Tamanho da fonte: |

Revisada/Codificada por: Júpiter

Última Atualização: 24/07/2024

Quinta-feira. Era um belo fim de tarde, mais quente que o usual. A atmosfera se coloria em tons alaranjados calorosos e nostálgicos. O clima geral era muito hospitaleiro, havia quase cinco meses desde que metade da população voltara à existência.
A felicidade ainda era a regra social, os bons ares de receber todos os queridos entes e amigos que ficaram perdidos por 5 anos inteiros não dava brecha para nenhum outro sentimento.
Ainda se lembrava da sensação de voltar. Assim como metade do planeta, fora levada pelo Blip. Para ela, nenhum tempo se passou. Quando piscou, já estava de volta, meia década depois.
Mas, há três dias, felicidade não era mais parte de seu vocabulário. O calor do sol não podia alcançá-la mais, pelo contrário, seu coração era coberto de uma névoa e desespero corrosivo.

(...)


dormia pacificamente, seu corpo abraçado pelo toque de seda de sua camisola e a maciez da manta aveludada que a cobria. Nunca teve problemas para dormir, muito pelo contrário. Ela era daquelas pessoas que, onde pudesse encostar, já conseguia cochilar sem muito esforço, era um de seus maiores prazeres na vida.
Para o azar daquele que se deitava ao seu lado, ele não tinha essa mesma benção. Não conseguia se lembrar do último sono de qualidade que tivera.
Às 3:33am, ele levantou de supetão em seu lado da cama. Estava suando, suas mãos trêmulas.
Enquanto seus olhos tentavam focar em meio à escuridão, ele sentia medo; era difícil se conectar à realidade de novo.
— James? — A movimentação acabara por acordar a moça.
— Droga. Me desculpa. — Ele descansou seu rosto nas próprias mãos. Sentia sua garganta seca e estava difícil engolir.
Toda noite, por volta deste mesmo horário, isso acontecia.
E, toda noite, ela fazia a mesma coisa.
Acendeu o abajur à sua esquerda e se arrastou pelo colchão até que conseguisse abraçar o namorado.
Ela passava carinhosamente a mão pelas costas desnudas de James até que ele se fincasse de volta ao presente.
Não demorou muito para ele conseguir olhá-la nos olhos, ainda no meio de sua crise de ansiedade.
Delicadamente, ela segurou as mãos dele e as posicionou sobre seu peito.
— Respira comigo? — Pediu, recebendo apenas um aceno rápido de cabeça.
E, como todas as noites, James fechou os olhos e focou toda a sua atenção no coração de , o ritmo em que batia. Sentia o peito dela se movendo quando respirava profundamente, segurava o folego e soltava o ar pela boca. Ele seguia. Até que estivesse de novo sob controle de sua própria mente.
Às vezes, parecia demorar uma eternidade. Às vezes, era mais depressa. E, às vezes, ele queria permanecer bem ali, junto à , para sempre, como se nada mais existisse.
E, quando percebeu, deu uma discreta e singular risada.
— O que foi? — perguntou, sorrindo também.
— É engraçado, eu tenho 106 anos e um braço biônico. Eu devia cuidar de você, não o contrário. — deu um riso contido, girando os olhos.
— Não preciso de cuidados. — Ela se levantou, saindo da cama e calçando suas pantufas. — Vou preparar o chá.
— Do que vai ser hoje? — perguntou.
— Lichia.
— Li- o quê? — ele sorriu.
Todas as noites, depois que ele acordava, lhe preparava um chá, na tentativa de tornar a volta ao sono mais fácil. E, apesar de saber bem do que se tratava, nunca perguntava sobre os pesadelos, sabia que James não se sentia confortável em contar.
Então ela fazia um chá.
A primeira noite que passaram juntos, James se sentiu mal por acordá-la e não queria que tivesse nenhum trabalho para fazê-lo se sentir melhor. Então ela inventou que queria provar novos e exóticos chás; que aquilo era por ela, não por ele.
A desculpa esfarrapada não enganava a nenhum dos dois, mas, aos poucos, aquilo se tornou uma tradição do casal. Toda semana, encontrava sete chás diferentes, podia contar nos dedos quantas vezes ela repetiu um. Eles tomavam juntos e conversavam sobre os mais diversos assuntos, escutavam a rádio da velha guarda até que James conseguisse sentir sono de novo.
E por nem uma única noite sequer ela se arrependia de tê-lo chamado para morar em seu apartamento em Cobble Hill.

(...)


E lá estava ela, no antigo complexo dos Avengers. Fora mais fácil entrar do que havia pensado.
Desde que Tony falecera, cada um dos remanescentes seguiu o próprio caminho, mas não esperava que o complexo ficasse abandonado. De fato, não encontrou uma única alma por lá desde que adentrou o lote.
Mas, caso alguém ainda estivesse por lá, não haveria problema. costumava ser uma das maiores agentes da extinta SHIELD, ficando atrás apenas da própria Natasha Romanoff.
Depois do blip, pensou que nunca mais teria de usar suas habilidades de espiã. Deveras, chegou a receber propostas de emprego em novas agências como a S.W.O.R.D e CIA, mas decidira que seu tempo no campo de batalha já havia chegado ao fim.
deixou tudo para trás por uma vida normal.

(...)


— Tem certeza? — James a encarava de olhos cerrados, meio incrédulo.
Ele não sabia se nenhum dos dois podia deixar a carreira de defensores para trás. Tudo o que James conhecia era a guerra. Mas queria ao menos dizer que iria tentar.
— É claro — ela sorriu, segurando a mão do companheiro enquanto caminhavam até um restaurante em seu bairro.
— E o que vamos fazer?
— O que a gente quiser — ela sorria. — Isso não é ótimo?
soltou sua mão e caminhou mais à frente, abrindo seus braços e girando no meio da calçada, observando o céu nova-iorquino.
James sorriu, imortalizando aquela imagem em sua mente. Aquilo quase parecia... felicidade.
voltou a se aproximar dele, parando bem em sua frente.
— Ei! — ela falou em um tom baixo. — Nós vamos ficar bem.
Naquela tarde, Pepper Potts contratara para um bom cargo administrativo em uma filial das indústrias Stark.
Em casa, gostava de fazer aquarelas, cantar, bordar, costurar. James achava que ela devia seguir para um campo mais criativo, mas não interferiria na decisão dela. Sabia bem que no momento não tinha como contribuir com as despesas e ela já começava a se preocupar em como iriam se manter.
tinha apenas 25 anos, James não queria que a vida dela — e deles, como um casal — fosse assim. Mas era.
O Blip havia tornado tudo mais difícil. Suas economias foram confiscadas pelo governo assim que sumiram da existência. Foi uma grande sorte ainda terem o apartamento intacto, ocupado por um outro jovem casal, que se prontificou a desocupar o imóvel por livre e espontânea vontade, em respeito por Bucky e terem lutado na linha de frente contra Thanos.

