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Revisada por: Júpiter

Última Atualização: 15/08/2024

O sol tocava as costas nuas de , que encarava o seu reflexo nas águas do rio Permesso, penteando algumas mechas de seu longo cabelo para trás. O correr da água era sua inspiração preferida, e a fazia cantarolar versos que desconhecia, mas que logo todos os humanos viriam a conhecer. O vento que acariciava seu rosto se encarregava de levar aquelas notas para o reino humano, onde grandes compositores seriam inspirados a escrever poesias líricas.
Poderia passar horas de seus dias ali, banhando-se nas águas límpidas e sentindo a melodia fluir de sua essência para sua boca, mas o universo tinha outros planos.
.
Ela se virou. Atrás de si, estava sua irmã, Tália. Ela usava suas vestes douradas e segurava sua famosa máscara em mãos. sabia o que isso significava.
— Ele já retornou?
— Logo estará por aqui. Calíope já solicitou nossa presença, e sabe que paciência não é a maior de suas virtudes.
— Certo — disse, sorrindo de leve, antes de soltar um suspiro e se levantar da grama. Não demorou muito para colocar suas vestes e pegar sua flauta. Colocou algumas flores entre seus cabelos porque achava que assim poderia parecer mais encantadora.
Calíope discordaria, mas ela sempre discordava.
As nove encontraram-se na clareira de Delfos, perto do templo do deus. Calíope tomou a frente, olhando para as outras irmãs com uma mistura de carinho e superioridade. não se importava. Ela só se importava com um único momento.
A luz do sol brilhou mais forte, de uma forma que cegaria qualquer mortal. Mas elas não eram mortais. O raio dourado foi tomando a forma de um lindo homem loiro, de corpo bem esculpido, vestindo apenas uma túnica e louros na cabeça, segurando sua lira. E o sorriso em seu rosto lembrava o próprio sol enquanto olhava para cada uma das nove.
— Como é bom ver minhas musas.
Todas se inclinaram em reverência para o deus Apolo.
— Meu senhor, estamos muito contentes com sua vinda — disseram, em uníssono.
E estavam mesmo. Apolo era tudo para elas. A forma que ele lhes ensinara a arte e lhes dera um propósito de vida mudou tudo para cada uma delas. E, por mais que pudessem fazer a arte sem ele, perto dele tudo ficava divino. O ar mudava, parecendo carregado de magia, conforme cada nota da lira de Apolo preenchia os arredores.
Aqueles encontros definiam a parte mais especial da vida de : compor para o deus. Ele fazia com que ela se sentisse especial, como se apenas nesse momento ela realmente ganhasse vida.
As irmãs começaram a cantar em uníssono. Todas eram versadas nas artes, mas a música era a arte de . Era o seu conforto, seu amor. Era a única maneira de viver que conhecia.
Sua voz se ergueu, inspirada, e soltou versos que não entendia, mas sentia. E sentia muito, a ponto de o sol brilhar mais forte, o vento perfumar e os pássaros entoarem junto com sua lírica.
Terminou sua poesia e colocou a mão no peito, sentindo-o vibrar. Ergueu os olhos, sorrindo, e se surpreendeu ao encontrar os olhos quentes do deus a encarando. Ele também tinha reparado em seus versos.
E, do jeito que sorriu, parecia ter gostado. Aquilo fez algo dentro de explodir.
As musas acenaram de forma sincronizada quando o sol começou a se pôr, a deixa da partida de Apolo, que sumiu no horizonte junto com o astro. sentiu o último raio acariciar seu braço de forma muito íntima, e não pôde deixar de sorrir.
Sentiu um beliscão no corpo, rompendo a sensação.
— Ai!
— Tola! — Calíope esbravejou. — Sabe que não é nosso dever nos destacar. Somos uma só inspiração, uma só voz, uma só melodia.
— Mas somos nove musas… — replicou, baixinho. Infelizmente, a irmã ouviu.
— Nunca mais faça isso. Não devemos chamar atenção dos deuses.
— Eu sei, eu não pretendia! Eu só me inspirei. Ele… me inspira.
Calíope cerrou os olhos. As outras sete irmãs ficaram em silêncio, com caras inexpressivas, exceto Érato, que sorria de uma forma levemente maliciosa. Foi Tália quem se aproximou da irmã, estendendo uma flor.
— Vamos? As estrelas já irão aparecer, e Urânia precisará estudar.
As duas caminharam, embora a musa da música ainda sentisse o olhar de Calíope queimar em suas costas.
Chegaram, então, à árvore de , decorada de flores brancas, o chão tomado da relva mais macia da região. Tália ainda segurava sua mão, com o sorriso de sempre no rosto. Não à toa era a musa da comédia.
— Boa noite, . Não se preocupe com Calíope, sua poesia hoje estava linda.
— Obrigada — ela respondeu, suspirando. — Durma com os deuses, Tália.
— Você também.
A irmã se afastou com as sombras, seguida de duas corujas que voaram noite adentro. retirou seus trajes e se deitou na base da árvore, sentindo a grama encostar por toda a base de sua coluna. Encarou o céu e percebeu que Urânia usaria muito bem a inspiração do deus Apolo. As constelações brilhavam, acenando do alto para ela. Ela acenou de volta.
Mas uma estrela continuava se mexendo pelos céus, cada vez mais próxima. Não era como as outras, era mais brilhante, era quente e… familiar.
O brilho dourado se intensificou, começando a se moldar no corpo mais lindo que já havia visto, um que ela conhecia de cor. Ela nem podia acreditar que ele estava ali, na sua frente.
— Meu senhor. — Ela se levantou e fez uma reverência.
— Olá, minha .
O coração dela acelerou com o sorriso que ele lhe abriu. Ela nunca o havia visto à noite e muito menos sozinha.
— O que faz aqui, meu senhor?
— Você estava maravilhosa hoje, sabia? Sua arte inspirou três pólis diferentes.
Ela sentiu as bochechas arderem, embora fosse de satisfação. Ela vivia pela sua arte, e ele era o senhor dela. Agradar Apolo era receber a maior satisfação possível.
— Fico feliz que a arte que nos ensinou tenha se espalhado.
O olhar dele era caloroso em cima dela, e nunca havia se sentido tão eufórica.
Apolo estendeu sua lira para a musa.
— Você quer tocar?
Ela o encarou, maravilhada.
— Senhor…!
— Apolo, . Pode me chamar de Apolo. — Ele abriu um sorriso brincalhão. — Então, gostaria?
Ela assentiu rapidamente, arrancando dele uma gargalhada tão linda quanto os hinos dos templos. Seu dia não poderia estar melhor.
Porém, assim que segurou a lira, pareceu errado não lhe oferecer nada em troca. Ela deu a volta na árvore e buscou sua flauta, estendendo-a para Apolo.
— Me acompanha? — perguntou, timidamente.
— Será um prazer.
Ele levou os instrumentos para os lábios e soprou uma perfeita nota, harmonizando com as cigarras da noite, o olhar fixo no dela. Ela segurou a lira e dedilhou, acompanhando o ritmo da correnteza do rio.
E assim ficaram por horas e horas, e sentiu uma felicidade e conexão que nunca havia sentido. Não havia sono que poderia impedi-la. Sentia que poderia passar toda a sua eternidade assim, desde que estivesse ao lado dele.
Mas tudo precisava encontrar seu fim, então, horas depois, Apolo se levantou, ajudando-a a se erguer junto com ele.
— Preciso partir. O sol irá nascer.
Ela estava corada do esforço de acompanhá-lo na música, e não pôde deixar de sentir uma ponta de tristeza com a partida dele. Mas Apolo era um deus, e um deus sempre tinha muito o que fazer.
— Obrigada pela noite, senhor Apolo.
— Eu quem agradeço. — Ele abriu um sorriso largo, e ela sentiu todo o corpo esquentar. — Até hoje.
Ele se virou, mas ela caminhou alguns passos atrás dele, impressionada, o corpo agitado.
— Irá nos visitar hoje em Delfos, senhor?
Ele se virou para trás, a aura dourada que irradiava do deus iluminando os arredores. Então, Apolo sorriu, olhando-a com intensidade.
— Não. Irei visitar você.
Então, ele foi embora. E ficou ali, as mãos na frente da boca, o entusiasmo transbordando de seu corpo. E assistiu o nascer do sol mais lindo de toda sua existência imortal.



