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Independente do Cosmos🪐

Última Atualização: 01/02/2025

Seu tímpano ainda parecia reverberar, seguindo uma batida que ele não sabia se era o eco persistente de seu amplificador recém-abandonado ou apenas uma tentativa de seu coração de mostrar que estava prestes a explodir e pular pela boca.
A segunda opção parecia mais coerente. Especialmente quando aqueles morcegos horrorosos continuavam se arremessando contra o alambrado, expondo as presas e guinchando.
Mas mesmo com a confusão do som intruso, ele pôde facilmente compreender o que estava acontecendo quando o barulho lá fora mudou:
— Eles estão no teto — Eddie disse, erguendo sua lança improvisada e torcendo para que Erica tivesse feito um bom trabalho com ela.
— Merda, merda, merda, merda, merda — Dustin continuou repetindo, mudando o foco de seu olhar para onde o amigo apontava. Com alguns passos, ele enxergou o verdadeiro problema. — Eles não conseguiriam entrar, né?
Em um rompante, imediatamente seguido pelos gritos dos dois, a ventoinha foi brutalmente quebrada por um daqueles pequenos demônios grotescos.
— Morram! Morram, seus merdas! — Dustin bradava, enquanto impulsionava a lâmina para o alto, buscando acertá-los antes que pudessem tomar a péssima decisão de entrar.
O mais velho seguiu seus movimentos, imitando-o e impedindo que os bichos os alcançassem. Precisavam ganhar para os outros o máximo de tempo que conseguissem. Aquilo não seria o suficiente para atrasá-los.
Eddie olhou ao redor, tentando pensar em alguma forma mais efetiva de lidar com o problema. Lanças enfiadas em um buraco no teto não seriam o bastante. Não quando eles eram dois e aqueles malditos eram pelo menos várias dezenas.
— Eddie! — Dustin berrou. — Eu preciso de você.
Foi então que ele viu. Era óbvio. Qual era a melhor opção para lidar com um buraco indesejado?
— Sai da frente! — Gritou de volta e, assim que o garoto se retirou de seu caminho, Eddie empurrou uma cadeira dobrável de metal, fincou os pés sobre ela e forçou o escudo cheio de pregos contra a entrada.
As asas passaram a bater novamente; o som cada vez mais baixo, tornando-se distante. Eddie só percebeu no momento em que abaixou os ombros que estava segurando o ar.
— Puta merda — disse, respirando fundo.
Dustin parecia tão atordoado quanto ele.
— Boa.
— Valeu.
Entre uma respiração profunda e quase paradoxalmente entrecortada e outra, tiveram tempo de tocar as mãos no alto. A sensação de alívio, contudo, durou muito menos do que eles gostariam.
— Tem outros dutos? — Dustin o questionou.
— Ah, merda — Eddie praguejou antes de correr para o lado oposto, torcendo para que não fosse tarde demais. — Merda, merda, merda.
Antes que pudesse reagir, os monstros surgiram em sua frente. A única coisa que ele poderia fazer era fechar a porta entre eles e torcer que o material — seja lá do que fosse feita aquela porcaria — fosse resistente o bastante.
Não precisou de muito tempo para ter a resposta para sua pergunta.
— Isso não vai dar conta! — Dustin berrou, desesperado, atrás do amigo que ainda empunhava sua lança e o outro escudo que tinham feito com tampas de lixo.
Cada segundo que passava equivalia a uma rachadura na porta. Uma rachadura que só se tornava maior e mais ameaçadora, esfregando na cara deles o presságio inevitável de seu próprio fim.
“Nada de tentarem ser os heróis” — a voz de Harrington ecoava em sua mente. No fundo, eles sempre souberam que não poderiam vencer.
— Vamos! Anda!
Manteve a guarda enquanto o garoto subia pelo lençol amarrado, retornando para a versão de sua casa que ficava em outro plano. Um plano em que os monstros eram as pessoas e não morcegos famintos que estavam possuídos (de forma mais literal do que o necessário).
Dustin aterrissou no colchão sem muita classe. Não havia tempo para manobras, acrobacias ou boas notas em uma prova de ginástica artística das Olimpíadas. Abriu logo o espaço para permitir que o amigo descesse.
O barulho na porta se tornou mais alto. A sinestesia perfeita entre som e imagem, parecendo que o único obstáculo entre eles se romperia a qualquer segundo.
— Eddie, vem logo!
Ele soltou a lança e o escudo, impulsionando o corpo para frente. Mas parou. O que é que ele estava fazendo?
— Anda, Eddie! Vem logo!
Existia uma teoria de que, ao se encontrar à beira da morte, uma pessoa seria capaz de ver flashes da sua vida passando sob seus olhos, recapitulando os capítulos anteriores, apenas para que o livro pudesse encontrar sentido para aquele epílogo. E foi naquela fração de segundo que ele a viu.
Chrissy, tão aflita e perdida, precisando de um ombro amigo muito mais do que das drogas que pensava serem a melhor opção. Chrissy que enfrentava seus próprios demônios com um sorriso simpático e a garantia de que estava tudo bem e ninguém precisava se preocupar com ela, muito obrigada. Mas ele se preocupara. E, mesmo assim, isso não tinha sido suficiente para evitar que seus ossos fossem quebrados e sua vida retirada por aquele monstro maldito bem diante dos seus olhos.
Não era justo. Nada em toda aquela história era justo. Mas o que mais lhe consumia por dentro era que, por mais que provavelmente não pudesse salvá-la, ele sequer havia tentado. Ele tinha fugido.
Ele não aguentava mais fugir. E sabia que jamais conseguiria viver com o fardo de, mais uma vez, não ter tentado.
— Anda logo, Eddie! Está super perto! — Dustin berrava, pulando no próprio lugar sem conseguir conter a própria energia que se acumulava ao epítome de seu desespero.
Eddie deixou a força se esvair dos nós dos dedos que agarravam o lençol, retornando ao chão.
O amigo continuava olhando para o alto, sentindo o desalento preencher o peito. Uma angústia que ele não conseguia verbalizar. Uma súplica que mal conseguia sair de seus lábios:
— Eddie!
Mas ele parecia tomado por um ímpeto de objetividade e certeza que nunca antes havia sentido. Virou-se para trás, encontrando a lança que há pouco havia abandonado em sua rota de fuga. Dustin se deu conta do que estava acontecendo.
— O que está fazendo? Eddie, não! — Os gritos faziam sua garganta doer, com as palavras quase literalmente cuspidas com toda a agonia que lhe invadia como uma machadada bem no meio do tórax.
Em um movimento decisivo, cortou o lençol que servia de ponte para o portal entre mundos. Afastou o colchão e se armou novamente.
— Eddie, pare! Eddie, o que você está fazendo?
— Estou ganhando tempo.
— Não! Eddie, por favor!
As lágrimas que corriam pelo rosto de Dustin eram evidências do mais completo desespero. Não era esse o plano; não era esse o plano. O plano era distrair os morcegos e voltar em segurança, não perder um de seus melhores amigos.
Ele levou as mãos à cabeça, apertando o gorro contra os cabelos, sentindo vontade de puxá-los com força, na vã tentativa de criar uma dor física que pudesse se sobressair àquela.
Quando Eddie sumiu de seu campo de visão e abriu a porta do trailer, correndo em direção à eterna noite do Mundo Invertido, Dustin soube que nenhuma dor jamais conseguiria ser maior.
Ignorando os gritos do amigo, o mais velho pegou a bicicleta e saiu em disparada em direção a qualquer lugar. Precisava atrair as criaturas para longe dali. Longe dos portais e longe da possibilidade de fazerem mal novamente a quem ele amava.
A adrenalina era suficiente para compensar todas as várias horas de exercício aeróbico que ele não fez. Suas pernas pedalavam o mais rápido possível, sem sentir fadiga muscular por um segundo sequer. Era só disso que ele precisava. Mais tempo.
O céu salpicava em raios vermelhos, nuvens e neblina entremeadas por uma iluminação digna de filme de terror, enquanto os morcegos faziam questão de gritar durante todo o trajeto atrás dele, apenas lembrando-o de que estavam ali e não pretendiam ir embora. Como se ele pudesse se esquecer.
— Venham me pegar, seus putos!
Ele encontrou força para pedalar ainda mais rápido, impulsionando os pés contra os pedais e inclinando o corpo para frente intuitivamente. Só precisava ir mais longe, um pouco mais…
Tudo o que sentiu foi o impacto na lateral do corpo, roubando-lhe o ar e o levando de encontro ao chão.
De alguma forma, tinha conseguido rolar durante a queda e logo se colocou de pé, correndo o quanto podia.
Um daqueles monstros teria que pará-lo, talvez o próprio Vecna. Mas nenhum deles precisou se dar ao trabalho. Eddie interrompeu sua passada por si só, invadido pela memória da própria voz, dizendo as palavras que mais lhe envergonhavam em todos os seus quase vinte anos de vida.
“Eu não sabia o que fazer, então eu fugi. Eu fugi e a deixei lá.”
Não. Não dessa vez.
“Olhe só para a gente. Estamos longe de ser heróis.”
Será mesmo? Eddie não sabia exatamente o que diabos significava ser um herói. Tudo o que ele sabia era que heróis nem sempre venciam, mas, ao menos, morriam tentando.
Com a lança empunhada e o escudo em posição de defesa, virou-se para a revoada no céu, trazendo tons ágeis de preto para aquela gênese de tempestade vermelha.
Era como se aqueles bichos estivessem tão afoitos e sedentos que, mesmo eles, precisaram de um tempo para perceber que sua presa havia decidido lutar.
Com um grito estridente, um dos morcegos se jogou em sua direção, sendo logo seguido por todos os outros.
Munson se colocou atrás do escudo, livrando-se de alguns deles que se jogavam em direção ao próprio fim sem muito pensar.
Suas contas deveriam estar erradas, ele percebeu. Não eram apenas dezenas. Com certeza havia centenas daqueles desgraçados apenas esperando por um movimento errado seu.
— Venham!
E eles obedeceram. Entre atacar com a lança e se defender com os pregos, Eddie parecia absorto em uma complexa e minuciosa coreografia do caos. Os morcegos atacavam gritando e caíam gritando. Ele já estava cansado deles.
— Sério, pessoal? — Perguntou, enquanto tomava fôlego. — É assim que vocês agradecem pelo melhor show da vida miserável de vocês? Quanta ingratidão.
Mais gritos pareciam ser a única resposta que ele receberia. Isto e a sede de sangue daqueles dentes afiados que conseguiam chegar cada vez mais perto de seu rosto. Eram muitos e, por mais que vários já tivessem encontrado o chão pela última vez, parecia que mais e mais vinham de alguma fonte inesgotável de criaturas asquerosas.
Eddie não sabia por quanto tempo mais aguentaria, mas não parecia muito. E dessa vez, nem era o seu cômico pessimismo característico falando.
Em um descuido de uma fração de segundo, sua lombar havia ficado exposta. O grito provocado pela dor lancinante das presas enfiadas profundamente em sua carne parecia ter conseguido superar em altura o som de ‘Master of Puppets’ de sua guitarra ligada ao amplificador. Se ainda tivesse algum canto daquela realidade que não o tivesse ouvido antes, com certeza não tinha escapado de ouvi-lo agora.
— Seu puto — Eddie xingou entre os dentes, fincando a lança bem no meio do corpo asqueroso daquele sanguessuga maldito. — Por que não arranja algo melhor para fazer?
Os cabelos estavam grudados no rosto e na nuca. A bandana ensopada colava contra a testa. A mão direita já tinha se adaptado tanto ao formato da haste da lança que ele duvidava fortemente que seria capaz de soltá-la quando isso acabasse.
Isto é, se ele saísse vivo dessa.
Ao ver a quantidade deles ainda sobrevoando, ele precisava ser realista. As expectativas não eram as melhores. Mas era de tempo que ele precisava. Nada mais do que isso.
— Isso é tudo que vocês têm? — Ele ouviu a própria voz vacilar entre a risada quase maníaca. O lugar onde fora mordido ardia feito o inferno e ele teve que se perguntar se, além de tudo, aqueles malditos não poderiam ter veneno. Realmente era só o que faltava. — Eu esperava mais de vocês.
Eles baixaram voos rasantes mais uma vez, atacando-o de múltiplos lados. Munson contra atacou como pôde, ainda conseguindo matar alguns e afastar outros.
Mais um maldito sorrateiro tinha conseguido encontrar sua pele, cravando os dentes em sua panturrilha. Eddie quase uivou de dor.
— Desgraçado — praguejou, arrancando-o com a lança.
A tempestade vermelha parecia estar aumentando, o tempo também se fechando como se em uma contagem regressiva para o ‘grand finale’. Se aquele ainda era o começo, ele tinha quase certeza de que não queria conhecer o fim.
Em um relâmpago que caiu perto demais, fazendo-o apertar os olhos em reação reflexa, o mundo estourou em um trovão estrondoso. Os morcegos se afastaram, alçando voo para longe, recolhendo-se para onde fosse a cova do mal deles.
Eddie respirou fundo, caindo de joelhos ao chão. A panturrilha atacada estava tremendo e todos os demais músculos estavam fracos, exauridos da batalha. Levou a mão trêmula às costas, encontrando a viscosidade residual do próprio sangue na ferida aberta.
Ele detestava sangue. Mesmo. Mas nunca tinha desmaiado por causa disso. Era estranha aquela sensação de formigamento que parecia vir caminhando das pontas dos dedos em direção aos braços. Os olhos pesavam e ele se sentiu mais cansado do que poderia explicar. Que esquisito. Talvez ele só precisasse descansar um pouco a vista.
— Eddie! Eddie!
Ele já não enxergava com a melhor das definições quando sentiu duas mãos quentes tomando sua cabeça e a apoiando em algo que ele não saberia reconhecer. Mas ele reconhecia aquela voz em qualquer lugar.
— Henderson — murmurou, em reconhecimento. Uma risada fraca escapou de seus lábios. — O que você está fazendo? Era para estar em casa. Isso não é hora de criança ainda estar fora da cama.
— Eddie. — A voz era chorosa. Por que ele estava chorando? — Por que você fez isso?
Ele tentou dar de ombros. Não sabia se tinha conseguido movimentá-los.
— Eu só estava brincando um pouco, Henderson. Nada demais. — Ele sentiu a respiração sendo recebida pelas narinas entre picotes. — Dessa vez eu não fugi, né?
As mãos de Dustin tremiam sob sua nuca. Eddie conseguiu ver o rosto do amigo, tomado de preocupação e um pesar que ele não compreendia.
— Você vai ter que cuidar da pirralhada por mim, tá? Diga que vai cuidar deles.
— Eu vou cuidar deles — respondeu, com a voz embargada.
— Que bom. Porque acho que finalmente vou me formar. Acho que esse é meu ano, Henderson. Acho que é finalmente o meu ano.
— É claro que é. Então aguenta firme, cara. Por favor.
Eddie sorriu de leve, deixando que os olhos se fechassem, pesando mesmo com a luz incômoda dos raios.
— Relaxa, Henderson. São só uns machucados de nada. Eu não vou a lugar algum.
Dustin o chamou repetidamente, implorando para que ele continuasse acordado; continuasse com ele. Mas Eddie sabia que podia fechar os olhos só um pouquinho. Estava mesmo muito cansado.
— Eu te amo, cara.
Só precisava de um tempo.





