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Autora Independente do Cosmos 🛸

"Seus olhos te convidam a se aproximar
E parece que aqueles caroços na sua garganta
Que você acabou de engolir, te fizeram continuar
Vamos lá, vamos lá, vamos lá
﹝...﹞
Ela é certamente de enlouquecer
Sabendo muito bem que eu não sou
﹝...﹞
Eu só quero que você não me faça nada de bom
E você parece que poderia
﹝...﹞
Os fotógrafos amadores
O preto e branco e a subexposição de cores."

🖤🎤 No. 1 Party Anthem


Do alto da estrada em declive, o céu e o mar se encontraram em uma paisagem impressionante.
perdeu o fôlego por um momento, fracassando em reagir com palavras ou algo mais verbal do que o som cortante que saiu da garganta. Um pássaro cantou em meio à ruminação do vento, e depois outro, e outro, até que ela entendesse o que estava acontecendo e virasse o pescoço para a janela ao lado. Gaivotas. Dezenas delas. Todas reunidas em uma faixa pequena de mar, aquela partezinha delgada que serpenteava preguiçosamente até começar a se expandir, e expandir, se alargando de encontro ao enorme oceano até se tornar parte dele. Ela ouviu o canto delas, aquela comunicação exclusiva da espécie, e se lembrou de coisas. Coisas felizes, situações em que encontrava um pouco de paz e serenidade dos pensamentos desordenados na frente da brisa do mar, com os olhos na imensidão infinita do Pacífico, trazendo sempre o chilreio dos animais. Eram a primeira coisa que se lembrava de ouvir quando chegava à praia: gaivotas, cheiro de sal e umidade.
Sorrindo, puxou a bolsa jogada no fundo do banco, tirando de lá o protótipo da Nikon, sua câmera favorita do momento e apontou a lente para fora da janela, bem no momento em que uma das aves erguia o pescoço e emitia um canto longo e agudo.
— Lindo — a voz de Jungkook veio do outro lado de seus ouvidos, sentado no banco do motorista. baixou a câmera. — Mas consigo alcançar quatro ou cinco notas a mais do que elas.
Ela riu e voltou a puxar as pernas para cima do assento. Tinha feito isso muitas vezes, incontáveis, durante as quase 6 horas de viagem. Candice tinha sido clara quanto à sua única condição: sem aviões. Sem aeroportos. Eu sei que vocês tem jatinhos particulares e toda essa besteira, mas eles ainda precisam sair de um hangar, não? E um hangar muito perto do aeroporto.
Não tiveram escolha. Yoongi e Jungkook se contentaram em ocupar o volante de dois Kia Sorento alugados e seguir viagem, mesmo que Jungkook tenha dado a ideia de irem todos no mesmo veículo. A ideia foi imediatamente travada por , que considerou Candice, naquela ocasião em especial, como iminentemente instável. Com chances grandíssimas de querer desistir de tudo e voltar para casa antes dos 2 dias. Caso ficasse louca o bastante, pegaria o único carro disponível e voltaria para Seul, mesmo sem saber o caminho. Melhor não arriscar.
O carro de Yoongi já estava a uma boa distância de Jungkook, um pontinho azul-marinho lá na frente, já longe do declive. Mas o atraso do maknae era proposital; queria ver a cara de . Diminuiu a velocidade para que ela admirasse a primeira banda de oceano visível e ouvisse o som que as cornetas de caça faziam no início do outono, das ondas nas pedras, das conversas ao longe, de garças e do próprio silêncio fleumático que vinha de tudo isso.
Se ver longe da cidade também revigorou a ele mesmo. Longe, longe, longe. Só ela e ele. Dificilmente, alguma coisa de fora importava mais do que o que estava acontecendo ali dentro.
Era 31 de agosto e prestava atenção no panorama, maravilhada e entristecida ao mesmo tempo, sentindo a beleza agridoce de estar em um lugar perfeito do qual teria de ir embora em alguma hora.
— Esse lugar já deveria estar existindo na minha parede faz tempo — sorriu enquanto passava as fotos que tinha tirado, vários cliques por segundo, algumas mais nítidas do que outras, mas todas exalando a mesma beleza. Desde que tinha se mudado, planejava seu painel de fotos. Ele foi tomando forma aos poucos, com o passar dos meses e das experiências com Candice, assim como suas novas amizades, tipo Yoona bebendo uma xícara de seus famosos chás, Wonnie com seu cabelo marcante de mechas coloridas, os rapazes do TXT rindo espontaneamente após segurarem, ao mesmo tempo, Taehyun no colo, as paredes do Covil, Gook Doo sem os óculos, Changmin e seu belo sorriso atrás de uma taça gorda de matcha latte, e Jungkook… esse último estava ganhando muito, muito espaço na parede, desde que finalmente teve coragem de pendurar suas fotos e mais liberdade para tirar novas.
Eram raras as noites que passava sem ele agora, mas quando acontecia, as fotografias aplacavam a saudade. Fazia pensar menos e se concentrar em dormir, ainda que o sono nunca era tão perfeito e satisfatório quanto era com ele.
Jungkook, por outro lado, guardava nos detalhes pessoais, nas letras que escrevia, na fita antiga da Panasonic com sua dancinha engraçada, nas fotos de seu próprio celular que tirava de momentos cotidianos, da tatuagem que fez inspirada na dela, nos ovos do café da manhã que agora vinham acompanhados de queijo, no jeito como seus dedos se entrelaçavam juntos em qualquer ocasião, e na forma contrária como parecia lidar com sua exigência em relação ao café. A única coisa que eu não faria por você seria colocar açúcar no meu café, brincou ele sobre isso.
Mas isso é muito simples!
Nada é tão simples quando se trata de café, ele retorquiu, mas depois de 2 dias, colocou uma colherzinha minúscula na bebida quando a convidou para comer um wrap em algum lugar qualquer no meio da tarde de uma quarta-feira.
Agora não tem mais nada que eu não faria por você, e tomou fazendo careta. desejava muito não perder a cabeça com todas essas demonstrações e palavras que não acabavam nunca. Às vezes se questionava se merecia tudo isso. Jungkook era capaz de tornar o céu em amarelo assim que ela desejasse que ele não estivesse tão azul, seguraria as gotas de chuva com as próprias mãos, esperaria obediente em qualquer poltrona da biblioteca Starfield enquanto lia os 3 capítulos de um livro qualquer, e de outros seis até que finalmente escolhesse algum. Era muita coisa a se acostumar, e muita coisa que ela tinha um certo medo de se adaptar. De não conseguir mais viver sem. De nunca mais voltar a ser quem era antes, aquela que sabia viver só, que aguentava qualquer coisa.
Ele pousou a mão em seu joelho e calou os pensamentos dela. guardou a câmera e fez carinho nos seus dedos, descansando a cabeça para trás enquanto via as primeiras silhuetas da cidade, os prédios mais altos e os menores ao longe, junto com o comércio e a primeira aparição de pessoas.
Logo mais à frente, uma fila de carros se estendia ao lado de uma fila de pessoas, ambos seguindo na direção de um totem e uma estrutura de pedágio. O carro de Yoongi estava há dois veículos à frente.
— O que é isso? — virou a cabeça para a fila de turistas. Mais à frente, há vários metros da aglomeração de carros, uma balsa grande e espaçosa esperava enquanto as pessoas embarcavam uma a uma. se surpreendeu. — Vamos de balsa flutuante?
— Sem avião, essa é nossa única opção — Jungkook respondeu enquanto erguia o queixo e tentava achar Yoongi por cima dos outros carros. — Mas não é menos emocionante estar no carro do que lá fora. Você ainda vai ver alguns peixes, os funcionários do porto, e talvez um ou outro maluco pulando na água por aqui porque consideram como um laguinho. É divertido, se pensar bem.
— Já tô me divertindo — ela deu de ombros, sendo absolutamente sincera. Jungkook sorriu com essa resposta. — Podemos tomar aquela bebida vermelha que você falou?
— É o Red Velvet, vende em qualquer quiosque por aqui, mas não acho que você…
— Eu vou querer, sem dar para trás. Eu garanto.
— Tudo bem, então — ele segurou uma risada enquanto passava a marcha e se aproximava da cabine do pedágio. — Mas depois não diz que eu não te avisei.



A beleza de Jeju era tão literal quanto as fotos cinematográficas de mostravam.
Tudo que via era intrigante, fascinante, grandioso. Tinha medo de piscar os olhos e tudo se esvanecer de repente, não passar de miragem. O céu em Sehwa Beach já estava nublado quando chegaram, e o Sol não deu as caras por umas boas horas antes que a chuva já predestinada caísse. Por incrível que pareça, ficou muito bem com isso. Os pés sujos de areia combinavam com os de Jungkook, e ela aguentaria aquela água impossivelmente gelada o dia todo se ele continuasse abraçando-a daquele jeito protetor sempre que uma onda extremamente forte vinha, e continuaria por mais tempo ainda se pudesse passar as pernas pela cintura dele e beijá-lo dentro da água, sob aqueles óculos escuros que o deixavam incrivelmente sexy e que não serviam de disfarce nenhum, já que suas tatuagens estavam totalmente à mostra nos braços nus, e agora no peito e nas costas.
Ainda assim, estava tranquila. Confiava nele. Confiava neles. Mais do que nunca, precisava cuidar de seus pensamentos e não se deixar ser sabotada pelo mesmo medo de Candice. A amiga ainda parecia um pouco distante, meio avoada e apreensiva, mesmo que a praia, já pequena, estivesse vazia a não ser por eles e dezenas de colunas de pedras, mais pedras do que areia em volta. Candice tinha se esforçado para sair da casa grande e moderna em Ilha Santa com um biquíni cor-de-rosa claro e um chapéu redondo e esvoaçante, usando e abusando de lenços e óculos escuros, parecendo ainda mais montada do que normalmente estava, tudo para não correr o risco, disse ela. Passou um tempo desnecessariamente longo apenas sentada debaixo daquele guarda-sol, trocando algumas palavras com Yoongi enquanto se divertia como criança. Corria na areia, pulava na água, experimentava o Red Velvet que Jungkook tinha dito e constatando que era mesmo para profissionais de bebedeira, pegava sol e se acomodava entre as pernas de Jungkook para que ele passasse protetor solar nos seus ombros. Vez ou outra, olhava para o outro casal, e pescou risadinhas e piscadinhas quase discretas entre os dois, e percebeu que Candice ia perdendo mais adornos com o passar das horas, deixando o rosto à mostra. Estava dando certo, aparentemente. Pelo menos, sabia que Candice tinha desligado o celular e deixado o iPad no quarto.
Quando a chuva veio, foi o tempo necessário para que e Jungkook saíssem da margem e corressem para debaixo da única cobertura de lona do estabelecimento local, um quiosque completamente desabitado àquela hora da tarde, um que dava pra acreditar que também tinha sido alugado pelos dois.
— Droga — Jungkook resmungou enquanto batia os pés descalços em cima do chão de pedra, puxando pela cintura para que ela não fosse pega por nenhuma gota. — A previsão do tempo disse que iria chover só às 16:00.
Ele bufou de novo e jogou os óculos para cima do cabelo meio molhado, estreitando os olhos para enxergar uma Candice correndo enquanto segurava uma bolsa de palha gigantesca e descabida, e Yoongi tentando dar um jeito no guarda-sol, rangendo os dentes pelo vento que agora trazia areia para o seu cabelo. De repente, começou a rir.
— O que foi? — Jungkook franziu o cenho em sua direção. A chuva aumentava a cada minuto. Ela estava rindo de nervoso?
Mas balançou a cabeça em negação.
— É que… Candice deve estar decepcionada. Aqui não é nada parecido com Malibu, e todas as coisas que ela trouxe… — riu de novo, lembrando-se de ter flagrado a amiga pouco antes de saírem colocando um protetor solar na bolsa sem distribuí-lo em nenhum centímetro de pele. Seu plano era a velha estratégia de sempre: Yoongi faria o serviço. Até mesmo o tamanho da saia era proposital, feita de um crochê bávaro com bastantes furinhos para não poupá-lo da imaginação. O que significava que ela, apesar da teimosia, também estava disposta a resolverem as coisas, mesmo que para isso fosse provocá-lo até o último fio de cabelo.
contou isso para Jungkook, que explodiu em risadas do mesmo jeito, balançando a cabeça.
— Caramba, então deu tudo errado — ele suspirou, ainda decepcionado com a chuva. , com o cabelo molhado e duro do mar e o maiô azul-marinho começando a gelar o corpo, se virou para ele com um sorriso largo e indiscutível, passando os braços pelos seus ombros.
— Ei, claro que não deu errado. Nada deu errado. Por que tá falando isso?
— A chuva deu errado. Ou vai me dizer que você queria estar indo embora agora?
— E quem disse que precisamos ir embora agora?
Ele vincou a testa e sorriu, sugestiva. Em seguida, deu de ombros.
— Podemos dar uma caminhada.
— Caminhada? Na chuva? — Jungkook ainda parecia confuso. Ainda parecia meio pateta. olhou na direção do carro, onde Yoongi já ligava a direção para dar a ré e estacionar perto deles para buscá-los e tirá-los do aguaceiro.
— Não me importo com ela. Vou estar com você, não me importo com mais nada.
O sorriso dele cintilou e substituiu o Sol naquele dia nublado. Jungkook não resistiu e puxou sua nuca para perto, beijou debaixo daquela lona nada segura, misturou sua língua na dela com desejo e uma explosão de felicidade, sabendo com certeza que se ela o mandasse pular e dançar em cima daquelas pedras, ele faria sem piscar.
O carro parou logo ao lado deles, e Candice abriu um pouco da janela do passageiro para gritar um “entrem” e destravar as portas. Rapidamente, correu até a porta de trás, abriu e puxou sua mochila pequena de lá de dentro, fechando em seguida e voltando para o abrigo com Jungkook, gritando um “encontramos vocês em casa depois!” Depois, puxou-o para a chuva na direção oposta do quiosque e do mar, avançando ao longo do pequeno caminho de pedras que eles haviam seguido da primeira vez que chegaram.
Candice e Yoongi não entenderam absolutamente nada e nem tiveram tempo para isso. Por fim, atribuíram a culpa daquela loucura ao amor jovem e fresco, recente, um que ainda via enredo na água da chuva e nos riscos de pegar um resfriado pelo prazer de terem uma história para contar. Yoongi apenas levantou os ombros e deu a partida de volta para a estadia, perguntando-se em qual nível de amor lírico ele e Candice estavam.



Seria ótimo se ele soubesse para onde estava indo.
Não tinha um plano, uma estimativa, muito menos uma ideia de onde aquela pequena trilha iria dar. Não sabia nem se era aceitável fazer o que estava fazendo: sair andando sem rumo por curvas de areia e pedras, na chuva, totalmente exposto e com os pés descalços, segurando as mãos de entre uma árvore e outra até que estivessem quase completamente escondidos por uma tonelada delas.
Mas era esse o ponto: as mãos de . O cabelo dela molhado com um pouco de areia, o maiô grudando no corpo, a bunda totalmente desenhada naquela roupa e o sorriso entusiasmado e feliz que o partia ao meio, não lhe dando outra escolha a não ser seguir. Olhar para ela tornava essa questão mais fácil, mais compulsória, sobrando para ele apenas a parte de acompanhá-la por um pedaço de vereda ainda mais estreito e torcer para que ela não soltasse sua mão. Foi bem mais fácil aceitar aquela aventura com ela do que normalmente seria caso decidisse fazer aquilo sozinho ou com outros amigos. Pensando bem, nenhum dos seus amigos gostaria de sair de perto da areia e do cooler de cerveja para se embrenhar em um espaço tão apertado e desconhecido, não importava as paisagens legais ou os tesouros que poderiam ter lá.
Mas o destino estava ficando longe, e seus pés estavam escorregando no lodo encapando as pedras lisas, e nem o mar estava mais em seu campo de visão agora. Quando ele precisou desviar de uma pilha de pedregulhos no meio do caminho, decidiu que era a hora de perguntar.
— Já tá na hora de eu saber pra onde estamos indo? — brincou, sentindo a chuva diminuir cada vez mais. balançou a cabeça em divertimento na sua frente, rindo em seguida.
— Não faço a menor ideia, mas confia em mim — ela continuou andando, seguindo um rastro de relva recentemente pisada montanha abaixo. Parecia um lugar onde as pessoas frequentavam, onde era seguro de andar. O problema maior era que os dois não conseguiam andar lado a lado, mas ele não estava reclamando. Não quando o cabelo dela balançava de um lado para o outro e não quando podia admirar mais sua bunda naquele maiô.
Nossa, ela era indiscutivelmente linda de todos os ângulos.
Mais adiante, eles chegaram no que provavelmente era a intuição de : um espaço aberto frente à imensidão do mar, grudados na costa, onde ao longe se tinha a visão de Gimnyeong Seonsegi Beach, com sua estação de moinhos de vento gigantes e mais visitantes do que em Sehwa, talvez porque a temperatura da água não ameaçava te congelar vivo e a quantidade de pedras era quase nula. Ao lado, em uma parte minúscula e talvez não muito notada por quem via aquele mar todos os dias – ou para quem achava que o mar era apenas mar –, estava o que ele tinha visto na entrada da cidade, onde as gaivotas molhavam os pés e sobrevoavam em busca de comida: o estuário imperturbável, vagueando entre as pedras dos limites do litoral, o encontro da água doce com a água salgada em um pedaço quase fechado de pélago. Jungkook respirou fundo e olhou para todos os lados ao mesmo tempo, um pouco chocado e deslumbrado.
— Uau. Eu nunca vi uma coisa dessas antes — comentou, sentindo o vento forte balançar seu cabelo desgovernadamente, agora praticamente sem chuva. — Como você sabia disso?
— Eu não sabia, mas geralmente uma praia costeira tem uma linda paisagem caso você tenha coragem de encarar a trilha. Essa até que não foi tão difícil. Você conseguiu fazer sem chinelos.
Ele olhou para os pés descalços e sujos de areia, um pouco de lama e agora com alguns fiapos verdes de toda a grama que tinha atraído pelo caminho. Ele revirou os olhos e riu, puxando a mochila de pano das costas e tirando de lá os chinelos que ela tinha guardado assim que eles estacionaram mais cedo. Ele nem se surpreendeu – não de verdade, pelo menos.
— O que eu faria sem você? — ele calçou os chinelos, que estavam um pouco escorregadios pelos pés molhados.
— Ficaria com rugas mais cedo — ela riu e o puxou para um beijo simples, mas que se transformou em um beijo profundo e minucioso, onde teve a cintura agarrada e os pés quase tirados do chão. — Você tá com gosto de sal.
— Você também — ele sussurrou em cima de sua boca, rindo pelo nariz. — É gostoso.
— É bem gostoso.
Jungkook a beijou com mais intensidade. Abaixou a mão para apertar a nádega enclausurada naquele maiô, o que já tinha feito embaixo da água antes, mas ali parecia mais real, mais acessível. Por um segundo, sentiu a mochila pesar, os ombros também, as pernas bambearem com o fogo característico se alastrando sem controle ao menor das fagulhas, sem pedir licença, como sempre era.
— Jungkook… — ela tentou dizer, e sentiu os dedos dele a apertando de novo. — Preciso tirar uma foto…
— Uhum… — ele a agarrou com mais força e mal reparou no próprio corpo sendo movido com certa lentidão entorpecente até a rocha larga e alta mais próxima, uma que esquentou as suas costas e raspou seus cotovelos, uma que deixava seu corpo ligeiramente inclinado em uma posição perfeita para sentir a cintura dele contra a sua, esmagando sua pelve com seu volume já duro, tão duro quanto todas as pedras em volta.
arfou com a sensação, o corpo inteiro estremecendo de adrenalina.
— Isso é uma péssima ideia… — ela forçou as palavras a saírem porque era o certo, era o que precisava ser, mesmo que mal tivesse forças para recusar alguma coisa.
— Eu sei — ele disse abafado na curva de seu pescoço, passando uma mão por baixo de sua coxa. — É uma ideia terrível.
— Alguém pode nos ver… — ela se interrompeu de novo ao sentir a junção de dois dedos dele roçarem entre suas pernas, calmo e pensativo, calculista, um desgraçado completo. — Alguém pode nos ver. — ela repetiu mais firme, orando, rezando para se fazer entendida.
Jungkook levantou um pouco o queixo, sem tirar os dedos do local quente onde estavam.
— E também podem não ver — ele agarrou a outra perna, prendendo-se mais à , fazendo-a soltar um gemido involuntário com a sensação inebriante do pau dele tão perto, mas tão perto.
Ela mordeu o lábio com força, se odiando por ser tão maluca e tão influenciada a cometer uma loucura daquelas, em um lugar daqueles, em uma situação daquelas. Qual era o problema dela?!
Aparentemente, seu problema era Jeon Jungkook, sempre foi.
Engolindo o orgulho e o bom senso, engoliu em seco e segurou firme nos braços dele.
— Temos que ser rápidos. Ainda preciso tirar a minha foto.
Jungkook abriu aquele sorriso que não te dava outra opção.
— Como quiser, meu amor.
E então, estava recebendo-o dentro de si depois dos dedos dele, ágeis e inteligentes, terem empurrado seu maiô para o lado antes que ela completasse uma respiração. As possíveis palavras que poderia dizer ficaram pendentes pelas estocadas intensas e animalescas, e depois outras, e outras, roubando a sanidade de e apagando sua mente por completo.
Ela levou uma mão para trás, procurando apoiar as costas enquanto ele a levantava ainda mais e metia sem pudor, sem preocupação, com um sorriso safado e cafajeste no rosto como se estivessem trepando no seu quarto, ou em uma cama qualquer. Demorou poucos segundos para que fosse levada por essa mesma vibe, por essa mesma loucura. Louco! Não havia outra palavra para descrever Jeon Jungkook naquele momento, tomando sua boca impetuosamente, agarrando sua bunda como se ela fosse desaparecer, puxando as alças do maiô de elastano para baixo para ter um visão melhor dos peitos dela livres, abocanhando um e outro com ferocidade, sentindo o gosto de sal em ambos enquanto ouvia os gemidos contidos dela, gemidos que precisavam ser abafados pela palma da sua mão.
— Nossa, como você fica gostosa nesse maiô — ele disse na voz entrecortada, concentrada demais para bater papo, mas que precisava desfocar um pouco antes que o pior acontecesse cedo demais. Com a cabeça girando, mal prestava atenção, mal sabia onde estava. A mão não aguentou e suas costas despencaram na pedra, o cabelo se misturou com ainda mais areia na rocha quente e seu corpo balançando com a força dele fazia seus ombros rasparem na superfície áspera, mas quem se importa? Já estava sentindo aquele famoso formigamento desde o dedinho do pé, o estômago virando gelo, a cabeça indo parar no fundo do mar e voltando. Não conseguia respirar direito, não conseguia manter os olhos abertos, não conseguia desvencilhar da delícia do momento. A chuva tinha parado e uma luz forte que não estava lá em cima antes ameaçou destacar toda a cena, mas ainda não se importava. Se por acaso alguém os pegasse, os problemas iam ser imensos. As pessoas eram presas por isso, em qualquer lugar do mundo! Fora o nome dele, as tatuagens dele, o rosto dele, tudo bem à mostra num episódio surpreendente daqueles. As coisas podiam ficar muito, muito feias. Mas, por incrível que pareça, a emoção de ser pega deixou ainda mais excitada. Uma euforia diferente, um frenesi de correria eletrizante. Ela pediu pra ir mais rápido, pediu pra que ele se apressasse, mas no fundo, queria se esfregar ainda mais, estimular a corrida, e se Deus era bom, que ele demorasse a chegar lá, demorasse bastante para que aquela sensação perdurasse.
No entanto, já estava perto antes mesmo que se tocasse da iminência de ser vista, e gozou como louca recostada naquela pedra, esquecendo-se do ambiente e soltando um grito seco, um que não se completou porque Jungkook a calou com a palma da mão, trincando os dentes furiosos por não poder se ajoelhar e sentir aquilo na boca, frustrado e admirado pelo lugar ao mesmo tempo, sentindo ela se apertar em torno de seu pau e deixá-lo à beira da insanidade.
— Eu… não… — ela tentou dizer, o rosto quase dopado depois de ter a mente apagada por completo, ainda sentindo ele entrando e saindo, agora mais devagar, sentindo-se trêmula e realizada como sempre. Aquela feição sempre mexia com ele, mexia até o último fio de cabelo, o fazia pensar que a vida era injusta por deixá-lo experimentar isso tão tarde. Bufando forte, ele saiu de dentro dela por um segundo só até virá-la de costas e puxar seu cabelo para que ela se empinasse.
— Jungkook! — ela grunhiu repreensiva mas, de novo, não teve tanta força, não teve valor algum. Automaticamente, já espalmava as mãos na pedra, já abaixava o tronco, já se preparava. O corpo não obedecia à mente quando sentia o pau dele raspar no lugar quente e encharcado de suas pernas, não seria capaz de se mover. Ele mordeu o lábio inferior, beijando a curva de seu pescoço com força até dar um chupão.
— Você disse pra ser rápido — murmurou ele, encaixando-se dentro dela tortuosamente devagar. — Vou fazer meu melhor.
E experimentou mais uma dose brusca daquele amor violento, quase cruel, que eram os movimentos e as investidas de Jungkook. Com o quadril entre os dedos dele, ela conseguia ficar bem firme naquela superfície, mesmo que sentisse as panturrilhas se contraindo, mesmo que mantivesse as pernas no chão por um milagre divino, um que ela tinha quase certeza de que estava mesmo acontecendo.
Controlando a respiração e os gemidos, virou a cabeça para o lado, padecendo com o corpo inteiro em chamas, visualizando um fiapo de luz atravessando as nuvens e finalmente, finalmente…
Aquele poderia ser considerado, mais tarde, como o momento mais estranho e bonito da vida de nos últimos anos. Por um segundo, um mísero segundo, ela viu a forte luz oblíqua da tarde se espalhando na superfície da água misteriosa, meio mar meio lago, formando um espelho natural que tornavam as duas coisas em uma só: céu e mar, água doce e salgada, chuva e sol.
Coisas se juntando e se transformando em uma unidade, assim como ela estava com Jungkook naquele momento.
Quando ele estava quase lá, virou o pescoço para beijá-lo. Colou seus lábios nos dele com veemência, com desejo ardente, com mais promessas silenciosas sendo feitas, com retificações de sentimentos. Não importa quanto tempo passasse, jamais tropeçaria em coincidências marcantes como a daquela paisagem com outra pessoa. Jamais iria querer ver o sol depois da chuva com outro alguém. Jamais se entregaria daquele jeito, de corpo e alma, em literalmente qualquer lugar.
jamais seria a que estava sendo naquele momento com outra pessoa. Jamais. Aquela era exclusiva dele, das loucuras com ele e por ele, a mais verdadeira que já pisou na face da Terra.
Jungkook gozou forte, explodiu em mil pedaços dentro dela, se misturou a mais uma vez de forma íntima e abundante. O coração batia tão forte que podia sair pela boca, podia escorrer pelos seus pés. A cabeça zoneou com a impetuosidade da explosão, com o impulso disso. Caralho, era bom demais. Ele encostou a testa na nuca de , que ainda acariciava a lateral do rosto dele, mesmo que estivesse olhando para a frente, encarando o mar e o voo das gaivotas, o mar que agora brilhava com a lasca de sol que venceu as nuvens.
— Amo você — ele sussurrou no seu ouvido depois de recuperar o fôlego, mordendo o lóbulo da orelha. — Amo muito.
sorriu sozinha contra o vento.
— Eu também amo você.
Ela se virou devagar na direção dele, e os dois ajeitaram as roupas em meio às risadinhas, ao triunfo de quem apronta e escapa, e Jungkook prometeu a si mesmo que pensaria em algum outro lugar inesperado para tentarem de novo. Não com tanta exposição e nem com tanto risco, mas um que ficasse gravado na memória pra sempre como aquela pedra certamente ficaria.
Ele a viu ajeitar o cabelo com pressa, subir as alças do maiô e resmungar sobre a foto, sobre aproveitar a luz e tantas coisas que se perderam por um milésimo de segundo em que ele viajou no seu rosto. Aquele rosto com aquela expressão que ele gostava desde a primeira vez que viu. O semblante que literalmente o jogava para cima dela, roubava um beijo de surpresa, trazendo-a para mais perto não com a intenção devassa de repetir a dose, mas para reforçar seu êxtase, seu fascínio por aquela garota.
Você merecia uma foto. Você e essa cara de quem acabou de gozar — ele beijou seu queixo, suas bochechas, a parte debaixo da orelha com delicadeza. riu pelo nariz, e empurrou-o levemente.
— Isso não vai acontecer. Não agora — ela furtou um selinho rápido e se afastou. — Vão ser só 5 minutos e podemos ir embora. Antes que Candice e Yoongi chamem a polícia para nos procurar.
— A Candice, você quer dizer.
— Foi exatamente o que eu quis dizer — ela sorriu e deu de ombros, andando mais um pouco para a frente até encarar de novo aquela luz exclusiva batendo na água, abrindo-se pouco a pouco até contemplar toda aquela zona do mar, dividido em temas: à esquerda agitado com ondas, à direita manso e pacífico. apontou a câmera para essa dualidade específica, genuinamente encantada com a imensidão a seus pés.
Antes de ir embora, fotografou a pedra onde tinha acabado de ter um orgasmo e fotografou Jungkook em um momento espontâneo onde ele remexia numa espécie de cestinha larga e vazia feita de folhas, repleta de pétalas de flores e outros pedaços de madeira, sem ter medo nenhum de topar com um animal venenoso ou estranho. Ele sorriu quando tentou consertar tudo de novo e não conseguiu. Click. Tentou puxar algumas folhas para fazer uma nova cestinha, mas também falhou. Click. Tentou uma terceira vez e conseguiu fazer uma réplica quase perfeita. Click. Agarrou uma flor e ofereceu-a para , tão naturalmente que ela demorou a se tocar de que era pra ela. Click. Beijou sua boca com gosto de sal e agora também com gosto de suor. Click. Convenceu-a a colocar a flor atrás da orelha, que não durou muito por causa do vento, mas ainda deu tempo para uma foto. Click. Antes de deixarem a costa e perderem o fiapo de luz do sol para sempre, jurou ter visto uma pequena, minúscula faixa de arco-íris ao longe, bem longe, onde uma nova sessão de chuva se aproximava.
Click.



