Revisada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 22/05/2025. | AGORA
Manchester, Inglaterra.
Levou cerca de vinte minutos para compreender onde estava e o que estava acontecendo. O zumbido intenso em seus ouvidos emudeceu tudo ao seu redor, sua pulsação se confundiu com a memória traumática dos disparos. O coração dela ainda estava acelerado, martelando de maneira nauseante contra sua caixa torácica, os instintos ainda em alto alerta, sensíveis e à espera do golpe iminente. A respiração pesada, irregular e rarefeita. A tosse que se seguiu era mais nervosa do que qualquer outra coisa, enquanto sua mente só registrava meio à parte a falta de ar.
Tudo estava girando.
Ela tentou respirar, mas quanto mais o fazia, mais parecia que faltava ar. rolou para o lado, sem perceber que acabava de enfiar sua mão na poça de vômito dela, tentando se colocar sentada, instintivamente buscando uma arma, ou qualquer coisa que pudesse usar para se defender, enquanto o grito pelo nome de Beatriz morria em sua boca. Ela encarou diretamente a televisão ligada no que parecia ser um canal de segunda mão ecoando o jornal matinal.
A estática da televisão de tubo fazia não apenas com que a imagem ficasse instável, como, igualmente, aumentava a sensação de desconforto do emudecimento de seus ouvidos. franziu o cenho, tremendo, hiperventilando, inicialmente confusa por não estar compreendendo nada do que era dito, sentindo como se algo estivesse completamente errado, mas então ela percebeu. Inglês. Porra! Manchester. Certo, certo! Ela havia se esquecido disso.
Inglaterra, porra, ela estava na Inglaterra. Ótimo, porra, fantástico.
Puta merda, fechou os olhos com força, ignorando o gosto horrível amargo de bile em sua boca, enquanto se deixava sentar para trás, esbarrando em sua mesa e quase caindo para trás se não fosse a perna de sua cadeira deitada no chão, de onde ela deveria ter caído na noite anterior após apagar completamente.
Ainda hiperventilando, ela fez uma careta para si mesma ao observar os indícios do próprio vômito em sua mão, praguejando baixo em português e buscando algo para limpar. Qualquer pano que ela encontrasse no meio do caminho serviria como auxílio para que ela a limpasse, cuspindo no chão antes de usar o antebraço para afastar as mechas revoltas de seus cabelos para longe de seus olhos e testa.
Estava encharcada de suor, e apesar de ter a sensação de sua pele estar febril, o suor era frio e a sensação ainda pior. Quer dizer, ela já havia caído dentro de um lago congelado antes, ela sabia como era a sensação de quase morrer congelada, e, ainda assim, havia algo de completamente não natural em soar frio que a incomodava. tinha poucos medos, e certamente a morte não era um deles, mas isso não significava que ela gostasse de sentir desconforto.
Ela era maluca, não sádica. Não com ela mesma pelo menos.
Puta merda, sua cabeça estava para explodir e ela ainda estava naquela maldita névoa desorientadora de puro medo e instinto. Ela praguejou outra vez, atingindo o próprio rosto com alguns tapas fortes, tentando aumentar sua adrenalina o suficiente para ela se concentrar em outra coisa.
Havia aprendido que a dor era uma boa maneira de limpar sua mente, ao lhe oferecer algo prático para se concentrar. Não era a melhor solução, ela sabia, mas funcionava, então foda-se. Os olhos dela dispararam de um lado para o outro, as pupilas se contraindo enquanto se fixavam na televisão ligada à sua frente. exalou por entre os dentes, tentando se obrigar a ouvir algo. Uma das piores partes daquela merda não era a desorientação, ou a sensação de que estava prestes a morrer, com as solas dos pés e as mãos formigando sem parar, e muito menos a sensação de descontrole de seu próprio corpo, como uma desconexão de seu físico com sua mente, mas o ruído em seu ouvido, abafando tudo ao redor, enquanto ela só conseguia hiperventilar. Quanto mais tentava respirar, mas falta de ar lhe causava. Ela tentou se concentrar na televisão, parecendo estar submersa debaixo d’água inicialmente, antes de lentamente conseguir focar nos sons que o aparelho velho, decrépito e caindo aos pedaços estava fazendo.
— ... de acordo com o Parlamento Canadense, a ação foi necessária para manter a integridade do sistema de justiça. O Primeiro Ministro Canadense, David , informou esta manhã sobre as investigações ao escândalo de corrupção na bancada republicana no Parlamento. Em seu discurso durante a abertura de um dos novos hospitais para crianças de baixa renda com doenças raras ou tratamento intensivo experimental, o Primeiro Ministro fez questão de frisar que… — A imagem mudou de uma loira elegante envolta por roupas profissionais de âncora de jornal para um homem engravatado de rosto sério, concentrado, mas que estranhamente aparentava uma gentileza capaz de fazer o estômago de revirar. Tinha olhos azuis escuros, cabelos grisalhos nas laterais, embora perfeitamente alinhados e no topo, pendendo por seu rosto de galã grisalho hollywoodiano, barba perfeitamente aparada, o fazendo parecer mais novo, e roupas impecáveis.
não conseguiu conter um sorriso de desgosto e nojo que se espalhava instintivamente por seus lábios, sabendo perfeitamente que as pessoas que mais tentavam esconder-se por trás de um véu de perfeição, eram as que mais tinham algo a esconder. Ou talvez ela fosse apenas cínica demais, sequer prestou atenção no discurso que o tal David fez.
Os olhos dela se encontraram com os amendoados de Beatriz. Os olhos de Beatriz sempre haviam sido mais castanhos, como mel, e sempre haviam sido mais doces que os dela. Olhos arregalados, braços cruzados à frente de seu corpo, mas os pulsos e as mãos estavam faltando, os ossos expostos. A cabeça dela pendeu para o lado, pendurada em seu tronco, de onde a espinha vertebral dela se projetava para fora. E o sangue se espalhava por todo lado.
piscou os olhos rapidamente, encarando as próprias mãos, enquanto sua respiração se tornava insuportavelmente irregular.
A notícia do tal Primeiro Ministro Canadense mudou bruscamente para alguma coisa relacionada a algum conflito no Oriente Médio. Os gritos, o som da bomba explodindo, era demais para ela. tateou desesperadamente pelo controle da televisão, cegamente, sem se levantar de onde estava, os músculos ainda travados, o corpo ainda tremendo. Ela praguejou baixo ao perceber que teria que se levantar, e então, com uma mistura de preguiça e pura incapacidade de mover-se com segurança, juntamente à certeza de que iria cair sobre seu próprio corpo, seu peso cedendo às suas pernas, ela apenas jogou o que achou ao seu lado na direção da televisão. Um chinelo, uma pedra, um pote com canetas esferográficas com cheiro de morango e outras frutas, com glitter, porque ela havia comprado por algum motivo quando estava bêbada demais para se lembrar do porquê.
— Porra. — cuspiu outra vez, tacando sua cópia velha e rasgada de Memórias do Subsolo na direção de sua televisão, propositalmente para desligá-la da forma que dava. Quer dizer, o aparelho estava quebrado há meses, funcionava por intervenção sobrenatural ou divina, embora estivesse mais inclinada a apenas acreditar que o aparelho funcionava por vontade própria, e a única forma de desligar era dando um tapa ou chute, ou arrancar o cabo da tomada, mas se ela arrancasse a merda do cabo da tomada, o apartamento inteiro ficaria sem luz, porque sua vida era simplesmente incrível, não é? fechou os olhos novamente, apoiando a cabeça contra uma das pernas da cadeira derrubada, encarando o teto por um longo tempo, completamente envolvida em silêncio.
Não era que ela gostasse de silêncio, na verdade sentia repulsa, a imprevisibilidade e a paranoia a enviava para um estado de alerta pior e mais profundo na maioria das vezes, esperando de onde viria o próximo ataque ou quem iria agarrar seus cabelos dessa vez e arrastá-la para algum canto escuro. Igualmente, não era como se ela quisesse ouvir os dois filhos da puta gemendo em alto e bom tom, do outro lado de sua parede. Ao menos era melhor do que ouvir os gritos de Beatriz, de novo, e de novo, e de novo, como acontecia todos os dias.
A cabeceira da cama batia ritmadamente contra a parede à esquerda de sua sala, estupidamente fina para o próprio gosto dela — afinal, pelo menos no Brasil as paredes eram feitas de grossas camadas de tijolos, e isso ao menos abafava um pouco os ruídos. Sem a televisão para abafar o som, ela conseguia ouvir os grunhidos e gritos agudos dos dois pervertidos que pareciam ter tempo para aquilo logo de manhã.
não havia se dado ao trabalho de investigar muito sobre a vizinhança naquele maldito pardieiro, tudo o que havia tido como garantia era que ninguém faria perguntas ou era bisbilhoteiro o suficiente para querer saber quem ela era. Algo sobre gangues menores que eram subjugadas aos Blinders ainda. O que quer que aquela merda significasse para eles. O que não gostava e definitivamente não esperava era acabar sendo vizinha de dois idiotas filhos da puta ninfomaníacos. Além disso, tinha quase certeza que o exibicionismo era apenas uma tentativa de validação pessoal para confirmar que “sim, realmente, casal muito apaixonado” quando não havia substância alguma além do sexo. Típico. encarou o vazio à sua frente, se questionando pela primeira vez no dia que porra ela havia feito com a própria vida.
— Puta que pariu, só pode ser brincadeira. — apertou a ponte de seu nariz, tentando conter os tremores restantes de seu corpo, ou ao menos mantê-los sob controle, antes de obrigar-se a levantar, meio cambaleando, meio rosnando consigo mesma ao esbarrar pelos móveis no meio do caminho.
balançou a cabeça de maneira negativa, genuinamente irritada, enquanto tentava afastar a sensação de torpor que a envolvia, unindo as sobrancelhas, no máximo de determinação que ela possuía — o que por si só era mínimo. Ela agarrou um pé de cabra no canto do corredor de seu apartamento, e então propositalmente acertou violentamente a parede. Mas os gemidos, para sua descrença, continuaram. Então, xingando em alto bom tom, ela acertou a parede novamente, e de novo, e de novo, até fincar o pé de cabra, o atravessando do outro lado.
Um grito feminino em pânico e uma sequência de palavrões pouco criativos a fez sorrir como o próprio diabo. Se era briga que o machão idiota procurava, então estava completamente aberta para enterrar a cabeça de merda dele no chão com os próprios punhos.