Ele desistiu de abrir os olhos com tanta agilidade ao sentir os efeitos da iluminação queimando suas pupilas de uma só vez. E, pior ainda, sua cabeça doía tanto que ele não tinha certeza de que seria capaz sequer de se sentar e aguentar o efeito da gravidade sobre ela. Por Deus, era como se tivesse tomado uma surra.
Pensando bem… Se sua memória nebulosa não estivesse lhe enganando, ele meio que se lembrava exatamente disso.
Em um movimento quase involuntário, levou os dedos à cabeça, pressionando inutilmente um ponto em sua testa que parecia ser o epicentro de toda a dolorosa destruição que sentia.
— Puta merda! Puta merda! — Os gritos ao seu lado ficaram mais altos e ele apertou os olhos, enrugando a face em uma careta. — Você acordou. Gente, ele acordou!
Sua garganta estava extremamente ressecada e ele nem sabia se ainda era capaz de produzir saliva. Mesmo assim, encontrou forças para que sua voz rouca dissesse:
— Droga, Henderson. Onde é que fica o botão para te colocar no mudo?
Dustin riu alto e Eddie sorriu levemente, apreciando em silêncio o quão estranhamente reconfortante era ouvir aquele som que tinha aprendido a adorar. Não demorou para que o garoto se jogasse em cima dele, abraçando-o. Pelo jeito, havia se esquecido das feridas — e Munson tinha, por isso, acabado de se lembrar delas.
— Você não tem noção de como eu estou feliz em te ver bem. Quer dizer, pelo menos vivo.
— Eu te avisei que eu só precisava descansar um pouco, garoto.
— Sim, você descansou um pouco. — Outra voz interveio. — Por uns três dias inteiros.
Munson finalmente se esforçou para abrir os olhos, encontrando Steve, Robin, Mike e Lucas se amontoando no pequeno espaço oferecido pelo batente da porta.
— E daí vocês começaram a festa sem me convidar — Eddie concluiu. — Não quero nem saber o que vocês cinco fizeram com o meu pobre corpo durante três dias.
Robin riu, meneando a cabeça.
— Quem falou sobre cinco? Tem basicamente um time de futebol aqui fora só esperando a Bela Adormecida acordar do seu sono de beleza.
— Que não adiantou muito — Dustin completou. — Você está absolutamente horrível.
Eddie deu um tapa rápido, tirando as mãos do garoto de seus cabelos. Não precisava de espelho nenhum para imaginar o quão desgrenhados seus fios deveriam estar depois de tanto tempo desacordado. E não é como se ele estivesse se parecendo exatamente com um garoto propaganda de tratamentos capilares profissionais antes de tudo aquilo acontecer.
Tudo aquilo… Ele nem se lembrava de tudo o que havia acontecido e, ainda sim, era muita coisa para absorver e aceitar. De repente, ele levou os dedos fracos à lombar, encontrando o que, pela textura, ele imaginava ser um combinado de bandagens e esparadrapos. Não parecia um curativo dos mais cuidadosos, mas também não parecia que ele pudesse receber um atendimento médico melhor do que aquele dadas as atuais circunstâncias.
— Nancy fez os curativos — Steve se adiantou a explicar. — Ela também te arranjou uma remédios que a Joyce disse que seriam bons.
— E quem é Joyce?
— A mãe do Will e do Jonathan — Mike respondeu, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Eddie balançou a cabeça concordando. Droga, ele queria ter forças para ser debochado, mas estava completamente perdido.
— E quem raios são Will e Jonathan?
— Certo, certo — Lucas concordou. — Tem razão, você ainda não conhece a parte dos nossos que se mandou para a Califórnia.
— Tenho certeza de que são adoráveis. Como surfistas bronzeados e cheios de padrões hollywoodianos que fazem todo o sentido em Hawkins.
Dustin gargalhou alto, expondo o aparelho fixo.
— Meu caro Eddie, você não podia estar mais errado.
— Bom, isso é realmente um grande alívio.
— Você vai adorar conhecê-los. Sério, eles são ótimos e…
O garoto tinha entrado em um daqueles momentos típicos em que simplesmente parecia funcionar como uma torneira de palavras impossível de ser fechada. Isso acontecia muito e, no geral, ele apenas deixava que Henderson colocasse tudo o que quisesse para fora e, por pior amigo que isso o fizesse, desistia de absorver mais da metade do que ele dizia. Era impossível acompanhá-lo. Mas, naquele momento, ele não tinha condição de ouvir mais uma sílaba sequer. Não quando tinha acabado de se lembrar de algo obviamente muito mais importante do que qualquer coisa que ele pudesse estar intencionado a dizer.
— Wow, wow, wow. Calma, calma. E a garota? — Ele estalou os dedos, esforçando-se para recordar. — Max. Como está a Max?
Eddie procurou o olhar que tinha certeza de que denunciaria qualquer sinal de que algo de ruim tivesse acontecido. Encontrou os olhos de Lucas e a única coisa que conseguia ver neles, por trás da névoa de puro cansaço, era o alívio. Imediatamente, sentiu o próprio coração afrouxar o aperto que não percebera estar sentindo.
As palavras saíram de sua boca praticamente em um sopro, eliminando parte do peso dos ombros juntamente ao ar dos pulmões:
— Graças a Deus.
Sinclair conseguiu esboçar um sorriso fraco. O mais velho apenas aquiesceu, torcendo para que ele entendesse que aquela era a sua maior expressão e demonstração de apoio para o momento.
Com a ajuda de Dustin, Eddie conseguiu se colocar sentado, encostando o dorso em uma almofada que ele soube imediatamente que não era dele.
Depois do choque do despertar, fora só naquele momento que ele finalmente percebera que não reconhecia o lugar. Não tinha nenhuma sensação de identificação com as paredes construídas por tábuas de madeira que imploravam por manutenção ou com o cabideiro com roupas que pareciam ao menos dois tamanhos maiores do que qualquer um deles.
Mike logo percebeu a confusão em seus olhos e se adiantou:
— Foi mal. Era o único lugar que conhecíamos e sabíamos que era seguro. Por experiência própria.
Munson apertou os lábios, encarando o calendário na parede, que exibia orgulhoso a página de ‘Outubro de 1985’. A reprovação repetida deveria ser indício suficiente de que ele não era lá o melhor do mundo com contas ou raciocínio lógico, mas mesmo ele sabia que aquilo não estava certo. Sequer estavam no mesmo ano. E ele achando que era ele o perdido no tempo…
— A cabana tinha ficado vazia desde então — Dustin explicou. — Não voltamos no tempo.
— Era só o que faltava depois de toda essa loucura. Henderson, eu juro, se eu tivesse que passar por tudo isso de novo…
Os demais presentes trocaram olhares consternados que não o tranquilizaram por um segundo sequer. Claramente sabiam de coisas que seu cérebro preguiçoso nem sonhara em descobrir durante o curto pseudocoma, em que decidira aproveitar o feriado prolongado longe de toda aquela loucura.
O problema era que a pior parte das férias sempre seria voltar à realidade.
— Cara, a gente tem muita coisa para conversar.
— Vem, eu te ajudo a levantar — Steve ofereceu, já encaixando seus braços sob as axilas do outro e dando o apoio para que ele se colocasse de pé. Eddie piscou com força, sentindo-se imediatamente tonto. — Vamos nos juntar aos outros na sala e te explicamos tudo. Henderson, vai fazer um sanduíche para o cara ou qualquer coisa que o impeça de desmaiar nos próximos quinze minutos.
— Por que eu?
Steve o olhou incrédulo, erguendo o tom de voz.
— Porque ele poderia muito bem ter morrido para te salvar. Parece motivo suficiente para você, seu merda?
Dustin bufou, seguindo na frente a contragosto para descobrir o que tinha sobrado dos últimos dias nos armários e geladeira.
Harrington apoiou Eddie melhor no braço, sendo cauteloso ao perguntar se ele estava confortável daquela forma, se conseguia andar, se precisava de mais alguma coisa. Munson não fazia o tipo que esperava pela ajuda dos outros. Sequer era do tipo que estava acostumado a recebê-la — ainda mais de bom grado. Naquele momento, contudo, nem seu orgulho conseguiria ser tão estúpido para dispensar o apoio de outra pessoa quando ele se sentia mais fraco do que nunca. Física e psicologicamente.
Era quase como reaprender a andar. As pessoas não tinham memórias exatas da primeira infância e seus marcos. Não se lembravam da primeira comida, das primeiras palavras ou dos primeiros passos. Eddie, no entanto, tinha quase certeza de que a sensação na época deveria ser bem parecida com a que ele sentia agora. Apenas substituindo o brio do novo aprendizado pela frustração de se sentir incapaz de sustentar o próprio peso.
— Tudo bem aí? — Steve perguntou mais uma vez.
O outro pensou em alguma resposta sarcástica e levemente desrespeitosa que pudesse lhe oferecer. O mínimo que deveria fazer era manter a essência despojada e a ironia que — jamais admitiria — usava como mecanismo de defesa em relação a todo e qualquer ser vivo que decidisse cruzar o seu caminho.
Mas não conseguia. De repente, deu-se conta de que não precisava daquilo.
— Tudo, garotão — respondeu. — Obrigado.
— Sobre esse apelido — começou. — Eu não sei se me sinto muito confortável com ele.
— E é exatamente por isso que ele continuará sendo usado. — Eddie quase agradeceu pela oportunidade fácil e gratuita de ser um pouco zombeteiro. — Tenho certeza de que já te chamaram de coisas muito piores.
— Ah, sim. Tenho o orgulho de ter sido um dos primeiros a ousar fazê-lo.
Eddie ergueu o olhar, encontrando o desconhecido que proferira aquelas palavras. Ao redor do jovem, várias outras pessoas se espalhavam pela sala que mal poderia ser chamada de cômodo e definitivamente não contava com espaço suficiente para toda aquela gente. O corpo de bombeiros adoraria impedir uma superlotação daquelas.
Seu foco, entretanto, recaiu sobre outro detalhe; uma coisa pequena e singela que poderia ter passado despercebida por literalmente qualquer pessoa em todo o universo. Qualquer pessoa menos ele.
Era a primeira vez em toda a sua vida em que ele adentrava um ambiente sem se sentir como o deslocado ou o indesejado. Aquelas pessoas sorriam para ele. Sorrisos que demonstravam simpatia, contentamento, gratidão. Ele não precisava ser nenhum especialista em linguagem corporal para saber que era bem-vindo ali. Que, de alguma forma, pertencia àquele meio. Era quase ridículo que tivesse encontrado seu lugar entre alguns conhecidos e outros completos estranhos. Ainda mais depois de uma experiência de quase morte.
— Quer dizer que vocês começaram a festa sem mim? — Deu mais uma chance à sua piada quebra-gelo. — Isso não é lá muito educado, é?
Steve o ajudou a se sentar em uma poltrona gasta, com um buraco que se mostrava um tanto desconfortável sob sua coxa direita. Se nenhuma mola o atacasse, provavelmente já poderia considerar aquilo como uma grande vitória.
— É bom te ver acordado — Nancy disse, com um sorriso que aprofundava as marcas de expressão ao redor da boca, simulando uma pequena covinha no canto direito.
— Acho que te devo agradecimentos pelos curativos. E suponho que precise agradecer pelos remédios a Joyce?
A mulher ergueu a mão, acenando um cumprimento rápido. Eddie meneou a cabeça, em reconhecimento.
Dustin logo voltou, entregando a ele um prato com três fatias de pão branco intercaladas por maionese em excesso e um pouco de queijo e peito de peru.
— Foi o melhor que eu pude fazer — justificou-se. — Esses trogloditas acabaram com a comida toda.
— É por isso que Murray e Dmitri já foram ao mercado — disse um homem com voz grossa e postura séria. Eddie o reconhecia das histórias e imagens que tinham se espalhado pela cidade no último ano, exibindo o herói de Hawkins para quem quisesse ver. Ele parecia bem mais magro do que nas fotos.
— Você não deveria estar morto?
— Acho que posso falar o mesmo de você, garoto — Hopper respondeu, com um sorriso de canto. — Não tínhamos a melhor das esperanças de que você fosse acordar. Eles te tiraram muito machucado lá de baixo.
— Agradeço pelo resgate. Se me lembro bem das histórias dos meninos, vocês devem ser os irmãos: Jonathan e…
— Will, o Sábio — o garoto se apresentou, arrancando um sorriso largo do mestre. Dustin sempre lhe dissera que a única pessoa capaz de retirá-lo do posto de aficionado número um por Dungeons & Dragons era o Byers caçula. Mal podia esperar para começar uma longa e complexa campanha, agraciado pela paixão dele.
— Eddie, o Banido.
— E essa é a El — Will apontou para a garota, que acenou de forma quase tímida.
— A garota dos superpoderes — Eddie concluiu, observando descaradamente cada centímetro dela em busca de qualquer sinal que a fizesse parecer menos… Bom, como uma adolescente normal. Se é que isso existia. — Qual é a do cabelo?
Mike abaixou o olhar, mordendo o canto da boca de forma desconfortável. Se não estivesse tão curioso, o mais velho teria tido tempo para se arrepender profundamente ao perceber a possibilidade de ter tocado em algum assunto sensível.
— Papai raspou — ela respondeu simplesmente, levando a ponta dos dedos à linha na nuca em que os fios terminavam.
— Bom, bem-vinda ao clube dos filhos com pais de merda. Se serve de consolo, te deixa bem fodona.
— Poderosa — ela e Max disseram ao mesmo tempo, trocando risadas que o fizeram sorrir também.
— É bom finalmente conhecê-los — Eddie disse. — Mas será que agora alguém pode me explicar o que foi que aconteceu?
Imediatamente, procurou o rosto da pessoa que mais parecia gostar de ouvir a própria voz no mundo. Nunca tinha visto alguém que amasse tanto falar. Sabia que não precisaria de força de convencimento alguma para instigá-lo a começar a contar a história.
E foi exatamente o que Dustin fez.
Depois de perguntar do que exatamente Munson se lembrava, Dustin recapitulou rapidamente a cena com os demobats, explicando que Eddie havia sido mordido por vários deles e apagado logo na sequência, depois de — em suas palavras — ter tentado se matar estupidamente.
Os morcegos tinham se dissipado graças a Eleven, que havia batalhado contra o Vecna — também conhecido como 001 ou Henry — em uma imersão na mente de Max enquanto a ruiva estava sendo atacada pelo monstro.
— Viu só o que eu disse? Fodona.
Henderson dispensou a interrupção e prosseguiu com seu monólogo, explicando que tinham conseguido enfraquecer o vilão com o ataque duplo: Nancy — com suas armas que não deixavam de impressionar Eddie —, Robin e Steve contra a manifestação corpórea e Eleven usando os poderes contra o suposto “irmão”. Pelo jeito, tinha mesmo encontrado alguém com um histórico familiar ainda mais confuso e exorbitantemente mais disfuncional que o dele.
Enquanto isso, Hopper — que estava no Alasca, depois de ter sido sequestrado pelos russos no ano anterior —, Joyce, Murray e Dmitri tinham sua própria cota de demogorgons no extremo norte do continente para destruir.
Max estava bem — ou ao menos tão bem quanto poderia estar uma pessoa que vinha sendo perseguida por um psicopata que não tinha sequer educação suficiente para pedir licença antes de invadir a mente de alguém. Lucas havia conseguido colocar os fones com Kate Bush no volume máximo no limite de tempo para impedir que ela entrasse para a contagem de vítimas fatais.
Jason, aquele desgraçado, tinha conseguido se colocar perto demais de colocar absolutamente tudo a perder. Havia ameaçado Lucas com uma arma que o mais novo, habilmente, havia sido capaz de chutar para baixo de um dos enormes armários da casa Creel. Tomado pela reverberante adrenalina e o desespero de ver Max sendo erguida do chão mais uma vez, mostrou-se muito mais forte do que jamais pensara ser e conseguiu controlar o playboy a tempo de trazer a ex-namorada de volta, bem em frente aos seus olhos.
Depois do que aconteceu, Jason havia tido tempo de presenciar as lágrimas de Max, agradecendo sem parar por ter sido salva, enquanto Lucas a abraçava da forma mais protetora que ele já havia visto. Ao que tudo indicava, a cena o tinha feito se culpar ainda mais por não ter podido ajudar a própria namorada, Chrissy Cunningham. Havia deixado Hawkins junto dos pais no dia anterior, sob o pretexto de estendidas férias em família antes que o ano letivo começasse na faculdade, onde teria seu tempo completamente tomado pelos estudos e pela cobrança dos treinos de basquete, especialmente sobre os bolsistas do esporte.
— Menos um otário na cidade — Eddie disse, bebendo um longo gole de água que Max havia pego para ele. — Deve ser por isso que o ar até parece mais limpo.
— É que mais da metade do oxigênio da atmosfera estava sendo usada só para manter o ego dele vivo — Dustin explicou.
— Tem razão — o mais velho concordou. — Resumo da história: tudo deu certo e eles viveram felizes para sempre.
— Só que não — Mike interveio. — Não acabou ainda.
— Um está fraco — El explicou. — Mas ele não desistiu ainda. Está se recuperando para voltar mais forte.
— Ele aprendeu as nossas fraquezas e nós as dele — Nancy continuou. — Com certeza está procurando um jeito de superar as suas.
— E nós precisamos superar as nossas — Max concluiu.
— Tipo ser acusado de três assassinatos — Dustin disse, recebendo um carinhoso dedo do meio de Eddie.
— Não sabem a saudade que eu sinto de quando a única coisa pela qual me culpavam era por não conseguir tirar uma nota melhor que D em química.
— Talvez a gente tenha conseguido dar um jeito nisso — Robin falou. — Na parte do assassinato, não da escola. Nisso, com certeza eu pelo menos jamais poderei ajudar.
— Acho que já está na hora, Jim — Joyce o avisou, tocando seu ombro em um rápido afago. — Consegue ligar a televisão?
Hopper ajeitou as antenas e se certificou de que o aparelho estivesse bem conectado àquela tomada que, constantemente, decidia dar mau contato. Com dois tapinhas — intensidade pertinente apenas na visão dele — no tubo, o aparelho deu uma leve rangida e finalmente funcionou. O homem sintonizou no canal de interesse e aumentou o volume.
Eddie estava longe de poder dizer que entendia o que estava acontecendo. Porém, vendo a atenção extrema que todos deram para a tela, decidiu que fazia sentido que simplesmente fizesse o mesmo. Raramente — muito raramente mesmo — era melhor só ceder e cumprir as convenções sociais. Era mais fácil.
Não era como se ele fosse o maior fã de programas de televisão, ainda mais da parte séria deles. Mesmo assim, arriscaria dizer que aquele deveria ser o noticiário da tarde. Talvez já tivesse visto aquela repórter em algum momento em que o tio Wayne estava assistindo ao jornal. Além dela, reconhecia o atual chefe da polícia de Hawkins, um representante das forças armadas (que ele só sabia quem era porque tinha o nome e a condecoração bem evidentes em sua farda) e um homem com jaleco bordado ‘Dr. Owens’.
O ambiente era carregado não só de seriedade extrema, mas também de câmeras enormes em excesso e fiações de microfones tentando capturar quaisquer sons daquele que parecia ser um momento crucial para toda a cidade.
O chefe da polícia testou o microfone com certeiros toques do indicador, antes de pigarrear de forma indiscreta e começar a falar.
— Caros cidadãos de Hawkins, esperamos encontrar todos bem e, antes de tudo, oferecemos nossas condolências às famílias daqueles que perdemos em meio a toda essa bagunça que tomou nossa cidade nos últimos dias.
O longo silêncio que veio em seguida só serviu para tornar o ambiente ainda mais cheio de tensão. Todos sabiam que era um movimento vindo do mais puro respeito pelo luto de tantos que não tiveram a mesma sorte que eles, mas ninguém era capaz de ignorar o batuque dos próprios corações nervosos, ansiando por informações, esclarecimentos ou qualquer notícia minimamente boa que pudesse relativizar o desastre. Ou ao menos dar um tempo a ele para se manter estático; não piorar.
— Assim como todos vocês, o que sempre quisemos foi uma resposta para tudo isso. E, nos últimos dias, trabalhamos incansavelmente, junto ao exército e às melhores equipes forenses e científicas, para obter essas respostas.
“Nós avaliamos as cenas, as testemunhas e, acima de tudo, os possíveis mecanismos envolvidos nas mortes. Quem viu os corpos ou ouviu as histórias sabe que não existe nenhuma forma humana de criar aquelas fraturas sem que fossem expostas, sem que houvessem outras lesões, cortes ou qualquer outra coisa. Foi isso que levou às hipóteses dos conspiradores de plantão sobre pactos de seitas adeptas ao satanismo ou qualquer outra coisa. O culpado, claramente, não era humano.
Peço que o doutor Owens venha explicar as descobertas feitas por sua equipe, em parceria com os melhores profissionais da ciência da qual nos orgulhamos nesse país.”