A partir daquele dia, Apolo passou a visitar todas as noites. Eles tocavam, conversavam ou às vezes ficavam em silêncio, contemplando o céu, os corpos lado a lado. Ela nunca havia sido tão feliz. O deus sol gostava de sua companhia. Ela se sentia tão… extraordinária.
Todas as suas manhãs agora estavam mais ensolaradas, e ela não conseguia parar de compor mais e mais, a todo momento. Era impossível não se sentir inspirada pelo deus do conhecimento, das artes e da música.
Mal estava vendo as irmãs, o que não era exatamente um problema. Quando se tinha a eternidade, às vezes era bom não conviver diariamente. Em especial, com Calíope.
Naquela noite, vestiu um conjunto feito de flores azuis que se entrelaçavam em seu corpo como se brotassem de sua pele. Elas também enfeitavam seus cabelos em uma coroa de flores. Gostava de se sentir digna da presença do deus.
O brilho dourado, agora tão conhecido, refletiu nos céus, e ela sentiu seu coração acelerar em expectativa. Aos poucos, os brilhos foram se agregando e tomando a forma dele. Ela nunca deixava de suspirar.
— Meu senhor. — A musa se abaixou em uma reverência. Ele sorriu.
— Minha doce .
As bochechas dela ficaram coradas de alegria. Gostava de ser dele, e que ele fosse seu.
Três mariposas começaram a rondar sua cabeça, sussurrando em farfalhares que ela deveria se aproximar e abraçá-lo. Mas ainda se sentia tímida demais para isso, por isso apenas segurou a mão quente do deus e depositou ali um beijo.
— Muitas novidades dos céus? — ela perguntou
— O mesmo de sempre. Homens guerreando, mulheres fazendo oferendas. — Os olhos dele brilharam de malícia. — Embora hoje um homem infeliz tenha tentado cortejar minha irmã.
arregalou os olhos, sabendo como aquilo havia acabado. Ártemis, a deusa da lua, não era conhecida por ser a mais compassiva com humanos do sexo masculino.
— Em qual animal o humano foi transformado?
— Um camundongo. Sugestão minha, devo dizer.
A musa soltou uma pequena risada.
— Tália escreveu uma nova comédia essa semana e decidiu me mostrar hoje de manhã — comentou . — A peça estava linda da forma que apenas Tália consegue fazer, porém havia um problema.
— E qual seria?
— Em determinado ponto, a personagem principal, que era uma brilhante e amargurada escritora, acaba dentro de um rio sendo perseguida por gansos.
— E qual o problema nisso?
— Por coincidência, a personalidade da personagem lembra a de Calíope. E o acontecimento lembra o de uma primavera de dez décadas atrás.
Apolo soltou uma gargalhada que esquentou o peito da garota.
— Uma grandiosa coincidência.
Eles sorriam um para o outro. Então o deus estendeu a lira para a musa.
— Quero te ouvir cantar hoje.
Ela sorriu e estendeu a flauta para ele, segurando a lira dourada logo em seguida. Dedilhou de leve e sentiu seu corpo arrepiar. Ele a encarou intensamente antes de levar a flauta aos lábios e acompanhá-la. Logo, os versos começaram a escapar da boca da musa.
A música crescia ao redor deles e se intensificava cada vez que ele a encarava, e era impossível não o encarar de volta. Não havia sido à toa que Ícaro havia voado tão perto do sol, ele era irresistível.
De repente, um barulho alto estourou na floresta e diversos pássaros voaram, assustados. derrubou a lira no susto, e a música foi interrompida na mesma hora. Os olhos de Apolo se semicerraram. Sua aura, sempre calorosa e confortável, se tornou hostil e intimidadora.
— Não saia daqui, .
— Apolo…
— Eu já volto.
Ele apertou a mão da musa e sumiu nas sombras, deixando tudo estranhamente silencioso. Aquele era seu lar, mas subitamente ela estava se sentindo tensa como nunca antes. A expressão do deus era diferente de tudo o que ela já havia visto naquele rosto alegre e descontraído.
Um galho estalou e ela se virou, assustada, enquanto um vulto se aproximava.
— Apolo?
Um homem se aproximou de forma levemente desleixada, afastando algumas folhas de seus ombros. Ele definitivamente não era o deus sol.
Ela puxou o corpo para mais perto da árvore, longe do estranho, mas ele apenas a encarou de forma simpática.
— Sinto decepcionar. O que te levou à confusão? Meu sorriso deslumbrante?
Ela encarou o caduceu na mão do ser e o reconheceu como um clique.
— Senhor Hermes!
Ela já o vira conversando com Calíope antes, entregando notícias dos deuses, mas ele nunca se dirigiu diretamente à irmã mais nova.
O deus fez uma reverência animada.
— Ao seu dispor, senhorita .
Agora sim Calíope a mataria. Estava interagindo não com um, mas dois deuses sem sua supervisão.
A musa pigarreou, sem saber como aquilo funcionava.
— Ahn… Algum recado para mim?
— Não dessa vez, bonitinha. Eu estou aqui para falar com Apolo, mas queria um segundo antes com você. — Ele a olhou de cima a baixo, soltando uma risadinha.
Ela arregalou os olhos.
— Você… foi o responsável pelo barulho?
Ele abanou o ar com uma mão.
— Um favor de um sátiro bêbado, mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso — ele disse, dando alguns passos para contorná-la e encará-la de mais perto — é por que Apolo está sumido das noites no Olimpo, e por que meu caduceu o rastreou até aqui.
— O senhor consegue rastrear as pessoas?
— Eu sou um deus mensageiro, meu bem.
— E o deus dos ladrões.
Os dois se viraram para a origem da voz, encontrando Apolo com um sátiro adormecido em uma das suas mãos. Seus olhos estavam fixados em Hermes e pareciam destroçá-lo.
— Olá, Apolo, estávamos falando de você.
— Se afaste dela.
— Nós estávamos apenas conversando, não é, querida ?
Mas Apolo não esperou uma resposta. Ele se colocou na frente da musa, atrapalhando sua visão do deus mensageiro.
— O que você quer? — o deus sol perguntou, irritado.
— Atena lhe enviou uma carta, eu vim apenas entregar — Hermes respondeu, sua voz transbordando inocência.
O sátiro caiu aos pés de Hermes.
— E o que significa isso?
— Eu não sei — o deus mensageiro retrucou, mantendo sua imagem de inocência. — Eu estava apenas procurando por você e esbarrei na doce . Que coincidência que havia um sátiro por perto que o distraiu.
— Sátiros nunca aparecem nessa região.
— Às vezes, eles estão interessados em mudanças. Como você, Apolo. Afinal, o que vocês têm feito aqui todas as noites juntos?
— Arte — reencontrou sua voz para respondê-lo. Hermes a encarou, com um sorriso travesso que parecia o de sua irmã Érato.
— É uma forma de chamar.
— Seu recado foi entregue, Hermes. Você não é mais necessário aqui — Apolo o cortou, bloqueando a visão de de novo.
— E Calíope sabe que vocês estão fazendo arte? — ele ironizou.
— Hermes…
— Sabe, eu gostei dessa aqui. Muito melhor que Cassandra. Deveríamos nos ver mais vezes, musinha.
Apolo rosnou, porém, antes que pudesse fazer qualquer coisa, as asas dos sapatos de Hermes ganharam vida e ele saiu voando, levando o sátiro desmaiado consigo.
O silêncio reinou na floresta, e o deus demorou alguns segundos antes de se virar para .
— Me desculpa por colocá-la nessa situação. Hermes sabe ser um grande inconveniente.
— Está tudo bem — ela disse, encarando-o, curiosa com esse novo lado que ele deixava à mostra.
Apolo suspirou e se ajoelhou, ficando com o rosto na altura do dela.
— Me desculpe por perder a calma. Eu não gostei da forma que ele a estava incomodando.
— Não se preocupe, só me pegou de surpresa. — Ela ponderou por alguns segundos. — Quem é Cassandra?
Ele a encarou com dor, e ela ficou com medo de ter dito algo de errado. Com medo de que ele parasse de visitá-la.
— Desculpe, não quis chateá-lo.
Apolo suspirou, antes de segurar na mão da musa.
— Eu sei que não. — Ele acariciou a mão dela, distraído em seus pensamentos. — Ela é apenas uma pessoa que não gosta muito de mim. E Hermes acha isso extremamente divertido.
— Vocês são inimigos?
— Quase isso. — Apolo sorriu. — Somos irmãos.
Ela soltou uma risadinha, e ele a puxou para mais perto, os olhos dele fixados nos dela.
— Não deixe Hermes se aproximar de você. Nem nenhum outro deus.
— Nem você? — ela perguntou.
— Eu sou o seu deus. É diferente.
E ela sentia que era mesmo. Por isso, ela concordou, e sentiu que foi o certo a fazer quando ganhou um sorriso radiante em resposta.
— Você quer voltar a tocar? — ela perguntou.
— Acho que hoje eu gostaria de observar as estrelas.
Ela concordou e ambos se deitaram na relva, olhando o céu sobre eles.
De alguma forma, ver aquele lado de Apolo não a deixou assustada, a deixou apenas mais curiosa para descobrir sobre aquele deus que, talvez, não fosse tão perfeito assim. Mas isso apenas parecia deixá-lo mais interessante.