— CALA A BOCA, PORRA! — ela gritou, chutando a parede em um aviso, por pura raiva, antes de assoprar as mechas de seu cabelo para longe de sua boca, irritada, apoiando as suas duas mãos em seus quadris.
Ela fechou os olhos com força, girando o pescoço, tentando aliviar a tensão em seu corpo, inspirando fundo. O ar gélido queimava suas narinas, ou talvez fosse apenas o pó que a estivesse incomodando, mas a alta da adrenalina e a raiva lhe deram, ao menos, um breve foco além de ficar voltada para Beatriz, e isso já lhe valia muito.
Pelo menos o ataque de pânico havia diminuído.
Ela podia sentir as mãos tremendo ainda, mas enquanto ela convencesse a si mesma de que não estava sentindo nada, então ela firmemente não iria sentir nada. Era um jogo perigoso e puramente estúpido que ela fazia consigo mesma, mas o problema de seus ataques de pânico era que eles não ocorriam de súbito. Eles ocorriam gradualmente, até um ponto de explosão. Ela podia sentir na maneira irregular que seu coração martelava contra sua caixa torácica, ou a maneira com que sua mente parecia presa em um manto esquisito de falsa estabilidade, sentindo a familiaridade do espaço, mas notando algo que não estava ali — algo que ela não estava vendo. Iria ficar pior, ela sabia, mas no momento? Bem, estava sob controle, e ela manteria assim. Por desprezo — a si mesma.
usou o antebraço para limpar a própria boca, ignorando os xingamentos e gritos do outro lado da parede. Ela puxou com força o pé de cabra da parede, observando o buraco que se abriu no espaço, antes de abrir um sorriso torto, desgostoso e lhe dando o dedo do meio ao ver alguém tentar espiar pelo buraco aberto.
jogou o pé de cabra sobre sua mesa próxima à janela, sem se importar com o fato de que ela havia errado feio e acertado o vidro da janela, criando uma bagunça de cacos no chão. caminhou até seu banheiro minúsculo e apertado, fedendo a água sanitária e limão. Puta merda, um dia ela ainda se mataria naquela merda por misturar produtos químicos que não deveriam ser misturados, sem a preocupação de verificar se era adequado ou não o fazer. Um grunhido escapou por entre os lábios dela quando ela calculou mal o espaçamento do degrau e tropeçou para dentro, batendo o ombro na quina da bancada do gabinete do banheiro e quase acertando a cabeça dela no box de vidro.
fechou os olhos por um segundo, pensando em desistir de tudo simplesmente e ficar ali pelo resto do dia, questionando novamente o que diabos havia feito com sua própria vida. Mas os espasmos suaves em suas mãos, cedendo lugar aos tremores anteriores, evidenciavam o começo da abstinência. abriu os olhos, se obrigando a levantar-se e então apoiou as duas mãos na pia, franzindo o rosto com a claridade que invadia o banheiro.
Ela odiava as manhãs.
A água gelada a acertou como um soco preciso, a livrando de qualquer resquício de ressaca que ela poderia ter no momento, e um suspiro de alívio escapou por entre os lábios dela quando cuspiu a água de sua boca após a lavar. O gosto de menta ainda estava em sua língua, quando os olhos se encontraram com seu reflexo. Olheiras abaixo dos olhos, a pele mais pálida que o normal, meio doentia, os lábios com alguns machucados das peles que ela costumava arrancar inconscientemente na noite anterior, enquanto se afogava na bebida sozinha. soltou um chiado entre dentes, desviando os olhos quase imediatamente, incapaz de se olhar no espelho, como se sua imagem a queimasse, e então abriu a porta do armário em busca dos frascos dos remédios. Tateou meio cegamente, derrubando um dos frascos dentro da pia, mas, para sua surpresa, todos estavam vazios.
prendeu a respiração. Merda!
Não, não, não, não!! Isso não poderia estar acontecendo! Não agora! Não hoje! Mas que caralho?! Então tudo se desfez no fundo de sua mente. Ela abriu as gavetas do gabinete de seu banheiro, procurando na bagunça por mais um frasco da droga. Ela não poderia estar sem aquela merda de remédio. Se estivesse, então… fechou os olhos com força, tentando silenciar o medo que começava a atingir e se espalhar por seu peito como veneno, praguejando entre dentes. Ela não podia enfrentar Beatriz. Não agora. Nunca. Os dedos longos dela, meio tortos, buscaram rapidamente por sua bagunça ali, jogando no chão alguns sabonetes, lenços umedecidos, absorventes internos, esmaltes velhos, sem se importar com o caos que estava construindo em seu banheiro. Sem se importar com nada que não fossem aquelas malditas pílulas.
Ela exalou de maneira afiada, por entre dentes, fechando os olhos com força, acertando um tapa por pura frustração na quina do gabinete antes de enterrar o rosto em suas mãos. Que porra! Era só o que ela precisava! Era cuidadosa e costumava pegar mais doses do que deveria para garantir que não faltaria. Porra, porra, porra! Como ela havia deixado aquilo acontecer?! Puta que pariu! inspirou uma única vez, negando com a cabeça, disparando na direção de seu quarto.
Ela se trocou rapidamente com a primeira roupa limpa que ela encontrou pelo caminho. Vestiu com uma careta a jaqueta de couro, seguida do boné esfarrapado escuro, o prendendo em sua cabeça de maneira firme antes de puxar o gorro de sua jaqueta com um movimento rápido. Alguns hábitos levavam tempo para morrer.
O vento gélido queimava o rosto dela, fazendo seu nariz arder e sua respiração se tornar uma fumaça suave, esbranquiçada, ao escapar por entre seus lábios, ao passo que ela desceu rapidamente as escadas decrépitas do pardieiro que ela vivia em Manchester, empurrando com um grunhido o portão de ferro, antes de preparar-se para andar, apenas para receber um golpe violento em sua cabeça.
tossiu, se engasgando com a própria saliva, desorientada por um segundo, enquanto desabava no chão como uma jaca podre. Os olhos dela se arregalaram levemente, enquanto encontravam com o rosto genuinamente irritado e desesperado de um homem truculento, com uma calvície bem evidenciada e uma expressão de filha da puta que havia acabado de ser pego em flagrante e não estava conseguindo dormir por conta disso. Ele tentava segurar os braços dela. Péssima decisão.
O instinto voltou como uma memória muscular cravada em sua mente, e não percebeu que reagiu até ter quebrado o nariz do idiota e o ter preso contra a parede à sua frente, torcendo o braço dele nas costas, o imobilizando enquanto a mão esquerda dela segurava os cabelos dele com força, puxando a cabeça para trás para ver o rosto de seu quase agressor. O impulso gritando mais alto, ecoando para que ela acertasse repetidas vezes a cabeça do idiota contra os tijolos irregulares do prédio em que ela vivia até que ele estivesse morto — mate-o, o que está esperando? Termine o trabalho, . Mate-o!
exalou lentamente, fazendo uma careta antes de empurrar o filho da puta para frente, soltando os cabelos dele e o chutando no meio das pernas apenas para descontar sua frustração. Os olhos percorreram momentaneamente o restante das pessoas que caminham por entre a calçada, unindo as sobrancelhas grossas e bem marcadas em uma expressão de poucos amigos ao perceber tardiamente que ela estava chamando mais atenção do que deveria. Ela exalou novamente, a fumaça esbranquiçada de seu hálito projetando-se à frente de seus olhos, enquanto ela voltava a encarar o maldito homem.
Senhor Andrews, desabado em seus próprios joelhos, segurando a virilha com dor, enquanto xingava até a última geração de .
Talvez ela estivesse finalmente enlouquecendo. Talvez fosse pura frustração. Ou talvez fosse simplesmente incredulidade, mas ela soltou um riso nasalado, incrédula, cambaleando um pouco para trás, enquanto apoiava as duas mãos nos quadris, furiosa. Justo naquele dia, puta que pariu! Se algo mais desse errado, ela genuinamente iria considerar saltar da primeira ponte que encontrasse em seu caminho…
O senhor Andrews era um filho da puta na casa dos quarenta anos. Até poderia ser considerado alguém bonito quando jovem, mas agora era uma desculpa medíocre de um homem branco e velho entrando na meia idade que, por algum motivo, estava desesperado para ter uma validação masculina em sua vida ao agir como se tivesse quinze anos novamente — uma crise de meia idade, típica para pessoas como ele. Não apenas isso, dormia com garotas de quinze anos também. estava na cola dele fazia sequer duas semanas, quando a Senhora Andrews, ou apenas Genevieve, como ela havia pedido para que a chamasse, havia entrado em contato com ela e pedido para que o investigar a fim de descobrir se ele estava a traindo ou não. A verdade previsível? É claro que sim. O problema era que esse maldito professor do ensino médio estava a traindo com as alunas dele. E fale de ameaça à sociedade.
— Ah, puta que pariu, pau no cu do caralho, para de falar, minha cabeça tá explodindo e você só tá piorando essa porra. — cortou com pura impaciência, se confundindo com os idiomas e começando a falar em português, sua língua materna, antes de perceber o que estava fazendo e se corrigir para falar um inglês meio quebrado devido à sua irritação. conteve o impulso de chutá-lo outra vez, se colocando de cócoras para observar o homem gemendo de dor com o golpe que havia recebido, o encarando com desprezo. Ela apoiou os cotovelos nos joelhos dobrados, ajeitando o boné em sua cabeça novamente, antes de encará-lo com atenção.
Andrews estava vermelho, o rosto em uma mistura de vergonha, raiva e frustração, e tinha claramente alguns arranhões frescos em seu rosto. bufou consigo mesma, um sorriso torto surgindo por seus lábios quase discretamente demais para ser percebido, enquanto ela supôs que, ao menos, Genevieve havia conseguido acertá-lo onde o doía mais: sua aparência.
Bom para ela.
— O que você quer, seu merda?
— Vadia!
sorriu, erguendo uma sobrancelha.
