Revisada por: Hydra
Última Atualização: 30/10/2024Ao deparar-me com a majestosa mansão, fiquei boquiaberta. Era simplesmente enorme. Quando a minha mãe mencionou que se casara com o seu primeiro amor do ensino secundário, imaginei que fosse alguém do nosso círculo social, não o proprietário de uma mansão no coração de Londres.
Passei cerca de 30 segundos a admirar toda a fachada daquela que seria a minha nova residência antes de ser envolvida por um abraço cheio de quatro anos de saudades, conforme a minha mãe descreveu, depois de insistir para que me soltasse.
Esta era a minha estreia em Londres, na verdade, era a minha primeira vez fora dos Estados Unidos, e ao que parecia, eu estava aqui para ficar. Depois do casamento da minha mãe, ela começou a pedir-me para me mudar para Londres, para que pudéssemos viver juntas, juntamente com o novo marido e o filho dele, a quem ainda não tive a oportunidade de conhecer. No início, recusei-me a fazê-lo, pois parecia sem sentido. Eu tinha vivido toda a minha vida em Nova Iorque e tinha um relacionamento de seis anos que deixei para trás, após a minha mãe garantir-me uma vaga como professora de Literatura Moderna na Universidade de Londres, onde ela também lecionava economia há cinco anos.
Foi uma escolha difícil, mas a verdade é que minha relação com o Ethan se tornou, no mínimo, monótona. Começamos a namorar quando eu tinha 19 anos, e desde então, nunca mais nos separámos, até o dia em que nos transformámos apenas em parte da rotina um do outro. Não vou mentir e dizer que não chorei, pois chorei bastante, mas creio que o principal motivo das minhas lágrimas, foi quando percebi que já não o via da mesma forma. Era estranho, pois eu o amava, mas não amava a pessoa que estava diante de mim. Então deixá-lo no passado, não foi tão devastador, como imaginei. Se é que isso faz algum sentido...
— Anna, filha! As saudades que tive! — minha mãe abraçou-me mais uma vez enquanto o motorista tirava as minhas malas de dentro do carro e devo ainda acrescentar... que carrão!
— Mãe, por favor! — resmunguei, sendo envolvida pelos seus braços — Estás a apertar-me.
— São abraços de quatro anos de saudade, Anna! Sou tua mãe, deixa-me!
Dei um sorriso mascarado pelo desconforto e deixei-me ser abanada como um fantoche por mais uns segundos, até o bonitão do meu padrasto aparecer, no cimo das escadas, que davam para a entrada da casa.
— Anna! É um prazer finalmente te poder conhecer pessoalmente. — o Michael sorriu abertamente, enquanto descia o lance de escadas que nos separava.
— Olá! — soei tímida.
— Abraça o Michael, filha! — incentivou-me minha mãe antes do seu marido me puxar para um abraço quase tão apertado como o dela.
Naquela altura, já devia estar completamente despenteada. Detestava ser abraçada, e sabia que se o manifestasse em voz alta seria alvo de julgamentos, mas a verdade é que detestava mesmo e estava a fazer um esforço consideravelmente grande para não revelar o meu desconforto.
Quando o Michael me libertou, pude finalmente ter um vislumbre de quão alto e bonito ele realmente era. O seu cabelo era escuro, com alguns fios grisalhos que lhe conferiam charme. Possuía um perfil forte e angelical, se é que isso é sequer possível, e os seus olhos eram de um verde hipnotizante. Não era difícil perceber por que razão a minha mãe se mostrava tão apaixonada sempre que me falava dele nas nossas videochamadas, e se ele fosse realmente tão amável quanto parecia, a minha mãe tinha ganho na lotaria.
Fui guiada a explorar toda a casa, desde o hall magnífico até ao jardim com piscina, e só isso levou quase meia hora. A minha mãe fez questão de não deixar escapar nenhuma divisão, e quando finalmente chegámos à porta do que seria o meu quarto, ela decidiu criar suspense.
— Devo confessar que passei um bom tempo à procura da decoradora indicada para me ajudar a decorar o teu quarto e sei que estás assoberbada, porque até agora tudo o que viste não tem nem um pouco a ver com a vida que levávamos em Nova Iorque, mas asseguro-te que fiz todos os esforços possíveis e imagináveis para fazer deste quarto o teu lugar especial.
Levantei as sobrancelhas, meio que querendo rir um pouco do seu discurso: — Mãe, podes estar tranquila, ok? Eu já não tenho mais 15 anos, e sim! Isto é uma mudança abrupta, mas tu também me deste a oportunidade de uma nova vida aqui e eu pretendo agarrá-la. Eu sei que me mostrei muito relutante a princípio, mas podes estar tranquila, eu vim com intenção de ficar...
Ela sorriu, e respirou fundo, antes de me abraçar pela vigésima vez naquele dia.
— Mãe... por favor... — sacudi-me do aperto do seu abraço.
— Há coisas que não mudam, não é? — riu do meu desconforto, antes de me soltar — Ah! Este em frente é o quarto do teu irmão, Leonardo. — apontou para a porta na frente do meu novo quarto — Ele não está em casa ainda, só chega mais tarde. Provavelmente só se vão conhecer na festa.
Ah, a festa... quase me esquecia da festa... Hoje o meu padrasto ia celebrar duas décadas de carreira como juiz e tinha convidado uma boa parte da elite londrina para festejar essa data na sua mansão.
— Certo. — concordei, tentando não mostrar a minha falta de entusiasmo. Sem demora, a minha mãe abriu a porta do que seria, a partir de agora, o meu quarto, e não consegui evitar formar um grande "O" de admiração, quando entrei. Estava perfeito.
Ela conhecia-me bem demais, o que era evidente desde a escolha do papel de parede até às almofadas e carpetes claras que conferiam ao meu quarto um aspeto acolhedor e elegante.
— Está perfeito. — assegurei-lhe, com um sorriso nos lábios.
— Gostas mesmo? Se quiseres, posso mudar algumas coisas.
— Não mãe, está perfeito! — repeti, agora olhando para ela — Não há absolutamente nada que eu queira mudar.
Ela mostrou-me o armário, cheio de roupas novas que eu nunca sonhei sequer ter. Eram marcas caras, algumas eu nem conhecia, mas os preços nas etiquetas revelavam o luxo em todas aquelas peças.
— Eu fiz questão de escolher todas estas roupas, mas como te disse antes, se houver algo que não gostes, sempre podemos comprar roupa nova.
Mesmo que não gostasse de metade das peças que estavam ali, aposto que continuava a ter mais roupa do que alguma vez tive num armário, ou em dois.
Tranquilizei-a sobre tudo e agradeci-lhe mais uma vez. Ela permaneceu no quarto comigo por mais uns vinte minutos, até perceber que eu realmente precisava de descansar um pouco se quisesse estar presente na festa mais tarde. Não saiu sem antes trazer-me um vestido para usar na festa, e depois abraçou-me, como se os abraços dela ainda não tivessem sido suficientes. Finalmente, deixou-me sozinha, e eu deitei-me.
Imaginem viver dentro do cenário de Gossip Girl! Era exatamente assim que me sentia ao descer as escadas para o primeiro andar da mansão dos Van der Wood. Só faltava alguém gritar, "LUZES, C MARA, AÇÃO!"
Agora sim, eu sentia-me genuinamente uma outsider naquele ambiente exuberante. Para onde quer que olhasse, pensava: "Acabei de ver a mulher mais bonita de sempre." Não havia como não me sentir intimidada no meio de todas aquelas pessoas lindas e importantes. E pior ainda, pessoas que estavam curiosas para conhecer a "nova filha" do juiz Michael Van der Wood.
Inspirei fundo antes de abandonar o último degrau que me separava do primeiro andar e passei as mãos nervosamente pelo vestido acetinado preto que a minha mãe tinha deixado no meu quarto. Devo admitir que me sentia extremamente elegante: o vestido era comprido e sem padrões. A sua beleza estava concentrada nas costas completamente abertas. Tão abertas que sequer podia usar roupa interior sem que se visse. O meu cabelo castanho e ondulado estava solto, descaído sobre um dos ombros, chamando ainda mais a atenção para as minhas costas, repletas de pequenas tatuagens ou, como a minha mãe gostava de as chamar, carimbos.
Olhei em volta à procura da única cara familiar, mas não encontrava a minha mãe em lado nenhum.
— Perdida? — perguntou o meu padrasto.
— É assim tão obvio? — sorri um pouco envergonhada por admitir.
O Michael estendeu-me a sua mão, para que o acompanhasse. Aceitei-a, um pouco relutante.
— Vou te levar à tua mãe para que possas ser apresentada por ela aos nossos amigos — senti um alívio de imediato — Acredito que assim seja menos chato para ti!
Agradeci, sentindo-me como uma criança perdida num supermercado. Uma criança de 25 anos.
A minha mãe estava deslumbrante. Usava um vestido comprido, em tom de azul marinho e o cabelo estava preso num coque em tranças. Era a primeira vez que a via assim linda e radiante. O seu sorriso contagiava qualquer um com quem ela falasse e nem eu mesma consegui me deter em sorrir, quando me aproximei.
— Minha Anna! — exclamou um pouco alto demais, atraindo olhares curiosos para mim — Filha, esse vestido fica-te soberbo.
— Obrigada, mãe. — dei um sorriso de evidente desconforto — Tu também estás linda.
— Christy, Jonnas, esta é a minha filha!
Sorri para uma mulher de estatura média, cabelos loiros e curtos e vestido vermelho escarlate. O homem, que assumi ser o seu marido, tinha o cabelo grisalho, óculos e um bigode engraçado, ele também não era muito alto e usava um smoking preto com um lenço vermelho no bolso, a condizer com o vestido da presumida esposa.
— Anna! Ouvi falar maravilhas de ti, minha querida. — a mulher sorria exibindo os dentes mais brancos que alguma vez vira.
— Vindo da minha mãe não me surpreende de todo. Ela nunca foi poupada de elogios.
— É a minha única filha, que mais podem esperar de mim?
— O nosso Liam também é filho único, Elaine! — exclamou a Christy — E nem assim o gabo um terço, daquilo que gabas a Anna.
— Não há muito que elogiar nele, verdade seja dita! — comentou o Jonnas antes de levar um olhar de reprovação da sua esposa — É verdade Christy, o Liam pode ser meu filho, mas isso não faz dele perfeito, muito menos um exemplo a seguir.
Senti uma nuvem de tensão instalar-se ali, mas felizmente, não durou muito. A minha mãe encontrou uma forma de desviar o assunto, fazendo com que o casal começasse a contar-me toda a sua história de vida, desde o momento em que se conheceram e apaixonaram, até à construção do seu império imobiliário. Eles eram os proprietários de uma das maiores empresas imobiliárias do país, a Hill's House, e pelo que entendi, eram amigos da família Van der Wood há vários anos.
Depois do meu terceiro copo de champanhe e de pelo menos mais vinte caras novas, percebi que precisava de me refugiar por uns instantes. Primeiro porque o jantar ainda não tinha sido servido e o álcool já me estava a afetar, e segundo, precisava urgentemente de usar a casa de banho.
Enveredei por um corredor, que achava ser o certo, e percorri-o até ao fundo, apenas para verificar que muito provavelmente estava na ala errada da mansão.
— Como é que não consigo encontrar um banheiro em uma casa tão grande? — reclamei baixo. Suspirei em aflição, a minha bexiga estava a contorcer-se dentro de mim, e a cada passo que dava, sentia as suas súplicas.