(...)


Apesar de a imensa cortina de vidro que circundava e iluminava aquela parte do complexo, em poucos minutos seria noite. teria de usar uma lanterna para encontrar o que viera buscar.
— Droga, droga! Revirava com pressa as caixas do antigo depósito de Banner, a vista já ficando turva com lágrimas. Eu preciso achar, eu preciso!
Os resmungos de consigo mesma logo ficaram mais altos e agressivos, tornando-se quase rugidos.
— Mas que inferno! — ela gritou, sem conseguir vencer suas emoções.
Era inevitável, tudo o que ela fazia há exatos três dias era chorar.
Naquele momento, a gravidade parecia exercer um peso exorbitante sobre seus ombros, a empurrando para o chão.
logo se sentou, cobrindo o rosto com as mãos, aos prantos.
Ela já nem se importava se havia alguém ali, não tinha forças para controlar os sons que eclodiam de sua garganta junto às lágrimas.
Sentia seu rosto quente e as pálpebras inchadas.
— Eu preciso encontrar, eu preciso encontrar, caralho! — exclamou em meio a seu abismo pessoal.

(...)


— Feliz aniversário, meu amor. — Não passava das 6 horas da manhã quando James adentrou o quarto com suas roupas casuais e uma bandeja em mãos.
não acordou de cara, expelindo apenas um grunhido e fazendo uma careta.
— Anda, eu fiz uma surpresa pra você! Não me deixe aqui com cara de bobo! — ele ria, sentando-se à cama próximo a ela.
Preguiçosa e vagarosamente, abriu os olhos para dar de cara com aquele homem forte, de pele clara e cabelos escuros.
Ela sorriu. Ainda era difícil acreditar que conseguiu para si um cara tão bonito. James preferia usar camisas de manga longa, mas isso não impedia que seu físico fosse bem delineado através das vestes.
Não importava quanto tempo passasse, ele tinha dificuldade em aceitar seu braço biônico. A disforia corporal era uma das coisas com as quais James lidava diariamente em silêncio. Mas amava cada parte dele, fosse de carne e osso ou vibranium.
— Bom dia, meu príncipe! — ela sorriu, sentando-se e fitando a cena.
O sol adentrava a janela do quarto, iluminando perfeitamente o rosto de James e realçando o azul celestial de seus olhos.
— Não me chame assim — ele disse, apenas. Odiava qualquer tipo de apelido que não fosse “Bucky”, o oficial, mas só os íntimos (lê-se Steve ou Sam) podiam usá-lo.
Ela sorriu, pegando uma uva em um dos pratos que havia na bandeja.
Não pôde deixar de notar o empenho que ele colocara ali: frutas frescas, dois croissants, ovos mexidos e suco de uva — seu preferido. E, além da comida, havia um buque de hortênsias azuis.
Eram as flores preferidas dela, mas muito frágeis. Não sobreviviam por muito tempo depois que eram arrancadas do caule. E James sabia bem disso. Planejou há algum tempo, convenceu o senhorzinho da floricultura de arrumar um buquê e entrega-lo lá pelas 5h da manhã, quando foi buscar.
pegou o buquê e o trouxe para perto de seu rosto, cheirando as flores.
Ele se sentiu em paz assistindo àquilo. Era um rapaz das antigas, gostava de presentear com flores, como via seu pai fazendo com sua mãe em sua juventude.
— Elas não têm muito cheiro — James comentou.
— Eu sei! — riu, cheirando-as mais uma vez.
De alguma forma, as flores tinham sido contaminadas por um pouco do perfume de Bucky, possivelmente enquanto ele as carregava para casa.
— Não entendo porque gosta tanto delas — comentou.
— Eu também não — confessou. — Desde criança sempre gostei, acho que porque são azuis. — Deu de ombros.
não mentira. Desde que podia se lembrar, aquela exótica flor azul a intrigava. Atualmente, ela tinha um motivo a mais para as preferir a qualquer outra: agora, olhando para as pétalas, ela pensava nos olhos azuis de James, a primeira pessoa que lhe deu um buquê de flores.
— De qualquer forma, são mais originais que aquelas rosas que você me deu a primeira vez que saímos! — provocou.
— Ei! Isso não é justo, não tinha como eu saber que estava saindo com uma garota maluca que gosta de flores incomuns. Rosas são clássicas, agradam qualquer uma.
— Ah, é, falou o cara que não saía com ninguém desde os anos 40! Realmente um especialista no que as mulheres gostam! — eles riram, James fez uma careta engraçada em resposta.
Ela pegou mais uma uva, encarando a bandeja sobre seus lençóis brancos e seu namorado atrás. Era o cenário perfeito.
James a encarou, já a conhecia quase com a palma de sua mão.
— Pode tirar a foto, eu sei que você quer — falou em um tom provocativo. — Não entendo o apelo de vocês, jovens, com fotos.
riu, pegando logo seu celular para fazer um book da comida.
— Falou o velho!
Depois, levantou-se e, em um passo, se aconchegou novamente, sentando-se no colo de James. Ele enlaçou a cintura dela com sua mão metálica, colocando a outra na parte externa da coxa da mulher, por cima do short de seu pijama.
Ela tinha suas mãos no rosto dele, acariciando sua bochecha.
— Eu te amo, sabia? — falou, simplesmente.
Tendo crescido num lar desfeito e colecionado traumas ao longo de sua vida que a levaram até a SHIELD, não sabia que o paraíso podia existir. Mas ele existia, e era qualquer lugar com James.
Ele uniu seus lábios, beijando-a calmamente, saboreando o momento.
— Que os 25 anos te tratem bem — ele sussurrou, mantendo suas testas coladas e olhos fechados, após findar o beijo.
Aquela fala veio com um certo peso, era perceptível.
— Quantos anos você tinha? — tomou fôlego e perguntou, sondando o terreno. James não gostava de falar sobre seu passado. — Quando você serviu com Steve...
Escolheu as melhores palavras que pôde. Não podia simplesmente falar “quando você supostamente morreu, mas foi torturado e modificado pela HYDRA”.
Mas ele sabia ao que ela se referia. A verdade é que todas aquelas coisas nunca tiveram um fim, ele as revivia toda vez que fechava seus olhos.
Constantemente pensava que nunca teria paz. Não, não era algo que o pertencia. Ele tinha momentos de calmaria. Como em Wakanda. Como agora, com ela em seus braços.
— Vinte e quatro — respondeu, sem querer prolongar o assunto e sem encará-la olho no olho. — Vamos comer ou não?
se levantou, voltando para seu lado da cama.
Obviamente sabia que ele era jovem quando tudo aconteceu. Mas saber que ele era apenas um ano mais novo que o que ela era agora?
Um menino do Brooklyn. Arrastado para a guerra do outro lado do oceano. Torturado. Usado. Céus, não queria nem pensar nas coisas que lhe fizeram!