Jeon Jungkook, o Golden Maknae, vocalista principal e um dos membros mais populares do BTS, guardava um segredo terrível, perigoso e alarmante, que jamais poderia sair de sua própria cabeça, ou, mais especificamente, jamais poderia sair daquele quarto da mansão alugada em Ilha Santa.
Ele não gostava de roxo. Aliás, detestava roxo. Ainda mais naquele roxo feio e brilhante do casaco embrulhado dentro do pacote que o ofereceu assim que chegaram ao quarto no fim da tarde. A expressão no rosto dele variava de surpresa e de uma tentativa de esconder o asco. Quando viu ela sorrindo animada, se sentiu quase claustrofóbico.
— E então? — perguntou ela, entrelaçando as duas mãos na frente do tórax. — O que achou?
Estranho e artificial para se usar em qualquer lugar, ele respondeu automaticamente na mente, e se sentiu horrível por isso. Merda, mil vezes merda. Deveria mentir porque era o primeiro presente que ganhava dela?
Deveria ser honesto acima de tudo e dizer que detestou?
começou a ficar confusa com a demora na resposta, então ele puxou bastante ar pelo nariz e tentou:
— Eu… não esperava — e abriu um sorriso amarelo, tirando a roupa de dentro do pacote, constatando que ela era ainda mais feia do que imaginou que seria. Era um moletom simples, sem bolsos canguru ou capuz e poderia ter sido facilmente comprado em qualquer feirinha de Seul; não que o local da compra fizesse alguma diferença pra ele, mas aquela coisa estampada de flores secas e coloridas sobre o fundo púrpura não era algo que ele usaria por aí. Ele, Jeon Jungkook, não o Jungkook do BTS. Era com esse cara que estava namorando. — Não esperava mesmo.
Ele bem que tentou fazer essa frase significar uma coisa boa, mas Jungkook não conseguia fingir tão bem na frente de . Ela diminuiu o sorriso por alguns segundos, e ele reparou na mesma hora. Se sentiu horrível, péssimo, tremendamente babaca. Isso o desesperou.
— Você odiou, não é? — perguntou ela, em voz baixa.
— Não, amor, olha, é muito bonitinho, eu juro, e tem todas essas florzinhas, e todas…
explodiu em uma gargalhada, colocando a mão na frente da boca enquanto Jungkook ficou estático, atônito, ainda com um monte de desculpas na língua e palavras aleatórias que amenizariam sua verdadeira opinião.
— A sua cara! Tinha que ter visto a sua cara — ela riu mais uma vez, um pouco mais alto, porque ele ainda estava fazendo aquela careta de quem tinha levado uma bola no nariz.
E então ele entendeu, e revirou os olhos antes de deslizar o moletom de volta para a caixa de papelão.
— Você sabia — comentou ele, se sentindo um idiota. — Você sabia que eu iria odiar.
— Claro que eu sabia, você odeia roxo. Mas ei, ainda é um presente — ela pegou o casaco de volta, empurrando para o peito dele. — E temos um passeio daqui há 10 minutos, então trata de se vestir.
— Eu não vou sair assim — ele foi firme e direto, apavorado com a ideia de caminhar por mais de dez metros dali vestindo aquilo. — É sério, eu amo você, mas preciso ter algum direito de voto como aniversariante. Não vou usar isso.
— Você ainda não é o aniversariante, meu bem, temos mais 6 horas até isso acontecer. E vai mesmo negar de usar um presente meu? Tem certeza? — ela inclinou a cabeça para o lado, estreitando os olhos ameaçadoramente, e Jungkook sabia o que aquilo significava. Sabia muito bem.
Jesus, parecia que já vivia uma vida com essa mulher. Uma vida inteira.
Ele trincou os dentes e agarrou o moletom a contragosto e bateu palminhas leves cheias de sarcasmo.
— Parabéns, . Me transformou em um lacaio.
E se virou para entrar no banheiro. riu pelo nariz antes de dizer:
— O lacaio vai ganhar mais presentes até amanhã.
Jungkook não soube se isso era bom ou ruim.



— Para onde eles foram? — Jungkook perguntou assim que terminou o lance de escadas até a grande sala espaçosa, estranhamente vazia e sem nenhuma sombra de Candice e Yoongi. olhou em volta igualmente.
— Não faço a menor ideia — ela deu de ombros. — Eles deviam estar aqui agora, era o combinado. Acho que vou ligar pra…
Assim que levantou a mão para levá-la à bolsa, o barulho estremeceu nos seus ouvidos, vindo de todas as partes das paredes, preenchendo aquele cômodo enorme com maestria assustadora.
Do teto, Jungkook e notaram as batidas proeminentes e muito características do que poderia ser considerado o sexo mais violento que já deve ter ouvido – e presenciado. Dava pra ouvir os gritos, o barulho de tapa contra pele, a confusão de palavrões, os pedidos intermináveis de mais, mais, mais, e o barulho rouco e constante da cama, do colchão, a junção erótica que era impossível disfarçar.
— Minha nossa — disse, chocada.
— Fala sério — Jungkook disse com asco. Ninguém quer a imagem de um amigo, ou melhor, de um de seus melhores amigos e irmão trepando de jeito nenhum. — Eles sabiam do combinado?
— Claro que sabiam — respondeu, sem olhar pra ele. — Eu mandei uma mensagem há 10 minutos, então eles… — parou quando olhou para o chão. Um horror sem tamanho tomou suas pupilas quando sentiu o tecido cor-de-rosa embolado embaixo dos pés, revelando ser uma parte do biquíni de Candice. A parte de baixo. — Ai, não acredito…
— O quê?
— Nada — o afastou com uma palma, balançando a cabeça. — Só… vamos indo na frente, eles estão se entendendo. E não encosta nesse sofá — ela apontou para o estofado em cor off-white, parecendo perfeitamente alinhado e imaculado, a não ser por duas almofadas amarelas um pouco… tortas.
Jungkook fez uma careta idêntica à primeira, pegando na mão de e conduzindo-a para fora, com os passos apressados até demais.



Aquela noite guardava uma surpresa.
Várias surpresas juntas, tanto para Jungkook quanto para . Ainda era noite de 31 de agosto quando ele dirigiu pela cidade de Jeju, guiado por um GPS qualquer instalado no telefone para conseguir chegar até a marquise do Paradiscope, o cinema mais antigo e esquecido da cidade, escondido em uma rua de paralelepípedo apertada e majoritariamente escura. Jungkook já imaginava essa informação só de olhar para a frente do lugar, que não funcionava mais as luzes em neon, mas ainda conseguia exibir o nome da atração: Rocky I, II & III – Sessão tripla especial! De 19h às 23:30!
Jungkook olhou para antes de estacionar, as sobrancelhas se enrugando no meio da testa, sem entender absolutamente nada.
— Que lugar é esse?
— Um cinema — respondeu com entusiasmo, como se cinema fosse uma invenção totalmente nova. — Quero dizer, é só o resto do que era um cinema nos anos 80. Hoje ele fica misturado com uma loja de roupas e um sebo de antiguidades, mas ele ainda funciona. Fiz umas pesquisas ontem, e praticamente ninguém vem aqui. A não ser o público da terceira idade, mas aí é só às quartas, nas sessões dos anos 60.
Ela sorriu tanto que poderia iluminar a rua inteira. Jungkook ainda estava com a boca meio aberta, chocado com a informação, chocado com o destino, chocado com o empenho de , ainda que não pescasse nenhum motivo em especial por trás disso.
— Nossa, eu não… Não imaginei…
— Eu sei que você não imaginou. Afinal, acho que você até se esqueceu desse seu desejo. Mas no nosso primeiro encontro, você me levou a um drive-in. E quando jantamos juntos a primeira vez na sua casa, colocou Rambo na Netflix sem nem piscar. Então não foi difícil adivinhar — sorriu e estendeu a mão para pegar a dele. — Você quer um encontro clichê. Uma coisa normal, de filminho adolescente, que você nunca teve a chance de ter porque o seu trabalho vinha em primeiro lugar. E como é um dia tão especial quanto o seu aniversário, achei que já estava na hora de você finalmente ganhar esse presente.
Jungkook sentiu o ar dentro do carro parar, pesar, a música se perder. Sentiu os dedos dela roçarem nos seus com delicadeza, o sorriso dela se alargar de confiança por ter lido coisas nele que ele jamais disse. Não para ela, pelo menos. Não achou que algum dia diria de novo, pra ser honesto. Quando teve sua primeira namorada, Jungkook não podia ter tido um encontro trivial daqueles porque tinha acabado de debutar e precisava tomar cuidado. Com Ali, ele igualmente não podia porque estava começando a ter o nome difundido para fora da Ásia, um sucesso estrondoso que veio do nada, que o levou aos quatro cantos do mundo, com os olhos de fora começando a se virar e se atentar a 7 rapazes muito diferentes e talentosos entre si, e principalmente nele. O Golden Maknae. A denominação agora mundial. Ali entendeu isso mais do que ele, distribuiu recusas daquele convite sem pé nem cabeça, reforçando ainda mais em Jungkook os preços que a fama o estava obrigando a pagar.
Com , aquilo nem veio à sua cabeça, por mais que ela trouxesse de volta nele tudo que um dia já quis, tudo que um dia já foi. Mas o medo fantasma dentro dele de que as coisas se repetissem com ela, que se tornassem ainda mais destrutivas e tóxicas, não o deixava dar um passo fora da curva. Não tão rápido, tão imediatamente assim. Daria passos pequenos e seguros, mais seguros possíveis, e uma viagem à praia em um ambiente familiar e monitorável era o início disso, sem extrapolar tanto.
Mas quando viu que estava sendo tão ridiculamente transparente assim, tendo seus desejos mais ocultos totalmente explícitos diante daquela garota, Jungkook nem tinha como refutar, ou negar alguma coisa, muito menos fugir.
Parece que já vivi uma vida inteira ao lado dela, ele repetiu o pensamento, o coração inchando temerosamente. Parece que já vivemos várias vidas antes juntos.
Ele afastou sua mão e puxou sua boca, sentindo-se em êxtase, eufórico, feliz de um jeito quase desnorteante.
— Rocky, então? — ele zombou em cima de seus lábios, e passou uma língua em seu lábio inferior.
— Temos que comparar, lembra?
— Verdade, temos que comparar.
— Vamos, Jeon — ela o empurrou de leve, destrancando a maçaneta. — Hoje é dia dos mocinhos do governo.



O silêncio periférico ressoou barulhento nos ouvidos de Jungkook.
Ao caminhar para dentro do estabelecimento com , ele de repente se sentiu inseguro. Aquele temor tinha voltado, um medo disfarçado de crença, uma que ele tinha adquirido desde os 15 anos e que era difícil se livrar dela aos 25. Aquela convicção que dizia: já era, cara. O que você pensa que está fazendo? Indo a um cinema como gente normal? Acorda, se te virem você tá ferrado! tá ferrada, vai passar por tudo aquilo de novo e bingo, vai perder ela! É isso que você quer? Volta agora!
Por um milésimo de segundo, ele andou mais devagar, quase parando, desejando abrir a boca e dizer à pra virem outro dia, pra esquecerem daquela ideia. Não dava pra confiar em tudo. Jungkook já teve muitas neuroses com perseguição antes, lá no início, quando sua agência mal tinha como se manter de pé e eles precisavam fazer tudo sozinhos, se virar sozinhos, mesmo que ainda fossem crianças que não sabiam nada de Seul. Depois de um tempo e de muito sucesso, Jungkook se sentia mais seguro para lidar com um contratempo caso acontecesse, mas só de pensar em acontecer… Ele suava frio, projetava um zilhão de coisas, lembrava de outras. Jeju era movimentada naquela época, todo mundo queria aproveitar a praia antes que ficasse frio demais para isso, e a maioria eram turistas abastados da capital, e ter muita grana significava ter poderes que ele sabia quais eram, poderes que os tornavam experientes em perseguir, em chegar de fininho, em…
— Dois ingressos para a sessão tripla, por favor — a voz de o trouxe para a realidade, e sua mente letárgica viu tarde demais ela pegando o dinheiro na bolsa e oferecendo à senhora de idade por trás de uma guarita, que olhou para os dois por quase um minuto, mas não esboçou reação alguma e logo estava baixando o queixo para contar o troco e passá-lo para de novo.
— Não temos poltronas marcadas, então podem se sentar onde bem entenderem. A pipoca e o refrigerante ficam na barraquinha do lado da sala, geralmente tem desconto se você comprar o tamanho grande. É proibido fumar, beber, colocar os pés para cima, gritar ou falar ao telefone. Abrimos a exceção dos gritos caso o filme for de terror, fora isso, mantenham a língua na própria boca — ela vasculhou o rosto dos dois por um tempo longo demais. — Nos dois sentidos.
piscou, sorriu e agradeceu quando pegou os dois retângulos de papel, e tomou a mão de Jungkook para puxá-lo para a direção indicada.
— Tá tudo bem com você? — ela perguntou ao sentir a palma da mão dele um pouco úmida. Jungkook foi arrastado para a realidade de novo, engolindo em seco depois do torpor horrendo que atravessou seu corpo inteiro diante da possibilidade de uma senhora de mais de 70 anos reconhecê-lo e ter visto .
Ele balançou a cabeça em concordância, parecendo fraco demais.
— Claro. Tá tudo bem — disse ele, olhando para os lados da forma mais discreta que pode. Ele era um hipócrita do caralho. Deixou claro para Candice naquela mesa de jantar todos os motivos do porquê não precisava sentir o que estava sentindo, para que não desistisse de viver e se divertir por causa de uma tonelada de “e se”, mas ele mesmo estava coexistindo com essa preocupação filha da puta naquele momento, quando estava com ela em público, e no caso, um público que ele não tinha planejado, que não tinha controle, como foi o lance da praia de mais cedo, como era nos restaurantes selecionados em Seul, como era quando sabia exatamente quem comandava o lugar. Hipócrita, hipócrita. Não podia contar isso pra ela, não podia sequer demonstrar ou estragaria todos os planos que ela tinha feito pra aproveitar com ele.
percebeu que ele estava estranho, mas não teve muito tempo pra pensar nisso. Ao chegarem na barraquinha designada pela senhora, toparam com um homem quase adormecido sentado em cima de uma cadeira e com os pés apoiados em outra, lendo uma revista de arquitetura ou apenas olhando as figuras dos prédios.
puxou a bolsa para pegar as últimas moedas do troco quando aquela coisa monstruosa tomou Jungkook de novo, impetuosamente.
— Deixa que eu pago — ele atropelou as palavras, puxando ela para mais atrás, fazendo o homem levantar os olhos da revista.
franziu o cenho e riu com a estranheza, achando engraçado não pelos motivos que deveria achar, e voltou para a frente da barraquinha.
— Quando uma garota te chama pra sair, deixa ela cuidar de você — ela lhe lançou uma piscadinha sexy, marota, irresistível. Repetiu exatamente a mesma coisa que ele disse naquele drive-in. Conseguiu fazê-lo esquecer do medo estúpido, da preocupação sem fundamento, quase se esqueceu até onde estava. Meu Deus, ela era linda demais. O que ele faria sem ela?
O que faria se a perdesse um dia?
fez o pedido ao vendedor, que se abaixou para pegar dois copos grandes e apontou para a máquina de refrigerante ao lado, uma padrão de refil, com vários bocais dos mais variados sabores existentes. Enquanto ele preparava a pipoca, ela se virou para Jungkook mais uma vez, ainda imóvel no mesmo lugar.
— Qual sabor você quer?
— O mesmo que o seu.
— Bom, o guaraná só tem no Brasil — brincou, e Jungkook levou um segundo para entender e conseguir soltar uma risada mais natural. — Vou pegar coca cola. Pega a pipoca.
Ele assentiu e a viu voltar para a máquina. Ele respirou fundo e forçou todos aqueles pensamentos desnecessários a irem embora, pensamentos que já teve antes e que achou que tinha superado, que superaria com , mas certos medos apenas te enganam e se escondem, ficando ocultos por tanto tempo que você acha que deixaram de existir, mas na hora H… você retrocede. Se transforma na mesma pessoa que tanto evitou ser.
O homem, novamente, não esboçou reação alguma ao vê-lo na hora de entregar o balde de pipoca grande, apesar de ter espichado mais a atenção na direção daquele moletom esquisito que o maknae usava, mas nada além disso. Jungkook acreditou piamente que ele não o reconheceu, ou que eram aquele tipo de pessoa que simplesmente não se importavam. Ele catou uma nota grande de 100,000 wons do bolso e deu na mão do sujeito quando deu as costas, agradecendo-o em voz baixa e caminhando para a outra máquina, encontrando a namorada com os dois copos de papel cheios até a borda com o líquido escuro e borbulhante da coca cola.
A passeata ansiosa e torturante de Jungkook teve fim assim que entraram no negrume da sala, e quando se sentaram nas poltronas dos fundos, Jungkook pode finalmente se acalmar e olhar ao redor, captando o telão em branco, a pipoca no meio dos dois, os refrigerantes, o cheiro de rolos de filme e o ácido nítrico bem suave no ar, e … Sua namorada, parceira, tão atenciosa e cuidadosa em todos os detalhes, abraçando uma fantasia sua que ele nunca sequer tinha se abrido sobre.
Foi ali que ele se sentiu feliz, realizado, completo. Não tinha mais nada que quisesse naquela hora, nada mesmo. Tinha tudo que queria, que precisava. Estava realizando um tipo de sonho – por mais simples, clichê e idiota que fosse. Mas sonhos eram sonhos. E naquela noite, estava se sentindo mais Jeon Jungkook do que jamais sentiu.
A tela se apagou e voltou a se acender com a intro da MGM dos anos 70, o famoso leão rugindo dentro de um círculo. A trilha sonora retumbou pelas paredes acústicas, a famosa soundtrack correndo com os créditos no início. Duas ou três pessoas entraram depois, andando bem devagar para achar um bom lugar, todas com suas pipocas e suas bebidas. Uma senhora, ainda mais idosa do que a da entrada, arrastou uma bengala para se posicionar há duas fileiras à frente de Jungkook e , e tirou um pacote de salgadinhos da bolsa grande, fazendo Jungkook segurar uma risada. O espaço era tão compacto que pareciam apenas cidadãos se reunindo em uma sala de estar. Ele se espantou por alguém nessa idade estar consumindo coisas tão artificiais, mas assim eram as pessoas. O povo no geral. As pessoas comuns que, há tanto tempo, ele não convivia, não conversava, não chegava perto. Tudo ao seu redor se tratava de números, estrelatos, títulos, nomes grandes, pessoas sendo sempre reconhecidas por outras pessoas. Não havia um único lugar que pisasse que não fosse ser observado, reconhecido, cumprimentado. Desconfiava que até se se escondesse no meio de árvores, os próprios passarinhos o dedurariam. Aquela era uma experiência que queria ter há muito tempo, que precisava ter.
entrelaçou seus dedos e ele automaticamente os puxou para cima para beijá-los. Abriu um sorriso grande para ela e se inclinou para beijar sua boca também, mas chegou para trás e balançou a cabeça em negação, apontando com queixo na direção da entrada, onde a velha senhora da bilheteria estava de olho bem aberto.
Ele mordeu o lábio e assentiu, apertando seus dedos com mais firmeza. Então, finalmente, Stallone entrou pela porta de seu apartamento e foi cumprimentar Cuff e Link* no aquário, iniciando sua aventura épica como Rocky Balboa.



Se o cinema não tivesse horário para fechar, Jungkook teria gostado de permanecer dentro daquele escuro, com a atmosfera inalterada e perfeita com . As quase 4 horas de repetição dos eventos de Rocky passaram sem nenhum problema ou distração, ainda que a receita de bolo dos filmes fosse a mesma. Balboa começava fodido, descobria um campeonato, tinha divergências com o amor de sua vida Audrey, um evento específico virava o estopim que o colocava no ringue nos últimos 20 minutos de cada filme, ele lutava, apanhava, apanhava pra valer, e claro, ganhava com louvor, com um super cílio que o deixava sem enxergar em um dos olhos, o nariz quebrado e torto para o lado e o lábio rachado, fazendo seu discurso patriota e reiterando no final o quanto amava Audrey, sempre assistindo de casa ou longe da arena.
tentou argumentar que a entendia por querer fugir dessas coisas e tentar convencer o marido a fazer o mesmo, mas os argumentos de Jungkook provaram que ele seria um Balboa na certa. Em várias partes dos filmes, ele corrigia um golpe ou outro, dizendo que estava errado porque a posição do cotovelo estava errada, e que um movimento minúsculo fora da rota provava como as lutas eram ensaiadas e ainda mal ensaiadas, porque Tommy o tinha ensinado o verdadeiro boxe. ria e prestava atenção, achando graça por dentro, mesmo que por fora ele parecesse estar falando muito sério, mas ele não conseguia ficar sério o suficiente naquele moletom engraçado.
Mas quando ele falava assim, era muito difícil resistir à vontade de beijá-lo. E ela queria beijá-lo, queria muito, e teria feito isso se não fosse pelos olhos de águia da mulher da bilheteria, que aparecia de 5 em 5 minutos para vasculhar a sala, o que era um pouco exagerado, mas talvez aquela senhora estivesse preocupada com mais do que uns beijos na boca. Talvez com vandalismo, malfeitores e comida clandestina como a da idosa na fileira da frente. Vai saber. Mas ela estava atrapalhando um dos auges do clichê de cinema que fazia parte da lista de surpresas pra Jungkook: o beijo. Aquele momento em que o escuro e as mãos juntinhas faziam o próprio serviço. O momento que o beijo na tela deveria ser reproduzido na vida real. não conseguiu isso e ficou meramente frustrada. Tudo bem que só faziam algumas horas que tinha trepado com ele em uma pedra quente e molhada, com um pouco de areia e lodo no alto de uma praia, mas ainda assim, ela queria o beijo de cinema!
Ao subir os créditos do último filme, estava pronta para se levantar e deixar o lugar, assim como todos do recinto começaram a fazer, mas sentiu as mãos dele puxando as suas para que ela permanecesse. Dois segundos depois, mal teve tempo de virar a cabeça e perguntar alguma coisa. Foi tomada pelo beijo forte, pela mão na nuca, pelos dedos no seu cabelo, pela sua língua furiosa que desconfigurou todos os seus sentidos.
Ela o beijou de volta, entendendo parcialmente o raciocínio dele: alguém tinha que parar o filme na sala de projeção. Alguém tinha que interromper a rolagem e só poderiam fazer isso depois dos créditos extremamente demorados de antigamente. Jungkook duvidou muito que o cara da pipoca fosse querer deixar o lugar em que estava tão confortável, então só havia a outra opção óbvia. E ele aproveitou.
Aquele amasso pareceu ter durado o tempo de uma vida inteira, e só foi interrompido porque precisava respirar e um pouco de líquido escuro tinha tombado nos seus pés, expostos em uma sandália aberta. Ela arfou e se abaixou para pegar o copo de volta, totalmente desorientada.
— Temos… temos que ir — imediatamente, começou a juntar tudo, jogar os copos na tigela de pipoca, sentindo a bochecha arder sem motivo nenhum enquanto Jungkook sorria e mordia o lábio inferior daquela forma sacana de sempre, do jeito certo que a fazia ter certeza que enlouqueceria. Todo dia. Ele amava isso, amava o que causava nela, e duvidava que algum dia iria deixar de amar. Sabia a fórmula perfeita de fazê-la se apaixonar e sentir tesão todo santo dia.
Os dois finalmente se levantaram, sendo os últimos a deixarem a escuridão eterna da sala, encontrando logo depois a mesma senhora bem prostrada na saída, segurando um saco de lixo azulado e com uma expressão um tanto carrancuda. levou um susto com a presença repentina, e quase deixou cair o copo de plástico no chão.
— Se divertiram? — ela murmurou com a voz cansada e arrastada, mirando os dois com intimação. e Jungkook assentiram na mesma hora, rápido demais. — Jogue o lixo, garota, não temos a noite inteira — ela resmungou, e percebeu que a velha segurava a sacola há vários minutos. murmurou um “ah” e desculpou-se rapidamente enquanto jogava o balde e os refrigerantes, vendo-a logo em seguida fechá-lo e sair para o outro lado em meio a resmungos que se pareciam com “esses estrangeiros…”
Foi só ela se afastar para que Jungkook e começassem a rir disfarçadamente, se apressando para sair do lugar, novamente com aquela sensação eufórica de aprontar e sair ileso, a adrenalina inflando seus sistemas, uma sensação grandiosa que procuraria ser atingida mais vezes.
— Será que ela é sempre mau-humorada assim? — ela perguntou quando chegaram ao carro do outro lado da rua — Ou será que ela não gostou de mim?
— Muita gente nesse país não gosta de quem não é desse país, e geralmente tem a cara dessa senhora. Ela deve ser mais uma que pensa que tudo fora daqui é cocaína e pornografia, como se fôssemos inocentes ou coisa do tipo — ele bufou levemente enquanto se ajeitava no banco do motorista e jogava a bolsa no banco de trás.
— Então ela pensou que eu iria me ajoelhar no escurinho e chupar você por trás das poltronas?
— Tenho certeza que sim — ele riu, umedecendo os lábios — Você era o lobo mau e eu uma pobre ovelhinha nativa.
— Pobrezinha, quem sabe uma voltinha por Seul não faça ela mudar de ideia — deu de ombros e Jungkook riu de novo, encarando o relógio no painel. 23:35. Tarde demais para ir jantar e cedo demais para voltar pra casa.
— O que você quer fazer agora? — perguntou ele, acariciando o cotovelo de em gesto automático.
esperava essa pergunta. Já tinha a resposta na ponta da língua.
— Vamos em um lugar.
— A essa hora? Onde?
— Dirige em linha reta e depois vira à direita. Você vai saber quando vir.
Jungkook franziu o cenho e abriu a boca para perguntar, mas balançou o dedo indicador em negação e apenas apontou com o queixo para frente, sem perguntas.
Ele aceitou e girou a chave na ignição, dando uma última olhada pela rua antes de partir.



