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Independente do Cosmos🪐

Última Atualização: 09/12/2024

A vida é uma jornada efêmera, a morte uma promessa eterna; entre esses véus, tecemos nossa história.


Manchester; Southern Cemetery.


observou a serenidade melancólica do lugar uma outra vez, sentindo o quão surreal aquilo podia parecer, mesmo que já tivesse visto a mesma cena, variadas vezes, ao longo dos dias que havia estado ali.
O cemitério, sob a luz suave do sol, emanava uma calma que contrastava com a agitação interna que se encontrava dentro do peito de .
Não hesitou em caminhar entre as lápides. Cada passo deixando nítida a mesma lembrança persistente de antes; Abby.
Um nó se formou em sua garganta. Sentiu a tristeza, o desespero.
Um toque de incredulidade.
Deixou que os dedos tocassem a pedra gélida, recém colocada.
O nome da pessoa que tanto amava estava ali, escrito.

Abby Rose Sinclair
01/10/1996 ★ 11/08/2023

mordiscou o lábio, como se tal ato e dor o fizesse esquecer tudo o que havia acontecido.
Era difícil de acreditar. Cada traço de Abby se resumia à aquilo, no final de tudo. Os sorrisos enviados em direção ao rapaz, o toque de suas mãos e o cheiro do perfume que apreciava. Todas as recordações, agora, estavam ali.
Palmos abaixo de uma pedra colocada há pouco tempo.
Fechou seus olhos, tentando bloquear todo e qualquer pensamento que lhe envolvesse ao pensar no que houve.
No acidente.
A brisa fria cortava o ar, o fazendo estremecer involuntariamente.
O silêncio era ensurdecedor, sendo quebrado apenas pelo farfalhar das folhas secas, levadas pelo vento, e pelo barulho do trânsito há alguns metros dali.
abriu seus olhos, encarando a lápide com o mesmo composto de sentimentos anteriores.
Se sentia triste, ressentido.
Queria poder voltar no tempo e dizer para a namorada que a viagem não era uma boa ideia. Queria ter sido teimoso e até mesmo do contra para fazê-la querer ficar em casa, e desistir do plano que havia feito para os dois.
Queria ter evitado todo o sofrimento.
— Ei, Abby — iniciou, deixando um suspiro pesado escapar de suas narinas. — Sinto tanto, por tudo — pressionou seus lábios, sentindo a garganta arder. Deixou os olhos caírem sob a pouca terra revirada por seus pés, como se seu ato fosse fazê-lo ver a garota enterrada ali. — Sinto ainda mais sua falta. Sei que as coisas poderiam ter sido muito diferentes, ainda mais se… Se tivéssemos permanecido em casa, àquele dia. — balançou a cabeça, se lembrando vagamente. Abby havia sido tão insistente. — Sabe que fiz o possível para te salvar, não sabe? Juro que tentei fazer meu melhor, mas… Mas eu não consegui — soluçou, contendo o choro preso dentro de si. não iria conseguir segurá-lo por muito tempo. — Você não suportou e céus… Não sei como ainda estou aqui — engoliu em seco, olhando para cima. Esperava, do fundo de seu coração, que Abby o estivesse ouvindo.
sabia o quanto ventava ali, conseguia ouvir o barulho das árvores se movendo, mas ao menos sentia algo. Sentia o corpo anestesiado, no automático.
permaneceu ali, parado, com os olhos fixos no nada.
O vazio em seu peito parecia expandir-se a cada palavra dita.
— Sei que meus desejos parecem tão inúteis agora, Abby — murmurou. — Fumar, beber… Nada disso faz sentido. Desde que você se foi, parece impossível tentar ficar sóbrio e não lembrar de você.
Pausou, sentindo a pressão acima do peito, esmagadora como suas próprias emoções.
— Por favor, me perdoe.
sussurrou, sentindo a voz quebrando vagarosamente. Seu coração não aguentaria por muito tempo tudo o que sentia, de forma tão opressora.
Não conseguiria continuar ali sem a amada, muito menos seguir adiante sabendo que teria que conviver com o fato de que Abby nunca mais faria parte de seu cotidiano.
Seria demais para suportar.
— Espero que esteja esperando por mim, Sinclair — deixou os dedos acariciarem o túmulo pela última vez e colocou suas mãos no bolso da calça. — Não vou demorar.
Os passos de ecoaram no silêncio do cemitério enquanto ele se afastava do túmulo de Abby.
O destino de permanecia incerto, mas sua determinação de seguir adiante era clara e apenas única; faria o possível para estar junto de sua namorada outra vez. Independente do que isso fosse lhe custar.



Manchester; Cup Coffee Co.



O aroma do café fresco pairava no ambiente, se misturando com o som suave de máquinas de café zumbindo e o murmúrio baixo dos clientes.
, no centro de todo o frenesi matinal do lugar, trabalhava arduamente na Cup Coffee Co; uma mistura perfeita de cafeteria e livraria a qual tinha orgulho de dizer que era uma funcionária. O lugar vivia repleto de vida, especialmente nas manhãs movimentadas de Manchester, como aquela.
Seu cansaço era evidente, mesmo tentando ao máximo não deixar transparecer sua exaustão. Sabia que, como barista, seu trabalho era muito mais do que apenas preparar um café. Mesmo com toda a correria rotineira, a mulher fazia o possível para criar experiências para seus clientes, sempre tentando oferecer um momento de alegria e descontração.
Por mais difícil que pudesse ser, na maioria das vezes.
E, enquanto suas mãos habilidosas preparavam mais uma bebida, seus pensamentos ocasionalmente vagavam para bem longe.
trabalhava no lugar há um bom tempo e o amava. Não poderia mentir afirmando que não era cansativo andar de um lado para o outro, servindo e limpando, até que o movimento se dissipasse. Mas, ainda assim, sabia que fazia parte de seu trabalho e poderia passar por ser apenas um mísero detalhe.
Sua condição financeira era consideravelmente boa, visando seu cargo.
Não podia reclamar.
A única coisa que lhe deixava um pouco mais radiante era que estava perto de ser promovida.
O que só deixava ainda mais perto o sonho que a mulher tanto almejava ultimamente e esse, no entanto, sendo um motivo bem maior.
Depois de anos trabalhando na Cup Coffee Co., havia conquistado não apenas a tão esperada promoção, mas também a estabilidade financeira que fazia seu coração bater mais rápido só de pensar que algo tão sonhado se aproximava.
Com todo o esforço e determinação, realizaria seu grande desejo: ter seu próprio lugar.
Mesmo aos vinte e cinco anos, a mulher sabia que ainda tinha um longo caminho a percorrer, mas a perspectiva de finalmente ter um lugar para chamar de seu era emocionante.
E, com isso, não conseguia conter o sorriso que se espalhava por seu rosto só de pensar que logo teria suas coisas no lugar.
Só para ela e Gaspar, seu bichano tão amado.
Desde que havia acordado àquela manhã, se sentia ansiosa. E, embora ainda não tivesse encontrado a casa dos seus sonhos, sentia que estava mais perto do que nunca. Seu corretor e amigo, Yan, tinha mencionado que havia encontrado uma opção que se encaixava perfeitamente em seu orçamento, e a simples ideia disso era o suficiente para encher seu coração de emoção.
Não conseguia estar mais feliz.
— Obrigada por comprar conosco. Volte sempre!
Disse, a mais um cliente, enquanto o sorriso largo não deixava seu rosto.
Deixou que suas mãos, respingadas por alguns grãos de café, limpassem o avental e respirou fundo, virando o corpo.
Observou seus colegas de trabalho, tão agitados e preparados para o trabalho quanto ela. E, assim que virou o rosto na direção oposta, avistou sua chefe.
E melhor amiga. Rachel Hall.
Caminhou em sua direção.
— E então, animada, ? — comentou a mais alta.
Rachel tinha seus cabelos loiros, ondulados e armados na altura dos ombros. Uma presença perceptível não só pela sua postura, mas pelo carisma contagiante. Apesar da seriedade com os demais, com isso não existia.
Eram amigas de longa data.
— Não faz ideia do quanto — colocou uma das mãos no rosto, ainda sem acreditar. — Yan, da corretora, pediu para que eu o acompanhasse na parte da tarde para conhecer o lugar. Tenho a sensação que vou amar! Queria você comigo nessa, Rach.
Hall sorriu com a empolgação da amiga, mas murchou no segundo em que se lembrou do jantar com os pais. Já tinha sido remarcado uma vez, não poderia se dar ao luxo de acontecer novamente.
Oh, . Eu sinto muito, mas tenho o jantar com meus pais hoje no fim da noite. Não vou poder ir, mas posso te liberar mais cedo. Sei o quanto está ansiosa para isso — piscou para a amiga, que logo fez um bico. Mas, sorriu sapeca logo depois. — Contanto que me conte tudo amanhã, garota!
— Como se você não me conhecesse. Vou falar todos os detalhes e gravar. Sei que você vai querer ver também — deixou uma risadinha escapar. — Ah, Rachel… Não faz ideia de como esperei por isso.
Hall sorriu abertamente.
Sabia que contava os dias para encontrar um lugar que fosse só dela.
Um lugar que pudesse deixar do seu jeito.
— E o que você está fazendo aqui ainda? Pegue aquele seu carro caindo aos pedaços e anda logo!
Apontou, com o polegar, discretamente para o lado externo da cafeteria.
Rachel riu fraco ao notar a expressão emburrada de ao ouvir seu carro ser mencionado daquele jeito. Ela tinha um amor inexplicável por ele.
— Não fale assim do meu garoto. De qualquer forma, obrigada, Rachel! Se precisar de qualquer coisa, não hesite em me ligar — disse.
A mais alta apenas assentiu, soltando um beijo no ar para a amiga.
Enquanto pegava sua bolsa e verificava suas coisas antes de sair, se despediu dos colegas de trabalho e seguiu em direção à saída da loja.
E ao atravessar a porta, notou o céu escurecendo, as nuvens assumindo um tom acinzentado que indicava chuva iminente.
Fez uma careta involuntária.
Embora apreciasse o clima frio, não estava exatamente ansiosa para ser pega por uma tempestade.
Caminhou apressadamente até o estacionamento, avistando seu fiel companheiro, um Sportage prateado do ano 2000. E apesar de já não estar em sua melhor forma, o carro havia sido de seu pai e já não estava em boas condições quando foi passado para a mesma.
não podia reclamar.
O veículo a ajudou em tantas situações e, enquanto continuasse funcionando sem problemas, estava perfeito aos seus olhos.
Com isso, não demorou muito para que já tivesse dado partida no carro e logo seguiu pela avenida e logo no primeiro sinal, soltou um resmungo quando uma gota de chuva atingiu o pára-brisa.
Já era previsível e não tinha motivos para ficar daquele jeito.
Respirou fundo.
Os ponteiros do relógio mostraram que, pelo menos, estava adiantada.