(...)


Alguns minutos de profundo desespero se passaram. Sentia que já não havia mais líquido o suficiente em seu corpo para desperdiçar pelos canais lacrimais.
Um vazio parecia engolir sua alma. Por um tempo, tudo seria silêncio. Sua mente em branco, como se nada daquilo fosse real.
Em estado quase catatônico, seus olhos percorreram o local. Ali, próximo ao chão, encontrou uma caixa com o símbolo da Tecnologias Pym. Esticou seu braço e a arrastou para fora da prateleira.
Com as mãos trêmulas, abriu o contêiner, avistando logo aquele pequeno frasco vermelho.
Finalmente.

(...)


segurava uma sacola de papel cheia de suprimentos — incluindo sete novos chás exóticos — em uma mão, enquanto tentava destrancar a porta do apartamento com a outra.
— James! Abre aqui! — chamou, sem resposta.
Ela podia ouvir o toca vinil dentro de casa, ele não devia estar escutando, provavelmente tomando banho.
Seguiu tentando passar a chave na fechadura enquanto escutava as notas de Moonlight Serenade, de Glenn Miller, ecoando do outro lado da porta.
Tentou uma, duas vezes.
Até que conseguiu. Adentrou com um sorriso. Ela gostava da textura que os vinis traziam às músicas.
E aquele era um da época de Bucky. Um de seus preferidos.
Deixou a sacola na cozinha, pegando uma ameixa na fruteira. Em passos dançantes, dirigiu-se até a pia para lavar a fruta.
—James, já cheguei! — falou em um tom alto, imaginando que ele estivesse no banheiro.
Fechou a torneira.
Mordeu sua ameixa lavada.
Franziu o cenho e os lábios, estava ácida!
— James? — chamou novamente. — Quer que eu entre no banho com você, é? — brincou, provocativa.
Saindo da cozinha, deu alguns rodopios pela sala, embalada pelo jazz.
Dançando e comendo sua ameixa.
Rodopiou.
Uma.
Duas.
Três vezes.
Notou um envelope ao lado do toca vinil.
Se aproximou.
Firmou a ameixa em sua boca, para ter suas mãos livres.
Secou seus dedos melados de fruta em sua calça.
Pegou o envelope.
Abriu-o.
No mesmo instante, seu celular começou a tocar.
Ela devolveu a carta para a mesinha, procurando o aparelho.
Tirou a fruta de sua boca e olhou o ecrã.
Era Sam Wilson. Estranhou, Sam nunca ligava para ela.
— Alô? — falou, sentindo seu coração apertado sem saber bem o porquê.
— Eu sinto muito, . Eu não cheguei a tempo.
O mundo se silenciou. O que restava da ameixa caiu, de repente, ao chão.
— Sam? — Sentia sua cabeça latejar e suas pernas bambeavam.

(...)


Como suspeitava, não tinha o suficiente de partículas Pym para um salto. Mas já era o bastante, sabia o que fazer. Guardou-o dentro de seu sutiã e se levantou.
Refez o caminho que usou na entrada, mas, dessa vez, não estava sozinha.
— O que está fazendo aqui, ? — Aquela voz tão conhecida a chamou, vindo de trás.
Ela se virou.
— O que você está fazendo aqui, Sam?
Wilson deu uma boa olhada na garota. Ela estava péssima. Seu rosto completamente inchado e parecia não comer há dias.
— Pepper está preocupada. Você tem ideia do tanto de coisa que aquela mulher precisa cuidar? E no meio de tudo isso ela se preocupar com você quer dizer que a situação está feia.
— Eu estou bem — mentiu.
...
— Eu estou bem! — mentiu novamente.
Sam respirou fundo.
— Eu sei o que você quer fazer, mas não vai conseguir — falou.
— Você não sabe disso. Não dá pra saber se eu não tentar.
sentia seu estômago quase em sua garganta. Não lhe sobrava muita força em seu âmago, mas se recusava a se sentir impotente. Ela precisava fazer aquilo.
— Eles destruíram o equipamento. Banner pegou mais das partículas para tentar salvar Natasha, mas não deu certo. Mesmo que você encontre algo, não tem como usar. É mais seguro assim.
— Bom, então porque você está aqui? — rebateu.
—Por você. Eu não vou te deixar passar por isso sozinha. Não vou cometer esse erro duas vezes.
— Não foi sua culpa, Sam. — A voz dela se desestabilizava. — Eu vou consertar tudo.
Sam precisou segurar o nó que se formava em sua garganta. Molhou os lábios e respirou fundo, encarando-a olho no olho.
— Ele está morto, — falou, sem a intenção de machucá-la.
— Não! — ela gritou, perdendo a cabeça.
— Bucky está morto.
— Não! Não! Eu vou resolver tudo, eu vou resgatá-lo! — ela gritava, caindo de joelhos no chão.
Sam correu para seu encontro, confortando-a. Deus sabe que ele queria chorar também, mas precisava ser forte.

(...)


Já era por volta das 20 horas quando Sam a deixara em sua casa.
Aquela casa vazia e fria que não era mais um lar.
Nas últimas horas, Sam a explicou de todas as formas possíveis e impossíveis que mexer com o tempo não era seguro e por isso os vingadores destruíram o equipamento.
Ofereceu-se para dormir em seu sofá, para que ela não precisasse ficar sozinha.
Mas negou. Disse que precisava digerir tudo antes de conseguir conversar com alguém.
Agora, sentada no tapete da sala, com um copo de água nas mãos, um semblante calmo e lágrimas que seguiam caindo sem que ela sequer percebesse, pôs a mão dentro de seu sutiã, pegando de volta o frasco com pouquíssimos mililitros do líquido vermelho.
Segurou-o bem dentro de sua palma, fechando a mão. Com a outra, pegou seu celular e discou o número de sua antiga amiga.
Após algumas chamadas, a inglesa atendeu.
— Simmons? Preciso de um favor seu e do Fitz. Eu preciso que vocês recriem a viagem no tempo com as partículas Pym.