— Compus quatro novas poesias hoje — disse, timidamente, encarando Apolo ao seu lado, que passava as mãos de forma delicada no cabelo dela.
— Eu sei. — Ele sorria abertamente. — Eu ouvi tudo na pólis de Atenas. Elas eram tão belas quanto você.
Ela suspirou em deleite. Adorava quando ele a elogiava de forma tão gentil.
Já haviam se passado duas semanas desde a visita de Hermes. A princípio, havia ficado receosa, com medo que ele contasse tudo para Calíope, mas a irmã não viera procurá-la e, aos poucos, ela foi relaxando. Além disso, era difícil ficar paranoica quando o deus sol lhe fazia carícias.
— Os homens as cantaram de forma alegre? — ela perguntou, tentando não se distrair com os dedos dele em seu cabelo.
— Na maior felicidade que eu já vi.
Apolo tirou as mãos de seus cabelos, para infelicidade de , e pegou sua lira, estendendo a flauta da musa para ela. No entanto, antes que se perdessem na música, ela sentiu um ímpeto de coragem assumir sua curiosidade.
— Me conte mais.
Ele a encarou, de forma divertida.
— Quer saber sobre os homens?
— Quero saber sobre as pólis.
— Ora, são como todas as outras pólis. — Ele apontou as estrelas. — Sabe, cidades-Estados com seus templos, casas, praças.
— E o que mais? — ela perguntou, sedenta.
Apolo a encarou de lado, curioso.
— Por que tanto interesse?
— Ah… — As bochechas dela esquentaram. — Nunca conheci nada além de Delfos e aqui.
Os olhos dele se arregalaram, em choque. E ela achava que era impossível surpreender um deus.
— Nada?!
Ela fez que não com a cabeça.
— Calíope nunca deixou. Ela nos diz que é muito perigoso.
— É claro que diz — ele disse, em um tom amargurado que revelou mais uma vez aquele seu lado imperfeito tão interessante. Então, ele se ergueu, de repente, e estendeu uma mão para ela. — Venha.
— Para onde vamos? — ela perguntou, colocando sua mão na dele e se erguendo. O calor a preencheu como um broto que via o sol da primavera depois de um longo inverno. Envolta nessa energia, mal processou o que Apolo disse.
— Vamos para Atenas.
congelou e levantou os olhos para o deus, confusa.
— O quê?
— Vamos visitar Atenas. Agora. Eu a levo.
— Mas… Calíope disse…
— Não irá dizer “não” ao seu senhor, irá? — ele a interrompeu, se aproximando e acariciando a mão que continuava junto da dele.
Ela se derreteu com aquele carinho e encarou os olhos do deus, da cor do céu mais azul, com reflexos dourados.
— Tudo bem.
O brilho ao redor dele se intensificou quando ele sorriu, então a puxou de leve, a mão na dela, para andarem juntos.
— Não é muito longe daqui.
Eles seguiram caminhando durante a noite, enquanto Apolo carinhosamente ia respondendo todas as eventuais dúvidas dela, trazia curiosidades sobre os montes pelos quais caminhavam, e das estrelas acima deles. Ela começava a cantarolar versos sobre tudo o que via, sem conseguir se conter, o que o fazia sorrir e acompanhá-la.
Chegaram à Atenas pouco depois. Iluminadas apenas pelas estrelas e pela lua, as casas eram simples se comparadas com as construções exuberantes do monte Olimpo, mas tinham algo que deixava curiosa. O formato das janelas, a areia suja das estradas, os telhados rachados. Cada imperfeição trazia humanidade, e a humanidade era a coisa mais fantástica que ela poderia ver, porque era desconhecida. E Apolo observava de canto, um pequeno sorriso no rosto para cada expressão surpresa que ela fazia.
Murmúrios começaram a ressoar pela cidade, e Apolo apertou a mão de mais forte, trazendo-a para mais perto. Ela olhou para ele, assustada.
— Não se preocupe, não é perigoso — ele a acalmou. — Mas precisamos nos aproximar com cuidado.
Ela assentiu, e ele a puxou para as sombras dos troncos. Se embrenharam pela mata, o som cada vez mais alto, até Apolo puxar um galho e revelar a origem do barulho.
arquejou. Era uma praça e, em seu centro, dezenas de homens cantavam e dançavam. Uma fogueira acesa no centro, perto de uma fonte, e o barulho da água caindo se misturava com o dos instrumentos e com a cantoria dos homens. E ela reconhecia aqueles acordes. Eram os que ela havia criado naquela mesma manhã, pensando na noite anterior com Apolo, quando ambos harmonizaram com as corujas.
A musa olhou para o seu deus, os olhos brilhando.
— É a minha música. Mas está tão diferente, tão… viva.
Ela sorriu abertamente e os olhos dele arderam, a temperatura ao redor subindo conforme o corpo dele brilhava mais. Apolo a puxou para perto.
— Vamos dançar.
soltou uma risadinha.
— Ah, não. Eu não sei dançar muito bem, a musa da dança é Terpsícore.
— Eu te ensino — ele respondeu, e suas mãos desceram até encontrarem os quadris dela.
Ela engoliu em seco, tomada por diversas sensações. Mas era simplesmente impossível dizer não para o seu deus. Então, ela assentiu. As mãos dele começaram a conduzi-la, fazendo com que seus quadris se mexessem de forma que ela nunca antes havia experimentado. Sua cintura começou a ficar mais solta conforme ela entendia os movimentos que ele queria que ela fizesse, e tudo começou a ficar mais natural. Ali, na penumbra, escondidos do mundo, dançava pela primeira vez, seu corpo roçando o calor da pele de Apolo toda vez que se mexia.
Ele enfiou o rosto nos cabelos dela, respirando fundo.
— Ah, minha
Ela continuou dançando, seu coração explodindo de euforia. Era sua música fazendo as pessoas felizes, era sua dança em seu corpo, era o seu deus a tocando. Tudo estava perfeito, tudo era muito além do que ela conhecia. Ela começou a fazer o que sabia: cantar sua própria música enquanto dançava. Apolo suspirou.
— Sua voz é a coisa mais bela que eu já ouvi…
— Não seja tolo, você ensinou os pássaros a cantarem — ela disse, entorpecida da felicidade de sentir as mãos dele ainda em seu corpo.
— Mas você aprendeu melhor. Você é melhor que tudo.
Ela ergueu os olhos, encontrando os olhos dele, e perdeu o fôlego. Não era à toa que ele era o deus da beleza e da perfeição. Tudo nele era perfeito. As chamas refletiam o rosto perfeitamente esculpido e faziam desejar algo. Algo além da música, além de suas irmãs.
Faziam com que ela desejasse ele.
Os olhos dele faiscaram quando encontrou encarando-o, ansiando-o. Ele a puxou para tão perto, a apenas uma respiração de distância, e isso a fez perder o ar. Tudo parecia tão certo e tão perfeito. Sentia como se pudesse escrever dez mil anos de poesia lírica baseadas naquele único segundo.
— Eu já volto, preciso urinar! — uma voz gritou da multidão, antes de afastar os galhos. Apolo só teve tempo de afastar seu rosto e tentar colocar atrás de seu corpo, protegendo-a. Mas isso não impediu o homem de vê-los e arregalar os olhos, em choque. — Os deuses vieram nos visitar!
Apolo estalou os dedos e o homem caiu desmaiado no chão. A musa conteve um gritinho.
— Acho que nossa festa acabou por hoje — o deus anunciou, abraçando-a pelos ombros e conduzindo-a mata adentro.
De alguma forma, em menos de um minuto, saíram na floresta em que vivia, o rio Permesso correndo logo ao seu lado.
A musa ainda estava ofegante e processando tudo o que havia sentido quando Apolo tomou sua mão e depositou um beijo ali, encarando-a com ternura.
— Receio ter que ir. Mas espero que tenha gostado de conhecer a pólis, mesmo que brevemente.
— Foi perfeito — ela se apressou em dizer, e queria conseguir fazer algo para mantê-lo ali, mas sabia que não podia.
Ele tinha a mesma angústia em seus olhos.
— Não fique triste, minha musa. Sabe que eu retornarei amanhã.
— Mas os dias perderam a cor quando conheci as noites ao seu lado — ela confessou.
Ele fechou os olhos e se inclinou, encostando a testa na dela.
— Os meus também, doce . Os meus também.
Então, depositou um beijo em sua bochecha, antes de se desfazer em raios dourados que anunciavam a chegada do sol.