👻


Quando virou a direção na rua da corretora Manlets, a qual Yan trabalhava, o avistou saindo pela porta giratória da empresa com sua pasta em uma tonalidade marrom terrosa e algumas papeladas nas mãos.
Seu coração acelerou, só de se lembrar do motivo que a havia levado até ali.
estacionou o carro, mas não desligou a ignição.
Um sorriso animado transparecia em seus lábios.
Abaixou o vidro do carro e observou Yan se aproximar.
Yan Parker era um homem alto, com os cabelos escuros e olhos penetrantes por detrás dos óculos de grau que sempre costumavam lhe transmitir confiança.
Ao vê-lo tão próximo, sua ansiedade aumentou ainda mais.
— Ansiosa, ? Bom ver você.
O sorriso no rosto do rapaz era caloroso.
— Mais do que você imagina — riu fraco. Destrancou a porta do carona e o rapaz entrou no veículo. — Nem me fala. Acho que tem um tempinho desde que nos encontramos da última vez, não?
sentiu uma pontada de nostalgia ao pensar em quanto tempo havia se passado desde sua última conversa significativa com Yan.
O rapaz, além de ser seu corretor, também era um amigo de longa data. E com todas as reviravoltas e mudanças em sua vida recentemente, parecia que o tempo estava passando rápido demais para que pudessem simplesmente conversar sobre coisas triviais e colocarem assuntos de suas vidas em dia.
— Sim. Mas, estou feliz por termos a chance de nos encontrarmos hoje. Tenho ótimas novidades pra te contar.
— Mal posso esperar para ouvir! — disse, empolgada. Parker riu ao seu lado.
Os dois já iam em direção ao endereço mostrado pelo mesmo em seu celular.
— Bom, já fique sabendo que não foi nem um pouco fácil encontrar esse lugar. Você sabe, uma vista ampla para o céu e espaço suficiente para Gaspar — mencionou, fazendo graça. sorriu, lembrando do bichano. — O imóvel surgiu no começo desse mês. E, por incrível que pareça, com as exatas restrições que me pediu.
— Só pode estar brincando… Certo. Tem certeza que cabe no meu orçamento?
Apesar dos olhos brilharem, a mulher apertou o volante com seu nervosismo.
Não conseguia expressar o quão animada estava para conhecer o lugar, mas o medo de criar expectativas e simplesmente não conseguir comprá-lo começou a falar mais alto.
— Já vou chegar lá — deu uma piscadinha. Deixou seus olhos seguirem para o mapa exposto no display do celular. — É uma área bem localizada, ficando na Cateaton St. Muito próximo ao centro da cidade e não tão longe da cafeteria. Não é um lugar muito grande, já adianto dizendo. Uma sala, dois quartos, um banheiro, cozinha, área de serviço e varanda, um tanto reservada. O antigo dono a adorava, já que tinha sua paisagem preferida, a Catedral.
Os olhos da mulher se arregalaram. Yan só podia estar brincando com ela.
— Isso não é uma pegadinha?
— Posso garantir que não — o rapaz riu. — Quanto ao orçamento, pode ficar tranquila. Não vai precisar pagar nenhum valor a mais do que o estipulado.
— Isso não pode ser verdade…
tinha os olhos no trânsito, mas sua mente vagava para muito longe.
Parecia bom demais para ser real.
— É um apartamento antigo, . O morador anterior morou lá por um bom tempo. Confesso que era pra valer um preço muito mais alto do que o ofertado — disse, sincero. Ela o olhou rapidamente. — Mas, os proprietários querem vender logo. O mais rápido. Com isso, consegui negociar pelo preço que você informou — sorriu. Yan parecia orgulhoso de seu trabalho. soltou o ar, ainda sem acreditar. — Ali, na próxima esquina.
O frio na barriga da mulher aumentou quando a mesma estacionou próximo ao local.
Yan desceu em seguida, a esperando e os dois atravessaram a rua.
tinha seus olhos olhando cada detalhe do lugar em que estava. Queria gravar cada minuciosa particularidade do bairro e da entrada de seu apartamento.
— A entrada fica pela lateral, ao lado do centro de visitas da Catedral.
Yan apontou para o pequeno prédio logo à frente.
O mesmo era quase de esquina. Havia uma fachada antiga, feita inteiramente por tijolos avermelhados e continha grandes janelas arredondadas que adornavam a frente do prédio, adicionando um toque de charme e elegância ao seu exterior, apesar de antigo.
sentiu um arrepio de excitação percorrer sua espinha ao contemplar o local.
Havia algo de encantador na simplicidade e na história que o prédio conseguia transmitir.
— É lindo…
Murmurou, mais para si mesma.
O prédio continha um ar de serenidade e autenticidade que a fazia sentir-se em casa antes mesmo de entrar.
Yan sorriu, percebendo a admiração da amiga.
— Vem. Vou te mostrar o interior. Vai gostar ainda mais.
Guiou até a lateral do edifício.
subiu o pequeno lance de escadas inicial, se deparando com um corredor não tão estreito que dava passagem para mais um lance de escada de madeiras.
Os dois subiram, notando o silêncio agradável que envolvia o lugar e o canto dos pássaros ao lado de fora fez com que sorrisse.
Conseguia sentir que o lugar havia sido feito para ela.
Depois de alguns degraus, chegaram a uma porta de madeira simples, porém aparentemente nova.
Yan retirou um molho de chaves do bolso e o ergueu.
— Aqui estão as chaves.
colocou a chave na fechadura e ao empurrar a porta, prendeu a respiração por alguns instantes ao ver toda a extensão do lugar.
Seus olhos se arregalaram ao perceber o quão espaçoso e arejado era o lugar, por mais que Parker tivesse dito que o mesmo não era tão grande assim.
Para ela, era o suficiente.
Muito maior do que havia imaginado e o tanto de janelas de vidro permitia que a luz natural banhasse todo o ambiente.
O coração de batia descompassado enquanto seus olhos percorriam cada detalhe do apartamento.
As paredes pintadas de branco refletiam a luz, criando uma sensação de calma e serenidade. Os móveis eram simples, mas elegantes e cada canto do espaço parecia convidativo e acolhedor.
, poderia vir aqui? — chamou a mulher do outro lado do cômodo. se aproximou, o observando. — Quando perguntou sobre o lugar, não fui totalmente sincero com você.
franziu o cenho.
— O que foi?
— Além do preço excelente, o apartamento será entregue inteiramente mobiliado.
piscou algumas vezes.
A frase de Yan repassava por sua mente várias e várias vezes, até que a mesma entendesse, de fato, o que o rapaz havia acabado de dizer.
O impacto da novidade se fez sentir quando a realidade da situação se instalou completamente.
mal conseguia acreditar no que estava ouvindo. Um apartamento completamente mobiliado? Era mais do que ela poderia ter sonhado.
A ideia de poder se mudar sem a preocupação de comprar e montar móveis era surreal. Achou que gastaria uma fortuna com uma nova mobília.
— Isso é incrível.
murmurou.
Apesar da boa notícia, sentia que algo estava faltando na frase do corretor.
Com o cenho franzido, cruzou os braços, sentindo um pressentimento de que algo não estava bem se instalando em seu peito.
— Mas…
Yan respirou fundo e olhou ao redor antes de se explicar, segurando uma folha em suas mãos.
