uma fã de teatro musical. Aposto que esse cara não vai conseguir curtir uma música do Abba pelo resto da vida depois dessa experiência. Você praticamente o amaldiçoou.
— Ele mereceu. Ele me traiu.
— Que idiota. — Ele estremeceu, qualquer traço de humor imediatamente desaparecendo de seu rosto. Ela deu de ombros novamente, tentando parecer calma. — Não consigo entender como algumas pessoas podem fazer isso. Traição, seja qual for, é... bem, é uma das piores coisas que uma pessoa pode fazer, especialmente com alguém com quem ela supostamente se importa. É cruel e sem coração.
— Por que eu sinto que tocamos em algum ponto fraco?
— Talvez porque tenha. — Admitiu, seu sorriso se tornando um pouco envergonhado e se contorcendo em algo mais sombrio. — Minha ex. — Ele falou com naturalidade, mas a dor ainda tingia sua voz. Ele desviou o olhar, olhando para algum lugar além dela. — Você confia em alguém, se importa com essa pessoa, e então... ela simplesmente te trai. Isso faz você se perguntar se pode realmente confiar em alguém novamente. Mas... acho que esse é o preço que você paga pelo amor. Você se deixa ser vulnerável, expõe seu coração para alguém, e, bem...
— É estranho que tenhamos que pagar um preço pelo amor, não é?
— É uma aposta. Como... se você estivesse se abrindo para todos os tipos de mágoa e decepção. Está apostando tudo na esperança de que a outra pessoa seja honesta, mas... a banca sempre ganha. — Ele fez uma pausa, sua expressão se tornando pensativa.
— Você acha?
— A questão sobre o amor... não é apenas sobre os momentos felizes, ou os bons momentos. É também sobre os momentos ruins. A maneira como ele pode fazer você se sentir vivo mesmo quando dói.
— Especialmente quando dói. — Ela sussurra para si mesma. — É como... a dor te lembra que seu coração ainda está funcionando, que você ainda é humano, que você ainda pode sentir.
— Isso parece muito confuso? Será que há uma ironia no fato de que amar alguém significa que você também está se disponibilizando para dor e sofrimento?
— Isso é... Posso fazer um comentário incrivelmente nerd, mas isso se encaixa perfeitamente aqui? — Ele riu e gesticulou para ela prosseguir.
— Claro. Faça seu comentário mais nerd. Eu posso lidar com isso.
— Lacan tem um ensaio que diz que todo discurso é um pedido de amor. Mesmo quando estamos chorando de dor, estamos pedindo amor. Em outras palavras, há uma conexão direta entre amor e dor e... — Ela pausou, assistindo a feição dele sair de surpresa para deslumbrado. — Muito nerd?
— Não! Eu só... nunca pensei que discutiria as teorias de Lacan sobre amor e dor às cinco da manhã. Mas é... interessante, a maneira como você interpretou.
Ele não pôde deixar de ficar fascinado pela profundidade de pensamento dela. A maioria das pessoas estaria lutando para manter uma conversa a essa hora, mas ela estava trazendo à tona a psicanálise e a condição humana.
— Quanto maior o amor, maior a possibilidade de dor, o que é irônico porque estamos sempre tentando evitar a dor, mas sempre procurando por amor, seja ele qual for.
— É, é meio complicado, não é? Talvez... – Ele soltou uma risada irônica, balançando a cabeça em diversão irônica. – talvez a dor seja apenas o preço que pagamos por esse potencial de amor, sabe? A troca, o risco, por uma chance de algo incrível.
— Ou talvez seja apenas a condição humana, querer para sempre coisas que não podemos ter, temer a dor, mas ansiar pelo amor, essas coisas...
Com fascínio e melancolia, não conseguiu disfarçar o sorriso ao vê-la voltar a limpar a mesa, como se não tivesse acabado de citar Lacan e discutir a psicanálise do desejo com ele.
— Você é uma mulher cheia de surpresas, .