Quando Tália apareceu com suas vestes douradas e sua máscara, não conseguiu deixar de sorrir de orelha a orelha.
— Ele está vindo?
Ela ainda não havia se esquecido da noite anterior. Sua face formigava toda vez que se lembrava do beijo em sua bochecha, seus quadris imploraram pelas mãos do deus e sua alma suplicava por sua presença.
Tália a olhou com um leve olhar de deboche.
— Nunca a vi tão animada assim para um encontro com nosso senhor. Está esperançosa que ele note sua música novamente?
sorriu e assentiu, sabendo que não poderia falar nada sem arriscar despejar seu segredo para a irmã. E, por mais que Tália a amasse, poderia acabar contando para Calíope se descobrisse que estava se apaixonando por um deus.
Mas elas não entenderiam. Ninguém além dela e Apolo entendiam.
A musa logo estava com suas vestes douradas, uma coroa de flores e sua flauta. Sem que Tália percebesse, espremeu um morango sobre seus lábios, deixando-os avermelhados.
Elas caminharam até a clareira, e Tália não parava de fazer piadas que arrancavam gargalhadas da irmã. Mas logo se calaram quando viram o olhar de Calíope sobre elas. Especialmente sobre os lábios de . A musa da música congelou quando os olhos da irmã se afiaram e a boca se abriu em um protesto, porém a mais velha foi interrompida pelos raios dourados.
O coração de se encheu de alívio, e logo depois de amor quando viu o deus se materializar em sua frente.
Ele sorriu para todas, mas quando seu olhar encontrou , o sorriso de Apolo aumentou, assim como a temperatura.
— Minhas musas, como é bom vê-las.
Mas, quando ele disse isso, os olhos dele estavam nela. E ela sorriu enquanto se abaixava na mesma reverência ensaiada de todas.
— Meu senhor, estamos muito contentes com sua vinda.
Calíope se adiantou e conduziu Apolo para se sentar em uma pedra que, coincidentemente, era o local mais afastado de . Calíope começou a escrever, enquanto Érato tocava sua lira e a acompanhava com a flauta. Terpsícore dançava, Polímnia cantava, e todas as outras começaram a acompanhar o canto enquanto escreviam. O deus sol materializou sua lira e começou a acompanhar as suas musas.
Sua harmonia fez coro com a música conduzida por . Mesmo à distância, os olhares do deus cruzavam com os dela e ambos sorriam, a música ganhando intensidade. Não havia mais ninguém, apenas eles e a música.
As notas de Apolo alcançavam seu corpo e acariciavam seus braços, o que fazia as notas na flauta se intensificarem em resposta. Nunca havia sentido nada igual àquela conexão. Naquela música, ela dizia pelas notas o quanto o amava, o admirava e estava feliz. E, em resposta, ele dizia quão especial ela era por meio dos acordes da lira.
O sol estava quase se pondo quando terminaram, e só naquele momento percebeu que apenas os dois ainda tocavam. Todas as outras musas estavam em silêncio, olhando de um para o outro, enquanto os pássaros faziam coro para aquela canção de amor.
Mas ninguém disse nada até o deus se despedir, sumindo com os últimos raios do sol. Dessa vez, os últimos raios envolveram os quadris da musa, e ela se sentiu transportada para a noite anterior.
ainda estava sorrindo quando todas as irmãs a cercaram. O olhar de Calíope seria capaz de arrancar icor de um deus desavisado.
E o pior era que a irmã estava mostrando sua versão mais paciente.
— O que nós acabamos de presenciar, ?
A musa sentiu as bochechas corarem e o sorriso murchar.
— Na… nada. Eu… apenas me senti inspirada.
— Inspirada pela atenção de um deus! — Calíope explodiu, e os pássaros saíram voando, assustados. — Quantas vezes eu preciso lembrar-lhe? Quantas vezes você não ouviu que os deuses nos destroem?
— Cali… Eu sei que o que Ares fez com você te fez mal. Mas eu te juro que…
— Que Apolo não é assim? — Ela soltou uma gargalhada amarga. Urânia segurou no ombro da irmã mais velha. — Os deuses gostam de nós, mas só até nos arrancarem tudo. Então, vão embora. O que quer que você estivesse planejando para ter a atenção do nosso senhor… precisa parar.
— Eu apenas estava tocando!
— Não se faça de tola! Todas nós vimos.
olhou para as irmãs, buscando apoio, mas nenhuma lhe retribuía o olhar. Nem mesmo Tália. Seu coração se partiu de leve. Se as irmãs já agiam desse jeito por eles terem apenas tocado juntos, o que fariam se soubessem de seus encontros diários? Seria expulsa, isso sim.
O olhar de Calíope se suavizou quando viu que a mais nova tremia.
— Por favor, irmã. Não se destrua. Não chame mais atenção. No próximo encontro, faça como sempre: toque seus versos de forma simples.
assentiu, sem ter forças para mais nada, desanimada com a intimidação que recebia das pessoas que mais amava.
— Me prometa que não vai se envolver com ele — Calíope implorou. Os olhares das oito irmãs pesaram nas costas de .
— Mas…
— Me prometa.
Ela já estava envolvida e não conseguia se ver parando. Mesmo assim, ela assentiu.
— Eu prometo.
As duas sabiam que era mentira.
Ao anoitecer, o brilho dourado de sempre cegou a vista da musa.
— Olá, minha doce .
Ela ergueu os olhos para o deus, sentindo seu peito aquecido, mas ainda com as palavras da irmã ressoando em sua cabeça.
— Olá, meu senhor.
Ele se agachou ao lado dela na relva e suspendeu o queixo da musa, aproximando-a de seu rosto. Ele a observava com uma expressão investigativa.
— O que houve?
Ela cedeu e desmanchou ali mesmo, as lágrimas correndo por seu rosto.
— Minhas irmãs estão magoadas comigo apenas porque tocamos juntos. Calíope me fez prometer que não me envolveria com você. Nunca!
Ele a abraçou, e ela chorou em seu peito, enquanto o deus acariciava os cabelos ruivos dela. Ela ergueu os olhos, ainda tomada de emoção.
— Eu prometi, mas era mentira. Era tudo mentira porque, ah, Apolo, eu não consigo me afastar de você. Você me mostrou a razão da minha existência desde o início, e não consigo mais imaginar uma vida sem te ter ao meu lado todas as noites. E sou egoísta por desejar todas as suas manhãs também. — Ela o encarou, a intensidade transbordando por sua boca e por seu olhar. — Eu o amo, e amo de uma forma que nunca amei nada. Nem mesmo a música.
Nesse momento, os olhos dele se iluminaram, e a noite ganhou dois sóis naquele olhar. Ele segurou o rosto da musa com afeição, carinho, embora também um pouco de desespero, como se não quisesse deixá-la ir.
— Quando eu te escutei cantar pela primeira vez na clareira, quando eu realmente prestei atenção… Eu soube que nunca mais seria capaz de não olhá-la. — Ele fechou os olhos, encostando a testa na dela. — Eu venho todas as noites porque minha alma clama pela sua, e se isso não é amor, então o sol não nasce, a chuva não cai, os pássaros não cantam e os deuses não existem.
O coração dela acelerou. Ele a amava! As lágrimas voltaram a correr por seu rosto.
— Não chore, minha musa, isso parte meu coração.
— Não choro de tristeza — ela disse, entre as lágrimas —, mas sim de felicidade por ter o seu amor.
Eles se abraçaram até que as lágrimas de se desfizeram em largos sorrisos. Não se importava que as irmãs não a compreendessem, ela tinha o amor do deus que dominava seu coração.
— Adoro seu sorriso — ele disse, acariciando as bochechas dela. — É mais lindo do que qualquer constelação.
Ele acariciou o rosto dela com delicadeza e abriu um sorriso gentil. Então, ele se inclinou para perto e colou a testa na dela, encarando os olhos de . Ela sentiu aquela mesma conexão e aquele mesmo calor da noite anterior em Atenas. Por isso, não hesitou em se inclinar para frente e beijá-lo.
O mundo explodiu em cores e melodias quando os lábios se chocaram, gerando um prazer que a musa nunca havia sentido antes, nem de longe. Era como se visse o mundo por uma outra perspectiva, como se todos os seus sentimentos antes fossem apenas migalhas do que ela poderia verdadeiramente sentir.
A língua de Apolo invadiu sua boca e ela gemeu, satisfeita. Aquilo era melhor do que qualquer ambrosia do mundo. E, pela forma que ele segurava seus cabelos com desespero, ele também parecia perdido nas sensações como ela.
Não havia mais nenhuma preocupação com a irmã, a briga foi embora de sua cabeça imediatamente. Eram apenas ela e Apolo.
E, por ela, seria assim para todo o sempre.