Jungkook ficou parado por um tempo indeterminado, observando as luzes enfileiradas em postes de um lado para o outro, como se absorvesse a própria luz para dentro. Inspirou e expirou o ar calmo da noite, sentiu um pouco de frio que a maresia longínqua do porto de Mangjangpo fazia há mais de 20 quilômetros de distância, viu pontinhos brilhosos que se pareciam com vagalumes pairando embaixo das lâmpadas altas, mas talvez fosse apenas falha de percepção.
puxou sua mão e ele deixou-se ser guiado pela passarela semi iluminada, com o chão de paralelepípedos tortos e outros em falta, dando lugar a pedaços de folhas mortas, gramado amassado, terra escura e velhas flores. Ele arrastou os tênis por toda essa cascata da natureza, virando os olhos para todos os cantos não com a ansiedade e medo de antes, não com aquela parcela grande de preocupação em ser visto, mas sim porque… Aquela junção de tudo, as luzes fracas, os arbustos ao lado formando cercas vivas, as árvores altas e as flores ao redor, e até os falsos vagalumes…
— É lindo — ele suspirou quando finalmente pararam, soltando a mão de para conseguir passá-la pelo rosto surpreendido. — Aqui é lindo. Como você descobriu isso?
— Era o único lugar que estaria aberto depois das 21:00. E eu não queria ter que subornar outro porteiro — ela deu de ombros, sorrindo lindamente por baixo daquela claridade cinzenta e voltou a pegar a mão dele. — Mas essa não é a questão. A questão é que vamos fazer uma coisa muito importante agora.
Ela recomeçou a andar. Jungkook a acompanhou, devagar, pé ante pé, virando a cabeça para os lados em um minuto ou outro, esperando alguma coisa, alguma coisa grande. O lugar parecia gigantesco, e ele tinha se lembrado da placa presa na entrada, indicando o Camellia Forest, uma enorme propriedade com dezenas de quilômetros quadrados de árvores, muitas árvores. Uma verdadeira porção arbórea no litoral, com os arcabouços muito bem podados e que certamente lotava na primavera, quando as flores desabrochavam, criando um corredor magnífico de cerejeiras e outras espécies, coisas assim de dramas de TV, assim como se enchia de neve interminável no inverno e dava a oportunidade de casais escreverem as iniciais nos cascos das árvores ou no chão, mas ali, no fim do verão, Jungkook só estava sentindo a brisa fresca, o acolhimento dos dedos entrelaçados nos de , tendo certa dificuldade em decidir quando tomaria a iniciativa para perguntar o que ela estava tramando porque já estava se sentindo um idiota por não ter descoberto.
Porque ela claramente tinha um plano.
— Tem algum animal exótico por aqui? — ele quebrou o silêncio confortável, um pouco hesitante. — Um laguinho? Um chafariz de chocolate? Imitação da aurora boreal?
riu pelo nariz e não disse nada. Jungkook esperou uma resposta que não veio. Já estava ficando ansioso.
— Eu não sou tão bom assim pra adivinhar as coisas. Vai, me conta.
— Não tem nada pra você adivinhar.
— Claro que tem. Por que estamos caminhando nesse parque tarde da noite como se fôssemos dois adultos de meia idade com…
Ele parou de falar. A revelação pareceu estourar na sua cabeça. Antes que ele sequer externasse suas suposições, parou de andar e se virou para ele, com um sorriso ameno, acolhedor, trazendo tanto amor nos olhos que o deixou sem palavras.
— É exatamente o que estamos fazendo. Caminhando. Como um casal normal — ela indicou o queixo para as mãos entrelaçadas, dando de ombros. — Talvez o normal não seja fazer isso à meia noite, mas eu gosto de pensar que temos o nosso próprio normal. Fazer o que todo mundo faz quando não estão fazendo, sabe? Acho que você viveu tempo demais só de um lado da moeda, então quero te mostrar como seria o meu lado. Transformar em nosso. E sei que você quer momentos assim tanto quanto eu.
Um pássaro cantou ao longe, algum animal noturno deve ter se embrenhado naqueles arbustos, mas Jungkook permaneceu parado, estático, até um pouco enrubescido enquanto olhava para e sentia o coração inchar, chegar perto de explodir. Ela parecia calma, serena, com seu vestido azul de flores vermelhas e as sandálias de tiras, com maquiagem leve e agindo como uma garota qualquer de 23 anos em um encontro qualquer com seu namorado qualquer, sem ter nenhuma ideia de que estava longe de ser uma pessoa qualquer. Naquele momento, ela era muito mais do que Jungkook conseguia dizer, do que conseguia colocar em palavras. Ele se sentia um pouco idiota por não ter se tocado de suas intenções tão simples antes, mas como poderia? Ele nunca tinha vivido algo tão banal quanto aquilo para sequer pensar na possibilidade. Sempre achou que seria extremamente improvável que quisesse ter encontros daquele tipo antes de contabilizarem um tempo razoável de relacionamento, um bom tempo, suficiente para que ele tivesse arrumado todas as desculpas possíveis caso fossem pegos. Não imaginaria que ela faria tudo que estava fazendo hoje. E não imaginava que se sentiria tão bem com isso, tão seguro, tão feliz e entregue.
Ele não parou de olhar pra ela por um tempo absurdamente longo, um que estava começando a preocupar .
— Jungkook? Ei…
Ele a puxou repentinamente para perto, passando os braços pelos seus ombros até abraçá-la. Abraçá-la com força, apertando seu corpo contra o seu, marcando cada curva dela no seu esqueleto. deu um risinho contra o peito dele e o abraçou pela cintura, sentindo-se feliz pela felicidade dele. Jungkook estava sendo inundado por um tsunami de sentimentos, mas gratidão era o maior de todos eles no momento. Uma gratidão imensa por se sentir do jeito que estava: visto, valorizado, cuidado, acolhido, ouvido. Era emocionante, em certo ponto. Se sentiu tão amado que não resistiu em amá-la também, de novo e de novo, um pico forte e quase cego que seria capaz de sentir pelas batidas vibrantes do seu coração.
— Você não existe, — disse ele, ainda abraçado a ela, ainda sem saber quando iria soltá-la. — Você não existe.
se pressionou para mais perto, afastando a cabeça para depositar um beijo no seu nariz.
— Só estou deixando tudo com cara de primeira vez pra você. É a nossa primeira vez. Merecemos um pouco de banalidades estereotipadas.
Ele riu alto e beijou sua boca em um selinho calmo, forte, gostoso, absorvendo seus lábios para dentro dele, deixando-se ser levado para dentro dela também, seu próprio paraíso particular, uma pequena parcela de toda a divindade que ela era por inteiro.
— Te amo — sussurrou, e tomou a liberdade de beijar seu nariz também. — Te amo muito. Nossa, te amo demais. Acho que você precisa pegar leve porque sou muito novo pra ter um ataque do coração, e não sei se aguento mais uma dessa. É sério! — Ele sorriu de encontro ao sorriso dela, ficando perto desse jeito por outra escala longa de tempo, sentindo o vento passear pelas bochechas e o zunido de insetos nos ouvidos. — Amei isso. Amei cada detalhe. Você é linda e genial e, pra ser sincero, sou o cara mais feliz do mundo agora. Do mundo mesmo, porque em todos os lugares, só eu estou com , e é só eu que tenho o privilégio de ter o coração guardado com você.
mordeu o lábio inferior dele, beijou seu queixo, a maçã do rosto, o espaço entre as sobrancelhas, tudo com um carinho exacerbado de quem quer marcar território de um jeito nobre, de quem se sente tranquilo por ter encontrado sua outra metade e um depósito mútuo para o seu coração, reciprocidade. Intimidade entre duas pessoas era vista de longe, quem amava de cara limpa e sem preocupação, assim como era explícito quem sobrevivia de migalha, de sobras da atenção do outro. Jungkook e tinham tomado uma importante decisão de se amarem, e isso, naquele momento e naquela fase da vida, bastava. Quem diz que só amor não basta, não acredita que ele abre caminhos para todo o resto. Que amor + amor = confiança, que é igual a disposição, que é igual a esperança, paciência, honestidade, que é igual a tudo que já se conhece.
— Te amo tanto — ela soltou um suspiro pesado, guardado, um que foi quase um choro de tão expandido. — Ainda não acredito que isso tá acontecendo. Que você foi capaz disso, que eu fui capaz. Às vezes eu acordo e fico apavorada nos primeiros dois segundos que não vejo o Bam na entrada do quarto, ou não te vejo dormindo, ou não escuto o chuveiro, ou não sinto o cheiro do seu café. E quando vejo, quero voltar a dormir pra não pensar que tudo pode desaparecer, porque talvez eu não vá saber lidar com tanta sorte e felicidade na vida. Nunca tive isso. Nunca achei que teria algum dia. Não pensei que ter meus planos destruídos de um dia para o outro fossem me trazer algo tão bom, mas… — ela parou e riu fraco, pegando o rosto dele entre as mãos enquanto roçava com o dedo por trás das orelhas, no nariz dele, em qualquer pontinho do rosto. — Eu amo você, Jungkook. De verdade. Mais do que já amei alguém na vida. Você é lindo, generoso, corajoso, talentoso, determinado, sensível e a maior estrela do mundo. Está destinado a coisas muito maiores do que pensa. Eu tenho certeza disso — ela levantou os pés para beijá-lo de novo, mais rápido e com um toque a mais de ternura. — Feliz aniversário.
Jungkook mal escutou a última frase. Ainda estava preso nas palavras de , na forma como ela o olhou, com tanto carinho e amor que ele achou que seria capaz de estourar, e quando seu entendimento chegou na última proposição, ele franziu o cenho confuso e puxou seu pulso para a frente do nariz, mostrando as horas no relógio digital de pulso que ele mal usava.
00:01.
1º de setembro.
Ele sorriu. Sorriu muito, sorriu com alegria, com gratidão pela primeira vez, em muitos anos, estar completando mais um ano de vida. Pelo padrão daquela data, Jungkook estaria entrando no seu carro no dia anterior e traçado uma longa jornada na estrada para qualquer outro lugar, qualquer outro país se fosse o caso, louco para ficar bêbado e transtornado com seus amigos mais próximos e outras pessoas importantes. Um ou dois dias depois iria estacionar em Busan, abraçar seus pais, levá-los para jantar, dizer que era muito grato por tudo e voltar para a capital, sentindo-se a mesma pessoa de sempre porque não acreditava que a idade transformava algo em você. Ainda acreditava nisso.
Mas naquele 1º de setembro, Jungkook se sentia diferente, e sabia que um número não tinha nada a ver com isso, mas uma montanha de coisas que estavam relacionadas com a garota à sua frente e seu sorriso lindo. A presença de alguém que iluminava suas qualidades, sua simplicidade e seu eu de verdade, sem esconder nada, sem precisar disso. Só de estar ali, sentindo o que estava sentindo, mostrava que tomou a decisão certa no dia daquela tempestade. Valia a pena todo o resto.
Ele puxou o rosto dela pra mais perto da mesma forma que ela fez, e os dois riram enquanto estavam enclausurados nas mãos um do outro.
— Pena que você esqueceu sua câmera — ele depositou um beijinho em , contorcendo o rosto em uma careta. — Mas quero dar um jeito nisso.
Ele a soltou e se virou para trás, olhando para todos os lados possíveis no escuro até achar o que estava procurando. Em um instante, Jungkook marchou por cima dos cascalhos e das folhas mortas até uma árvore baixa, escondida entre arbustos e mais folhas ainda, esticando o braço para cima e retornando com um ponto de cor amarelado nas mãos, talvez pela virada da estação, talvez por ainda estar agarrada no verão.
sentiu o pequeno caule da flor atrás da sua orelha pela segunda vez no dia, e as pétalas grandes e arredondadas fizeram carinho na sua bochecha e na lateral do olho.
— Você é linda — ele colocou a outra mecha de para trás, sentindo o coração disparar no peito, arrepiado. — É a mulher mais linda do mundo. Quero guardar seu rosto pra sempre.
Uma frase estalou na mente de Jungkook, uma que não pensava há muito tempo, uma que já tinha tido na presença de uma vez, quando a levou ao Covil e reparou no seu rosto, livre de julgamentos internos e de ressentimentos sem sentido.
Seu rosto é o que eu quero lembrar. O corpo é o que eu quero sentir.
Existem coisas para serem lembradas e coisas para serem vividas.
Então, ele puxou o celular do bolso de trás e apontou a câmera para ela, que se sentiu repentinamente sem graça e as bochechas corando.
— Jungkook…
— Me deixa tirar essa. Por favor — ele juntou as mãos em uma súplica. — Hoje é meu aniversário.
Ela revirou os olhos pela chantagem, mas deixou um sorriso espontâneo pintar seus lábios até que ele posicionasse a câmera e clicasse. Tirou várias, uma atrás da outra, e comentou que ela estava igual à princesa Moana da Disney. Ela riu mais uma vez e virou o rosto para o lado, e mais uma foto. Mais outra e outra. Até que ele mudou a câmera e a chamou para uma foto em conjunto. Já tinham algumas várias fotos deles juntos até aquele momento, a maioria tirada de momentos íntimos, sem preparação. Daquela vez, Jungkook passou os braços por sua cintura e a puxou para perto, e automaticamente sorriu.
Antes que ele apertasse no click, ela virou o rosto para beijar sua bochecha. Na próxima, ele virou e a beijou na boca. A iluminação baixa serviu para deixar a flor do cabelo dela mais aparente, e o sorriso dele também.
— Temos que ir. Eles devem estar procurando a gente. Não sei como ainda não ligaram — disse depois da sessão, e Jungkook deu de ombros.
— Coloquei o celular no modo avião.
— Eu também — e os dois riram. Jungkook pegou na sua mão de novo e estava pronta para dar meia volta e ir para o carro, mas ele a puxou de volta.
— Ei, espera. Será que… a gente podia andar mais um pouco? Completar a rota.
viu a sinceridade quase desmedida naquele pedido. A súplica de quem ainda não queria acordar para a realidade de um sonho.
Ela concordou com a cabeça, voltando à posição original.
— Como você quiser, Jeon.
E assim, os dois fizeram o restante do trajeto a pé.



Era quase 1 da manhã quando Jungkook e finalmente entraram pela porta da frente, o que fez o susto pelo “feliz aniversário!” berrado com direito a chuva de confete antes que sequer pisassem no batente soar muito mais assustador.
Jungkook pulou de susto para trás, agarrando a mão de na mesma hora, sem entender nada de imediato. O ambiente estava escuro, as janelas estavam fechadas, não havia um único barulho de grilo vindo de dentro ou fora da casa e de repente… Candice e Yoongi estavam gritando, batendo palmas, sorrindo enquanto seguravam um pequeno bolo redondo com uma vela em cima.
— Nossa, vocês demoraram pra cacete, sabem que horas são? — Candice bufou e andou na direção de Jungkook, metendo um chapéuzinho de papelão em sua cabeça com o desenho do Buzz Lightyear. — Achei que tinha dito que iam voltar à meia noite.
Ela olhou para ao dizer. A garota suspirou forte e revirou os olhos.
— Achei que vocês só iriam fingir que sumiram, e não sumir de verdade.
— A gente não sumiu.
— Eu sei, eu ouvi.
— Gente — Yoongi interrompeu antes que Candice abrisse a boca, chamando a atenção das duas. — Deixem o aniversariante passar.
percebeu que estava na frente do namorado, que olhava para as duas com as sobrancelhas franzidas em busca de entender o que estava acontecendo. Ela saiu da frente com um olhar de desculpas, puxando-o para dentro e posicionando-o diante do bolo.
— Calma aí, tudo foi um plano de vocês? — ele olhou para todos, um pouco chocado. Depois, se virou pra . — Eles nunca iriam ao cinema com a gente, não é?
Todos negaram com a cabeça.
— Nunca teve combinado, não é?
Outra negação.
— Caramba, eu nem desconfiei — ele soltou um muxoxo. Yoongi ergueu ainda mais o bolo, impaciente com o fogo da vela que descia cada vez mais.
— Sopra logo isso antes que você fique sem bolo.
— Não se esqueça de fazer um pedido! — disse Candy.
Jungkook riu pelo nariz. Olhou para , que acabava de pegar um chapéuzinho do Buzz para si mesma, olhou para Candice que parecia ter os olhos surpreendentemente brilhantes e animados, o que não se sabia se foi pela reconciliação inesperada com Yoongi ou porque amava festas e comemorações no geral – ela parecia longe, há anos luz de ter odiado o maknae algum dia –, e olhou para Yoongi, um tanto baixo e vestido de camisa branca larga, uma bermuda neutra e chinelos, usando o mesmo chapéu de papelão que estava torto nos fios negros e longos, como se tivesse lutado para não usar.
Jungkook olhou para todos. Uma vez e duas vezes sem piscar. Abaixou o queixo e soprou a vela.
Ouviu o click da câmera de no exato momento em que soltou o ar para a chama. Ouviu mais um quando Candice bateu palmas. Yoongi entregou o bolo para Jungkook e o fotografou de novo. Candice pegou a câmera e fotografou os dois juntos. A mesma Candice registrou Yoongi e Jungkook tentando cortar o bolo e se sujando de glacê. tomou propriedade da máquina mais uma vez e programou em cima de uma mesa para os 4. Fizeram poses engraçadas, poses sérias e poses românticas. e Candice se abraçaram em uma foto enquanto Yoongi e Jungkook passavam um braço pelo ombro do outro. Candice passou um braço pelo cotovelo de Jungkook enquanto riam de alguma piada que uma foto não revelava. franzia o cenho para Yoongi como se ele tivesse reclamado de algo que ela não concordava, e isso poderia ser muito bem o recheio do bolo. Sorrisos, poses, espontaneidade, tropeços, caretas, sujeira, a nova Nikon de pegou tudo.
E Jungkook tinha certeza de que aquele era o melhor aniversário de sua vida.
— Ei, tá na hora — Yoongi bateu em seu ombro depois de 40 minutos de comemorações. O maknae franziu o cenho, ainda mastigando um pedaço de bolo — Sua live de aniversário. Ordens da empresa.
Jungkook se colocou de pé num salto, os olhos saltando das órbitas.
— Puta merda, a live! — ele engoliu a massa de chocolate com força, batendo as mãos em cima da mesa de centro para se livrar das migalhas.
— Uma live agora? — Candice perguntou.
— Para o resto do mundo, o horário tá perfeito. E é uma tradição.
— É, por mais que eu odeie ela agora — Jungkook murmurou, mas não parecia sério o suficiente. Não parecia que odiava de verdade essa parte do trabalho. Não odiava. Apenas queria ignorar por um momento, postergar as felicitações públicas para estender as felicitações de quem realmente importava, ali, naquela sala ampla de um casarão.
Ele puxou o celular do bolso e o ligou, virando-se para Yoongi.
— Trouxe o violão?
Ele assentiu, porque era lógico que tinha levado.
— Beleza, vou para o deck — ele se virou para seguir para os fundos, mas parou em no meio do caminho, que ainda segurava um pratinho com um pedaço de bolo pela metade e uma carinha de cachorro abandonado. — Desculpe por sair assim, linda, prometo que vou ser rápido.
imediatamente relaxou os ombros e sacudiu a cabeça.
— Não se preocupe. Vou guardar o seu bolo — e se aproximou dele para sussurrar: — E vou te esperar na cama.
Jungkook não disse nada. Só sorriu, e sorriu e sorriu até beijar o sorriso dela com o seu.
— Amo você. Obrigado por isso — ele se virou de repente, colocando a mão nos cabelos loiros de Candice, que estava sentada no sofá com seu pratinho, e bagunçou-os como se ela fosse um cachorro. — Obrigado você também, Candy.
— Pra você ainda é Candice! — ela rosnou, empurrando a mão dele para longe do seu cabelo. Jungkook riu alto.
— Já era, agora somos família, aceita de uma vez — ele deu de ombros e começou a se afastar na direção do deck, arrumando e bagunçando o cabelo ao mesmo tempo, achando uma boa posição no meio dos móveis de madeira que fornecesse uma boa luz e vedasse qualquer ruído.
Antes de abrir a transmissão e antes que Yoongi aparecesse com seu violão, Jungkook se viu diante da câmera frontal e percebeu que ainda estava usando o moletom roxo capenga e proposital de . Imediatamente, teve o impulso de arrancá-lo, mas então parou, lembrou de todos os lugares em que esteve com ele e o deixou ali, bem alinhado, transformando-o em uma das peças mais especiais de sua vida.
Jeon Jungkook tinha 25 anos. E se sentia, finalmente, vivo e feliz de novo. Pronto para viver.
Pronto para conquistar o mundo.


"Sons loucos em seus ouvidos fazem você se sentir bem
Eles vão levá-lo de volta à vida
﹝...﹞
Fivelas de amor sob a tensão dessas noites selvagens
Corra, mas você não pode se esconder."