— Mas você precisa saber o que aconteceu com o antigo dono — disse, sua voz adotando um tom mais sério. engoliu em seco. — Parece que ele e a namorada acabaram sofrendo um acidente há pouco tempo. Ela não teve muita sorte, se é que me entende. E ele… Bom, não informaram sobre. — continuou. o olhava, a expressão já triste. — O pai não quer ficar com nada relacionado ao filho. Não quer lembranças. Por isso, o motivo do preço e a mobília.
A mulher absorveu as palavras de Yan, sentindo uma onda de tristeza e compaixão pelo destino trágico do antigo dono. Seu peito doía pela situação e destino trágico do rapaz.
A história era dolorosa e sombria que pairava sobre o apartamento, fazendo-a se perguntar se seria capaz de lidar com essa bagagem emocional.
Porém, ao mesmo tempo, ela sentiu uma pontada de gratidão por ter a oportunidade de transformar aquele espaço em um lar cheio de vida e amor, afastando as sombras do passado. Era uma responsabilidade que ela aceitava de bom grado, determinada a honrar a memória daqueles que vieram antes dela.
— Não sei o que dizer… — sussurrou .
Não esperava por isso.
— De qualquer forma, posso te mostrar o resto do imóvel e você me diz ao final o que decidiu. Sabe que não posso esperar muito, pelo menos com essa casa.
Yan disse, ainda sério, apesar da expressão ser leve.
— Tudo bem.
forçou um sorriso, sendo guiada por ele para o restante da casa.
Os dois seguiram juntos para os demais cômodos. havia simpatizado com o lugar imediatamente, e sua admiração só aumentou ao ver um violão pendurado na parede da sala. Era exatamente o que ela havia sonhado, e para sua sorte, suas economias eram mais do que suficientes para comprar o imóvel.
Ainda que, no fundo, a história contada por Yan permanecesse ressoando em sua mente.
Como se ainda pertencesse a ele.
Respirou fundo, decidida a afastar os pensamentos intrusos.
Se ela quisesse iniciar uma nova vida independente e sem problemas, precisava parar de se preocupar com o passado.
Passaram pelo quarto, que para ela era espaçoso o suficiente.
Havia uma cama baixa, criados-mudos, uma escrivaninha com um pequeno baú de madeira embaixo e um grande armário com espelhos. Além disso, havia quadros e objetos que pareciam novos. O banheiro era mediano e a cozinha tinha o tamanho perfeito.
Mas, foi quando chegaram à varanda que o coração de quase descompassou.
O fim de tarde estava se desdobrando perfeitamente diante de seus olhos, apesar do céu nublado. Manchester reluzia no horizonte, tornando uma paisagem deslumbrante a qualquer um que pudesse ver.
Sentiu uma mistura de admiração e gratidão ao contemplar a cidade espalhando-se diante dela, como se o mundo inteiro estivesse ao alcance de suas mãos naquele momento.
A vista era de tirar o fôlego, com os prédios se erguendo majestosamente contra o céu alaranjado do entardecer. E, logo mais à frente, bem próxima à varanda, estava a Catedral.
Foi impossível não sentir que estava diante de algo extremamente especial.
Parecia algo destinado a ser seu.
— E então, , será que você vai dizer o que eu espero ouvir? Yan deu uma pequena risada, seus olhos seguindo a paisagem enquanto esperava pela resposta da mulher. sorriu gradualmente e balançou a cabeça, seus olhos encontrando os dele com uma expressão decidida.
— Bom, Yan… Seja bem-vindo à minha nova casa!
Disse, abrindo os braços. Ele sorriu abertamente como ela e a acompanhou de volta para dentro, próximo à porta.
parou ao seu lado, aguardando os próximos passos com um misto de ansiedade e excitação.
— Tenho certeza de que fez uma ótima escolha. Como você já deu uma pequena entrada inicialmente de acordo com o seu valor estipulado, posso te passar as chaves agora e amanhã você vai à empresa para realmente fecharmos o negócio. Tem algumas papeladas, mas é coisa rápida. — Parker explicou de forma casual, como se aquilo não fosse nada. Mas, para , era como se seu coração estivesse prestes a saltar do peito.
— O que? Agora?! — perguntou, ainda sem acreditar. — Já posso dormir aqui hoje?
— Sim. Se for o que desejar. Creio que não vá querer trocar a mobília, então... Ela é toda sua. Use como bem entender.
Yan soltou uma piscadela, fazendo graça.
Foi impossível não sentir o rosto esquentar.
O apartamento era oficialmente dela. Parecia difícil de processar.
— Nossa, Yan, mal posso acreditar! Essa é minha casa agora. Eu vou morar aqui. Dá pra acreditar nisso? — disse, boquiaberta. olhava ao redor.
Yan acompanhou seu olhar com um sorriso, sabendo o quão significativo era aquele momento para ela.
Seu coração esquentou com a cena.
— É melhor começar a acreditar, . Seu sonho se tornou realidade.
Yan abriu seus braços para a mulher. se aproximou e o abraçou fortemente, sentindo uma onda de gratidão e emoção invadir seu peito.
Era tudo graças a Yan Parker.
Quando se separaram, o rapaz pegou o molho com as duas chaves e entregou para ela.
— Suas chaves, . Não se esqueça de passar amanhã no meu escritório, certo?
Disse, ainda sorrindo para ela.
assentiu rapidamente.
— Muito obrigada, Yan. De verdade. Obrigada. Eu não sei o que faria sem você…
— Provavelmente ainda estaria quebrando a cabeça e procurando mais alguns lugares para morar — brincou.
se aproximou, mais uma vez, e lhe deu um beijo no rosto.
— Amanhã cedo passo por lá. De tarde, pretendo pegar algumas coisas na casa dos meus pais. Eles vão ficar loucos! E à noite, bom, Rachel vem. Você podia vir também. Acho que vai ser legal inaugurarmos isso aqui!
Sugeriu, empolgada. Um brilho de animação reluziu em seus olhos.
Yan inclinou o pescoço, pensativo, antes de concordar com a cabeça.
Seria interessante. Gostava da presença de .
Ajeitou os óculos no rosto, um tanto tímido.
Era um convite, certo?
— Quem sabe? Vamos ver como vai ser meu dia na corretora amanhã, mas… Talvez eu apareça aqui, rapidinho — respondeu. Os dois sorriram. — Então é isso. Você pode me ligar quando quiser. Eu vou nessa.
Parker apontou para a porta, enquanto se dirigia até ela.
rapidamente se aproximou dele, sentindo-se injusto com o fato de Yan ter que arrumar uma forma de ir embora, se ela havia o levado até ali.
— Posso te dar uma carona, Parker.
— Não precisa, . — disse, suave. — Posso pegar um táxi. Não vou direto para casa, infelizmente.
— Tem certeza? — insistiu. Yan assentiu, despreocupado. — Tudo bem então. Nos vemos amanhã?
— Até, .
Do lado de fora, pela janela, Yan acenou em despedida antes de encontrar algum táxi por ali.
se permitiu respirar fundo assim que se virou para encarar o cômodo. Era surreal saber que agora aquela era sua casa.
Com as chaves nas mãos, sorriu abertamente e soltou um pequeno gritinho de felicidade, retirando o celular da bolsa e enviando uma mensagem junto com algumas fotos para Rachel Hall.
Colocou uma das mãos na boca, ainda sem acreditar.
Aquele era seu novo lar.
E ela tinha muito o que fazer ali, a começar por sua mudança.