— Sou uma mulher com muito tempo livre, presa neste café a noite toda. — ela ri, agridoce. Ela simplesmente deu de ombros, um pequeno sorriso nos lábios. — Mas ei, você sabia que amor e dor em espanhol e português rimam? 'Amor' e 'Dolor'. Interligados, não apenas no sentido emocional, mas até mesmo em seu som.
— Você não pode ter um sem o outro. – Ele refletiu, meio surpreso e admirado com as próprias constatações.
— É estranho como algo tão complexo pode ser resumido em duas palavras simples que soam quase idênticas. É por isso que os melhores poemas sobre amor e sofrimento são sempre latino-americanos.
— Vou acreditar em sua palavra sobre os latino-americanos. Meu espanhol é limitado a 'hola' e 'dos cervezas, por favor'. Você tem uma certa superioridade linguística sobre mim.
— Fofo. – soltou uma risadinha leve, porém, se amaldiçoou mentalmente ao perceber que havia falado seus pensamentos em voz alta, soltando uma risadinha suave.
— Você está elogiando meu espanhol limitado ou minha incapacidade de pedir mais do que cerveja? — Ele levantou uma sobrancelha, um sorriso brincalhão em seus lábios.
— Quem não acharia fofo que um homem adulto pedindo cerveja com esse sotaque? — Ela revirou os olhos brincando, sentindo-se um pouco incomodada por seu deslize.
— Ei, cerveja é uma palavra muito crucial e complexa, ela merece toda a minha capacidade de aprendizado.
— Claro, por que se preocupar em aprender coisas como 'por favor' e 'obrigado' quando 'cerveja' cobre todas as suas necessidades de comunicação, certo? Embora... — Ela desviou o olhar para a janela. — Já é a primeira manhã de Ano Novo.
Ele seguiu o olhar de até a janela e viu a tênue luz do amanhecer surgindo do horizonte. Ele foi atingido por uma estranha percepção de que a conversa os havia levado pela noite e pelo dia. Horas se passaram, mas pareceram minutos. Ele se virou para ela, estudando seu rosto enquanto a primeira luz do Sol o tocava.
— Manhã de Ano Novo...
— A manhã do primeiro dia do ano sempre pareceu muito... confusa para mim. – Confessou. encarava o perfil do rosto dele com bastante atenção, enquanto ele analisava o tempo lá fora. – Como se fosse um limbo, um portal do tempo aberto. A cidade está vazia, há muitas pessoas saindo de festas, poucas coisas estão funcionando... É meio desconfortável para mim.
— É que tudo parece... suspenso no tempo, de alguma forma. — Acrescentou, um sorriso se espalhando lentamente por seu rosto.
— É a primeira hora deste mágico primeiro dia do ano e eu estou lavando pratos. Sim, um novo começo, realmente. — Replica, sarcasticamente.
— Me lembre de convidá-la para minha festa de ano novo no ano que vem. Vai ser uma verdadeira loucura, eu prometo. Louça, roupa para lavar...
— Ficarei feliz em recusar.
— Você recusaria um convite para minha festa exclusiva de Ano Novo? Vou ter que sequestrar você e forçá-la a comparecer. — Ele se recostou na cadeira, cruzando os braços atrás da cabeça. — Então, veja bem, não é que eu queira você lá por amizade. Na verdade, é um movimento estratégico da minha parte. Alguém precisa fazer o café.
— Amizade? Já chegamos lá? — Ela o provoca, cruzando os braços. — Eu não vou aceitar isso. Não até... — Ele ergueu uma sobrancelha, curioso, inclinando-se levemente para ela enquanto ela se aproximava. Um toque de intriga brilhou em seus olhos. — Eu me apresentei a você. Você deveria fazer o mesmo.
Reconhecendo a justiça no pedido dela, ele se aprumou na cadeira e estendeu um braço para frente.
— Sou , ator de profissão, viciado em cafeína por opção e agora, discuto Lacan nas horas vagas.