🖤🎤 Mad Sounds


Antigamente, Jungkook procuraria no Google Maps um lugar mais próximo ou tão longe possível para se sentar caso visse Candice Chaperman ocupando o mesmo metro quadrado que ele queria ocupar.
Mas naquela madrugada fresca e até um pouco gelada de Jeju, onde o deck dos fundos recebia toda a massa de vento que vinha do mar lá na frente, escondido no vácuo negro da noite, Jungkook andou sem preocupação para a cadeira de descanso ao lado da dela, sentando-se o mais silenciosamente possível, mas que ainda era mais alto do que todo o silêncio que já rodeava a casa.
Candice levou um susto com a aparição, e o cigarro queimando entre os dedos quase caiu no piso de madeira. Mal dava pra acreditar em como aquilo ainda estava aceso com tanta ventania.
— Meu Deus, não sabe bater? — ela grasnou, falando a primeira coisa que lhe veio à mente. Jungkook riu pelo nariz.
— Bater? Na cortina? — ironizou, gesticulando para a entrada do cômodo, que era dividido do restante da casa apenas por uma cortina de uma mistura de miçangas acrilicas, imitando um estilo boho indiano com um pouco do subúrbio da Coreia. Candice revirou os olhos quando se tocou do que disse e voltou a tragar o cigarro, não abrindo a boca para mandá-lo sair. Era um bom sinal. Talvez não estivesse mais tão incomodada assim por absolutamente tudo a respeito de Jungkook. — O que faz aqui acordada a essa hora?
— Devo te perguntar a mesma coisa?
— Eu não estava dormindo — ele respondeu naturalmente, mas o toque de malícia foi instantâneo e sem margem de erro. Candice virou para olhá-lo e percebeu os detalhes: ele estava sem camiseta e com uma bermuda preta qualquer, segurando algo na mão perto do bolso. Ela revirou os olhos mais uma vez. — E pelo visto você também não.
Agora era a vez de ele reparar: o roupão branco jogado pelo corpo, o cabelo ondulado preso de qualquer jeito no alto da cabeça e aquela expressão relaxada de…
Bom, Jungkook sabia exatamente quando uma mulher tinha acabado de gozar. Era um talento seu. Cada expressão era única, mas todas carregavam uma coisa óbvia.
Ela, sabendo que tinha sido pega, abriu um sorriso falso sem mostrar os dentes e respondeu sem grande civilidade:
— Eu estava trepando com o seu amigo e você estava trepando com a minha amiga, pronto, fim de papo.
Jungkook riu e torceu a boca em concordância, ajeitando as costas na cadeira espaçosa e finalmente puxando o próprio cigarro do maço amassado que segurava, posicionando a ponta entre os dentes e acendendo-o com um isqueiro pequeno quase invisível.
Candice o viu atear o fogo e tragar a primeira leva do tabaco, sem se dar ao trabalho de balançar as mãos para dispersar a fumaça como geralmente faziam as pessoas que fumavam ao lado de outras pessoas – uma questão de respeito básico. Mas é claro que Candice não dava a mínima pra isso.
— Dunhill? Sério? O que você é, um aristocrata? — perguntou ela, reparando na caixa avermelhada que ele apoiou na mesinha de madeira.
— Você fuma Davidoff, quer falar o que de mim?
— Yoongi fuma Davidoff, eu fumo Parliament. Quer dizer, não fumo mais — ela sacudiu a cabeça, rápido demais. — Eu não compro mais. Não posso mais, eu promet- Você não pode contar isso pra , entendeu?
— Só se você não contar de mim também.
— Prometeu a ela que iria parar?
— Eu não prometi. Mas… Disse que ia tentar — ele levantou os ombros com relutância, como se a ocasião em que aquilo foi dito não mostrasse uma confiança plena de suas palavras. — E também que não iria fumar na frente dela, e que ia tentar fazer só em momentos especiais. Mas acho que isso não cola, né?
Candice engasgou uma risada.
— Esse tal de momentos especiais é um tiro no pé. Acredite, já tentei. Daí você começa a trabalhar como maluca, ajudar velhinhos a atravessar a rua, oferecer sorvete pra criancinhas carentes e transforma todos os momentos em especiais pra buscar sua recompensa.
— Isso aí. E fica difícil não cair nessa fábula quando se vive com ela. Sabe? Todo dia é especial com a .
Jungkook falou sem olhar pra ela, colocando o cigarro na boca de novo como quem comenta sobre o clima, quem não está prestando atenção de verdade nas próprias palavras. Candice ouviu e sentiu um milésimo de segundo de choque e depois de paz, uma paz que vinha do concordo plenamente com você.
— Meu Deus, em quem nos transformamos por ? Agora nem podemos mais ser jovens adultos normais e depravados com seus vícios sem se importar com os problemas futuros que eles trazem? Só por que ela não é uma depravada?
— Você que pensa — Jungkook soltou imediatamente e Candice arregalou os olhos antes de desferir um tapa no seu braço. Ele gemeu um “Ai!”
— Cuidado com o que fala. Não é só porque agora namoram que preciso da imagem de vocês dois pelados na minha cabeça.
— Não foi a gente que performou um pornozão em alto e bom som hoje mais cedo que até o Vaticano escutaria.
— Que coisa horrível de se dizer.
— Foi horrível de ouvir também.
Candice lhe deu outro tapa, mais fraco dessa vez porque precisava controlar o riso.
— Não importa, só espero que você continue tratando ela como a porra da Cleópatra, mesmo depois de ter conseguido o que quer — ou volto a planejar o seu assassinato, ela quis completar.
— Acha que eu sou tão idiota de deixar ela escapar? — Ele fez uma careta, talvez pela fumaça reversa que invadiu seus olhos ou pela ideia absurda de tratar menos do que bem. Candice arqueou as duas sobrancelhas pra ele. — Tá bom, sei que sou idiota, fui um idiota esse tempo todo, mas me dá um crédito agora. Tô apaixonado. Pra caralho. No nível de querer viver a vida com ela e tudo isso.
Candice ficou parada por um minuto inteiro até abaixar a mão e voltar a encarar a noite, internalizando mais uma onda de alívio que as declarações de Jungkook sobre sua amiga traziam nela. Esse desgraçado estava convencendo ela de verdade. Não tinha caído nenhuma vez desde o dia do aeroporto.
— Acho que te julguei mal. Você não é tão burro quanto eu pensava — murmurou, tragando mais um pouco. Ele riu pelo nariz.
— Ah, eu era burro sim. Não precisa ser gentil — disse ele, levantando os ombros. — Mas acho que te julguei mal também, então estamos quites — Candice o olhou com as sobrancelhas juntas em dúvida. — O lance da exposição e tudo mais. Fui meio duro com você no jantar naquele dia, mas caí do cavalo quando cheguei aqui. Pensei num monte de merda quando fui ao cinema com a .
Candice olhou pra ele.
— Acha que alguém te reconheceu?
— Não, mas fiquei com medo. Odeio ficar me preocupando com estimativas baixas, mas foi exatamente o que eu fiz. Pelo menos por um tempinho.
Ele bateu as cinzas no piso de madeira, bem entre os seus pés descalços. Candice não falou nada, mas não teve tempo porque ele logo estava falando de novo:
— Olha, eu achei que você só tava buscando uma desculpa pra acabar com tudo, que só seria a namorada do hyung até certo ponto. E eu não ia te crucificar por isso, falo sério. Ninguém merece ter a vida invadida e o nome pipocando pra lá e pra cá sem nunca ter pedido por isso. Quer dizer, sei que tem garotas por aí que matariam pra ter a imagem vinculada com o Yoongi ou qualquer um de nós, mas você batalha pela própria vida e pelos seus objetivos, e, talvez por isso, cheguei a pensar que vocês dois não eram pra ser. Se você não tava disposta a correr os riscos que envolvem a gente, então devia mesmo ir embora. Ia doer pra caralho nele, mas era melhor do que prolongar um sofrimento certo.
Candice continuou olhando pra ele, agora mais curiosa, sem saber onde ele queria chegar. Ele abriu um fininho sorriso de canto.
— Tô falando isso pra te agradecer. Você não foi embora e isso me surpreendeu. Conheço Yoongi há 10 anos e nunca nem passou pela minha cabeça e nem na de ninguém que o tipo dele eram loiras estrangeiras malucas e boca suja, que usam saltos enormes e bolsas Prada feitas de titânio. Ninguém esperava por isso, e agora ninguém quer que ele perca isso — ele finalizou com um levantar de ombros, e viu os olhos de Candice se estreitarem até quase fechar, sem saber se levava as palavras como elogio ou ofensa. “Prefiro que você não me descreva mais assim”, ela murmurou. Jungkook riu um pouco mais alto. — Tudo bem, só queria deixar claro que também te julguei mal, e isso veio lá do início. Nunca falei sobre nada disso com ele, até porque todo mundo tem direito de ter suas próprias trepas casuais por aí. Mas no fundo, eu pensava que não ia durar. Que não tinha como durar, não tinha como dar certo, já que os relacionamentos dentro do nosso meio estão quase sempre destinados ao sacrifício. E ser um sacrifício, nesse caso, não tem nada de admirável.
— Talvez porque vocês lidam com algo tão comum quanto namorar de forma bem saudável — ela ironizou.
— Não precisa zombar, sei que essa parte da nossa cultura é uma grande merda, e fica pior a cada ano que passa. É muita camada de mentira e atuação. Nunca imaginei você no meio disso, e tenho certeza que ele também não. Além disso, você não combina com quem se esconde — Jungkook foi sincero ao olhar para Candice, que não soube o que responder imediatamente. — Enfim, o lance é que a duração de vocês foi uma pauta pra todo mundo, mesmo que ninguém tenha aberto a boca sobre isso, e aí ele foi ficando cada vez mais de quatro por você. Era até um pouco ridículo. E por mais que eu tivesse certeza que Yoongi merecia ser feliz, mais do que todos nós juntos… fiquei um pouco preocupado. Por ele. Depois de tudo que aconteceu na minha vez.
— Isso pode acontecer com qualquer um. Qualquer celebridade desse país — Candice puxou as pernas para cima, escondendo-as dentro do roupão largo. — No fundo, eu sabia que aconteceria comigo. Toda essa explanação, os comentários, o roubo da minha privacidade. É injusto, mas a gente imagina. Só que eu nunca quis que o resto das coisas dessem minimamente errado por causa disso. Nunca quis que minha rotina e meus planos fossem atingidos, mudados ou cancelados. Os comentários de um bando de desconhecidos não fariam isso, mas me esqueci que outras pessoas poderiam fazer. Nunca quis, mas aconteceu e agora penso que era até um pouco inevitável. Quero dizer, mesmo que demorasse 5 anos, não podíamos viver no anonimato pra sempre. Então eu passaria por toda essa merda mais cedo ou mais tarde, mas sempre soube que opiniões alheias jamais seriam capazes de me matar — ela tragou mais uma vez, tranquila com o fato. — Já conversou com a sobre isso?
Jungkook sentiu o embrulho característico no estômago, aquele que antecedia um cenário inteiro, com imagens reais do que aconteceu e as imagens do que provavelmente aconteceria de novo. Ambas com o mesmo peso, os mesmos estresses, com uma dose a mais de ampliação. Ele balançou a cabeça em um não, cabisbaixo.
— Não consigo imaginar ela nessa situação.
— Nem eu. E honestamente, prefiro que você faça de tudo pra não acontecer. Vocês dois. Ela é dos bastidores, sabe? Merece uma vida normal, com privacidade e uns passeios no parquinho. É o jeito dela. Ser reservada, se abrir apenas para pessoas que ela confia muito. Parece com o Yoongi, se você pensar bem.
— E isso é admirável nele — Jungkook fitou os próprios pés enquanto soltava mais uma chuva de fumaça. — Viveu tantos anos na mídia junto com a gente e conseguiu ser o mais discreto de todos nós. O namoro de vocês foi mais chocante por isso, porque ninguém nunca imagina qual o próximo passo dele. Não faço a menor ideia do que essas pessoas diriam se me descobrissem com a . Também não quero que isso aconteça, na verdade. Não quero nunca. Nem gosto de pensar.
— Tem algo a ver com você ter medo de que ela vá embora também? — Candice perguntou, mas já sabia a resposta. Jungkook nem tentou abrir a boca para responder. Ficou mudo, os olhos fitando o horizonte, fazendo o esforço que fazia todos os dias desde que se descobriu apaixonado por : não pensar no futuro. Não naquele futuro específico, naquela parte da vida dele que o fazia se lembrar que era uma super celebridade. — Eu te entendo. Consigo me colocar no seu lugar. Mas se te ajuda, não faria isso, Jungkook. Tenho certeza disso.
— Eu sei. Mas é mais forte do que eu, às vezes. Se acontecesse hoje, sei que a culpa não seria minha, mas doeria pra caralho do mesmo jeito. Seria… não consigo nem explicar.
Ele manteve a boca entreaberta para tentar dizer mais, mas sabia que tropeçaria nas próprias palavras e se calou. O assunto era dramático, viscoso. Sua vontade era de fugir de qualquer feixe disso, qualquer chance.
Candice se solidarizou na mesma hora. Estava ficando cada vez mais fácil se identificar com Jeon Jungkook.
— Eu faço ideia do que seria e te garanto de novo que não faria isso. Ela te ama. Te ama mais do que já amou alguém, e sei disso só de olhar — ela virou um pouco o tronco para ele, jogando as pernas para a lateral da cadeira larga. — E quando ama alguma coisa, ela não solta, não deixa escapar. Olha ela e aquelas câmeras. O jeito como ela separa, escreve e organiza todas aquelas polaroids, o sorrisinho dela em qualquer lugar minimamente bonitinho. O jeito como ela se encanta com as coisinhas mais idiotas — Candice revirou levemente os olhos, levando um polegar até a cabeça para puxar um fio preso. — É bom de ver. Mostra que todas as coisas ruins que ela passou não foram o suficiente pra deixá-la na vala.
Agora Jungkook quem a encarou, não com curiosidade, mas com consternação. Seja lá o que Candice interpretou daqueles olhos, foi uma ótima oportunidade para continuar falando:
— Acho que você já deve saber, mas ela teve uma vida muito complicada. Uma bem merda, para ser plenamente gentil. Não consigo imaginar e nem me colocar no lugar dela nesse caso. Nunca consegui. Só sei que em uma certa época do passado, perdeu a única família que se importava com ela e isso deve destruir qualquer um. Na verdade, mexe com ela até hoje, mesmo que ela nunca diga nada ou nunca queira se lembrar. E sei que ela se sente assim porque já teve alguma esperança de renascimento da família feliz, ter o que as outras pessoas têm, ter o que eu tenho com a minha. Isso aí já não é bom, mas sim muito triste de ver — ela suspirou, e olhou os últimos resquícios do fogo queimando na ponta da bituca. — Por isso tento ser a melhor família pra ela, ou só tento ser alguém que ela merece. não tinha nada, absolutamente nada, quando a conheci há 4 anos. Só um punhado de dinheiro contado e uma ou duas câmeras velhas. Eu nem sabia como essa garota iria conseguir ganhar dinheiro tirando foto, e até cheguei a dizer que ser garçonete era uma ideia melhor. Mas ela nem me ouviu; simplesmente foi, na cara e na coragem, porque amava isso. Dava pra ver que não se via fazendo outra coisa, sendo outra pessoa. E vendo onde ela chegou, não tenho mais dúvidas de que ela aguentaria muito mais desafios, se precisasse, por qualquer coisa que ela ame. Porra, e você já deve ter sentido o quanto ela te ama.
Dessa vez, Jungkook não desviou o olhar, nem pediu desculpas por estar soltando a fumaça naquele espaço médio entre ele e Candice e não respondeu a nada daquele discurso de imediato. Sua mente ficava tão cheia toda vez que pensava naqueles detalhes sobre , detalhes do passado que ele não poderia mudar, que odiaria ver acontecendo de novo, como naquele maldito dia do quarto, do término, do espelho quebrado, da choradeira e tudo. Tinha medo que os cães do inferno voltassem para atazaná-la, mas também em alguma parte do mais profundo ser de Jungkook, ele também tinha medo de ver a cena se repetir por outro motivo. Um que tivesse a ver com ele, e com o fardo da fama que ele carregava, um fardo imutável e cada vez mais crescente.
Mas esse pensamento veio e foi rápido demais. Os olhos de Candice eram honestos e seu aviso também. também era.
— Também vejo isso nela — disse ele, tragando forte, fazendo a pontinha da guimba brilhar no escuro. — Ela me inspira, Candice. Me inspira em muita coisa, e amo ela por isso. Amo essa força e toda a coragem que ela acha que não tem. Nunca encontrei uma mulher como ela, e às vezes ainda tenho medo de estragar tudo, mas depois passa. Porque me sinto corajoso também. Porque me dá alívio saber que agora posso cuidar dela — ele sorriu de canto, e viu a mesma coisa em Candice. — é forte, mas… Tenho certeza que ela nunca se imaginou nesse cenário. Ela mal gosta de posar pra uma porra de selfie, imagina ter fotos de todos os ângulos zanzando por aí? Tenho certeza que ela já deve ter pensado nisso, mas não quer comentar, e honestamente, prefiro assim. É um assunto que não serve pra relaxar, mas ainda fico imaginando– até onde vai a força dela? Até onde ela é capaz de passar por cima dos próprios princípios se algum incidente acontecer? Sinceramente, não quero ver força nenhuma. Não quero que ela tenha que se sentir desconfortável e perdida numa realidade que ela nem pediu — ele pareceu um pouco mais frustrado, um pouco mais ansioso, a mente viajando naqueles universos paralelos que sempre tentava não montar.
— Olha, também não gosto de pensar nessas coisas, Jungkook, mas acho que você devia confiar mais em . Na capacidade dela de segurar algumas barras.
— Eu não disse que não confio.
— Mas quer colocar ela numa concha longe de tudo e todos, escondê-la do inevitável. Você sabe o que inevitável significa? Quanto mais sério o relacionamento de vocês fica, mais essa palavra sai de algum cantinho e vem caminhando pra cá. Não quero de jeito nenhum que ela te alcance agora, mas quando acontecer, tem que deixar ela lidar com as coisas. Da forma dela. E não, essa forma não seria indo embora. não aguenta mais ir embora.
Ele paralisou e pareceu relaxar por um segundo, como se ouvir aquilo de Candice fosse uma confirmação divina. Não havia ser humano mais confiável para compartilhar de para ele que não fosse sua melhor amiga. Naquela hora, ele percebeu que ainda guardava um resquício de medo de toda a história de abril se repetir, mas tratou de se livrar desse inconveniente ali mesmo.
O outro sentimento intrusivo veio pela última frase de Candice, dita com um exalar forte pela garganta, uma expressão repleta de cansaço: não aguenta mais ir embora.
E a dor e revolta pelo passado e pelas cicatrizes dela estavam de volta.
— Eu não sei o que faria se fosse comigo — ele disse, meio aéreo, se enfiando em um contexto da própria cabeça. — Se tivesse passado por tudo que ela passou. Não faço ideia da pessoa que eu seria. Não sei se eu seria a pessoa a não ir embora — declarou, bagunçando o cabelo devagar. — Não quero parecer desconfiado, é só que às vezes eu reflito nessas coisas quando escuto as histórias dos outros. Tento me imaginar no lugar delas, passando pelas mesmas merdas, e quando vejo a fortaleza que as pessoas se tornaram depois disso tudo, eu me sinto meio… vazio. Um pouco oco. Como se eu estivesse muito abaixo deles e não soubesse uma caralhada de coisas importantes sobre a vida porque tive uma família foda que me apoiou em absolutamente tudo que eu quis fazer e isso faz eu me sentir meio… deslocado. Não rende um bom testemunho.
— Qual é, sofrimento não é a única coisa que traz amadurecimento. Apesar de que, quando conheci Yoongi, me senti desse jeito também — Candice apoiou os cotovelos nos joelhos, que agora balançavam constantemente. — Ele fez eu me sentir como se eu não soubesse merda nenhuma da vida, e olha que morei em 10 países e nem sei mais o que é pudor desde que usei meu primeiro sutiã. Achei que se jogar no mundo era a única forma que uma pessoa poderia adquirir conhecimento sobre as coisas, que colecionar aventuras era o que tornava alguém sábio. Mas quando começamos a compartilhar histórias pessoais, senti como se eu estivesse vivendo dentro de um globo de neve esse tempo todo, cheia de coisas práticas, bonitas e fáceis, medindo o mundo lá fora de acordo com a minha régua. Percebi que, quando se trata de pessoas, o buraco é muito mais embaixo. Yoongi sofreu e chorou boa parte da adolescência, enquanto eu nunca achava motivos pra isso. Às vezes também me sentia triste e queria perder as estribeiras, mas era diferente. As pessoas ao meu redor não pareciam apenas tristes, elas tinham um buraco. Uma lista de reclamações, uma família com um armazém de problemas, enquanto eu– Bem, eu sentava com meu pai no piano, brincava com 3 golden retriever, zoava os empregados, ia ao spa com minha mãe e jantava na sala enquanto eles me obrigavam a assistir o CityLine na TV enquanto perguntavam sobre o que eu queria fazer no futuro. Todo dia eu falava uma coisa diferente, e todo dia eles se empolgavam do mesmo jeito. Todo dia eu me sentia amada e cuidada, vivendo uma vida perfeita e uma família perfeita. E sabe o que é pior? Isso nunca mudou — ela até tentou rir, mas não tinha emoção suficiente. — Antes de eu conhecer o mundo, achava que aquilo era o normal em todos os lugares. E se não fosse, deveria ser. Mas aí eu comecei a entender que nada deveria nada. Na verdade, quando você recebe tanto amor e é ensinada a valorizar isso, você é colocada numa bolha. E é um choque quando percebe que a falta de amor no mundo é mais assustadora do que os filmes de terror, e até fica um pouco desesperado pra dar um jeito nisso, mas é impossível. As pessoas também estão na própria bolha, tentando escapar da esteira de hamster. Você se sente um pouco estigmatizado. Acha que não tem direito de reclamar ou de chorar por qualquer coisa que aconteça, porque seus privilégios têm a obrigação de amortecer suas dores. Mas isso foi só por um tempo. Depois, ficou mais fácil de aceitar. Saber que cada um é cada um. Prestar atenção nos outros faz a gente virar um filtro ambulante sobre as pessoas, mas isso não é ruim, te ajuda a ser seletivo sobre quem manter manter por perto. E essas pessoas sim, pra essas pessoas você pode doar seu tempo e seu amor, e passar adiante todos os valores bonitinhos que ter uma família ensina pra você.
Jungkook tragou mais um pouco da nicotina. Estava começando a sentir o relaxamento que tanto desejou desde que tinha levantado da cama ao lado de naquela madrugada. Relaxamento para um pandemônio interno que ele não sabia bem qual era a fonte; era seu aniversário e ele estava feliz, mas alguma coisa, sempre havia alguma coisinha minúscula, microscópica que se manifestava no silêncio tardio da noite, roubando seu sono e sua paz.
— Consigo te entender — murmurou ele, tamborilando alguns dedos no braço da cadeira. — Já pensei sobre isso também. Quero dizer, às vezes eu sentia que não me encaixava. O que um cara como eu, com uma família como a minha e pais como os meus saberia escrever sobre a vida? Fazer uma reflexão sobre superação dos problemas? Eu não conhecia nenhum. Eu pensava isso. Achava que a pior coisa que tinha acontecido comigo eram as minhas notas da escola, porque elas sempre deixavam minha mãe brava e um pouco decepcionada. Fora isso, dava pra superar, sempre dava — ele contorceu a boca com a lembrança e se virou para a loira. — Quando precisei compor profissionalmente pela primeira vez, eu e os outros fizemos uma reunião pra ler o trabalho de cada um e discutir algumas coisas. Daí eu li as letras de Yoongi e Taehyung, e de Namjoon também, e sei lá– me senti horrível. Horrível por não ter nada de horrível e minimamente profundo pra contar. Horrível porque a única coisa esquisita e diferente que eu tava sentindo naquela época era saudade e um pouco de solidão. Eu não tinha medo da cidade grande, não tinha medo de faltar dinheiro, não tinha medo de não dar certo no Bangtan, porque poderia dar certo em outro lugar. Eu tinha medo de errar em um passo de dança porque seria constrangedor pra mim, enquanto eles tinham medo de errar porque só tinham aquela chance. Ou dava certo, ou dava certo. Eles tinham uma série de problemas reais, enquanto os meus– sei lá. Minhas questões sempre podiam esperar. Porque alguém sempre estava sofrendo mais. Alguém sem o peso do privilegiado com a família feliz e talento de nascença.
Candice ficou em silêncio por um momento longo até tossir uma risada alta demais para o padrão, trazendo Jungkook junto, que em vez de tentar explicar o termo, preferiu não dizer nada. Ele sabia que ela entendia. Pela primeira vez, sentiu que Candice Chaperman sabia exatamente o que ele queria dizer.
— O peso do privilegiado — ela assentiu e levou o Davidoff quase no fim à boca de novo. Olhou por sobre o ombro para a porta de vidro e depois se voltou para Jungkook, derramando nele um olhar de duração interminável. Era tão profundamente penetrante quanto exaustivamente comprido. — O lema dos amaldiçoados com famílias perfeitas e sem problemas paternais para resolver. Ninguém faz um reality da Discovery sobre isso?
— Não quando elas se apaixonam por pessoas que são o completo oposto — ele deu de ombros, mas também teve vontade de rir. Era um pouco engraçado, se fosse colocar na ponta do lápis. — De qualquer forma, e Yoongi, bom… eles lidam com os problemas melhor do que nós.
— Mil vezes melhor — Candice concordou com veemência.
— Ela nunca me acertou um segundo chute em todo esse tempo desde que se mudou pra cá, e olha que teve todos os motivos pra isso.
— Ele não desistiu de mim mesmo depois das 5 milhões de vezes em que falei que nós nunca teríamos nada sério.
— Passar alguns perrengues na vida te transforma em níveis assustadores.
— Total.
Eles riram, mas só por um breve momento. Jungkook foi o primeiro a ficar um pouco mais sério, abaixar a mão e fitar o horizonte mais uma vez, sendo incomodado pela verdade que pesava seu peito, as revelações que guardava e pensava, pensava muito, pensava mais do que deveria.
Ele quis contar tudo para Candice. Quis abrir a boca e deixar jorrar tudo. Não era como se fossem amigos apenas porque estivessem fumando um cigarro juntos em um deck sem trocar farpas, mas aquela era Candice Chaperman, a família de , a guarda-costas de seu bem-estar, a pessoa que mais se importava com ela além dele mesmo. Ela precisava saber da situação iminente, do risco que Ji Changmin de repente apresentou, dos olhos de Ali à espreita em algum lugar, e que esses dois…
Mas Jungkook não disse nada. Não conseguiu fazer isso, porque haveria consequências fora de seu controle. Não fazia ideia de como prever as reações de Candice ainda, e ele sentiria um ligeiro arrependimento por ter escolhido compartilhar aquilo com ela caso Changmin aparecesse sem os braços no dia seguinte. A situação era maior, mais delicada, mais preocupante. Jungkook sabia disso, e por isso não podia meter os pés pelas mãos. Tinha que ter calma, tinha que ser mais como e Yoongi quando o assunto era resolver problemas.
Porque ele conhecia Ali. E, se ela ainda não tinha feito nada, estava esperando alguma coisa. Talvez alguma coisa dele, talvez alguma coisa de . Talvez do próprio Changmin. Se desse as costas e passasse a ignorar aquele desgraçado agora, Jungkook não fazia ideia do que ele poderia fazer. De como ele reagiria. O filho da mãe pareceu muito agradável até Jungkook ir pra cima dele, se meter nas suas intenções, e agora ele parecia estar numa corda bamba, em modo de alerta total ao menor dos detalhes, esperando alguma coisa porque sabia que alguma coisa vinha por aí.
— Eu faria de tudo pra que ela não tivesse que viver nada disso de novo — disse ele, mais para si mesmo do que para Candice, sentindo a determinação esmagadora daquela verdade absoluta. Ele enfrentaria Changmin de novo, em alguma hora. Tentaria conversar, tentaria perguntar. Era difícil ter uma conversa civilizada com alguém após a lembrança de que um tentou socar o outro, mas tinha que fazer isso. Ele enfrentaria até Ali Dalphin, caso ela quisesse seguir com isso. Ele esperava que não. Esperava que ela estivesse bem longe, de volta pra casa, de volta ao trabalho, em alguma passarela do planeta.
Fazia muito tempo que ele não pensava em Ali Dalphin. Que não tentava adivinhar o que ela andava fazendo, o que estava sentindo. De alguma forma, foi um alívio pensar nela naquela hora. Trouxe o nada que ele sempre desejou, a extensão de vazio e indiferença que jamais pensou que um dia fosse sentir por ela.
— Eu também faria de tudo pra que Yoongi não tivesse que passar pelo que passou de novo — Candice trouxe barulho e distração à mente zoneada de Jungkook, que logo dispersou os pensamentos e olhou para ela. — Sinto que isso transformou ele de alguma forma, transformou por dentro, em um lugar que nem ele mesmo alcança. Às vezes, ainda o vejo acordando no meio da noite depois de ter tido… um pesadelo, uma lembrança, sei lá. Às vezes ele nem dorme. Ou dorme demais. Passa por processos criativos muito dolorosos, e sei que pode ter algo a ver com toda a história da vida dele, mas… Bom, é o passado. E a gente não pode mudar essa merda, infelizmente — ela tragou com mais força. — Por isso quero que ele não precise passar por isso de novo. Que ele não sofra por mais nada, ou, se isso for necessário, que saiba que estou aqui. Estou aqui pra qualquer coisa. Tentando compreender, me colocando no lugar dele. Sempre tive certeza disso, estive disposta, mas nos últimos dias, eu… enlouqueci um pouco. Bom, você viu como anda a minha situação no trabalho.
— Você explicou pra ele? — perguntou Jungkook. Candice levou dois segundos para negar com a cabeça. — Candice, olha, é natural que você fique frustrada com tudo que tá acontecendo. Mas se quiser ficar com ele, não pode esconder essas coisas, não pode…
— Não é só isso, Jungkook. Sei que deveria me abrir com ele sobre isso, mas o que ele poderia fazer? E se ele tentasse interferir? Estragaria tudo, pioraria as coisas. Mesmo que planejasse algo e não agisse por impulso, não dava pra eu jogar isso pra cima dele. E também, eu– eu sei lá, tava tão confusa. Amo Yoongi, mas também amo o meu trabalho, e em nenhum plano da minha existência já fui rebaixada em alguma coisa. Principalmente quando faço o que faço porque gosto. Meus planos sempre foram avançar, ir em frente, ir para o alto. Então, eu não soube o que fazer. Fiquei com raiva. Fiquei confusa. Foi isso. Talvez você estivesse certo, pensei mesmo em terminar essa loucura de namoro e voltar a fazer o que vim pra cá pra fazer, mas a ideia não durou nem 1 minuto — ela mordeu o lábio inferior, levando a mão para um fio solto do coque. — Não consigo mais imaginar a vida sem ele. Seria doloroso demais. Não melhoraria em nada.
Jungkook compreendeu. Compreendeu no fundo do peito.
— Então ele merece saber — argumentou de novo. — Mesmo que você peça pra ele não fazer nada, ele merece saber, Candice. Merece saber de tudo que você tá passando, porque assim como você, ele também não imagina mais a vida sozinho. Sei que você sabe disso, mas talvez não saiba o quanto, não tem ideia da força disso. Te garanto que você anda por aí com o coração dele há mais tempo do que pensa, e quando você não se abre, ele fica perdido, confuso, sai da rotina. Não precisa fazer isso com ele. É a hora certa de vocês dois se unirem, e não se afastarem como você achou certo fazer.
Uma lembrança explodiu na mente de Jungkook ao mesmo tempo que sua garganta cuspia mais um pouco de fumaça. Aquela semana tenebrosa da sua exposição com Ali, a forma como ela descarregou sua raiva nele, no whisky e na fotógrafa desconhecida. A forma como ela se afastava e o culpava, porque precisava culpar alguma coisa, precisava que alguém pagasse. Ali não conseguia terminar uma caminhada da cozinha à sala sem socar uma parede, resmungar palavrões, amaldiçoando a existência humana. Uma garota perfeita exposta na vitrine da internet, tendo defeitos seus apontados, defeitos antes nunca mencionados ou reparados, defeitos até então inexistentes, fazendo-a pirar, questionar a si mesma e se deixar ser abalada por uma multidão que não a conhecia. Ela nunca entendia ou aceitava quando Jungkook estava claramente defendendo-a. Tentando resolver a situação, melhorá-la o máximo possível. Ele simplesmente parecia ser o vilão, tão vilão quanto todo o resto.
Pensando hoje, Jungkook definiu tudo isso como uma loucura irracional. Ele sabia que Ali estava sofrendo, mas nunca tinha tentado imaginar porquê, de uma forma mais profunda, no cerne da personalidade da loira que ele achava que conhecia tão bem. Ali nunca foi uma pessoa com picos estáveis de auto estima, não aparentemente, mas todas as drogas que usava quando a conheceu, o inferno que causava na cama, a forma como sabia como deixá-lo maluco, dependente, as promessas que fazia e descumpria e ele mal se tocava… talvez vinham de uma necessidade astronômica de estar sempre sendo validada. Que o mundo exterior sempre renovasse seus elogios sobre ela, sempre continuassem reparando na raridade de seu ser, que notassem sua presença como ela merecia ser notada. Ali Dalphin sempre parecia ser uma estrela brilhante no topo da árvore de Natal, mas, no fundo, talvez fosse o ser mais lamentável do planeta Terra.
Era um sentimento estranho para Jungkook estar de volta à essa lembrança onde ele viu Ali pela última vez. Ele havia pensado que um momento ruim com ela era somente isso e que não os afetaria quando ela decidisse voltar, quando poderiam esquecer tudo e continuar. Agora, essas reminiscências serviam para uma análise profunda dele mesmo, mais do que ela. Como ele jamais poderia dizer o que realmente sentia, o que pensava, porque ela não pensava o mesmo e acharia idiota. E em como ele queria lutar pela honra dela, mais pelo fato de ela acreditar que era uma divindade intocável do que por ele acreditar nisso. Ele não acreditava, nem se importava com isso, mas precisava estar na sua sombra. Precisava não perdê-la.
Olhando para Candice, ele sabia que ela não tinha metade desses problemas em relação à Yoongi, mas estava fazendo a mesma coisa na essência: se afastando. Querendo resolver as coisas sozinha, talvez com um medo interno e fantasma de piorar as coisas pra ele, piorar as coisas para ela, piorar tudo no geral. Mas não, aquilo não funcionava. Jungkook estava dizendo com essa certeza apenas pelos olhos: isso não funciona, Candice. Qualquer hora do dia, você não ia aguentar. Nem ele. Repito: não funciona.
— Eu sei. Bom, a gente… começou a se acertar mais cedo — ela disse em voz baixa, e sorriu sugestiva quando olhou para os próprios pés no piso de madeira. — Não conversamos ainda de tudo, mas já é alguma coisa. A atmosfera sempre fica mais leve depois dos nervos descarregados.
Jungkook riu pelo nariz e revirou os olhos.
— Não sabia que meu hyung era adepto do sexo de reconciliação.
— Ele não é, mas não resiste a mim. E eu falei que ia contar. É sério. Já entendi que ele é o amor da minha vida, não tenho mais pra onde correr. Só precisava de um desses antes — ela gesticulou para o cigarro cada vez menor entre os dedos e, no momento em que fez isso, uma vibração audível encheu o ambiente, vindo de algum ponto da cadeira de Candice. Ela se virou e puxou o celular, dando apenas uma olhada rápida na tela, abrindo um sorriso. — Hm, parece que tenho pra onde correr agora sim. Alguém pode estar querendo uma segunda… — ela olhou para o lado e encontrou o rosto de Jungkook impassível, duro, com uma sobrancelha arqueada. Imediatamente, Candice suspirou. — Eu vou falar com ele! Prometo! Que coisa.
Ela balançou uma mão e enfiou o cigarro no cinzeiro, que nada mais era do que uma porcelana que enfeitava a sala grande e alugada do lado de dentro, e se colocou de pé, sem se tocar de que tinha acabado de fazer uma promessa para Jeon Jungkook.
Mas antes de se virar e caminhar animada para o quarto no segundo andar, Candice parou e olhou o garoto na espreguiçadeira, analisando-o como talvez nunca analisou na vida – e nem tinha vontade disso.
— Ei. Você não é tão detestável assim, Jeon. Acho que somos mais parecidos do que pensei. Vê se não vacila com a , tá bom? Naquele dia te fiz ameaças pra isso, mas agora tô pedindo de coração — e ela engoliu em seco com força, como se estivesse libertando algo agonizante da garganta — Como família.
E ele sorriu, como se tivesse, finalmente, alcançado o alto do Everest – com vida.
— Essa é fácil, Chaperman — disse ele. — Ela também é o amor da minha vida.