Até que finalmente encontrei! Corri a distância que me separava da porta entreaberta do banheiro, mas fui detida pelo que os meus olhos testemunharam. O meu coração acelerou quando vi um homem alto, de cabelos ondulados e pretos, numa situação íntima com uma mulher que parecia ser uma das camareiras. As suas bocas beijavam-se com voracidade. As mãos dele exploravam o corpo da mulher, cravando os seus dedos na pele dela. Eu estava completamente chocada, mas não consegui mover-me dali, até ela notar a minha presença e chamar o homem à atenção, para que parasse.
Fechei a porta imediatamente. Fiquei tão nervosa que só e conseguia pensar em fugir dali rápido. Disparei a correr para fora do corredor, quase tropeçando nos meus saltos altos, como se tivesse sido testemunha de algum homicídio.
A angústia impelia-me, mas não me permiti olhar para trás para verificar se alguém me seguia. A minha única missão era encontrar a minha mãe, que felizmente, foi rapidamente avistada. Ela se preparava para sentar numa das várias mesas que se estendiam pelo salão. O desejo de sair dali, para longe daquela situação perturbadora, era o único pensamento na minha mente.
— Anna, estás bem?
— Sim, por quê? — sentei-me sem nem sequer confirmar se aquele era mesmo o meu lugar.
— Pareces assustada. — comentou — Acredito que seja um pouco demais para ti. Muitas caras em tão pouco tempo.
Torci o rosto numa careta tonta, mas acho que a minha mãe não estranhou. À minha frente tinha uma placa que dizia Anna Carter, sorri aliviada porque estava sentada no lugar certo.
— Leo! — a minha mãe exclamou — Anda, venha conhecer a Anna!
Olhei para a minha mãe que se colocava de pé para recebê-lo de braços abertos e pus-me de pé também.
Se os meus olhos não me denunciaram, então foi o meu queixo, que quase bateu no chão, quando vi que aquele era o mesmo homem que se estava a enrolar com a empregada no banheiro.
Ele abraçou a minha mãe, cobrindo-a por completo, de tão alto que era.
— Anna, este é o Leonardo, o filho do Michael.
Os seus olhos verde esmeralda cruzaram-se com os meus e a sensação de reconhecimento deu-me a certeza de que ele me tinha visto quando fugi.
— Muito prazer, Anna. — pegou na minha mão para beijá-la. — Estava ansioso por te poder conhecer pessoalmente.
Eu não falei nada. Aliás, acho que naquele momento eu não era capaz de dizer fosse o que fosse. Assenti com uma idiota e tentei produzir algo parecido com um, “o prazer é todo meu”, mas soou mais como um grunhido estranho.
— Senta-te Leo, vais ficar na nossa mesa ao lado da Anna. — congelei de imediato — Vou chamar o teu pai, senão por este andar, só começamos a jantar amanhã.
Vi a minha mãe abandonar a mesa, deixando-me sozinha com o meu novo meio-irmão, que ao contrário de mim, parecia estar inabalavelmente calmo.
Ajeitei o meu vestido evitando criar contacto visual, mas então uma mão pousou sobre a minha e vi-me obrigada a encarar aqueles olhos verdes que me desconcertaram.
— Posso te chamar de Anninha ou preferes Anna? — o seu sorriso revelava o quanto ele se estava a divertir com tudo isto.
Limpei a garganta antes de falar:
— Anna me parece mais apropriado. — respondi, tirando a minha mão debaixo da dele.
— Pena. — disse, olhando para a minha mão que se escondia debaixo da mesa — Anninha soa mais íntimo.
Senti o meu rosto ferver de embaraço. Eu não sabia se era o álcool ou se era a sua presença, talvez fosse uma mistura de tudo, mas eu sentia-me completamente exposta.
Saí do banheiro a tempo de ver as costas tatuadas daquela que acabava de me flagrar a comer a empregada. Ela fugiu tão depressa, que quase parecia como se tivesse sido ela quem acabava de ser apanhada com a boca onde não devia. Ri baixo antes de retornar ao toalete.
— Achas que ela vai dizer alguma coisa? — a Beatrice abotoava a camisa apressadamente — Eu preciso do dinheiro! Se ela der com língua nos dentes sou despedida!
Olhei-me no reflexo do espelho, enquanto ajeitava o cabelo com as mãos.
— Não seja ingénua. — cruzei um olhar presunçoso com ela — Quem te contratou fui eu! E além do mais… — ignorei a sua tentativa de me puxar para um último beijo — Provavelmente é só a acompanhante de alguém, nunca a tinha visto.
A minha resposta pareceu relaxá-la um pouco mais. Disse-lhe que esperasse uns dois minutos, para que ninguém notasse que saímos do banheiro juntos e quando cheguei ao salão principal, todos se preparavam para jantar.
As duas primeiras pessoas que vi foram a minha nova madrasta, ao lado da morena com as costas tatuadas. O sorriso de cafajeste ameaçava crescer, a cada passo que me aproximava mais da mesa delas. Ainda estava a uns 3 metros de distância quando Elaine me viu. Ela abriu os seus braços para me receber num abraço caloroso ao qual retribuí mais por educação do que por vontade — odiava abraços — e, finalmente, tive a oportunidade de ver o rosto da dona daquelas costas tatuadas. E ela era apetitosa.
O seu cabelo ondulado estava estrategicamente pousado sobre um dos ombros, o seu rosto era delicado, mas os seus olhos intensos criavam um contraste no mínimo aliciante.
— Anna, este é o Leonardo, o filho do Michael.
Anna? Era esta a filha da Elaine? Isto tinha acabado de se tornar tão mais interessante.
— Muito prazer, Anna. — peguei na sua mão e beijei-a sem tirar os meus olhos escuros, dela — Estava ansioso por te poder conhecer pessoalmente.
Senti o seu corpo enrijecer e a sua face ruborizou. Murmurou uma resposta quase inaudível e voltou a sentar-se. Segui-a e sentei-me do lado dela, enquanto Elaine ia chamar o meu pai.
— Posso te chamar de Anninha ou prefere Anna? — pousei uma mão sobre a dela, conseguindo que me olhasse. Sabia que isso ia deixá-la ainda mais desconcertada, mas era divertido demais para não o fazer.
— Anna parece-me mais apropriado. — deixou a sua mão deslizar e escondeu-a de mim.
— Pena! Anninha soa mais íntimo.
A forma como se mostrou afetada, extasiou-me. Parecia uma adolescente.
Os nossos pais chegaram e ocuparam os seus lugares à mesa. Durante todo o jantar, percebi que a Anna estava tensa ao meu lado. A sua inquietação era palpável, e cada movimento mínimo dela instigava-me a buscar ainda mais sua atenção. Enquanto os pratos eram servidos, o meu pai direcionou uma enxurrada de perguntas sobre a minha semana na Itália.
Respondi a tudo, descrevendo minha visita à minha mãe em Roma. Desde o divórcio dos meus pais, ela havia retornado para a cidade, onde vivia com meu padrasto e avós. As minhas visitas eram regulares, e ocorriam a cada dois meses, e eu costumava passar uma semana por lá. Enquanto compartilhava esses detalhes, pude sentir o olhar de Anna sobre mim, embora ela mal se movesse ou falasse. Tentei fazer com que ela reagisse de alguma forma à maneira como eu procurava o seu olhar, mas ela continuava a evitar-me a todo o custo, até que se viu obrigada a responder às perguntas do meu pai.
— E tu Anna? Como te sentes?
Ela pousou os talheres e limpou a garganta timidamente:
— Bem, um pouco cansada da viagem apenas.
— Imagino que esteja cansada, é um voo muito longo. E ainda por cima chegaste justamente hoje. Mal teve tempo para descansar!
Ela deu um pequeno sorriso e negou com a cabeça:
— Foi escolha minha, na verdade! Por isso não me posso queixar.
— E em relação ao teu novo emprego? — agora foi a Elaine quem perguntou — Não estás ansiosa por começar a dar aulas? Quando me disseram que a vaga de professor de Literatura Moderna estava aberta eu soube logo que a Anna seria a pessoa ideal para o cargo, filha.
Professora? Que sexy…
— Começo daqui a dois dias e ainda não sei onde fica a universidade sequer… — sorriu um pouco mais relaxada.
— Não seja por isso! — exclamou o meu pai — O Leo estudou lá e de certeza que te pode levar amanhã para que conheça o lugar!
— Que ótima ideia! — a Elaine deu um salto no lugar, com um entusiasmo que eu diria ser desnecessário — Eu adorava poder levar-te lá, filha, mas amanhã tenho o dia cheio de reuniões. — acrescentou.
O desconforto da Anna era tão grande que se tornava visível:
— Não há necessidade, eu posso muito bem resolver isso sozinha. Além disso, não quero dar trabalho ao Leonardo!
Adorei ouví-la dizer o meu nome…
— Eu te levo. — interferi. — Será um prazer poder ajudar.
Consegui que me olhasse e desta vez senti uma faísca de algo ao qual não sabia dar nome, mas que me despertou a vontade de suster aquele olhar por mais uns segundos.
— Não é necessário. — insistiu, teimosa. — Além disso, acredito que ele não saiba onde fica a ala de literatura.
— Sei sim, namorei com uma garota que estudava Literatura Inglesa. — garanti-lhe, fazendo-a desistir de ripostar.
A noite continuou em volta de trivialidades e conversas que pouco me interessavam. Quando o assunto girou novamente sobre a ideia de eu levar a Anna à universidade no dia seguinte, ela insistiu que não era necessário, mas eu não dei o braço a torcer. Algo me dizia que se não o fizesse, estaria a perder uma grande oportunidade de me divertir um pouco, com a minha nova irmã.
A festa estendeu-se por mais umas três ou quatro horas, mas logo após o discurso do meu pai, arranjei forma de sair sem ser notado. Era domingo e já passava da meia-noite, o que significava que dentro de pouco tempo, os meus amigos também estariam fora de casa prontos para mais uma noite de festa na capital inglesa. Deslizei silenciosamente pelos corredores, evitando os olhares curiosos dos convidados que ainda desfrutavam da festa. No momento em que alcancei a porta de saída, senti o frio noturno bater-me no rosto e escapulindo-me como um puto de 16 anos, fui direto para casa do Liam.
— Que tal a festa? — perguntou-me colocando um cigarro na boca.
— Mais do mesmo… tremendamente chata! — ele riu, enquanto eu acendia um dos seus cigarros. — No entanto… — dei um trago no cigarro — Conheci a minha irmãzinha.
— É boa?
Ri da sua pergunta. A verdade é que ‘boa’, era um eufemismo. Ela não era “boa”, ela era podre de boa, porém, preferi ocultar esse detalhe do meu melhor amigo.
— Basicamente. — respondi, com um sorriso divertido nos lábios.
Eu não ia dizer o que realmente achava dela, ele não precisava de saber.
Seguimos para o Under por volta das duas. A noite estava especialmente fria, mas isso não parecia ser impedimento para todas aquelas pernas nuas na fila de espera, fila essa que dava a volta ao quarteirão. Os apelidos Van der Wood e Hill eram já bem famosos na noite de Londres, então esperar para entrar nunca era algo pelo qual tínhamos de passar.
Ao entrar na discoteca fui inebriado por em cheiro forte a álcool, perfume e tabaco, nada a que já não estivesse habituado. Todos esperavam por nós na zona VIP, mas eu queria ir para o meio da pista divertir-me um pouco, antes de tratar de negócios.
— Eu vou ali beber qualquer coisa. Já te encontro! — informei o Liam, antes de o abandonar.
Lancei-me para a pista da discoteca, imerso na batida pulsante da música eletrônica que preenchia o ar. As luzes coloridas piscavam freneticamente, lançando sombras e reflexos inconstantes por toda a parte. O calor do local misturava-se com a eletricidade no ar, criando uma atmosfera carregada de energia.