— Ótima habilidade de observação, mas redundante. — apontou com escárnio, se divertindo sombriamente com a tentativa de ofensa daquele homem miserável. Não porque tivesse algo contra ele, apenas o fazia por passatempo. Palavras eram apenas palavras quando você não se importava. E … bem, fazia muitos anos que ela havia se importado com algo. — Vou assumir que toda essa tentativa de intimidação é por causa das fotos? Sabe, se vai trair a sua mulher com uma garota de 16 anos, que tem idade para ser amiga da sua filha, pelo menos, e ênfase no pelo menos, tenta ser discreto sobre, sabe? Fecha as janelas, cronometra entradas e saídas, evite câmeras e, não sei, encontre alguém que esteja na idade legal para ter sexo com você, não uma criança. — ofereceu um sorriso repleto de escárnio, encarando com uma ponta de diversão o homem ficar ainda mais vermelho que antes e gaguejar para tentar se defender. Em outro momento, ela teria se divertido muito em ver ele lutar para encontrar justificativas plausíveis, apenas pelo prazer de vê-lo escorregar em seus argumentos e se recusar a admitir o que todos sabiam: ele era medíocre. Uma desculpa patética de covardia que sequer merecia o nome que carregava. Mas, porra, ela só queria se livrar dele o quanto antes e continuar seu caminho até o porto. Não conseguiria começar seu dia se não estivesse com as merdas das pílulas ao seu alcance e, certamente, não iria conseguir dormir. — Corta a baboseira, parceiro, vai direto ao ponto.
— Eu ordeno que me dê as fotos, sua puta! É o mínimo que você pode fazer por destruir meu casamento e minha carreira! — rosnou Andrews, tentando parecer corajoso. Mas conhecia monstros piores e muito mais assustadores que ele. Porra, ela era um monstro pior e mais assustador que a merda de um idiota que não conseguia manter seu pau dentro da calça quando via crianças.
estreitou os olhos, inclinando a cabeça suavemente para a direita, de maneira quase felina, enquanto os olhos se fixavam firmemente no rosto de Andrews, o analisando com cuidado, perigosamente inexpressiva, sem revelar uma emoção além do desprezo característico que ela tratava a tudo e a todos.
— E eu faria isso por quê…? — questionou, erguendo uma sobrancelha ao observá-lo com mais atenção ainda. Estava blefando, e isso não era sequer um questionamento, mas de repente considerou as possibilidades por um segundo, imaginando que havia uma quantidade de dinheiro considerável que ela poderia usar para extorquir do maldito patético homem antes de se livrar dele. Além disso, querendo ou não, Andrews estava fodido e nem havia percebido. não se considerava uma justiceira, muito menos estava inclinada a fazer algo de graça apenas pela bondade e bom moralismo. Não. Foda-se aquela merda. Mas, bem, ela tinha as fotos, e era claro para qualquer um que o juiz não demoraria muito para começar uma investigação criminal, já que seria pressionado e estavam em época de eleição. Andrews havia atirado na própria cabeça, ela só estava entregando a arma.
— Porquê… porquê… porquê… porque é uso indevido de imagem! — Ele cuspiu, desesperado. franziu o cenho, com uma ponta de desprezo. Mais do que a hipocrisia, ela detestava a fraqueza que exibiam. Pessoas que não levavam suas posturas de merda até o fim. Chame-a do que quiser, mas era uma fã assídua de consistência. Se você era um filho da puta, então que fosse até o fim, sem arrependimentos, ou julgamentos. Ela conteve a vontade de rir, apertando os lábios em uma linha, enquanto estreitava os olhos, observando a oportunidade que se abria à sua frente. Andrews agora estava chorando. colocou-se de pé com um movimento econômico e elegante. Se ela tivesse ao menos um coração… — ! Escuta! Escuta! Eu faço qualquer coisa, qualquer coisa! Se Gen... se Genevieve apresentar essas fotos para o júri, eu não vou só perder tudo, minha carreira, meus filhos, eles… eles vão me mandar para a cadeia! Sabe o que acontece com alguém indiciado por esse tipo de coisa… eles vão… eles vão… só me diz o que você quer, e eu faço! Eu prometo! Qualquer coisa!
— Implora.
alargou seu sorriso quando o viu se postar de joelhos à sua frente, realmente implorando, mas ela segurou uma risada alta. Por Deus, ele era mais patético do que ela havia imaginado que ele fosse capaz de ser. E agora haviam pessoas que haviam presenciado o desespero dele. Uma confissão, para todos os efeitos, não havia como ele negar se ele estava desesperado daquela forma. Como sempre, havia apenas entregado a arma para Andrews, ele quem havia puxado o gatilho. Idiota de merda. Os olhos de repousaram por um breve momento nas câmeras que permeavam a rua, antes de voltar sua atenção para Andrews, desesperadamente tentando segurar os pulsos dela, como se fosse capaz de a fazer compadecer-se. Mas, bem, ele mesmo havia dito. Ela era só uma vadia.
— Por favor, …
— Não — disse calmamente, ajeitando a lapela de sua jaqueta de couro, antes de distraidamente examinar suas unhas com uma expressão contemplativa. Ela simplesmente odiava quando o esmalte descascava, simplesmente porque tinha algo dentro de si mesma que a impedia de retocar o espaço descascado, em vez disso, ela iria descascá-lo até que ficasse com a unha limpa novamente. Ela revirou os olhos, arrancando um pouco do esmalte distraidamente com o canto da unha de seu polegar, antes de dar de ombros com desdém para o Andrews, patético, ajoelhado e chocado com a recusa dela. Pessoas se sentiam tanto no direito de serem ajudadas após dizerem por favor. Como se ela fosse ajudar alguém. — Se quer as fotos originais, Sr. Andrews, seja esperto, me ofereça a quantia certa, e serão todas suas. Simples assim. Se não tem o dinheiro, não se incomode em vir atrás de mim — resmungou com desinteresse, indicando com o queixo na direção dele, antes de fazer menção de voltar a andar. Mas então ela paraou, estreitando os olhos e assumindo uma postura mais firme, perigosamente alerta. — Tenta de novo essa merda comigo e vai acabar morto. E isso não é uma ameaça, é um aviso. Mantenha isso em mente, garotão.
Na 6 St Anns Square ficava a antiga igreja St Ann’s. Um prédio consideravelmente grande, com dois andares e uma torre com um relógio ao lado da entrada da igreja. As paredes de tijolos evidenciaram a passagem de tempo, deixando os tijolos escurecidos, criando padrões irregulares, de tijolos desbotados, escurecidos e avermelhados recém trocados. Musgo espalhava-se nos cantos do gesso que decorava as paredes. A porta dupla de madeira estava fechada, mas conseguiu ouvir o barulho suave do canto gregoriano, enquanto empurrava-a para frente para abri-la. O cheiro de mirra e incenso atingiu o rosto dela, fazendo seu nariz arder enquanto seus olhos percorreram o ambiente interno, observando os vitrais coloridos e elegantes, com imagens de santos que ela não conseguia acreditar e um deus que, se fosse real mesmo, estava longe de ser a concepção de uma criatura gentil, misericordiosa e amorosa. Quer dizer, a chame do que quiser, mas se existia um deus a quem contavam ser onisciente e onipresente e via toda a desgraça e sofrimento que envolvia o mundo e não fazia nada, ou este não era onisciente ou onipresente, ou simplesmente não se importava. E se não se importava, significava que era apenas um desgraçado cruel como qualquer outro. Para que temer o inferno quando o paraíso parecia igualmente uma punição?
Mas não estava ali para orações, tampouco para buscar perdão — aquele navio já havia saído do porto há muito, muito tempo para ela. Não, longe disso. Estava ali por uma pessoa e apenas isso. Ela apertou os lábios em uma linha tensa, enquanto os olhos dela percorreram pelas fileiras de bancos de madeira escura. Pilares brancos se projetavam nas laterais, levando ao segundo andar da igreja, e imagens de santos de pelo menos um metro de altura de momentos sacros, como a crucificação, a morte de cristo e outros momentos que genuinamente não tinha interesse algum de observar. exalou por entre os dentes trincados, caminhando em direção a um púlpito largo próximo de um dos pilares brancos arredondados da igreja, observando a fileira de velas acesas. soltou um riso baixo, desdenhoso e desagradado. Não eram velas de verdade, mas simulavam velas acesas, e para acendê-las era necessário colocar algumas moedas. revirou os olhos, retirando algumas moedas do bolso de sua jaqueta de couro, e então colocou uma por uma na pequena fenda no canto, a fim de acender ao menos uma vela.
Mesmo que ela não acreditasse naquele tipo de merda, isso não significava que ela não poderia deixar de aproveitar aquilo à sua vantagem. Estava comprando tempo, tentando encontrar a melhor linha de ação para a situação em mãos. Anos nas Forças Especiais ao menos teriam que lhe servir de algo. Mas estava falando de Ziyad Karam.
Os olhos dela repousaram nas costas do homem grisalho, calmamente lendo um livro pequeno, enquanto a mão direita permanecia enrolada em um terço. Para todos os efeitos, Karam era um homem comum, evidentemente elegante e com uma postura impecável, que parecia exibir privilégios de uma vida que estava além da compreensão de . Quer dizer, ela lembrava-se de ter crescido em uma favela, e então… bem, então havia sido apenas um puro e desesperador pesadelo o qual ela tentava a qualquer custo esquecer.
Ziyad Karam usava as roupas nos melhores cortes, das maiores grifes, não porque desejava ostentar seu dinheiro, mas simplesmente porque o dinheiro que possuía lhe comprava a autonomia de vestir-se discretamente, em ternos requintados que evidenciaram seu poder, mas que eram simples. Passavam a mensagem que desejava: efetividade. Os cabelos crespos agora já estavam todos brancos, mas, apesar disso e de algumas linhas de expressão em seu rosto, Ziyad Karam permanecia impecavelmente mais jovem do que deveria. Os óculos estavam presos na ponta de seu nariz, enquanto ele entoava a oração, concentrado. Ele deveria ser mulçumano, mas era católico romano. Ele deveria ser letal, mas era um avô dedicado e presente. Ele deveria ser apenas mais um merda fanático, que buscava justificativas divinas para a bunda desamparada de sua recusa a aceitar sua própria insignificância — porque todos eram insignificantes, apenas sacos de carne e água, à espera de uma falha para virar uma pilha de vermes —, e, no entanto, era Doc, a porra do dono daquele país. Líder não apenas de uma gangue, mas uma máfia inteira. O melhor no que fazia, é claro, porque se havia algo que Ziyad Karam não aceitava, era mediocridade.
hesitou por um segundo, voltando a encarar as velas à sua frente, com uma sensação de desapego emocional crescente. Era como se ela estivesse amortecida demais para sentir qualquer coisa que não fosse apenas um puro vazio, uma indiferença profunda que se projetava como veneno por sua mente, mas que, a essa altura, era só um local familiar para ela. Ainda assim, naquela breve fração estúpida de segundos, ela se sentiu tentada a fazer uma prece. Uma prece para Beatriz. Tentada a ver se talvez estivesse errada, talvez, onde quer que a irmã gêmea estivesse, se era possível que… se Beatriz era capaz de… umedeceu os lábios secos, balançando a cabeça discretamente, de maneira negativa, praguejando consigo mesma. Estava sendo idiota e perdendo tempo. Por anos, quando era pequena, havia esperado encontrar um maldito herói e tudo o que havia recebido em suas mãos em troca por suas súplicas era apenas sangue, terror e uma constante contagem. Nada mais. Nenhum herói veio e tampouco viria agora.