Ei, ! Acorda!”
Na quarta vez que foi balançada, finalmente conseguiu acordar, mesmo de uma forma tão abrupta. Ela não entendeu nada quando abriu os olhos devagar, uma pálpebra de cada vez, tomada de exaustão. A imagem borrada do rosto de Jungkook na sua panorâmica demorou a se encaixar e estabilizar.
— Mas o que foi? — Ela estava grogue, cansada. Muitas partículas de sono pipocavam na sua cabeça. Virou para olhar a janela e ainda estava de noite.
— Levanta. Temos que ir em um lugar.
É o quê?! nem sabe se falou isso mesmo ou se foi o reflexo de sua mente. A luz amarela do quarto recém acesa mostrou Jungkook de pé, usando uma bermuda cargo marrom e um moletom, um outro, bem menos chamativo que seu presente de aniversário, com chinelos nos pés e um fogo aceso nos olhos que não estava sendo capaz de compartilhar.
— Que horas são? — finalmente ela se sentou, puxando o lençol para cima do tronco, um pouco por causa do ar gelado que vinha da janela e um pouco pela nudez. Grande parte de seu cansaço era por causa de Jungkook; depois da live finalizada, ela se sentiu no direito de oferecer a trepada de aniversário, que era pra ser bem rápida porque já eram 2 da manhã e eles sempre podiam continuar em outro momento, mas esqueceu que Jungkook odiava e ignorava o termo “rapidinha” e ela era fraca demais pra resistir.
— São 5 horas. Precisamos ir — ele caminhou da entrada do quarto até a janela, abrindo as cortinas até a metade enquanto verificava o relógio de pulso. Depois, virou para , que continuava na mesma posição: sentada, confusa, sonolenta. — ?
— Você ficou maluco? — ela passou a mão pelo rosto lentamente, forçando o sistema a voltar a funcionar. — Que história é essa de ir? Sabe que horas a gente dormiu?
— Ainda não dormi.
— O quê?
— Eu te explico depois. Mas sério, precisamos sair agora, prometo que você vai gostar — ele gesticulou com os braços mais uma vez, dessa vez para apanhar uma camiseta de dentro de sua mala aberta no canto do quarto, jogando o tecido para enquanto procurava os sapatos dela.
viu toda essa movimentação com o rosto contorcido.
— Eu não quero sair agora.
— Mas você vai gostar.
— Eu quero dormir, Jungkook.
— Podemos dormir quando a gente voltar. Vai, coloca a camiseta — ele saltou para perto dela na cama, agarrando o tecido e puxando seus ombros para começar a levantar. fez mais uma careta.
— Eu quero dormir — repetiu em um choramingo fraco. Jungkook riu pelo nariz.
— Você vai me agradecer. Vai, só coloca a roupa, a gente volta rápido.
Ele a puxou para cima e se rendeu, com a careta de contragosto. Mas que coisa, ele não parecia nem um centímetro cansado, mesmo com o dia cheio e a noite intensa. Como uma coisa dessas era possível? ainda sentia as pernas meio bambas quando as pousou no piso.
Por dentro, queria reclamar muito mais, mas então olhou o sorriso dele, uma mistura de entusiasmo com sacanagem, e sentiu a mão dele apoiar sua cintura por pura fora do hábito, e como ele sempre ficava um pouco bobo e hipnotizado quando estava na frente dela daquele jeito, nua em pêlo, admirando um diamante dentro de uma caixa de vidro em um museu, e a vontade de resmungar passava. Ainda era 1º de setembro, afinal.
Ela suspirou, pegou a camiseta preta estampada com is a Laserquest – um presente dele com uma piada interna que até hoje Jungkook não tinha feito questão de contar – escrita com letras de colagem de revista e enfiou os braços por ela.
— Cadê a minha calcinha?
— Você não precisa dela.
— Não começa, Jungkook. Minha calcinha e um shorts.
Ele riu abafado e se virou para pegar as coisas. não fazia ideia de onde tinha ido parar a maioria de suas roupas, mas Jungkook sempre se achava de alguma maneira. Em menos de dois minutos, ele a entregou uma calcinha e um shorts de moletom com elástico, que era curto demais em relação à camiseta, que desceu até a metade das coxas, fazendo-a se sentir dentro de uma lona.
Mas que se dane, ela não tinha mais como voltar pra cama. Até porque ele estava parado na frente dela, um pouco apressado, transbordando de energia matinal que ela odiava.
Ela abriu a boca para pedir, por último, que eles só adiassem a tal visita surpresa, mas Jungkook logo balançou a cabeça em negativa, segurando em seu cotovelo.
bufou e rangeu os dentes.
— Vou escovar os dentes — andou para o banheiro, ou melhor, se arrastou pra lá — Você vai ter que fazer uma trança em mim.
Jungkook assentiu com energia.
— Pode deixar.
E assim, foi até a pia e Jungkook parou em suas costas, puxando os fios grossos da montanha de cabelos para trás e começando a montar uma trança folgada, sem nenhuma técnica ou muito capricho.
Ela olhou para o espelho e topou com o rosto concentrado dele, tendo certeza de que ele nunca tinha tentado fazer nada daquilo antes, mas estava se esforçando. Ela o deixou em paz com seu cabelo. E mais tarde, quando estivesse com menos sono e estivesse radiante diante da surpresa abrasadora de Jungkook, perceberia que não havia nada, absolutamente nada de sua antiga vida sem aquele sujeito ao qual ela sentia falta.



Em contrapartida, sentia falta de absolutamente tudo a respeito da praia.
A despreocupação com que as ondas do mar batiam nas pedras, engoliam a areia, entregavam o controle de seus movimentos para o vento, brilhavam durante o dia e se tornavam parte do céu e desapareciam em um vácuo negro durante a noite, tudo era impressionante, mágico e distinto, ainda que fosse padrão e constante, um espetáculo repetitivo. Mas não se importava. Gostava de saber que o mar era o mar em todos os lugares, ganhando novos nomes e denominações, sendo mais claro ou mais escuro em outros, mas sendo, bem lá no fundo, apenas um só, em beleza e dimensão.
Naquele início da manhã, não havia nada de extravagante nele, nada além do que esperava. Antes de sair, Jungkook mesmo tinha agarrado a Nikon profissional de , e foi sorrindo o caminho inteiro, desde que pisou no pedal do acelerador na frente da casa até puxar o freio no meio fio de uma outra praia desta vez, uma mais afastada das outras, uma que não tinha placas de identificação e com muito menos pedras do que as anteriores.
O vento estava forte quando os dois saíram do carro, forte e gelado, fazendo se abraçar e choramingar internamente sobre o que estaria fazendo ali, mas não disse nada. Jungkook passou um braço pelo seu ombro, e ela o abraçou imediatamente, resolvendo o problema do frio em um segundo. Ele puxou o celular para ver as horas e começou a andar na direção da costa.
— Você podia começar a falar — murmurou enquanto sentia o pé se encher de areia e roçar em pedaços pontudos de grama. O céu começava a clarear em um plano de fundo rosa com laranja, adiantando uma paisagem linda que viria acompanhada do Sol no horizonte.
Ele não respondeu de imediato. Só deu de ombros, tão pacífico quanto o mar.
— Já falei que você vai gostar. Agora resta você confiar em mim — ele deu uma piscadinha para convencê-la, mas não era necessário. já confiava nele, confiava em cada molécula do corpo, só estava curiosa, agora mil vezes mais, já que o cérebro já estava acordado o suficiente para raciocinar. Aquela felicidade dele não era estranha, mas estar feliz às 5 da manhã depois de uma noite em claro, era no mínimo esquisito.
Quando chegaram ao limite da costa, um lugar com mais pedras ao redor, grandes elevações de rocha que fechavam a praia em um muro pela metade e uma pequena trilha ao lado com mais variedades de flora muito parecidas com as que conheceu mais cedo, ela começou a pensar que ele queria ver o nascer do Sol. Esse era seu plano o tempo inteiro. não odiaria se fosse aquilo, mesmo que estivesse louca para voltar para cama. Não era sempre que podiam se dar ao luxo de assistir o Sol se elevando para um novo dia direto da praia, ainda mais em uma tão bonita.
Mas então, ele soltou por um momento e caminhou mais rápido na frente, olhando para o chão de uma extremidade a outra até colocar os pés em uma zona específica da areia e dar dois passos para trás, sentando-se de qualquer jeito.
— Vem, não vai demorar — ele estendeu a mão para o lado, indicando o lugar de . Ela não entendeu nada, mas estava cada vez mais convencida da história do nascer do Sol. Sem discutir, ela sentou ao lado dele, sentindo o vento no rosto, o frescor gelado da maresia, a iminência do Sol presente nos primeiros cantos dos pássaros.
— Era isso que você queria o tempo todo? — perguntou ela, com gentileza. Jungkook murmurou um “hum?” — Ver o nascer do sol. Podia ter me avisado, eu não teria caído no sono com tanta determinação, sabe. Teria dormido mais leve.
— Você é capaz de dormir mais leve? — ele levantou uma sobrancelha em deboche. estreitou os olhos.
— Claro que eu sou. É que você dorme demais e não percebe.
— Aham, claro que é isso — ele riu e beijou seu ombro. — Mas o nascer do sol é só um detalhe do contexto. Digamos que eu estou agora tendo um tempo livre com você.
— Tempo livre? — arqueou as sobrancelhas. Sentiu o braço dele deslizar pela sua coxa em um gesto natural e carinhoso, mantendo-a por perto. — Isso tá ficando cada vez mais misterioso.
— Não tem mistério no tempo livre. Você tornou isso uma benção pra mim — ele estendeu o dedo para ajeitar um fio insistente escapando da trança dela. — Antes, eu odiava o tédio. Era uma maldição, a hora perfeita pro meu cérebro pirar. Agora, com você… — ele suspirou por um momento. Os primeiros raios do dia estavam batendo no rosto de . — É, dá pra ficar o dia inteiro aqui com você. Batendo papo, te beijando, ouvindo você falar. Sentindo essa areia desgraçada entrar na nossa bunda.
— Ah, eu tava me segurando pra não falar isso — riu e se remexeu, sentindo aquele amontoado de grão pinicando sua pele debaixo da coxa quase exposta, se arrependendo de não ter colocado uma calça. — Você foi fofo, mas eu não ficaria o dia inteiro aqui sem uma toalha.
— Pode sentar no meu colo, se você quiser.
— Você vai sexualizar tudo que eu digo hoje?
Ele riu alto.
— Não, eu tô falando sério, pode mesmo sentar no meu colo. Talvez você precise esticar o pescoço pra ver direito.
franziu o cenho. Ele iria matá-la de curiosidade daquele jeito.
— Pra ver o quê? Sério, eu já tô ficando–
— Espera — ele levantou um dedo para interrompê-la. Jungkook fixou o olhar em um ponto na areia à frente, o lugar onde tinha pisado, e puxou o celular logo depois, zapeando a tela até parar em uma sequência de fotos com textos e mais textos, textos demais até mesmo para ele, que não lia nada que tivesse mais de 3 parágrafos.
estranhou e se aproximou para ver o que ele lia. Não dava pra entender muita coisa porque as letras eram minúsculas e ele se mexia muito, olhando do celular para o relógio, monitorando algo que não estava entendendo.
— O que foi? O que tá acontecendo? Quero participar — ela o balançou pelo ombro de leve, querendo atenção.
— Acho que vai acontecer agora — ele disse mais para si mesmo do que para ela, e não entendeu uma vírgula sequer. Estava começando a ficar nervosa. De repente, Jungkook chegou com o corpo para a frente e olhou para o mesmo ponto sem nada da areia.
Um montinho mínimo se mexeu. Devagar e muito lentamente, quase como uma imaginação.
Imediatamente, Jungkook se colocou de pé e se aproximou da região, se abaixando no ponto e, literalmente, começou a cavar.
Jeon Jungkook estava cavando um buraco na areia da praia. Com as mãos.
piscou os olhos várias vezes, confusa, muito confusa.
— O que você tá fazendo? — ela não se aguentou sentada. Jungkook riu e olhou pra cima.
— Vem cá me ajudar. Já tá acontecendo.
abriu a boca para perguntar mais uma vez “acontecendo o quê, pelo amor de Deus?”, mas talvez gritaria de indignação e apenas bufou, aceitando a derrota e meteu os joelhos na areia ao lado dele, cavando seja lá o que precisava cavar.
Mas não demorou muito para que descobrisse. Na verdade, demorou menos de 2 minutos. Porque assim que avançou alguns centímetros terra abaixo, ela sentiu a casca dura do ovo. E outro e mais outro. Sentiu as lascas caídas, quebradas e divididas enquanto os primeiros cascos respiravam o novo ar da manhã, recebendo as primeiras luzes do Sol entre as nuvens.
Tartarugas marinhas.
parou por um momento, enquanto Jungkook continuou cavando, abrindo caminho, afastando as cascas dos ovos que ficaram presos na carapaça dos filhotes, tendo o cuidado de mantê-los em fileira para seguirem o caminho até a água.
— Não acredito — ainda estava chocada, aturdida, perdida, um monte de coisas por segundo. — Não acredito.
— Pode acreditar. Elas são bem pontuais — ele verificou o relógio de pulso e o relógio do celular, voltando aos textos em fotos. — E são parte da raridade da natureza.
virou a cabeça pra ele, sem entender.
— Bem, eu… andei lendo uns artigos — ele pareceu com vergonha de admitir isso, ou muito constrangido. — Não foram tantos, no máximo uns 3… talvez 4. Enfim, pensei que achar um ninho no início de setembro não iria rolar porque é a época em que elas colocam os ovos, mas fiz umas ligações pro Instituto Nacional de Biodiversidade e eles disseram que verificariam. Essa praia tem muita incidência de passagem sazonal da tartaruga-verde, eles registraram uma aqui em junho. Disseram que poderia existir um ninho, mas não tinham certeza. Então fui pesquisar a espécie, ver onde era mais possível que ela fizesse o ninho. Tive ajuda, mas achei. Consegui uma autorização pra ajudá-las a ir pra casa e estamos aqui. E a outra coisa é que elas geralmente saem do ninho à noite por conta do resfriamento da areia e dos predadores, mas quando o Sol não nasce — ele apontou o queixo para o horizonte nublado, onde o Sol devia estar perdido e enclausurado. — Então elas podem fazer um esforço mais cedo. E voilá!
Ele riu e apontou para o ninho, onde um mar de tartaruguinhas idênticas cheias de areia escapavam para fora, para a bolha de oxigênio, lentas e sem pressa. Jungkook pegava uma a uma, ajudando na subida, pondo-as juntas na direção do oceano. ainda estava olhando pra ele. Ainda estava hipnotizada. Ainda não sabia o que dizer.
Sentiu uma emoção do fundo do âmago que não soube explicar.
Jungkook percebeu seu silêncio e franziu o cenho.
— O que tá esperando, amor? Pega a sua câmera. Tá na hora.
Ele apontou para os animaizinhos enfileirados. voltou para a realidade em um estalo, assentindo de repente e se tocando de que o cenário era perfeito e familiar, um que ela já tinha visto por acaso na praia de Malibu, onde um grupo de acadêmicos realizavam uma pesquisa prática sobre os ninhos de tartarugas marinhas e ela aproveitou o momento bacana pra tirar uma foto icônica. Nem tinha prestado atenção a qualquer explicação sobre os ninhos. Como funcionavam, a que horas funcionavam. simplesmente viu a imagem e sabia que era especial. Que, de alguma forma, o nascimento pontual e um pouco desordenado daquelas criaturas queria dizer alguma coisa para ela. Para o mundo. Vai saber.
Ela levantou e bateu a areia dos joelhos, indo direto para a câmera dentro da capa no mesmo lugar em que esteve sentada antes, puxando a máquina de dentro e se aproximando do buraco agora mais aberto à medida que novos filhotes iam ascendendo.
Jungkook a viu se posicionar o mais perto possível dos animais, lançando a lente para enquadrá-los com a luz pálida manhã, agora sem se importar tanto com a areia teimosa nas pernas. Ele sorriu e se retirou do cenário, indo para o lado dela, curioso e empolgado, vendo um mestre em ação. Ele ficou em silêncio, querendo apenas observar, admirar. Sabia que não era o primeiro fã de , mas se sentia o mais animado, ferrenho, apaixonado. O jeito como ela ficava séria enquanto se concentrava no flash o enchia de tesão. Inacreditável que era sua namorada. Estava tão feliz por isso que não se lembrava que era seu aniversário.
Quem diria que era assim que começaria seus 25 anos: 5 da manhã em uma praia distante em Jeju, observando tartarugas migrando para o mar e não pichando a placa de “bem vindo à Gwangju” na saída da cidade depois de ficar extraordinariamente bêbado com seus amigos e desconsiderar consequências dos seus atos. Hoje ele ficaria bêbado, sim, caso houvesse a oportunidade, mas só se ela estivesse junto, só se o acompanhasse para tudo.
Jungkook já sentia falta. Nem tinha voltado para Seul e já pensava em como iriam se ver no meio de uma rotina cheia e maluca que o esperava. Já sentia falta dela antes de se afastar. Uma loucura sem tamanho. Ele não se permitiu pensar em saudades nenhuma vez nos últimos 3 anos porque acreditava que não saberia lidar muito bem com esse sentimento, que ele carregava um tipo de maldição, porque Ali sempre dizia que ele estava exagerando, que não precisava sentir isso; bastava que pegasse um avião para vê-la. Bastava que se encontrassem em um país qualquer e estava feito. Sem precisar fazer sala com a saudade.
Mas talvez sentir saudade não fosse tão ruim assim. Não quando se tinha conhecimento que a outra parte sentia o mesmo, que se dedicaria ao mesmo tempo. Saudade era amontoado de memória, e memória eram as filmagens do cérebro, fotografias em movimento que provavam que o momento existiu, que você viveu. Sentia falta de porque amava estar com ela, amava a forma como se sentia perto dela, amava a atmosfera que entravam quando estavam juntos. Amava como ela o deixava sentir as coisas, demonstrar o que pensava. Ao contrário do que um dia ele já sentiu: arrependimento por ter saudade, medo de só ele estar guardando as memórias, servindo de depósito sentimental para suprir a si mesmo quando os de Ali faltavam.
Jungkook tentou se convencer, por muito tempo, da inutilidade de seus sentimentos e pensamentos e da praticidade do silêncio, já que seus problemas tão comuns eram insignificantes perto dos problemas dos outros. E seus sentimentos por Ali eram intensos e explosivos, tomavam-no por completo, queimavam cada partícula de seu ser, sobrecarregavam sua mente, até ele entender que isso só acontecia porque sentia por dois, amava por dois, esperava por dois.
À medida que os animais avançavam, os seguia, bem devagar e sem pressa, ficando de pé e se abaixando, e depois ficou parada e observando. Jungkook a imitou, seguiu ela de perto, fez carinho em sua cintura, beijou seu ombro, mexeu com a pontinha da trança, deixou ela trabalhar e fazer o que quisesse. Sabia que ela estava quieta por uma questão de concentração, mas também uma questão de imersão, de felicidade, vontade de não perder o momento. E ele amava isso, amava mesmo, sabia que ela teria bastante tempo pra agradecê-lo depois. O importante era que ela se divertisse fazendo o que gostava, essa era a intenção dele em tudo.
O sol já tinha cruzado vários quilômetros de céu quando a primeira delas atingiu a água, recebendo um impacto forte que a fez girar e girar, até ser carregada e bater as patas em sua nova casa, entregando-se ao caos das ondas.
baixou a câmera e suspirou. Tinha chegado a hora de registrar as coisas na mente. De agradecer à natureza, à Deus, ao universo pela beleza do que via. Ela sentiu Jungkook abraçá-la por trás, passando um braço pelo tórax dela, perto do pescoço, onde ela imediatamente descansou o queixo.
— São bonitinhas, não são? — ele disse em seu ouvido. assentiu devagar.
— São lindas. Tudo isso foi lindo, Jungkook — ela fez um carinho no braço dele. — Ainda não acredito que você fez isso por mim — que você leu alguma coisa por mim, ela pensou em brincar, mas preferiu ficar quieta. Afinal, vai que ele poderia ler mais coisas no futuro.
No entanto, Jungkook riu pelo nariz, um pouco engasgado.
— Ei, sou um doador de fundos pro WWF, quem disse que foi só por você? — disse ele. virou o rosto em perfil para fuzilá-lo. — Tá bom, é claro que foi pra você, não tem nada que eu não faria por você, esqueceu?
— Mas o aniversário é seu.
— E eu já ganhei meu presente — ele puxou o corpo dela para ficar de frente ao seu. E talvez nem toda a beleza do mundo fosse comparável ao que ele enxergava naquela hora em . — E é mais do que o seu moletom engraçadinho, os filmes do Stallone e meu bolo favorito. É o padrão em todos esses momentos, é o elemento principal. É você, . Porra, é tudo você. Eu poderia estar feliz hoje de qualquer forma, mas com você, me sinto mais do que feliz. Tô completo. Não consigo pedir nada porque sinto que já ganhei tudo.
mordeu o lábio inferior e se apertou mais perto dele. Era inacreditável toda vez que ele falava aquelas coisas, quase sempre sério e até um pouco angustiado, sufocado com aquela paixão e amor queimando dentro dele que precisava colocar pra fora toda vez, e sabia que qualquer garota normal incharia como um balão e choraria com tantas declarações, mas ela não. Ela amava ouvir e amava a reação que as palavras tinham dentro dela, aquele aperto no ventre, a folia no coração, o desequilíbrio do cérebro. Já pensava em se jogar nos braços dele, em cometer loucuras. O amor era a única coisa da vida de que a fazia querer chorar, um tipo de choro que ela não conhecia: o de felicidade. Era surreal sentir isso ali, agora, com Jeon Jungkook. Quando ela o beijou naqueles primeiros raios da manhã, se lembrou do som que sua câmera fez quando ele a tomou e a acertou no chão em um pequeno camarim em New York, e em como ele agora pegava aquela máquina de suas mãos, se afastava de sua boca e virava a lente para os dois, determinado a registrar cada pedaço de minuto, cada mísera hora com ela.
E não precisou dizer para que eles andassem um pouco mais e curtissem mais a paisagem. Jungkook pegou na sua mão e, assim, os dois arrancaram os sapatos e seguiram a trilha das tartarugas, molhando os pés até as panturrilhas, encharcando um pouco das camisetas até que a última delas sumisse no horizonte, carregadas pela correnteza de suas novas vidas.
No fim, fizeram todo o caminho de volta para o carro pelas bordas da areia molhada, segurando os sapatos em uma mão e os dedos entrelaçados na outra, como um casal normal. Feliz e normal.