retirava com pressa as coisas de seu pequeno armário acima da cama, no dormitório que chamava de lar. Era difícil não pensar nas consequências daquela ação, mas tinha de fazer o que fora treinada a fazer: seguir para a próxima missão.
Controlava sua respiração para, assim, controlar seus batimentos cardíacos e, com eles, sua vontade absurda de chorar.
Focava em tudo o que havia aprendido no treinamento de agente, mas a SHIELD era sua casa, e a equipe de Coulson o mais próximo que tinha de uma família.
Ela dobrava sua última jaqueta e a acomodava na mala aberta na beira da cama. Sentia o olhar indignado de Jemma Simmons — uma inglesa de estatura média, pele clara e cabelos castanhos, com um rosto usualmente extremamente amigável, que hoje se curvava em pânico —, parada à porta, a seguindo.
— Como consegue? — ela perguntou, de braços cruzados, com a voz um pouco embargada.
— Jemma... — se virou de costas para a amiga, tentando, com todas as suas forças, se manter neutra.
— Como consegue ficar tranquila? — A inglesa, diferentemente de , não conseguia segurar as lágrimas de rolarem. — Eu preciso saber! Preciso... aprender.
parou por um instante, pegando em mãos o porta-retratos da equipe — que ficava sempre ali, ao lado de onde dormia, para que fosse a primeira coisa que visse quando acordasse e antes de se deitar. Inspirou audivelmente. Colocou a foto na mala e a fechou.
Sentou-se sobre o colchão, finalmente encarando Jemma. Gesticulou para que a amiga se sentasse também.
Simmons se acomodou, de forma que a mala ficava entre as duas. Ambas olhando para a frente, sem forças para ter essa conversa olho no olho.
— A verdade é que eu não sei — confessou.
— Mas você teve o treinamento necessário, a Academia não me preparou para isso.
— A Academia não preparou nenhum de nós para isso — corrigiu , instaurando um silêncio devastador.
De um dia para outro, o mundo delas havia sido destruído. Tudo o que elas conheciam já não existia.
A SHIELD havia caído.
Presenciaram amigos se tornando inimigos e matando aliados bem na frente de seus olhos. E, em uma dessas, Simmons e Fitz quase se foram também. Ward, um de seus queridos colegas da equipe de Coulson, revelou-se parte da HYDRA e tentou matá-los. Fitz salvou Jemma, mas acabou com hipóxia cerebral fazendo isso.
O tempo que passaram no hospital poderia recuperar sua saúde física, mas as marcas daquele dia jamais seriam curadas.
Não conseguiam digerir toda a barbárie e escuridão que manchava o legado da agência a qual devotavam sua vida e juventude.
Para ambas as garotas, a SHIELD era muito mais que um emprego.
Jemma, juntamente com Fitz — um rapaz esguio de cabelos ondulados e louro-escuros, com pouquíssimas habilidades sociais —, foram os cientistas mais jovens a se formarem na Academia da SHIELD de Ciência e Tecnologia, prodígios que já eram observados pela agência desde muito cedo.
, por outro lado, não tinha nada especial para oferecer, apenas mais uma história de garota com lar conturbado como tantas outras; mas a SHIELD a acolheu e a deu esperanças, treinou-a desde os quatorze anos em um programa secreto que pretendia replicar o RED ROOM (o mesmo que criou a Viúva Negra), sem as partes macabras do Departamento X, e, obviamente, com o consenso dos pais, ou, mais especificamente, da mãe, em uma tentativa desesperada de protegê-la dos problemas de casa.
Mas só foi quando Coulson a recrutou que sentiu, pela primeira vez na vida, que tinha um lar.
E agora o estava perdendo.
— Eu só... — começou, concentrando-se em manter o controle de sua respiração. — Tento me lembrar que Coulson é a SHIELD. A SHIELD que importa, o que deveria ser. Enquanto ele estiver aqui, temos um propósito.

(...)


— Não podemos fazer isso — disse Fitz, inquieto. — Não podemos!
Jemma pôs as mãos sobre as dele.
observava o casal no laboratório, sentada sobre a mesa de necropsia — equipamento padrão e, diga-se de passagem, bem banalizado depois que se passava alguns meses em missões. A imagem deles discutindo coisas científicas, com palavras que ela nunca sabia o que queriam dizer, era tão familiar que ela quase sentia vontade sorrir.
Fitz agora tinha barba e Jemma parecia também mais adulta, mas, ainda assim, era como estar de volta a algumas de suas memórias favoritas.
Entretanto, havia tanta dor em seu coração que curvar seus lábios em um leve sorriso seria impossível.
— É claro que podemos, Fitz. Você consegue recriar o equipamento em meia hora, eu replico as partículas PYM. — Jemma olhava bem dentro dos olhos de seu amado.
Apesar de ter perdido todo o desenvolvimento daquele relacionamento, não era estranho para vê-los como um casal. Todos meio que já esperavam que aquilo fosse acontecer. O amor deles era extraordinário, mesmo antes de eles próprios perceberem e admitirem um ao outro. Não existe Fitz sem Simmons, nem Simmons sem Fitz.
Assim como não deveria existir uma sem um Bucky.
— Disso eu sei, Jemma! É óbvio que conseguimos, a questão é: nós devemos? Não sabemos as implicações disso — Fitz indagava, irrequieto, nunca cortando o contato com Simmons. — Pode romper toda a coesão do espaço-tempo.
— Ou ela pode causar uma pequena alteração que só ela mesma, tendo presenciado a realidade corrente, perceberia — argumentou Jemma.
— São muitas variáveis. Ela pode acabar criando uma linha alternativa completamente nova! Eles lutaram contra Thanos, e se algo mudar e a humanidade for dizimada de novo?
— Não significa que isso destruiria a nossa realidade. Se ela é a viajante, é possível que eu e você e todos os outros no planeta sigamos inalterados, sem saber o que houve com enquanto ela cria uma realidade... variante, nascida a partir da nossa.
— Talvez tenha razão, Jemma — contemplou por alguns segundos. — Não sabemos como poderes maiores operam, mas o universo sempre se protege do absurdo. De alguma forma, tudo acaba correndo como tem que ser.
— É claro que tenho razão, Fitz. A viagem dos Vingadores aconteceu de forma linear, eles interferiram em alguma linha semelhante à nossa, que causou a volta de Thanos, mas a nossa linha seguiu intacta. Pode funcionar!
— E o simples ato de fazer o salto pode implicar que ela já o fez antes... O passado se torna seu futuro. O presente se torna passado! Mas ainda não sabemos o que de fato pode ocorrer com ela.
O casal discutia rapidamente diversas hipóteses que faziam a cabeça de girar, ela não estava muito preocupada com as tecnicidades da coisa, só... precisava fazer.
— Sei que estou pedindo demais a vocês — interrompeu, levantando-se da mesa e aproximando-se dos amigos. — Sei que podemos contar nos dedos quantas vezes nos vimos desde que eu... saí em missão quando a SHIELD caiu.
Fitz revirou os olhos.
— Quando você abandonou a equipe — corrigiu.
— Fitz! — Jemma o repreendeu.
sentia seu coração pesar. Fitz era o melhor amigo que ela já teve, mas quando conheceu James as coisas mudaram. Não se arrependia de suas escolhas, mas se arrependia de não ter estado com Fitz durante seu período de recuperação da lesão cerebral — que foi bem difícil e solitário, pelo que soube.
— Tudo bem, Simmons. Ele tem razão — se culpava. — Mas você é melhor que eu, Fitz. Por favor, não vire as costas para mim como eu fiz a você.
E, dessa vez, não conteve as lágrimas. Não desestabilizou sua voz nem nada, mas já não tinha força o suficiente para seguir seu treinamento com destreza.
E Jemma sabia que a amiga tentava manter a pose, tal qual fora ensinada, mas estava visivelmente um caco.
— Não, ele não tem — Jemma disse. — A única culpada nessa história toda é a HYDRA. Nós sabemos disso, todos sabem disso. James é mais uma vítima desse monstro, como nós já fomos por mais vezes do que podemos contar. — Olhou nos olhos de . — Tenho certeza que ele era um bom homem que merecia uma segunda chance.
mordeu o lábio inferior, levantando a cabeça e olhando para o teto, enquanto suas lágrimas rolavam quentes e rápidas. Ouvir os verbos sendo conjugados no passado não soava certo.
— Eu não tenho direito de pedir nada a vocês, mas ele é um homem bom. O melhor que já conheci. O que estou pedindo é exatamente o que vocês fariam um pelo outro — disse, apesar do nó em sua garganta quase impedir que qualquer som se fizesse.
Fitz olhou para , dos pés à cabeça. Nunca a tinha visto tão mal, nem mesmo naquela missão em que levara três tiros nas costas.
Em seguida, ele olhou para Simmons. Faria tudo por ela, sem hesitar. Desafiar o universo e qualquer lei da física para resgatá-la era quase rotina. Perdeu as contas de quantas vezes o destino tentou separá-los, das maneiras mais nefastas e inimagináveis. Mas eles sempre achavam um caminho de volta um para o outro, nunca desistiam.
O que sua amiga estava tentando era encontrar o caminho de volta para os braços de quem amava, mas não poderia fazê-lo inteiramente sozinha.
— Ela tem razão — Jemma disse baixinho, ainda segurando as mãos de Fitz.
— Eu sei que tem — ele concordou, dando um meio sorriso para sua amada. — Que se dane. Vamos fazer. Só espero que ele valha a pena.
abraçou os dois subitamente, soluçando em seu choro esperançoso.