— Para que todo esse suspense? — Robin reclamou, batendo os pés repetidamente contra o chão. Steve forçou as mãos sobre seus joelhos, obrigando-a a parar.
— Shh, Owens vai falar — Hopper avisou.
— Caro povo de Hawkins, é nosso trabalho prover pela saúde e bem estar de vocês, atendo-nos ao que há de mais importante e confiável em termos de evidências nas práticas médicas e científicas. Tudo o que fazemos segue os mais estritamente controlados padrões americanos da ciência que tanto nos enche de orgulho.
“E foi avaliando cautelosa e incansavelmente os corpos, procurando padrões e justificativas, que encontramos o causador de tudo isso. Como o xerife disse, não é uma morte dependente de mãos humanas. A culpada, na verdade, é uma bactéria.”

Robin gargalhou com a informação, recebendo olhares de desaprovação de todos ao seu redor.
— Uma bactéria que, inclusive, já conhecemos há décadas. A Clostridium tetani é a responsável pelo tétano e pelas tristes perdas recentes que tivemos.
“Identificamos uma mutação na toxina, tornando a doença ainda mais grave. As contrações musculares são tão exageradas, que podem causar fraturas. A posição de um corpo acometido, chamada opistótono, é tão estranha e extrema que, com certeza, chocaria a qualquer um que a visse. Honestamente, não me surpreende que tenha sido associada a algum tipo de envolvimento sobrenatural. É mesmo difícil compreender algo que sequer conseguimos ver. Ao menos não sem um microscópio.”
— Inacreditável. — Steve conseguiu rir.
— Nós temos vacina para isso e recomendamos que chequem seus registros vacinais e a tomem se ainda não o tiverem feito. É a melhor proteção que temos nesses tempos difíceis. Além disso, tomem cuidado redobrado com cortes, feridas abertas, materiais enferrujados e todas aquelas coisas que já sabem. Vamos nos ajudar e nos cuidar. Não precisamos de histeria, apenas de atenção. Obrigado por ouvirem!”
— Tenho que dar algum crédito para esse desgraçado — Hopper falou. — Ele sabe contar uma história.
A única mulher entre tantas figuras masculinas ocupou o lugar central, cumprimentando o doutor Owens com um sorriso educado e um aceno de cabeça. Havia alguma coisa de familiar naquele gesto. A sensação na boca do estômago era quase a de um déjà-vu.
— Boa tarde a todos, eu sou a doutora Cunningham e participei ativamente desses trabalhos. Temos tempo para algumas dúvidas de vocês, que adorarei tentar responder da melhor forma.
Bom, isso explicava muita coisa.
— Eu não fazia ideia de que a mãe da Chrissy fazia parte do grupo científico — Nancy comentou.
— Acho que ninguém fazia — Steve admitiu. — Droga, deve ser difícil demais perder a filha, saber a verdade e não poder fazer nada além de perpetuar uma história que seja ao menos convincente.
Nenhuma pessoa no mundo seria capaz de conceber a experiência horrível de estar na pele da senhora Cunningham naquele momento.
Joyce repousou o braço sobre os ombros do filho caçula, deixando um beijo longo e angustiado em sua cabeça. Só uma mãe poderia imaginar a dor de outra. E, mesmo assim, ao fim do dia, Will pelo menos estava ali. Chrissy não tivera a mesma sorte.
As perguntas começaram a pipocar.
— Como vocês explicam a história de que os corpos das vítimas levitaram?
— Isso nunca aconteceu. Como o doutor Owens explicou, existe uma posição muito típica dos pacientes em tetania, que dá a impressão de que o corpo esteja sendo erguido de forma antinatural. Levitar, contudo, com certeza não passou de forma de expressão. Uma palavra pobremente empregada.
— E os garotos acusados de terem se envolvido em algum tipo de pacto satânico?
— Bom, apesar de o meu papel ser na parte científica e não na policial, acho que posso dizer com toda a certeza do mundo de que eles não têm culpa de nada. Como já foi dito, trata-se de uma infecção. Uma bactéria que se tornou mais agressiva do que estávamos acostumados.
“E acreditem quando eu digo que, como mãe, tudo o que eu mais queria e precisava era de uma resposta para o que aconteceu com a minha garotinha. Se alguém pudesse ser colocado como o culpado, eu seria a primeira a querer que essa pessoa pagasse por isso. Não posso nem dizer que me ateria à justiça da privação de liberdade. Eu provavelmente desejaria coisa pior. Bem pior”
— admitiu, com lágrimas nos olhos. — “Mas é uma doença. E, como mãe e cientista, eu posso dizer que cumprirei o meu papel estudando a melhor forma que temos de combatê-la.”
Eddie só se deu conta de que os próprios olhos estavam lacrimejando quando percebeu que estava difícil de enxergar a televisão para a qual tinha olhado estática e fixamente nos últimos minutos.
Passou os polegares sem muito cuidado pelos olhos, livrando-se das malditas lágrimas que tinham decidido aparecer sem aviso prévio. Mal podia acreditar que estava realmente ouvindo aquelas palavras. Por mais que a sociedade ainda devesse odiá-lo — eles já o faziam antes, de toda forma —, ele tinha basicamente sido absolvido da culpa pela pessoa que mais deveria importar.
Esperava que aquela declaração fosse o suficiente para limpar a sua barra e convencer a todos de sua inocência, era verdade. Mas, acima de tudo, tinha abraçado a oportunidade de se livrar ao menos de parte da culpa que ele mesmo havia colocado sobre si. Não havia nada que ele pudesse ter feito a mais. Ele precisava deixar que o peso sobre os ombros se dissipasse aos poucos, até que lhe restasse apenas o pesar da perda e o trauma da vivência de toda aquela situação, não o fardo carregado pela responsabilização por algo que jamais esteve sob o seu controle.
Seria um processo longo e difícil, ele sabia bem disso. Mas também acreditava, com todo seu ser e a pouca fé que tinha na vida, que ele chegaria lá. E sabia que não era o único que acreditava.
Dustin se empoleirou de maneira pouco graciosa no firme braço da poltrona que o amigo ocupava e o abraçou, apertando o braço só um pouco mais ao seu redor, correndo a mão esquerda para cima e para baixo, em uma demonstração de carinho e reconhecimento, além de um lembrete: passariam por aquilo juntos. Ele não iria a lugar algum. E, como tinha prometido, jamais mudaria. Jamais permitiria que as circunstâncias ou as dificuldades o moldassem.
— Obrigado — Eddie sussurrou, sem ter certeza de que o garoto podia ouvi-lo.
— Estamos juntos nessa, ok?
— Todos nós — Steve disse. — Independentemente do que aconteça.
— Uau, Harrington. Nunca pensei que você fizesse o tipo sensível.
— O garoto está certo — Hopper tomou a dianteira. — Se vamos parar essa coisa e tentar impedir que ela faça mais vítimas, teremos que trabalhar juntos.
Ninguém ousou discordar e também não o faria, de toda forma. Estavam mesmo juntos. E era acolhedor, em meio a tanto desespero, saber que poderia contar com aquelas pessoas. Às vezes família era mesmo algo que se construía, não que simplesmente existia por algum tipo de acordo genético firmado entre sangue. Nenhuma daquelas pessoas compartilhava qualquer parentesco com ele e, mesmo assim, Eddie sabia que daria o seu sangue por qualquer um deles sem pensar duas vezes e também sabia que a recíproca era verdadeira. Já tinham provado isso.
O som da televisão voltou a chamar a atenção deles, interrompendo o momento antes que a demonstração de sentimentos se tornasse constrangedora demais.
O chefe de polícia havia retomado o posto principal, ao lado do representante militar. Pigarreou mais uma vez no microfone antes de declarar:
— Edward Munson e todos os demais membros do Hellfire Club estão, sob todos os âmbitos legais e jurídicos, oficialmente livres de qualquer investigação ou suspeita de crimes ou outras afrontas à nossa sociedade.
“Qualquer perseguição, ataque ou ato violento cometido contra qualquer um deles será duramente repudiado e reprimido, da mesma forma que seria a qualquer outra pessoa da cidade. Não incitamos a violência e não toleraremos o ódio contra inocentes.
Já temos problemas demais entre nós. Não precisamos de mais intrigas e desafetos. Permaneçamos unidos nesse momento difícil. Hawkins precisa disso.”

A pequena sala explodiu em gritos e polvorosa; as tábuas de cabana quase parecendo se questionar se aguentavam mesmo permanecer em pé, abrigando a todos, ou se estavam mais dispostas a desistir e fornecer a eles um ambiente aberto.
As comemorações mal podiam ser compreendidas. Eddie ainda estava atônito, em choque demais para participar da comemoração que os amigos faziam ao seu redor, puxando-o para abraços apertados e se lembrando, tarde demais, de não apertar as áreas machucadas.
— Você está livre, Eddie — Robin disse, gesticulando enormemente. — Livre!
O rapaz sorriu, concordando.
Livre.
Nunca pensou que sentiria tanta satisfação ao ouvir apenas cinco letras. Tão simples, mas que significavam tudo.


🎸🤟🏻🎲



— A Clostridium tetani é a responsável pelo tétano e pelas tristes perdas recentes que tivemos. Identificamos uma mutação na toxina, tornando a doença ainda mais grave. As contrações musculares são tão exageradas, que podem causar fraturas.
Em algum canto do outro lado da cidade, ela adicionou exatamente três cubos de gelo — nem um a mais; nem um a menos — ao chá gelado de pêssego antes de tomar um longo gole.
— Ok, parece bom o suficiente.
E bastou um clique rápido para desligar a televisão.





— Pronto?
Eddie balançou a cabeça de leve, incerto sobre o que dizer. Depois de tudo pelo que tinham passado, parecia no mínimo ridículo se sentir inseguro com algo que sequer era um de seus problemas. Mesmo assim, sentia o coração batendo mais rápido, os gritos de ansiedade de cada um de seus músculos retumbando ao longo de suas costelas. O nervosismo não lhe caía bem, mesmo que se mostrasse de forma tão frequente.
Ao mesmo tempo, não era como se ele tivesse grandes escolhas. E, se tivesse, ainda escolheria estar bem ali, mesmo sem saber o que o universo lhe reservava. Depois de enfrentar algo tão surreal quanto o Vecna, não era como se ele já não estivesse amplamente consciente de como o destino seria sempre uma caixinha de surpresas. Mesmo que da forma mais bizarra possível.
— Tão pronto quanto eu poderia estar — ele respondeu, recebendo um aperto no ombro.
Encontrou os olhos de Steve, assentindo de forma a lhe transmitir algum conforto. O sorriso de Dustin acompanhou o gesto, lembrando-o daquilo com que ainda precisava se acostumar: não estava mais sozinho.
— Bom, aqui vamos nós — Eddie disse, respirando profundamente duas vezes antes de bater o punho contra a porta, ouvindo o som agudo dos seus anéis tilintando contra o aço do trailer.
Ele guardou a mão, enfiando-a no bolso traseiro da calça enquanto a outra puxava um dos elos da corrente a ela pendurada, sem muito cuidado. Em um segundo de atenção e consciência, se obrigou a interromper o movimento, antes que conseguisse estourar o passante de uma das suas melhores — e poucas — calças jeans.
Esperou pelo que não deveria ter passado de dois minutos, mas parecia no mínimo duas horas se arrastando pela eternidade. Independentemente do que um relógio pudesse lhe dizer, era tempo o suficiente para tirar a conclusão mais óbvia:
— Bom, ele claramente não está em casa.
Dustin parecia aflito, quase suplicando a si mesmo para que suas sinapses fossem um pouco mais rápidas. Apenas o suficiente para encontrar qualquer resposta que pudesse servir como uma mensagem de conforto a quem não precisava de mais motivos para sofrer. Honestamente, nenhum deles precisava.
— Ele deve ter saído. Talvez para o mercado. Vai ver acabou o leite, o pão ou qualquer coisa assim. Com certeza ele volta logo.
— Com certeza — Steve concordou. — Ou só está trabalhando.
— Ele não tem turno nesse horário hoje — Eddie esclareceu, sofrendo ao ter de admitir aquilo para si mesmo. Com uma risada irônica que só fingia facilitar a situação, ele esboçou sua própria hipótese: — Ou ele simplesmente aproveitou para ir embora dessa cidade desgraçada assim que se livrou do peso da vida dele. Com certeza é tudo mais fácil sem um garoto problemático e incompetente atrapalhando tudo.
— Eu não acredito que você realmente pense isso — Dustin reclamou. — Você é uma das melhores pessoas que eu conheço e qualquer um teria sorte de te ter por perto.
Munson delineou um sorriso triste. Estava exausto. Infelizmente, era difícil não deixar que seu pessimismo viesse à tona. Seu histórico não era dos melhores.
— Bom, ele não seria a primeira pessoa a decidir que me abandonar era a melhor opção.
— Eddie?
Ao ouvir seu nome sendo chamado, ele precisou de alguns instantes para perceber que a voz era conhecida, mesmo que não fosse a de nenhuma das duas pessoas que o tinham acompanhado até ali. Nem que fosse completamente contra sua essência e decidisse engajar o primeiro suspiro de sua vida literária lendo todos os dicionários de todas as línguas do mundo, ele jamais encontraria palavras suficientes para descrever a sensação de escutar aquele timbre relativamente grave, quase como se a voz viesse diretamente da base de seus pulmões. A voz de quem havia vivido muitas coisas. Grande parte delas por sua causa.
— Tio Wayne. — Sua voz falhou, enquanto ele se virava para encontrar os olhos marejados do mais velho.
Wayne Munson segurou o rosto do sobrinho com as duas mãos, emoldurando-o entre seus dedos apenas para garantir que seus olhos não estavam lhe pregando peças, misturando sua esperança à exaustão e criando alucinações de tudo o que ele mais desejava.
O homem fungou, deixando os lábios tremerem ao tentarem, em vão, segurar as próprias lágrimas. Em um puxão indelicado, trouxe o jovem para si, abraçando-o com força. Seu carinho, imediatamente, foi retribuído à altura.
— Ah, meu garoto — disse o tio, com a voz embargada. — Eu tive tanto medo. Pensei que pudesse ter te perdido de vez. Passei todos os últimos dias correndo pela cidade, colando esses panfletos em todo poste, muro e loja que eu encontrava. Eu não queria acreditar que o pior tivesse acontecido. Meu Deus, até eu estava começando a acreditar que talvez não devesse me agarrar tanto a esperanças vazias. Mas eu sabia. Eu sempre soube que você voltaria para casa.
Dustin usou a manga da blusa longa para secar o canto dos olhos, escondendo o próprio lacrimejamento antes que Steve percebesse e seus sentimentos pudessem ser motivo para piadas mais tarde. Mas Harrington estava na mesma situação. Só sabia disfarçar um pouco — não muito — melhor as suas próprias emoções.
— Você procurou por mim — Eddie murmurou, como se precisasse ouvir cada uma daquelas letras para se convencer de que era verdade.
— Por várias horas, por vários dias. Imprimi tantos desses panfletos que devo ter esgotado o estoque de tinta de todas as copiadoras das duas gráficas da cidade. Mas eu teria ido até Evansville se precisasse de outra impressora, sem pensar duas vezes.
— Eu sei que iria. — E, de fato, sabia. Talvez não tivesse admitido para si mesmo apenas porque preferia esperar o pior do que correr o risco de se decepcionar ao criar expectativas em cima de outras pessoas; mas ele sabia. Aquele homem teria ido até o inferno para encontrá-lo se pudesse.
— Eu estou tão feliz em te ver. — Em meio às lágrimas, o sorriso do mais velho se parecia com a coisa mais próxima de orgulho que ele já tinha visto. — As coisas não são as mesmas sem você por aqui.
Eddie gargalhou.
— Por isso eu tive que voltar. Não podia deixar o senhor aqui, sozinho, vivendo a vida sem ter que me aguentar te enchendo o saco.
O mais velho riu também, aproveitando o momento de leve descontração para limpar os olhos.
— Claro que não. O que seria de mim sem você para tocar aquela guitarra barulhenta nos piores momentos?
— Provavelmente uma pessoa com um sono melhor. E uma audição também.
— Sem dúvidas — Wayne concordou, com um sorriso. — Mas com certeza menos feliz.
Dustin suspirou de leve, pensando em como seria se tivesse que encontrar aquele homem de traços cansados e olhos bondosos e dizer a ele que os panfletos não o ajudariam. Era tarde demais e o retorno jamais estaria no plano daqueles que partiam de vez. A última coisa que desejaria na vida seria se tornar o amaldiçoado mensageiro do caos. Ainda mais quando suas notícias, em resumo, fossem concluir que ele havia perdido a última pessoa no mundo que poderia chamar de família.
— Bom, acho que a gente já vai — Steve ousou interromper o momento, depois de pigarrear de forma pouco discreta. — Vamos dar um tempo para vocês se ajeitarem e colocarem o papo em dia.
Não que realmente houvesse muito que pudesse ser dito sem que os dois terminassem em um silencioso debate interno sobre questões psiquiátricas e a possibilidade de abraçar os conceitos de loucura que faziam os proclamados médicos manterem instituições de contenção para aqueles que se encaixavam naquele estranho padrão pouco coeso que mais parecia a construção pobre de uma desculpa ruim para subjugar os outros em vez de depreender algum trabalho em seu real benefício e reinserção social.
No fim das contas, algumas coisas eram melhores se deixadas quietas. Afinal, não se cutucava um vespeiro com um galho, da mesma forma que não se falava sobre o Mundo Invertido com quem não precisava saber dele. E eles realmente esperavam poder poupar suas famílias e amigos de ter que descobrir, como eles, da pior forma possível.
— Ah — Eddie soltou, sem pensar muito. Estava quase à beira de um abismo, onde se sentia apavorado de ficar novamente sozinho, longe de quem havia sido sua companhia nos últimos tempos. Contudo, ele precisava se lembrar de que estava voltando para um ambiente seguro. Eram duas porções diferentes de sua família, mas eram família. No maior e mais importante sentido da palavra. — Tudo bem. Obrigado. Por tudo.
Dustin abriu um daqueles sorrisos largos que faziam seus olhos parecerem prestes a sumir em seu rosto, entre as bochechas redondas e os cachos brilhosos que insistia em esconder sob diferentes bonés.
Wayne se desvencilhou dos braços do sobrinho, olhando-o com atenção antes de se afastar, apenas para garantir que ele estava ali mesmo e não era uma peça sendo pregada pelos seus velhos olhos. Caminhou, então, até os outros dois e os abraçou também. Steve precisava admitir que fazia muito tempo que não recebia um daqueles. Não daquele jeito que gritava gratidão e quaisquer outras coisas que pudessem vir amarradas a ela no que mais parecia um embrulho de presente.
— Obrigado por terem trazido meu menino de volta para casa.
— Não tem pelo que agradecer — Steve respondeu. — Ficamos felizes em vê-los juntos e bem. Tenham um bom dia!
Deu um leve empurrão no ombro de Dustin para ver se ele se tocava de que essa era a deixa para irem embora e deixarem os Munson em paz e seguiu para o carro, esperando que o garoto o seguisse.
O mais novo logo acenou agitadamente e foi atrás de Steve, que já o aguardava sentado atrás do volante.
— Podemos parar para tomar sorvete antes de voltarmos? — Henderson pediu.
— Eu não sou sua babá!
— A vida é uma merda, Steve! Você não deveria estar recusando a alegria de tomar um sorvete.
Ele bufou, passando os dedos pela porção dos cabelos que insistia em cair sobre sua testa. Já teria se livrado dela por ser tão irritante se não soubesse o quanto era exatamente aquela jogada de cabelo que compunha mais da metade de seu charme. Não seria nada sem ele.
Nem sem um amigo questionavelmente mais novo para tornar seus dias agitados.
— Ok, vamos tomar sorvete.
— Obrigado pelo convite. Você paga.
O som do motor pegando no tranco serviu como um protótipo de abafador para todos os palavrões que Harrington verbalizou em seguida, pensando seriamente se não valia a pena defenestrar a pessoa que ocupava seu banco do carona.