já estava chamando aquilo de viagem dos milagres antes mesmo de voltar para Seul.
A começar pelos abraços e beijos trocados de forma indiscreta por Candice e Yoongi na mesa do café da manhã, ao qual e Jungkook mal participaram, porque logo estavam correndo para o quarto pensando em uma única coisa: dormir. Jungkook dormiu muito, mais do que o necessário, despertando já no fim da tarde sem se lembrar de quem era ou onde estava, vendo ajeitando polaroids no tapete e digitando um trabalho qualquer no computador. Por um momento, ele se sentiu arrependido por ter perdido um dia inteiro por causa do sono, mas passou rápido quando soube que tinha chovido o dia todo, e o vento gelado parecia um recado da cidade litorânea de que a temporada tinha acabado e que eles poderiam se ver de novo no verão do ano que vem.
Naquela noite, as carícias entre Yoongi e Candice continuaram e os quatro jantaram pizza e assistiram Poltergeist da franquia original. Yoongi engolia em seco e pegava na mão de Candice com um pouco mais de força toda vez que a garotinha loira arrumava os cinco pontos de um pentagrama esquisito, e Jungkook ansiava por alguma parte particularmente assustadora, onde a música de fundo faria um trabalho excelente para que ficasse com medo e lhe desse mais uma cena de romance clichê. No entanto, ele mesmo pulou de susto na cena em que a vela se apagava e o rosto do monstro apareceu, agarrando-se nela por um segundo, arrancando uma gargalhada das duas. O plano tinha ido por água abaixo.
Na manhã seguinte, Candice surpreendeu a todos ao dizer que poderiam deixar os carros alugados para trás e voltar de trem-bala, como cidadãos comuns.
— Você tá falando sério? — perguntou quando depositou sua única mala de rodinhas no chão da sala, achando que ela só podia estar fazendo uma pegadinha.
Candice balançou a cabeça em negação para todos, com veemência.
— É sério, nós podemos ir. Atravessamos de balsa como na chegada e os carros ficam na empresa da filial. Depois vamos pra Estação Mokbo e chegamos em Seul em no máximo 3 horas. Sempre quis pegar um desses — ela bateu uma palminha animada, os olhos cinzentos brilhando como dois pontos de velas acesas. arqueou as sobrancelhas, achando que entendeu errado, e olhou para Jungkook, que tinha os olhos estreitados em desconfiança.
Mas Yoongi se aproximou e passou um braço por sua cintura, controlando um sorriso enorme.
— Ela tá falando sério, pessoal. É uma ótima ideia pra vocês duas, . Os vagões não devem estar cheios no meio da semana.
e Jungkook olharam para o ponto de contato entre os dois e, em seguida, olharam um para o outro de esguelha e entenderam tudo. É claro. Os dois tinham se entendido. E tinham se entendido mesmo.
não hesitou em aceitar e, 2 horas depois, ela estava com um braço enlaçado no de Jungkook em um assento confortável ao lado de uma janela imensa, em frente à uma mesa de centro com alguns pacotes e tigelas vazias de um almoço rápido enquanto compartilhavam um fone de ouvido com fio que ele tinha guardado em algum bolso da mochila, ouvindo The Chain do Fleetwood Mac.
— No que está pensando? — ela perguntou depois de vê-lo olhar fixamente para a paisagem passando em um borrão do lado de fora, uma paisagem com muitas montanhas verdes e algumas casinhas minúsculas separadas umas das outras por muitos quilômetros de distância.
Ele virou a cabeça para ela, ajeitando a touca preta.
— Estou pensando que quero mais uma tigela cheia de lámen — ele gesticulou com o queixo para a louça de plástico na mesa e revirou os olhos. Não era sobre aquilo.
— Tô falando sério.
Ele riu e umedeceu os lábios, olhando para fora novamente.
— Só pensando que tudo está… dando certo demais. Acho que isso me assusta.
— Te assusta as coisas estarem dando certo? — não foi acusatória ou até indignada. De alguma forma, entendia o sentimento. E era por isso que Jungkook assentiu, e soltou um suspiro leve.
— Um pouco — ele torceu a boca, ponderando se falava o que estava prestes a falar. Por fim, ele virou o corpo um pouco mais para ela, abaixando o pescoço. — Sabe quando você sente um– sei lá, pressentimento?
— Sei… — franziu o cenho.
— Nem sempre é algo ruim, mas às vezes eu, não sei… sinto que alguma merda vai acontecer. E não gosto disso, me dá vontade de fugir, me isolar em algum lugar até essa sensação passar.
Ele teve medo de repente de o achar maluco, ou até achar aquilo uma besteira tremenda. Mas o rosto dela não demonstrou nada disso, nem algo bom nem algo ruim. Ela apenas estendeu uma mão para acariciar a bochecha dele, que automaticamente virou e beijou sua palma, agradecendo o carinho que o acalmava automaticamente.
— Não vai acontecer nada de ruim. Vou cuidar de você — ela sorriu de canto e ele sorriu com alegria, achando lindo e fofo, sabendo que, mesmo que tivesse um poder aquisitivo menor do que o dele e muito menos poder para coisas diversas, ele se sentiu tranquilo e protegido só com aquelas palavras e aquele carinho no seu queixo. Uma coisa inimaginável, para não dizer o mínimo.
— Por favor, cuida de mim — ele fez uma reverência com a cabeça, referenciando um discurso tradicional de seu país quando as pessoas se dirigiam formalmente a um superior. riu e estalou a língua, dando um tapa leve no seu ombro. — Ei, o pedido foi sério. Mas no seu caso, vou querer ser cuidado no nosso quarto com as mãos presas na cabeceira da cama enquanto você dita todo o resto.
sufocou uma gargalhada, virando para trás em um impulso para ver se alguém tinha ouvido, mesmo que só estivesse os dois e Candice e Yoongi, praticamente do outro lado da locomotiva, quase na mesma posição: agarrados, grudados, a cabeça de Candice no ombro dele enquanto Yoongi lia um livro qualquer em voz baixa para os dois.
Vendo aquilo, soube que ela estava bem. Que estava feliz, entregue, pronta para lutar de novo. Min Yoongi apaziguava toda a imagem de Candice Chaperman. Puxava o freio de mão, apertava o botão de parar. Fazia ela estacionar um pouco para apreciar a vista, apreciar a vida num geral.
se voltou para Jungkook, que beijou a ponta do seu nariz e voltou a olhar pra fora. Ele ficava lindo naquela posição.

Don’t Dream It’s Over começou a melodia nos fones de ouvido.

— Ei — ela o chamou. — Caso você decida que vai fugir, pode me levar junto?
Ela lhe deu uma piscadinha. E Jungkook teve de novo aquele delay momentâneo, aquela constatação de que não existia.
Ele assentiu e a beijou rapidinho, entrelaçando seus dedos por cima do assento estofado e fazendo carinho em sua pele.
Jungkook nem notou que falou a palavra fugir de forma tão explícita, tão natural, sem nenhum medo de que ela o achasse irresponsável, imaturo, fraco ou coisa parecida. Sem preocupações se ela fosse achar que estava sendo abandonada ou deixada de lado.
E também não percebeu quando disse “nosso quarto”. Nem percebeu.
E seguiram a viagem em silêncio, ao som de mais melodrama dos anos 80 no fone compartilhado.



Ainda estava quente na França quando Ali Dalphin recebeu uma ligação decisiva do outro lado do mundo.
Ela desejava encontrar forças para chorar há semanas. Por causa do passado, do presente, das memórias, dos pensamentos negativos que a engoliam viva. Porque, mais uma vez, tinha terminado no mesmo lugar: abaixo daquele teto de 200 metros quadrados, rodeado por extensões de terra e pequenos bosques, de animais soltos por aí, de pássaros no céu, de requinte estampado no ouro dos portões e nos mordomos e empregados espalhados pela enorme residência que resguardava os Dalphin do restante do mundo, mantendo-os em um pódio seguro de aparências ainda mais seguras.
Ela quis chorar ao desligar o telefone. Tentou de tudo, imaginou os cenários vívidos na cabeça, ficou empolgada, feliz, animada. As pessoas também podiam chorar de animação. Ela tentou, de verdade. Mas só conseguiu murmurar um “ok, entendi”, desligar e ficar imóvel, encarando as pequenas ondulações em anil da piscina, pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo, sem conseguir aliviar aquele peso horrível dentro dela.
Um peso que ela não entendia bem a origem, não sabia se era uma coisa só ou várias, não gostava de pensar nesses detalhes. Ali considerava essas coisas de autocrítica um pé no saco, uma luta dela com ela mesma que nunca tinha uma vencedora. Era uma batalha todos os dias, uma guerra que já durava anos. Ou sua mente pensava em tudo ou ela não pensava em nada. A maioria das vezes foi tudo, tudo de verdade, tantas coisas por segundo que ela precisava aliviar. De forma sintética, ou de forma carnal. Precisava preencher, preencher, preencher.
Ela mal ouviu os saltos altos atravessarem o gramado extenso até a beira da piscina, mas reconheceu o cheiro há vários metros antes que ele finalmente chegasse. Aquela coisa adocicada e floral, elegante e pomposa, o que era hilário porque sua mãe odiava flores.
— Chegou pra você — Julie Dalphin não se deu ao trabalho de estender o pedaço de papel educadamente para a filha. O pacote caiu no colo de Ali, em um envelope azul sem nada aparentemente explicativo, mas ela entendeu bem rápido ao olhar para a logo da companhia aérea na lateral superior do envelope. — Achei que ninguém mais imprimia passagens de avião hoje em dia, com toda essa coisa de QR Code e blabla. Essa geração nunca se decide.
Ali nem precisou abrir. Sabia perfeitamente o que estava ali dentro, cada letrinha.
— Eu achei que tinha pedido por e-mail — murmurou ela, guardando o envelope ao lado da perna. — Quem entrega passagens em casa hoje em dia?
— Passagens compradas pelas milhas do seu pai, minha querida. Ou achou mesmo que os sócios dele da companhia não reconheceriam o seu nome?
Ali a olhou de esguelha, enxergando o rosto muito bem conservado daquela senhora, que ainda exibia uma beleza extravagante aos 62 anos, e imaginou que ela já estava se chateando com sua partida próxima.
— Valeu — murmurou ela mais uma vez, apertando o maço de cigarros escondido dentro da palma da mão. — Acho que você não está gostando disso.
— Ah, você acha? Antigamente, você apenas sabia. Sabia com toda certeza e mesmo assim, não se importou em bater as asas para qualquer parte do mundo e me deixar te ver apenas por fotos de revistas — ela disse suavemente, com sua personalidade padrão de não se importar nem um pouco em demonstrar suas opiniões e pensamentos, pelo menos dentro de casa. Quando Ali era uma adolescente e chorava por não querer seguir a carreira do pai, a mãe fazia um carinho no seu cabelo e apenas dizia “não fique assim, é só uma sugestão. Se quiser ficar em casa pra sempre, vamos te apoiar do mesmo jeito.”
Depois disso, ela começou a ser modelo. Começou a perder peso e a se preocupar com miseráveis gramas sendo ingeridas porque, de todos os terrores disfarçados em sorrisos que tinha ouvido naquela casa, a possibilidade de permanecer nela era a pior de todas.
Apesar disso, Ali amava sua mãe, e sentia falta da paz de uma vida que parecia longe de ter novamente. Com um sorriso de canto, ela olhou para a mulher e logo desviou os olhos, forçando os pensamentos anteriores a irem embora, aquela junção de coisas que a estavam paralisando por completo.
Ainda de pé, Julie se aproximou da cadeira da filha, virando-se na direção da piscina calma, reparando em qualquer ponto de sujeira que possam ter deixado para trás.
— Com quem você estava falando? — perguntou com a doçura autoritária de sempre, um tom que Ali só tinha ouvido dela em toda a sua vida. Sua única reação foi ficar quieta. — Vamos lá, não vai doer muito me contar isso. Não é como se eu fosse te impedir.
Você vai tentar, ela pensou e a palavra quase saiu pela boca. Engoliu de novo, reconsiderou a resposta e se corrigiu:
— Era o Marco. Vou voltar a trabalhar.
— Isso é ótimo. Pra onde vai?
— Você estava com a passagem.
— Quero ouvir de você.
— Você quer ver se vou mentir.
— Honestidade não é o seu forte, querida — murmurou Julie, agora encarando as unhas pintadas de vermelho recém feitas, ignorando o quanto o rosto de Ali se contorceu e seus dedos apertaram ainda mais a caixa de Marlboro. — Teve uma época que você se esforçou para dizer a verdade, sim. Há 3 anos atrás, eu podia confiar em você, mas daí tudo se perdeu de novo. A mudança não durou por muito tempo.
Ali quis levantar e sair, voltar para o quarto no 3º andar, voltar para a cama de dossel e seu espaço gigantesco que parecia mais e mais vazio a cada dia que passava. A ideia de passar um tempo em Lyon estava se virando contra ela. Ainda mais depois de todos os últimos acontecimentos envolvendo suas pílulas.
— Você vai ver aquele garoto? — Julie fez a pergunta, a principal que Ali não queria que fizesse. De jeito nenhum.
— Não é da sua conta — ela respondeu baixo, mas muito firme. Não virou para ver a expressão entediada da mãe.
— Tudo bem, você está certa. Mas vai dizer a verdade pra ele? Do porquê precisei olhar a sua passagem? — ela virou o corpo um pouco em perfil, olhando-a em em cunho provocativo. — Vai dizer pra ele que estava se aventurando em novas formas de se matar de novo?
— Jungkook sabe dos meus problemas — rosnou Ali, virando a cabeça para cima, os músculos começando a se contrair.
— Eu duvido que saiba. Duvido que você o contou tudo. Cair depois de 3 anos sóbria não é uma cura de verdade.
Vaca, Ali gritou em pensamento. Sentiu a pontada forte e dolorosa de raiva no fundo do peito. Sentiu que aquela conversa não funcionaria, como nunca funcionou.
— Isso é injusto pra cacete — resmungou, com mais raiva pela falta de argumento, de elementos de defesa. Odiava aquilo na mãe, odiava aquilo na família inteira. A necessidade do 8 ou 80, a exigência da constância, da perfeição. Estimavam você enquanto as coisas funcionassem. Valorizavam a sua pessoa enquanto fosse útil.
3 anos sóbria ainda é uma vitória, porra. Vai ignorar isso?
— É a realidade, Alison. Não ignore seus próprios feitos — e Julie sempre conseguia, muito fácil, abrir um sorriso de simpatia enquanto dizia coisas… não muito simpáticas. — Contar pra alguém que enchia o braço de furos no passado e voltar a fazer o mesmo depois de ficar sozinha, não é cura. É uma melhora transitória, é usar alguém de muleta. Se contar pra esse garoto a verdade, vai ficar claro que você o usou como uma reabilitação. E se não contar e usar os sentimentos dele pra reatarem, só vai significar que você tem tanto medo de cair e lidar consigo mesma que se submete a isso. De ficar com alguém que, o mundo já viu, não combina com você.
Ali franziu o cenho. Não comece com esse papo, sua miserável! Não venha com isso de “combinar” de novo porque acho que já provei dezenas, centenas de vezes que nada do que você ou papai escolherem, combina comigo! Absolutamente nada! Qual é o seu problema com ele? A fama? O dinheiro? A nacionalidade? Seu preconceito?
Aquelas não eram perguntas fáceis e muito menos seriam respostas fáceis, então Ali engolia tudo e dispersava. Não esquecia, não se livrava, mas tentava deixar passar. As regras debaixo do teto dos Dalphin não permitia que sua cabeça saísse da linha do restante dos membros. Seu bisavô tinha construído aquela casa e aquele império, e isso foi sendo passado adiante, hereditariamente, construindo mais e ganhando mais, passando o mesmo tipo de pensamento e autoridade para as mulheres e crianças que ingressavam naquele castelo, crianças que já nasciam com a vida planejada, crianças que não tinham a liberdade de questionar, crianças que conheciam as pessoas que tinham que conhecer, gostavam das cores que tinham que gostar, e se relacionavam com quem tinham que se relacionar.
Ali sempre esteve nesse limbo a vida toda, odiando a posição do sentimento de não pertencimento, e as brigas à mesa com o pai começaram já no início da adolescência. Eu quero a minha vida!, mas no fundo, ela nem sabia que vida era essa que queria. Quero ser diferente deles!, mas ser diferente quanto? Como? Que tipo de pessoa? Quero namorar quem eu quiser!, mas ela, afinal, entendia de namoros? Entendia de alguma coisa a dois, quando só pensava no que queria? Eu quero, eu quero, eu quero, eu quero…
Ali queria. Passou a vida grudada nessa palavra, focada em seu bem-estar, no seu prazer e nas suas necessidades, sentindo que o mundo devia isso a ela por ter nascido em um lar tão restrito, que ditavam regras que iam contra o seu querer.
Ela queria, ela podia, e era o que importava. Ela, ela, ela. Ai de quem não acatasse, não entendesse.
Portanto, se ela decidisse que Jungkook combinava com ela, que ele ainda a amava, e que sua mãe odiava isso, então faria isso. Já tinha pegado sua carteirinha de ovelha negra da família há muito tempo. Continuaria pintando o quadro de sua vida, com as cores que ela quisesse.
— Jungkook é um cara ótimo — afirmou ela, com toda a honestidade que ainda tinha. Quando o assunto era Jungkook, Ali conseguia se desviar, minimamente, bem pouco, de sua própria vontade e enxergar o outro como realmente eram. — Ele é mesmo. Não entendo porque…
— Ah, querida, pessoas ótimas não se submetem a isso. Pessoas ótimas atraem outras pessoas ótimas, e não alguém que as fazem se sentir mais necessárias do que ótimas. Entende a diferença? — Ela sorriu de novo. Ali sentiu raiva de novo. — Você ficou bem com esse garoto e acha que ele é a salvação da sua vida, mas ah, Alison… você vai cair de qualquer jeito. Porque não tem disciplina consigo mesma, porque ignora a volatilidade das pessoas, das relações. Porque não confia na família.
Ela segurou uma gargalhada perplexa, segurou o olhar de asco, fez todo o processo que conseguia fazer para não gritar e piorar as coisas. Confiar na família, que piada! Nunca entenderam o que eu quero! Não sabem que as coisas no mundo funcionam à base de sentimento!
Estar com sua mãe deixava a mente de Ali ainda mais volátil, confusa, com questionamentos de uma vida. Tudo voltava, até os mesmos comportamentos voltavam. Em quase 2 semanas, ela já tinha se livrado do cabelo ruivo e retornado ao loiro, e cortado todo o comprimento até os fios baterem na altura do pescoço em um corte short bob. Os olhos verdes voltaram a ficar mais em evidência do que nunca, e ela viu Julie sorrir e dizer “muito bem”.
Argh!
— Você não sabe de nada. Nunca soube — Ali queria tanto que ela desaparecesse. Julie se virou finalmente, juntando as duas mãos caídas.
— Sei que você é fraca e que odeia isso. Sei que acha que essa rebeldia ajuda em alguma coisa, mas você já tem 29 anos, Alison, então eu não vejo…
— Eu não sou fraca! Não sou! — Ali se levantou em uma explosão, e Julie não moveu um músculo. O par de olhos foram, automaticamente, para cima da cadeira, para o maço de cigarros pela metade, como se Ali estar com raiva não importava um centímetro. — E se quer saber, agora me sinto mais forte do que nunca. Porque estou resolvendo toda essa merda que fizeram comigo e adivinha só? Não pedi sua ajuda pra nada. Mas quer saber? Vou usar todos os seus recursos. Se precisar, vou usar o meu maldito sobrenome, vou ir à fundo nessa merda, pensar em cada detalhe, porque sim, ele pode ser a salvação da minha vida e eu quero ser salva! Por ele e só por ele! Eu quero. Foda-se suas clínicas de reabilitação caras, foda-se sua vigilância em cima de mim e foda-se suas opiniões sobre isso. Eu vou conseguir de volta o que eu perdi, não foi isso que você sempre me ensinou? A não abaixar a cabeça? A não deixar passar nada que fira meu orgulho?
Julie olhou nos olhos dela e percebeu o que talvez Ali nunca tenha percebido. Percebeu que ela era mais parte de casa do que pensou. Percebeu que ela seguia o próprio caminho, mas com o lema dos Dalphin tatuado em sua identidade. Se é que ela soubesse que tinha uma.
— É, foi exatamente o que eu ensinei — e olha como você está, ela pensou, se permitindo, talvez pela primeira e última vez na vida, se questionar se o que tanto ensinava servia para alguma coisa, servia para todas as pessoas.
Ali não queria saber se ela tinha mais algo a dizer. Pegou a caixa amassada da cadeira, agarrou sua passagem e bufou:
— Então observe o meu retorno, mamãe.


"Nós não fizemos nada tão errado
Ainda assim corremos para rir
Somente para rir."