A vida é breve, a arte é longa, a oportunidade passageira, a experiência enganosa, e o julgamento difícil.
hipócrates



Manchester parecia mais silenciosa do que se lembrava.
Talvez fosse o horário insensato ao qual o rapaz caminhava pelas ruas labirínticas da cidade ou, apenas, seus pensamentos que estavam tão barulhentos quanto qualquer evento que pudesse estar ocorrendo ao seu redor.
Seus passos eram desprovidos de direção, inteiramente erráticos. E, além de sentir que não havia um lugar certo que pudesse ir, quase como se sua mente tivesse apagado suas últimas lembranças, um vazio bizarro o consumia internamente, tão profundo que parecia que iria devorá-lo de dentro para fora a qualquer instante.
Se sentia como uma estátua, imóvel, desprovida de vida e anestesiada, enquanto o mundo ao em volta de si parecia continuar vivendo intensamente.
À medida que continuava andando para onde quer que fosse, seus pensamentos giravam em torno de um acontecimento recente; um ao qual ele mal conseguia se lembrar nitidamente. Quase como se os flashes fossem uma névoa densa de memórias confusas e emoções entorpecidas.
Um ciclo interminável. O veículo derrapando, a chuva intensa que caía e o desespero. O grito desolado de Abby.
E então, a escuridão.
Quando viu a luz novamente, soube que sua namorada estava morta. Enterrada há sete palmos em um cemitério na cidade.
soube que a única coisa que havia lhe restado era o pesadelo incessante de reviver o que havia acontecido. Incapaz de mudar o curso dos eventos e mais incapaz ainda de salvar quem ele amava.
Notou o céu escuro novamente, como se o próprio compartilhasse sua dor. Uma chuva fraca começava a cair, mas ele ao menos conseguia sentir; parecia entorpecente.
ao menos conseguia chorar. O vazio persistia em uma ausência de emoções que o deixava ainda mais desamparado, desabitado.
E, ainda que estivesse pensando tão profundamente, seus passos instintivamente o levaram para longe de onde estava anteriormente, para um lugar que o rapaz ao menos sabia onde poderia ser.
Um lugar próximo a Catedral de Manchester.
A rua era estreita e, apesar de se encontrar quase no centro da cidade, ainda assim era calma e com pouco comércio naquela direção.
Deixou o corpo parar ali, na esquina e notou a fachada do edifício logo à frente. O mesmo parecia familiar, como um lembrete de um passado distante que mal conseguia lembrar. hesitou. O que estava fazendo ali, afinal?
Seus olhos escuros e insensibilizados estavam fixos no local, com uma estranha lembrança de déjà vu em sua mente; aquilo o fez se aproximar.
A fachada de tijolos vermelhos parecia sussurrar segredos do passado, mas não conseguia decifrar nenhuma mensagem. Não conseguia entender, nem mesmo sentir o que aquilo queria lhe dizer.
Suspirou pesadamente, aproveitando a porta lateral já aberta para adentrar o lugar. O ar impregnava um cheiro antigo, deixando evidente que o edifício não era tão novo, mas parecia habitado para que estivesse abandonado.
Subiu as escadas, ainda observando cada detalhe daquele local e, antes que pudesse pensar em fazer qualquer outra coisa, já estava de frente à uma porta amadeirada entreaberta, aparentemente nova, colocada recentemente.
E uma voz dentro do apartamento lhe chamou a atenção.
Sentiu um formigamento estranho no peito assim que passou pela porta. O interior estava envolto em móveis recém mudados de lugar, mas ele podia distinguir vagamente os contornos dos móveis e objetos familiares.
Um arrepio lhe percorreu a espinha, deixando presente a sensação de inquietação, mesmo que algo ali ainda dissesse para que continuasse a olhar a seu redor.
A sala do lugar era ampla, clara e arejada. Um lugar que ele gostaria de ter como seu.
Continuou andando, seus passos caminhando pela madeira no chão, ainda ouvindo uma voz ali perto falar algo que ele não conseguia decifrar.
Cada canto ali parecia particular; a personalidade explícita de alguém.
Só então, quando se aproximou de uma enorme janela, algo lhe invadiu insanamente o peito.
sentiu uma onda de desconforto e confusão inundar seu ser quando seu olhar se fixou na catedral através da varanda.
A visão era tão familiar, tão reconfortante, e no entanto, algo dentro dele se contorcia em agonia.
Sabia que aquele era seu lar, o lugar onde pertencia, mas não conseguia se lembrar de como havia chegado ali.
Momentaneamente, se sentiu desorientado, tentando reconciliar suas memórias fragmentadas com a realidade diante de seus olhos.
Era perturbador vivenciar aquilo, quase como se estivesse fora de seu corpo.
tentava desesperadamente compreender sua situação, o que raios acontecia dentro de si e ali, no apartamento que, se lembrando vagamente, era seu.
Notou então, um movimento no canto de seus olhos. E a voz que agora, se tornava mais nítida e alta a seus ouvidos.
Sentiu o corpo paralisar e anestesiar, mais do que já estava anteriormente.
Uma tempestade começava a crescer dentro de seu peito e mente ao ver a cena diante de si. Uma mulher, beirando sua idade, mudando alguns móveis de lugar.
Quase como se aquele fosse seu novo lar.
não entendeu de primeira. Só depois de vê-la com alguém no telefone, um sorriso largo e animado em seus lábios, tirando as coisas que eram do rapaz de um lado para o outro, que caiu em si sobre o que acontecia ali.
Por que alguém estava invadindo sua casa, seu santuário, sem sua menor permissão?
Seus punhos cerraram. Algo borbulhou em seu peito.
E, antes que pudesse pensar em qualquer outra coisa, avançou em direção à ela.