Enquanto eu me movia pela pista, avistei uma mulher deslumbrante à minha frente. Os seus olhos eram como um íman, atraindo o meu olhar, e o seu sorriso irresistível. Ela dançava, sedutora, movendo-se ao ritmo da música, e eu não conseguia resistir à tentação de me aproximar.
Colei o meu corpo ao dela e comecei a dançar, deixando a música nos envolver. Os nossos corpos moviam-se juntos, como se estivéssemos a seguir uma coreografia invisível, e a atração mútua crescia. Naquele momento eu pensava em só uma coisa. COMÊ-LA!
Depois de um tempo a dançar, ela puxou a minha mão e sussurrou em meu ouvido, sugerindo irmos para um lugar mais tranquilo. Sem pensar duas vezes, levei-a até à casa de banho da discoteca. Lá, o ambiente era mais silencioso e íntimo, com uma luz suave que criava uma atmosfera ainda mais sensual.
À medida que nos beijávamos, a minha vontade de a ter ali, naquele momento, se intensificava, mas a verdade é que eu tinha pressa e precisava de bazar.
— Qual é o teu nome? — perguntei, ainda ofegante.
Ela deu-me um sorriso enigmático e sussurrou o seu nome suavemente no meu ouvido.
— Prazer, Rachel! — respondi.
— Não me vais dizer o teu nome?
— Talvez noutro dia. — Dei-lhe um último beijo ardente e saí da casa de banho, deixando-a sozinha à espera de saber qual era o meu nome. Tinha negócios a tratar e miúdas como aquela, apareciam todas as noites.
Acordei naquela manhã, com o corpo pesado e a mente turva. Os efeitos do jetlag ainda estavam bem presentes, deixandome com uma sensação estranha, como se estivesse a flutuar entre dois mundos. Abri os olhos lentamente e encarei o teto do quarto desconhecido, em que me encontrava. Era uma sensação estranha, acordar num lugar tão diferente daquele que estava habituada desde que nasci, mas estava determinada a começar uma nova vida aqui.
Enquanto tentava me situar na realidade, a lembrança da noite anterior começou a emergir, como um filme em câmara lenta. A imagem o rosto do Leonardo, envolvendo-se com uma empregada... O meu estomago revirou ao recordar-se.
À medida que a memória se aprofundava, um nó formou-se na minha garganta. Hoje ele ia me levar a conhecer a University of London, onde eu começaria a trabalhar. A ideia de estar na presença dele, depois do que testemunhei na noite anterior, deixou-me nervosa.
Levantei-me da cama e comecei a me preparar para o dia que se chegava. Olhei para o espelho e respirei fundo, tentando reunir coragem para enfrentar o que estava por vir. Afinal, eu tinha uma nova vida para começar e uma universidade para conhecer, independentemente do aparente mistério que envolvia o Leonardo Van der Wood.
Desci as escadas até ao primeiro andar seguindo o cheiro a café fresco e torradas quentes que enchiam o corredor. Era a minha primeira manhã em Londres, e eu estava prestes a partilhar o pequeno-almoço com a minha nova família. Não pude evitar sentir-me ansiosa.
Ao entrar na cozinha, deparei-me com o Leonardo, que estava de pé junto ao balcão. Os nossos olhares cruzaram-se, e senti uma tensão imediata no ar. Era evidente que a relação entre nós não tinha começado com o pé direito.
— Olá. — murmurei, sem saber se o devia ter cumprimentado ou não.
Ele olhou-me de cima a baixo com um olhar indecifrável e respondeu, com uma voz carregada de hostilidade. — Oi, Anninha!
E então sorriu.
Fiquei momentaneamente sem palavras. Antes que eu pudesse responder, a minha mãe entrou na cozinha com um sorriso caloroso.
— Bom dia, meus queridos! — cumprimentou ela, como se não tivesse notado a tensão no ar.
A sua chegada repentina interrompeu o nosso semi-diálogo hostil e agradeci-lhe mentalmente por isso.
— Que caras são essas? — perguntou a minha mãe — Não dormiram bem?
— Jetlag… — respondi apenas.
A minha mãe pousou uma caneca de café a escaldar na minha frente — Nada que um café não resolva!
Sorri em respostas e segurei a caneca nas mãos. Soprei algumas vezes, na espectativa de que o café arrefecesse, enquanto alguém me observava de canto d’olho.
— Leo, sempre podes levar a Anna a conhecer a universidade, hoje?
Quis repetir o mesmo discurso de ontem e declarar que podia muito bem ir sozinha, mas a verdade é que eu não fazia ideia de como chegaria lá, sequer tinha carro e nunca conduzi do lado contrário da estrada.
Merda! Como é que não me lembrei disso antes?
— Sim, vou só tomar um ducha e trocar de roupa. Depois posso levá-la. — anunciou ele, antes de se levantar e deixar-me a sós com a minha mãe.
A minha mãe começou a preparar o seu café da manhã de forma descontraída. Acho que era algo que ela nunca dispensaria em fazer, independentemente dos vários empregados que trabalhavam naquela casa. O som suave da torradeira a estalar o pão integral relembrou-me das minhas manhãs em Nova Iorque, quando ainda tinha 13 anos e a minha mãe me preparava o café antes de ir para a escola.
Uma súbita saudade fez-me sentir um aperto no coração. A dúvida apesar de silenciada, ainda vivia dentro de mim. E mais uma vez, questionei se estava realmente feliz com a decisão de ter deixado Nova Iorque para iniciar uma nova vida em Londres.
A minha mãe pareceu ter notado o meu momento de introspeção:
— Está preocupada com algo?
— Apenas a pensar… — respondi, lançando-lhe um pequeno sorriso, ela conhece-me bem até demais.
— Eu sei que estás preocupada e cheia de questões dentro de ti. As questões são inevitáveis. Será que tomei a decisão certa? Será que deveria ter ficado? Mas independentemente da decisão que tomes, tu sempre vais ficar com esse sentimento de incerteza, filha. A verdade é que nós nunca sabemos se estamos a tomar as decisões certas.
Anuí em concordância e sorri, ainda abalada pela nostalgia. Ela deu-me um abraço terno e eu agradeci mentalmente, por ter a minha mãe ali comigo.
Estava no fundo das escadas da mansão, à espera de Leonardo quando finalmente ouvi os passos dele a descer o primeiro lance de degraus. O seu cabelo preto e ondulado caia descontraidamente sobre a testa, dando-lhe um ar rebelde. Notei que ele tinha em ambos os braços várias tatuagens e só então consciencializei-me do quão atraente ele realmente era.
Ele usava uma t-shirt preta que realçava o contraste das tatuagens, juntamente com calças da mesma cor. Na mão direita, segurava um casaco de cabedal, o que dava um toque de elegância ao seu estilo descontraído. Na outra mão, segurava um capacete, indicando que estava pronto para sair.
Ao ver o capacete na mão de Leonardo, no entanto, fiquei apreensiva. A ideia de subir numa moto não estava nos meus planos, e era evidente que ele tinha algo do género em mente.
— Está muito enganado se pensas que eu vou subir em cima de uma moto! — disse com firmeza, tentando fazer com que a minha preocupação fosse clara.
No entanto, ele ignorou-me, passando por mim e indo em direção à porta que dava para a saída da casa.
— Está com medo da moto ou de mim? — perguntou, com um toque de provocação.
Senti-me um pouco desconfortável com a situação. A sua questão apanhou-me de surpresa e fez-me refletir sobre o que estava realmente a causar a minha ansiedade: a ideia de andar de mota ou o facto de ter de andar numa mota com ele. Num misto de inquietação e confusão, respondi:
— Não se trata de estar com medo de ti, é apenas... não estava à espera de uma moto, e não tenho experiência nenhuma com isso.
— Calma, Anninha, não é como se estivéssemos a falar de sexo!
Ele deixou-me sem palavras e confusa. Era evidente que a aquela conversa estava a tomar um rumo que eu não procurava, e eu não sabia como reagir perante o humor descontraído daquele idiota que agora era meu meio-irmão.
Aquela sensação de estranheza que pairava no ar era um lembrete constante das minhas aventuras na noite anterior. Eu sabia que tinha cometido um erro, quando me descuidei e deixei-me ser flagrado pela Anna. Agora, restava-me ser mais cauteloso, para que ela não desse com a língua nos dentes, ainda que, ao que tudo indicava, ela não parecia se importar com aquilo que eu fazia, ou deixava de fazer.
Após tomar um duche rápido e mudar de roupa, estava pronto para levar a Anna até à University of London. Olhei-me ao espelho e tentei parecer mais relaxado do que realmente estava. A noite não tinha corrido como planeei. Esperava ter conseguido fechar negócio com o James, porém, as coisas acabaram por correr bastante mal. Acabámos por nos desentender ao ponto de andarmos à porrada ainda dentro do Under. A verdade é que todo o meu corpo doía. Debaixo daquela t-shirt preta, estavam umas quantas nodoas negras que me apanhavam as costelas e parte das costas.
Desci as escadas, já com o capacete na mão, e encontrei a Anna no fundo dos degraus. Olhou-me de cima a baixo e resmungou quando percebeu que íamos de mota.
— Está com medo da moto ou de mim? — perguntei.
— Não se trata de estar com medo de ti, é apenas... não estava à espera de uma mota, e não tenho experiência nenhuma com isso.
Tentei manter um tom leve, mesmo sabendo que a situação era um tanto inusitada:
— Calma, Anninha, não é como se estivéssemos a falar de sexo!
A expressão no rosto dela era digna de ser fotografada, e eu não pude evitar um sorriso divertido. Era claro que a nossa relação estava a começar de forma pouco usual, mas também só nos conhecemos ontem.
— Bem, a não ser que a condução de uma mota seja um fetiche sexual teu, acho que está exagerando. — acrescentei.
Ela claramente não sabia o que dizer, e de repente parecia estar à beira de rir, mas conteve-se. Dei por mim a fazer o mesmo e do nada, percebi que estava a gostar desta interação descontraída. Talvez houvesse esperança para uma relação amistosa. E enquanto Anna aproximava-se da moto, entreguei-lhe um capacete e expliquei como o colocar corretamente. Ela aceitou-o com relutância, mas não resmungou.
Subimos na mota e dei partida. A sensação do vento pelo rosto e o rugido do motor eram familiares para mim, mas para a Anna, era uma experiência completamente nova, e isso era notável. Enquanto nos afastávamos da mansão e rumávamos para a University of London, podia sentir a tensão ressurgir. Senti o seu corpo enrijecer-se. Ela evitava a todo o custo segurar-se em mim, mas o trânsito da cidade e as estradas maltratadas, impediam-na de se soltar do meu torço. Por duas vezes, senti uma dor aguda, quando ela me envolveu com um pouco de mais firmeza, mas não o demonstrei. O melhor era evitar qualquer pergunta.
Conforme avançávamos pelas ruas movimentadas de Londres, a tensão entre nós parecia diminuir novamente. A Anna começou a relaxar o corpo e encontrou maior equilíbrio na mota. O vento e o rugido do motor pareciam finalmente tê-la conquistado.
Enquanto dirigia, aproveitei a oportunidade para puxar conversa:
— Impressão minha ou está gostando do passeio?
Ela pareceu hesitar por um momento, mas depois respondeu:
— Não exatamente…
Ri. Era evidente que ela estava a mentir.
À medida que nos aproximávamos do nosso destino, o meu pensamento voltou para a discussão com o James na noite anterior. Eu precisava de resolver essa situação de alguma forma, urgentemente.