🖤🎤 Riot Van


DEDICATÓRIA


— Isso é um pentagrama?
Jimin soltou o pacote com um susto, flexionando os dedos para se livrar do resquício da caixa, seja lá o que estivesse dentro dela. Jungkook franziu o cenho e a puxou para mais perto, gargalhando logo em seguida.
— Isso é uma estrela de Davi! Não sabe mais contar?
— Ah, que se dane! Vai dizer que essa bizarrice não é idêntica a um pentagrama ou qualquer talismã esquisito? Essas coisas são fortes pra feitiço, cara. Você não devia sair tocando assim.
— Bom, você tocou primeiro, então acho que o feitiço tá com você.
Jimin matutou a ideia por alguns instantes, ficando pálido por meio segundo até começar a rir sem humor e estalar a língua, gesticulando com as mãos em negação.
— Que nada, essas coisas não funcionam assim. Os seus fãs jamais te mandariam uma coisa dessas — disse ele, puxando outro pacote ainda não aberto. Jungkook sufocou uma risada enquanto passava o estilete em um pacote mole, abrindo-o e encarando o conjunto em jeans da Calvin Klein mais legal que ele já tinha visto.
— Nossa — Jimin arfou, arrastando-se para mais perto de Jungkook. — Que irado! É da coleção 90’s Denim?
— Não sei, tem um panfleto enorme explicando isso em algum lugar por aqui — Jungkook tateou no aglomerado de pacotes e caixas de papelão ao lado, mas no fim, deixou tudo como estava e se concentrou em outro. Jimin continuou o trabalho de procurar coisas até soltar um urro, que assustou Jungkook de imediato.
— Cacete, estão te chamando pra uma parceria de novo! Não sei como não alugaram um jatinho só pra virem se ajoelhar pra você e te implorarem pra ser o embaixador — resmungou em tom divertido. Jungkook balançou a cabeça.
— Acho que eu trabalharia bem com eles — Jungkook largou mais um pacote. Eram um par de coturnos novos da Balenciaga. Versão exclusiva. — Os jeans e tudo mais, parece interessante.
— Um contrato quebrado por vez, campeão. Você acabou de posar pra uma revista sem o conhecimento do Bang, dá pra terminar o ano sem querer desafiar quem paga nossas contas?
— Esse contrato é a coisa mais ridícula de todas as agências — Jungkook revirou os olhos. Agora estava encarando uma caixa que não parecia um presente caro de marcas luxuosas.
Jimin estalou a língua.
— É ridículo, mas nos satisfaz. Ganhamos mais dinheiro do que todo o resto.
— De que vale isso se a nossa liberdade é uma piada? Que coisa é essa? — Ele balançou uma outra caixa, tentando adivinhar o seu conteúdo, mas logo desistiu e abriu com o estilete, revelando algo que ele não entendeu na hora.
Era uma vela acompanhada de uma garrafa. Uma grande e adornada de curvas, como se tivesse sido feita à mão, sob encomenda, guardando um líquido vermelho vivo que se destacava muito no fundo do papel branco estirado na caixa.
Uma garrafa de sangria. Ele reconhecia aquela cor e aquela viscosidade há quilômetros de distância.
Já era final de outubro quando Jungkook conseguia olhar para aquela bebida e não se lembrar de nada, como se suas memórias antigas tivessem sido apagadas temporariamente. Uma bebida que já lhe causou tanta energia, tristeza, raiva, dor. A lembrança que aquela coisa trazia fazia seus músculos retesarem. Mas agora…
Ele não pensou em nada. Absolutamente nada.
— Uau. Sangria de Mía? — Jimin se arrastou novamente para perto, pegando aquela coisa nas mãos. — Cacete! Será que me mandam uma dessas no meu aniversário também? Isso é de outro mundo, você é um sortudo desgraçado!
— Se quiser, pode ficar — Jungkook puxou um dos sacos de lixo que tinha levado enrolados em outros para aquela tarefa que esteve postergando pelo mês inteiro: abrir seus presentes de aniversário. Tinha chamado Jimin porque ele não parou de enchê-lo um minuto sequer para participar daquilo, e Jungkook sempre dizia que não podia porque, afinal, estava trabalhando. Trabalhando muito. Setembro passou em um piscar de olhos no meio de gravações, photoshoots, reuniões, mais gravações e uma pequena parcela de vida pessoal acontecendo. Uma vida que envolvia dormir e , não necessariamente nessa ordem.
Ele tinha cruzado os dedos por várias vezes naquele mês para que ela não repensasse sobre eles depois de vê-lo ficar cada vez mais distante por conta do trabalho. Saindo cedo e chegando tarde, às vezes no outro dia. Ele foi e voltou do Japão pelo menos 3 vezes até o início de outubro, e não sabia explicar como ele ainda ficava tão enérgico e caloroso quando estavam juntos. Devia estar cansado, devia estar querendo dormir, com a cabeça na lua. Mas quando a via, ele sempre ficava bem, disposto, como se nunca tivesse ido embora. Isso servia para deixá-la mais apaixonada. não sabia com certeza a natureza da energia de Jungkook, mas pensar que tinha algo a ver com isso não tinha preço.
Ele viu Jimin soltar um gritinho de comemoração enquanto vasculhava as outras caixas, já cansado de tantas marcas, tantos convites, tantas roupas, perfumes, sapatos e até mesmo bebidas. Jungjae não tinha deixado muito claro sobre quantos presentes passaram pela autorização de sua equipe, mas agora Jungkook pensou que ele omitiu os números porque eram muitos. Havia um pacote gigantesco no canto do estúdio, com uma faixa imensa escrita FRÁGIL que fez Jimin se recusar a chegar perto e um outro com uma embalagem de vidro que faria alguém sangrar caso tentasse abrir, e tantas e tantas camisetas e joias entulhadas em uma única bolsa da Louis Vitton que ele gostaria de apenas pegar e jogar no seu closet, separando um dia futuro para olhar aquilo com mais calma.
A maioria daquelas coisas não parecia lhe dizer muito respeito. Para um cara em constante observação dos holofotes, as grandes marcas pareciam não se importar nenhum pouco com o estilo pessoal de Jungkook. Pareciam ignorar totalmente o fato de que ele só usaria amarelo no dia que tivesse um aneurisma e sandálias de Jesus quando estivesse morto.
Prestes a abrir outra caixa, ele sentiu o celular vibrar no bolso e nem precisou olhar para saber quem era. Aquele grupo tinha um toque especial, um que ele tinha tentado mudar de todos os jeitos e não conseguiu.

Eunwoo: Tá tudo pronto, estão todos convocados a aparecer a partir de AGORA
Yug: Você disse que iria invocar a gente
Eunwoo: Convocando, idiota
Mingyu: Vai ter que invocar falando o nome das bebidas
Eunwoo: É a bebida de sempre
Yug: Budweiser? Ai, decadência
Mingyu: Melhora isso aí
Eunwoo: Melhorar o quê, é a festa de aniversário do JK, vocês vão beber o que tiver
Mingyu: Se ele tivesse montado a própria festa, a bebida seria melhor
Yug: Aniversário do JK? Por quanto tempo eu dormi?
Eunwoo: Foi mês passado, mané. Vc sempre esquece
Eunwoo: Vc esqueceu do meu em março
Yug: Pra quem eu dei parabéns em março então?
Mingyu: Vc me deu parabéns e me levou pra comer carne, com direito a bolo e tudo
Mingyu: E o meu é só em abril
Yug: VC ME ENGANOU??
Eunwoo: Gente, foco! Não interessa a merda da bebida, quero vcs aqui em menos de 20 minutos ou as enchiladas vão esfriar
Mingyu: Ah, não! Comida mexicana…
Yug: Se vc colocou pimenta, me esquece
Mingyu: Se eu ver uma uva passa nessa merda, vou dar pra sua cachorra comer
Yug: Ele não tem cachorra
Eunwoo: Não tenho cachorro, seu idiota
Eunwoo: Tenho um gato
Yug: O JK tem cachorro
Mingyu: O Bam comeria uva passa?
Yug: Dizem que uva mata eles, melhor não arriscar
Mingyu: Mesmo uva passa? Não é mais uva
Yug: Como q não é mais uva? Já leu o nome?
Mingyu: E daí? Pepino e picles é a mesma coisa pra vc?
Yug: Sim????
Eunwoo: Gente? Vcs já estão vindo?
Eunwoo: Pq o JK não responde?
Eunwoo: @Jungkook, anda logo e vem pra cá, não faz eu me arrepender de ter pendurado bandeirinha preta na minha sala a toa
Eunwoo: JUNGKOOK


Jungkook bufou forte ao terminar de ler as mensagens, digitando em seguida:
“20 minutos não, preciso de pelo menos 1 hora. Vou passar em um lugar primeiro, prometo que disso não passa”, e não ficou para ver as mensagens de protesto. Sabia que Eunwoo, como a “esposa” do grupo, tinha dado duro para preparar uma pequena comemoração pra ele de aniversário tardio, como fazia com todos sempre que a data chegava, ainda que, naquele ano específico, o grupo não estivesse nas melhores condições.
A começar por Jaehyun não ter dito mais uma palavra desde o ocorrido com Jungkook. Nem mesmo mandou uma figurinha, um emoji de negação, um ponto final, qualquer coisa gramatical o bastante que provasse sua presença. Absolutamente nada. Um silêncio completo e torturante, uma montanha mais gelada que o McKinley.
Jungkook não ia pensar nisso. Já bastava um tempo livre qualquer em que o olhar duro de Jaehyun naquela sala de Mingyu explodia na sua mente vazia, lembrando-o desse enorme problema que ainda precisava resolver, desse laço que precisava amarrar de novo, trazê-lo de volta, tentar alguma coisa. Ainda que Jaehyun também tenha mentido e escondido coisas dele nos últimos meses, o que aplacava um pouco da culpa de Jungkook, isso não melhorava em nada. Só fazia com que os dois continuassem no mesmo lugar, sem acrescentar vitória ou derrota para nenhum dos lados, bem ou mal. Depois de tudo aquilo, Jungkook estava mais do que certo de que não existiam lados certos ou errados na história, pelo menos não 100%, mas duvidava que seu amigo pensasse da mesma forma.
Duvidava mais ainda que ele fosse pensar assim depois que descobrisse seu namoro com . Era mais uma das coisas que ele não queria pensar.
Depois de mais 3 caixas abertas, Jungkook chegou em uma interessante, uma que não era tão grande e tão fantástica, uma que parecia como uma encomenda qualquer que ele mesmo tenha pedido. Quando virou o papelão para olhar a outra extremidade, viu realmente o seu nome, e logo abaixo o endereço da agência e a sigla do eBay logo ao lado do código postal.
Ele arfou e desceu o estilete na camada de fita rápido demais e sem muita delicadeza, sentindo o pacote pesado e muito plastificado. Jimin desviou os olhos de uma coleção nova de joias da Cartier quando viu o amigo puxar alguma coisa muito bem embrulhada em plástico bolha, camadas e mais camadas, impossibilitando de ver o que era.
— Isso! — Jungkook sorriu, sorriu muito, os olhos brilhando enquanto começava a missão de libertar aquela coisa de tanto plástico. Dessa vez, começou devagar, com destreza, mas a empolgação talvez o fizesse mudar um pouco o ritmo ao longo do desembrulho.
Jimin franziu o cenho e se aproximou de novo.
— Que negócio é esse? — ele não conseguia ver nada. Era apenas um vulto preto abaixo de muitas bolas. Aquelas coisas precisavam ser muito flexíveis para não rasgarem em três partes de tanto que estavam apertadas.
Jungkook olhou para ele por um segundo, ainda sorrindo.
— Essa aqui é um presente meu. Que eu pedi — ele pareceu misterioso, mas na verdade só estava mesmo muito ansioso para se livrar do plástico. Puxou a tesoura, rasgando as bordas, jogando pra Jimin o restante da embalagem porque sabia que estourá-las o relaxava, e não demorou para que ele realmente começasse a estourar. Ficou mais fácil depois de tirar as fitas das laterais, e, pouco a pouco, o negro do fundo foi se tornando mais evidente, mais nítido, revelando-se depois em algo meio… inacreditável.
— Você comprou isso? — Jimin não entendeu nada no início. A coisa parecia tão velha que vinha com a poeira de brinde — Uma câmera? Mas por que você… — ele parou os dedos nas bolhas, e precisou de apenas um segundo para desvendar toda aquela mecânica — Ah, tá. É lógico.
Jungkook sorriu e não negou. Agora raramente negava algo para Jimin quando as coisas já estavam óbvias. O amigo sabia no que ele estava muito interessado ultimamente. Principalmente porque Jeon Jungkook, no último mês, se parecia muito com um dos atores de A Rosa Púrpura do Cairo, vivendo 24 horas por dia em um filme de romance, andando por aí com a soundtrack de La Vie En Rose tocando no fundo.
Deus do céu, nem precisavam quebrar muito a cabeça para dizer que ele estava apaixonado. Aquele sorrisinho bastava.
— É isso aí — Jungkook deu um tapinha animado no ombro de Jimin e voltou a guardar a câmera com muito cuidado, agora atestando que ela tinha mesmo chegado, e não um tijolo. Então, terminou de fechar a caixa, sem tanta preocupação pelo estado dela, e voltou a se levantar.
— Ei, ei, pra onde você vai? — Jimin arqueou as sobrancelhas.
— Vou sair. Parece que tenho uma festa de aniversário pra ir — respondeu. Jimin franziu a testa — A minha festa de aniversário. Eunwoo já fez todo o processo.
Jimin contorceu o rosto imediatamente, abrindo a boca em choque.
— Ele organizou uma festa pra você? E não me chamou?
— Não é exatamente esse tipo de festa…
— Que seja, você sabe que eu amo organizar festas! Essa parte do processo é a mais interessante!
— Jimin, você não pode ir — ele deu de ombros, tentando parecer o mais firme possível. — Vão ser só os caras do grupo. Não tem tequila, não tem garotas, não tem outros amigos…
— Sério isso? Só porque nasci 2 anos antes? — ele bufou, um pouco indignado, mas Jungkook achou engraçado. A cara emburrada de Jimin era hilária, e ficava mais ainda quando o motivo era tão idiota — Beleza, pode ir, mas quando rolar a festa dos mais velhos, você não vai ser convidado.
— Os mais velhos não fazem festas — Jungkook esticou uma mão para uma continência mal feita e virou as costas para a porta.
— Ei, e os seus presentes?
Jungkook parou e se virou para a bagunça inominável em que tinha deixado o cômodo, com vários esqueletos de papelão e papel colorido, caixas firmes e fracas de todos os jeitos, tamanhos e cores espalhadas pelo chão, já suspirando de cansaço.
— Se limpar tudo isso pra mim, pode ficar com o que quiser. Menos — ele levantou um dedo para impedir Jimin de falar — As roupas da Calvin Klein. Essas você não encosta.
Jimin comemorou com um gritinho, já agarrando a primeira caixa ainda não aberta que viu.
— Por que isso? Você nem vai ser o embaixador.
Jungkook sorriu por cima do ombro.
— Talvez eu mude de ideia.
E saiu para fora da sala antes que visse Jimin escorregar a mão e desfazer mais um laço de mais um presente.



Jungkook não mentiu sobre a festa para Jimin. Mas mentiu sobre a hora que chegaria lá.
Antes de dirigir para o apartamento luxuoso de Cha Eunwoo sediado em uma das partes mais prestigiosas de Gangnam, o maknae fez a rota já automática na quilometragem da Mercedes, subindo a pequena ladeira de Gangdong-gu e parando na frente da entrada característica do último edifício da rua, que hoje em especial exibia alguns pequenos galhos caídos na frente do pequeno quintal, onde a árvore que fornecia sombra e ainda mais escuridão à noite para o lugar já estava, pouco a pouco, começando a perder as folhas, preparando-se para o frio de novembro e toda a força que precisaria reunir para ficar de pé.
Ainda que o frio não fosse o suficiente para matar aquela figueira velha, a cada ano que passava ela aparentava estar mais… velha. Torta. Cansada, até. Jungkook ainda tropeçava em algumas de suas raízes longas que pegavam quase 2 metros além do caule grosso, serpenteando até a porta, aparecendo e afundando no solo, lutando contra todo o concreto que desabaram sobre ela. Ainda assim, nas épocas mais quentes, ela ainda exibia os galhos verdes e macios, e esse era um dos maiores motivos de Nitro ainda mantê-la por ali, no mesmo lugar, sem ceder à pressão da prefeitura de arrancar aquela coisa dali.
Quando abriu a porta da loja, sentiu o cheirinho de café imediatamente. Um café que Nitro sabia fazer, e não o café que disponibilizava em cápsulas na entrada, um café moído na hora e importado de alguma parte da Espanha que certamente deixaria Jungkook de joelhos quando provasse. Cervejas e cafés, esses eram o passatempo real de Jungkook e Nitro nas horas vagas, uma bebida e uma conversa, uma dupla essencial para formar bons amigos.
— Na hora certa, velhote! — Ele falou alto quando chegou por trás de Nitro, muito concentrado em alguns documentos por trás do balcão, fazendo-o pular de susto e quase derramar o porta-canetas da mesa.
— Caralho, garoto! Não é assim que você vai me deixar chegar nos 50 — ele gemeu e balançou a cabeça lentamente, abaixando os óculos de grau até o peito. — Você demorou, já ia começar a fechar a loja.
— Precisei abrir umas encomendas no estúdio. Ela já chegou? — O olho dele brilhou na mesma hora. Era a única pergunta que iria fazer e a única resposta que precisava. Nitro sorriu e assentiu.
— Chegou tem 1 hora, eu já tava preparando o café. Levei as rosquinhas também, e mais aqueles salgadinhos que você disse que ela gosta. Só pra não restar dúvida de que ela não passaria fome.
— As rosquinhas são de pistache?
— E os salgadinhos de requeijão. é mesmo uma caixinha de surpresas — ele riu, e finalmente baixou os olhos para o pacote embaixo do braço de Jungkook. — E vejo que ela vai ter mais surpresas pra hoje.
Jungkook sorriu de um jeito orgulhoso.
— É só uma lembrancinha de nada, mas acho que ela vai gostar. Parece o tipo de coisa que precisa ter.
— E você quer que ela tenha tudo que merece, sim, tô vendo — Nitro balançou a cabeça com divertimento, e Jungkook corou um pouco de repente, um pouco envergonhado pela forma nítida com que estava apaixonado. — Não precisa abaixar a cabeça, garoto, gosto muito de te ver assim. Aliás, acho que nunca te vi assim, então parece que gosto ainda mais. Você amarrou essa mulher com o laço que você tanto tentou se desvencilhar, então fico feliz de te ver mordendo a língua e gostando de sangrar, é como uma justiça divina. E eu amo justiças divinas!
Jungkook riu alto, dando um soquinho no ombro de Nitro, sentindo-se menos envergonhado.
— Ok, você tá certo, tô sofrendo uma retaliação. E eu poderia fazer isso todo dia, todo santo dia. E acho que ela também — ele adicionou malícia no sorriso e Nitro revirou os olhos.
— Ok, chega, chega, vai lá pra sua namorada, vai. Aperta mais esse nó que você colocou nela, e sejam felizes. Mas não tão felizes, tá bom? Pelo menos não no carpete, acabei de passar o aspirador lá.
Jungkook deu um abraço rápido, porém firme e apertado em Nitro, saindo de trás do balcão e caminhando quase saltitante para o corredor estreito já conhecido, aquele que te enfiava em baixa extrema de luzes e dava vazão para os milhares de símbolos e códigos anarquistas dos anos 80 nas paredes negras, caminho necessário para se chegar ao final dele em uma porta velha que rangia e te jogava em um paraíso iluminado e muito bem cultivado, com cheiro de revelador de filmes, umidificador de água e lugares fechados, mas que ainda era perfeito. Ainda tinha um aroma estranho de casa.
No meio disso tudo, lá estava ela: em seu cantinho exclusivo na frente da prateleira das câmeras, sentada com as pernas cruzadas em borboleta na frente de uma mesa de té que apoiava seu laptop ultrapassado, beliscando um outro salgadinho ao lado do corpo, sempre muito concentrada para notar o barulho da porta se abrindo.
Mas acordaria até de um coma com o som daquelas botas, que pareciam ser tão dele, sempre ele. Impossível que seu cérebro não reconhecesse, não mudasse o foco. Era um pouco assustador que tivesse entregado tantas partes dela para ele, inclusive a função dos ouvidos, que reconheciam até o jeito de andar do sujeito, mas nada parecia assustador o bastante quando ela o via. Quando o coração dava uma cambalhota daquele jeito, quando ela sorria tanto que tinha medo de rasgar o próprio rosto.
Ele fechou a porta e andou rápido para sentar ao lado dela, puxando seu rosto para um beijo que demorou mais do que o necessário, e só faziam algumas horas que tinha estado com ela. Naquela manhã, por exemplo, quando acordaram juntos no apartamento 402 em Seongdong-gu.
— Achei que você estava brincando sobre vir aqui — disse ela quando se separaram. Jungkook estreitou os olhos.
— E eu já brinquei sobre querer te ver?
— Não, mas achei que você tinha hora marcada para estar no Eunwoo. Ele não está fazendo uma festa de aniversário atrasada pra você?
— Sim, e eu seria um maluco de não comparecer. Já fiz isso uma vez e ele chorou tanto que fez eu me sentir o ser humano mais miserável do planeta, e eu aprendo com os meus erros — ele deu de ombros e riu. Ele não precisava explicar aquilo, na verdade. A vestimenta inteira de Jungkook gritava por uma festa para ser exibida. Jaqueta Long Sleev Oxford da Mihara Yasuhiro, calças de couro da Dion Lee e as famosas botas de combate um pouco mais incrementadas, grandes e grossas, o tipo de coisa que ele só usaria em ocasiões especiais. — Mas eu ainda tenho um tempinho. Vim te dar uma coisa primeiro.
— Ah, é? — Jungkook puxou a caixa do lado da perna, colocando em cima do colo. — O que é isso?
— Abra e veja, bonitinha.
o olhou desconfiada e arrastou o pacote para cima do próprio colo, agora esquecendo-se completamente do computador e começando a desfazer as fitas já meio desfeitas, percebendo que a coisa era meio pesada, mas nem tanto. Depois de uma tarefa de menos de 3 minutos, ela desembrulhou o presente, livrando-se das camadas de papel e viu a câmera.
não precisou de muito tempo para reconhecer, nunca precisava. Os olhos foram se arregalando devagar.
— Meu Deus — ela poderia desmaiar se Jungkook não estivesse por perto, de forma muito figurativa, mas que era quase isso. — Meu Deus! Jungkook, meu Deus! Isso é uma Zenit?
Ele concordou com a cabeça, sorridente.
Zenit DF-2, original da Rússia. Uma das poucas que foram produzidas na China e que foram vendidas pro Brasil e pra Argentina. Parece que é uma relíquia — ele a provocou com um sorriso. paralisou por um momento.
— Você… Calma, como conseguiu isso? Foram feitas há tanto tempo, e é uma das únicas com baioneta não padrão. Sério, como?
Jungkook riu e sentiu um prazer imensurável só de olhar para a forma com que segurava aquela coisa. Com medo, com felicidade, com delicadeza, com amor.
— Como você disse, não dava pra eu entrar em alguma loja hoje em dia e comprar uma dessas novinha. Mas é por isso que existe o eBay — ele deu de ombros e pareceu ainda mais chocada. — Eu não estava procurando nada especificamente, mas parei em um anúncio de uma garota brasileira e uma palavra me chamou a atenção, aquela que você me ensinou naquele dia. Raro. Você me disse isso quando a gente tava na piscina. Você é raro. Pedi pra você escrever em Chainsaw porque gostei do som — ele riu e assentiu ligeiramente. — Vi essa palavra no anúncio e cliquei. A partir daí precisei de um tradutor, mas basicamente essa garota, lá no Brasil, tava vendendo essa câmera que quase ninguém tem por um preço muito abaixo do normal, mas não foi isso que me convenceu. Não foi só pelo item, foi a história dela. Me lembrou um pouco de você — ele acariciou de leve os dedos de segurando a câmera. — O pai dela tinha falecido recentemente e era apaixonado por fotografia. Era o trabalho dele também, mas parecia ser mais do que isso. Essa câmera, e tantas outras, uniam os dois de uma forma muito foda. Essa era a câmera preferida do pai dela porque foi a primeira, foi a que iniciou a paixão, foi a que fez a vida dele começar a valer a pena. Quantas lembranças ele já não registrou nessa coisa? Quantas coisas boas não passou pra essa garota mostrando como isso era importante? Quantas coisas ele moldou nela, assim como seu pai moldou em você? — ele sorriu de canto. não conseguia emitir nada além de espanto. — Eu só… depois que li isso em alguns parágrafos do anúncio, não consegui pagar o que ela pediu. Era pouco demais, era raso. Era minúsculo perto da palavra raro. Você me ensinou isso. Então entrei em contato com ela e… — ele apontou para o objeto, aumentando o sorriso. — Agora você tem uma raridade na sua coleção. Mais uma. Incluindo eu mesmo, e foi você quem disse isso.
Ele riu porque quis parecer divertido, mas ainda continuava parada, olhando pra ele com aquela ternura esmagadora que tirava o próprio sorriso de Jungkook, junto com todas as suas reações. E quando ele viu o olho dela brilhar com mais força, aquele tipo de brilho lacrimal que já tinha visto, mas que ainda acontecia muito pouco, ele não soube o que fazer.
… — um pouco culpado e com desespero nascendo do fundo do estômago, Jungkook levou a mão ao ombro dela, aproximando-se um pouco. — Desculpa, , eu não…
Ela o abraçou antes que ele completasse, ou que continuasse com mais daquelas besteiras de desculpas. ainda segurava a câmera, mas agora com força, com determinação, com um sentimento explosivo de estar segurando a tocha das olimpíadas. Era a primeira vez que sentia como se fosse verdadeiramente perigoso não amarrar aquela câmera no seu punho, nas suas pernas, em qualquer lugar onde ela não pudesse sofrer nenhum risco de cair ou de pegar um grão de poeira. Também era perigoso porque ela podia chorar, chorar de verdade, não soltar apenas aquelas lágrimas solitárias de felicidade que estava soltando, com a cabeça afundada no ombro dele.
— Você não existe — e essa frase era verdadeira, poderosa, intensa até os ossos. Tornava tudo que aconteceu antes e o que acontecia naquela hora uma mudança de vida para . — É sério, você não existe. Eu amo você.
Jungkook sorriu, com o braço em volta dela agora, se deleitando na felicidade dela e não na gratidão. Sabia porque ela estava tão grata, e deixava claro que ela não precisava falar, se não quisesse. ainda não podia ser considerada a melhor pessoa para sair contando casos do passado, mas estava melhorando nisso. Estava percebendo a força disso, em como a vulnerabilidade tornava as coisas mais poderosas entre duas pessoas. Se sentia tão próxima e íntima de Jungkook que não precisava externar o que estava sentindo naquele momento. Apenas gratidão e gratidão, um punhado disso. Ele era tão atencioso e generoso. Procurava um milhão de formas de suprir as dificuldades e carências de , carência de uma coisa que lhe foi arrancada, negada, enquanto ele tinha recebido o dobro, triplo do que era necessário. Agora ele agia na direção de atingir um equilíbrio com , ajudá-la a curar feridas que não perceberia sozinha, chegar em um ponto com ela que nada, absolutamente nada, ficaria escondido. Esse era seu objetivo. Era sua dedicação diária a quem amava e quem lhe fazia tão bem.
Quando se afastou, já tratou logo de limpar o rosto carregado de algumas lágrimas que vieram de um tsunami de lembranças, e estava tudo bem, Jungkook não ligava. Sabia que o choro era de alegria, e por Deus, ele queria que ela só chorasse por isso.
— Eu nem sei o que dizer — ela conseguiu sorrir, e os olhos ainda brilhavam muito. — Por que ela estava vendendo se era tão importante assim?
Jungkook prensou os lábios e dedilhou as costas de por um momento.
— Não sei. Não me meto muito no luto das pessoas. Acho que cada um lida com isso do jeito que achar melhor — disse ele, com o timbre baixo. — Mas, sabe, essa câmera estava à venda há quase 1 ano. O mesmo anúncio com algumas perguntas, mas nenhum negócio fechado. Não sei se acredito nessas coisas, mas acho que essa câmera não podia ir pra qualquer um. Acho que a garota pensava assim também. Acho que ela estava guardando, selecionando para passar adiante a raridade dela pra outra raridade. Acho que ela estava esperando você.
riu pelo nariz, balançando a cabeça.
— Mas foi você quem comprou, não eu.
— E eu aceito meu papel de ponte para as suas alegrias, não tem nada que eu ame mais do que isso — ele disse em tom óbvio, e riu ainda mais. — Quer dizer, amo muito mais você, mas amo que você seja o Soluço e eu o Banguela. Você me diz pra onde quer ir e eu levo, me diz o que quer e eu dou, e se quiser ir sozinha, te faço café pra viagem e seus salgadinhos de requeijão. É assim que funciona a química do meu cérebro quando se trata de você.
mordeu o lábio inferior e aproveitou a proximidade para beijá-lo com paixão, com a mesma delicadeza e os mesmos sentimentos que colocava naquela câmera naquele momento, sabendo do fundo do peito que ele também fazia parte de seu acervo de itens raros ao qual ela estava destinada a encontrar.
Ela espalhou o beijo pelo queixo e nariz dele até dizer:
— Eu também faria isso tudo por você.
— Sei disso, linda. E é por isso que eu vou ganhar o mundo. Pra você ver que valeu a pena não ter aceitado nenhuma passagem que eu enviei.
revirou os olhos, mas se viu rindo. Atualmente, tudo que Jungkook falava sobre aquela época tenebrosa dos dois de antes de tudo ficar lindo e cor-de-rosa soava engraçado, como uma comédia romântica sendo montada, um roteiro ainda sendo escrito, tendo uma primeira intenção muito diferente de como a história se desenrolou de fato. gostava de pensar nisso, às vezes; em como não imaginava, não imaginava de jeito nenhum sentir o que estava sentindo por ele, e Jungkook achava interessante aquela nova forma de se apaixonar que acabou descobrindo: um amor que não vinha da primeira vista, amor que era construído no meio de uma tempestade, um que revelava partes escondidas da gente, um que abria os nossos olhos para o mundo, transformava a nossa vida pra sempre. Jungkook tinha certeza absoluta que nunca mais seria o mesmo depois de , ela estando ali ou não.
Antes que começasse a beijá-lo sem parar, virou a cabeça para o computador aberto.
— Acho que você tá atrasado — ela se afastou rapidamente, puxando a câmera para o colo de novo. — Já são quase 11, seus amigos devem estar esperando.
Ele sentiu aquele peso característico de foda-se quando via a hora de se afastar dela chegando, seja de manhã ou até mesmo no meio da tarde, mas estava começando a se acostumar com isso. estava se assentando cada vez mais na rotina, e em uma rotina, sempre sabíamos que faríamos as mesmas coisas no próximo dia, e no próximo e no próximo. Dava um certo tipo de paz e sossego.
Mesmo assim, ele bufou de forma irônica e acariciou a bochecha dela, ainda um pouco vermelha enquanto os olhos começavam a voltar ao normal.
— Não devo demorar. São só algumas cervejas, uns petiscos e um bolo decorado que Eunwoo compra na cafeteria.
assentiu, abraçando a câmera.
— Se ficar bêbado e dançar Twice de novo, quero provas em vídeos.
— Mas é claro. Também guardaria um pedaço de bolo pra você, mas seria tão mais fácil se eu pudesse entregá-lo depois da festa. Na minha casa. Com você lá.
Ele espichou os olhos para ela, sugestivo. não demorou a entender, e soltou um suspiro cansado.
— Preciso terminar esse artigo. Meu segundo semestre acabou de começar e preciso correr com o lançamento do TXT. É bagunça demais pra deixar na sua mesa dessa vez — ela torceu a boca em uma expressão de “é o que é”. Jungkook revirou os olhos.
— Você sabe que eu não me importo com isso.
— Tudo bem, mas eu me importo, preciso de… tempo, eu acho — ela abaixou a cabeça rapidamente, sentindo o rosto corar furiosamente. — Ainda estou tentando me acostumar com a chave que você me deu.
— A chave que eu te devolvi, você quer dizer. E você nunca usou ela.
— Porque é meio estranho às vezes, entende? Sair entrando na sua casa assim, quando você não está lá.
Ela baixou drasticamente o tom de voz na última palavra, desviando os olhos para o piso, a câmera, qualquer ponto longe do rosto de Jungkook. Se sentia meio boba e patética com aquele comportamento, mas não iria fingir. ainda estava se acostumando a algumas coisas que poderiam ser normais para Jungkook, poderiam ser normais pra muita gente, como andar por aí com a chave e a senha da casa dele e ter passe livre pra entrar e sair quando quiser, mesmo que parecesse algo tão explícito. Ela dormia com ele na maioria dos dias, mas pensar em entrar daquele jeito… Era como um passo a mais na relação, e ela ainda estava processando o passo anterior.
Jungkook também se sentia um pouco mal, com medo de estar pressionando, de estar afastando minimamente com aquele papo. Ela era, sim, mais do que liberada a estar na casa dele, a transformá-la em sua se quisesse, mas nessas horas o freio falhava. Sua parte que a amava e a queria todo dia falava mais alto. Mesmo que fosse algo tão fácil de se fazer…
— Tudo bem, não vou forçar — ele a puxou pelo queixo para mais um beijo, tranquilizando ambos. — Fico arrasado de não te ver na minha cama, mas ainda bem que temos o restante do ano. Da vida, se você me permitir falar.
Ela riu e lhe deu um tapinha no ombro. Jungkook a beijou de novo e se colocou de pé.
— Tô indo. Te aviso quando sair.
— Com os vídeos do Twice.
Ele assentiu, disposto a qualquer coisa para fazê-la rir, mesmo que ele não estivesse olhando. Quando estava quase no batente da porta, ouviu a voz em suas costas:
— Ei, JK — ele parou e se virou. sorriu com carinho e apertou mais ainda seu novo presente: — Obrigada.
E ele respondeu algo que já tinha dito antes:
— Não tem nada que eu não faria por você.