(...)


—Tem certeza, Coulson? — agente Melinda May, a asiática baixinha que sempre se vestia toda de preto e quase nunca sorria, vulgo o braço direito de Coulson, o questionava.
Coulson tentava manter seu bom humor, sem demonstrar a preocupação que consumia seu interior, pegando a caixa de arquivos sobre sua mesa e dirigindo-se para fora de sua sala.
— Não, mas que outra alternativa eu tenho? Não temos muitos agentes em quem podemos confiar. Elas são as mais qualificadas para as missões.
O quarteto de ouro de Coulson — Fitz, Simmons, e Skye, os mais jovens e brilhantes agentes da SHIELD, que excediam as expectativas em suas áreas de atuação, o futuro da agência, que Coulson via quase como filhos, teria de ser separado.
Com Fitz ainda hospitalizado, delegou a Simmons que se infiltrasse na HYDRA, que estava alistando inúmeros cientistas que debandaram após a fatídica queda. , versada em combate e operações, investigaria o paradeiro do Soldado Invernal — arma chave da HYDRA e do secretário Pierce para derrubar a SHIELD, alguém que eles não poderiam se dar ao luxo de não saber o paradeiro.
Apenas Skye — sua protegida com maiores habilidades de liderança, ficaria ativamente na equipe, cooperando com times recém recrutados.
Coulson caminhou até o hangar do Playground — a base secreta do Fury de onde reconstruiriam ocultamente a SHIELD, com May ao seu lado.
— Simmons ficará bem, ela se adapta com facilidade e é a única inteligente o suficiente para esse disfarce — Coulson falava para May, mas os dois sabiam que ele estava apenas externando para tentar se convencer daquilo. — E foi treinada desde criança com os movimentos de combate mais eficazes que conhecemos, se alguém pode conter o Soldado Invernal, eu aposto nela. Ou em você, mas você já é figurinha carimbada da SHIELD, precisamos de um rosto que passe pela multidão.
— Está com medo de enviar duas crianças para os alvos mais perigosos da HYDRA. — Melinda conseguia claramente ler nas entrelinhas de tudo o que Coulson falava ou fazia. Não havia por quê fazer cerimônia, era assim que funcionava a relação deles.
— Precisamente — Coulson disse, apenas, enquanto seguiam caminhando.
— Devo lembrá-lo que nem uma das duas é uma criança e não deveria tratá-las assim. São capazes de muito mais que isso e ficarão seguras — May terminou, Coulson tentou guardar aquelas palavras em sua mente.
Ao chegar no hangar, encontraram Jemma e dispostas com suas malas e equipamentos, mantendo suas posturas firmes e profissionais.
Simmons sentia seu estômago gelar só em pensar no que teria de fazer. Infiltrar-se na HYDRA lhe despertava calafrios, ainda mais indo sozinha. E mais ainda por saber que elas estavam saindo em segredo, os únicos com autorização para saber eram os próprios Coulson e May. Não queria nem pensar em como Fitz se sentiria.
, no entanto, havia feito as pazes com a ideia. Como agente, sabia que nunca teria um lugar fixo no mundo, seria sempre de uma missão para a outra. Sob o comando de Coulson, entretanto, sentia-se inspirada e acolhida. Pronta para fazer o que fosse preciso.
— Senhor. Agente May — cumprimentou-os, com um aceno de cabeça, recebendo outro deles.
— May as levará no quinjet — Coulson instruía. — , seu destino será o primeiro. Instale-se e reporte. Aqui está o arquivo do Soldado Invernal — ele a entregou uma caixa de papel pardo que parecia vir da época da SSR e ser atualizada até hoje, dado seu peso —, estude-o, conheça-o, não o deixe a pegar de surpresa — assentiu. — Simmons, May lhe entregará a chave de um apartamento seguro para seu disfarce, assim que conseguir adentrar a base da HYDRA, reporte.
— Sim, senhor — Jemma disse.
Coulson as olhava, ainda receoso. Confiava nelas com sua vida, mas parte dele não conseguia vê-las além de sua tenra idade, sentia-se horrível em mandá-las para o perigo iminente.
As duas também o encaravam. Depois de um tempo na equipe, é impossível não começar a vê-lo como uma figura paterna. Coulson sempre priorizou a segurança de seu esquadrão e poupava-as de tudo que fosse possível. Sentiriam falta de não o ter mais por perto, assim como o resto da equipe e sua atmosfera divertida e afetuosa.
Os tempos agora eram outros.
— Algo mais, senhor? — perguntou, após alguns instantes daquele silêncio e vendo a cara quase engraçada que May fazia, franzindo os olhos para observar Coulson como se o aguardasse dar fim àquela conversa.
— Sim — ele disse. — Por favor, tomem cuidado. Não poderemos nos comunicar com frequência, então fiquem seguras.
sentiu, finalmente, que aquele seria o último contato com Coulson por algum tempo. Pôs a caixa de arquivos sobre sua mala e, de supetão, abraçou Coulson — que demorou a processar o gesto por alguns segundos, mas logo correspondeu.