A University of London estava agora à vista. Procurei um estacionamento próximo do novo local de trabalho da Anna e parei. Descemos da mota, e enquanto tirávamos os nossos capacetes, reparei que a Anna parecia um pouco atordoada, mas ao mesmo tempo, mais relaxada.
Fiquei surpreso por vê-la mais à vontade. Agora, era hora de lidar com os assuntos pendentes. Guiei-a pelo campus até ao prédio onde ela iria dar aulas. Pelo caminho, observei o seu olhar curioso enquanto admirava a arquitetura da universidade. E pude observar, ela era mesmo gata. Nem muito alta, nem muito baixa. O seu cabelo escuro e ondulado, passava do meio das costas. Gostava particularmente dos seus lábios. Eram rosados e carnudos.
Finalmente, chegamos ao edifício e ela parou à porta, há espera que eu me fosse embora.
— Tenho de tratar de algumas coisas. Por isso não vou poder te buscar mais tarde.
— Tudo bem… Eu também acho que o melhor é eu aprender a usar o metrô, para não ter de depender de ninguém.
Assenti em concordância e fui embora.
A caminho da casa do Liam procurei absorver-me dos meus pensamentos menos bons. Estava demasiado focado no problema da noite anterior, e não propriamente em como o ia resolver. Precisa de clareza, para não voltar a perder as estribeiras e acabar por me arrepender.
Cheguei à casa do Liam, onde sabia que poderia encontrar o seu apoio e conselhos. Ele era o meu melhor amigo e parceiro de confiança.
Quando entrei em casa, encontrei-o sentado no sofá, a olhar para o nada.
— O que diabos aconteceu na noite passada, Leo? — perguntou-me, com uma expressão séria.
Inspirei fundo, sentando-me de frente para ele e expliquei-lhe todos os detalhes do desentendimento com o James e como as coisas tinham escalado até chegar ao ponto de partirmos para o lado físico.
O Liam não parecia surpreso, mas estava claramente preocupado com a nossa situação.
— Isso é mau, Leo. O James é um tipo perigoso e você sabe disso. Precisamos de resolver isso antes que as coisas piorem.
Concordei com ele. Não nos podíamos dar ao luxo de deixar esta situação sair do controle. O território disputado era muito lucrativo para ambos e a nossa parceria era valiosa. Tínhamos que encontrar uma solução antes que as coisas descambassem para a algo pior.
Perdemos um par de horas a discutir estratégias para lidar com James e como poderíamos chegar a um acordo que beneficiasse ambas as partes. O Liam era habilidoso em negociações e conhecia aquele mundo, tão bem quanto eu, o que tornava a sua ajuda crucial.
Enquanto trabalhávamos na criação de um plano, eu não conseguia afastar o sentimento de que as coisas estavam longe de acalmar. Os nossos negócios eram um terreno instável, e a nossa sobrevivência naquele meio, dependia da habilidade que tínhamos de enfrentar desafios como este. A situação estava cada vez mais complicada, e a resolução dos problemas com o James eram apenas o começo de uma série de conflitos que ainda estavam por vir, se não tomássemos as decisões certas.
— Temos de encontrar uma solução que beneficie ambos e proteja os nossos interesses. — pensei em voz alta e suspirei, sentindo-me entre a espada e a parede.
Quando cheguei a casa, já passava um pouco da meia-noite. A minha boca tinha um sabor a álcool e tabaco. Subi as escadas discretamente, para não ser notado. Não queria ninguém a perguntar-me onde andei o dia todo ou o porquê de estar bêbado numa segunda-feira.
Anna estava parada no corredor, a olhar para a porta do meu quarto. Quando notou a minha presença, a sua expressão mudou completamente, passando de curiosa, para apreensiva.
— Impressão minha, ou estavas prestes a bater à porta?
Ela usava uma t-shirt de banda qualquer, que lhe chegava até meio das coxas. Tinha o cabelo preso num rabo de cavalo desalinhado, e usava uns óculos de hastes prateadas. Pena que ela era enteada do meu pai.
— Estava a ir para o meu quarto.
— Como foi o teu dia? — aproximei-me dela, impedindo-a de abrir a porta.
A Anna ergueu uma sobrancelha, de forma desafiadora e eu não pude evitar sorrir. Afinal ela também ripostava.
— Como se isso te interessasse! — tentou desviar-se, mas eu acompanhei o seu movimento, aproximando-me ainda mais.
Ela engoliu em seco. Os seus olhos encontraram os meus, e por um breve momento, houve um silêncio carregado de tensão entre nós. Baixei o meu rosto para sussurrar no seu ouvido, fazendo-a recuar o máximo que podia:
— Acredite ou não, Anninha, me interesso bem mais do que imagina.
A sua respiração vacilou e eu afastei-me, para poder olhá-la outra vez. Ela observava-me num misto de inocência e curiosidade. Os seus olhos foram de encontro aos meus lábios.
— Você me interessa, Anna. — sussurrei, aproximando-me lentamente dos lábios dela — E gosto particularmente, da forma como me estás a olhar agora… — Passei a mão pelo seu rosto, acariciando-o suavemente. — Pena que somos meio-irmãos, não é?
Vi as suas bochechas ruborizarem antes de bater com as suas costas na porta do quarto e acordar do estado de transe.
— Posso entrar no meu quarto? Por favor? — os seus olhos lançaram-me faíscas.
— Claro… Anninha.— desviei-me para que ela passasse.
— E você está fedendo a álcool. — disse, batendo a porta na minha cara.
Auch! Ela tinha ficado mesmo chateada.
Travei uma vontade desfreada de rir e fui para o meu quarto também. Após fechar a porta, percebi que tinha passado dos limites.
O que diabos estava eu a pensar? Era por isso que não devia beber e ir para casa logo de seguida. Um sentimento de arrependimento apoderou-se de mim.
Aquilo foi no mínimo inapropriado, mas foda-se, estava ansioso por voltar a fazê-lo.
Abri a porta do closet, e olhei à minha volta. Depois de uma breve hesitação, escolhi um vestido castanho comprido. Embora fosse fim de verão, o céu nublado trazia consigo uma brisa fresca. Vasculhei na minha mala — ainda por desfazer — e tirei uma sweater bege, macia e leve, que completava o visual com uma dose extra de conforto. Assim que a vesti, senti uma onda de entusiasmo a invadir-me. Havia algo quase ritualístico em escolher uma roupa que refletisse como eu me sentia por dentro; vestir-me bem sempre teve esse efeito sobre mim.
Enquanto olhava o meu reflexo no espelho, comecei a pensar no dia que tinha pela frente. Hoje ia passear com a minha mãe, para conhecer a capital. Londres, a cidade que já habitava tantas das páginas que eu lia e admirava, agora estendia-se diante dos meus olhos, real e vibrante. Era difícil conter o entusiasmo que tomava conta de mim; eu estava prestes a caminhar pelas mesmas ruas que inspiraram tantos autores que idolatrava. Sentia-me como se estivesse prestes a fazer parte de algo maior, como se a cidade me acolhesse juntamente com a sua história.
Calcei botas confortáveis, perfeitas para caminhar, peguei na minha mala, e verifiquei se não me faltava nada, saindo do quarto com um semblante leve e fechando a porta. Voltando-me para o corredor, a primeira coisa que vi foi a porta do quarto do Leonardo. As memórias do nosso encontro na noite anterior recordaram-me do quanto eu não queria ter de me cruzar com ele outra vez, pelo menos tão cedo.
Até agora ainda não tinha percebido o porquê de parar à porta do seu quarto àquela hora da noite, especialmente porque, do pouquíssimo que conhecia dele, nada me agradava. Talvez fosse simplesmente a minha curiosidade natural em querer desvendar mistérios. Porque se havia algo que ele era, era misterioso.
Quando desci, a minha mãe já me esperava, com um motorista da Uber ao seu lado, então partimos para explorar Londres, ‘prontas para criar memórias que perdurariam para sempre’, como ela fez questão de dizer.
Foi uma tour e tanto. Ela mostrou-me todas as principais atrações durante as primeiras cinco horas. Depois de almoçarmos, dispensou o motorista e decidiu que íamos fazer o resto do passeio de metrô, para que eu aprendesse quais eram as principais ligações e onde elas me levavam.
Enquanto explorávamos Covent Garden, minha mãe sugeriu uma pausa para tomarmos um chá. Sentamo-nos numa esplanada e pedimos um chá preto enquanto ela me fazia um relato aprimorado sobre como era trabalhar na University of London. Meia hora mais tarde, decidimos continuar o nosso passeio. Estávamos a passar numa rua movimentada, quando encontrei uma loja de materiais de arte. Os pincéis, as tintas e as telas exibiam-se na montra, como se me chamassem.
A minha mãe, atenta como sempre, captou o brilho nos meus olhos antes mesmo que eu pudesse dizer algo. Com um sorriso terno, apenas acenou com a cabeça, como quem entende que certos convites não precisam de palavras. Entrei na loja com a sensação de estar redescobrindo uma parte de mim que havia ficado esquecida
Dentro da loja, perdi-me entre os corredores e não consegui evitar comprar um bocado de tudo aquilo que me aparecia à frente. As cores vibrantes das tintas, a maciez dos pincéis e o cheiro único do papel branco instigavam em mim, memórias adormecidas. Com cada material que eu colocava na cesta, sentia uma pequena parte de mim ser restaurada. Era como se, finalmente, após semanas de neblina pós fim de relacionamento e mudança radical de vida, eu estivesse a começar a encontrar o caminho de volta para mim mesma. Ao pagar pelas minhas mais recentes aquisições, senti-me genuinamente feliz. Quando deixei Nova Iorque, tive de também deixar todas as minhas pinturas para trás, assim como todo o material de arte. Pensei que, vindo para Londres, nunca mais ia voltar a pintar. Agora, no entanto, com uma saca cheia de compras e o coração leve, percebi que a arte nunca me deixou de verdade. Ela só estava à espera de ser redescoberta.
Quando chegamos, a mesa estava posta e o cheiro tentador do jantar preparado pela governanta pairava no ar. Subi para o meu quarto para poder pousar todo o meu novo material de pintura e apressei-me a descer de novo, preocupada por não fazer com que ninguém me esperasse.
No entanto, uma conversa que vinha do quarto do Leonardo chamou-me a atenção. A porta do quarto estava ligeiramente entreaberta, e eu consegui perceber uma certa acidez na sua voz enquanto discutia em chamada. Intrigada, parei por um momento, mesmo consciente de que aquilo que eu estava a fazer era errado. Ele estava ao telefone com alguém chamado James e discutia sobre a entrega de algo até sexta feira. A conversa, embora codificada, transbordava tensão.
— Sim, toda a mercadoria tem que ser entregue até sexta-feira. O negócio tem que correr sem problemas desta vez — disse o Leonardo num tom que transpirava autoridade.
O meu coração acelerou quando percebi que estava a testemunhar uma conversa que não era suposto eu ouvir. Tentei respirar fundo, mas antes que me apercebesse, a conversa tinha terminado. Com um súbito pânico, apressei o passo em direção à sala de jantar, antes que ele me encontrasse ali.
Quando entrei na sala, a minha mãe e o seu Michael já estavam sentados à mesa. O ar pareceu tornar-se mais denso quando o Leonardo chegou e se sentou ao meu lado. Senti o suor começar a escorrer pela minha nuca, enquanto a sua presença parecia tornar o ar irrespirável. Ele sabia? Não sabia? Meu coração parecia querer fugir pela garganta, mas forcei um sorriso, mantendo-me firme. Não podia vacilar.