A verdade nua e crua? O mundo era uma merda e as pessoas piores ainda.
— Considerando que não é sequer uma devota e muito menos alguém capaz de arrependimentos, , teria mais sucesso jogando moedas em uma fonte do que aqui. — A voz de Karam ecoou pelos ouvidos de de maneira baixa, concentrada e pomposa. O sotaque britânico pesado era o de alguém que vivia no Chelsea, em Londres, e não em Manchester, e tampouco fazia parte de uma máfia. Mas as aparências nunca eram realmente o que apresentavam, eram? Os estalos do sapato de Karam contra o assoalho de madeira da igreja antiga pararam um pouco mais atrás dela, e uniu as sobrancelhas bem marcadas, em uma expressão defensiva, apesar de tudo. — Pensei que havia sido claro a você que não desejava mais ver o seu rosto outra vez, e, no entanto, aqui está você, parecendo uma merda, mas ainda respirando. Eu quero saber o porquê?
, deu um passo para trás, se afastando do púlpito largo com as velas de mentira, e então voltou-se para encarar Karam no fundo de seus olhos. Ela enfiou as duas mãos dentro dos bolsos de sua jaqueta de couro, inclinando a cabeça para o lado, enquanto o avaliava por um longo momento. Karam não se deu ao trabalho de sequer encará-la, ele sabia que ela não iria lhe fazer nada, estava em seu, teoricamente, contrato para ficar ali, mas, ainda assim, por um segundo, ela considerou as possibilidades. Quebrá-lo seria fácil até demais. Para alguém da idade dele, bastava dois golpes bem colocados na altura de seu abdômen e um golpe na cabeça, e ele provavelmente teria algum ferimento irreversível no cérebro e estaria morto. Mas, igualmente, matá-lo seria a coisa mais idiota que ela poderia fazer, então trincou os dentes com força, assentiu para si mesma, tentando lembrar-se das regras que Edgar a havia ensinado desde que ela tinha oito anos.
Não cague onde você não tem a porra de um pano para se limpar.
— Meu remédio acabou, preciso de mais. Cortez é o único fornecedor nessa merda de cidade, mas ele responde a você — disse de maneira tensa, escolhendo as palavras com cuidado, enquanto fazia uma careta consigo mesma ao dizer remédio, mas sem outra alternativa senão usar a palavra, ao menos ali. Ela revirou os olhos quando Doc soltou um chiado por entre os dentes dela, em advertência ao palavrão que ela disse. não se importava, mas igualmente não desejava chamar atenção para si mesma. Então deu mais um passo para trás, dando espaço para que Karam pudesse se aproximar do púlpito com as velas, o observando como um gato, atenta e tensa.
Havia uma ponta de desprezo nos lábios de Karam, e não pôde deixar de sentir uma pontada direta em seu ego. O golpe foi certeiro e a fez sentir raiva imediatamente. Não por Karam ou pelo desprezo dele, mas por encontrar na expressão de Karam o espelhamento do que ela pensava sobre si mesma. E, puta merda, como odiava a sensação. O fracasso. A falha. O reconhecimento de que era desprezível e deplorável. Tão patética quanto. Mas obrigou-se a engolir a frustração e a raiva, porque mais do que um ego ferido e orgulho de merda, ela precisava das pílulas.
— Por favor, você não precisa escolher suas palavras comigo. Sua metanfetamina acabou, e, como qualquer outra viciada, você está desesperada por mais, mas suas ações a colocaram em uma posição desvantajosa comigo — Karam disse calmamente, com sua indiferença característica, e lutou consigo mesma para não ceder à parte ruim de sua personalidade e estragar ainda mais as coisas. umedeceu os lábios, engolindo em seco, mas não respondeu ao comentário de Karam.
Karam parou à frente do púlpito largo com as velas falsas e, por um breve momento, pareceu se esquecer de tudo que não fosse sua prece. o observou com uma careta, desdenhosa, quando o homem levou as duas mãos em direção ao próprio rosto, unidas, fazendo uma oração baixa. Ela admirou a hipocrisia, supondo que haviam pelo menos mais 14 mães espalhadas pelas periferias de Manchester fazendo o mesmo gesto, implorando pela vida dos filhos que Karam havia mandado matar há meses; implorando que eles voltassem para casa sãos e salvos — eles não voltariam, nada descartado dentro do mar voltava à superfície.
O terço enroscado na mão dele, as contas de madeira contrastando com o prateado do metal das correntinhas que as prendiam no lugar, a cruz, igualmente prateada, oscilando para frente e para trás em quase uma zombaria. Então ele fez o sinal da cruz, tocando a testa, a barriga, e então os dois ombros, antes de retirar algumas moedas e acender ao menos quatro vê-las. Uma para sua filha, Catherine, e três para seus netos. Um menino, duas meninas. poderia ser muitas coisas, mas era uma boa investigadora.
Os olhos dela não se desviaram de Karam nem por um segundo. Ela o observou ajeitar a lapela de seu terno de grife em um corte excepcionalmente adequado e perfeccionista, antes dos olhos dele voltar a fixarem-se nos seus. Ela não se deixou intimidar. Mesmo que se tencionasse, ela permaneceu firme, sua expressão cuidadosamente estoica.
— Agora você veio até aqui a fim de descobrir se eu teria um trabalho para você tentar se redimir. Minha pergunta, querida, é a seguinte: por que diabos eu precisaria de você?
— Porque eu ainda sou a melhor que você tem à disposição, Doc — disse, com um tom de voz baixo, cauteloso.
Não era que ela gostasse de ser arrogante, a verdade era que isto, no fim das contas, acabava como uma falha fatal para ela mesma, mas, em determinados momentos, quando estava desesperada e não tinha mais escolha, ela precisava apelar, e isso significava lembrar a todos por que a chamavam de Butcher no exército. cruzou os braços por sobre os seios, trincando a mandíbula com força, sem perceber que estava prendendo a respiração instintivamente. Os olhos dela acompanharam os mínimos movimentos de Karam, à espera de uma reação mais perigosa, uma reação explosiva, mas esta não veio. Ziyad Karam apenas a encarou em silêncio por alguns segundos, antes de deixar uma risada alta, intrigada, escapar por seus lábios.
exalou por entre seus dentes cerrados.
— Agora isso é desespero.
não negou. Ele tinha um ponto. E por mais que ela desprezasse a ideia de ter que rebaixar-se a alguém como Karam, ou pior, se ver prisioneira das vontades de outro idiota maluco com problemas de ego, pouco ela poderia fazer quando a pessoa que era responsável pela distribuição dos remédios que ela costumava tomar para dormir e a metanfetamina vinha justamente dele.
mordeu o interior de suas bochechas, observando por um momento, distraída, alguns idosos que se espalhavam pela igreja. Era consideravelmente curioso que, quando de cara com a própria mortalidade, todos encontravam algum tipo de fé. Neste aspecto, supôs que estivesse quebrada, porque havia ficado diante da morte muitas vezes, e em nenhuma vez encontrou algum tipo de espiritualidade, pelo contrário. Havia apenas raiva. Uma revolta profunda e enlouquecedora, que a sufocava em momentos de vulnerabilidade. Ela queria colocar fogo no mundo inteiro, ela queria morrer e lutar com o próprio demônio se isso lhe garantisse a possibilidade de ser vingada por tudo o que havia passado, mas, no fim, isso sequer importava? Era uma causa perdida de começo, e, a essa altura, ela estava cansada demais para sequer considerar fazer algo além de sobreviver.
— Qual é o trabalho? — Foi tudo o que ela perguntou, e, pela primeira vez durante a conversa toda, quando Karam a encarou novamente, havia um mínimo sorriso preso em seus lábios, satisfeito.
odiou o que viu.
| AGORA.
Manchester, Inglaterra.
Talvez fosse o ritmo insuportável, alto e marcado do techno eletrônico que ecoava pelo espaço, o bass tão marcado que conseguia sentir as vibrações pelo corpo inteiro, reverberando pelos dentes trincados e pelo crânio dela. A sensação de estar sendo sufocada piorando em escalada ao observar pessoas dançando no meio da pista com luzes estroboscópicas, se esfregando umas nas outras como se estivessem em algum tipo de transe. Se eram as Strippers retirando sutiãs ou demonstrando suas habilidades com tassels vibrantes presos em seus mamilos, ou jogando os cabelos de um lado para o outro, ou os alguns idiotas em uma mesa cheirando cocaína, ou apenas bebendo até esquecerem seus nomes. Ou se era a merda da fadiga causada pela abstinência começando a afetá-la com mais intensidade. Sua boca estava amarga, os lábios secos, suas mãos tremendo, enquanto ela segurava com mais força o copo de cristal com a gin tônica. Este era o problema de precisar daquela merda de remédio: os fantasmas que a seguiam se ela não o fizesse.
Os olhos se estreitaram enquanto registraram o fluxo contínuo de pessoas de um lado para o outro na boate Boca do Inferno. Havia uma sensação vertiginosa de desprezo dentro do peito de , e ela sequer conseguiu impedir-se de ao menos soltar um resmungo inteligível quando alguém tentou aproximar-se dela. Não estava interessada em uma noite sem compromisso, especialmente porque não tinha paciência para lidar com outra pessoa que não fosse ela mesma, mas era mais do que isso naquele momento, estava a trabalho ali. Não poderia foder as coisas à toa. Não desta vez. levou o copo em direção aos lábios dela, virando de uma vez, sentindo o álcool aquecer sua garganta, enquanto suspirava pesado, exasperada consigo mesma.
— Cortez — Karam disse simplesmente, pegando um folheto do púlpito com um interesse desdenhoso, enquanto apalpava distraidamente o bolso interno de seu casaco, em busca de seus óculos. analisou com cuidado a expressão do negro, as sobrancelhas se unindo enquanto ela registrava o que ele havia dito.
Puta que pariu, se alguém lhe dissesse uma semana atrás que conseguir os remédios que ela precisava para continuar ao menos desligando a parte do cérebro dela que a matava todos os dias contaria com matar a pessoa que ela mais detestava, teria mandado se foder e teria rido sozinha por horas. Não era apenas o universo rindo de sua cara, era Karam agindo estranhamente, com um propósito que ela ainda não havia conseguido descobrir, e isso, bem, isso era perigoso.
umedeceu os lábios com a língua, sem conseguir conter um pequeno sorriso que surgiu por seus lábios, petulante e, ao mesmo tempo, incrédula com o que ela havia escutado.