(...)


seguia sentada na cadeira ao canto do laboratório enquanto observava Fitz trabalhar concentrado e em silêncio. Simmons havia saído para outro setor, a fim testar amostragens da réplica da partícula que acabara de desenvolver.
E, apesar de todo o caos em sua mente, não conseguia simplesmente não pensar em toda a mágoa que poderia ter infligido a seus amigos, que tão prontamente se disponibilizaram a ajudá-la.
Então, sem muito ensaiar mentalmente, atreveu-se a chamá-lo:
— Fitz?
— Sim? — ele respondera, seguindo seu trabalho.
intimamente ficou até aliviada por ele não ter se virado para a fitar. O que tinha a falar não era fácil, e era melhor dizer para a impassível silhueta de costas que encarar os olhos de seu antigo amigo.
— Eu devia ter me explicado quando resolvi deixar a SHIELD. Vocês eram minha família. —Expirou audivelmente, fazendo uma pausa. — Será que pode me perdoar?
Agora, devido as circunstâncias, entendia mais que qualquer um no mundo o quão difícil era engolir uma partida brusca.
Pensara que sua decisão de deixar toda a vida que conhecia como agente fora arriscada e complicada, mas ela era a pessoa indo embora. Doeu por um curto tempo, ter seu mundo destruído; mas tivera seus motivos e a escolha se tornou nata, faria tudo de novo em um piscar de olhos.
Mas, ser a pessoa deixada para trás, isso sim é difícil superar. Todas as dúvidas que rondam e fazem alarde em sua mente, todos aqueles “e se?” perdurando sem respostas, na tentativa de encontrar um motivo para o outro partir.
Fitz parou por um momento. Pôs a minúscula chave de fenda sobre a mesa. Respirou fundo.
Finalmente se virou para encará-la.
— Você fez o que achou que era certo. Eu respeito isso. É o que nós fazemos, não é? — Ele esboçou um pequeno e discreto sorriso empático na direção de . — É tudo o que podemos fazer.
sorriu de volta, um pouco aliviada.
— Sabe que você é o melhor amigo que eu já tive, não sabe?
— Você precisa sair mais — respondeu, sarcástico, mas bem-humorado.
Fitz olhou pela divisória de vidro, enxergando Simmons à distância, trabalhando no outro compartimento.
— Não sei o que eu faria sem ela — confessou, logo voltando a fitar . — Só posso imaginar o que você está passando. Sinto muito.

(...)


“Vigie. Não se envolva.”