🎸🤟🏻🎲



Para quem havia supostamente passado três dias inteiros desacordado, era quase trágico e um pouco cômico que ele houvesse praticamente desmaiado e dormido necessárias e relaxantes dez horas seguidas. Tinha certeza de que estava com o rosto inchado pela pressão contra o fino travesseiro.
Mas era sexta-feira e, por mais que ele sentisse um enorme desejo de ampliar e antecipar o seu final de semana, também sabia que já tinha perdido aulas demais para quem verdadeiramente tinha a intenção de receber um diploma em forma de declaração de liberdade ao final do ano letivo.
E realmente acreditava que conseguiria conquistá-lo. Só precisaria se esforçar um pouco mais.
Certo, talvez bem mais. Mas ele conseguiria. Tinha certeza de que sim. Agora podia dizer que, literalmente, tinha sobrevivido a pesadelos bem piores e mais mortais que o Ensino Médio. Mesmo que o páreo fosse duro.
Encontrou um par de calças jeans limpas e uma blusa do Black Sabbath e se encaminhou para o pequeno banheiro do trailer, encontrando a sua própria imagem refletida.
Poderia dizer que não se reconhecia ali, naquele pequeno espelho de moldura enferrujada, com um arranhado grosseiro bem no meio do vidro barato. Parecia poético de uma forma quase chique dizer algo assim.
Mas não era verdade. E, por mais que as coisas bonitas de serem ditas raramente fossem completamente sinceras, ele ainda prezava pela honestidade e não sabia ser qualquer coisa além daquilo que realmente era.
Ele se reconhecia perfeitamente. Os ossos da face um pouco mais profundos, as olheiras ainda não tendo desistido totalmente de ir embora, o cabelo bagunçado e a cara de sono de quem não podia se vangloriar muito disso, mas só tinha uma palavra em seu repertório que pudesse chegar perto de definir aquilo que ele sentia a respeito de si mesmo: sobrevivente .
Eddie respirou fundo, olhando profundamente para si mesmo, como se pudesse cavar através do espelho um buraco ao fundo de seus próprios olhos. Queria encontrar alguma coisa a mais ali dentro, alguma faísca ou sinal de que havia esperanças em seu futuro. Tudo o que ele mais queria - e precisava - era de motivos palpáveis para acreditar em si mesmo.
Retirou a blusa velha e furada que usava como pijama e encontrou as provas de que todas as imagens em sua mente eram mais reais do que ele gostaria. Em um gesto curioso e beirando o completo sadismo, levou as pontas dos dedos às feridas em suas costas.
Xingou sem nenhum pudor ao sentir a ardência dolorosa da lesão aberta correndo por cada um de seus nervos, sentindo a agonia correndo até um ponto focal em sua nuca, parecendo prestes a puxar seus cabelos como se a dor da ferida já não fosse castigo o suficiente.
E ele sabia que encontraria outro buraco igual ou pior na perna assim que retirasse a calça.
— Meu Deus, o que foi que fizeram com você?
Foi só quando a voz de Wayne Munson entrou de penetra no banheiro que ele percebeu o erro infantil de ter se esquecido de fechar a porta do minúsculo cômodo.
— Parece pior do que realmente é. — Foi a única coisa que ele conseguiu dizer, mesmo sabendo que aquele era um dos poucos momentos em que decidira ceder e abraçar uma mentira. Era no mínimo equivalente à imagem grotesca e perturbadora e, possivelmente, até pior.
— Você se meteu em briga? Está todo acabado!
O tio estava completamente transtornado, olhando para a carne do próprio sobrinho se mostrando onde não deveria. Quase parecia com a maquiagem que se esperaria em um filme de terror.
Eddie apenas expressou uma risada fraca, sabendo que era tudo o que poderia fazer para tentar suavizar a situação.
— Devia ter visto o outro cara.
Ou os outros caras.
Wayne deu um tapa leve em sua nuca, repreendendo-o da forma que havia se acostumado a fazer desde seus engenhosos e estressantes anos de pré-adolescência.
— Quantas vezes eu já te falei para não se enfiar em brigas? Ainda mais essas feias. Para você ter saído assim, com certeza ele não estava de brincadeira. Ele estava armado? Tinha uma faca ou algo assim?
Não, só presas que pareciam ainda maiores quando se afundavam em sua pele e acenavam um cumprimento indesejado para cada um de seus músculos expostos.
Considerando a dor aguda e devastadora que sentira no momento do ataque, ainda estava no mínimo impressionado que aqueles malditos dentes não tivessem também algum tipo de veneno.
— Já foi. Acabou — ele garantiu ao tio, esperando que mais uma mentira servisse para tranquilizá-lo. Não queria lhe servir mais preocupações em uma bandeja prateada. — Não vai acontecer de novo.
Wayne respirou fundo, soltando o ar de forma pesada. Repousou uma das mãos sobre o ombro do sobrinho, sentindo-o um pouco mais ossudo do que se lembrava. Sua memória, contudo, já vinha mostrando há um tempo não estar mais vendo a luz de seus melhores dias. Ao menos, ele preferia acreditar que era essa a questão. Não conseguia sequer imaginar tudo pelo que o garoto havia passado nos dias em que tinha desaparecido. Não podia nem começar a fazê-lo sem se sentir mortalmente culpado por não ter sido melhor e capaz de evitar que aquilo acontecesse.
— Deve ter sido difícil. Ainda mais com todo mundo acreditando que você era algum tipo de assassino cruel.
— Todo mundo mesmo.
— Não eu — o homem assegurou. — Eu nunca duvidei por um segundo sequer da sua absoluta inocência. Meu medo sempre foi sobre o que os outros e seu ódio cego poderiam fazer.
Eddie assentiu. Não precisava contar que tinha precisado se esconder. Não precisava falar que tinha sentido fome e, nos poucos momentos em que conseguira alimento, não havia sido nada de grande valor nutricional. Não precisava dizer que tinha sido ameaçado com armas e facas e não precisava enumerar todas as vezes em que se encontrou afogado no próprio medo de morrer; simplesmente ir embora sem ter feito nada do que pudesse se orgulhar.
Por outro lado, não precisava questionar a veracidade de nenhuma das palavras que acabara de ouvir. Tinha plena convicção e confiança de que era a verdade. E se a pessoa que melhor o conhecia em todo o mundo sabia que ele jamais seria capaz de fazer algo tão asqueroso e monstruoso como aquilo, então ele provavelmente não era mesmo a pessoa horrível que os outros insistiam em pintar.
Sorriu de forma meio torta, sentindo o úmido desespero querendo escorrer pelos seus olhos na forma que mais o apavorava. O único pensamento que tomou sua mente foi o de que precisava se livrar do tio imediatamente, antes que desabasse com tanta força que nem o chão seria capaz de acolher a sua queda.
— Eu vou tomar um banho, então se você não estiver a fim de ver coisa pior nesse corpinho, acho que vou fechar a porta agora.
O tio soltou uma risada que parecia ter sido formada em algum lugar bem no meio da parede de sua garganta. Balançando a cabeça, antes de sair, apenas disse:
— É realmente muito bom te ter de volta.
Sob a corrente fresca de água que escorria em cascatas pelos seus ombros, Eddie permitiu que eles se curvassem levemente para frente. Um último lembrete de sua vulnerabilidade e de sua mortalidade antes de precisar escondê-la novamente.


🎸🤟🏻🎲



Eddie travou a bicicleta com um cadeado e se afastou da cena por dois segundos para admirá-la. Geralmente, pegava o ônibus ou simplesmente ia andando até algum ponto em que um dos meninos do ‘Hellfire Club’ pudesse parar e lhe dar uma carona no meio do caminho.
Mas, naquele dia, ele tinha cedido ao ímpeto de pegar a bicicleta velha — e que, para ser sincero, não estava exatamente do tamanho certo para as pernas que tinham se alongado com o estirão dos últimos anos — e guiá-la até o colégio. Parecia ter criado um apego novo ao meio de transporte de duas rodas desde que aquela havia sido a sua única opção do lado de lá da realidade. Tinha até certa graça em permanecer com a bicicleta de modelo infantil. Talvez ele ficasse com ela, no fim das contas. Ele não tinha dinheiro para comprar outra de qualquer forma.
— Ora, ora, ora, se não é o esquisitão assassino de volta.
Munson olhou por cima do ombro, encontrando um dos garotos do time de basquete. Ele não havia desperdiçado seu tempo e massa encefálica decorando seu nome, mas sabia, sem dúvidas, que era um dos seguidores cegos do antigo ‘deus da popularidade’, que atendia pelo nome de Jason Carver.
Honestamente, era um alívio que ele tivesse ido embora. Seria um problema a menos. E levando embora a abelha rainha, talvez seus zangões fossem obrigados a encontrar um caminho diferente. De preferência, um que passasse bem longe do dele.
— Você não tem mesmo nada melhor para fazer? — Eddie perguntou. — Nossa, deve ser uma vida bem deprimente. Sinto muito, de verdade.
O garoto devolveu seu olhar com raiva e um quê de ferocidade que não foi capaz de abalar Eddie enquanto só arqueava uma das sobrancelhas, como se o estivesse desafiando a falar mais uma merda que fosse. Mas ele estava sem palavras. Não tinha nada mais a dizer, além de esboçar um resmungo de irritação e seguir frustrado para dentro do colégio.
— Gostei de ver, campeão.
Dessa vez, era Mike Wheeler que se aproximava, exibindo a famigerada camisa com o desenho de um demônio vermelho, exibindo seus chifres orgulhosos. Atrás dele, Will Byers trazia uma mochila nas costas e a mesma blusa.
O mais velho não pôde evitar o sorriso ao olhar para eles, prensando os olhos e levando a mão à testa a fim de se proteger ao menos minimamente dos ofuscantes raios de sol.
— Apesar de eu estar adorando a vista, não sei se é uma ideia muito boa andar com uma dessas por enquanto.
Mike balançou os ombros, exibindo a mais completa indiferença.
— Deixa eles falarem. Eu não vou tirar algo que eu gosto da minha vida só para agradar esse bando de otários. E você também não deveria.
Eddie olhou para a blusa de banda, arrependendo-se imediatamente da escolha. Quase morrer, contudo, tinha ensinado-o a valorizar ainda mais a possibilidade e a iminência de ter um dia seguinte. E outro depois dele. E assim por diante.
Teria tempo para corrigir o seu próprio deslize amanhã.
— Eu acho que, então, é minha função dizer: bem-vindo ao Hellfire Club.
Will aceitou a mão estendida, apertando-a imediatamente.
— Acredita que ele nunca jogou sem a gente? — Mike perguntou, obrigando Will a assentir em concordância.
— Estou meio enferrujado depois do tempo na Califórnia.
— Eu falo que aquele lugar destrói as pessoas — Eddie reclamou, em tom de deboche. — Mas o bom filho à casa torna. E vai ser um prazer te receber de volta ao nosso universo. Você vai perceber que é igual andar de bicicleta: a gente nunca esquece de verdade.
— Vai começar a campanha nova hoje? — Mike retomou o assunto. — Sem aquela porcaria de Vecna dessa vez, de preferência.
— Da próxima vez que formos dar uma porrada nesse filho da puta, eu espero que seja pessoalmente e não em um jogo. Mas sim, vamos começar outra campanha. Uma em que ele nem sonhe em aparecer.
— Acho que o Lucas não vai — Will avisou.
— De novo? Mas que merda o Sinclair tem de tão importante para fazer toda hora? — Eddie reclamou, a voz se tornando um pouco aguda demais. — Pensei que ele fosse tomar vergonha na cara e parar de ficar seguindo aqueles idiotas do basquete depois de tudo o que aconteceu.
— Ah, não — Mike se apressou em corrigir a informação, sem poder deixar o amigo receber certa culpa por aquilo que não era realidade. — Ele vai ao cinema com a Max. Eles combinaram antes de ela quase, bem… Morrer.
O rapaz engoliu em seco, concordando. Depois de tudo pelo que tinham passado, jamais seria capaz de julgá-lo por querer ficar por perto de quem amava. E, honestamente, estava feliz de ver que eles estavam se reaproximando. Lucas sabia ser bastante chato com o seu chororô de mágoas e coração partido desde que tinham terminado. Faria bem ao grupo como todo que ele finalmente pudesse voltar a ser feliz.
E ele meio que estava torcendo para que aquilo tudo desse certo. Existia um pedacinho de si que realmente se apegava aos últimos fiapos céticos de romantismo que restavam dentro de si.
— Nesse caso, acho que podemos abrir uma exceção.
— Não vai ameaçar arrancar o braço dele por faltar?
Eddie riu, sabendo que aquela havia sido a exata ameaça lançada da última vez.
— Não. Eu estava pensando mais em adiarmos a campanha para amanhã. Eu ainda quero esse pirralho presente no jogo. Ele merece ser amassado pela irmã. E eu daria qualquer coisa para presenciar esse momento deliciosamente imperdível.
Will e Mike sorriram um para o outro, concordando com a proposta sem nenhum resquício de hesitação.
— Parece bom para nós.
— Mas se ele não aparecer, eu realmente vou arrancar um dos braços dele.
— Só vai sobrar um mesmo — Byers comentou. — Erica provavelmente já vai ter dado conta do outro antes de vocês terem tempo para isso.
Eddie riu largamente.
— Essa garota é completamente maluca. Um belo dia, ela vai ter matado todos nós.
Antes que a conversa sobre a integrante mais nova do grupo pudesse continuar, o alarme ensurdecedor machucou seus tímpanos, avisando com a mesma aflição sobre o início do período. Com um cumprimento rápido, os três se separaram para suas respectivas salas, esparramadas pelo terreno da Hawkins High School.
Munson demorou algum tempo a mais para encontrar a sua aula. Se já não era muito bom de memória e localização antes, estava ainda mais confuso com seus horários e para onde deveria ir agora que tinha se ausentado por um tempo.
Quando o fez, teve de interromper seus passos de súbito, entrando imediatamente em um dilema entre seguir em frente e virar as costas enquanto havia tempo, fingindo que não tinha visto o diretor Higgins bem ali, esperando-o como se ele fosse algum tipo de predador, apenas aguardando de forma relativamente impaciente pela sua presa do dia.
— Senhor Munson, seja bem-vindo de volta.
— Merda — ele murmurou para si mesmo.
Realmente não tinha mais como fugir.
Colocou o seu sorriso mais falso no rosto, fingindo uma gratidão que nunca sentiria em relação àquele homem. Mal via a hora em que finalmente poderia se livrar dele.
— Sei como é relevante que o senhor assista à aula de História da América, mas preciso roubá-lo por alguns instantes. Tudo bem? Prometo ser o mais breve possível.
Eddie pensou em dizer ‘Não, muito obrigado’, mas não tinha funcionado em nenhuma das últimas vezes. Duvidava muito que agora, por um milagre, fosse ser diferente.
Resignado, seguiu os passos do diretor, recebendo um misto de olhares curiosos e outros carregados de descrença, como se ele fosse muito cara de pau em ter a coragem de aparecer ali. Como se ele fosse o vilão da história.
— Pode entrar — o diretor acenou, indicando a porta.
Ao empurrar, a contragosto, o corpo para dentro do ambiente, Eddie não demorou para desistir de entrar e se virar para o homem:
— Já tem gente aqui esperando pelo senhor. Deve ser importante. Eu posso esperar, nos falamos mais tarde.
O senhor Higgins o interrompeu, impedindo que ele saísse completamente ao projetar seu corpo para frente.
— Não, não. É isso mesmo. Por favor, sente-se. Tem uma garrafa de água também, se você quiser se servir.
Ótimo. Era uma reunião coletiva. Ele tinha conseguido dar um jeito de tornar a situação ainda pior do que já era. Eddie tinha que aplaudi-lo por conquistar esse grande feito.
— Senhor Munson, essa é a senhorita .
Quando Eddie puxou a cadeira ao lado da garota, arriscou olhá-la. Sua intenção era usar apenas uma curta fração de segundos em um gesto de educado reconhecimento e seguir sua vida sem ter que se importar com mais uma coisa. Mas algo o impediu. Ela o impediu.
Tinha cabelos longos — como os dele — e bastante alinhados no penteado — ao contrário completo dos dele. Seus olhos pareciam fitá-lo com a mesma curiosidade, desafiando-o em uma disputa para proclamar quem cederia primeiro àquele ‘Jogo do Sério'. E, Deus, ele odiava perder.
— Talvez já tenham se conhecido — o diretor falou, em um tom que quase beirava a linha muito tênue entre o que ainda era uma afirmação e o que passava a ser um questionamento.
— Acho que não — Eddie disse, finalmente quebrando o contato visual entre eles.
A garota deu um sorriso vitorioso e discreto antes de concordar:
— Definitivamente nunca nos vimos antes.
Não. Definitivamente não. Ele se lembraria. Aquele não era um rosto que sua mente se permitiria esquecer. E, mesmo assim, o que mais o intrigava era que havia alguma coisa ali; algum detalhe que a fazia se parecer estranhamente familiar, mas de uma forma quase incompreensível e indecifrável. Eddie só parecia completamente incapaz de arriscar dizer o que era.
— A senhorita … — o diretor começou, mas foi imediatamente interrompido pela garota.
, só . É o suficiente.
— Ok, a senhorita já estudou aqui em nosso colégio antes, por isso pensei que vocês talvez pudessem se conhecer.
— Mas eu repeti — Eddie falou, sabendo que o motivo era sempre esse.
— Eu também — ela respondeu simplesmente.
— Eu repeti duas vezes — acrescentou, recebendo uma risada sublime em resposta.
— Nesse caso, acho que você ganhou mesmo, campeão.
— Ela era uma das nossas alunas mais brilhantes — o senhor Higgins explicou. — Infelizmente, acabou perdendo o ano depois de problemas familiares e teve que sair da cidade por um tempo.
Eddie não poderia estar mais confuso. Parecia que tinha sido convidado por engano para uma festa em que não deveria estar, onde nenhum dos assuntos lhe dizia respeito de forma alguma. Talvez estivesse sendo mantido ali como objeto decorativo.
— Eu realmente sinto muito por seja lá o que tenha acontecido com a sua família. E não quero mesmo soar insensível, mas onde exatamente eu entro nessa história? Eu tenho aula, sabe? De uma história que realmente eu preciso ouvir.
se limitou a rir, enrolando os dedos no próprio colo.
— Não se preocupe, Edward — disse. — Eu queria estar aqui tanto quanto você.
— É só Eddie — corrigiu, entre dentes.
— Ok, Eddie — ela consertou seu suposto deslize. — Isso não foi ideia minha, mas aceitei colaborar. Espero que você também possa fazê-lo.
Ele não estava entendendo mais nada. Com certeza sua fisionomia entregaria isso com facilidade total para qualquer um que por ali passasse.
— Posso explicar — senhor Higgins interveio. — Como eu vinha dizendo, ela sempre foi uma aluna brilhante, mas enfrentou esse momento conturbado, que lhe roubou mais tempo do que todos nós gostaríamos. é provavelmente a nossa melhor chance de conseguir uma boa vaga em uma universidade concorrida e precisamos desse resultado para propaganda mais do que nunca. Hawkins não vive um de seus melhores momentos e não podemos nos dar ao luxo de não tentar conquistar novos estudantes que mantenham o colégio em sua plena função.
“Para um bom currículo, contudo, como o senhor bem deve saber, é necessário ter uma ampla gama de atividades extracurriculares dentro das mais diversas temáticas. As mais importantes são aquelas de algum impacto direto na vida dos outros, como trabalhos voluntários, causas sociais, monitorias e outros.”
Eddie quase podia ver um círculo literal se fechando bem em sua frente. Estava começando a enxergar exatamente aonde aquela conversa começava a desembocar seu destino e não estava nem um pouco contente com o iminente desfecho.
— Ela precisa das horas de atividade complementar e o senhor, sinceramente, precisa de toda e qualquer ajuda que puder receber para tentar passar de ano. Sejamos honestos, senhor Munson, suas notas não andam muito melhores do que as dos anos anteriores e temo que nós dois saibamos muito bem como eles acabaram.
Eddie jogou o corpo contra o encosto da cadeira, gargalhando com a proposta.
— Esse é o seu jeito de suavizar a oferta de uma professora particular? Porque não tem necessidade mesmo. Sinto muito, mas a resposta é não. Eu posso cuidar das minhas provas.
— Ninguém aqui está duvidando de sua capacidade — o diretor começou, mas Eddie sabia bem reconhecer as suas formas de tentar se desviar da realidade, sempre tentando se fazer de gentil ao te dar os maiores socos diretamente na boca do estômago. — Só queremos ajudar. Pense nisso como uma via de mão dupla, você também a estará ajudando. Todos são beneficiados nisso.
Ele ainda não parecia contente. Persistia completamente relutante em aceitar, por um segundo sequer, aquela proposta. Essa lenda de que era uma relação de interesse concomitante não parecia acabar bem nunca. E ele não era exatamente a melhor pessoa para aceitar a piedade alheia.
Por outro lado, entretanto, o alerta sobre a possibilidade de falhar mais uma vez tinha acendido todas as sirenes em sua mente, que rodavam e piscavam, barulhentas com os avisos de mais um fracasso. Ele não podia se permitir um luxo desses. Não de novo.
Aquele seria o seu ano. Independentemente do que aquilo lhe custasse.
— E então?
ajeitou levemente o tecido amarrado sob a gola da camisa, que Eddie não sabia se deveria definir como uma gravata, um laço ou algum tipo de cadarço estranho. Sua vontade era de desalinhar o acessório novamente, de propósito, apenas para testar o incômodo e a irritação consequentes que ele, de alguma forma, sabia que viriam.
Ela ergueu as sobrancelhas para ele, esperando uma resposta.
Não era como se as coisas realmente pudessem piorar na sua vida, era?
— Que se dane — ele respondeu simplesmente. — Não vou ser o culpado por não te conseguir suas horas.
Ela meneou a cabeça lentamente, em concordância. De alguma forma, Eddie se incomodou por perceber que aquela parecia ser exatamente a resposta que ela estava esperando. De repente, queria dar um jeito de voltar atrás e retirar absolutamente tudo o que tinha dito. Substituir por uma piada inconveniente, algum deboche pouco educado e romper para fora da sala como um trovão.
Mas sentiu que não podia mais escolher um atalho naquela trilha, quando a ouviu dizer:
— Excelente. Me encontre amanhã, às duas da tarde, na cafeteria a dois blocos daqui.
Antes que Eddie pudesse inventar uma desculpa melhor do que o seu clube de RPG para não se tornar ainda mais a chacota favorita do diretor, ela já tinha ido embora.
E ele precisava destruir um pouco mais sua reputação e avisar aos meninos que teriam de começar uma hora depois do esperado.
Por causa da escola.