👻


sorriu. Pela milésima vez naquele dia.
Não tinha como não deixar um sorriso radiante surgir em seus lábios todas as vezes que olhava em volta de si e se dava conta de que agora tinha um lugar só seu.
Enquanto observava as caixas espalhadas por ali, sentiu um misto de emoções invadir seu peito. Por um lado, estava mais do que animada com a perspectiva de decorar e organizar cada canto do espaço de acordo com seu gosto pessoal. Por outro, sentia uma pontinha de ansiedade ao perceber a quantidade de trabalho que ainda precisava ser feito.
Mas aquilo era o de menos. E não a desanimaria.
Teria tempo suficiente para colocar suas coisas no lugar.
Com um suspiro suave, decidiu começar pelo básico. Pegou uma das caixas marcadas como utensílios de cozinha e começou a desempacotar os itens, imaginando onde cada um deles encontraria seu lugar na nova cozinha.
já tinha uma ideia de como queria deixar seu apartamento, ainda mais ao saber que os móveis permaneceriam ali, para ela, como Yan mesmo havia mencionado.
A mulher tinha em sua mente como cada cômodo ficaria e, só de imaginar, já sentia uma corrente de eletricidade percorrer seu corpo, a animando ainda mais.
Sua mente vagou para longe. Se lembrou que, naquela tarde, Rachel a visitaria, como prometido e dito que ajudaria a arrumar o restante da mobília, assim como também havia prometido levar um vinho.
Yan também havia mencionado que a visitaria. Seus pais iriam durante a semana.
Não tinha como estar mais gratas. Tinha seus amigos e parentes ao seu lado, ainda mais vibrando consigo em uma conquista como aquela.
Sorriu mais uma vez, determinada a terminar tudo o quanto antes; ainda tinha muito o que fazer.
se sentou no chão, puxando mais uma caixa de papelão para perto de si quando seu telefone tocou.
Hall a ligava em uma vídeo chamada.
A mulher depositou o celular em um lugar que pudesse apoiá-lo e deslizou para atender.
— E como está toda essa mudança? — Rachel disse, sorridente, do outro lado.
acenou.
— Tudo bem por aqui! Só estou desempacotando algumas coisas e tentando dar uma cara nova pro apartamento — mencionou, levantando o aparelho para que a amiga pudesse ver melhor. — Ainda tem um pouco de trabalho. Talvez eu precise de uma mãozinha ou outra.
Brincou, mesmo sabendo que logo Rachel chegaria.
A amiga, do outro lado, fez uma careta.
— É uma boba mesmo. Sabe que já estou chegando, mas preciso parar na adega. Seco ou Suave?
— Você sabe que prefiro suave, mas fique à vontade. Pode trazer o que preferir. Vou pedir alguns petiscos.
Hall ergueu o polegar, se animando assim como .
Quando desligou, relaxou o corpo, pronta para voltar a arrumar suas coisas.
No entanto, antes que pudesse ao menos levantar de onde estava sentada, um barulho súbito fez saltar de susto. O som de algumas caixas caindo ecoou pelo apartamento, fazendo-a congelar por um momento.
As caixas que continham algumas roupas e livros que a mesma havia levado.
Pensou ter sido Gaspar, mas o mesmo estava deitado em sua caminha próximo a porta do quarto, olhando para um ponto específico enquanto seu rabo estava eriçado.
Aquilo a causou estranheza.
Seu coração disparou e uma sensação estranha, um frio inexplicável, percorreu sua espinha.
— Mas o que…
Murmurou para si mesma. Os olhos arregalados olhavam ao redor.
não sabia o que pensar. Talvez alguma das caixas tenha escorregado, ou talvez fosse apenas sua imaginação.
Mas não conseguia entender muito bem já que as mesmas estavam bem posicionadas, justamente para que não caíssem.
Sentiu o coração descompassar dentro do peito. Talvez fosse mesmo sua imaginação.
Mordiscou os lábios, olhando em volta de si mais uma vez. estava sozinha, não havia um vento sequer passando por ali, mesmo a janela da sacada estando aberta.
Fechou os olhos brevemente e respirou fundo, resolvendo ignorar o que havia acontecido ali.
Não deveria ser nada demais.

👻


A campainha tocou.
correu, na ponta dos pés, abrindo a porta com tamanha animação. E, ao ver Hall segurando uma garrafa de vinho e algumas sacolas nas mãos, além das roupas confortáveis, só conseguiu se animar ainda mais.
— Achei que você viria mais cedo.
— É, tive que passar na cafeteria e ainda fiquei presa no trânsito — resmungou, revirando os olhos. fechou a porta e seguiu a amiga até a cozinha. — Vamos lá. Me mostre a bagunça.
riu.
Gostava da personalidade da amiga. Rachel Hall topava tudo. Desde uma noite de bebedeira até uma viagem de última hora um tanto duvidosa.
As duas eram o oposto uma da outra, mas ainda assim, se completavam como ninguém.
Rachel caminhou até a sala.
— Você fez um bom trabalho até agora — comentou, já seguindo até uma caixa qualquer. — Acho que se pegarmos firme, conseguimos acabar hoje ainda. Yan vem?
— Ele comentou que viria, sim. Mas até agora não apareceu, então… — deu de ombros.
— Uma pena. Acho que eu estava ansiosa para ver aquele óculos de grau atraente — Rachel deu uma piscadela, o que fez rir, balançando sua cabeça. — Vem cá, ele não deu em cima de você ainda não?
— Rachel!
— É sério, . Apesar de tímido, Yan Parker parece ter os olhos em você sempre que pode. E sempre que eu posso ver.
— Você não está falando sério.
Rachel riu fraco, balançando sua cabeça. Conhecia há anos e, desde então, sabia que a melhor companhia da amiga era ela mesma.
E seu gato Gaspar, claro.
— Ah, , você não muda mesmo. Sempre relutante em admitir quando alguém tem uma queda por você.
bufou, fingindo indignação. Hall sempre soltando alguma piadinha sobre seu status.
sabia muito bem que fazia tempos que não se relacionava amorosamente com alguém e que aquilo volta e meia virava motivo de piadinha de sua amiga.
— Ah, por favor. Acho que você tem assistido a muitos filmes românticos, não? E quer mesmo falar sobre isso, Rachel?
Rachel levantou as mãos em rendição, rindo.
— Ok! Sem ameaças. Só quero ver você feliz, . Seja com quem for.
As duas trocaram um olhar divertido e iniciaram a grande mudança na nova sala de . Mudaram alguns móveis de lugar, penduraram alguns quadros, arrumaram a estante e esticaram o tapete que tomava conta de quase toda a extensão do cômodo.
Enquanto a poeira era tirada da mobília, e Rachel não notaram que Gaspar continuava a olhar para um ponto específico ali. Sua pupila clara dilatada, fixa e inabalável.
O rabo, ainda eriçado como anteriormente, balançava minimamente enquanto encarava algo perto da sacada, que continha a vista para a Catedral de Manchester.
Seu comportamento não passou despercebido por .
A mulher parou por um momento, observando o gato com curiosidade enquanto o bichano mantinha seu olhar fixo naquele ponto misterioso da sala.
Rachel, distraída, não percebeu a mudança de expressão no rosto de .
— Estranho, não é? — comentou, chamando a atenção da amiga que ergueu o olhar.
Olhou na direção indicada por e franziu o cenho, surpresa ao notar a postura tensa de Gaspar.
— Isso é um pouco assustador. O que foi, hein, bonitinho? — brincou, jogando uma bolinha de papel em direção à ele. Gaspar ao menos se moveu. — Credo.
segurou uma risadinha com a menção da amiga.
A cena seria engraçada se ele não estivesse tão fixado na janela e nas cortinas brancas que balançavam vez ou outra por conta do vento fraco.
— Ei, Gaspar, não me assuste assim — mencionou, tentando chamar a atenção do bichano. Notou que além do rabo eriçado, as pupilas esverdeadas do gato também estavam dilatadas.
— Talvez ele esteja vendo algum inseto ou algo do tipo lá fora. Gatos têm esses momentos, não é?
Rachel disse, descontraindo. Claro que aquilo não era muito normal de acontecer, não com seu próprio gato, que conhecia tão bem. Mas, para não dar mais atenção aos pensamentos intrusos em sua mente, decidiu ignorar o que quer que ele estivesse fazendo e voltou à sua arrumação.
— É. Talvez tenham mesmo.