— Prazer em conhecê-lo, . Eu sou .
Ele pegou a mão dela, seus dedos pequenos e delicados transmitindo um calor inesperado que fez um arrepio descer pela espinha dele. Era algo simples, mas o toque parecia carregar uma intensidade que ele não sabia explicar. Seus dedos hesitaram por um momento e ele teve que engolir a sensação antes de conseguir falar. Ela assentiu, um movimento quase imperceptível, enquanto se voltava para fechar os armários e apagar as luzes do café. A suavidade de seus gestos, a maneira como ela se movia com calma e propósito, fez a noite parecer mais silenciosa, mais íntima. Ele ficou ali, por um instante, sem saber se deveria dizer algo ou apenas observá-la.
Ela, por outro lado, ainda não o olhava diretamente, mas estava tranquila, como se gestos assim fossem naturais em sua rotina. Quando os olhos de finalmente encontraram os dele, seus olhos estavam cansados, mas havia algo de acolhedor ali. não sabia, mas estava deixando a mostra um lado dela que geralmente não mostrava para os outros.
Havia algo estranhamente íntimo sobre o fechamento silencioso e noturno do café, os sons suaves de seus movimentos e as luzes fracas projetando sombras fazendo o momento parecer quase onírico. Eles trabalharam em um silêncio quase sincronizado, com uma reconfortante familiaridade entre eles.
Com o ambiente finalmente limpo e arrumado, eles ficaram ali na semiescuridão. Um momento de silêncio paira entre eles após o trabalho concluído. Ele tenta encontrar algo para dizer, algum comentário leve ou observação amigável, mas tudo o que consegue é uma desanimada constatação.
— Então... é isso?
— Sim... é isso, eu acho.
hesitou, de repente se sentindo relutante em quebrar o feitiço que aquela noite parecia conter.
— Ainda é um pouco cedo. Talvez... nós poderíamos... — A sugestão pairando no ar, as implicações de ficarem mais tempo juntos claras, mas incertas.
— Tomar um café? — Ela brinca, ironicamente. Ele solta uma risada curta e meio abafada da piada dela, o clima sério momentaneamente aliviando. — Bem... eu moro duas ruas abaixo. Eu costumo ir andando para casa.
— Posso... te acompanhar?
A pergunta pairou no ar entre eles, ambos sabendo que implicava algo além de apenas ser educado. Ela assentiu, sorrindo levemente. Uma pequena onda de alívio tomou conta de .
Os dois saíram do café e o ar fresco da manhã os envolveu imediatamente, contrastando com o calor acolhedor do interior. Ficaram ali, lado a lado, em silêncio, enquanto ela girava a chave na fechadura. A rua estava estranhamente silenciosa, como se o mundo ainda estivesse dormindo, sem pressa para começar o novo dia. Ela olhou ao redor, quase como se procurasse se certificar de que o caminho estava claro. Apontou para a rua e começou a caminhar.
Eles caminhavam lado a lado, a cidade assustadoramente vazia àquela hora, oferecendo uma privacidade estranha e rara. O barulho dos seus passos era o único som que quebrava a calmaria, enquanto as luzes fracas das ruas se misturavam com o amanhecer do dia. O silêncio, embora confortável, deixa uma lacuna a ser preenchida, e depois de mais alguns momentos de silêncio, ele decide falar.
— Esta é uma hora estranha para uma caminhada. – Ela assentiu, olhando ao redor enquanto caminhavam, concordando. — Temos a cidade inteira para nós.
a observa enquanto caminham um pouco mais. Algo sobre aquele momento, o silêncio, a caminhada e o fato de serem quase os únicos acordados na cidade, faz com que ele queira falar, tomar uma atitude e ver onde a noite poderia levá-los.