Ele olhou mais uma vez para a fachada do estabelecimento.
Não sabia ao certo o porquê. Estava tentando confirmar que estava no lugar certo antes de passar vergonha ou simplesmente tentando tomar coragem de dar aquele maldito último passo? Porque, honestamente, ele sabia que aquele era o lugar. Hawkins não era exatamente a cidade mais ampla e cheia de opções do mundo; sequer era uma das maiores de Indiana. E ela tinha sido bastante clara ao dizer que era a cafeteria a dois blocos do colégio. Ele só encontraria outra se caminhasse por mais um quilômetro.
E não. Ele não queria andar mais. Não era à toa que educação física era uma matéria que ele odiava.
Junto com todas as outras.
Entretido demais enrolando os dedos nas correntes afiveladas no passador da calça, ele não percebeu a movimentação logo ali, ao seu lado.
— E aí? Essa é uma daquelas crises epilépticas de ausência? Achei que era uma coisa que praticamente só acontecia com crianças.
Eddie talvez tivesse se assustado mais com a presença súbita da garota ao seu lado se tivesse sido capaz de entender ao menos uma palavra do que ela havia acabado de dizer.
— O quê?
deu de ombros, evidenciando ainda mais o corte geométrico de sua camisa azul. Seus lábios se curvaram nos cantos, apontando para baixo em vez de para cima como faria uma pessoa normal.
— Deixa para lá. É só que eu te vi parado aí feito uma estátua nos últimos três minutos e achei que era uma boa vir te resgatar antes que algum pombo te confunda com um poste e te faça de banheiro.
— Você estava me vigiando?
— Bom, eu estava lá dentro e tinha um maluco parado na calçada, olhando para cima. Fica meio difícil de não perceber uma coisa dessas por essas janelas enormes.
— Então você anda mesmo prestando atenção em mim. Que honra.
Ela soltou o ar de forma rápida e forte pelas narinas, em um rascunho de risada sarcástica que ele já sabia que sempre estaria por ali, lembrando-o de como ela sempre estaria se reafirmando brilhantemente em uma posição inalcançável de superioridade.
— Como eu disse, eu estava prestando atenção no cara que parecia um perseguidor ou pervertido ou assassino ou todas as anteriores. Bem no meio da rua, sabe? As pessoas não iriam demorar para começar a estranhar e assumir o pior. Acho que você não deve estar querendo voltar a ver a polícia tão cedo.
Como podia ser tão irritante ser obrigado a concordar com alguém? Eddie mordeu o lábio inferior com força, sentindo a dor aguda causada pelos próprios dentes.
— Então você me fez um favor — concluiu. — Que gracinha.
— E poderia fazer outro se você entrasse para começarmos a estudar.
Ele não conseguiu se impedir de soltar uma bufada de sincera frustração. Suas reprovações não eram apenas uma questão de preguiça, negligência ou procrastinação. Estudar e aprender, frequentemente, eram ações simplesmente difíceis demais. E ele não sabia se estava realmente preparado para ter que dividir a frustração completa desses momentos com outra pessoa. Ainda mais uma com quem ele não dividia sequer um simples vestígio de intimidade ou afinidade.
— Você quer mesmo fazer isso? — Eddie perguntou, provavelmente agarrando-se à sincera tentativa de se livrar do constrangimento a seguir, o qual sabia ser inevitável. — Deve ter coisas muito melhores para fazer com o seu sábado.
deu de ombros. De novo. Ela deveria ter algum problema, uma dor, uma tendinite, um desvio postural, a porcaria de um espasmo, qualquer coisa. Aquilo era frequente demais para ser normal.
— Você ouviu o diretor — respondeu simplesmente. — Preciso das horas complementares e uma monitoria soa incrivelmente bem no currículo para a universidade.
“E precisava ser comigo?” — ele quase perguntou, mas decidiu ter um pouco de orgulho próprio e se esquivar da justificativa que ele conhecia bem. Era ele quem precisava de ajuda. Eram as notas dele que estavam abaixo do desejado mesmo depois de ter passado por cada uma daquelas aulas pela terceira vez. Ele sabia de tudo isso bem o suficiente para não precisar ouvir aquelas palavras de novo.
— Nesse caso, acho que é melhor entrarmos — ele disse. — Quanto antes começarmos, mais cedo acabamos com essa tortura.
Ela riu alto, uma gargalhada um pouco acima do tom e que, estranhamente, parecia se encaixar perfeitamente a ela.
— Você já está louco assim para se livrar de mim? Que charme. Totalmente engrandecedor de espírito.
— Se isso for algum indício de que você trouxe Shakespeare para a nossa sessão de estudos, eu infelizmente vou ter que ir embora. Esqueci que tinha compromisso.
— Que tipo de compromisso?
— Vou ficar de babá de uns pirralhos.
— Por que é que eu não acredito nisso por um segundo sequer?
— Deveria, porque meio que é verdade.
Só meio, porque ele não era babá alguma e os pirralhos tinham quinze anos. Talvez pudesse usar Erica como desculpa. Nesse caso, onze anos.
Não… Ainda não pareceria suficientemente convincente. Sem contar que Erica provavelmente agrediria todos eles se os ouvisse dizendo uma coisa dessas. E seria da forma mais dolorosa possível.
Verbalmente. Do jeito carinhoso que só ela sabia fazer.
— Mas, então, Edward… Vamos fazer isso ou não?
Eddie apertou os olhos, respirando profundamente. Mesmo contando vagarosamente até dez, ele ainda não foi capaz de impedir que a reclamação escapasse por entre os dentes ao dizer:
— Eu já disse que é só…
— Eddie — ela completou, sorrindo da forma mais descaradamente inocente possível. — É, eu sei. Vamos?
Ela tomou a iniciativa, empurrando a porta de madeira que ia de encontro com um pequeno sinete, avisando a todos os presentes de sua chegada, como se fosse um grande evento. Munson revirou os olhos antes de segui-la em direção a um dos mais dolorosos métodos de tortura ancestral que ele tivera o desprazer de conhecer em vida. E isso estava vindo de alguém que ainda sentia dores constantes nas várias cicatrizes e rasgos feitos em seus músculos e pele. Ele ainda preferia aquela ardência dos infernos do que qualquer que fosse o plano de para aquela tarde.
Quando deu por si, ela o esperava em uma das mesas, sentada em frente a alguns livros, um caderno cheio de anotações, uma porção de canetas coloridas e um muffin de mirtilos que já havia sido levemente mordido.
— Pode se sentar. Os livros não vão te atacar.
— Eu não teria tanta certeza disso — murmurou, despejando o corpo na cadeira livre.
ignorou o comentário para não ter que dizer o óbvio, esclarecendo que o único jeito de um livro didático machucá-lo seria se ela decidisse testar suas habilidades esportivas, encarnasse o jogador profissional da NFL que havia escondido em algum canto dentro de si e arremessasse algumas centenas de páginas em brochura bem no meio de sua cabeça.
A verdade era que estava bastante claro que ela precisava assumir a dianteira da situação e começar de algum lugar porque a iniciativa jamais partiria dele. Munson parecia bastante confortável com a ideia de só continuar fitando o teto, contando quantas vezes o ventilador girava acima de suas cabeças. Possivelmente, torcendo com todas as suas forças para que o cenário catastrófico em que o objeto despencava ainda rodando e decepava sua cabeça se tornasse uma realidade.
Ela, por outro lado, não sabia perder tempo. Era um conceito que simplesmente não se encaixava à sua concepção de vida ou à sua rotina.
— Certo, então… Acho que podemos começar com história. Me diz o que você sabe sobre o processo de Independência dos Estados Unidos.
— Sei que foi em quatro de julho.
— Bom — ela o congratulou, esperando que isso pudesse servir de incentivo.
— E que tem churrasco e fogos de artifício.
A garota fez uma careta impaciente.
— Estou falando sobre a história, não sobre o feriado. O que você sabe sobre a história disso tudo? Como aconteceu, o porquê, quem estava envolvido… Qualquer coisa serve.
Ele cruzou os braços, apertando-os com o próprio nervosismo. Odiava a ideia de dar motivos para que outra pessoa o achasse burro. Ainda mais quando era alguém que parecia exalar gotas de absoluta inteligência no lugar do suor convencional. Talvez devesse tomar cuidado para não entupir os poros com o suco daquele cérebro gigante.
— Ok, eu sei que a independência foi em relação à Inglaterra, que mantinha esse território como colônia. Treze Colônias, aliás. E essa galera toda estava se desentendendo principalmente pelo aumento da exploração de matéria-prima e dos impostos para sustentar o crescimento industrial inglês. Tinham várias leis doidas; açúcar, selo, chá e tal.
Ela balançou a cabeça em concordância.
— E tudo o que você falou está certo. Eles também estavam bem irritados com o aumento de tropas inglesas na América, como essa tentativa de reforçar o controle e poderio, especialmente com o enfraquecimento da França por conta das disputas europeias.
Foi a vez de ele concordar. Fazia bastante sentido. Por que recuar e afrouxar o seu papel quando você tinha basicamente tudo ao seu favor para se colocar em uma posição ainda superior ao seu maior inimigo? Não tinha melhor jeito de levar uma competição em direção à vitória do que conseguir abrir pontos de vantagem na tabela. Ao menos, era algo assim que Lucas dizia sempre que tinha um jogo de basquete. Ele não havia se interessado o suficiente para tentar entender o que arremessar bolas em cestos de roupa suja tinha a ver com isso.
— E foi tranquilo conseguir a independência? Um acordo entre amigos em uma tarde de chá?
— Não, foi conquistada em guerra, com apoio da França. Inclusive a independência foi reconhecida pelo Tratado de Paris.
— E depois disso?
— O modelo americano adotado foi o de República Presidencialista, baseado no federalismo. George Washington foi o primeiro presidente.
fez aquilo de novo com a boca e, dessa vez, ele não fazia a mínima ideia do que aquele maldito gesto queria dizer. Mas que gigantesca merda. Estava simplesmente se constrangendo gratuitamente como entretenimento para outra pessoa?
Ela continuava olhando além, viajando por alguma linha do horizonte imaginária. Ele não tinha paciência ou paz de espírito suficientes para esperar qualquer que fosse aquilo que ela estava fazendo.
— O que foi?
Ela acenou rapidamente com a mão direita e se levantou, deixando-o ainda mais perdido enquanto se dirigia ao balcão.
Eddie estava desconcertado demais até para se sentir ansioso. Não tinha foco suficiente nem para bater os pés ritmadamente contra o chão, como costumava fazer basicamente o tempo todo.
Alguns instantes depois, ela voltou para a mesa com um sorriso e um muffin de mirtilo.
— Pronto — anunciou, como se magicamente tudo tivesse ficado claro como a luz do sol em um típico meio-dia de verão tropical.
— Você nem terminou o primeiro — ele se pegou falando alto, mesmo que aquela devesse ter sido uma observação apenas para si mesmo; uma demonstração do seu completo estranhamento.
— Não é para mim — ela disse, ainda sustentando aquele sorriso, enquanto estendia o muffin em sua direção. — Pega. É para você.
Eddie apertou o nariz e a testa, enrugando o rosto como se fosse um papel amassado.
Ele não se moveu. Ela se cansou de ficar ali esperando com o braço estendido e revirou os olhos.
— Pega logo. Você mandou bem, merece um docinho.
— Você está me dando um petisco por cumprir a tarefa?
— Eu chamo de reforço positivo.
— Eu chamo de adestramento — ele retrucou. — O próximo passo do seu cronograma é me mandar dar a pata ou fingir de morto?
Ele meio que esperava que fosse a segunda.
— Bom, se você não quer, o problema é seu. Eu só estava tentando ser legal, mas não me oponho a ficar com os dois muffins.
largou a nova aquisição na mesa e deu uma mordida no seu próprio bolinho, levando seu tempo para mastigar e engolir enquanto ele observava minuciosamente o movimento de cada um dos músculos de sua face.
— Por sinal, está ótimo — ela continuou, o rosto sustentando um deslumbramento forçado. — É incrível o tanto de coisas maravilhosas que a gente perde na vida simplesmente por ser orgulhoso demais, não é mesmo?
Eddie puxou rapidamente o seu muffin, em um movimento que soava exageradamente sorrateiro, como o de um felino arisco. estava segurando a risada, mas não era capaz de deter o sorriso vitorioso que abrilhantava seu rosto ao vê-lo parecer levemente surpreso ao comer um pedaço.
— Eu avisei — ela cantarolou, balançando a caneta roxa despreocupadamente no ar, como se o fato de estar certa não a enchesse de uma alegria inestimável.
— São bonzinhos — ele disse, limpando os cantos da boca na tentativa de se livrar de qualquer possível migalha remanescente.
— Não são só bonzinhos — ela respondeu, sustentando o sorriso. Aquele maldito sorriso estava começando a ficar incrivelmente irritante. Só não era mais irritante do que o fato de que havia algum tipo de magnetismo que não o deixava desviar o olhar dele por um segundo sequer. — Mas tudo bem. Vou deixar você continuar tentando se convencer de que não é uma das melhores coisas que você já comeu.
— Acho que você tem uma obsessão meio preocupante.
— Mirtilos são bons para o funcionamento cerebral e a memória — ela disse. — Talvez você devesse ter um pouco mais de respeito por eles.
Eddie encarou a massa salpicada de pequenas manchas roxas, questionando-se se poderia ser verdade aquilo que ela dizia. Ele não poderia saber, claro. Então só lhe restava acreditar. E dar mais uma mordida. Não era como se ele estivesse disposto a deixar passar qualquer coisa que pudesse ajudar.
E mal não poderia fazer, não é mesmo? A não ser que tivesse uma poça de agrotóxicos e ele descobrisse uma alergia a algum deles ou simplesmente conseguisse se intoxicar de forma irreversível e…
— Alô? — estava estalando os dedos na frente de seus olhos. — Terra para Munson. Você está viajando.
Eddie piscou algumas vezes, sacudindo a cabeça apenas poucos milímetros de um lado para o outro, como se precisasse se livrar fisicamente dos pensamentos que pareciam se recusar a deixá-lo em paz. Era frustrante o quão regularmente momentos como aquele se manifestavam.
— Desculpa. Não foi por mal.
— Não achei que fosse — ela respondeu rapidamente. — Isso acontece com frequência?
Ele sentiu uma torção na barriga, como se um nó estivesse sendo feito bem no meio de seu estômago. Não existia nenhum assunto em todo o universo sobre o qual ele gostaria menos de falar naquele momento.
— Mais ou menos.
meneou a cabeça vagarosamente. Eddie quis ter uma furadeira para abrir um buraco bem no meio do crânio dela e descobrir o que estava se passando lá dentro. Seu semblante, entretanto, permanecia inescrutável. Não havia uma pista sequer da direção para onde corriam os seus pensamentos erráticos.
— Quer continuar com história?
Ele arqueou a sobrancelha, levemente aturdido com a mudança brusca de foco. Era uma coisa quando ele mesmo pulava de um tópico ao outro em uma fração de segundos, mas era outra totalmente diferente quando alguém de fora o arrancava de uma linha de raciocínio e o empurrava diretamente para outra. Não dava para negar que o deixava um pouco desnorteado até se situar novamente.
— Tem outra coisa em mente?
— Qual é a sua próxima prova?
Ele tentou rabiscar um calendário em mente, buscando se situar no tempo o suficiente para responder à pergunta. Demorou um pouco, mas logo ele tinha a sua conclusão:
— Literatura.
— É a prova de ‘O Sol é para Todos’?
Ele queria bufar só de se lembrar. Em vez disso, apenas concordou com a cabeça.
— E você conseguiu ler o livro?
Como é que ele sequer começava a tentar explicar?
“Eu basicamente estive em coma nos últimos três dias. Sinto muito, eu estava preocupado demais em me esforçar para sobreviver e me esqueci de ler o livro.”
“Eu estava tentando descobrir como impedir que um ser sobrenatural matasse mais gente nessa porcaria de cidade que queria me matar.”