— Não me olhe assim, querida. Ingenuidade não lhe cai bem.
— Pode me culpar? Quer dizer, é uma reviravolta no mínimo interessante — disse, com um tom de voz divertido e ao mesmo tempo cético. Era difícil comprar o que Karam estava falando quando sabia, em primeira mão, que, talvez, Cortez, o cafetão e dono de uma das divisões de Karam na cidade, responsável por redistribuir a cocaína e outras drogas nos quarteis mais leal de Karam, poderia ter feito algo para irritar o Rei do Crime da Inglaterra. cutucou o canto de sua boca com a língua, assentindo lentamente, enquanto seu cérebro, acelerado pela tensão, adrenalina e fadiga da abstinência tentava compreender o que diabos estava acontecendo e por que Karam queria que matasse Cortez. cruzou os braços por sobre os seios, trocando o peso de perna, enquanto inclinava um pouco a cabeça para o lado, os olhos estreitados, atentos.
Era uma armadilha. Não para Cortez, mas para .
— O que ele fez? — questionou estrategicamente, se fingindo de curiosa, mas ciente de que Karam não iria comprar seu falso interesse em algo que não lhe dizia respeito. Ainda assim, ela estava familiarizada com o prospecto daquele jogo, com as palavras dóceis que se deveria dizer para conseguir extrair a informação necessária. deu de ombros singelamente, se deixando recostar em um dos pilares da igreja, observando atentamente Karam, tentando encontrar a abertura em sua postura impecável que lhe revelasse alguma coisa. Qualquer coisa... — Qual é, Karam? Se quer que eu o mate, pelo menos pode me dizer o motivo pôr o fazer.
— Como a putinha dos militares, eu presumi que você, de todos, não precisava de um motivo para matar alguém, , apenas seguir a ordem que lhe foi dada. Eu me equivoquei desta vez? — Karam respondeu, de maneira cortante. obrigou-se a morder sua língua para controlar sua raiva, que imediatamente espalhou-se por seu corpo como uma onda quente e sufocante de fogo por suas veias. O gosto de seu próprio sangue era pungente por sua boca. precisava admitir, o filho da puta sempre tinha uma boa resposta para tudo, e aquela, igualmente, não mostrava apenas controle sobre ela, mas como igualmente um certo conhecimento que aterrorizava . Seu passado precisava ficar enterrado.
tensionou a mandíbula com força, sustentando o olhar de Karam, enquanto algo nele parecia procurar alguma coisa em seu rosto. Ela se obrigou a manter-se estoica. Obrigou-se a reforçar aquela parede que a separava dos outros, que a prendia e a isolava de todos os outros, ciente do que significaria expor vulnerabilidade naquela merda de mundo que ela vivia. E, todavia, ela não conseguia impedir-se de afundar naquela maldita memória, instintiva como o ato de respirar. lembrou-se do maldito porão. Das paredes escuras e opressoras à sua mente, obscurecidas pelo mofo e manchas de sangue seco. Do cheiro pungente de merda, urina, sangue e carne putrefata de dias, a sufocando lentamente. Acima de tudo, do silêncio gritante que ela simplesmente não conseguia fugir, não conseguia abafar por mais que tentasse. A tensão que pairava no ar enquanto ela se encolhia a qualquer ruído que pudesse ser ouvido do outro lado da porta. O desespero para conseguir alcançar a mão de Beatriz apenas para encontrá-la rígida, fria, imóvel...
— Veja como um teste. Você estará provando para mim até onde a sua lealdade está, se é que algum dia você foi capaz de compreender o significado dessa palavra.
— Agora me ofendeu.
— E me ofende você agir como se você não soubesse que eu a conheço, . — Karam cortou bruscamente. Ela não se moveu, mas observar Karam deliberadamente caminhar em direção a ela a colocou imediatamente em um estado de alerta gritante. Ela se obrigou a permanecer parada, mesmo que seu corpo inteiro gritasse para que corresse para o mais longe que conseguisse. inspirou fundo, prendendo a respiração quando Karam parou frente a frente. — Você é uma vadia egoísta que não se importa com ninguém além de si mesma. E tirando por sua óbvia covardia natural para lidar com situações complexas, você é boa em resolver o problema. — estreitou os olhos ao tentar absorver a expressão impassível de Karam, mas então o velho deixou um sorriso discreto, quase imperceptível de ser compreendido, surgir por seus lábios. nunca sabia o que era pior naquelas situações: quando Karam a ameaçava, ou quando ele sorria. — É por isso que eu gosto de você, . E é por isso que você irá fazer o que estou pedindo sem mais questionamentos e hesitações. Estamos claros?
inclinou a cabeça suavemente para a esquerda, considerando o que iria responder para Karam. Uma palavra em falso poderia colocar a cabeça dela a prêmio, e, honestamente, aquilo era a última coisa que ela desejava no momento. engoliu em seco, movendo sua mandíbula, enquanto colocava suas duas mãos atrás de suas costas, em uma postura militar de sentido. A postura a essa altura não passava de um eco instintivo, padronizado em sua memória sempre que aquela parte de si mesma, a parte que havia aprendido a servir e agir como soldado primeiro e depois questionar despertava-se.
— Entendido?
— Sim, senhor.
repousou o copo dela novamente sobre a bancada, inspirando fundo uma única vez, como se estivesse tentando se preparar mentalmente para o que vinha antes de se endireitar, estalando o pescoço dela. Porra, ela estava travada para cacete o dia inteiro.
Merda. Ela odiava assassinatos.
Não porque ela tivesse algum tipo de moralidade de quinta em que matar era errado ou algum tipo de pecado — sejamos honestos, se houvesse uma maneira de gabaritar pecados, a essa altura já estaria no final da lista —, ou algo que não deveria fazer, longe disso. Era o trabalhão que dava para matar. O trabalho que dava para localizar a vítima, então acertar um ponto vital sem fazer muita bagunça quando o sangue começasse a se esvair, porque você faria bagunça se não tivesse completamente certeza de onde acertou. inclinou sua cabeça para trás, em um martírio pessoal antes de preparar-se.
Prontos ou não, lá vou eu. Heh, como se eu tivesse a porra de uma escolha, ela pensou.
desviou dos corpos dançantes perceptivelmente alucinados, puxando o capuz de sua jaqueta para cobrir sua cabeça e rosto, se permitindo ser guiada apenas pelo movimento de terceiros, enquanto os olhos dela percorriam por todo o espaço.
O cheiro pungente de açúcar queimado, plástico, álcool, suor e fluídos corporais forte o suficiente para fazer o nariz dela arder, ou o ar estava apenas seco mesmo. desceu algumas escadas, virando à esquerda, onde a boate e bar se transformava em uma sequência de corredores apertados com inúmeras portas. Algumas estavam completamente abertas, com pelo menos oito corpos se movendo em sincronia um contra os outros, em um frenesi em busca de gozar o quanto antes; outras, estavam completamente fechadas. Gemidos altos, suspiros, choramingos e engasgos ecoavam. Uma pequena explosão de um homem amordaçado se projetou para fora da porta à esquerda dela, com a máscara de um coelho suja e sem mais roupa nenhuma, com marcas nas costas de algum tipo de chicote e sua ereção na mão, antes de passar por , a empurrando para fora de seu caminho, enquanto corria quase por sua vida. Seguindo-o, um pouco atrás, algum filha da puta com calça de couro apertada, de cós baixo, com ombros largos e a máscara de lobo presa em seu rosto ocultando completamente a visão que poderia se ter de seu rosto. Caminhava calmamente na direção do coelho em algum tipo de roleplay de caça, o que até seria apelativo, se não fosse esquisito para porra. Quer dizer, quem era ela para julgar fetiches, certo? Ah sim, a filha da puta que havia visto, então, ela meio que se sentia no direito de julgar de qualquer forma. revirou os olhos. De tudo o que provavelmente estava acontecendo ali, “caça” não era exatamente o mais diferente ou surpreendente. Ainda assim, não foram os corpos nus que chamaram a atenção dela, e tampouco os rostos desconhecidos, apesar de parecerem ser o tipo de rostos que frequentavam lugares caros e não as favelas e bares horríveis no sul da cidade, tampouco algumas prostitutas ainda dançando ou se esfregando em algum cliente em uma sala separada, e muito menos a música que martelava em sua cabeça de maneira pulsante e incômoda. Não. Não, longe disso. O que havia chamado a atenção de era o cheiro.
Sândalo, pimenta, cigarros e couro.
Familiar. Familiar demais, puta que pariu... uniu as sobrancelhas, inclinando a cabeça suavemente para o lado, e então lançou um olhar desconfiado na direção da única outra alma viva que caminhava na direção contrária à qual ela estava seguindo no corredor, voltando de onde ela estava prestes a chegar. Suas roupas eram caras e elegantes. Usava peças de grife, apesar de não terem marcas, calça de alfaiataria, sapatos italianos, anéis de ouro branco e prata espalhados pelos dedos longos e grossos, o relógio caro no pulso direito parecendo custar pelo menos a vida inteira de naquela maldita cidade. Usava uma blusa de manga longa, arregaçada nos antebraços fores e firmes, exibindo algumas tatuagens que cobriam centímetros e mais centímetros de pele visível. A gola alta ocultava quaisquer visões que pudesse ter do pescoço, ou mandíbula dele, mas ela podia ver com facilidade os cabelos dele, longos, , estranhamente familiar. Ela já havia visto aqueles cabelos antes, a maneira com que caíam por sobre as orelhas, um pequeno brinco de argola preso na orelha esquerda. Havia algo de errado ali, muito errado.
O desconhecido usava uma máscara de Onni vermelha escura, a bocarra larga com duas presas curvadas para cima, de uma tonalidade marrom clara, enquanto a parte inferior da bocarra exibia apenas dois dentes menores. Os chifres, dois, um de cada lado, partindo das têmporas, se curvavam para cima com pelo menos cinco centímetros de altura, tingidos de preto. Não eram as mesmas máscaras que os outros usavam naquela merda de lugar, esta não era simples.
estreitou os olhos, tensionando a mandíbula com força, enquanto passava por ele, os ombros esbarrando levemente com o movimento, mas não chegando a se tocarem. Havia algo nele que a deixava não apenas desconfiada, mas insegura. A maneira com que os olhos dele, intensos, pareciam familiares sob a iluminação precária do corredor estreito, se fixando no rosto dela como se pudessem ler sua alma com facilidade. A maneira com que se estreitaram e a cabeça se inclinou um pouco para o lado, acompanhando fixamente os mínimos movimentos de , fixos, quase vidrados, enquanto ela passava por ele.