👻


— Ei! Quem caralhos são vocês? Oi! Será que eu tô invisível aqui?
Talvez fosse loucura de sua cabeça.
não conseguia sentir nada que não fosse a vontade de gritar e perguntar o que raios acontecia ali.
Ele permanecia parado, invisível aos olhos das duas mulheres que desempacotavam caixas e mais caixas no chão de sua sala. Do imóvel que era o seu lar.
Era quase como se estivesse anestesiado. Como se fosse um espectador em sua própria vida, um intruso em seu próprio espaço. Observava as duas mulheres movendo-se pela sala, suas vozes ecoando como murmúrios distantes aos seus ouvidos.
A sensação era assustadoramente estranha; estar ali presente, mas ao mesmo tempo completamente invisível, como se fosse uma sombra esquecida no canto do ambiente.
Ele queria desesperadamente entender por que elas não o viam, por que não sentiam sua presença, mas não havia respostas. Sua mente parecia estar em um looping vazio.
O rapaz não conseguia ter nenhuma reação.
tentou se aproximar, suas pernas parecendo pesar toneladas enquanto lutava contra a sensação de desespero que o consumia. No entanto, à medida que se aproximava, o gato — que descobriu se chamar Gaspar momentos atrás —, que até então estava parado, se ergueu de repente.
Os olhos ainda dilatados fixos na direção onde estava, os pêlos escuros eriçados e o miado alto, quase esganiçado.
Um arrepio percorreu a espinha de , o instinto animal do gato detectando algo que estava além da percepção humana.
— Isso só pode ser brincadeira… — as palavras saíram de sua boca como se ao menos tivesse controle sobre elas.
E sua ficha foi caindo aos poucos.
Claro que Gaspar era o único a vê-lo ali.
era a droga de um fantasma.



Alguns encontros começam no invisível, onde almas perdidas encontram caminhos que nem o tempo pode apagar.


Era como se o mundo estivesse desmoronando sob seus pés — se é que ainda os tinha e conseguia senti-los.
A sensação era estranha; desconexa. Como se flutuasse entre a realidade e um sonho ruim, onde a verdade que presenciava se tornava devastadora e, ao mesmo tempo, surreal.
E só o fazia se dar conta de apenas uma coisa: estava morto.
Não tinha como negar.
Não depois de atravessar uma parede pela terceira vez naquela noite, de tentar abrir uma porta e sua mão passar pela maçaneta como se não fosse nada.
Como se fosse feito de fumaça.
Perdeu as contas de quantas vezes tentou se lembrar do que havia acontecido, do que havia o levado até ali, de como se tornou um fantasma vagando no escuro. Sua mente parecia um grande nada.
A única coisa que se lembrava e sabia com certeza era que o lugar em que estava, com os móveis espalhados e inteiramente desorganizados, era seu apartamento.
Ou pelo menos havia sido.
olhava atentamente as caixas espalhadas ali, a poltrona que costumava jogar o corpo quando chegava cansado do estúdio agora tinha um gato deitado e, — o mais irritante —, pessoas que nunca tinha visto na vida.
Sentiu a raiva começar como uma chama pequena; uma pontada chata, que começava a incomodar e queimar. Quem eram as duas? Como ousavam invadir seu espaço sem o menor pudor?
Mas, o que achou ser uma minuciosa chama, se transformou rapidamente em um incêndio dentro de . Não conseguia aceitar.
O apartamento era seu, era o único lugar que se sentia seguro apesar de tudo.
Sua mente embolava em meio a confusão.
se movia pelo cômodo, percorrendo o apartamento como um espírito enlouquecido. Não conseguia entender, muito menos processar o que acontecia.
Queria gritar, queria fazer algo, mas tudo o que conseguia era flutuar, sem corpo, sem força e sem a capacidade de controlar o que acontecia dentro de si.
O sentimento insistente de raiva continuava a queimar, parecendo não ter fim. Mas, o problema não era a raiva em si. Era o vazio. A ausência de tudo o que uma pessoa sentiria em momentos como aquele. Não tinha dor, nem mesmo tristeza.
Não havia nada.
era como uma casca oca, sem alma, sem vida, sem calor.
Não havia lágrimas em seus olhos, não havia desespero em seu peito. Não havia mais nada. Ele era só um corpo inexistente, uma sombra.
Era a droga de um espírito.
A única coisa presente era a raiva e o incômodo indescritível que sentia com a situação. sabia que, mesmo que não pudesse mais estar ali, que não pudesse tocar em seus móveis, ainda era a sua casa. Só de ver duas estranhas mexendo em tudo, tirando suas coisas do lugar… O enfurecia. O enlouquecia.
Como ousam? disse, mais alto que o normal. Como se e Rachel fossem ouvi-lo de alguma forma.
Queria que as duas soubessem que ele ainda estava ali. Queria que sentissem o que ele sentia; a frustração de estar preso. A fúria de ver algo que amava sendo destruído, mesmo que soubesse, bem no fundo, que nada mais era seu.
Mas, nada daquilo fazia sentido. Ele estava ali, mas não estava ali.
Um fantasma.
não era mais real.
O primeiro impacto veio como um trovão pelo céu de Manchester.
A lâmpada da sala começou a oscilar, os fios se emaranhando de uma maneira impossível. Em segundos, a lâmpada se estilhaçou no chão. O som do vidro quebrando ecoou pela casa, ressoando pelas paredes como um grito fino.
e Rachel gritaram pelo susto e Gaspar pulou para trás aterrorizado, com seu rabo eriçado e os olhos fixos no canto em que estava. correu até ele rapidamente tentando o acalmar, mas o bichano só continuava ainda mais agitado, exatamente sentindo e vendo algo que nenhuma das duas era capaz de ver.
Oh, tadinho. Olha como treme… — comentou, segurando Gaspar com força em seus braços. Tentava acalmar um pouco mais.
Rachel estava de pé ao lado dela, com os olhos arregalados enquanto olhava para os cacos de vidro espalhados pelo chão, como se fossem algo de outro planeta.
Respirou fundo e tentou sorrir.
Forçou uma risadinha, ainda que tensa com a situação.
— Caramba, que susto! — levou uma das mãos no peito. — Engraçado, não vi nenhuma previsão de chuva.
olhou para a amiga, ainda um pouco pálida.
— Eu também não. Sem contar que estava um calor horrível mais cedo.
Rachel balançou a cabeça, olhando para a janela enquanto o vento balançava as cortinas recém colocadas pela tarde.
— Mas é coincidência demais a lâmpada ter caído, não é? Olha que estrago! — acompanhou o olhar da amiga, observando os cacos espalhados e a lâmpada dos outros cômodos ainda oscilando levemente. — Talvez você tenha trago um fantasma inquieto com a mudança. Vai ter que lidar com ele agora.
A amiga pressionou os lábios, contendo a risadinha com a brincadeira.
ergueu uma sobrancelha, tentando descontrair, mesmo que a ideia de um fantasma fosse loucura demais para ser verdade.
Há-há. Sério, Rachel? Piadinha assim uma hora dessas?
A amiga deu de ombros, ainda com um sorriso brincalhão.
— Quem sabe? Vai que o prédio é assombrado mesmo? Isso ia explicar muita coisa, como a porta rangendo e o encanamento que fez barulho o dia inteiro.
suspirou, olhando ao redor. Mas, deixou uma risadinha escapar depois. Rachel adorava contar histórias como aquela.
— Pode ser. O prédio é antigo mesmo. Vai ver que os fios estavam soltos e a lâmpada simplesmente explodiu de repente — fez um carinho no topo da cabeça de Gaspar, que ronronou. — Que bobeira, não é, meu filho?
Ele ronronou mais uma vez.
Rachel começou a juntar os cacos espalhados por ali.
— Estou brincando. Talvez tenha exagerado um pouquinho. Fantasmas são coisa de filme, certo? Não vamos ficar paranóicas.
olhou para a amiga, sentindo a tensão em seus ombros um pouco menos intensa, mas ainda presente.
Balançou a cabeça, pronta para esquecer o que havia acontecido.
— É. Fantasmas não existem.
— Vou fazer um chá enquanto você termina aí. Vai ajudar a relaxar antes que eu vá embora — Rachel se agachou para pegar os pedaços de vidro, mas sentiu uma sensação fria atravessar a sala, como se o ar tivesse mudado rapidamente.
sentiu o corpo tremer com o vento gélido. Gaspar ergueu a cabeça de repente, suas pupilas dilatando e o pelos voltando a arrepiar, e olhou extremamente focado para um canto em específico da sala.
A risada nervosa de Rachel parou no meio do caminho. E a voz de saiu quase em um sussurro.
— Me diz que não foi só eu que sentiu isso — murmurou, olhando ao redor outra vez. Seu corpo inteiro estava arrepiado.
A amiga ergueu a cabeça, franzindo as sobrancelhas enquanto observava um tanto preocupada.
, não é nada. Foi só uma coincidência boba, sabe? As janelas estão abertas. O tempo deve estar mudando e entrou algum vento frio — forçou um sorriso que parecia mais uma careta. — E, por favor, você mesma disse que não acredita nessas coisas. Se duvidar é só sua mente querendo pregar uma peça. É isso, nada demais.
Rachel caminhou até a cozinha, deixando sozinha no centro da sala.
E, enquanto tentava concentrar seus pensamentos em qualquer outra coisa, permanecia no canto do cômodo, observando as duas com olhos sombrios, o peito balançando de raiva. Ele estava a um passo de deixar o que sentia consumir o que restava de sua razão.
A visão de ambas, tão pequenas e vulneráveis, tentando ignorar o que acontecia ali só piorava o que ele sentia.
não suportava ver aquilo. Sentiu uma onda de frustração tomando conta de si enquanto a raiva se tornava um monstro dentro do seu peito. Queria que visse a verdade, que sentisse o peso do que estava sentindo.
se moveu rapidamente. Deslizou pelo cômodo, deixando o ar um pouco mais frio do que de costume.
Ao passar perto de um dos armários, alguns livros e enfeites caíram com um barulho seco, batendo no chão e espalhando papéis pela sala. deu um salto, com os olhos se arregalando enquanto olhava os objetos caídos no chão.
O que…?
Murmurou, não se dando conta quando Rachel adentrou o cômodo novamente, segurando as duas xícaras nas mãos. Ela ergueu as sobrancelhas, observando tudo espalhado e o olhar assustado de .
— Ué, aconteceu alguma coisa?
respirou fundo, deixando o corpo cair para trás, ainda sentada ao chão.
Balançou a cabeça, olhando para a amiga, que colocava o chá na mesinha de centro da sala.
— Acho que ando muito assustada ultimamente.
Rachel se sentou ao lado de e colocou uma das mãos no ombro da amiga.
— Isso é resultado da mudança, amiga. Deve estar te deixando mais ansiosa do que imagina.
Deu um leve sorriso, assentindo. Rapidamente pegou uma das xícaras, acompanhando sua amiga.
parou em um dos cantos da sala, com seus punhos fechados e os olhos opacos transparecendo o ódio que sentia. Só o fato de estar ali, impotente, sem poder se comunicar e sem ser visto o corroía inexplicavelmente. Sua vontade era a de quebrar a sala inteira até que fosse notado, até que colocasse um fim em toda a bagunça de sua vida.
Gaspar, que havia visto tudo e agora estava inquieto, deu um pequeno salto de onde estava, se aproximando do canto onde a energia de parecia emanar. Os olhos do gato brilharam, confusos e ele rosnou baixinho, como se tentasse entender o que acontecia ali. observou a reação do animal e achou estranho vê-lo tão próximo daquele jeito.
— Talvez você seja o único que entende, Gaspar — murmurou, sua voz quase sumindo. Sabia que o gato talvez não o visse ou entendesse, mas só assim sentia que poderia se acalmar um pouco mais. — Isso não importa, no final das contas.
O gato rosnou uma vez, baixinho.
Mas, ao invés de se afastar, como imaginou que faria, encostou sua cabeça contra o vazio onde o fantasma estava. Até parecia que estava o consolando.
olhou para o gato, surpreso e um pouco melancólico. A expressão de Gaspar, com seus olhos verdes grandes e atentos, parecia dizer que, de alguma forma, entendia mais do que deveria.
— Nunca imaginaria chegar ao ponto que um gato é o único que talvez possa me ver e ainda tenta me consolar. Isso deve ser vingança do destino.
Gaspar deu uma leve esfregada contra o lugar onde estava e o fantasma quase sentiu um calorzinho improvável.
Olhou para o bichano, com a expressão ainda mais triste do que antes.
nunca sentiu tanta falta de estar vivo, como naquele momento.