“Perdão, eu estava tocando Metallica para morcegos sanguinários no Mundo Invertido. Não deu muito tempo de ler.”
— Os últimos dias foram… — Infernais. Dolorosos. Mortais. Injustos. Insuportáveis. — …Difíceis.
piscou duas vezes, absorvendo a informação e a trabalhando mentalmente. Ela podia ter passado os últimos tempos meio distante da cidade e de seus problemas, mas ninguém que estivesse minimamente perto do olho do furacão poderia ter saído ileso, intocado pela enorme avalanche de informações, dúvidas e problemas.
Ela podia não saber muito, mas julgava saber o suficiente para entender que algo que provavelmente já seria difícil de se atingir em condições normais, seria ainda pior dadas as recentes complicações no processo.
— Imagino que tenha sido mesmo — concordou. — A questão da polícia, dos assassinatos. Deve ter sido completamente brutal ver e ouvir as coisas que você provavelmente viu e ouviu.
Eddie tamborilava os dedos incessantemente contra a própria perna. Nada do que ela tinha dito era mentira. Ele só não gostava de pensar nisso. Não precisava ficar remoendo as coisas e tornar a situação ainda mais incômoda do que já era. Era masoquista da forma mais inútil possível.
E a pior parte era que a opinião pública, por mais que machucasse, era o menor de seus problemas. Esse, porém, era o tipo de informação que ele precisava guardar para si. Não precisava adicionar ‘loucura’ à extensa lista de características que as pessoas pareciam tão ávidas a lhe pintar, como rótulos bem colados bem no meio de sua testa para quem quisesse ver.
— É. Com certeza não foi fácil.
— Sinto muito que você tenha passado por tudo isso. É assustador ver o que as pessoas são capazes de fazer com um prato cheio de ódio e desinformação.
— E por causa de uma bactéria — Eddie acrescentou, soltando uma risada desconexa pelo nariz.
Uma bactéria que atendia pelo nome de Vecna. Ou Henry. Ou Um.
Pensando bem, talvez “verme” fosse o desígnio mais apropriado para ele.
— Que loucura, não? Pensar que um bichinho que já fazia tanto estrago conseguiu sofrer mutações suficientes para se tornar ainda pior e, basicamente, virar um serial killer.
Era a mais completa loucura mesmo. Ela nem imaginava o quanto.
— Muito.
— Você precisa de ajuda com biologia?
Ele queria agradecer pela mudança de assunto, mas continuava sendo um tópico sobre o qual ele não queria muito falar. Não era como se ele tivesse muitas coisas sobre o que gostaria de conversar com uma pessoa que era, em suma, uma completa estranha.
Tudo bem. Era menos pior. Teria que servir.
— Na verdade, acho que é uma das poucas matérias em que eu vou bem — ele admitiu. — Bem para o meu padrão, não para o seu. Para você, eu devo ser patético nisso também.
Como se a lista já não fosse extensa o suficiente…
— Não te acho patético — respondeu imediatamente, sem precisar pensar duas vezes. — Na verdade, acho que você é bem mais inteligente do que pensa.
Eddie coçou a cabeça, sentindo os longos fios balançando na nuca por conta do gesto.
— Acho que, se eu fosse, não teria repetido duas vezes o último ano.
Ela brincou com o papel do muffin que outrora existira, dobrando-o em um leque descartável. Vinco após vinco, enquanto tentava encontrar as melhores palavras para dizer algo que pensava dever ser óbvio.
— A inteligência das pessoas não é definida pelas notas que elas tiram em provas.
— Bom, é o que define se eu consigo o meu diploma ou não. E não conseguir faz as pessoas acharem que eu sou burro, idiota, vagabundo, dentre outras coisas.
— Porque nosso sistema é completamente falho — ela prosseguiu imediatamente. Tinha um comichão de inquietação no peito, quase ávido por poder se engajar em uma discussão sobre algo em que ela acreditava com todas as suas forças, independentemente de quanto os seus esforços acadêmicos parecessem demonstrar exatamente o contrário. — Ele só avalia se você é capaz de fazer uma prova ou não. Isso não significa que você tenha aprendido. Quase todo mundo só decora a matéria na véspera para esquecer dois minutos depois de devolver a avaliação ao aplicador. Isso não é aprendizado e, com certeza, não é conhecimento.
“E, além disso, aquela folha de papel não se importa com você. Nenhuma daquelas questões pergunta como você está, se conseguiu ter uma boa noite de sono ou tomar um café da manhã nutritivo, nem se os problemas familiares te impedem de prestar atenção em qualquer coisa além deles. Dane-se o seu dia ruim. Dane-se a sua dor. Dane-se a sua dificuldade. Dane-se você.”
Eddie precisou piscar lentamente, com um quê a mais de força ao pressionar as pálpebras uma contra a outra. Dizer que estava chocado era quase um eufemismo.
Primeiramente, precisava admitir que eram palavras demais fazendo sentido demais e meio que era difícil de absorver todas elas juntas sem que se parecesse com um gancho cruzado no meio de seu queixo. Em segundo lugar, de todas as pessoas que tiveram o lastimável azar de pisar na face da Terra, a garota logo à sua frente representava com clareza a última de quem ele esperava ouvir aquilo tudo.
E, mesmo que quisesse compreender e acreditar em cada uma daquelas sílabas, ele também não conseguia impedir aquele cantinho maldito e autossabotador de seu cérebro de intervir com um comentário de dolorosa realização:
— Quando ”um dia ruim” resume todos os seus dias, talvez o argumento não funcione mais.
Mas ela não tinha acabado. Claro que não.
Ela tinha mais a dizer, sabendo que, além de não saber ficar quieta, também não sabia como sobreviver sem ser a pessoa a dar a palavra final em qualquer conversa.
— Mas não é só sobre isso, Munson. É esse o meu ponto. Existem tantos tipos de inteligência, sabe? Algumas pessoas são boas em provas, algumas são craques em esportes, outras são incríveis em relações interpessoais.
— E eu continuo não fazendo parte de nada disso.
balançou o indicador comprido em frente ao rosto dele, obrigando-o a seguir com os olhos os movimentos desconexos e hipnotizantes que não faziam nada além de cumprir o seu objetivo de chamar a sua atenção.
— Se você me deixar terminar de falar, vai entender aonde eu quero chegar.
Eddie fez uma reverência forçada, indicando que estaria calado e obediente da forma que se esperava de um súdito. Ouviria o que mais ela quisesse dizer sem se manifestar. Ou pelo menos tentaria. Não era fácil se impedir de discordar dela. Mesmo que fosse apenas para ver como sua respiração subia de frequência só um pouquinho, tornando-se simultaneamente mais forte e mais superficial. Isso porque ele nem tinha começado a pensar em como era divertido observar seu lábio superior se curvando de forma pouco convencional, deliberando meticulosamente sobre cada um de seus próximos movimentos como se o mundo fosse um eterno jogo de estratégia de guerra colocado bem no meio de um campo minado. Sem contar que…
Ok, ele estava perdendo o foco. De novo. Precisava voltar a prestar atenção. Só mais um pouco.
— Eu posso ter ficado longe por um tempo, mas eu tenho uma memória muito boa.
É claro que tinha. Ela era incapaz de ser ruim em alguma coisa.
Talvez seu defeito fosse esse, afinal: não ter lido o manual de instruções sobre como ser a droga de um ser humano normal.
— Eu me lembro de ter ouvido as pessoas falando sobre a sua banda e como você conseguia tocar uma música inteira na guitarra só de ouvi-la uma vez, sem nunca ter se dado ao trabalho de ver uma partitura sequer dela. Inteligência musical também é inteligência, Munson. Não existe vida sem arte e vice-versa.
Se ele tinha precisado de tempo para digerir tudo o que ela havia dito antes, precisaria de uma vida inteira para finalmente entender o que suas mais recentes constatações queriam dizer.
Eddie não era a melhor pessoa do mundo com palavras, era verdade. Entretanto, o que ele sentia quando lhe entregavam uma guitarra, um disco ou uma fita era indescritível o suficiente para que ele desistisse de fato de tentar. A música era tão indissociável da sua existência quanto era o sangue que corria em suas veias, arrastando células da mesma forma que as cordas carregavam as notas musicais que representavam tudo aquilo que ele não conseguia ou não queria verbalizar.
Algumas coisas imploravam para não ser ditas em voz alta. Mas quase sempre podiam ser cantadas, sentidas, gritadas a plenos pulmões em um microfone.
“Não existe vida sem arte e vice-versa.”
De repente, ele quase queria que tivesse um jeito de fazer mais uma tatuagem. Dessa vez, para gravar aquelas palavras no coração.
Não que ele fosse precisar. Podia não ter a boa memória de , mas, mesmo assim, nunca seria capaz de se esquecer daquilo.
Existiam alguns momentos na vida que eram cruciais na construção da história de alguém. Podia ser um trauma, uma decepção, um abandono… Eddie, infelizmente, podia dizer com total convicção que entendia bem de cada um deles.
Por outro lado, mesmo com o frequente modo de ver a vida sob as lentes cinzas dos óculos do pessimismo, coisas boas também representavam momentos que se perpetuavam na memória.
Um casamento, um aniversário, um cuidado de amigos… Eddie não era exatamente o melhor em — como a própria havia chamado alguns minutos atrás — relações interpessoais. Mesmo assim, tinha hoje o sossego no coração de saber que tinha encontrado o seu grupo. As pessoas que se preocupavam com ele como se ele fizesse parte de sua família. E, depois de tudo, ele meio que fazia mesmo.
Tinha se acostumado com as risadas escandalosas de Dustin e a forma especial que ele tinha de irritar todo mundo com seu tom quase presunçoso. Tinha se acostumado com Steve gritando de volta toda vez que o mais novo o irritava. Tinha se acostumado com Mike agindo como líder mesmo sem saber o que fazer e irritando Lucas por ter escolhido fazer um esporte. Estava se acostumando com a presença poderosa e forte de Nancy e com o jeito peculiar que Robin tinha de ser ela mesma. E ainda tinha Max, que estava bem, graças a qualquer que fosse o possível ser divino que olhasse pelas pessoas, mesmo quando não julgavam merecer. E, agora, Will, Jonathan, El, Hopper, Joyce…
Ele sabia que poderia contar com cada um deles, independentemente de quanto tentasse se afastar de forma quase inconsciente, evitando mais sofrimento quando as pessoas simplesmente decidiam ir embora de sua vida. Ele esperaria palavras de encorajamento e reconhecimento de todos eles, mesmo que à sua própria forma. Mas nada o teria preparado para recebê-las dos olhos brilhantes bem à sua frente, emoldurados por longos cílios que se batiam em uma batalha de dança suave.
era a última pessoa de quem ele esperava ouvir que não era um completo inútil. Talvez, por isso, essa fosse a primeira vez em que ele realmente acreditava por completo na pura sinceridade das palavras que ainda flutuavam em ondas por sua mente.
— Obrigado — ele disse baixinho, dividido entre a vontade de tomar sua palavra do ar antes que ela a ouvisse e a torcida ansiosa de que ela houvesse escutado.
Ela sorriu da forma mais sincera que ele já havia visto alguém sorrir em todos os seus vinte anos de vida.
— Não tem que me agradecer. Eu só disse a verdade. Você deveria se dar um pouco mais de crédito. A vida já é difícil demais para que a gente ainda fique se escorando pelos cantos, sentindo pena de nós mesmos.
Foi só então que ele se deu conta do que tinha ouvido no dia anterior, na sala do diretor. E de como tinha sido completamente insensível frente àquilo.
“Infelizmente, ela acabou perdendo o ano depois de problemas familiares e teve que sair da cidade por um tempo.”
E ele não deveria mesmo estar se intrometendo nisso agora. Primeiro, porque poderia fazê-la pensar que ele estava tentando demonstrar algum tipo de apoio emocional apenas por obrigação depois que ela foi tão legal com ele. Segundo, porque era simplesmente enxerido demais da parte de alguém que mal te conhece querer se inteirar de assuntos tão particulares que tinham sido deixados de propósito em suspenso. Seria pintá-lo como curioso.
E ele era mesmo. Então não conseguiu se interromper antes de perguntar:
— O que aconteceu com a sua família para você ter que ir embora de repente?
Para uma pessoa que constantemente parecia exalar tanta confiança, Eddie percebeu imediatamente todos os sinais de desconforto evidentes em sua linguagem corporal.
A direção do olhar, sempre compenetrado no seu como se tivesse delimitado o alvo perfeito para um tiro, tinha se abaixado. Os ombros e a postura impecável, digna de uma bailarina profissional, tinham se perdido em algum ponto no meio de seu caminho, curvados em direção ao seu imediato oposto. Ele não conseguia mais ouvir a respiração dela, mesmo que esse fosse o único foco de toda a sua atenção. , que sempre tinha uma resposta esperta e irreverente para tudo, estava sem palavras.
Eddie tinha colocado o dedo bem no centro de sua ferida e girado. E não podia estar mais arrependido de tê-lo feito.
— Minha mãe precisou voltar para perto da família por um tempo — foi a resposta dela. A voz despida de qualquer emoção, em uma entonação completamente neutra que não permitia que as palavras dissessem qualquer coisa a mais do que aquilo que faziam em sua forma literal.
Aquela era a resposta mais vaga que ele poderia ter recebido. O silêncio dela, contudo, deixou bastante claro que também seria a única.
E, como em um passe de mágica, como se um pedaço do filme tivesse sido queimado entre duas cenas completamente distintas, ela voltou a falar rapidamente sobre outras coisas, enchendo o peito novamente para abordar outros assuntos.
— Eu acho que o que mais interessa para você agora é essa parte da literatura. Tenta ler o livro, mesmo que seja pouca coisa, só para você conseguir se ambientar mais ou menos no tipo de narrativa, em como as personagens se apresentam e se comportam… Esse tipo de coisa.
Ele não teve tempo de se posicionar quanto à proposta. Ela sequer tinha respirado por mais de meio segundo antes de voltar a despejar substantivos, verbos e todas as outras classes de palavras cujos nomes ele precisaria se esforçar um pouco mais para lembrar:
— Eu vou tentar pensar em uma forma de conseguir te passar os pontos mais importantes do enredo e da mensagem da obra sem ficar aquela coisa muito tediosa, ok? Podemos partir daí na nossa próxima reunião.
se apressou em puxar um dos cadernos menores, correndo pelas folhas com uma velocidade admirável. Mesmo um pouco tonto, Eddie se deu conta de que se tratava de uma agenda. Por Deus, ela tinha cada segundo da sua vida organizado.
— Você consegue me encontrar na quarta-feira de tarde para a próxima sessão de estudos? Eu não tenho nada programado para a noite, então podemos estender um pouco se precisarmos.
A bola tinha ficado quicando logo no meio de seu caminho. Ele não conseguia evitar. Era mais forte do que ele.
— Esse é o seu jeito de me chamar para sair? Acho que foi um pouco menos discreto do que você pensou que seria.
revirou os olhos largamente, rabiscando ‘Edward Munson’ no período da tarde de quarta-feira, mesmo sem uma resposta definitiva. Por que parecia que a sua oportunidade de escolha não passava de uma mera ilusão? Um holograma mal feito de livre arbítrio.
— É o meu jeito de fazer o trabalho que me comprometi a fazer. E espero que ambos tenhamos bons resultados por isso.
Eddie sentiu o tapa na cara imediatamente. Mas ele encontraria algum jeito de se livrar do clima incômodo com uma piada sarcástica ou mais uma provocação, apenas para mostrar que estava decidido a não abandonar seu peão logo no meio do jogo.
Mais uma vez — já estava se tornando uma ocorrência frequente e irritante demais naquele dia —, ele não teve tempo de fazê-lo. Não pôde dizer mais nada.
Não quando Henderson tinha basicamente brotado como um demônio invocado bem ao seu lado:
— Eddie? O que você está fazendo aqui? E quem é essa?
Droga.