E o maldito cheiro... de onde ela o conhecia?
Merda...
Só havia uma resposta para aquilo, e era simples: ela estava alucinando outra vez.
Puta que pariu, sorte do caralho, merda, vai tomar no cu essa desgraça dos infernos! Ela precisava da porra do remédio logo! balançou a cabeça como se quisesse tentar clarear seus próprios pensamentos antes de descer mais algumas escadas. Talvez fosse seu cinismo o calcanhar de Aquiles aqui; talvez fossem as próprias alucinações causadas pela abstinência; pouco poderia saber ou compreenderia no momento, mas se ela tivesse verificado por uma segunda vez seu ombro direito, teria percebido que o homem em questão havia parado de andar no segundo em que ela havia passado por ele, a acompanhando com os olhos desaparecer sala adentro. Os punhos se fechando com força, os nós dos dedos ficando pálidos. Perigo.
se deparou com um grande salão aberto. Duas paredes e o teto eram feitos de piscinas com fundos transparentes, refletindo as mulheres e homens nus que nadavam por entre a água tingida de vermelho. engoliu em seco, sentindo os músculos de seu corpo se tensionarem, enquanto sua garganta ficava subitamente seca. Merda, ela odiava como aquilo parecia mais sangue do que água, maldito Cortez! tentou imediatamente ignorar a sensação de desconforto crescente, ao notar o reflexo da água vermelha espiralando ao redor, mas não conseguiu desligar a parte de sua mente que despertava ao fundo a memória enterrada a camadas e mais camadas de tentativas de esquecer a verdade. O restante das paredes era feito de espelhos. Luzes neon se espalhavam pelo chão, igualmente vermelhas, estranhamente mais claras do que deveria ter sido a intenção, mas não mudava o fato de que estavam ali para acentuar um pouco mais o ambiente. Merda, havia até gelo seco espiralando pelo espaço, como se fosse necessário oferecer ambientações também para uma orgia. Algumas camas se espalham pelo espaço com mais ou menos entre 3 a 5 pessoas se movendo em sincronia. Duas strippers dançavam ao ritmo marcado da música, agora mais lenta e sensual, deslizando e girando em bastões de ferro, igualmente mascaradas de pombinhas ou coelhos. Outros mascarados de cervos, patos, porcos, bois, macacos, mesmo pandas, permaneciam em gaiolas suspensas no chão, enquanto, um pouco mais ao fundo, no centro de tudo...
Cortez.
E lá estava o grande filho da puta, huh?
Sentado na porra de uma cadeira como se fosse um trono pessoal, enquanto assistia a cena com uma fascinação idiota presa no rosto. As calças amontoavam-se nos calcanhares dele, a mão acariciava para cima e para baixo sua ereção, enquanto assistia as cenas ao redor. Maldito voyeur. Mas quem era para julgar o fetiche alheio? Bem, a idiota que estava presenciando-o, certo? Então, nesse caso, ela se sentia, sim, no direito de julgar.
bufou consigo mesma, um sorriso amargo surgindo por seus lábios, enquanto ela voltava sua atenção para uma garrafa de vodca abandonada sobre uma das mesas de apoio do espaço, cheirando instintivamente por um breve momento, tentando identificar se havia algum tipo de droga ali, já que manchas de pó branco se espalhavam pela mesa que ela havia encontrado a garrafa, mas não havia nada. Com uma careta, irritada consigo mesma, ela a virou, sentindo o álcool queimar por sua garganta e aquecer seu corpo inteiro. Não era o suficiente, mas bem, uma ótima maneira de começar a funcionar.
— Não se cansa de ser patética, gatinha? — Beatriz sussurrou no ouvido direito de , perigosamente real dessa vez, ecoando como um ronronar, e, ao mesmo tempo, o ruído de unhas contra uma lousa. Arrepiava os pelos da nuca dela e enviava uma onda intensa de adrenalina por sua corrente sanguínea, gélida, como se lascas de gelos se desprendessem do fundo de sua alma e se movessem por seu sangue. Sua boca ficou seca e ela tinha a sensação vertiginosa de que iria vomitar. apertou com força o gargalo da garrada de vodca, os nós de seus dedos ficando pálidos com a força que ela imprimia no gesto, mas não respondeu. Não era real. Beatriz não estava de fato ali. Era uma fantasia, ela sabia, mas não menos dolorosa. Uma ilusão causada por sua própria abstinência.
inspirou fundo, tentando desligar aquela parte de sua mente, mas a risada de Beatriz, estranhamente desconexa e distante, enviou mais uma onda de arrepios pelo corpo inteiro de , a fazendo engolir em seco, tentando desesperadamente encontrar uma maneira de a silenciar. Pelo canto do olho, podia ver o fantasma de Beatriz sentado em uma das camas, pernas cruzadas, um sorriso afiado enquanto a cabeça dela pendia para a esquerda, em um ângulo não natural. O osso projetando-se para cima, embora, desta vez, Beatriz tivesse a mesma idade que . Os olhos castanhos doces de Beatriz, um completo oposto aos de . Ela prendeu a respiração, encarando fixamente o espelho.
— Você sabe que Karam te mandou aqui apenas para que você morra, certo? Ele não está querendo seus serviços, gatinha, ele só quer te matar. Você é um problema para todo mundo, que diabos você achou que conseguiria aqui?
não respondeu. Ela sabia que Beatriz tinha um ponto, e fazia muito mais sentido Karam a ter enviado para sua própria morte naquele maldito inferno, do que, de fato, porque ele havia encontrado um resquício de misericórdia e havia oferecido a a chance de ao menos conseguir um pouco mais do remédio que ela precisava. Doc não tinha misericórdia. fechou os olhos com força, ela sabia que era uma armadilha desde o início, mas bem, havia ainda uma parte de sua mente que tinha a esperança de que fosse apenas uma possibilidade. Bem, era o que era, e pouco poderia fazer agora se não executar a ordem que lhe foi dada. Morta ou viva, iria fazer, isso você poderia ter certeza.
— Own, e pensar que este é o seu melhor? Que perda de tempo você é, gatinha.
prendeu a respiração, ignorando as provocações de Beatriz, enquanto marchava na direção de Cortez. O cheiro pungente de sexo, suor e algo estranhamente artificial incomodando o nariz dela, ao puxar para fora de seu caminho um dos homens mascarados de coelho, o observando inexpressiva, quando acertou com o fundo da garrafa de vodca sua cabeça, o vendo desabar no chão, inconsciente. fez uma careta, os olhos dela ergueram-se para encontrar os olhos de Cortez, que evidenciavam uma surpresa por vê-la ali.
Claro, o cenário não era exatamente apelativo para — havia algo de repulsivo em ver o pau de Cortez tão de perto. forçou um sorriso verdadeiramente falso para Cortez, sem se importar em apresentar um papel na frente de todos de cordialidade e educação, já que o outro igualmente não era lá seu maior fã, inclinando a cabeça suavemente para o lado, enquanto dava de ombros desdenhosamente, com uma ponta de tédio. soltou o restante da garrafa no chão, estrategicamente a chutando para trás, enquanto erguia as duas mãos para cima, para convir uma inocência a qual ela tampouco possuía.
— Impressionante. Quando eu penso que você não pode ficar pior, você sempre consegue me surpreender, Cortez.
Miguel soltou um gemido baixo, meio uma risada, meio visível desconforto apesar de permanecer cinicamente agindo como se ela não estivesse ali, ao recostar-se contra a cadeira que lhe servia quase como um trono pessoal enquanto assistia a orgia, languidamente movendo sua mão para cima e para baixo de seu pau em longas e lentas carícias — se por exibicionismo ou apenas para irritar , era difícil compreender, e tampouco ela poderia dizer que se importava muito com isso. o observou inclinar a cabeça para o lado, a observando com uma expressão desdenhosa, apesar do sorriso preguiçoso preso aos lábios.
— Puta merda, o que cê quer aqui, hein? Achei que da última vez que a gente conversou eu tivesse sido claro contigo. Se não me desse o que eu queria, não precisava vir aqui.
estreitou os olhos, erguendo o queixo levemente em um desafio silencioso, enquanto os cantos dos lábios dela quase se curvavam em um meio sorriso desacreditado. Porra, ela odiava assassinatos pelo trabalho, mas o prospecto de finalmente dar a surra que Cortez merecia era muito, muito tentador. Ainda assim, ela precisava pelo menos descobrir quais eram as intenções de Karam ao mandá-la para morte, e por que de repente Cortez e Karam estavam em lados opostos. Algo não estava certo ali, e não era nem idiota de não descobrir. Não porque faria alguma coisa, na verdade, ela só queria saber para conseguir se mandar do meio daquela confusão o quanto antes. Quase três anos escondendo-se naquela maldita cidade, cuidadosamente mantendo-se fora dos radares e agindo pelas as sombras. Ela havia se esforçado bastante para foder com tudo simplesmente porque dois idiotas estavam brigando de galo, ou o que quer que isso significasse, meio que não se importava.
— Eu não vou dar para você, Miguel. Cê não é o meu tipo.
— Vá se foder, . Eu sou o tipo de todo mundo. Além disso, não é sobre comer você ou não, é sobre lealdade. Sobre submissão — Cortez resmungou, o sotaque mexicano levemente mais pesado do que o normal, denotando sua impaciência, fosse por simplesmente vê-la ali, ou por ter que lidar com ela. fez uma careta, com nojo. As merdas que ela tinha que ouvir as vezes... salubridade deveria ser um critério de se estar vivo a essa altura, huh? Cortez inclinou a cabeça para trás, estreitando os olhos ao observá-la. — Cê tá querendo mais do meu remédio, né não? Porra, mas aí... ah, , nem mesmo você consegue ajudar a si mesma. — Miguel soltou uma gargalhada que atingiu em cheio a alma de como lâminas em brasas. Sua alma não, pior, seu orgulho. abaixou lentamente as mãos, prendendo a respiração, enquanto lançava um olhar ao redor das outras pessoas, tirando um breve tempo para analisá-las com cuidado. Três seguranças camuflados, presos nas jaulas, mas estavam atentos.