👻


ajeitou cuidadosamente um dos últimos livros na estante recém-montada.
Por mais que a noite já se mostrasse evidentemente tarde, o apartamento ainda estava repleto de caixas espalhadas e abertas em uma bagunça típica de uma mudança que acontecia, mas o lugar começava a ganhar um toque pessoal, do jeitinho que imaginava.
Gaspar estava deitado no topo de uma das caixas empilhadas. Diferente de mais cedo, agora parecia mais calmo, mesmo que ainda olhasse para um ponto vazio na parede.
Rachel encostou o corpo na porta da sala, observando com um sorriso. Ela estava exausta, com os cabelos claros bagunçados e uma mancha de poeira na calça jeans, mas a satisfação de ajudar sua melhor amiga valia muito mais do que todas as outras coisas.
— Então, parece que está quase pronto, hein? — brincou. deu uma risadinha, balançando a cabeça enquanto colocava os outros enfeites na prateleira.
Quase. Mas acho que vou precisar de um bom tempo para organizar tudo como quero — virou o corpo e seus olhos encontraram os de Rachel. — Obrigada por ter vindo. Não faz ideia do quanto me ajudou.
Rachel balançou a cabeça.
— Sei que você está começando de novo e isso pode ser difícil. Mas, olha, vai fazer isso dar certo, . Você sempre faz — fez uma pausa. Rachel tinha um sorriso brincalhão no canto dos lábios. — E amigos são para isso! Sabe que a qualquer momento vou estar aqui por você.
sorriu, sentindo o coração esquentar. Agradecia aos céus por ter uma amiga como ela em sua vida.
— Prometo que não vou deixar você fazer todo o trabalho duro sozinha da próxima vez — brincou, um pouco mais aliviada.
Rachel riu e deu um leve empurrão no ombro de .
— Vou cobrar essa promessa, ok? — fez uma careta — Agora, sério, se alguma coisa der errado ou se precisar de ajuda para organizar o resto, pode me ligar. Duas pessoas fazem mais do que uma sozinha.
assentiu. Gaspar, que observava a cena da caixa que ainda estava deitado, deu um miado frouxo, como se também estivesse prometendo que manteria bem.
— Pode contar com isso. Vai ser ótimo ter alguém por perto, ainda mais se for pra me ouvir reclamando dos vizinhos ou dos barulhos estranhos pela casa — disse, com um sorriso que mal conseguia esconder.
Sentiu os braços de Rachel enlaçando seu corpo em um abraço leve e a apertou com carinho.
— Isso mesmo. Você não está sozinha. Vai dar tudo certo, — se afastou, olhando para a amiga. — Qualquer coisa, é só ligar, viu?
assentiu. A acompanhou até a saída do apartamento e, quando a viu sair e a porta se fechar com um leve clique, o vazio na casa pareceu se intensificar um pouquinho mais do que se lembrava.
O apartamento que começava a ganhar um toque seu, ainda parecia estranho e distante.
Gaspar observava a cena com olhos atentos. E, como se percebesse a mudança no clima e o incômodo de sua dona, pulou até o chão e caminhou até , encostando a cabeça em sua perna.
Ela sorriu, se sentindo um pouco mais tranquila.
— É, Gaspar, agora somos só nós dois, não é? — se agachou para acariciar a cabeça dele, sentindo o calor da sua pelagem escura.
O gato respondeu ronronando suavemente e fechou os olhos, se sentindo confortável.
se ergueu, olhando para a bagunça que ainda tomava conta de quase todos os cantos, mas agora minimamente. A casa estava um caos, mas ao menos já parecia mais dela do que antes, com as coisas fora das caixas, mesmo que bagunçadas. A sensação de estar começando uma nova fase trazia um pouco de alívio.
E o cansaço começava a pesar aos pouquinhos.
Respirou fundo, balançando a cabeça. Precisava descansar.
— Acho que é hora de tomar um banho — murmurou, olhando para o relógio na parede. Já passava da meia-noite e o cansaço se arrastava por seu corpo. Gaspar, que estava próximo da mulher, correu imediatamente para o quarto, o que só fez rir fraquinho. Ele amava dormir com ela.
Enquanto se afastava em direção ao banheiro, o fantasma a observava, imóvel.
Sua presença invisível como sempre, mas com a mesma sensação de que algo estava errado. Não fazia ideia de quem era aquela mulher. Não sabia como havia chegado até ali ou o que fazia em sua casa. Mas, tinha certeza que ela não pertencia àquele lugar.
Sentia isso de forma visceral, como se o simples fato de estar ali fosse uma afronta à .
permaneceu parado, com os olhos fixos na porta do banheiro, ouvindo o som da água caindo do outro lado. Sentia a frustração e o desgosto tomando conta de si.
O apartamento ainda tinha o mesmo cheiro que não conseguia esquecer e agora, mesmo depois de morto, sentia como se uma parte dele tivesse sido invadida.
Sentiu a presença de Gaspar se aproximando e olhou para baixo, o vendo deslizar para perto com os bigodes tremendo. O gato olhou em direção ao banheiro, onde ainda tomava banho e então seus olhos se fixaram na figura invisível de , com a expressão mais curiosa que o normal.
olhou para o animal, ainda mais sério do que antes.
— Ela não pertence aqui, bichano. Diga isso à sua dona — resmungou, com o tom de voz carregado de amargura. — Como alguém tão cheia de vida, tão simples, pode ocupar um espaço como esse? Meu espaço! O espaço onde eu vivi, onde eu… Existia.
O gato continuou o olhando, curioso com suas ações. Parecia tentar entender de alguma forma.
bufou, mais frustrado do que antes. A dor de ter sido arrancado de sua própria vida e de ver sua casa invadida por alguém tão irrelevante — e que ele ao menos conhecia — o consumia.
Quando a mulher saiu do cômodo, com os cabelos molhados caindo pelas costas e seus pijamas folgados, a acompanhou com o olhar. O brilho da luz do banheiro refletia em sua pele e ela parecia tão... Viva. Se movia com tamanha naturalidade, exatamente como se a casa fosse sua há anos, como se o lugar que conhecia bem, fosse seu lar agora.
O que mais lhe irritava era o fato de não poder fazer nada para que aquilo acabasse de vez.
Vai embora, — sussurrou, mais para si mesmo do que para a mulher.
E desapareceu segundos depois.