Droga, droga, droga, droga. Droga.
— Ahn, eu continuo aqui — Dustin disse.
— Como se eu não soubesse — Eddie grunhiu, irritado.
— Então, você só está me ignorando mesmo. Que maduro da sua parte.
soltou uma risadinha discreta, olhando para o outro lado. Não podia admitir que estava se divertindo horrores com a fisionomia de completo desespero de Munson. Era um pequeno e grato deleite para seu humor ligeiramente sádico. Mas só ligeiramente.
— Se manda, Henderson.
— Ah, me desculpa. Eu não sabia que você tinha posse de um estabelecimento público. Isso ainda é um país livre, seu idiota.
Eddie revirou os olhos. Eles estavam andando demais com a Erica. Era óbvio que esse convívio jamais poderia acabar bem para sua própria sanidade mental.
Mas também era certo que, quanto mais demorasse para arranjar uma resposta, mais aqueles olhos curiosos o encarariam sob a aba do boné que logo criaria vida própria. No mínimo, ele já sabia como chegar à escola e à casa dos Wheeler sozinho.
— Essa é a . Ela está me ajudando com a escola.
Dustin piscou algumas vezes, assimilando a informação. Olhou do amigo para a garota, da garota de volta para o amigo.
— Você contratou uma professora particular?
— Em que universo eu pareço ter condições de fazer isso?
O garoto começou a gesticular de forma mais enfática e quase descontrolada.
— Como é que eu vou saber? Já é tão inacreditável te encontrar estudando, ainda por cima em um sábado, que eu não duvido de mais nada.
Munson apoiou as mãos sobre a mesa da cafeteria e soltou a cabeça sobre elas. Honestamente, deveria tê-lo feito diretamente sobre a mobília. Repetidas vezes. Um traumatismo craniano era melhor do que aquilo.
, então, decidiu demonstrar um mínimo pingo de piedade e salvá-lo de seu completo desespero.
— Somos da mesma turma no colégio — explicou. — É um programa de monitoria desenhado pela diretoria.
— E como é que eu nunca te vi?
— Meu Deus — Eddie reclamou. — Você não consegue ficar um segundo sequer sem fazer perguntas?
— Acho que nós dois sabemos que a resposta é não.
— Porque você é um pirralho, Henderson. Por isso não sabe quem é. Você pisou pela primeira vez no Ensino Médio ontem e quer conhecer todas as pessoas.
— E eu não fiz o último ano — completou. — Voltei agora para Hawkins.
— Obrigado por me dar uma resposta educada, ao contrário de certas pessoas. — O mais velho revirou os olhos mais uma vez. Ainda não conseguia acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo. O universo devia odiá-lo muito para reunir todos os seus pesadelos em uma só tarde. — Bom, eu vim aqui para comprar uns biscoitos para o jogo, mas acho que não vai ter partida. Você deve estar muito ocupado estudando… Sei lá, anatomia humana. Ou as leis da física sobre a atração entre dois corpos.
— Pelo amor de Deus, sai da minha frente antes que consiga me fazer ser preso.
Dustin riu feito uma criança pentelha, contente em assistir aos resultados de sua própria iniciativa de destruição. Eram sempre frutos doces demais a serem colhidos.
Eddie, de fato, parecia prestes a voar no pescoço do garoto a qualquer momento. E alegaria legítima defesa perante a justiça.
Enquanto decidia a melhor forma de fazer um bom trabalho, rodava os anéis ao redor dos dedos, sentindo o gélido metal circundando seus ossos. Costumava ser uma sensação bastante reconfortante. Infelizmente, não era o suficiente quando ele estava prestes a cometer um homicídio.
— Acho que já deu o nosso horário de qualquer forma — interveio, impedindo o crime iminente. — Podem ir para a partida de sei lá o quê de vocês.
— Dungeons and Dragons — Dustin respondeu imediatamente. — Basicamente a melhor coisa que já foi inventada.
Ela balançou a cabeça, assentindo de maneira vagarosa. Parecia estar absorvendo as novas informações e calculando cuidadosamente todos os passos de suas próximas possíveis interações. Eddie quase conseguia ouvir o som das engrenagens em seu cérebro trabalhando de um jeito que, como sempre, fazia com que ele se sentisse lento demais para um dia conseguir compreender a velocidade com que as coisas se encaixavam em sua mente.
Então, ela contorceu os lábios, dando de ombros de forma discreta.
— Acho que realmente nunca ouvi falar.
— É um jogo de RPG de fantasia — Henderson explicou.
Eddie soltou uma risada anasalada. Fantasia, claro. Como ele queria que fosse mesmo apenas isso.
O mais novo simplesmente não se deu ao trabalho de reconhecer a pequena intervenção debochada. Tinha acabado de receber a oportunidade de falar mais e esta era uma proposta — mesmo que extraoficial — que ele não sabia recusar.
— Cada jogador tem um personagem específico, com características próprias e algumas habilidades. Todos agem juntos em algumas missões, que vão desde reconhecimento de cenário até grandes batalhas. São várias sessões até completar a campanha. Sério, é até difícil de explicar rápido assim. É uma coisa que você tem que conhecer para entender, sabe?
— Henderson — Munson chamou entre dentes. — Ela não está interessada.
Mais uma vez, sua presença foi completamente ignorada.
— Você deveria vir com a gente — Dustin sugeriu. — Tenho certeza de que vai gostar.
esboçou um sorriso simpático.
— Infelizmente, vou ter que passar o convite hoje. Minha mãe tem uma consulta importante e vou acompanhá-la. Mas quem sabe outro dia, certo? Você disse que demora para acabarem.
Dustin sorriu de volta, concordando com uma piscadela.
— Será muito bem-vinda quando quiser.
Eddie se levantou rapidamente, puxando Dustin pelo capuz do casaco de moletom.
— Ok, galã. Já chega. Ela já disse que está ocupada. Você precisa aprender a ter bom senso.
— Imagina, não me incomoda em nada — ela garantiu e se levantou também. Estendeu a mão para o mais novo. — Foi um prazer conhecê-lo, Dustin.
— Igualmente — respondeu e se virou para o amigo. — Gostei dela.
— Ok, nós vamos embora.
E depois de tê-lo empurrado, quando percebeu que o garoto finalmente tinha dado o braço a torcer e ido embora, Eddie se voltou para a sua monitora.
— Quanto eu te devo? Pelo muffin e tal.
— Nada. Já disse que faz parte da minha metodologia de ensino.
Meu Deus, ela sempre tinha que falar como uma pessoa de mais de quarenta anos com um pós-doutorado em andamento?
— Bom, nesse caso, eu agradeço. Pela aula e pela metodologia. Acho que nos vemos por aí.
ergueu apenas o canto dos lábios, em um pequeno sorriso que quase tentava se impedir de derramar a sensação vitoriosa que engolira.
— Pode ter certeza de que sim, Edward.
Não. Ele não ia reclamar e corrigi-la de novo. Não ia fazer nada disso porque era, obviamente, exatamente o que ela queria que ele fizesse. E ele não estava disposto a deixá-la perceber — mais uma vez — o quanto aquela pequena escolha de palavras conseguia irritá-lo profundamente. Ele se recusava a dar, mais uma vez, esse gostinho.
Então, só ofereceu seu meio sorriso mais falso e deixou o local, encontrando a pessoa que configurava a outra metade da nova dupla dinâmica daqueles que mais conseguiam incomodá-lo no mundo.
— Nem um beijinho de despedida na sua namorada? Você não é nem um pouco romântico, sabia?
— Henderson, eu juro que, se você não calar a boca, o próximo rosto nos cartazes de desaparecidos vai ser o seu.
— Eu estou falando sério. Você pode pedir umas dicas para o Steve. Ele tem sérios problemas de compromisso, mas sabe bem como tratar uma garota. Apesar de que isso meio que é culpa da Nancy. É, você também pode pedir conselhos para ela. Direto da fonte e tudo mais. Talvez seja mais seguro. Mas se não quiser arriscar com nenhum deles, você sempre vai ter um gênio amoroso bem aqui ao seu dispor — disse ao apontar para si mesmo — Juro, eu tenho os melhores conselhos.
— Você ouviu alguma coisa do que eu disse? Eu não estou blefando.
— Ah, está, sim. Você não consegue viver sem mim. Todos sabem disso.
— Pode ter certeza de que eu vou superar.
Dustin riu alto ao desviar do chute de Eddie. Deu a volta ao redor do amigo, cutucando suas bochechas e recebendo um tapa estalado em uma das mãos.
— Você só está todo estressadinho assim porque gosta dela.
— Meu Deus, Henderson, eu não mandei você ficar longe das drogas? Você não tem idade para estar mexendo com esse tipo de coisa. Seu cérebro já é bem zoado sem elas.
— E o seu mente mal para cacete.
— Olha a boca! E eu mal conheço a garota, de onde você tira essas coisas?
— Você não me engana, Munson.
Eddie nem ouviu. Ele já tinha se empolgado ao tentar elaborar verbalmente todos os motivos pelos quais aquela suposição era literalmente a coisa mais absurda que ele já tinha ouvido na vida.
— Não existe um mundo em que isso seria possível. Ela é arrogante, prepotente, toda engomadinha com aquelas roupas cheias de frescura até para ir para a escola e se acha o ser mais inteligente do mundo. Sem contar que ela é irritante pra caralho. Sinceramente, deve ser a única pessoa no universo que conseguiu a façanha de ser mais insuportável que você.
— E mesmo assim você me ama, então esse não é um argumento muito bom.
Eddie bufou, chutando um cascalho no meio-fio. Suas expectativas de ver o pedregulho voando para longe foram automaticamente frustradas quando ele caiu a apenas alguns passos do local em que estava no início. Ele quase quis gritar. Não era possível que nem isso ele conseguisse fazer em paz. Nem isso ele era capaz de fazer direito.
— Ela só está tentando me fazer passar em algumas matérias para poder colocar isso no currículo perfeito dela e entrar em uma faculdade incrível que deve ficar do outro lado do país. Não é como se fosse nenhuma santa caridosa.
Ele continuou andando, encarando os próprios pés contra as pedras.
— E, de novo, ela é chata pra caralho. Então não, Henderson, eu só estou fazendo isso para conseguir a porcaria do meu diploma e acabar com todo esse inferno de uma vez por todas.
— Para ir embora também?
O mais velho interrompeu os passos momentaneamente, como se a energia necessária para a caminhada precisasse ser redirecionada para que ele digerisse a pergunta que havia acabado de ouvir.
Depois de tudo o que tinha acontecido nos últimos tempos, ele sequer havia tido tempo para pensar realmente sobre aquilo. Após tantos anos em que seu único objetivo era sumir daquele fim de mundo o mais rápido que pudesse, colocar a guitarra nas costas e desaparecer por aí para o mais longe possível de todo aquele caos que não lhe servia, Eddie ainda não tinha parado para se perguntar se seus objetivos teriam mudado. Se, por algum motivo, agora teria razões para ficar.
Não tinha condições de começar a divagar sobre isso agora sem entrar em uma espiral de pensamentos tumultuados e mal escondidos sob um indiscreto manto de ansiedade. E esse era o tipo de coisa para se guardar para momentos de insônia injustificada no meio da madrugada — o momento perfeito para quem pensava demais, da forma menos saudável possível.
Ele precisava mudar de assunto.
Logo.
— Sua mãe deixou a gente usar a garagem da sua casa numa boa?
— Ah, sim. Ela está super animada para conhecer os meus amigos. O único problema é que ela provavelmente vai interromper o jogo para servir lanche. Ela é meio inconveniente.
Eddie quase se transformou no adulto racional que evitava ao máximo ser e disse para o garoto que ele deveria dar mais valor à mãe, aos seus lanches fora de hora e ao quão sem noção o amor e cuidado dela poderiam ser às vezes.
Mas ele engoliu o sermão. Sabia que não era por mal. Reclamar da mãe era simplesmente uma daquelas coisas que todo adolescente fazia, como se estivesse seguindo um tipo de sagrado livro de regras do que fazer após os doze anos. Era difícil não se ressentir ao menos um pouco por nunca ter tido a oportunidade de fazer o mesmo.
— Considerando que você não comprou a porcaria do biscoito que disse que ia comprar, acho que ela vai insistir no lanchinho.
Foi a vez de Dustin parar de andar subitamente, levando as mãos à cabeça antes de despejar uma enxurrada de ‘Merda, merda, merda’ como costumava fazer sempre que algo, por qualquer motivo que fosse, dava errado.
— A culpa é toda sua!
Eddie liberou uma risada alta e debochada.
— E como diabos isso é culpa minha agora?
— Você me distraiu — ele disse como se fosse a coisa mais irritantemente óbvia já dita em toda a história da humanidade.
— Eu que te distraí? — Ele gargalhou de novo. — Eu diria que foi você mesmo quem se atrapalhou.
— Claro que não. Se eu não tivesse encontrado a bizarra cena com a sua namorada, nada disso teria acontecido.
— Então, pronto. Tudo é sempre culpa dela.
Dustin deu uma risadinha.
— E você não negou que é sua namorada.
— Não estou disposto a gastar saliva com obviedades. Muito menos para discutir com você, pirralho.
Ainda tinham aproximadamente dez minutos de caminhada pelo caminho. Dustin não calou a boca por um segundo sequer. Ficar quieto realmente não era algo que constava em sua lista de habilidades e capacidades.
Ele já tinha elaborado todos os tipos de hipótese sobre o encontro de Max e Lucas na noite anterior, contado cada um dos detalhes sobre o último fracasso amoroso de Steve — com uma garota que estava fazendo faculdade de direito e descobriu que o rapaz estava usando de sua lábia para fingir que sua vida profissional depois da escola não se resumia a trabalhar em uma locadora com a melhor amiga —, descrito a fatídica cena do professor de economia tropeçando na lixeira da sala de aula e indo direto para o chão enquanto falava sobre o taylorismo e falado de algumas outras pessoas que Eddie sequer sabia quem eram, mas aceitava as fofocas de bom grado mesmo assim.
Na casa dos Henderson, entraram direto pelo acesso à garagem. Dustin estava disposto a se esquivar de sua mãe por quanto tempo fosse possível até que fosse inevitável o momento em que ela quisesse abraçar cada um de seus amigos e dizer que tinha ouvido falar muito deles — logo antes de confundir todos os nomes e inventar alguns por conta própria, provando que aquela era apenas mais uma daquelas coisas que se dizia simplesmente porque parecia ser o educado a se fazer. No fim do dia, quantas coisas não eram feitas somente por isso? Deveria ser uma lista infernalmente longa.
— Eu trouxe uma camisa nova para você — Dustin disse, arremessando a blusa para Eddie. — Não dá para começar sem uma Hellfire Club.
O mais velho agradeceu com um sorriso sincero e um pequeno meneio da cabeça. Tirou a jaqueta e a blusa e, então, desdobrou a camisa nova, extremamente branca e com os desenhos em suas cores mais vívidas sem terem ainda enfrentado o duro duelo do tingimento contra a máquina de lavar.
Eddie percebeu o olhar fixo e impassível do garoto em seu corpo.
— Vira a cara para lá, Henderson, seu pervertido.
Dustin não riu. Não xingou. Não usou nenhuma das respostas espertinhas que sempre parecia ter preparadas bem na ponta da língua. Apenas engoliu em seco, antes de tomar coragem para perguntar:
— Ainda dói?
Eddie viu as cicatrizes de relance uma última vez, antes de escondê-las sob o tecido. Ainda não tinha encontrado a própria paz ao olhá-las. Cada uma daquelas marcas trazia pesadelos que não o deixavam dormir de noite e calafrios que o perturbavam durante o dia.
E o pior: sabia que não era um trauma só seu. Era um fardo a ser dividido com quem o encontrou à beira da morte, com a certeza de que o perderia rondando à espreita.
— Não muito — respondeu por fim. A voz séria e profunda, que colocava um fim à conversa.
O garoto captou a mensagem, ocupando-se em mostrar para o amigo onde ficavam as coisas na garagem e como eles tinham descido com todos os pufes da casa para que todos tivessem um lugar para sentar. Praticamente todos tinham alguma estampa floral diferente, algo que quase já parecia associado à imagem que vinha à mente sempre que alguém pensava na senhora Henderson.
— Bart, não. O que a gente já conversou sobre subir na mesa?
O gato — Bartolomeu, carinhosamente apelidado de Bart — miou em resposta, de uma forma que deixava bastante claro que estava sendo completamente dissimulado ao agir como se não soubesse o que tinha acontecido ou como havia parado ali. Dustin o tirou da mesa e o devolveu ao chão, recebendo um olhar de descontentamento breve, que logo se transformou em puro descaso.
— Ele é um grande cuzão — o garoto falou. — Mas minha mãe ficou muito sozinha desde que a Mews morreu, então achamos melhor arranjar um outro.
Eddie riu, balançando a cabeça. Assim que o rapaz se sentou em um dos pufes, Bartolomeu voou para seu colo, dando duas voltas sobre suas pernas como se estivesse afofando seu travesseiro antes de se deitar calmamente. Eddie piscou duas vezes, com as mãos para o alto, tentando raciocinar o que fazer a seguir.
Como deveria lidar com uma bomba-relógio ou com uma bola de pelos calculista e vingativa? Dustin, de repente, também parecia ter parado de respirar por alguns instantes. O ambiente ia explodir? Alguém ia perder um olho? Ou simplesmente ganhar mais algumas cicatrizes para a coleção? Deus, por favor, não. Já chega disso.
Em movimentos praticamente em câmera lenta, ele abaixou as mãos até que seus dedos alcançassem a pelagem alaranjada e fizessem um mínimo deslocamento que, com muito esforço e boa vontade, talvez quase se parecesse com uma leve carícia.