— Apolo… Se toda vez que você vier me visitar, você ocupar seu tempo me beijando, daqui a pouco não restará mais vontade de me beijar dentro de você…
— Isso é mentira — ele respondeu, mordiscando o lábio dela. — Já se passaram três semanas e sinto que ainda posso continuar por toda a eternidade.
Ela suspirou, contente, porque sentia o mesmo em relação a ele. No entanto, ele se afastou, demonstrando imensa dificuldade.
— Porém, hoje eu gostaria de propor algo diferente.
Os olhos dela reluziram de curiosidade.
— O quê?
— Pensei em talvez encontrarmos minha irmã, Ártemis. O que acha?
— Ár… Ártemis? — ficou sem palavras, um pouco receosa. Ainda não estava completamente confortável com todo esse contato com deuses.
— Sabe, como estamos unidos, gostaria de apresentar-lhe a ela.
A musa derreteu quando escutou a palavra “unidos”, as preocupações sumindo imediatamente. Ela abriu um sorriso enorme e imediatamente assentiu, segurando a mão dele com amor.
— Não me olhe desse jeito — ele gemeu, torturado. — Ou de fato passarei o resto do dia apenas te beijando.
Ela sentiu as bochechas queimarem de satisfação.
Apolo a ergueu da grama e tomou a mão da musa da sua. Ambos adentraram a floresta, as copas das árvores bloqueando a luz da lua, que às vezes conseguiam frestas e iluminavam os amantes. Havia algo de mágico naquele local, pois de lá era possível alcançar qualquer canto da Terra. Não tardou para que sentissem cheiro de carne sendo assada e ouvissem o crepitar da fogueira, além de vozes femininas.
Mas mesmo assim nada preparou para a visão de tantas garotas jovens reunidas e nem para o cervo gigante em cima do fogo.
E nem para as caras de espanto e ódio que estavam recebendo.
— Não se preocupe — Apolo disse —, elas não odeiam você. Elas só odeiam a mim, porque sou o único homem que pode pisar aqui sem Ártemis mandar direto para o fundo do Tártaro.
— Eu não teria tanta garantia disso.
se virou na direção da voz, encontrando uma jovem reluzente, de pele marrom e cabelos platinados como a luz da lua. Seu olhar estava fixo no deus sol, e seu rosto tinha uma mistura de desprezo e carinho.
Não foi difícil entender que aquela era a deusa lua.
se agachou em uma reverência para a gêmea de seu amor.
— Levante-se, menina, e seja bem-vinda ao meu acampamento — Ártemis disse, a voz mais suave dirigida a ela. Então, voltou-se para Apolo. — Trouxe uma nova caçadora para mim?
— Apenas em meus piores pesadelos. — Ele puxou a musa delicadamente para mais perto, passando a mão em sua cintura. — Eu queria que você conhecesse .
A garota achou que poucas coisas poderiam chocar uma deusa que estava acostumada a transformar homens em pó, mas aquilo pareceu ser o suficiente.
— Pelos titãs, Apolo! Você não está se envolvendo com a irmã de Calíope, está?!
A musa murchou, sentindo-se subitamente indesejada no local. Ela olhou ao redor, vendo olhos de garotas em toda parte, todos fixados nela, enquanto as bocas murmuravam sem parar.
— Ártemis… Por favor, discutiremos isso depois. Não na frente dela.
“Ela” era , aparentemente, porque quando voltou a olhar a deusa, esta a encarava com maior simpatia.
— Me perdoe pelos meus modos. Sentem-se, vamos servir o assado. — Ela saiu, abrindo um leve sorriso, antes de lançar um olhar cortante para Apolo que dizia “conversaremos mais tarde”.
— Venha. As habilidades de caça da minha irmã não são lendárias à toa.
Eles se sentaram nos arredores da fogueira, e todas as meninas em volta se afastaram de leve. Mas não se importou, porque Apolo segurava sua mão e a encarava como se ela fosse seu mundo.
Não demorou muito para serem servidos, e teve que admitir que não saboreava uma carne assim há tempos.
Ártemis se sentou perto deles, atraindo os olhares felizes pela primeira vez para aquele lado da fogueira.
— Aqui é um lugar lindo — a musa disse, se esforçando para quebrar o gelo. — Existe uma aura diferente… sem contar a cumplicidade de vocês.
— É um local seguro de predadores, quero dizer, de homens — Ártemis concordou. — E criamos uma irmandade única, de fato. Sabe, você poderia se juntar a nós.
— Ártemis… — Apolo rosnou.
— Você apenas terá que largar o idiota do meu irmão. Duas vitórias em uma.
— Como você é engraçada, não? — Apolo alfinetou. — não irá a lugar nenhum, ela é muito importante servindo o mundo com sua música.
Um calor percorreu o corpo da musa que não veio da fogueira.
— Que seja — Ártemis respondeu, dando de ombros. — Uma pena, você parece uma boa garota, .
— Muito obrigada.
— Aliás, ouvi muito a seu respeito. Embora tenha sido por Hermes. Apolo, você teria como respondê-lo e pedir que pare de encher minha paciência? Minhas caçadoras já o acertaram duas vezes essa semana.
— E como eu faria isso? Ele não me escuta.
— Quem dirá a mim. Mas ele está apenas carente, com saudades suas.
— Ele quer me embebedar, isso sim. Você sabe que ele não perde a chance de me entorpecer para roubar alguma coisa. A última foi a carruagem do sol.
abafou uma risada ao imaginar a cena.
— A culpa é exclusivamente sua, se você permite que ele roube algo do tamanho de uma carruagem na sua frente.
— Ele me embebedou!
Não demorou para que ficasse um pouco mais à vontade ao observar a relação dos irmãos. Eles pareciam íntimos e, apesar de muito diferentes, tinham em si aquela energia de que se defenderiam contra o mundo, se necessário. Ela não sabia se poderia considerar o mesmo com suas irmãs.
. — A voz da deusa a despertou de seus devaneios. — Poderia tocar algo para nós? Seria uma desonra estarmos na presença de uma musa e não escutarmos a sua arte.
sentiu uma felicidade imensa tomar conta de si, então olhou para Apolo. Ele a encarava com afeição, incentivando-a. A musa assentiu, feliz, e o deus fez a lira se materializar, estendendo-a para ela.
Apesar de a princípio ter ficado intimidada, estava contente de estar ali, de ter a oportunidade de conhecer mais do mundo, de ver aquela irmandade, de ver o seu amor tão bem com sua irmã e disposto a apresentá-las. Por isso, quando dedilhou a lira, procurou externar toda a felicidade dos últimos tempos de sua vida, todas as mudanças, todas as novidades e todos os sentimentos.
As garotas começaram a acompanhar o canto, se empolgando, e algumas até se levantaram para dançarem ao redor da fogueira. A cena fazia rir de alegria e acelerar a canção, enriquecê-la. Palmas foram incorporadas no ritmo e versos logo começaram a sair de sua boca. Passou cerca de uma hora assim, dançando, cantando e tocando junto com aquelas garotas, ainda mais iluminada com o toque e olhar de afeição de Apolo.
As meninas aplaudiram e elogiaram a musa, que foi convidada a retornar quantas vezes desejasse, e ela, em resposta, agradeceu pelo assado maravilhoso. As meninas se despediram para começarem a arrumar o acampamento, deixando os dois deuses sozinhos com .
A musa se virou para Ártemis, sorridente.
— Obrigada por hoje, foi uma noite maravilhosa.
— Nós que agradecemos, . Sua música nos alegrou de forma que há tempos não nos alegrávamos.
— É o efeito de — Apolo disse, sorrindo, fazendo a garota corar.
Ártemis o encarou, o sorriso da deusa diminuindo um pouco.
— Ainda vamos conversar, irmão. Você não pode fugir de mim por toda a eternidade.
— Mas posso tentar.
Ártemis suspirou, antes de virar as costas para os dois e se afastar. No meio do caminho, no entanto, ela se virou novamente, olhando para Apolo.
— Cuidado. Não cometa os mesmos erros.
— Isso é diferente.
— Será?
— Eu te garanto — ele afirmou com fervorosidade.
Ártemis o observou, então assentiu, voltando a se afastar. Apolo olhou para a musa, sorrindo, sem se perturbar com a irmã. Ele estendeu a mão.
— Vamos?
Ela assentiu, colocando a mão por cima da dele. Eles seguiram por dentro da floresta, até estarem de volta à árvore de .
— Finalmente a sós — Apolo disse, assim que saíram da mata, um brilho malicioso em seus olhos. Então, ele olhou para frente e seu semblante se fechou. — Ah, perfeito.
seguiu seu olhar e encontrou Hermes apoiado na árvore em que ela geralmente dormia. O deus começou a vir na direção dos dois.
— Hermes, eu sei que precisamos conversar, mas hoje não é um bom dia…
— Me desculpem.
A musa encarou o deus dos ladrões, sem entender o pedido de desculpa. Na verdade, ele parecia derrotado e triste, além de alarmado. Algo não estava fechando, ele estava totalmente diferente daquele deus provocativo a quem ela havia conhecido.
— O que houve, senhor Hermes? — perguntou, se sentindo um pouco preocupada.
— Eu não queria…
!
Um arrepio gelado subiu pela coluna da musa. Tremendo, ela se virou para trás. Ali, estava Calíope.
E ela nunca vira a irmã tão irritada em toda sua vida.


— Calíope, eu…
— Você me desobedeceu completamente! — a irmã berrava, descompensada, se aproximando de . — Você não entende as consequências disso tudo? Por que você tem que ser tão tola?!
A musa estava cansada de sempre ouvir o que deveria fazer ou não. Já tinha percebido que, para a irmã, nunca seria suficiente a forma que se comportasse, sempre estaria errada de alguma forma. Olhou para o deus, que também parecia mais pálido que o normal, e juntou forças. Ele valia o seu esforço.
— Pare de tentar controlar minha vida — disse, a voz saindo mais alta do que acreditou ser capaz. — Eu amo Apolo e você não vai nos separar!
Calíope parou, os olhos arregalados, mas então o rosto se partiu em um sorriso maldoso.
— Você o ama?
— Amo. E sei que você amou Ares, e ele no final a trocou por Afrodite, mas não é a mesma coisa!
— Espere, você foi amante de Ares? — Apolo perguntou, surpreso.
— Como se você pudesse me julgar, ser desprezível! Você me enoja, Apolo. — O olhar dela parecia carregado de dor. — Como pôde fazer isso com minha própria irmã?
— É diferente…
— Não, não é. Nunca é!
— Pare, Calíope! Por favor! Deixe-nos. Estávamos felizes sem seus sermões — a musa tomou coragem de replicar. — E não fale assim do nosso senhor!
— Ah, sim. — Calíope mexeu as mãos, irritada. — Nosso amado deus sol. Ele nunca poderia nos ferir, não é?
olhou irritada para a irmã, então relanceou Hermes, que a olhava com pena. E Apolo, que nem mesmo a encarava. Por que ele não a encarava?
Então voltou a olhar para a musa mais velha. Ela estava irritada, sim, mas havia outra coisa ali. Uma dor que a musa já usara para compor canções de perda.
arquejou, levando as mãos para a frente da boca.
— Você o ama!
A feição de Calíope demonstrava choque e ela recuou um passo.
— Você não está brava comigo por eu me envolver com um deus. Está brava porque estou me envolvendo com Apolo — continuou despejando as palavras, sem controle. — E você o ama.
— Eu… eu… — Calíope tentou falar, mas as palavras pareciam não ter força o suficiente para se agarrarem em frases.
— Eu sinto muito, irmã, se estarmos juntos traz-lhe sofrimento. Mas não entende que estamos felizes? Que sua inveja apenas está magoando a todos e não ajuda a ninguém?
— Eu não ajo assim por inveja, eu não a invejo! — Calíope explodiu. — Tenho pena de você por se envolver com alguém assim. Ele é um monstro, ! — ela disse, apontando para Apolo.
— Como posso acreditar que você deseja meu bem se me trata assim?!
— Porque eu já estive no seu lugar!
— Ares não é Apolo!
— Eu não estou falando de Ares! — E lançou um olhar fulminante na direção do deus sol. — Nunca foi Ares.
ficou em silêncio por um segundo, sua mente paralisada. Ela olhou de Calíope para Apolo para Hermes e de volta para Calíope… e para Apolo…
— Não, você nunca se envolveu com Apolo assim. — A afirmação soou mais como uma pergunta.
Ela encarou o deus sol pela última vez, então tropeçou ao andar para trás, em choque, porque estava ali, explícito na expressão desesperada dele. Ela caiu, mas nem mesmo a queda conseguiu distraí-la da dor da verdade.
Calíope e Apolo já estiveram juntos.
O deus olhou para ela, desesperado.