Engoli em seco e desviei o olhar, concentrando-me na refeição que era servida à minha frente. O som dos talheres a tocar nos pratos e a conversa entre os nossos pais eram como uma música de fundo para mim. Tentei ignorar a sua presença e focar-me na conversa superficial à mesa. Ainda que ele não me tivesse dirigido a palavra, era como se os seus movimentos falassem comigo.
Uma pergunta persistia na minha mente: Será que ele sabia que eu tinha ouvido a sua conversa? Os seus olhares insinuantes e o ar pesado na sala pareciam dar-me uma resposta silenciosa e afirmativa, mas ao mesmo tempo, este tinha tido este mesmo comportamento desde sempre, daí eu não saber o que realmente pensar.
O brilho suave da luz das velas no centro da mesa, tremulava levemente, projetando sombras suaves nas paredes, enquanto o som dos talheres ecoava de forma distante. Parecia que, naquela sala, só nós dois estávamos realmente presentes, envoltos numa tensão invisível.
De repente, ele decidiu quebrar o silêncio, falando num tom casual e com uma pontada de malícia disfarçada.
— Anna, ouvi dizer que andaste a explorar Londres. É fascinante, não é?
Os nossos pais continuavam a conversar animadamente, alheios à dinâmica tensa entre nós. Tentei manter a calma e respondi com um sorriso forçado.
— Sim, é uma cidade incrível.
Ele inclinou-se ligeiramente na minha direção, como se quisesse partilhar algum segredo. O seu braço deslizou lentamente pela mesa, os dedos roçando levemente na minha mão. Um gesto simples, mas que me fez gelar. — Tenho a certeza de que Londres tem muito mais para oferecer do que aquilo que se vê à superfície. Às vezes, as verdadeiras maravilhas estão escondidas nas sombras, não achas?
Estava a jogar um jogo perigoso, insinuando algo que eu não conseguia decifrar completamente. Engoli em seco, mas mantive a compostura.
— Bem, há sempre algo novo para descobrir, suponho.
Ele manteve o sorriso enigmático nos lábios por um momento, os seus olhos fixos em mim, como se já soubesse exatamente o que eu tinha ouvido. Numa fração de segundo, voltou ao silêncio, mas a tensão entre nós continuava a crescer, mesmo sem palavras. Uma coisa era certa, ele estava a adorar brincar com a minha mente.
A pergunta queimava na minha mente: deveria confrontá-lo? Perguntar sobre a tal "mercadoria" que ele mencionara ao telefone? Mas e se estivesse a interpretar mal? Se eu me revelasse, poderia estar a mergulhar num jogo perigoso que ainda não compreendia completamente.
O Leonardo quebrou os meus pensamentos com outra insinuação:
— Às vezes, Anna, o que fazemos à noite define quem realmente somos. O que achas que um bom juiz como o meu pai faria se descobrisse o que acontece nas sombras?
Ele voltou ao seu silêncio enigmático, enquanto eu tentava digerir as suas palavras. Algo estava muito errado com o Leonardo, e eu sabia que tinha que descobrir o que era.
Após o jantar, voltei para o meu quarto. Deitei-me na cama, com os olhos fixos no teto, perdida nos meus próprios pensamentos. O silêncio no quarto era quase opressor, o contraste perfeito ao turbilhão de pensamentos que fervilhavam na minha mente. Várias questões ecoavam incessantemente na minha cabeça, mas uma em especial não me deixava fechar os olhos: Por que me sentia tão vulnerável e exposta na presença de alguém que mal conhecia?
Revivi cada momento do jantar, tentando encontrar uma lógica para a minha inquietação. O som da sua voz, o peso dos seus olhares, a maneira como parecia adivinhar o que eu estava a pensar… Cada gesto parecia estudado, como se ele estivesse a jogar um jogo, e eu, involuntariamente, tivesse me tornado uma peça no tabuleiro.
A verdade era que a sua presença invadia os meus pensamentos de uma forma desconfortável. Havia algo no seu comportamento que, embora sutil, trazia à superfície uma sensação de perigo. Ele sabia mais do que deixava transparecer, e eu sentia que também sabia mais sobre mim do que deveria. O que seria essa mercadoria? E por que havia uma urgência tão evidente no seu tom?
Mas mais do que isso, o seu poder sobre mim, mesmo que apenas psicológico, era o que mais me incomodava. A sensação de estar a ser analisada, de ter os meus segredos à mercê de alguém que eu mal conhecia, deixava-me vulnerável.
Talvez fosse apenas a minha imaginação a pregar partidas. Ou talvez, no fundo, houvesse algo de errado que eu ainda não conseguia perceber completamente. Mesmo assim, a pergunta continuava a latejar na minha mente: o que ele realmente queria de mim? E mais importante, até onde eu estava disposta a ir para descobrir?
Fechei os olhos, na esperança de que o sono viesse e dissipasse os meus receios. Mas, naquele momento, sabia que o verdadeiro confronto com o Leonardo estava apenas a começar. Mas por quê? Talvez fosse a falta de familiaridade com ele, ou talvez as memórias de uma conversa ouvida ao acaso ainda pairassem na minha mente.
A sexta-feira finalmente chegou. Era quase meia-noite e eu estava a acabar de me preparar para sair. Olhei para o telemóvel quando ele começou a vibrar; era o Liam. Atendi a chamada e a voz dele soava impaciente do outro lado da linha.
— Van der Wood, está tudo pronto. O James está à espera no Under. Ele quer a mercadoria assim que chegar.
Assenti, mesmo que ninguém pudesse ver, e agradeci ao Liam pela atualização.
Enquanto me preparava para sair, uma batida na porta interrompeu os meus pensamentos. Era o meu pai, com um olhar inquisitivo que quase me fez questionar se ele poderia ter ouvido alguma coisa.
— Leonardo, vai sair?
Assenti, mantendo a expressão neutra. — É sexta-feira!
O meu pai estudou-me por um momento, como se tentasse decifrar os meus pensamentos, mas acabou por se afastar com um aceno de cabeça. Se ele soubesse no que eu realmente andava metido, deserdava-me.
Desci as escadas apressado. Enquanto me dirigia para a porta, o telemóvel voltou a vibrar no meu bolso. Era o Liam, a informar-me que tudo estava a postos. O meu coração batia desenfreadamente enquanto saía da mansão. Todo o meu corpo era adrenalina naquele momento. Coloquei o capacete, liguei a mota e saí de casa.
A cidade de Londres estendia-se à minha frente, enquanto eu ultrapassava todos os carros e sinais vermelhos que surgiam no meu caminho. No início, tudo começou como uma brincadeira idiota de quem tinha demasiado dinheiro e estava entediado, mas agora era diferente. Já não éramos adolescentes; eu e o Liam sabíamos muito bem onde estaríamos a nos meter e, mais importante, com quem estávamos a lidar.
A moto rugia enquanto eu percorria as ruas escuras de Londres em direção ao Under. O vento frio da noite chicoteava-me os braços, mas a adrenalina corria quente nas minhas veias.
Ao chegar à discoteca, a batida pulsante da música eletrónica escapava pelas portas entreabertas, anunciando a atmosfera frenética que me aguardava lá dentro. Estacionei a mota e entrei.
James já estava lá, sentado num sofá. À volta dele estavam várias mulheres, todas loiras. Os seus olhos encontraram os meus quando entrei e, com um aceno sutil, chamou-me. Avancei, mantendo a postura, alheio a tudo o que acontecia à minha volta.
— Van der Wood, você demorou. — disse o James com um sorriso cínico.
— Eu estou aqui agora. — respondi, secamente.
Fomos para uma sala reservada, longe de qualquer olhar curioso. As luzes tênues davam uma atmosfera clandestina ao lugar. Um minuto depois, o Liam apareceu com uma chave nas mãos e entregou-a ao James. Este, com um aceno, indicou a um dos seus capangas que pegasse na chave, e ele assim o fez.
Esperamos uns dez minutos até que o capanga voltasse com a confirmação de que a mala do carro estava cheia, como combinado. A troca de palavras foi mínima, limitando-se a gestos e olhares que comunicavam mais do que qualquer conversa poderia expressar.
A transação estava concluída.
Fui embora imediatamente. Não estava com vontade de ficar ali; na verdade, precisava de estar sozinho. Puxei um cigarro e pousei-o entre os lábios. Caminhei a passos lentos, deixando a fumaça dissipar-se na noite escura enquanto refletia.
Estava certo de que a Anna tinha ouvido a minha conversa com o James ao telemóvel. Ela não parecia saber nada em concreto, mas eu também não a conhecia bem o suficiente para tirar esse tipo de conclusões. Por isso, a partir de agora, tinha de ter o triplo do cuidado. Já era a segunda vez que vacilava perto dela.
Entrei na mansão, tendo o cuidado de deixar a porta fechar-se silenciosamente atrás de mim. O corredor estava iluminado por luzes suaves. Enquanto subia as escadas, os ecos dos meus próprios passos acompanhavam os pensamentos que não pareciam querer me dar tréguas.
Decidi tomar um banho. A água quente escorria pelo meu corpo, que agora já quase não tinha marcas ou sinais de luta. Deixei-me ser envolvido pelo calor da água, procurando abstrair-me de tudo aquilo que me estava a incomodar. Vesti umas calças de fato de treino e deitei-me na cama.
Ao deitar-me, fechei os olhos, numa tentativa forçada de adormecer, mas eu não estava habituado a dormir tão cedo; ainda nem sequer eram três da manhã.
De repente, algo rompeu o silêncio, interrompendo a minha tentativa fracassada de dormir. Uma melodia suave vinha do quarto da Anna e eu reconheci-a imediatamente. Era uma música que a minha mãe costumava ouvir.
Fui surpreendido pelo fato de a Anna conhecer aquela melodia. Era uma melodia que remetia à minha infância, quando a minha mãe ainda vivia connosco.
Deixei-me ser envolvido pela música que fluía do quarto ao lado. As notas pareciam transportar-me para um tempo em que as preocupações eram menos complexas e a presença da minha mãe enchia o ambiente com um conforto que já não me era tão familiar.
Permaneci deitado na cama e, eventualmente, acabei por adormecer.
A manhã de sábado abriu-se silenciosa e tranquila na mansão, com a ausência temporária da minha mãe e do meu padrasto, que decidiram passar o fim de semana na casa de campo da família Van der Wood. Optei por tomar o pequeno-almoço sozinha; a solidão ocasional era algo que eu apreciava genuinamente.
Distraída, mergulhei nas páginas de um livro de Agatha Christie. O cheiro do café flutuava no ar. Era o meu primeiro fim de semana em Londres e eu ainda não tinha planos. Sabia que precisava de começar a sair e a obrigar-me a fazer novas amizades. Os meus amigos estavam todos em Nova Iorque agora, e apesar de estar a adorar a minha reaproximação com a minha mãe, eu precisava de amigos da minha idade.
Comecei a ouvir vozes animadas e risos que vinham do jardim. Curiosa, levantei-me da mesa e caminhei até à janela da cozinha. Lá fora, estava o Leonardo com amigos. A piscina era o centro da festa, com raparigas pouco vestidas a tipos da mesma forma. O meu meio-irmão, por sua vez, estava agarrado a uma morena voluptuosa.
Neguei com a cabeça em desaprovação. Uma parte de mim sentiu-se desconfortável com aquela cena, enquanto outra tentava manter a indiferença. Tentei regressar ao meu livro, mas o barulho cada vez mais alto, estava a roubar-me toda a atenção.
Decidi afastar-me da janela, retornando à mesa do café da manhã, mas agora alguém tinha posto música a tocar. Resmunguei internamente. A minha vontade era de ir lá e desligar aquela música, mas a verdade era que eu não me sentia confortável para tal. Ainda que a minha mãe me dissesse inúmeras vezes que esta era também a minha casa, eu não podia evitar sentir-me um tanto quanto uma forasteira, a viver uma vida que não me pertencia.