Ele esperava um ataque. Unhas, dentes, um grito esganiçado. Qualquer coisa.
Qualquer coisa menos um ronronado amigável e uma extensão de pescoço que parecia dizer “Aí mesmo, continue assim!”.
— Filho da puta — Dustin murmurou.
Eddie gargalhou, momentaneamente se esquecendo de evitar quaisquer movimentos bruscos. Bart não poderia ter se importado menos. Encaixou-se melhor no colo e aceitou os carinhos de bom grado. Aparentemente, ele tinha escolhido o seu favorito.
— Eu estou me sentindo tão Vito Corleone agora.
— Bom, vocês se merecem.
— Quem merece o quê? — Erica perguntou, sendo seguida por Mike, Will, Lucas e os demais membros do Hellfire Club.
Dustin suspirou derrotado ao ver que os amigos tinham chegado ali com a ilustre companhia de sua querida mãe. Uma que tiraria seus instantes de paz e jamais permitiria que alguém falasse mal de Bartolomeu — não importava o quanto ele merecesse.
— Sejam bem-vindos! Fiquem todos à vontade! Vou trazer batatinhas!
— Valeu, tia — Lucas agradeceu, recebendo um sorriso largo, empurrando bochechas avermelhadas.
— Eu estou tão feliz que vocês tenham vindo para cá! Que bom ver todos juntos de novo e com mais amigos ainda! Que grupo lindo!
— Tá bom, mãe — Dustin interveio. — A gente entendeu. Todo mundo está super feliz e tal.
— Vocês querem pipoca? Um suquinho? Alguma coisa?
— Mãe!
— Não precisa, tia — Mike garantiu. — Obrigado mesmo!
Com o sorriso ainda estático e alguns acenos quase eufóricos, ela se retirou, deixando-os sozinhos.
— Olha como você fala com a sua mãe, seu merdinha — Eddie reclamou, dando um peteleco no boné de Henderson que o arremessou para longe.
— Ah, cala a boca.
Perderam mais algum tempo enquanto se desentendiam e se xingavam — com a ajuda de Erica, que estava sempre ao mais pleno dispor para oferecer sua sabedoria em momentos como aquele. Foi exatamente o que aconteceu até que o espírito da vizinha fofoqueira de meia idade que habitava algum canto oculto e muito específico do corpo de Eddie Munson se ergueu das profundezas, lembrando que havia, bem ali, basicamente embaixo de seu nariz, a bela e promissora semente do que facilmente poderia ser algo a se escavar.
— Sinclair, como foi o encontro com a ruiva? E espero que tenha sido bom, porque você fez todo mundo nessa sala mudar completamente as suas agendas por sua causa. Compromissos foram alterados.
— É, tipo o encontro do Eddie com a nerd favorita dele. Você meio que estragou tudo.
— Encontro com quem? — Mike questionou, com uma meia risada quase engasgada. — Que história é essa? Eu nem sabia que você estava vendo alguém.
— Sim, idiota, estou vendo alguém. Estou vendo todos vocês. Chama-se enxergar. Talvez você não tenha aprendido sobre o sentido da visão ainda nas aulas de ciências. Agora, estou esperando uma resposta para a minha pergunta.
— Não acho que é assim que funciona — Dustin ponderou em voz alta. — Essa é uma imagem que não vai sair da cabeça de ninguém aqui.
— Ninguém mesmo — Erica concordou, com uma fisionomia que só poderia significar a combinação perfeita de nojo e completo desdém. Mais um dia típico na vida da caçula do grupo.
— Eu perguntei primeiro — Munson ouviu o próprio tom de voz se elevar, lembrando vagamente o de um gato sendo pisoteado. Quer saber, talvez alguém, de fato, tivesse pisado no pobre Bartolomeu. Era uma boa explicação. — Agora, Sinclair, desembucha.
Lucas coçou a cabeça, de repente parecendo meio sem jeito. Parecia ligeiramente desconfortável, era verdade, mas, simultaneamente, carregava um sorrisinho de canto de quem jamais conseguiria esconder o quanto estava radiante da cabeça às pontas dos dedos dos pés.
— Você vai mesmo me fazer falar sobre a minha vida amorosa na frente da minha irmã?
— Fica tranquilo — ela interveio. — Não é como se eu estivesse super ansiosa para ouvir os detalhes sórdidos.
— Mas nós estamos — Eddie disse, com um sorriso quase maníaco e ameaçador. Todo mundo sabia perfeitamente que não existia uma realidade sequer em que fosse possível seguir a vida antes que houvesse uma resposta. De preferência, uma boa.
Lucas respirou fundo, resignado. Não havia para onde fugir. Era o preço a se pagar por ter decidido fazer parte daquela estranha e disfuncional família, com hobbies peculiares e camisetas com demônios desenhados.
— Foi bem legal, ok? Nós conversamos bastante, fomos assistir ao filme…
— Sim, tenho certeza de que vocês assistiram com muita atenção — Dustin caçoou.
— … E, daí, fomos comer um lanche e dividimos um milkshake de chocolate. Foi isso.
Todos se mantiveram em silêncio, esperando que houvesse algo a mais. Não era possível que, depois de tanto tempo ouvindo os lamentos e reclamações, isso era tudo o que ele tinha a dizer. Aquela compensação estava muito longe de ser justa.
Lucas deveria ter sentido o peso da espera alheia como uma pancada indiscreta bem no meio da cabeça, pois logo se obrigou a contar só um pouco mais.
— Deu tudo certo, se é o que vocês querem saber.
— Então, vocês estão namorando de novo? — Will quis saber. Estava disposto a voltar a ser o único solteiro do grupo, se isso significava que todos ao seu redor estariam felizes. Obviamente, eles mereciam.
— Não é para tanto. Quer dizer, não oficialmente. Mas estamos tentando de novo. Acho que vamos chegar lá em algum momento.
— Ela deve estar decidindo isso agora com a El — Mike brincou. — Elas iam para o shopping hoje.
— Alguma chance de você descobrir sobre o que elas conversaram e me contar depois? — Sinclair arriscou, mesmo que já meio que soubesse a resposta.
— Sem chance. Amigos não mentem e, aparentemente, também não contam segredos. Ela sempre me diz isso.
— Bom saber que pelo menos algumas pessoas ainda têm respeito pelos amigos — Eddie alfinetou, dando um chute em seu linguarudo favorito por baixo da mesa.
Depois de mais algumas pequenas discussões em paralelo, chegou finalmente o momento em que os ali presentes se reuniram para aquilo que tinham ido fazer: jogar Dungeons & Dragons.
Eddie pigarreou, chamando a atenção geral para si. Vendo todos aqueles pares de olhos ansiosos, esperando pelo próximo passo, percebeu o óbvio e inquestionável: tinha sentido muita falta daquilo. Por mais que uma pequena parte de si ainda achasse um tanto estranho jogar de forma presumidamente fictícia com coisas que, infelizmente, já tinham se provado reais demais.
Era um esquisito e bastante instável balanço de realidades que teria de funcionar.
— Meus ilustríssimos companheiros — começou a bradar, de joelhos na cadeira apenas para ganhar aquele centésimo extra de confiança ao se sentir um pouco mais alto. Com aquela postura vocal, deveria ter dado uma chance para o teatro. Sem contar que servia como uma daquelas atividades extracurriculares que ele supostamente deveria ter em seu currículo. — Finalmente, nos encontramos de novo.
A comoção geral se instalou, com pequenos gritos, grandes sorrisos e vários socos ritmados na mesa.
Eddie sacudiu as mãos, chamando o seu público, alimentando-se da sensação retumbante de suas fervorosas exclamações batendo no mesmo ritmo que sua frequência cardíaca. E, em um movimento único e destoante, pôs fim ao pequeno e bárbaro espetáculo.
— Silêncio! Já é chegado o momento de prosseguirmos com a nossa reunião.
Will sorriu, remexendo-se de leve na cadeira. Não sabia o que era se animar tanto assim com algo desde antes da mudança quase forçada para a Califórnia.
Eddie estufou o peito, mantendo-se vigorosamente no topo de seu próprio mundo. Era engrandecedor de uma forma que flertava com o egocentrismo ver-se mais uma vez como o capitão daquele barco, um mestre a ser seguido. Para alguém que não julgava ter nascido com grandes talentos — muito menos aqueles que diziam respeito às virtudes do mais aprazível convívio social —, era quase um milagre poder se reconhecer tão bom e indispensável em alguma coisa.
— Hoje, recebemos um novo companheiro que trilhará conosco cada um dos desafios que nos esperam neste árduo caminho à frente.
Mike deu dois tapinhas no ombro do amigo, que baixou discretamente o olhar ao perceber toda a atenção voltada para ele.
— Will, o Sábio, seja bem-vindo à nossa casa e à nossa busca.
Eddie sorriu enquanto os demais participantes cumprimentavam o mais novo integrante do Hellfire Club. Inclusive, se alguém cometesse o erro de pedir sua opinião, ele diria que o jovem Byers tinha ficado muito bem com a camisa. Dava um certo ar de rebeldia de que ele parecia precisar desesperadamente.
— Para recebermos o nosso novo amigo e aproveitando que tudo no dia de hoje já o faz totalmente atípico, não iniciaremos uma campanha nova neste momento.
— Como é que é? — Dustin perguntou, descrente.
— É sério que você me fez vir em um sábado para isso? — Erica reclamou. — É melhor você ter uma justificativa muito boa para eu não pegar o primeiro objeto cortante que aparecer na minha frente e arrancar metade desse seu cabelo esquisito.
E eles não eram os únicos insatisfeitos. Toda a mesa virou uma confusão de resmungos e argumentos desencontrados, enquanto Munson apenas sorria maquiavelicamente, esperando que o delicioso caos encontrasse o seu próprio e inevitável fim.
— Terminaram? — Munson perguntou, da forma mais paciente e condescendente possível. Recebendo apenas silenciosas reviradas de olhos, ele continuou: — Em momento algum eu disse que não teríamos um jogo. Só não será uma campanha.
Henderson torceu as sobrancelhas e lábios, perguntando-se se os morcegos do Mundo Invertido poderiam ter algum tipo de toxina de ação ultra longa que tinha acabado de derreter o restante do cérebro de seu amigo.
— Hoje, para nos familiarizarmos com o novo integrante, vamos começar com uma missão secundária.
Erica bateu o pé de novo.
— Ninguém fez isso por mim quando eu entrei para o grupo.
— É porque você nem tem altura suficiente para ser considerada como outro jogador — Lucas disse, recebendo um tapa ardido imediato.
— Pois eu estava salvando o jogo quando você decidiu brincar de faz de conta, fingindo que era um atleta popular — ela retrucou. — Então, eu recomendaria que você calasse a boca.
Eddie quase permitiu seu largo sorriso de satisfação. Ver Erica brigando com o irmão era ainda mais reconfortante do que ele tinha imaginado, mesmo em seus sonhos mais esperançosos.
Contudo, nem ele era sádico o suficiente para aguardar ansiosamente enquanto eles se atracavam em um duelo até a morte à moda antiga.
— As crianças já terminaram ou precisamos fazer uma pausa para que vocês deem um tempo no 'Cantinho do Pensamento’ antes de fazerem as pazes?
Houve uma sequência de reviradas de olhos de um para o outro e Eddie arriscaria dizer que tinha ouvido alguém rosnar.
Infelizmente, era hora de ignorá-los. Poderiam se matar mais tarde. Ele garantiria que tivessem tempo o suficiente para isso.
— Nossa missão nada mais é do que… — O rapaz batucou a mesa como se fossem tambores rufando. — … Uma festa!
Henderson gargalhou, fazendo um escândalo, até perceber que estava nessa sozinho. Os olhos do mestre da rodada faiscavam em sua direção, como se o desafiassem a explicar qual era a graça.
— Foi mal, pode falar.
— Isso parece uma piada para você?
— Não, de forma alguma. Foi mal.
Ele apenas seguiu em frente:
— E essa festa é um grande evento promovido por Eddie, o Banido. Teremos muita bebedeira imprópria e irresponsável, um banquete, que pode ou não estar contaminado o suficiente para uma dor de barriga amanhã, e jogos que envolvem facas, espadas e feitiços. Basicamente, nada de muito diferente dessas festas esquisitas que os amigos de vocês fazem quando os pais decidem sair de casa.
Entre risadas, dados arremessados e decisões propositalmente duvidosas — como a de Dustin se voluntariar para colocar uma maçã sobre a cabeça enquanto Gareth atirava facas muito afiadas com uma mira muito ruim —, eles seguiram por aquela ‘side quest’ , gastando pontos de saúde e sanidade em prol de boas risadas e atuações que jamais ganhariam prêmios. Talvez aquele tal de ‘Framboesa de Ouro’, que tinha começado no último ano.
— E é nessa hora, quando todos finalmente se entrosaram e estão se divertindo na companhia uns dos outros, independentemente de suas diferenças, que vocês ouvem um barulho.
Toc, toc, toc. Munson bateu espaçadamente à mesa. A estranha sonoplastia que deixou todos atentos, aguardando na ponta de seus assentos.
— Alguém está na porta — explicou, em um tom de suspense, que deixava claro que não era apenas uma brincadeira de crianças arteiras na rua que, à essa altura, já teriam saído correndo. — Quem tem a coragem para tomar uma decisão crucial nesse momento?
Todos se entreolharam, compartilhando de um único pensamento. Era melhor que desse a cara a tapa aquele que ainda tinha mais pontos e estivesse mais longe de morrer feito um idiota na porcaria de uma missão secundária de festa.
Com isso, Erica se levantou de sua cadeira, dando um passo certeiro à frente.
— Eu vou.
— Ora, ora, Lady Applejack. Parece que temos visitas.
— Deveria ter os dedos lentamente arrancados só por aparecer sem ser convidada.
O rapaz escondeu a risada, substituindo-a por uma expressão falsa de relativo choque. Era exatamente isso o que poderiam esperar de Erica. Não havia surpresa nenhuma.
— Mas assim? Sem mais nem menos? Você nem ao menos quer saber quem é?
A garota tamborilou os dedos contra a madeira.
— Só se essa visita tiver trazido presentes.
Ele abriu um sorriso faceiro, balançando a cabeça em vagarosa concordância.
— Ah, com certeza ela tem presentes.
Seu tom salpicado de ironia deixava bastante claro que, no mínimo, eram presentes de grego. Ninguém estava à porta esperando para entregar doces, brinquedos caros ou um daqueles videogames novos, tipo o Atari.
— Eu, por acaso, tenho escolha?
Eddie sorriu mais uma vez.
— Sempre há uma escolha — disse, apontando para os dados coloridos, que repousavam sobre a mesa.
Ela puxou o dado para si, esperando que os números que decidiriam o seu futuro fossem cantados. Eddie prosseguiu:
— Você precisa de pelo menos dezessete pontos no dado para mandar nosso visitante embora. Do contrário, acredite em mim, ele vai entrar.
Sua ênfase era um aviso de que era exatamente isso o que eles não queriam. E, como sempre, apenas um movimento cego de plena sorte poderia decidir o que viria a seguir.
Erica balançou o dado várias vezes entre suas mãos em concha, soprando-o levemente. Todos os demais tinham se levantado de seus lugares, colocando-se logo atrás dela, esperando o próximo passo.
Havia quase uma sensação de déjà vu ali, transportando-os para a primeira — e infelizmente única, até então — vez em que haviam conseguido colocar o Vecna de joelhos sem possibilidade de reação. Mas não tinham conseguido tirar vinte nos debochados dados da vida real para impedir o seu retorno. Com mais três chacoalhadas e os olhos apertados, temendo pelo que a esperava, Erica finalmente lançou o dado, que bateu algumas vezes pela mesa até finalmente parar.
O grito dolorido ao seu redor expressava bem a sensação.
Dezesseis.
Por um maldito ponto.
Eddie sacudiu os ombros, quase em sinal de piedade, como se dissesse que, infelizmente, não havia nada que ele pudesse fazer. A regra era bastante clara e não tinham conseguido cumpri-la. Tinham sido superados mais uma vez.
— Você não precisa abrir a porta, Lady Applejack. Nosso convidado já fez isso, estourando a madeira para todos os lados, surgindo como um gigante bem na entrada dessa, agora, fracassada festa.
Dustin esfregou as têmporas, praguejando baixinho.
— Sombras serpentinam para fora de seu corpo, dançando sob a luz do luar de forma macabra e ameaçadora — Eddie continuou. — Os danos materiais são irreparáveis e, logo, os psicológicos também o serão. Cumprimentem o mestre dos truques e da ilusão, feiticeiro de luzes e sombras. Recebam o Ilusionista.
No mesmo instante, como se tivesse sido imediatamente gatilhada pelo anúncio, a energia da casa dos Henderson sofreu um rápido pico. Todas as luzes piscaram juntas, voltando logo ao normal, como se nada tivesse acontecido.
— Vocês planejaram isso, né? — Gareth perguntou, gargalhando. — Meu Deus, que timing incrível! Deu todo um efeito!
Eddie sentiu um aperto na garganta, impedindo-o de engolir seu desconforto. Poucos rostos inadvertidos tinham se encantado com o momento conturbado da energia elétrica. Os demais estavam tão pálidos quanto o dele.
Tudo isso porque, assim que viram as pontas dos dedos de Will Byers alcançando os próprios pelos eriçados na nuca, eles souberam que aquilo era tudo, menos uma simples coincidência.






Continua...


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Nota da autora: E VOLTAMOS À PROGRAMAÇÃO - quase - NORMAL! Capítulo fresquinho aí para vocês curtirem <3
Qualquer crítica, ofensa, sugestão, comentário, deixem aí ou me procurem nas redes sociais/grupo do ficsverse!
OBRIGADA A QUEM ESTÁ LENDO E APOIANDO ESSA COMPLETA INSANIDADE!
É ISTO. Enquanto não nos vemos na próxima, espero vê-los por aqui nos comentários!
Um beijo e um queijo,
Mi

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