Havia mais dois na cama à esquerda, mas assumindo que um penetrava o outro, enquanto o segundo tinha seu pau chupado por uma das strippers que outrora dançava, era difícil que fossem perceber as intenções de até que ela já as tivesse executado. Altos, musculosos, mas não exatamente fortes. Eram mais aparência do que habilidade, e isso era estúpido, se não imprudente. A cara de Cortez, huh? Bom. Bom, ela poderia trabalhar com isso. deu de ombros, tentando manter sob controle suas próprias emoções. Não fode com isso, ela pensou consigo mesma, exasperada. Ela queria arrebentar Miguel na porrada? Com certeza. Nem por isso ela era estúpida para fazer algo sem pensar ou calcular direito todas as possibilidades. engoliu em seco, dando instintivamente um passo para trás, quando Miguel se colocou de pé.
estreitou os olhos. Um movimento discreto, quase imperceptível do pulso direito de , e a mão dela repousou na pistola automática enterrada no cós de sua calça jeans, atrás de suas costas. Miguel, por um segundo, permitiu seu olhar percorrer pelo corpo inteiro de , que se coçou para acertá-lo de uma vez. Não, ainda não...
— Olha, eu tô me considerando muito bondoso hoje, então vou te dar uma chance de conseguir o remédio que você precisa. Viu? Eu sou um cara muito legal, então vamos fazer o seguinte: você fica de joelhos agora e usa essa boquinha adorável para....
A cabeça de Miguel explodiu.
arregalou os olhos, congelando no lugar enquanto levava cerca de um minuto para que ela percebesse o que diabos estava acontecendo. Um disparo limpo, vindo da sua esquerda, certeiro, bem em sua testa, abrindo um buraco considerável. Sangue se chocou contra o rosto de , respingando com alguns pedaços contra a pele dela, quente, pegajoso, e quase teria vomitado se não tivesse um problema maior. Puta merda. Fodeu. Fodeu para um caralho!
O corpo de Miguel desabou no chão com um baque molhado contra o chão, e foi somente aí que os gritos começaram.
arregalou os olhos, se lançando na direção do chão, instintivamente rolando por sobre seu ombro esquerdo, a fim de desviar de quaisquer ataques vindo de suas costas, arrancando a pistola automática de sua calça e então a empunhando no segundo que ela se voltou para trás.
O tempo pareceu desacelerar ao redor dela.
Sua respiração estava pesada, irregular, e seus ouvidos estavam zunindo. A sensação de adrenalina percorrendo sua corrente sanguínea parecia uma mistura de veneno e gelo, sufocante, acelerando seus batimentos cardíacos ao ponto que ela conseguia ouvir apenas sua pulsação. O tremor que atingiu seu corpo foi duramente suprido por ela enquanto empunhava a arma na direção do maldito homem com máscara de Onni. se tensionou no segundo que a arma se inclinou levemente para a direita, agora mirada na cabeça de , sua respiração se perdendo, enquanto tentava buscar em sua mente de onde que o conhecia.
Não, não, não, porra! De onde que ele era familiar?! De onde ela havia o visto anteriormente?! Ela começou a se questionar, mas então a realização a atingiu como uma onda gelada e assustadoramente sufocante. Merda!
Não... não podia ser... mas ele...
E, no entanto, lá estava.
Os olhos queimando o rosto dela. A mistura de raiva e algo mais sombrio espiralando pelas íris familiares, enquanto as pupilas se dilatavam. A postura impecavelmente ereta e arrogante segundando a arma apenas com a mão esquerda, como se o empuxo da arma não fosse nada para ele, os músculos firmes movendo-se por baixo de sua pele, marcadas com as inúmeras tatuagens, os cabelos ... Merda, merda, MERDA! Como ela poderia ter sido tão idiota de não ter percebido aquilo antes? Ela havia achado que era apenas uma alucinação, mas ali, bem em frente a ela, estava a última pessoa que queria encontrar naquele momento, o filho da puta descarado, maldito e infernal que ela havia jurado nunca mais ver outra vez em toda sua vida, parado a poucos passos de distância dela, com a arma em mãos, apontando, agora, diretamente para . A merda do homem que havia fodido com a vida dela — de certa forma — depois de tantos anos.
...
Ele disparou.
soltou um grunhido alto, se lançando para a esquerda, a fim de escapar da linha de tiro de , mas não conseguiu, porque a bala acertou de raspão o ombro direito dela. A arma de escapou de suas mãos. , rosnou baixo, tentando conter sua própria raiva e frustração, disparando, não na direção de , mas propositalmente na direção das paredes de vidro que compunham as piscinas eróticas e tingidas de vermelho de Cortez. Gritos ecoavam pelo espaço, mas nem mesmo prestou atenção nisso. Os seguranças se livraram da névoa de seus próprios prazeres ou realidade paralelas, e avançaram na direção dos dois, e trincou os dentes com força, porque agora as coisas iriam ficar feias.
A intenção era matar Cortez de maneira limpa e se mandar antes que os seguranças percebessem o que havia acontecido. Isso geraria menos suspeita ao ocorrido e mais suspeita dentro da própria instituição. Afinal, não importava quem havia matado Cortez quando era praticamente uma concepção pessoal e bem presente que competições sob o comando da parte narcótica das operações de Doc eram rotativas e disputadas. Sempre havia alguém disposto a assumir o lugar do predecessor. Era a cobertura perfeita. entrava, matava Cortez, saía, provava um ponto para Karam e então desapareceria novamente — talvez fosse para a Bahia de novo, sua terra natal, talvez fosse para São Petersburgo sem olhar para trás, não importava. Mas não. É claro que não! Porra, não! precisava aparecer, não é?! Filho da puta desgraçado! E como sempre precisava fodê-la. Com a atenção dos seguranças agora nos dois, aquilo iria virar uma bagunça generalizada, e quaisquer chances que tinha de conseguir o remédio que ela precisava agora estavam completamente descartadas.
Porra, !
avançou no primeiro segurança dos cinco, o agarrando pela mão e o mordendo com força, os dentes fincando na carne e arrancando sangue, enquanto ela usava a mão esquerda para tensionar o pulso do segurança, o quebrando antes de atingir com violência no meio das pernas, e então apoiando o braço direito sobre seu pescoço. usou toda a força que ela tinha para empurrar a cabeça do segurança contra o encosto da cadeira, impulsionando o segurança um pouco para trás, o suficiente para conseguir atingir seu pescoço, ainda prendendo com a mão esquerda o braço, antes de passar o braço por cima da cabeça dela, o fazendo curvar-se para frente e roubar a arma no coldre do segurança. Antes que mais alguém pudesse reagir, imediatamente disparou nos outros dois seguranças. Acertou consecutivamente: perna do segundo segurança, o peito do terceiro segurança, e então a cabeça do segundo segurança.
soltou um grito baixo, girando o primeiro segurança em seus braços para usá-lo como escudo quando mais disparos quase a atingiram de relance. arregalou os olhos, agora genuinamente irritada. Ela ia matar aquele filha da puta desgraçado! Maldito dos infernos! empurrou o corpo do primeiro segurança no chão, no momento em que os olhos dela se encontraram onde estava, do outro lado da sala, despachando o último segurança de Cortez com um disparo preciso na cabeça e o chutando com o desdém de sempre para fora de seu caminho.
Então tudo ficou em completo silêncio.
Tirando pela respiração irregular dos dois e o eco abafado da música bem marcada pelas paredes, não havia mais barulho de nada. trincou os dentes com força, sentindo a raiva atingir sua corrente sanguínea como veneno, enquanto voltava a empunhar sua arma roubada. Os olhos cintilavam como os de um felino, enquanto ela sentia a raiva, impaciência, frustração e, acima de tudo, o desejo de vingança percorrer por seu corpo, como chamas, a consumindo lentamente, mas de maneira avassaladora, enquanto ela jogava para o inferno a própria cautela e mirava na cabeça de . tensionou a mandíbula com força, o observando com olhos fixos, intensos, sem deixar escapar nem mesmo os mínimos detalhes de sua postura.
Ela viu tudo.
Como o peito dele subia e descia pela respiração pesada e irregular, evidenciando uma ponta de exaustão que não deveria estar o afetando tanto assim — quase sorriu com desgosto com a visão, olha só se o grande diabo não estava ficando velho a essa altura. Como ele estalava o próprio pescoço com um grunhido baixo, antes de endireitar os ombros largos. A maneira com que levava a mão direita em direção ao próprio rosto e arrancava a máscara de sua face sem muita cerimônia, a jogando nos pés de , enquanto seus olhos finalmente encontravam-se com os dela. engoliu em seco, sem perceber que sua respiração se perdeu em algum lugar de sua garganta por uma fração de segundos, mas imediatamente culpou o fato dela estar com raiva e desesperada para acabar com a vida do desgraçado. Os dedos de se curvaram tentadoramente ao redor do gatilho, enquanto ela mantinha o antebraço firme, se segurando para não mover nem mesmo um milímetro sequer que a fizesse perder aquela merda de tiro. Não. Desta vez, estava na porra da mira dela, e a vida dele seria dela.
Era dela. Ele devia a ela, porra!
— Eu vou matar você. — A voz de não era mais alta que um sussurro, enquanto cuspiu as palavras como se queimassem em sua boca, como se fossem puro veneno. Não era uma ameaça. nunca fazia ameaças, era puramente e simplesmente um aviso. Ela iria matá-lo. Sua respiração estava acelerada e irregular. Ela sentiu os músculos de seus ombros e braços tensos, o tremor traiçoeiro aumentar gradativamente, enquanto segurava com mais e mais força a arma. Foda-se que ela estivesse tremendo, suas mãos não estariam.
Os olhos de nunca estiveram mais quanto naquele momento. A cor profunda parecia se destacar ainda mais com a iluminação avermelhada daquela maldita sala de Cortez, fazia com que notas de tons calorosos surgirem pelos olhos dele, mas não havia nada de quente em seu olhar. Não, longe disso. Sequer poderia dizer-se que havia uma alma por trás daqueles olhos — como se pudesse dizer o que tinha ou não uma alma. As pupilas dele se contraíram antes de se dilatarem, enquanto algo sombrio percorria seu rosto. odiou o que viu, porque percorreu o corpo dela como chamas, seu coração disparou e ela pôde sentir a adrenalina deixando-a mais atenta e sensível a tudo ao seu redor. E a pior parte? Ela não conseguiu desviar os olhos dos dele. Como se tudo estivesse desaparecendo ao seu redor, se recolhendo à sua insignificância e desmanchando no plano de fundo. E então havia somente à sua frente e a fúria enlouquecedora em seu peito. E não disse nada. Por um longo momento, apenas a encarou em completo silêncio. As sobrancelhas grossas dele se uniram em uma expressão que parecia espelhar a raiva que sentia, mas havia algo a mais naquele olhar. Algo sombrio. Perigoso. Ameaçador. Como se ele estivesse a acusando de algo. Filho da puta. Se havia um mentiroso ali era ele, não ela. Se sequer tivesse medo dele...