As vozes no jardim misturavam-se com o barulho alto da música eletrônica, formando um ruído caótico que contrastava com a tranquilidade que eu tinha esperado para este fim de semana. Com um suspiro, percebi que, de alguma forma, era hora de eu começar a envolver-me mais nesta nova vida londrina, mesmo que isso significasse lidar com o Leonardo e os seus amigos.
Com determinação recém-adquirida, fechei o livro e levantei-me. Talvez fosse a hora certa para conhecer novas caras, mesmo que isso significasse ter de lidar com o Leonardo. A música, ainda que não fosse nada o meu estilo, era animada e, aliada aos risos vindos do jardim, servia como um lembrete de que a minha vida precisava de alguma agitação. Algo que já não existia desde os meus 19 anos, quando comecei a namorar com alguém sete anos mais velho do que eu.
— É hora de deixar o medo para trás, Anna! — essas palavras tornaram-se o meu mantra enquanto atravessava os corredores da mansão em direção à suposta festa.
Ao chegar ao jardim, respirei fundo e parei a alguns metros de distância, permitindo-me observar a cena antes de me entrosar. O ambiente era caótico, para dizer no mínimo. Além de música alta, biquínis e álcool, havia um cheiro de maconha no ar, álcool e droga às onze da manhã.
Automaticamente, percebi que tinha tomado uma decisão precipitada, mas antes que eu pudesse voltar atrás, uma voz chamou a minha atenção. Era um rapaz atraente, que se aproximou com um sorriso cativante.
— Nunca te vi por aqui. É nova? — perguntou ele, com um olhar curioso e um toque de flerte na voz.
Percebi que talvez o destino tivesse outros planos para mim, afinal. E não ia ser idiota de não aproveitar a oportunidade. Lancei um sorriso ao loiro de metro e oitenta que estava na minha frente.
— Sim, sou nova. Chamo-me Anna, e você?
— Prazer, Anna. Eu sou o Gabriel. — os seus olhos percorreram todo o meu corpo com um brilho que não me passou despercebido — Espero que não esteja tentando fugir da festa.
— A verdade é que estava pensando nisso, mas agora acho que vou reconsiderar — respondi de forma audaz e não pude evitar surpreender-me comigo mesma.
Era provavelmente a primeira vez em anos que flertava com alguém.
— Oh, eu sou super a favor da mudança de ideias. Afinal, o que é uma festa sem uma boa companhia?
Gabriel exibia um sorriso malandro no rosto, bastante tentador. Vestia uma camisa semi aberta e uns calções de praia, e a sua postura revelava uma confiança irresistível.
— E qual seria o teu truque para tornar esta festa mais interessante? — perguntei, atrevida.
— Bem, acho que parte disso envolve conhecer alguém fascinante. Como você, por exemplo. — o tom sedutor não passou despercebido. Ele estava a flertar comigo, e eu não conseguia negar a faísca de entusiasmo que isso me trouxe.
Talvez… Talvez isso fosse o que eu precisava. Não a festa em si, mas o simples facto de me permitir sentir algo diferente.
— Uau, não perde tempo, né? — comentei, em brincadeira.
Os seus olhos azuis brilhavam com intensidade.
— Quando algo é bom, não vejo razão para perder tempo.
O modo como ele falou, com uma confiança envolvente, fez-me esquecer o fato de me ter questionado se devia realmente ficar ali ou não. No fim, acabei por aceitar a companhia dele. Gabriel sorria enquanto me guiava para mais perto da área onde a festa estava realmente a acontecer. Ofereceu-me uma bebida, e eu aceitei, ainda que não fosse da minha natureza beber álcool àquela hora.
Vinte minutos de conversa mais tarde, percebi que ainda não tinha visto o Leonardo em parte alguma, mas isso não me preocupou o suficiente para parar a conversa com o Gabriel e aos poucos, a festa começou a parecer menos intimidante. Talvez deixar o medo para trás e arriscar-me a conhecer novas pessoas fosse exatamente o que eu precisava para me integrar.
Passado mais algum tempo, finalmente avistei o meu meio-irmão a sair da casa da piscina, com uma morena, mas isso não fez os meus olhos revirarem-se. Na verdade, o meu incômodo surgiu quando o vi ir em direção a outra moça, para beijá-la exatamente da mesma forma que o tinha visto beijar a empregada na noite em que nos conhecemos. Não pude conter uma careta de nojo.
Infelizmente, o seu olhar cruzou-se com o meu e um misto de surpresa e irritação surgiram na sua expressão, como se a minha presença o incomodasse.
Começou a caminhar a passos largos, com uma determinação descabida.
— Anna, o que está fazendo aqui? — ele perguntou, num tom de voz mais alto do que o habitual.
Ele estava tocado pelo álcool, outra vez. Será que aquilo era rotina?
Gabriel manteve um sorriso educado, percebendo a tensão no ar. Senti-me imediatamente desconfortável, sem entender a razão da reação do Leonardo.
— Estou apenas a aproveitar a festa. O Gabriel foi... — tentei explicar, mas fui interrompida abruptamente.
— Isto não é lugar para ti, Anna! — disse ele, interrompendo-me com uma expressão séria.
A atmosfera transformou-se automaticamente num silêncio constrangedor, enquanto eu tentava processar o comportamento estranho do Leonardo. O Gabriel lançou-me um olhar de compreensão antes de se afastar, deixando-me ali, a lidar com o meu meio-irmão.
— O que é que te deu? — perguntei, irritada com a atitude dele. — Por que afugentou o Gabriel? Ele não fez nada de errado!
Leonardo bufou, claramente incomodado.
— Não precisa se preocupar com os meus amigos. Ele só queria uma coisa, e você não precisa se rebaixar dessa forma.
— Rebaixar? — O choque transformou-se em raiva — Isso não é da tua conta, seu idiota. Eu sou adulta e sei cuidar de mim mesma — retorqui, exasperada. — Aliás, talvez eu estivesse mesmo à espera que ele me beijasse.
Leonardo pareceu surpreender-se e depois a sua expressão transformou-se em… raiva?
— Não acredito que você tá falando sério! — ele resmungou, visivelmente irritado.
— Não estou brincando, Leonardo — cruzei os braços, encarando-o com firmeza. — E mesmo que estivesse, é problema meu.
O olhar dele permanecia fixo em mim, como se estivesse a tentar decifrar alguma coisa.
— Não esperava que fosse assim — ele finalmente disse, e a sua expressão parecia mais de decepção do que qualquer outra coisa.
— Me poupe, Leonardo. Já percebi que tu gosta de julgar, mas eu não preciso da tua aprovação. A minha vida não te diz respeito — afirmei com firmeza, começando a virar-me para me afastar.
Os dedos dele cravaram-se na minha pele, firmes demais, e a sua mão não se moveu, mesmo quando tentei puxar o braço.
— Não é isso, Anna. Só não quero que se meta onde não foi chamada — o tom de voz era mais suave e ameaçador ao mesmo tempo.
Por um momento, a minha raiva diminuiu e foi substituída por confusão. O que estava acontecendo? Era como se ele quisesse ter certeza de que eu não faria nada sem a aprovação dele.
— Sei cuidar de mim, Leonardo. Não precisa se preocupar — disse, suavizando o meu tom, mas afastando-me em definitivo.
Dei-me conta de que a festa, os sorrisos e a música tinham perdido o apelo. A personalidade desconcertante do Leonardo era demais para mim.
A raiva explodiu dentro de mim quando vi a Anna voltar para dentro da casa, como se tivesse vencido. Nem sei porque reagi assim, mas a vontade de esmagar qualquer um que ousasse cruzar o meu caminho, crescia a cada segundo. Devia ter ficado calado, devia tê-la ignorado, mas a visão do idiota do Gabriel colado à Anna, como se fossem inseparáveis, fez o sangue ferver nas minhas veias. Que merda é que eles tinham para conversar?
Tentei ignorar a sensação incômoda e forcei-me a entrar novamente no espírito da festa. Peguei uma bebida do bar, mas o sabor era amargo. A melhor forma de lidar com esta situação era procurar algo que realmente me abstraísse.
Procurei a gaja que levei para a casa da piscina e encontrei-a no instante seguinte, a abanar-se ao ritmo da música. Aproximei-me com urgência, fazendo questão de traçar um caminho de beijos que desciam do seu pescoço ao decote. Começamos a dançar, e eu tentei perder-me na música enquanto as minhas mãos percorriam o corpo dela.
Beijei a menor, puxando-a para mim com uma urgência que eu mal compreendia. Por alguns segundos, tudo sumiu. Mas bastou me afastar para que a imagem da Anna voltasse com uma força violenta. Nada preenchia aquele vazio.
Deixei a garota sozinha, decidido a encontrar a Anna.
Caminhei em direção ao interior da casa, afastando-me da agitação da festa. A batida da música desvaneceu-se à medida que me distanciava, deixando-me apenas com o som dos meus próprios passos e pensamentos. Entrei na sala, onde a televisão lançava uma luz suave sobre os móveis. Ela estava ali, sozinha, e isso mexeu comigo de uma forma que não entendi. Eu queria gritar, fazer qualquer coisa, mas nada saía. Que merda é que ela estava a fazer comigo?
Havia algo na forma em como ela ali estava, tão distante, que despertou uma mistura de emoções em mim. A raiva deu lugar a uma espécie de ansiedade e eu vi-me sem saber o que fazer ou dizer.
– Anna – murmurei, a voz presa na garganta.
Ela virou-se devagar, com o olhar cheio de perguntas que eu não estava disposto a responder. O silêncio pesava no ar, mas não me importava. Dei um passo à frente, mais perto dela do que deveria. Anna adquiriu uma postura tensa, os olhos estreitaram-se com surpresa e desconforto. Eu não me importava...
– O que fazes aqui? – perguntei, fingindo desinteresse, quando a raiva ainda pulsava dentro de mim.
– Estou a ver televisão. E o que é que isso interessa? – ela respondeu, num tom carregado de uma resistência que me irritava.
Aquilo só piorava as coisas. Ela não entendia, não via o quanto o simples fato de estar ali, a ignorar-me, deixava-me louco. Ela fingia que nada importava. Como se eu fosse irrelevante. Apertei o maxilar, mas não deixei as palavras saírem, não sabia se podia controlá-las:
– Podes voltar para a festa, se quiseres – disparei, sem conseguir manter o olhar fixo nela.
– Você tá brincando comigo, só pode! – a voz dela ficou mais firme, mas eu não estava a ouvir de verdade.
Ela levantou-se e tentou fugir outra vez. Porque é que ela tinha sempre de fugir? O sangue subiu à minha cabeça, e as palavras saíram sem eu pensar.
– Anna, para! – a ordem soou mais dura do que eu esperava. Ela parou, mas não se virou.
– Não sei o que está a acontecer comigo... – admiti, lutando contra a pressão dentro de mim, sem saber o que aquilo significava, mas com a certeza de que tinha que ser resolvido. De alguma forma.
Ela finalmente virou-se, mas o olhar dela não me acalmava. Só fazia as coisas piorarem.
– Leonardo, eu não sei o que esperas de mim. As coisas estão estranhas desde o início. – a voz dela soou fria, quase distante – A tua vida não me interessa. Eu não quero fazer parte dela. Nunca quis.
As palavras dela são como um golpe bem dado. Mas não porque magoam. Porque me desafiam. Quem ela pensa que é, a dizer que não queria nada comigo? Que não faz parte da minha vida? Ela está muito enganada se acha que eu a vou deixar decidir isso.