As ordens dadas por May quando reportou o status da missão ecoavam todos os dias na mente de .
Há exatas três semanas e dois dias, o quinjet pousara na Romênia, deixando-a em um campo aberto na região de Crețuleasca, uma área ruralista próxima à capital Bucareste.
A SHIELD não era mais uma agência oficial, de fato, não tinham mais recursos suficientes para missões dispendiosas. Tudo o que Coulson pôde oferecer à fora uma caixa recheada de arquivos, com todas as informações que se tinha sobre o Soldado Invernal, e um nome, só recentemente descoberto, que dava rosto à todas as atrocidades: James Buchanan Barnes.
Pela primeira vez em muito tempo, estava sem a companhia da estimada equipe — e ainda agindo às margens da lei, agora que não tinha mais permissões de estado para trabalhar. Precisava ser duplamente cuidadosa.
Sondou a área por pistas sobre o paradeiro do alvo, o que demorou mais do que o esperado.
No primeiro dia, teve de acampar na mata, mas não podia chamar atenção. Dormira no topo de uma árvore, enfrentando, com grande dificuldade, a fome, o vento gélido e a baixa temperatura sem poder acender uma fogueira.
Mas a Academia a havia preparado para tudo aquilo.
Rastreou o inimigo até a cidade de Bucareste, de onde reportou a primeira vez.
“Vigie. Não se envolva.”
A cidade parecia meio perdida no tempo para . Seus edifícios, todos meio decadentes, combinavam com o cinza dos céus e contrastavam com a simpatia de seu povo.
A boa notícia era que o país, relativamente recém inserido ao regime capitalista, era muito favorável a imigrantes e expatriados; o baixo custo de vida e a falta de interesse sobre o histórico de quem chegava facilitaram a instalação de , que se alocou em um apartamento em zona estratégica para circular pela cidade em prol de sua missão.
A má notícia era que, da mesma forma, o assassino letal e aprimorado que destruiu a SHIELD obviamente sabia bem para onde estava indo e também já deveria estar bem instalado.
Assim que se familiarizou com o traçado urbano, passava seus dias de tocaia escondida em telhados e terraços, e suas noites devorando os arquivos do Soldado Invernal. Precisava se preparar, memorizar todas as informações, encontrar seus pontos fracos.
Se Steve Rogers saiu ferido após um encontro com ele, não podia se dar ao luxo de não se precaver o máximo possível e usar todos os recursos que lhe foram dados.
“Vigie. Não se envolva.”
Com seus esforços e o passar dos dias, era questão de tempo para que finalmente o encontrasse. E ela o encontrou.
Em uma tarde de terça-feira, no oitavo dia desde que iniciara a missão, ela o viu.
Em uma igreja próxima ao centro histórico da cidade, se posicionava estrategicamente na torre sineira. Com seus binóculos tecnológicos da SHIELD, ela observava o movimento sem ser vista pelos pedestres.
E foi assim que, de repente, ela o encontrou. Pensou que sua visão pudesse estar lhe pregando uma peça, mas ativou o scanner facial do aparelho. Era ele.
Passeava pela rua quase despreocupado, se misturando com os cidadãos.
Furtiva, ela o seguiu até uma feira dobrando a rua.
Lá, na frente de um estabelecimento que pareceu um pequeno bar, ele fez contato com um homem de idade, de quem o scanner facial não apontou nenhuma ficha criminal. O super soldado se dirigiu para a lateral da loja, onde passou a descarregar caixas de um caminhão e as acomodar dentro do bar. Ativou o raio-x de seu binóculo para descobrir o conteúdo: aparentemente, bebidas alcoólicas comuns.
O homem mais velho que abordara anteriormente o entregou um pouco de dinheiro. Barnes sorriu e caminhou pela feira.
Fez uma nota mental de tudo o que ele comprou: um peixe fresco e algumas frutas diversas. Coisas diabolicamente normais.
Ao fim do dia, acabou por descobrir onde o alvo se escondia: seguiu-o até um prédio antigo e acabadiço em uma região mais humilde da cidade.
Jornais colados sobre o vidro impediam a visão das janelas, mas, apesar de tudo, aquele não parecia um local de tocaia, um esconderijo até o próximo atentado. Crianças pulavam corda na frente da entrada e mães se sentavam nos degraus de acesso, as observando. Aquele parecia um lugar onde se mora.
“Vigie. Não se envolva.”
A rotina dele era sempre a mesma. Trabalhava informalmente para pessoas diversas, realizando tarefas braçais por alguns trocados. Comprava seus mantimentos. Às vezes passeava um pouco, andava de trem, parecia se perder em pensamentos. Voltava para casa.
Ela lia os arquivos, sabia o que ele era capaz de fazer. As pessoas que matou a sangue frio, o mal que fizera sem o menor escrúpulo ou remorso. Céus! Ele destruiu a SHIELD e, com ela, tudo pelo que dedicara sua vida; ele era a arma mais poderosa da HYDRA.
Mas, de alguma forma, durante as três semanas e dois dias, ele parecia perigosamente... normal. Algo não fazia sentido.
“Vigie. Não se envolva.”
Três semanas e três dias. , de tocaia em um terraço próximo à feira, o observava.
Mal dormira na última noite, relendo pela milionésima vez os arquivos da SHIELD.
Por que razão aquele homem parecia tão inofensivo?
“Vigie. Não se envolva.”
Precisava chegar mais perto, precisava investigar por si mesma. Havia algo faltando nas informações que lhe foram dadas.
Ficar só ali parada de tocaia, o vigiando à distância, não iria solucionar seus questionamentos.
“Vigie. Não se envolva.”
Precisava se aproximar mais.
“Vigie. Não. Se. Envolva.”
desceu do terraço e se misturou aos outros que aglomeravam a viela.
Vigie!
Caminhou no meio da feira. Com tantas pessoas indo e vindo, não seria estranho se ela não o conseguisse encontrar. Mas ela o vigiara tanto, que já poderia reconhecer a silhueta de Barnes em qualquer lugar.
Não!
Avistou a figura de costas, escolhendo algumas maçãs na barraca logo à frente. Era estranho vê-lo tão de perto, mas ela tinha um plano.
Se!
Com toda a confiança e tranquilidade do mundo, se encaminhou para a tal barraca, apressada, esbarrando de propósito em seu alvo.
Envolva!
— Desculpe! — ela falou ao encostar bruscamente nele, pronta para qualquer que fosse a reação violenta que o super soldado teria.
Mas ele se virou, encarando-a bem dentro dos olhos e sorriu.
— Não tem problema — disse, gentil.
Tarde demais. já estava envolvida.

(...)