— Não. Não fale comigo. — Sua voz saiu como um fio. Lágrimas que ela nem soube quando começaram corriam de seus olhos. Ela se virou para Calíope. — Vocês… Por que você nunca me contou?
— Era nossa missão como musas adorá-lo. Eu não poderia arruinar isso para nossas irmãs, e nem para você. E eu tentei te alertar!
— Me avisando para não me envolver com os deuses? Grande coisa!
— Se você me escutasse, não estaríamos nessa situação! — Calíope gritou.
— Você ousa dizer que é minha culpa?!
— Calíope — Hermes interviu. — Não pegue pesado com a menina.
A musa mais jovem encarou o deus, sentindo-se completamente quebrada por dentro.
— Foi você quem contou para ela.
— Foi um acidente!
— Você não conseguia fazer uma única coisa por mim?! — Apolo gritou, e ouvir a voz dele deixou ainda mais destruída. O vínculo entre eles havia sido quebrado.
Apolo e Hermes começaram a discutir, e foi quando percebeu o quanto estava tão sozinha. Apolo e Calíope eram mentirosos, e nem mesmo Hermes conseguiu guardar o segredo para protegê-la. E o deus dos ladrões sabia a verdade, agora ela percebia, assim como Ártemis. Assim como todos, e ninguém a contou. Ela não sabia mais em quem confiar, nem em quem acreditar. Não sabia o que havia sido real.
Ela relanceou a floresta de onde tinham vindo, que era capaz de levá-los para Atenas, para Ártemis. Talvez… pudesse levá-la para longe de tudo e de todos. Levantou-se, desengonçada, e antes que qualquer um pudesse dar falta de sua presença, ela correu mais rápido do que jamais correra para a mata densa.
! — Ela escutou alguém chamar, mas não sabia se era real ou se sua mente estava criando ilusões. No entanto, não importava.
Ela não olharia para trás.


O sol se pôs e saiu pela noite, finalmente livre.
A floresta a havia levado para um bosque agradável perto de uma nascente, um ótimo lugar para ficar sozinha e escapar de tudo. Há semanas já que se escondia nas sombras das árvores, refletindo, processando.
Apenas algumas ninfas e náiades a faziam companhia às vezes. E a musa descobrira que elas eram ótimas ouvintes.
O céu já estava todo escuro quando ela finalmente acendeu uma fogueira. Não saía na claridade porque não queria ser exposta ao sol: tinha medo que ele pudesse estar ali, observando e procurando por entre as folhas. E ela não se deixaria ser encontrada.
Mas não conseguia deixar de cantar. Apesar de ter sido o deus quem a ensinara tal habilidade, ela não queria que ele lhe tirasse tudo. A música era dela, ela era a musa da música, e nada poderia mudar isso. Ela não perderia esse amor por causa dele, apenas teria que significá-lo.
Naquela noite, no entanto, mesmo depois de tocar em volta da fogueira por horas, as ninfas não apareceram. Nunca admitia para si mesma, mas ficava chateada com a ausência delas, porque odiava ficar sozinha com seus próprios pensamentos. Eles não eram dos melhores.
Por isso, quase suspirou de alívio quando ouviu as árvores da floresta se mexerem, anunciando a chegada de suas amigas.
— Finalmente! — a musa disse, com um largo sorriso.
Mas a pessoa que apareceu não era nenhuma ninfa.
A garota se ergueu em um pulo, desesperada. Não reparou que tinha começado a tremer, o casulo e o isolamento do mundo real se quebrando diante dos seus olhos.
— Como… Como você me encontrou?
— Hermes finalmente me revelou sua localização.
encarou sua irmã Tália, que não tinha seu habitual sorriso no rosto. Ela queria fugir, mas não tinha para onde ir. Ela já estava em seu esconderijo, mas ele havia sido descoberto.
Tália suspirou, dando um passo para a frente. Instintivamente, se afastou.
— Por favor, irmã — a musa da comédia implorou. — Eu sinto tanto a sua falta, eu gostaria apenas de ver como você está. Fiquei preocupada.
encarou a irmã, que transparecia os sentimentos que estava descrevendo. Mas ainda precisava saber de uma coisa.
— Você… sabia? De Calíope e Apolo?
Tália sacudiu a cabeça fervorosamente.
— Eu não sabia. Você sabe que eu teria te contado.
Aquilo trouxe um pequeno alívio para seu coração. Aquela seria uma das traições mais doloridas, vinda de sua irmã e melhor amiga. A musa começou a se aproximar aos poucos da fogueira e, timidamente, estendeu a mão, gesticulando para um tronco perto de si. Tália abriu seu primeiro sorriso e correu para se sentar perto dela.
Elas ficaram alguns minutos em silêncio, olhando as chamas da fogueira. admitiu para si mesma a saudade que estava sentindo de sua antiga vida.
Tália pigarreou, as pernas balançando em clara ansiedade.
— Então… como você está?
suspirou, sabia que não poderia escapar da conversa por muito tempo.
— O que você sabe?
Tália colocou uma mecha de cabelo para trás da orelha, evitando encará-la.
— Que você e… Bem, estavam juntos. E que Calíope descobriu… Então, você descobriu, sabe… Que eles também estiveram juntos…
— Você sabe tudo, então — a cortou, seca.
— Desculpe-me.
— Não precisa se desculpar — a musa respondeu, suspirando. — Eu que perguntei, afinal. Apenas… não soube lidar muito bem, para ser honesta. — Ela jogou as mãos para o alto, soltando um suspiro alto. — Estava há meses encontrando Apolo todas as noites, e eu sei o quanto o amei, e acreditei tão profundamente que ele também me amava! Tudo isso fez com que eu perdesse meu chão e não soubesse em quem confiar…
— Sempre pode confiar em mim — Tália exclamou, se aproximando e segurando as mãos da irmã com intensidade. — Eu sempre estarei ao seu lado.
— Eu sei — respondeu, um pequeno sorriso aparecendo em seu rosto. — Sabe, eu fiz amizade com várias ninfas aqui. Foi bom não me sentir sozinha.
— Fico feliz por você.
— E por lá? Como está? — a musa da música perguntou, hesitante.
Tália suspirou, soltando as mãos da irmã.
— Apolo não apareceu mais. Ele e Calíope discutiram feio, não se falam mais. Hermes disse que ele não parou de procurá-la nem por um instante.
— Não me importo — disse, mas era mentira. Aquela notícia mexera muito com ela.
— E Calíope… se sente muito culpada. Diz que deveria ter lhe dito a verdade.
— E deveria mesmo.
— Ela está arrependida, . Vocês deveriam conversar, ela é sua irmã.
— E ela deveria ter considerado isso antes de mentir para mim!
— Eu sei, eu sei, você está certa — Tália disse, a apaziguando. — Mas eu sei que a culpa a está consumindo. Ela a ama tanto, , e ela sabe que errou muito com você. Eu espero que você considere conversar com ela.
A musa suspirou. Era verdade que, lá no fundo, por trás de toda a raiva, ela sentia falta da irmã mais velha. Calíope sempre criticava seus modos, mas sabia que era uma forma de demonstrar carinho e tentar poupá-la da dor. De uma forma um pouco deturpada, Calíope sempre quis o melhor para ela, dentro do que ela considerava o melhor.
pigarreou.
— Talvez. Eu teria que pensar com calma.
— Então você irá conversar com ela?
— Quem sabe… Ainda não estou pronta.
— Ah… Eu deveria ter considerado isso.
A musa da música levantou a cabeça, encarando a irmã com confusão.
— O que quer dizer?
As árvores novamente fizeram barulho, e teve um mau pressentimento. Ela vislumbrou a pele escura iluminada pela lua e sentiu seu estômago se embrulhar de ansiedade.
Tália engoliu em seco, levantando-se com pressa.
— Eu vou deixar vocês a sós.
Calíope e Tália trocaram olhares quando a musa da comédia saiu. A irmã mais velha se sentou exatamente onde antes a outra irmã esteve.
estava congelada e seu corpo tremia de leve. Queria estar em qualquer lugar, menos ali. Apenas em seus piores pesadelos havia confrontado sua irmã depois de tudo, e nunca acabavam bem. Ela xingou Hermes mentalmente por ter revelado sua localização.
Ao perceber o estado da irmã, Calíope suspirou.
— Não precisa falar comigo, eu entendo. Mas, se os deuses permitirem, você ao menos me escutará. — A musa suspirou, olhando para baixo. — Falhei com você como irmã, eu sei disso. E sinto profundamente. Vocês são as pessoas mais importantes do mundo para mim, ninguém mais importa. E eu sofri muito com Apolo, sinto lhe dizer, mas sofri, e não desejei de forma alguma que sofrimento tão doloroso alcançasse as pessoas que mais amo.
— Por que não me contou? Quando percebeu? — juntou coragem para perguntar, a voz quase sem volume. A raiva, a tristeza e a saudade duelavam em seu coração.
— Porque eu não quis acreditar, não quis acreditar que ele poderia ir atrás de uma de vocês. Quando rompemos, décadas atrás, eu escondi tudo porque o mundo precisava das musas, e as musas precisavam de Apolo. Eu fiz de tudo por vocês e pelos humanos. Eu não poderia acreditar que ele seria egoísta a ponto de magoar mais uma de nós.
“Mais uma” não era uma forma que gostaria de ser mencionada, mas, naquele momento, não eram apenas os sentimentos dela que estavam em jogo. O duelo em seu coração começou a cessar, a compaixão pela irmã tomando seu corpo.
Ela se forçou a engolir a mágoa e segurou as mãos da irmã. Calíope a encarou, perdida.
— Eu sinto muito por tudo o que você sentiu sozinha para nos proteger. Deve ter sido muito doloroso o ver toda vez e agir como se não a magoasse.
As lágrimas começaram a correr do rosto de Calíope. ficou chocada: era a primeira vez que via a irmã chorar.
— Você sempre foi a mais gentil de todas nós, . — A musa começou a tremer, tomada de emoções. — Seu coração musical sempre viu um mundo muito melhor, eu não a mereço como minha irmã.
— Apenas me prometa que não esconderá mais nada de mim.
— Nada, eu prometo — Calíope disse, entre soluços. — Me perdoe por todas as vezes em que te critiquei, eu sabia o quão deslumbrante você sempre foi e tinha medo que Apolo também descobrisse. Eu apenas queria protegê-la.
— Eu sei. Mas não tente mais me proteger, certo?
A musa riu de leve, as lágrimas ainda caindo enquanto olhava para sua irmã mais jovem.
— Eu a amo, . De todo coração e para todo sempre.
— Eu também a amo, Calíope. Você é a razão por todas nós sermos assim. Não Apolo. Você.
As duas se abraçaram. A mais nova nem sabia qual havia sido a última vez em que isso havia acontecido. Calíope há tempos era uma rocha impenetrável, fria e até cruel. Era bom ser relembrada da irmã amável e inteligente que tinha tido. Não à toa Apolo havia se apaixonado por ela.
A musa da música se afastou de leve, com a cabeça baixa.
— Você… pode me contar tudo? Sabe… Como foi com ele.
Calíope prendeu a respiração, um soluço escapando da garganta.
— Você… quer saber?
— Eu gostaria — afirmou, assentindo.
A mais velha então abriu a boca e descreveu tudo. Como eles se conheceram na primeira vez que Apolo visitou as musas, e como ele começou a visitá-la sempre para ajudá-la a escrever Ilíada e Odisséia. Como ambos escolheram juntos o humano Homero que receberia as obras para escrevê-las. E, como daquela euforia, eles começaram a ficar juntos. Então ela descreveu como Apolo foi embora depois que percebeu que Calíope não escreveria nada tão genial quanto aqueles livros.
— Eu não era mais útil. E pouco depois ele conheceu Cassandra, de quem ele logo depois enjoou também — a musa da poesia épica concluiu, dando de ombros. Ela nunca parecera tão pequena.
— Eu sinto muito — disse, a dor tomando conta de seu ser. Ouvir aquilo tornava tudo mais real. E imaginar Calíope e Apolo juntos, durante às noites, escrevendo e se beijando, fez um ciúme irritante subir por sua garganta, mas ela o engoliu.
— Eu não queria isso para você, entende? Não queria que ele a usasse e depois a abandonasse. Isso me quebrou e eu não suportaria vê-la quebrada.
— Mesmo assim, aqui estou eu — ela murmurou.
As chamas da fogueira já estavam menores e observá-las fez uma necessidade de falar tomar conta de .
— Ele me visitava todas as noites — ela começou a falar, sem encarar a irmã. — Nós tocávamos, ou apenas conversávamos, ou observávamos as estrelas. Ele até me levou para conhecer Atenas, e eu pude ver os humanos cantando as minhas músicas.
Calíope assentiu, sem querer interromper a irmã, ainda com o olhar fixado no fogo.
— Ele falou que me amava e pareceu tão verdadeiro porque eu sentia o mesmo. Ele me beijou e foi perfeito. Ele me apresentou para Ártemis e…
— Espera. Você conheceu a deusa da lua?
— Eu sei que eu não deveria! Mas…
— Não, não, me desculpe. Não queria repreendê-la. Fiquei apenas surpresa. Ele… sempre quis manter tudo em segredo comigo.
Uma chama de esperança surgiu no coração de , uma chama que sussurrava que ela era diferente, mas ela fez questão de apagar aquele fogo. Só serviria para queimá-la.
— Mas isso não importa mais. Eu já aprendi minha lição.
Calíope a encarou, entristecida. Então, se levantou e estendeu a mão.
— Por favor, volte para casa. Nós sentimos a sua falta.
ficou tensa de repente.
— Eu não sei. Eu não quero que ele me encontre…
— Ele não vai saber. Não vai pensar em procurá-la lá.
— Mas…
— E, se procurá-la — Calíope disse, um olhar mortal em seu rosto —, vamos matá-lo.
O coração da musa da música se encheu de amor.
— Então, acho que é hora de voltar para casa.
Calíope sorriu ao sentir a mão da irmã sobre a sua.
— Seja bem-vinda de volta, minha cara irmã.