👻


se remexeu na cama, ajeitando os lençóis sobre seus ombros.
Suspirou, aliviada por finalmente ter um espaço só seu. Durante os últimos meses, a simples ideia de estar sozinha em um lugar que era só seu parecia quase surreal. A mudança para o apartamento significava mais que um simples recomeço.
fechou os olhos por um momento, sentindo o cansaço se espalhar pelo corpo. O dia havia sido longo e, apesar da bagunça ainda presente em alguns cantos, o sentimento de ter um lugar só seu era indescritível.
Quase virou o corpo para se render ao sono quando a luz do corredor piscou de repente, interrompendo seus pensamentos.
franziu a testa e abriu os olhos, observando a lâmpada tremer levemente, como se uma corrente de ar estivesse passando pela casa. Mas, a janela estava fechada, deixando evidente que não havia como passar algum vento por ali.
Um calafrio percorreu sua espinha e se sentou, tentando ignorar a tensão que começava a crescer.
— Deve ser só minha imaginação — murmurou, tocando os próprios ombros como se pudesse afastar o arrepio que a abraçou.
Notou a luz piscar novamente e dessa vez sentiu o coração bater mais rápido.
Olhou para o celular na mesa da cabeceira, quase com medo de pegá-lo, mas pensou na amiga. Ela provavelmente a entenderia, mesmo que estivesse cansada.
pegou o telefone, pronta para enviar uma mensagem, mas… O que diria?
“Oi, Rachel, a luz está piscando e eu estou com medo”?
Talvez fosse exagero. E se fosse só a sua mente cansada mostrando coisas que não existiam?
Respirou fundo mais uma vez, largando o telefone de volta e se deitando de lado.
Os lençóis se amontoaram ao seu redor, mas não aqueciam. Só então percebeu que a luz do corredor parou de piscar e o silêncio após começou a acalmá-la minimamente. Mas, algo chamou a atenção de . E não era mais a luz piscante ou qualquer outra coisa visível, mas sim o som de um estalo, como se algo estivesse se movendo aos poucos.
Piscou, sentindo o medo se instalando como um nó na boca de seu estômago.
— Isso não pode ser real — sussurrou, já sentindo o corpo tremer levemente. Gaspar, que estava dormindo em um canto da cama, levantou a cabeça e olhou ao redor com os olhos dilatados e brilhantes. Parecia em estado de alerta, como se a qualquer momento fosse correr para longe. — Também não gosto nada disso, Gaspar.
Olhou para o gato, como se falar com ele a confortasse de alguma forma.
O puxou para perto e acariciou os pêlos de seu amigo. Enquanto o fazia, olhou para a porta, que parecia mais escura agora, como se algo fosse sair dali a qualquer instante.
Do outro lado, continuava a observar a mulher, ainda que sentisse a raiva queimar dentro de si. A verdade era que ele queria urrar, dizer qualquer coisa, tudo para que ela percebesse que aquele lugar não era dela.
Que nunca seria dela.
Mas, quando tentou falar qualquer coisa, apenas um som fraco e abafado escapou.
Saia daqui!
Tentou dizer, mesmo sabendo que talvez aquilo fosse em vão. A única coisa que conseguiu ouvir foi o vento batendo contra a janela do lado de fora.
Ela arregalou os olhos, olhando ao redor desconfiada. Mas, balançou a cabeça como se quisesse se livrar da sensação o quanto antes.
— É só o vento. Não é nada demais. Vamos dormir que isso vai passar — murmurou, apertando Gaspar contra seu corpo.
O gato continuava olhando fixo para a porta, o rabo balançando devagar.
Sabia exatamente o que acontecia ali.
— Não é só o vento — debateu, mas o som foi ainda mais fraco dessa vez. Ele olhou para Gaspar, que continuava com os olhos fixos no fantasma. — Diga a ela, bichano. Diga que ela não pertence a essa casa.
O rabo do gato chicoteou de um lado para o outro, como se respondesse de alguma forma.
passou a mão por suas orelhas, distraída.
— Que foi, hein? — franziu o cenho. — Também não gosta do barulho? Não deve ser nada demais.
riu com desdém. Um riso seco, carregado de ironia. Coisa da cabeça dela? Se ao menos soubesse o realmente estava naquele apartamento…
Patético…
Resmungou.
Deu um passo em direção à cama e o chão pareceu ranger sob seu peso, mesmo que ninguém mais pudesse ouvir. Gaspar ficou ainda mais tenso, com os pelos do pescoço eriçados.
acariciou o animal de novo, tentando acalmá-lo.
— Vamos, amigão, está tudo bem. Só estamos cansados, é isso.
Ela fechou os olhos, sentindo o corpo finalmente relaxar contra os lençóis, mas não conseguiu desviar o olhar. Havia algo na mulher que o incomodava mais do que qualquer outra coisa.
Não era só o fato de estar ocupando o lugar que era dele. E não era só por ela estar viva, já que ele estava…
Era a leveza com que existia.
A forma como o sorriso dela parecia iluminar o lugar que só conseguia lembrar como sendo escuro e vazio. E isso o irritava mais do que qualquer coisa.
Deu mais um passo, mas parou. O que faria se ela o visse? Se percebesse sua presença de alguma forma? A raiva se misturava com o cansaço e a sensação de derrota que não conseguia mesmo ignorar.
Gaspar soltou um miado curto, mas já havia adormecido, sua respiração ficando um pouco mais devagar.
ficou ali a observando dormir, lutando contra a solidão esmagadora que sempre voltava e a raiva de ter alguém ocupando o lugar que era seu.
E só então, no fundo, começou a perceber que não era que não pertencia àquele lugar.
Era ele.



Continua...


Qual o seu personagem favorito?
: 0%
Yan: 0%
Rachel: 0%
Gaspar: 0%


Nota da autora: Oi, pessoal! Espero que estejam gostando da história. Temos um fantasminha amargurado e uma proprietária feliz da vida com a nova aquisição. Será que isso vai dar certo?
Até breve!


Se você encontrou algum erro de codificação, entre em contato por aqui 👻.
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