— É só isso? — perguntou, observando o equipamento que Fitz ajustava em seu punho.
Parecia uma luva com uma pulseira metálica embutida, mas em vez de ficar no pulso, se encaixava entre seu polegar e a primeira dobra dos demais dedos, enlaçando-se por todo o contorno de sua mão. Era da cor grafite e tinha quatro botões; três deles ficavam no dorso de sua mão, abaixo de um pequeno visor onde se via uma data e coordenadas, o outro, um pouco maior e na cor roxa, se localizava na lateral onde ela poderia ativar com o polegar.
— Os Vingadores construíram uma parafernália gigantesca no complexo e você me dá uma luva? — ela continuou, sorrindo.
— Você lembra o tamanho dos primeiros celulares e como eles diminuíram rapidamente? — Fitz respondeu, ainda ajustando a luva na mão de . — Conhecendo a engenharia da máquina, não é difícil melhorá-la.
Jemma os encarava bem de perto, com um olhar compassivo e ansioso. Ela estava preocupada, mas tentava esconder.
— Acha que não vai dar certo? — percebeu a hesitação da amiga e a perguntou, buscando seus olhos.
— Não é isso, eu sei que vai — disse, sem um pingo sequer de dúvidas em seu trabalho.
— Mas as preocupações ainda são válidas — concluiu Fitz, soltando a mão de e se afastando para guardar suas ferramentas de precisão.
Jemma se aproximou com uma caixa de ampolas com as partículas recriadas, entregando-as à amiga, estendendo-lhe um olhar sincero e um meio sorriso.
— Já sabe para onde vai? — perguntou, baixinho.
— Eu tenho algumas ideias em mente.
Fitz voltou a se aproximar, explicando os pormenores do funcionamento do aparelho, como programá-lo e onde inserir as ampolas.
ouviu tudo atentamente, agradecendo-os e se despedindo por fim.
Jemma e Fitz se encararam, aflitos, até que Simmons tomou coragem e falou:
— Tem certeza que não quer ajuda? A gente pode ficar aqui, acompanhar o salto, saber se voltará bem...
— Não precisa — falou logo, altiva. — Eu realmente tenho que fazer isso sozinha. Além disso, já fizeram demais por mim.
A contragosto, os amigos acabaram concordando. Com um abraço, se despediu e seguiu seu caminho.
Pegou suas chaves, seu carro preto se misturando à escuridão noite adentro enquanto dirigia quase sem rumo. Precisava sair de Nova York, memórias demais sondavam cada quarteirão e olhos familiares poderiam encontrá-la pela multidão.
Formulando melhor o plano conforme viajava, decidiu ir para Nova Jersey. Tomou o cuidado de pegar o caminho mais longo, pela ponte de Williamsburg; não suportava a ideia de sequer ter a ponte do Brooklyn ao alcance de sua vista.
De forma infantil e irracional, demonizava o monumento: aceitar coexistir com a ponte do Brooklyn agora seria como aceitar a perda dele, como se o objeto arquitetônico inanimado fosse o culpado pela partida, por toda a dor, pelo oceano de sentimentos não processados em seu peito que a asfixiavam. Seria como aceitar que ele estava fora de seu alcance.
Mas, de alguma forma, fez seu caminho até o Parque Alpine — o camping administrado pelos Escoteiros da América. Apesar de fechado e vazio, algo ali parecia torná-lo o lugar certo para o que precisava.
Os faróis de seu carro eram a única fonte de luz no estacionamento. Virou a chave na ignição, desligando-o. Tentou tomar fôlego, sabendo que a tremedeira em suas mãos nada tinha a ver com o frio daquela madrugada. Recostou a cabeça no volante e fechou os olhos.
As lembranças de dias melhores com um James sorridente eram tão vívidas em sua mente que quase podia tocá-lo. Ele costumava dizer que Alpine era um bom nome para um bichinho de estimação, um que eles nunca chegaram a ter. E, às vezes, dizia também que, se tivesse filhos, adoraria levá-los ao acampamento; com sorte, eles iriam acabar querendo se tornar escoteiros e se espelhariam em Steve, Sam, ou... .
Era estranho pensar nisso agora. Nunca chegaram a conversar sobre filhos de verdade. Mas a imagem daquele James era a quem ela se agarrava, um James que ousava pensar no futuro, com grandes ou pequenos planos, seja adotando uma gatinha chamada Alpine ou tendo filhos, ela segurava firme na infame hipótese de que algo nele queria... ficar.
E por isso ela estava pronta para o combate.
Ergueu seu rosto, ligou a luz interna do carro e esticou-se para abrir o porta-luvas, na intenção de pegar o equipamento recém entregue por Fitz e Simmons. Mas seu coração pareceu ir à garganta quando seus dedos esbarraram em um pacote plástico.
Trouxe sua mão para o peito em um susto, a cobrindo com a outra, como se tivesse levado um choque. Tinha esquecido que deixara, também no porta-luvas, o pacote entregue pelo legista com os pertences de James.
Tentou se recompor, não era hora de desmoronar. Mais cedo ou mais tarde teria de lidar com isso, não poderia apenas deixar o pacote escondido para sempre.
Com o corpo todo tremendo, retirou o saco hermético do compartimento.
Com a visão turva, abriu-o, removendo dele um único item: a dogtag, ou colar militar de identificação, de James.
Segurou-o com força bem dentro de sua palma, fechando-a e trazendo-a para perto da boca, como se fosse abafar seu choro de irromper.
Respirou fundo, contou até dez mais de dez vezes. Lembrava de seu treinamento de agente.
Notou que havia apenas uma plaqueta no cordão. Indagou onde a outra teria parado. Sabia muito bem que aquilo era bem mais que um simples colar para Bucky, se o legista o perdeu, ela o faria se arrepender.
Mas, por enquanto, tinha mais o que fazer.
Trouxe a placa de metal gelado para seus lábios, beijando-a rapidamente para, em seguida, transpassar o colar por sua cabeça, escondendo-o dentro de sua blusa.
Após meses do Blip e de ter se comprometido a uma vida normal, trajava mais uma vez seu uniforme clássico de super espiã. Não muito diferente daquele que costumava usar na SHIELD anteriormente, era um macacão preto de tecido tecnológico leve, justo ao corpo para facilitar a movimentação, coldres com várias tiras nas costas, cintura e pernas, acomodavam lâminas e armas; nos pés, suas botas de solado anti-impacto permitiam que caminhasse sem ser percebida; nas mangas de seu traje ainda se via o famoso “A” da logo dos Avengers, mesmo que o grupo — ou o que sobrou dele —, possivelmente não se fosse se reunir nunca mais depois de Thanos.
Sentiu o vento gélido bater contra seu corpo e suas pernas amolecerem de repente. Havia muito em risco, fragilizada, não conseguia conter o nervosismo.
Com a lanterna dos pulsos de seu traje ativa, caminhou mata adentro até que não visse mais trilha ou sinais humanos. Não podia ser perturbada ou vista e todo cuidado era pouco.
Quando tudo o que lhe cercava eram árvores e a própria escuridão, parou.
Aqueceu seu corpo com rápidos alongamentos e sua mente com a confiança de que não falharia. Tentava se convencer de que era só mais uma missão, e ela não chegou aos Vingadores com um histórico de falhar em suas tarefas.
Contou até dez, tomando controle de seus batimentos e emoções mais uma vez.
Era agora ou nunca.
— Até o fim — repetiu em voz alta a promessa que um dia fez a James, rapidamente programando o equipamento em seu punho com a primeira data e local que lhe viera à mente.
Fechou os olhos com força, mas ainda podia ver uma luz forte por detrás de suas pálpebras. Seus ouvidos doeram como se tivessem pegado pressão em um avião. Sentiu seu corpo inteiro vibrar em uma frequência estranha, como se tudo formigasse e cada partícula de cada célula nela se agitasse.
E, de repente, silêncio.


16 de Dezembro, 1991


Já não era tão frio.
Tudo em seu corpo parecia de volta ao normal, mas sentia que seus arredores haviam mudado. Arriscou abrir uma de suas pálpebras — que mantinha fechadas com tanta força que franziam todos os músculos do rosto — primeiro.
Ainda via árvores, mas eram iluminadas por um poste.
Com os dois olhos abertos, olhou ao redor. À sua frente, uma estrada de terra e uma cerca com uma câmera.
Um sentimento de euforia a entorpeceu de uma vez.
— Fitz, Jemma, seus gênios do caralho! Vocês conseguiram! Realmente conseguiram! — disse, empolgada, enquanto um sorriso incontrolável rasgava seus lábios.
Conferiu novamente seu aparelho, Fitz deu um jeito para que mostrasse as horas de onde estivesse.
Eram exatamente 18 horas e 55 minutos.
— Merda! — resmungou.
Precisava se esconder depressa.
Havia lido tantas vezes os arquivos do Soldado Invernal que, mesmo agora, anos depois, sabia quase de cor a maioria dos eventos em que ele se envolveu. Este, sendo um dos mais notáveis, estava gravado na mente dela como uma tatuagem.
E tinha poucos minutos antes de acontecer.
Agachou-se atrás de um arbusto. Desde o salto, não cruzou o campo de visão da câmera.
Nos cinco minutos seguintes, ponderou o que exatamente faria. O que ela poderia fazer?
Lembrou-se de Fitz dizendo que não conheciam as implicações de se mexer com a linha do tempo.
Talvez devesse se ater a não alterar tanto as coisas. Talvez devesse se importar com a linha do tempo que levou Bucky a tirar a própria vida.
Mas ela se importava?
Exatamente às 19 horas e 01 minuto, ouviu um carro se aproximando.
Era agora.



Continua...


Nota da autora: I'M BACK, BITCH3S. - Z.

Nota da beth: Esse capítulo não podia acabar assim, eu tô doida para ver a em ação 💜

Se você encontrou algum erro de revisão ou codificação, entre em contato por aqui.