Voltar para casa havia sido a decisão certa. Não podia deixar outra pessoa ser responsável por retirá-la de seu lar e de suas irmãs. Por sorte, Apolo não havia aparecido nenhuma noite, embora o corpo da musa ainda ficasse tenso em todo pôr do sol.
A sua volta havia sido muito celebrada pelas irmãs por lágrimas e risos. se sentiu muito amada, e as irmãs fizeram questão de, por muitas noites, não a deixar sozinha. Estava aprendendo um pouco mais da arte de cada irmã e havia até mesmo lido os livros que Calíope e Apolo haviam escritos juntos. A irmã até mesmo a deixara opinar nos rascunhos de uma nova história que estava inspirando, Eneida, e a musa da música se sentia feliz por estar sendo incluída. A amizade entre as duas crescia cada vez mais.
Estava terminando de ler os rascunhos da irmã encostada em sua árvore, quando uma sombra atrapalhou sua leitura.
— Tália, assim não consigo ler.
— Olá, minha doce .
A musa paralisou, então começou a tremer, sem conseguir desgrudar o olhar da leitura, mesmo que já não processasse palavra nenhuma. Talvez, se o ignorasse, ele desaparecesse. Talvez fosse um pesadelo.
Mas sua mente nunca faria a voz dele soar tão triste e melancólica assim.
— Me desculpe por atrapalhá-la. Eu não sabia como me aproximar, não sabia o que fazer, mas eu precisava falar com você e…
deu um grito ensurdecedor, os quais os pássaros acompanharam, assim como o vento. A clareira inteira foi tomada pelo grito dela, e não demorou muito para que as irmãs começassem a aparecer.
, o quê…? — A pergunta de Calíope morreu em sua boca quando ela viu o deus sol. — Como você ousa aparecer aqui?!
— Por favor, Cali — ele implorou, e finalmente ergueu os olhos, magoada por ouvi-lo usar um apelido para a irmã. Mas levou um susto quando percebeu que o deus da perfeição estava destruído: a pele pálida, o cabelo desgrenhado e as olheiras tomando seu rosto. Ele engoliu em seco, ainda olhando para a musa mais velha. — Vamos todos conversar, vamos consertar as coisas.
— Consertar a sua bagunça, você diz? Me dê um motivo para eu não esfaqueá-lo.
— Porque isso não me causaria dor, afinal, eu já estou destruído.
Calíope e Apolo se encararam. As outras irmãs se aproximaram, criando uma barreira entre os dois, enquanto Tália corria para e a erguia, arrastando-a para trás da barreira.
— Perdoe-me, Calíope — Apolo disse, balançando a cabeça em negação. — Eu era jovem e confundi a admiração pelo seu trabalho com amor. Sei que fui insensível em me aproximar daquele jeito e depois abandoná-la. Você não precisa me perdoar, mas precisa entender que a culpa é minha e que eu nunca a amei, e sinto muito por isso.
Um tapa acertou o rosto de Apolo, e arquejou. Mas aquilo não pareceu afetar o deus.
— Eu também não amei Cassandra — ele continuou, a voz sem vida. — Fiquei encantado quando ela se mostrou interessada no dom da profecia, achei que havia encontrado uma igual, mas no final eu fui usado. Eu não a amei, mas ela feriu meu orgulho. E eu, imaturo, fiz o que fiz. E me arrependo profundamente, assim como me arrependo do que fiz com você.
O olhar dele percorreu as musas, até focar em . O corpo dele pareceu emitir um leve brilho.
— Mas eu amei e eu ainda a amo. Nossa relação não era nem um pouco parecida com a minha e de Calíope, muito menos com a minha com Cassandra. Era única, era feliz. Eu me apaixonei pela doce musa da música, e então a vingança de todos os meus anos partindo corações se voltou contra mim. Porque o meu próprio foi partido quando você fugiu aquela noite. E eu sei que não mereço seu perdão nem o seu amor, e poderei aguentar por toda a vida imortal o meu coração partido, mas eu não conseguiria viver comigo mesmo sabendo que parti o coração mais lindo que eu já conheci.
O coração de acelerou e ela nem mesmo percebeu quando as lágrimas começaram a escorrer de seu rosto. Seu coração lutava por entre sua dor para se agarrar àquelas palavras, mesmo sabendo que pareciam uma armadilha. Mas aquela armadilha estava convicente demais.
Ela buscou o olhar de Calíope, a única que poderia ajudá-la nesse momento. A irmã a encarou de volta, e percebeu a dor no olhar dela. Ouvir de Apolo que ele nunca a havia amado claramente abrira uma ferida que nunca havia de fato sido cicatrizada. Mesmo assim, ela abriu um pequeno sorriso para a irmã.
E arquejou, entendendo. Entendendo que, mesmo magoada, a irmã foi honesta e confirmou o que seu coração ansiava: Apolo estava sendo honesto.
Com o coração batendo em seus ouvidos, ensurdecendo-a, deu um passo à frente, encarando o deus sol. Ele a encarava como se ela fosse todo o seu mundo, e ela o encarava como se ele fosse um belo leão, mas que poderia logo mudar de ideia e achá-la uma bela presa.
— Você mentiu para mim. Nunca me contou de Calíope.
Ele suspirou, olhando para baixo.
— Eu primeiro achei que você soubesse, então quando notei que não… Fiquei com medo de revelar a verdade e você se afastar de mim.
— Então você decidiu mentir e veja aonde isso nos trouxe.
— Não acho que havia uma saída para um final feliz para nós — ele admitiu, triste.
— Não, não havia — ela concordou, o coração apertado.
Ele olhou para o sol, então voltou a olhar para a musa.
— Eu não posso mudar o passado. Tudo o que posso oferecer é minha fidelidade e honestidade de agora em diante.
— Você quebrou minha confiança e eu não sei se isso é reparável — disse, se perdendo em um soluço.
— E eu não posso culpá-la por isso — ele gemeu, e lágrimas douradas começaram a escorrer de seu rosto também. Era a primeira vez que via um deus chorar. Ele respirou fundo, então a encarou intensamente. — Por favor, considere. Não peço que me perdoe hoje, nem amanhã, só peço que considere. Eu poderia suportar a eternidade se souber que ainda existe alguma chance entre nós.
o encarou, sentindo seu coração acelerar de amor e tristeza ao mesmo tempo. Então, olhou suas irmãs. Todas a olhavam com amor e expectativa, até mesmo Calíope. Estava claro: a decisão era da musa da música apenas.
encarou o deus sol e pensou em cada noite, sorriso e beijo que eles compartilharam. Era inegável que ela ainda o amava, não importava o quanto estava machucada.
— Um ano.
Ele levantou o olhar do chão, encarando-a confuso e esperançoso.
— Retorne em um ano, e eu direi se poderei perdoá-lo.
O corpo dele passou a brilhar com mais intensidade e o seu rosto se abriu em um sorriso infantil e inocente.
— Ah, , obrigado! Pelos deuses, obrigado!
— Isso não quer dizer que eu irei perdoá-lo — ela se apressou em reforçar.
— Eu sei, e eu entendo. Mas você irá considerar, e isso era muito mais do que eu poderia pedir.
Ele segurou a mão dela e depositou um beijo, o toque a enchendo daquele calor que apenas ele conseguia gerar. Então, ele a soltou delicadamente, e a encarou com todo o amor que tinha no peito.
— Eu a amo, , e espero que esse amor seja o suficiente para você.
Apolo começou a brilhar intensamente, o sorriso em seu rosto aumentando, até que ele logo sumiu, desaparecendo no horizonte.
As irmãs começaram a murmurar imediatamente, chocadas com tudo o que haviam presenciado, mas só conseguiu se virar para Calíope, a mão na frente da boca.
— Ah, minha irmã, me perdoe! Depois de ele dizer algo tão horrível sobre você, eu considerei perdoá-lo! Me desculpe!
Mas Calíope sacudiu a cabeça, antes de correr para abraçá-la.
— Por mais doloroso que tenha sido escutar tudo, foi importante. Eu precisava escutar que ele nunca havia me amado porque, se isso fosse amor, eu passaria a vida pensando que nunca poderia ter melhor. — Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha de . — E, por mais que eu ainda não consiga perdoá-lo, eu acredito no amor dele por você. E acredito no seu amor por ele. Você foi muito corajosa de pedir aquele ano para ele.
— Ou muito estúpida.
— Não. Corajosa — Tália disse, surgindo atrás de Calíope. — Foi muito maduro da sua parte pensar com calma a situação toda e considerar o perdão. É preciso muita coragem para perdoar alguém.
suspirou.
— Eu só não sei se terei toda essa coragem.
— O ano será para descobrir isso — Calíope falou, segurando as mãos da irmã.
— E, independentemente de o que você decidir, estaremos do seu lado. Sempre.
sorriu. Apesar de tudo, estava grata por ter vivido tudo aquilo. Havia permitido que se aproximasse das irmãs de uma forma maravilhosa.
Agora, tudo estava nas mãos de Cronos. E esperava que o tempo fosse gentil com ela.