– Devíamos acabar com esta tensão – murmurei, tentando soar controlado, mas sentindo o controle escapar.
Ela sacudiu a cabeça, quase como se estivesse a tentar afastar algo desagradável.
– Somos muito diferentes, Leonardo. – ela falou de um jeito que me irritou ainda mais – Prefiro manter a distância.
Diferentes demais? Isso era desculpa de quem não queria enfrentar a verdade. Era óbvio que ela estava a fugir. A raiva queimava, e eu não conseguia parar de pensar que ela estava a tentar me escapar outra vez.
– Diferentes demais? – as palavras saíram entre os dentes – Estás a fugir, outra vez. Não percebes nada, Anna.
Ela ficou quieta, sem se virar para mim. Isso só me irritava mais.
– Sempre a fugir – murmurei – Fugir de mim, é isso?
Ela virou-se, o rosto duro, como se estivesse a tentar manter uma distância.
– Sim, de ti e dessa tua estranha necessidade de controlar tudo à tua volta. Eu não sei em que mundo vives nem o quanto estarás habituado a controlar as pessoas à tua volta, mas ficas já aqui o aviso de que eu não vou ser mais uma dessas coisas que tu achas que podes controlar.
– Não é sobre controlo, Anna – rebati, dando mais um passo, sem perceber que estava a encurtar o espaço entre nós – És tu que não entendes. O que é que queres? Fugir sempre que te sentes... o quê? Desconfortável?
Ela riu, mas o som foi amargo. Não era uma risada de quem achava graça. Era de quem desistiu.
– É isso. Tu queres sempre algo, sempre esperas que o mundo gire à tua volta. E quando não acontece, fazes isto. Ficas irracional, imprevisível. Isso é assustador, não gosto de pessoas como tu.
Assustava-a? Não podia ser. Ela estava a distorcer as coisas.
A raiva ameaçou tomar conta de mim novamente, e eu quase não a deixei ir. Mas ela estava a sair.
– Anna... – comecei, mas as palavras morreram antes de chegarem a algum lugar. Ela não se virou dessa vez. Ela desapareceu no corredor, e tudo o que restava era um sentimento de desafio, de que da próxima vez, eu não a ia deixar escapar.
A última semana foi uma montanha-russa emocional. Desde a cena deplorável com Leonardo na festa, ele desapareceu completamente. Ninguém parecia minimamente preocupado com isso, o que me fez questionar se aquilo era algo comum na vida dele. Talvez ele desaparecesse assim com frequência, e eu estava a dar demasiada importância.
Ainda assim, a curiosidade sobre o seu paradeiro ocupava demasiado espaço na minha cabeça.
Onde diabos estava ele? Mal nos conhecíamos, e eu não conseguia parar de pensar sobre isso.
Tentei focar-me em outras coisas: pintei freneticamente, como se a tela pudesse absorver todas as perguntas não respondidas. Até os livros da biblioteca da mansão, com as suas mil histórias diferentes, tornaram-se refúgios temporários. Mas nada conseguia sufocar totalmente a sensação de que algo se estava a passar. Algo do qual eu não estava a par…
O tempo parecia arrastar-se. Durante os dias, a solidão era a minha única companhia. A minha mãe era a única presença constante, mas sentia que até ela estava a perceber a minha inquietação. À noite, ouvia os barulhos distantes de fundo da cidade, mas eu não fazia parte daquele mundo. Ainda não tinha feito amigos aqui, e essa realidade tornava-se cada vez mais evidente.
Estava no meu quarto, a pintar, quando vozes alteradas ecoaram do andar de baixo. Reconheci o tom exaltado do Michael e, para meu espanto, a voz fria e desdenhosa do Leonardo. O choque fez-me largar o pincel no chão, e fui até a porta, escutar a discussão.
— Onde diabos estiveste, Leonardo? — A voz do Michael era uma mistura de frustração e preocupação. — Já tentei falar contigo durante toda a semana, e nada. Nem uma única resposta!
— Relaxa, pai. Não tenho que dar satisfações a ninguém. — O tom que o Leonardo falava era afiado, carregado de um desprezo frio.
— Não precisas de dar satisfações? Estou a brincar, por acaso? Liguei à tua mãe! Ela também não sabia nada! – A fúria de Michael tornava-se cada vez mais audível.
— Não te preocupes, estou bem. Tenho a minha vida, não precisas de te meter.
Senti-me dividida entre continuar a escutar ou afastar-me. A discussão parecia cada vez mais intensa, e o som de passos pesados a subir as escadas deixou-me paralisada. O meu coração disparou quando vi o Leonardo, a expressão fechada e os olhos verdes e frios.
— Oi. — Murmurei, tentando não demonstrar a tensão que invadia o meu corpo.
— Oi. — ele respondeu num tom carregado de sarcasmo, sem parar.
— Tudo bem? — perguntei, mais por impulso do que por preocupação real.
Ele parou a centímetros da porta do quarto, apenas para me olhar de relance.
— Não é da minha conta. — as palavras saíram com um certo esforço. Ele claramente não queria prolongar a conversa.
— És rápida a aprender. — disparou, com um sorriso frio antes de continuar a subir.
Quando ele ameaçou entrar no quarto, senti algo a remoer dentro de mim. A forma como ele agia, como se o mundo não importasse, deixava-me cheia de frustração e... algo mais que eu não conseguia explicar. Dei por mim a segui-lo, sem realmente saber porquê.
— Leonardo! — chamei, a voz a sair mais firme do que esperava. Ele parou, virando-se lentamente.
— O que foi agora? — perguntou, sem emoção.
— Não sei o que se passa contigo. Desapareceste e voltas como se nada fosse. – as palavras saíram rápidas, sem filtro. – Mas não podes simplesmente ignorar toda a gente.
Ele arqueou uma sobrancelha, uma mistura de surpresa e irritação no olhar.
— Quem disse que estou a ignorar? — aproximou-se, o tom desafiador. — Talvez seja exatamente o contrário.
Fiquei sem palavras por um momento, sem saber o que responder. A proximidade dele deixava-me inquieta, mas não da forma que esperava. Havia algo perigoso na forma como ele me olhava, como se estivesse a desafiar-me a continuar. E, naquele momento, percebi que talvez eu não o conhecesse de todo.
— Fica longe de mim. — murmurei finalmente, dando um passo para trás, mas sem a convicção que esperava sentir.
Ele não disse nada. Apenas sorriu de lado, um sorriso que me deixou a questionar o que realmente se passava na cabeça dele e depois entrou no quarto.
Naquela semana, mergulhei num caos auto imposto. Após a discussão na festa com Anna, algo dentro de mim explodiu, desencadeando um turbilhão de emoções que eu mal conseguia controlar. Era óbvio: precisava desesperadamente de me afastar de tudo. Não apenas dela, mas de todos.
Refugiei-me no apartamento do Liam, onde as garrafas de álcool se tornaram minhas únicas companheiras. As noites passaram em branco, preenchidas por música alta, corpos estranhos e conversas vazias. Miúdas iam e vinham, mas o efeito delas era temporário. Acordava cada manhã com os ecos das risadas e os nomes delas esquecidos, mas a imagem de Anna a virar-me costas... essa, insistia em permanecer.
O apartamento, com as suas paredes frias, tornou-se uma espécie de prisão. Eu tentava afogar as memórias do dia da festa com álcool, mas quanto mais bebia, mais nítida elas ficavam. As cenas repetiam-se na minha mente, como a minha cabeça estivesse a brincar comigo. Comecei a perceber que o motivo pelo qual a Anna não saía dos meus pensamentos era simples: eu não a podia ter.
Ela era a enteada do meu pai. Minha irmã por afinidade. Na teoria, não era um crime, mas na prática, era como cometer um delito. Especialmente aos olhos do meu pai, que esperava que eu seguisse as regras, que me comportasse da maneira que ele julgava correta. Mas isso era algo que eu já não fazia há muito tempo e hoje em dia... desafiar as expectativas dele era quase uma obrigação.
O desinteresse da Anna, também me instigava, não podia negar. Cada vez que ela me ignorava, cada vez que demonstrava que não me queria por perto, eu sentia a necessidade de me aproximar... Quanto mais depressa a conquistasse, mais depressa eu poderia esquecer isto e acabar com esta merda de tormento. Mas, por mais que tentasse apagar a frustração no corpo de outra qualquer, não havia libertação. Só um vazio maior.
Durante a semana, o Under tornou-se o cenário das minhas frustrações. Lutava com qualquer um que me olhasse de lado, como se, na violência, pudesse encontrar algum tipo de alívio. Mas não encontrava. Apenas a exaustão física me derrubava. Em uma dessas noites, o mundo desmoronou. A linha entre a consciência e o vazio desapareceu. Não me lembro de muito, mas o Liam encontrou-me estirado no chão, levado pelo álcool e pelas drogas, e trouxe-me de volta.
Passei a semana a evitar a realidade. A fingir que o problema não existia, que a minha meia-irmã e tudo aquilo que ela representava não importava. Mas eu sabia que, eventualmente, que teria de enfrentar tudo isso. A clareza surgiu, dura e implacável, no silêncio das noites vazias: não podia continuar a fugir.
Na sexta-feira, quando finalmente voltei para casa, o olhar do meu pai já dizia tudo. Ele estava à espera, firme, com a expressão de quem já tinha perdido a paciência. Fazia quase uma semana que eu não aparecia, e estava claro que a recepção não seria agradável.
— Leonardo, precisamos de conversar — disse ele, com a voz carregada de frustração e algo mais, algo que eu preferia ignorar.
Eu sabia o que estava para vir. As cobranças, as expectativas, as recriminações. E simplesmente não tinha a mínima vontade de ouvir. Antes que ele pudesse continuar, virei-lhe as costas e subi as escadas. O som da sua voz a esvanecer-se atrás de mim era quase um alívio. Eu sabia que ele odiava ser ignorado, tanto quanto eu, mas naquele momento, eu não podia importar-me menos.
Subi os degraus dois a dois e, no topo das escadas, encontrei Anna. Parei de repente, o coração a bater descompassado. Não podia evitar sentir-me arrebatado pela sua presença. Ela usava uma camisa larga, ligeiramente aberta, que revelava um vislumbre da sua pele morena, e o cabelo estava desalinhado de uma forma que a tornava ainda mais tentadora. A minha mente imediatamente saltou para um desejo incontrolável. O meu corpo reagiu antes que eu pudesse impedir. A vontade de a agarrar, de a encostar contra a parede e rasgar-lhe a camisa, quase me fez perder a cabeça.
Ela murmurou um "Oi" indiferente, mas o seu olhar pareceu vacilar por um momento. Pareceu... nervosa. Será que ela também estava a sentir esta tensão? Por um segundo, o ar entre nós pareceu vibrar com algo indefinível.
— Oi — retorqui, com um toque de sarcasmo. Os olhos dela desviaram-se rapidamente, como se quisesse evitar qualquer contato prolongado.
Eu procurei algo no olhar dela, algum sinal de que ela também sentia o que eu sentia, mas ela continuava a falar de forma indiferente, como se nada se passasse. Respirei fundo, lutando para não fazer algo de que me pudesse arrepender. Talvez, pensei, houvesse um momento melhor. Um momento onde ela não pudesse fugir de mim.
O sol da manhã pintava o campus universitário com tons dourados quando cheguei para o meu primeiro dia de aulas como professora de literatura moderna. O edifício majestoso da universidade parecia imponente, e a ansiedade percorria-me as veias, misturada com um entusiasmo quase infantil. O eco dos meus passos pelos corredores parecia amplificar a pressão que sentia.