Ele havia envelhecido.
Os cabelos agora eram maiores do que antes, na altura de suas maçãs do rosto, altas e elegantes, adornando a face dele, ainda . A mandíbula bem pronunciada, quadrada e cortante agora era coberta por uma camada de barba bem aparada, porém mais grossa do que no passado, e talvez fosse a iluminação, ou talvez simplesmente porque era boa em memorizar pequenos detalhes, mas, em meio ao tom levemente mais escuro de seus pelos faciais, ela podia ver alguns fios grisalhos já. Não muito, mas o suficiente para ter feito quase rir com desdém da passagem do tempo, se o olhar de não estivesse fixo nela daquela maldita forma.
a observava de cima a baixo, como se não desejasse escapar nenhum maldito detalhe, antes de parecer trincar sua mandíbula com um pequeno estalo, um músculo saltando no canto da mandíbula bem marcada e cortante como uma navalha dele, a raiva perceptível na maneira com que ele analisava primeiro a arma que agora empunhava, e então o rosto dela. engoliu em seco, esperando que ele apontasse novamente a arma dele para ela, mirando na merda de sua cabeça outra vez. Ele havia atirado da primeira vez, certo? Então que fizesse de novo! Ela esperou que ele entregasse a ela a desculpa que ela desesperadamente tentava encontrar! Que ele lhe oferecesse a merda da justificativa que ela precisava para executá-lo ali e agora. Ele iniciou. Ele começou toda aquela merda. Não ela. Ele. Mas é claro que ele não faria isso, não é?! Era a porra de afinal! Ele nunca faria nada que fosse para facilitar a vida de . Não porque ele se importasse com ela, porque há muito tempo os dois já haviam estabelecido que não havia nada além de mútuo desprezo e ódio entre si, mas porque havia algo de sádico dentro dele que gostava de observá-la se contorcer, que gostava de torturá-la até à beira da loucura. E, puta merda, se ele não se usaria de tudo, se não se aproveitaria de tudo para conseguir aquilo.
o odiava.
— Tá esperando o que então, mon Coeur? Vá em frente, mate o seu marido — disse lentamente, o sotaque Cajun se sobrepondo à sua fala, fazendo com que as palavras soassem levemente mais ásperas, mais arrastadas e com o vago ritmo francês. Como um perigoso ronronar, estranhamente atraente, e, ao mesmo tempo, assustadoramente baixo e gutural para a fazer ter certeza de que, seja lá quais eram as intenções dele, não eram boas. sentiu nojo pela maneira com que o corpo dela respondeu ao tom de voz dele. A familiaridade. O arrepio traiçoeiro. retirou a munição de sua arma, a jogando no chão, e, com um sorriso torto, desprovido de quaisquer traços de humor que não fossem apenas uma raiva cuidadosamente contida, afiado, ele estendeu os braços abertos em paralelo, enquanto o olhar dele queimava o rosto de em um desafio silencioso. O queixo levemente erguido, a expressão cínica evidenciando uma ponta de zombaria a .
Ele não acreditava que ela ia atirar.
Estava debochando de , a provocando silenciosamente, seja pela maneira com que a olhava, ou como exibia sua linguagem corporal a ela. não conseguiu conter um riso baixo, nasalado, desprovido de quaisquer traços de humor em sua voz se não puro desprezo. Os olhos de acompanharam até mesmo o mínimo movimento dele, buscando a pegadinha, buscando a armadilha que certamente a esperava sem perder absolutamente nada. Nunca mais. Oh, se o filho da puta não havia de fato a subestimado dessa vez.
não hesitou. Ela atirou.
| ANOS ANTES
New Orleans, EUA.
desligou a linha geral de comunicação de seu rádio com um pequeno chiado, enquanto levava em direção aos lábios o chiclete que o Sargento Graham havia oferecido mais cedo, antes da operação em questão se iniciar. Coisa ruim, a pior que tinha. O gosto de melão era repulsivo e comumente a fazia ter ânsia, lembrando a algo quente quando doces deveriam ter a impressão de serem gelados para , mas, ainda assim, servia para conter sua própria ansiedade, enquanto aguardava as suas ordens, então para alguma coisa servia afinal. Não era muito, mas era o que precisava, e se tivesse que aturar um pouco do sabor de melão, pelo menos ela poderia se conformar posteriormente em poder limpá-lo de sua boca com alguma bebida alcoólica quando estivesse se retirando de volta para a base. exalou lentamente, baixinho, voltando a inclinar a sua cabeça para a esquerda, a fim de apoiar melhor sua sniper em seu ombro direito, mantendo o braço direito completamente estável, firme, quase com uma precisão cirúrgica. não poderia errar.
Puta merda, ela odiava o gosto de melão.
Os olhos dela acompanharam atentamente os movimentos de seu alvo. Ziyad Karam. Homem difícil de encontrar se quer saber, mas, bem, fazia parte da missão, e ela deveria cumpri-la custasse o que custasse.
apertou os lábios em uma linha, inspirando fundo, enquanto observava o negro sorrir educadamente e cumprimentar um Capitão do exército afastado com uma ponta de desinteresse. A questão toda ali não era nem mesmo a corrupção óbvia em toda aquela situação, mas, sim, o vazamento de informações. Capitão Abbott havia sido destituído de sua posição fazia alguns meses, após ser flagrado em uma situação no mínimo comprometedora com um dos recrutas nos chuveiros. Não que aquilo não acontecesse com frequência, o problema foi Abbott ser pego. Isso e a sucessão de missões falhas dele deram a desculpa perfeita para que o Coronel Murray desse a Abbott a chance de se retirar silenciosamente de sua posição e manter um low profile em alguma outra base distante da de Londres. O idiota havia encontrado uma excelente oportunidade nos Estados Unidos, afinal, Abbott ainda era um soldado de elite, como , então não teria problemas em trabalhar em nome de outras pessoas se isso fosse pagá-lo bem. Mas quando Murray demitiu Abbott, Abbott saiu com os arquivos deles. E agora essas merdas de arquivos estavam nas mãos do pior criminoso de Nova Orleans.
Doc.
Mas a motivação de não era apenas o dever e tampouco recuperar as informações dos outros soldados. Não, longe disso. tinha um único propósito e nada mais: fazer os arquivos dela sumirem de vez. A última coisa que precisava era que os militares finalmente começassem a conectar os pontos e descobrissem quem ela era de fato e por que sua excepcionalidade com armas e combate não provinha de pura genialidade natural e sim treinamento intensivo de anos confinada a uma luta por sua própria sobrevivência, sob a tutela de um completo maluco. Não. morreria primeiro antes de deixar que mais alguém descobrisse quem ela era de fato.
— Oi, Butcher. Há quatro horas de você. Fique esperta.
revirou os olhos com a voz de Graham pelo rádio, mas não respondeu nada mais do que apenas um resmungo em concordância inteligível. moveu a mira de sua sniper na direção de onde Graham havia avisado para que ela ficasse vigiando, e observou o grupo de quatro homens de Doc caminhando rapidamente em direção à entrada do hotel temático e turístico de New Orleans, tensionando a mandíbula dela.
— Os tenho na mira, senhor.
Um chiado, e então Tenente Logan disse:
— Verde, Butcher.
E não precisou ouvir mais nada. Os músculos dos ombros dela se tensionaram, assim como o de seu antebraço direito, se preparando para amortecer o repuxo da arma, enquanto o indicador dela enroscava-se firmemente no gatilho. Ela foi rápida e precisa, encontrando os momentos no meio das ações para executar os soldados de Doc, os esperando se afastarem, ou então virarem de costas para atingir com precisão a nuca ou a têmpora. Os corpos caíram no chão com baques molhados e surdos que ela não escutou, mas não precisava se preocupar por muito tempo, quando, através da mira, observou Graham e Harris dispararem pelas escadarias, retirando os corpos do caminho, enquanto alguns civis, confusos e curiosos, eram orientados para se retirarem dali por um exasperado Walker.
— Boa, Butcher.
sentiu um pequeno sorriso se formar pelo canto dos lábios dela, mas não respondeu, voltando a mira de sua arma novamente para onde Doc e Capitão Abbott estavam. inspirou novamente, ajeitando a arma em seu ombro direito novamente, enquanto unia as sobrancelhas, concentrada. Ela tinha Abbott em sua mira. Posição perfeita, bastava apenas Tenente Logan autorizá-la e a ameaça seria completamente eliminada. Mas Logan só o fez três segundos tardiamente.
Quando a voz de Logan ecoou autorizando a executar o antigo Capitão das Forças Especiais, estava congelada no chão, porque, naquele pequeno espaço de tempo, ela sentiu o peso de algo contra suas costas, a pressionando contra o concreto do telhado em que ela estava escondida. O peso de uma pessoa sobre si. Uma mão agarrou os cabelos dela por sua nuca, um golpe brusco que praticamente puxou sua cabeça para trás, e um grunhido inconsciente escapou por entre os dentes cerrados de , enquanto a respiração cálida se chocou contra a parte de trás de sua orelha direita, mandíbula e lateral do pescoço. Cheirava a sândalo, pimenta e cigarros. A respiração era cálida contra sua pele, mas regular, controlada, e conseguiu sentir o cano frio de alguma coisa repousando na lateral do pescoço dela. conteve um praguejar baixo, ao perceber que deveria se tratar de uma arma. Porra! Ela foi pega!
— Se você se mexer, eu vou explodir a sua cabeça, cher, então seja uma boa garota e fica parada. — A voz carregada pelo sotaque cajun era baixa e gutural, como um ronronado e, ao mesmo tempo, parecia vibrar pelos ossos de de uma maneira inconveniente. Não é ruim de ouvir, mas não havia nenhuma ameaça na maneira com que ele falava, apenas um aviso do que ele iria fazer. podia sentir os lábios dele pressionados contra a orelha dela, enquanto comandava-a a avisar seu time que ela havia perdido o alvo, mesmo que Abbott ainda estivesse na mira. A arma pressionada na lateral do pescoço dela foi empurrada um pouco mais, o suficiente para machucar e lembrar do que estava em jogo.
Porra... agora ela estava fodida.