— Quero que você saiba que adorei ouvir seu eu nerd falando sobre suas paixões. E seu conhecimento sobre Lacan. – Comentou, passando a mão pelo cabelo após tirar o óculos de grau do rosto e guardar no bolso. – Por que você não me conta sobre uma de suas próprias ideias? Sobre o mundo, a vida, qualquer coisa. Prometo não psicanalisar você, pelo menos não com Lacan.
Ele só queria ouvir falar.
— Ah... Não é tão fácil para mim. Você é tão articulado, um ótimo contador de histórias. Eu sou apenas... uma garçonete.
— Uma que cita Lacan e tem a habilidade de me calar com algumas palavras bem escolhidas não é apenas uma garçonete. — Ele olhou para ela por um momento, admirando a maneira como ela andava e como seu rosto ficava iluminado com a luz fraca do sol. — Que tal uma teoria sobre o desejo? Eu adoraria ouvir como Lacan interpreta as complexidades do desejo, especialmente no contexto do nosso... encontro incomum.
— É esse o caso aqui? Desejo? — Ele deu de ombros, uma pitada de arrogância brincalhona em seu comportamento. — Bem... Considerando que Lacan era um velho nascido no início do milênio, ele provavelmente acharia bastante escandaloso para uma jovem como eu andar sozinha nas ruas, acompanhada por um jovem que eu tinha acabado de conhecer. — e dividiram uma risada com a constatação. — Ei, você sabia que Lacan disse que não existe relacionamento sexual? Mas, na verdade, isso foi apenas um erro de tradução na época. Imagine a quantidade de equívocos que surgiram devido a erros de tradução e... – Ela foi abaixando o tom da voz, quase envergonhada. – Estou falando muito, não estou?
— Eu poderia ouvir você falar a noite toda. — Eles se entreolharam rapidamente. pigarreou, envergonhado com a rapidez com que falou. — Então, para Lacan, relacionamentos sexuais não são sobre criar uma união perfeita e harmoniosa, mas sim uma colisão de dois mundos únicos.
— Uma busca sem fim por algo que nunca pode ser totalmente alcançado.
— A busca infinita por algo que nunca pode ser totalmente alcançado... É enlouquecedor e atraente, não é?
— Eu acho isso um alívio. – Ela deu de ombros, apertando a alça da mochila no ombro. Isso fez com que ele esticasse a mão, retirando o objeto do ombro de e colocasse em seus próprios. Um movimento tão natural que ela sequer percebeu. – Isso nos salva de lutar pela perfeição e aceitar que ela nunca será totalmente alcançada.
— Você realmente tem um talento especial para resumir conceitos complexos em poucas palavras, não é? — Ele sorriu, apreciando-a mais e mais. — E você está certa, pode ser um alívio. Tira a pressão, nos permite, sei lá, abraçar a jornada em vez de focar no destino final...?
assentiu satisfeita. Era reconfortante como ele conseguia completar os pensamentos dela, como se conseguisse ler sua mente. Era uma sensação agradável, e de alguma forma, até engraçada, ver como ele se alinhava tão facilmente com suas próprias ideias.
— Bem, aqui estamos. — Ela disse, sentindo uma leve pontada de relutância.
— Acho que é aqui que nossa noite termina.
Ela se virou para ele, com um sorriso suave nos lábios, mas uma pitada de relutância nos olhos. Ele entregou a mochila a ela, fazendo-a sorrir levemente.
— Obrigada por me acompanhar até em casa. Eu não costumo... — Ela parou, deixando o pensamento inacabado, talvez uma confissão que seria melhor não dizer. Não naquele momento. — Obrigada pela companhia. Não foi um feriado de Ano Novo ruim, afinal.
Uma tensão estranha encheu o ar, a atmosfera entre eles estranhamente íntima, quase como se houvesse algo mais que ele quisesse dizer, algo mais que ela quisesse fazer.
— E ei, se você quiser discutir mais sobre Lacan ou dar uma volta tarde da noite... você sabe onde me encontrar. – Ela sorriu, afirmando. Ele não conseguiu evitar rir do convite sutil, mas cheio de significado. Assentiu, sentindo uma leve excitação com a ideia de vê-la de novo, algo tentador e intrigante.