O cheiro de livros antigos e a atmosfera académica permeavam o corredor, criando um ambiente ao mesmo tempo excitante e intimidante. As vozes animadas dos estudantes, ansiosos por começar o semestre, preenchiam o espaço, contrastando com o meu próprio turbilhão interior. Cada rosto novo e cada risada que ouvia apenas aumentava a intensidade do momento.
À medida que me aproximava da sala de aula, comecei a imaginar todos os cenários possíveis. O medo do desconhecido me acompanhava: e se não conseguisse conectar com os alunos? E se eles não achassem as minhas aulas interessantes? Tentei sacudir esses pensamentos, e focar-me na minha missão: compartilhar o meu amor pela literatura.
Ao entrar na sala, pousei as minhas coisas em cima da secretária que me estava destinada. Olhei para as fileiras vazias e respirei fundo, tentando absorver a magnitude do momento. O nervosismo misturava-se com uma expectativa vibrante. O ambiente estava frio, e eu acendi a luz do quadro para dar um tom mais acolhedor.
À medida que os minutos se desenrolavam, os estudantes começaram a entrar na sala, cumprimentando-se uns aos outros e encontrando os seus lugares. Cada olhar curioso, cada rosto expectante, adicionava uma nova camada à minha mistura de emoções. Um aluno, que notou a minha presença, levantou o dedo e, com um sorriso nos lábios, perguntou:
— É a professora?
— Sim, sou a professora. — confirmei, tentando ocultar o nervosismo por trás de um sorriso seguro.
— Mas é tão nova! — exclamou uma miúda na fila da frente.
Algo dentro de mim dizia-me que isto ia acontecer. Um sorriso divertido brincou nos meus lábios enquanto olhava para a turma de cinquenta alunos.
— A idade não define a capacidade de ensinar ou aprender. Mas de certeza que sou mais velha do que imaginam.
O silêncio da sala era pesado, enquanto eu escrevia o meu nome com letras grandes no quadro. "Professora Carter". A tensão era quase tangível, e eu senti como se cada olhar dos alunos estivesse a avaliar a minha capacidade de conduzir a aula. Assim que me virei para encarar a turma, o ambiente começou a se transformar. A interação inicial foi um pouco estranha, mas logo se tornou animada à medida que eu começava a discutir os temas e movimentos literários que moldaram o século XX. As perguntas e debates começaram a fluir, e a energia na sala se transformou em algo vibrante e colaborativo.
Um aluno levantou a mão e fez uma pergunta particularmente difícil sobre uma teoria literária complexa. Eu usei o momento para demonstrar a minha própria habilidade de lidar com questões difíceis e encorajar a participação ativa. A forma como a turma respondeu e o diálogo que se seguiu foi um sinal positivo de que eu estava a conseguir conectar-me com eles.
Na hora de almoço, decidi procurar o meu gabinete. Eu ainda não tinha tido a oportunidade de conhecer o espaço que seria o meu refúgio durante o tempo livre entre as aulas. Consultei o mapa do campus, tentando decifrar os corredores e as salas, até finalmente encontrar o local indicado. O campus estava movimentado, e eu perdi-me algumas vezes, mas o entusiasmo de descobrir o meu novo espaço não me parou.
Ao chegar à porta, respirei fundo e girei a maçaneta. A última coisa que não esperava era encontrar alguém lá dentro. Para minha surpresa, um homem alto e pele bronzeada, vestido de forma elegante, estava encostado à janela, imerso na leitura de um livro que não consegui perceber qual era. O espaço estava bem decorado, com estantes cheias de livros e uma grande janela que dava para um jardim bem cuidado.
Ele levantou os olhos quando entrei, e por um momento, senti-me paralisada pela intensidade do seu olhar. Parecia ter uns dez anos a mais do que eu, e sua presença irradiava confiança. A atmosfera no escritório mudou instantaneamente.
— Oh, desculpe. Achei que este era o meu gabinete. — gaguejei, ainda processando a surpresa.
Ele sorriu e assentiu com a cabeça.
— Sou o Professor Daniel Scott. — estendeu-me a sua mão para que eu a apertasse - Este espaço é compartilhado.
Levantando as sobrancelhas, não consegui esconder a surpresa. Sorri nervosamente observando o espaço, que de facto, tinha duas secretárias em cada lado do escritório. Ter um colega de escritório não estava de todo nos meus planos, no entanto, não pude deixar de notar que ele era extraordinariamente atraente. Os seus olhos expressivos acompanhavam cada movimento, e a sua postura elegante acrescentava um charme intrigante. Havia algo no seu olhar que me fazia sentir como se estivesse a ser observada de uma forma muito pessoal.
— O prazer é meu, Professor Scott. Sou a Professora Anna Carter. — respondi, tentando manter a compostura diante da sua presença magnética.
Ele sorriu novamente, e por um momento, a sala parecia carregada com uma energia peculiar. Perigosa demais para quem tinha tendência a se sentir atraída por homens mais velhos, como eu.
— Bem-vinda ao nosso espaço literário, Professora Carter. Espero que as palavras que partilhamos aqui sejam tão cativantes quanto a sua chegada. — ele inclinou a cabeça ligeiramente, com os seus olhos escuros fixos nos meus.
A conversa continuou de forma descontraída, e o Professor Scott mostrou-me os detalhes práticos do escritório. Ele revelou-se amigável e cheio de charme. A forma como os seus olhos se iluminavam quando falava de literatura não passou despercebida.
Nós conversamos sobre os nossos métodos de ensino e as nossas preferências literárias. Ele revelou ser um especialista em literatura do século XIX e discutiu algumas de suas obras favoritas com um entusiasmo contagiante.
Trinta minutos depois eu já começava a sentir um micro crush pelo meu colega de gabinete. Clássica Anna, eu diria.
Fui sozinha almoçar fora do campus e quando a hora de almoço terminou, retornei ao meu escritório, mas o Daniel já tinha saído. Decidi que era melhor assim, tinha aulas para preparar e certamente não me ia conseguir concentrar estando com aquele homem, fechada, dentro do mesmo gabinete.
O meu pai e a Elaine saíram de casa por volta das sete da tarde para jantar fora. Eu sabia que aquele era o momento perfeito para colocar meu plano em ação, um plano que havia se formado na minha mente durante todo o fim-de-semana. O jantar entre amigos dos Hill era o momento ideal para o que eu tinha em mente.
Era segunda-feira, e a Anna tinha acabado de chegar a casa. Ela não estava a par da minha presença na mansão; nem sequer notou que eu havia dispensado todos os empregados, garantindo que restássemos apenas ela e eu na casa. Quando chegou, chamou pela mãe duas vezes, o que me fez perceber que ela não tinha a menor ideia de que eles tinham saído para jantar fora. Ela subiu para o quarto, alheia à minha presença, e não voltou a sair.
Esperei por cerca de meia hora, o que me pareceu uma eternidade, até decidir que era hora de agir. Antes de dispensar os empregados, pedi à Loraine, que decorasse a sala com velas de todos os tamanhos e tipos. Assim, quando chegou o momento, acendi todas as velas que ela havia disposto ao longo da divisão e, com a sala devidamente preparada, dirigi-me ao quadro elétrico da casa e desliguei as luzes da mansão.
Voltei para a sala, e aguardei o momento em que a Anna surgisse. Em pouco menos de dois minutos, ela apareceu na sala, usando apenas um robe de banho. O seu cabelo molhado indicava um banho interrompido pela falha geral da energia. A sua expressão, inicialmente confusa, rapidamente transformou-se em surpresa ao notar a cena que preparei.
— Que palhaçada é esta? — perguntou, revelando um tom carregado de raiva.
— A luz foi a baixo. — respondi com um sorriso cínico, ignorando a raiva que se acumulava no olhar dela.
— Foi a baixo ou tu mandaste-a a baixo, Leonardo?
— O tom acusatório quase me ofendeu. — toquei no peito, fingindo-me ofendido.
— O que estás a fazer aqui? — questionou, franzindo o cenho.
— Eu moro aqui, caso não te lembres. — falei, dando o meu primeiro passo para me aproximar dela.
Ela revirou os olhos, uma resposta que eu já esperava, mas a sua expressão revelou algo mais profundo. O fato de que eu estava aqui, e as circunstâncias que criei, parecia perturbá—la mais do que ela queria admitir.
— Então, o que aconteceu com a luz?
— Apenas um pequeno truque para chamar a tua atenção. Estava a começar a sentir a tua falta. — comentei, apreciando a reação dela.
A minha presença parecia afetá-la mais do que ela queria admitir. A forma como o seu olhar vacilava sobre o meu, era a resposta disso.
— Não tenho tempo para joguinhos estúpidos, Leonardo. Estava a tomar banho e tu decides mandar a luz abaixo? És idiota? — o seu tom de voz áspero não combinada nem um pouco com a sua linguagem corporal, o que me motivou a aproximar um pouco mais. — Liga a porcaria da luz, já.
Ela começou a virar-se, mas antes que pudesse dar um passo, avancei e bloqueei o caminho dela.
— Não tão rápido. Não achas que precisamos esclarecer algumas coisas, Anninha? — provoquei, olhando diretamente nos olhos dela.
— Esclarecer o quê, Leonardo? Já te disse que não tenho paciência para os teus jogos infantis. — respondeu, tentando fugir de mim.
— Oh, não vejas como um jogo. Pensa nisto como uma oportunidade de nos reaproximarmos da melhor forma. Consigo sentir a tensão entre nós, Anna. Não achas que está na hora de falarmos disso?
Ela revirou os olhos novamente, mas a hesitação persistia. A sua resistência estava a começar a parecer mais como uma fachada do que uma verdade.
— Não há tensão nenhuma, apenas estou cansada e não preciso das tuas provocações. Podes sair do meu caminho?
Sorri, satisfeito por perceber que a minha presença a desconcertava.
— Não acredito nisso. Se fosse só cansaço, não terias tanta necessidade de evitar que eu me aproxime.
Ela cerrou os punhos, visivelmente incomodada, mas eu podia ver que estava à beira de perder a calma.
— Nem tudo neste mundo, é sobre ti. — recuou dois passos.
— Podes tentar afastar-me, mas sabes que, no fundo, há algo entre nós. Algo que não conseguimos ignorar.
Ela soltou uma risada forçada, tentando desvalorizar a situação.
— Desculpa, mas estás a imaginar coisas, Leonardo. Não há nada entre nós. Nunca vai haver.
Continuei a sorrir, decidido a não parar por aqui.
— Vamos ver, Anna. Aposto que, mais cedo ou mais tarde, vais admitir que também sentes a atração. — agarrei-a pela mão, puxando-a contra o meu peito e encostei os meus lábios ao seu ouvido. — E quando esse momento chegar, eu vou estar aqui pronto para que cedas, tal como eu sei que vais acabar por ceder.
Deslizei a ponta dos meus dedos ao longo da abertura do robe de banho, o tecido leve e húmido a escorregar entre meus dedos.
— E esse robe… — continuei, a minha voz saiu num sussurro baixo e carregado de malícia — Porque é que ainda o estás a usar?
Ela estremeceu ao meu toque inesperado, os seus olhos arregalando-se em resposta. A expressão de desconforto deixou—a ainda mais vulnerável. Ela tentou afastar-se, mas eu segurei—a no sítio.
— O que queres, Leonardo? A sua pergunta saiu quase como uma súplica.
— Apenas quero que reconheças o que existe entre nós. — disse, deslizando um dedo ao longo da costura do robe, avaliando a sua textura com interesse — E talvez também percebas que, quando finalmente cederes, será exatamente como imaginámos.
Afastei-me, abrindo caminho para ela passar. Anna lançou-me um olhar furioso e subiu as escadas sem dizer mais nada.