Um ano passava muito rápido quando havia tanto a se pensar e se reinventar.
As musas descobriram que não precisavam mais da inspiração de Apolo para compor. Se reuniam todo dia e descobriram que, sozinhas, eram muito potentes em suas produções. O novo livro de Calíope foi um sucesso completo, assim como as canções de , depois de ter feito a Terra passar por uma onda de músicas infelizes.
Também conheceu mais do mundo. Reviu Ártemis que, depois de se desculpar por não lhe contar a verdade, se tornou uma amiga valiosa, assim como as caçadoras, que adoravam suas canções. Retornou para mais noites de canto em Atenas, além de outras pólis. Entrou no oceano pela primeira vez. Conheceu ninfas e sátiros. Dançou ao redor de fogueiras. Riu das brincadeiras de Tália. Ela foi feliz.
Porém, mesmo com todas as mudanças, ela percebia, toda vez que encarava o pôr do sol e o nascer do sol, que o seu amor não havia passado. E que toda a história de Apolo e Calíope parecia cada vez mais insignificante, ainda mais agora que a irmã havia encontrado alguém que a amava verdadeiramente, Oeagrus.
Por isso que ela esperou acordada o nascer do sol do 365º dia após sua conversa com o deus sol.
Os raios dourados tomaram sua visão, e a euforia tomou conta do corpo da musa conforme eles se agruparam e formaram o homem mais lindo que ela já havia visto.
O deus se ajoelhou perante ela, como se a divindade fosse , e beijou suas mãos, os olhos tomados de emoção.
— Olá, minha doce .
Ela não pôde deixar de sorrir. Às vezes, chegou a considerar que, naquele tempo, Apolo poderia ter perdido o amor por ela, ao que Tália dizia que, se este fosse verdadeiro, nunca iria se apagar, assim como o dela.
A irmã tinha razão.
A musa sorriu, ajoelhando-se de frente para o deus e abrindo um sorriso.
— Olá, meu amor.
O rosto dele se encheu de choque, então começou a se abrir em um sorriso enorme conforme ele percebia o que a atitude dela significava. Ele se aproximou, tomando-a para um beijo que a queimou e a fez ferver de amor, como em seu primeiro beijo.
— Eu a amo, ah, como eu a amo, . Eu sou seu e sempre serei, e você sempre terá minha verdade.
Ela o encarou e fez uma cara sarcástica, que havia praticado com Tália.
— É mesmo? Então pode começar me contando tudo o que fez esse ano.
Claro que ela já sabia. Havia perguntando inúmeras vezes para Hermes e Ártemis, assim como sabia que ele havia perguntado sobre ela. Não havia vergonha sobre isso.
Mas, de qualquer forma, o que ela realmente queria era ouvir a voz de Apolo. E não seria de todo ruim fazê-lo enquanto estava em seus braços.
Ele sorriu para ela e assentiu, ajudando-a a se recostar na árvore dela, a árvore deles, enquanto os raios dourados do sol nascente os banhavam de esperança.
A confiança não era inabalável. A insegurança poderia surgir em alguns dias, plantadas de dúvida. Mas era uma batalha que ambos estavam dispostos a lutar.
— Por onde começar?


FIM.


Nota da autora: A ideia dessa história surgiu como uma insanidade, mas que eu decidi perseguir. Por várias vezes, pensei em desistir da história por não ter tempo de desenvolvê-la, mas no final consegui alcançar o fim! Talvez seja diferente do que eu inicialmente pensei, mas gosto de pensar que ficou até melhor.
Gostaria de agradecer a cada um que parou para ler a minha história, por dar uma chance. Eu de verdade espero que você tenha gostado tanto quanto eu gostei de escrever! Mitologia grega sempre me foi fascinante, e eu amei adentrar ainda mais nisso durante a jornada de escrever essa história.
Enfim, obrigada, obrigada, obrigada! E que essa história de amor, perdão e confiança possa te inspirar como a melhor das musas <3

Nota da beth: Essa história é tão mágica, tão fluida, tão etérea, tão leve, tão BOA hahaha é uma mistura de sensações! Me envolvi tanto com eles... você sempre arrasa 😭💜

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