— Vou manter isso em mente. Da próxima vez, serei eu quem citará Lacan e psicanalisará seus silêncios.
Ela se mexeu um pouco, preparando-se para dizer boa noite. Ele, por outro lado, sentiu uma estranha relutância em terminar a noite. Acenando levemente, observou enquanto ela desaparecia no pequeno prédio, sentindo uma mistura de melancolia e antecipação.
O homem ficou parado por um tempo, olhando para a porta do prédio, contemplando a noite estranha e a mulher que havia roubado seus pensamentos e sua atenção. Ele respirou fundo, aceitando o fato de que seus caminhos tinham se separado por um momento.
— Ei. — ouviu a voz dela vindo de uma das janelas. Ele parou, surpreso, e olhou para cima, vislumbrando , iluminada pela luz suave. — Posso fazer uma pergunta?
— Claro. — Olhou para cima, tentando enxergar o rosto de contra a luz que vinha do céu. — O que é?
— Você acredita em coincidências? — Perguntou, seu tom contendo uma pitada de brincadeira. Ele sorriu, a pergunta parecendo estranhamente adequada.
— Normalmente, eu diria não. Mas esta noite... eu posso estar disposto a reconsiderar isso.
— Bem, considere esta noite um teste de sua nova crença.
— E que tipo de resultados você está esperando?
— Bem... — Ela começou, seus olhos sustentando o olhar imersivo que ele tinha. — como você se sente sobre uma xícara de café amanhã de manhã? Você sabe, pelo bem da ciência.
— Pelo bem da ciência? Acho que posso poupar um tempinho em nome da pesquisa científica.
— Ótimo. Nos vemos na segunda manhã do ano novo? Eu preparo o café.
— Estarei lá. — Prometeu, sua voz firme e cheia de determinação.
?
— Sim? — O som de seu nome na voz dela enviando um arrepio por sua espinha.
— Feliz Ano Novo.
— Feliz Ano Novo, .
Ele levantou a mão em um pequeno aceno, uma promessa silenciosa para si mesmo de que a veria novamente. Com um último sorriso, continuou seu caminho, sua mente repassando os eventos inesperados que se desenrolaram. Quase parecia um sonho, uma experiência surreal e emocionante que o deixou confuso e intrigado.
O sol estava apenas começando a nascer, lançando longas sombras e lavando o mundo em tons suaves de rosa e laranja. Enquanto caminhava sob o céu pálido da manhã, tinha um novo objetivo em mente. Ele sentia que este novo ano seria repleto de novas possibilidades, e ele estava determinado a explorar cada uma delas.
E enquanto caminhava, ele não conseguia deixar de desejar que o novo ano o trouxesse de volta ao caminho desta misteriosa barista, esta enigmática enciclopédia ambulante de psicanálise.
.


"Las cosas tienen vida propia, todo es cuestión de despertarles el ánima". (Cem Anos de Solidão — Gabriel Garcia Marques)





Fim.


Nota da autora: Oi, meu nome é Juliana e eu estou viciada em escrever histórias pequenas para as Expedições.
Inicialmente, isso aqui teria quase 30 páginas, mas fui informada que se encaixava nos padrões de oneshot kkkkk Cortei bastante coisa, muitos diálogos, enfim... Tem MUITA coisa que eu queria aprofundar aqui, mas não ia dar tempo de escrever mais e, sinceramente, ia perder um pouco da magia do mistério de um encontro na noite de ano novo.
Precisei beber umas cervejas pra finalmente deixar ir esses dois, que eu sinto que tem muito potencial. Especialmente, minha amada colombiana misteriosa Aimée. Masss, filho é pro mundo, né?
Espero que tenham gostado! Vejo vocês por aí!
Beijosss♥

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