A chuva havia dado lugar a um chuvisqueiro intermitente quando Jungkook estacionou do outro lado da garagem de Eunwoo, já abarrotada com uma mistura de Fords, Porsches e Jeeps. Ele sabia quem estava lá antes de tocar a campainha, e se preparou para a mesma coisa que não tinha se preparado no casarão alugado em Jeju.
Ele se desviou inteligentemente para o lado antes do tubo de confete explodir na sua cara, mas não impediu que tudo aquilo tomasse sua jaqueta, seus pés, seu cabelo, caindo um pouco nos outros três: Eunwoo, que tinha apertado o gatilho, Yugyeom à sua esquerda segurando uma garrafa grande com brilho em âmbar e sem lacre nenhum e Mingyu à direita, com um embrulho grande em papel de presente.
— Uhul! Viva o Jeon! — Eunwoo gritou em meio às palminhas, e os outros se viram obrigados a contribuir na animação, assim como, honestamente, se viram obrigados a participar de todo aquele circo. Tinha algo em Eunwoo que simplesmente não te dava a opção de negar suas exigências, e o principal deles é que ele era um poço de sensibilidade. E, bom, ninguém daquele grupo gostava de deixar os outros amigos tristes.
Jungkook recebeu mais um bolo embaixo do queixo, esse muito menor que o de Jeju, mas muito mais decorado e com mais velas. Ele não precisava pensar sobre o seu desejo. Mas, daquela vez, ao olhar para a frente e para todos os amigos, teve um sentimento carregado que o fez encarar com bastante ansiedade por alguns instantes para todos eles. Uma junção de tristeza, aborrecimento, frustração. O quadro que via em todos os seus aniversários nos últimos 7 anos, estava diferente demais naquele ano. 3 pessoas em vez de 4, uma rachadura no alinhamento do cosmos, dos planetas.
Jaehyun não estava ali. E Jungkook lamentou isso profundamente, mais do que seria capaz de admitir.
No entanto, ele logo se aprumou e sorriu, tirando essa preocupação dos ombros e soprando todas as velinhas, 25 no total, recebendo outra ovação animada dos amigos e sendo puxado para dentro, saindo da umidade do tempo frio lá fora.
— Caramba, achei que não viesse mais. Já tava indo dormir no sofá — Yugyeom resmungou enquanto fazia o caminho de volta para a cozinha. Mingyu estalou a língua.
— Mentiroso, você disse que ia fazer uma ligação e chamar garotas com uniforme de policial aqui. Ia ferrar com o plano.
— E desde quando garotas fantasiadas não são o plano de todos nós aqui?
— Me tira dessa — Jungkook agarrou seu bolo das mãos de Eunwoo e partiu para a cozinha um pouco apertada do amigo, mas que se revelava como um dos cômodos mais exclusivos onde você podia estar. Cha Eunwoo era um cara bem apaixonado por decoração e cores, muito diferente da forma como Yugyeom cuidava de sua casa, mas as duas mostravam cuidado: o apartamento dele era pequeno, mas não parecia ser. Não existia uma única parede que estivesse livre de alguma prateleira ou quadro, e ele definitivamente era apaixonado por corvos, porque havia pequenos ganchos no formato dessa ave ao lado de todos os interruptores possíveis. — O que vocês prepararam?
Yugyeom franziu o cenho na mesma hora, pronto para abrir a boca e gritar um imenso É O QUE para a declaração de Jeon sobre as garotas, mas Mingyu riu e o puxou pelo braço.
— Bebida surpresa! O Yug foi o responsável por essa parte, então talvez dê um pouquinho de medo, mas tudo bem, você tem 25 anos agora e precisa ser mais corajoso.
— Isso não é ser corajoso, é ser maluco — Eunwoo torceu a cara para a garrafa do amigo, mas logo suspirou e sorriu. — Mas tudo bem, o dia de hoje merece! Que comecem os jogos!
Ele pulou animado até a mesa pequena que tinha organizado no canto da casa, em uma área vazia entre a cozinha conjugada e a sala, onde tinha entulhado o móvel com tudo que Jungkook espera ver em uma festa de aniversário de um garoto de 11 anos de sua terra natal: as porções de arroz, a sopa de algas marinhas, docinhos de feijão vermelho e uma enorme faixa presa na parede atrás escrita “Feliz aniversário” e algumas bandeirinhas e balões em preto. Também havia uma cortina brilhante e dourada, e outro varal de letras de plástico logo abaixo escrita “Golden Maknae”. Era a cara de Eunwoo, mas Jungkook não se importava. Para bem ou para mal, ele se parecia um pouco com sua mãe, e isso era um ponto positivo.
O garoto reuniu vários copinhos em cima da mesa, todos prontos para a bebida de Yugyeom, que sorriu quando distribuiu tudo nos copinhos menores. Eunwoo não reparou que havia organizado 5, e não 4. Os outros fingiram que não repararam.
Com os copinhos completados, todos eles se reuniram em uma pequena rodinha e se prepararam.
— Nenhuma dica? — Jungkook estreitou os olhos para Yugyeom, que negou imediatamente. Ele levou o copo para perto do nariz, tentando captar alguma coisa, mas só sentia o cheiro de… álcool. — Cacete, não tenho nem ideia.
— E isso me apavora — Mingyu comentou, um pouco desanimado.
— Eu não quero aparecer gritando em uma vigília de igreja de novo — Eunwoo murmurou, o que arrancou risadas de Mingyu porque aquele dia foi hilário. Mais do que isso.
— Tudo bem, parem de chorar, vamos no 3! 1, 2, 3…
Eles viraram o líquido ao mesmo tempo, e esboçaram exatamente o mesmo nível da careta de desgosto, sentindo absolutamente tudo queimar e queimar, desintegrando algumas células do pulmão e definitivamente perdendo um milímetro do fígado.
— Porra, que merda é essa? — Mingyu tossiu uma vez, sentindo o céu da boca ficar molhado, sem relação alguma com a bebida. Aquela salivação constante de alguém que estava prestes a colocar as tripas pra fora.
— Não consigo me mexer — Eunwoo abriu e fechou a boca várias vezes, colocando e tirando a língua para fora, testando seus sentidos. Jungkook piscou os olhos várias vezes.
— Preciso sentar — disse ele.
— Que isso, gente — Yugyeom advertiu, mas ainda não tinha se livrado da careta de desgosto. O sofrimento estava estampado na cara, mas ele era o mais orgulhoso de todos — Que exagero, já tomamos coisas muito piores, e falo com muita propriedade. Anda, vamos de novo!
— Sério? — Eunwoo choramingou.
— É lógico. E depois vamos jogar Jangga.
Eunwoo revirou os olhos e os outros riram, porque jogar Jangga bêbado seria muito engraçado. Muito mesmo.
Depois dos copos preenchidos novamente, os 4 os estenderam para o centro do círculo e Eunwoo disse animado:
— Ao JK!
E viraram a bebida misteriosa mais uma vez.



Se a bebida misteriosa trazida por Yugyeom naquele ano era rápida em fazer efeito, ela se mostrou mais rápida ainda para dispersá-lo. Ele certamente não tinha contado com isso, e agora o futuro daquela festinha particular estava entregue às cervejas Loffe Brown de primeira, que Mingyu tinha garantido porque estava sempre preparado pra esse tipo de coisa. Aquela noite era uma ocasião especial, então até mesmo Eunwoo disponibilizou as vodkas de seu acervo pessoal, mas na verdade, ele teria disponibilizado de qualquer jeito porque Eunwoo não costumava ser um cara que dizia não aos amigos. Se os faria felizes, ótimo. Então ele ficaria duas vezes mais feliz.
As horas passaram e, entre uma partida de Jangga, tênis de mesa, truco e poker valendo 20 mil wons de cada, Jungkook sentia um pouco do cansaço querendo tomá-lo de forma integrada. O peso do trabalho chegava nessas horas de tempo livre, quando ele sabia que, mesmo que pudesse acordar umas horas mais tarde no outro dia, se sentia tão cansado que poderia precisar de mais do que isso; precisaria de uma semana inteira dormindo, direto de preferência, sem nenhuma interrupção.
Eles conversaram sobre tudo; perguntaram sobre as fotos, sobre a música que logo mais seria lançada, sobre o figurino, sobre os programas musicais, sobre a gravação do MV e de como Jungkook tinha batido o pé em uma reunião que não gostaria, de forma nenhuma, que colocassem uma atriz estrangeira e loira. Vocês estão querendo um falatório, não é? Só podem estar querendo um incêndio com isso.
Porque é claro que, por maiores mudanças e pontapés que a vida de Jungkook tenha mergulhado nos últimos meses, o restante do mundo ainda estava preso no escândalo de abril, na exposição do namoro do cara mais cobiçado do momento no cenário musical, um escândalo que ainda era comentado por aí em qualquer viela da internet. Jungkook estava fadado a encontrar com esse assunto de novo assim que voltasse aos holofotes das entrevistas, lançamentos, talk shows e isso tinha ainda mais risco se estivesse sozinho, mas poderia aguentar quando viessem até ele, não o contrário. Ele, de jeito nenhum, daria brecha para esse assunto, alimentaria isso. Não daria antes, e muito menos agora, que estava em um novo relacionamento e um feliz novo relacionamento. Um que ele guardaria em uma concha, protegeria do universo, mentiria quantas vezes fosse preciso para que nem chegassem nessa possibilidade.
Ok, ele tinha feito a live mais comentada da agência e praticamente se declarado para a nível mundial, mas anunciar nas entrelinhas que estava apaixonado não era exatamente uma exposição. As pessoas não saberiam, não podiam saber de , e muito menos da história que os envolveu lá no início, porque era maluca demais para entender. Até ele mesmo demorou a entender, tendo em vista que só tinha duas opções com aquela mulher: ou ele a mataria ou se apaixonaria por ela, um ou outro.
Porém, o tudo no meio daquela rodinha não era de forma literal. Entre um silêncio e outro do quarteto, a mesma pergunta passava pela cabeça de todos, barulhenta e escandalosa, querendo sair, querendo tirar aquele pônei do meio da sala: e o Jaehyun?
Jeong Jaehyun.
A peça faltando. O elemento que pesava o clima, que os relembrava de que, por mais que estivessem rindo e comemorando, estavam incompletos.
Mingyu tinha deixado claro que aquele assunto não caberia naquela ocasião. Eunwoo se forçou a sorrir o tempo inteiro e usar a imaginação e a própria fé de que seria o último aniversário que passariam em apenas 4, e que em novembro, quando fossem comemorar os 25 anos de Yugyeom, todos estariam juntos, como deveria ser. Jungkook sabia que eles sabiam o que tinha acontecido, sabia que provavelmente tinham uma infinidade de perguntas sobre os motivos, sobre os segredos, sobre toda aquela merda que esconderam de todos, mas não tinha intenção de responder. Não naquela hora, não quando ainda não podia contar sobre , e não quando ainda não podia contar sobre Changmin e Ali. Era muita coisa que queria compactar e dizer o necessário, mas nada naquela história se resumia a necessária. E certamente, depois de ver tudo que viu e ouvir tudo que ouviu, Mingyu não teria deixado ele ir para aquela festa naquela noite se sentisse que Jaehyun estaria lá e presenciar mais uma baixaria de novo.
Mas esse medo era inútil, porque Jaehyun jamais iria à festa de Jungkook. Sendo mais extremo: Jaehyun não deveria nem estar passando pela esquina de Jungkook, nada que o relembrasse que o maknae ainda andava e respirava por aí.
Mas um novo assunto logo chamou a atenção dos amigos. E ele era:
— Karaokê!
Eunwoo gritou animado, já um pouco bêbado e abrindo caminho entre as almofadas do sofá para puxar a jaqueta de Jungkook, balançando o tecido como uma criança. O maknae franziu a testa e estalou a língua.
— Quê? Ficou doido? Sabe que horas são?
— Estamos na capital, Jeon — Mingyu se colocou de pé, igualmente animado como Eunwoo. Yugyeom não esboçou grandes reações, mas assentiu com a cabeça, mostrando de que lado estava. Jungkook arregalou um pouco os olhos, apontando para atrás das costas de Mingyu.
— Vocês estão vendo essa TV enorme? Ela também serve pra um karaokê. E Eunwoo tem os microfones que eu sei.
— Ah, sai dessa! Para de ser sem graça — Mingyu protestou e puxou sua mão para se levantar. Jungkook foi arrastado até o meio da sala enquanto Eunwoo digitava ferozmente no celular de repente, guardando-o para seguir o maknae.
— Isso aí, larga disso porque hoje você tem um compromisso com a gente e com a sua festa de aniversário. Não é porque é outubro que não vamos fazer o negócio direito, anda logo! Todos comigo!
Ele cambaleou até um dos milhares de ganchinhos em formato de pássaro e puxou uma chave aleatoriamente no meio de tantas, balançando-a na direção dos amigos.
— Quem vai dirigir? — Ele riu do nada, como se tivesse feito a pergunta mais idiota do mundo, porque era lógico que ninguém iria dirigir seu Porsche.
— Acho melhor você não fazer isso — disse Jungkook, estreitando os olhos.
— Por que não?
— Porque você é meio idiota com faróis e lanternas. Melhor eu…
— Eu vou dirigir! — Mingyu estendeu o braço mais rápido do que Jungkook, puxando a chave de Eunwoo com maestria. O amigo nem se importou; na verdade, pareceu aliviado por saber que não iria precisar prestar atenção em nada. Mas Jungkook contorceu o rosto de um modo muito, muito confuso.
— O quê? Você vai dirigir? — ele apontou para Mingyu, que também tinha as bochechas um pouco vermelhas. — Tá maluco? Eunwoo nunca te deixaria dirigir o carro dele. Esqueceu do que fez com o Toyota?
— Ei, esse Toyota nem existe mais — disse Eunwoo.
— Exatamente! Porque Mingyu destruiu ele numa cerca viva e você nunca mais deixou ele respirar perto do seu carro. O que tá acontecendo? Tinha alguma coisa nessa merda de bebida misteriosa?
— Você pode não ofender a minha contribuição da festa? — Yug já estava colocando o casaco e guardando o celular no bolso, chegando perto dos outros. — E vamos logo antes que essa cerveja comece a dar sono. Quem vai me acompanhar em Just Right?
— Eu, eu, eu! — Eunwoo esticou o braço junto com os pés. Mingyu gargalhou e puxou Eunwoo pelo ombro para fora do apartamento, e Yugyeom colocava um cigarro na boca ao passar por Jungkook para seguir os demais.
Então era isso? Eunwoo colocou o carro dos seus sonhos livremente nas mãos daquele que já o tinha destruído uma vez? Não aquele carro especificamente, mas… Minha nossa, as coisas estavam diferentes mesmo.
Sendo o último para trás, ele respirou fundo e olhou as horas. 1:30 da manhã. Não estava nem perto de bêbado, mas não se sentia exatamente apto para fazer uma prova de matemática, então apenas aceitou a noitada que vinha pela frente e finalmente saiu, apagando todas as luzes.



Mingyu estacionou o carro bem próximo de onde um grupo de garotas acabava de se sentar na calçada, esperando uma das integrantes curvar o corpo quase inteiro dentro de uma lata de lixo.
Várias garrafas vazias, guimbas de cigarro, lixo plástico e algumas folhas pisoteadas que caíram das árvores pavimentavam o caminho do carro até a entrada lateral do Rocket Riders, uma enorme estrutura em formato de caixa de fósforo, que não tinha a melhor acústica para um karaokê, mas tinha uma estética suja e atraente como os pubs da Europa, o que era interessante pelo simples fato de que ali, o grupo de Jungkook poderiam ser pessoas normais. Quando os clientes tinham mais de 50 anos, era muito fácil.
Os quatro se espremeram na entrada, sendo engolidos pela escuridão arroxeada do lugar, que cheirava a makgeolli e cigarro de palha. A recepção era um cubículo ao lado da porta, onde uma mulher de cabelo vermelho vivo estava lixando as unhas enquanto assistia um drama qualquer pela tela do celular. Ela não esboçou uma única reação aos clientes novos que passaram pela porta.
Mingyu se apressou em direção ao balcão.
— E aí, gracinha! Arruma uma salinha pra gente soltar o gogó — ele apoiou os antebraços para se aproximar, e Jungkook revirou os olhos logo atrás, rindo em seguida. A mulher não respondeu verbalmente; olhou para Mingyu de cima a baixo, em seguida olhou para os outros até pausar a programação e começar a puxar folhas e chaves.
Nessa hora, Mingyu olhou para trás na direção de Eunwoo, e um segundo depois, o garoto passou os braços pelo ombro de Jungkook.
— Me leva até o bar? Preciso tomar uma água com limão agora — ele começou a puxá-lo na direção contrária aos corredores das salas, direto para onde ficava a parte que se pareceria realmente com um pub. Jungkook franziu o cenho.
— Você pode esperar a gente entrar e pedir por lá mesmo. Por que você…
— Por favooor, JK — Eunwoo juntou as duas mãos na frente do peito. — Yugyeom tentou nos matar com aquela mistura de gasolina com chá verde e eu preciso muito, muito mesmo cantar Haru Haru essa noite! Tem ideia de que essa música tá completando 15 anos? Você sabe como ela é importante pra mim, não sabe? Sabe que só estou onde estou porque G-Dragon correu até o hospital por causa da Min Young e chorou naquele corredor quando ela morreu? Dá pra você ter um pouco de solidariedade aqui?
Jungkook pensou em discutir, mas só pensou. Passou rápido. Ele estava mesmo bêbado, era inútil.
Bufando, Jungkook assentiu e o puxou pelo ombro.
— Tá legal, vamos pegar sua água com limão.
Eunwoo sorriu e os dois se afastaram de Yugyeom e Mingyu, que estava se inclinando para ainda mais perto da recepcionista, gesticulando com as mãos enquanto cochichava. Pelo amor de Deus, ele não sabia que aquilo podia ser assédio? Tinha sempre que perder a chance de ficar calado?
Ele pensou em voltar e puxar Mingyu para longe dela, mas Eunwoo agora o estava carregando tão rápido e com tanta determinação que ele quase tropeçou no caminho. Eunwoo parecia bêbado e muito incapaz de se decidir por qual vereda entrar e achar aquele bar, mas logo o espaço se abriu diante dos dois e se viram diante do ambiente um pouco mais iluminado, mas que ainda era muito escuro e muito cotado para ser um dos lugares mais estranhos que Jungkook já esteve. A começar pela cabeça empalhada de um cervo acima de um piano de madeira velho, e a carcaça de um Camaro na outra extremidade, onde um senhor de idade estava jogado em um dos bancos e segurando uma garrafa de soju, com os olhos fechados.
O que é isso? Estavam no leste do Texas? Que absurdo de lugar era aquele? Como seus amigos conheciam aquilo?
— Ei, vem logo! — o rosto de Eunwoo chegou muito perto do seu para gritar e apressá-lo. Jungkook tirou os olhos do lugar e se deixou ser arrastado pelo amigo até o balcão de madeira que rangia toda vez que uma senhora com cabelos negros e encaracolados apoiava um copo ou uma garrafa. Ela parecia séria; séria demais.
— Boa noite, senhorita! Poderia me dar uma água com limão? Sem gelo, por favor — Eunwoo pediu educadamente, e por um momento, não parecia tão bêbado como estava antes. A mulher parou de passar um pano furiosamente no vidro de um copo, e se antes parecia séria, agora tinha o olhar mais duro do que pedra.
— Eu não te dar nada — ela jogou o pano de louça em um espaço abaixo do balcão, e depositou o copo com tanta força que Jungkook e Eunwoo tremeram os ombros de susto. O sotaque dela era arranhado e evidente. — Limão não ter. Só água, nem gás.
Eunwoo olhou para Jungkook por um momento, piscando os olhos enquanto tentava pensar no que dizer que tirasse um pouco daquela carranca da mulher… chinesa? Filipina? A pele era bronzeada demais para ser dali. Que tal vietnamita?
— Eu, hum… Só água, então.
Ela continuou parada, encarando-o, agora cruzando os braços, sem expressão. Eunwoo sabia que ela tinha entendido. Tinha falado devagar.
No próximo segundo, Jungkook estalou a língua e tateou os bolsos atrás da carteira, tirando duas notas de 100.000 wons e colocando na mesa.
— Com isso você consegue o limão? — perguntou ele. A mulher se virou como se estivesse vendo-o pela primeira vez, e olhou para a nota com atenção, olhou para Jungkook com ainda mais atenção e puxou o dinheiro para o bolso da frente da calça, fazendo uma reverência meio torta e não natural.
— Logo, senhor.
E deu as costas para a outra extremidade do bar.
Eunwoo abriu e fechou a boca, levantando o dedo pronto para apontar, mas Jungkook o empurrou com o ombro.
— Você praticamente deu 150 dólares pra ela. Sabe disso, não é? — ele sussurrou. Jungkook apenas deu de ombros e puxou o maço de Dunhill quase no final do bolso de trás, aproveitando a deixa de não ter visto nenhuma placa sobre proibido fumar e de ter visto 3 ou 4 cidadãos fazendo a mesma coisa ali.
Não parecia ser um lugar em que se importavam muito com o cheiro das coisas.
Nenhum deles falou mais enquanto a barista fazia um trabalho rápido em pegar a bebida de Eunwoo, que chegou menos de 3 minutos depois em uma taça alta, com gelo, limão e uma folha de hortelã. Ela até tinha colocado um pequeno guarda chuva na beira do copo.
— Alguma coisa mais? — perguntou ela diretamente para Jungkook. Ele balançou a cabeça em negação e a mulher se retirou para o outro lado, voltando a secar copos e a ranger a madeira. Eunwoo ainda estava encarando o copo com incredulidade.
— Bebe logo isso e reflete sobre a sua vida depois — murmurou o maknae, tragando o cigarro despojadamente. Eunwoo torceu a boca e bebeu um gole.
— Esse mundo tá perdido, tudo é sobre dinheiro. Ela feriu os meus sentimentos, sabia? A carga do karma na próxima vida vai ser insana.
— Aham, claro — a possibilidade daquela mulher lembrar do rosto de Eunwoo no dia seguinte era igual a zero, mas ele o deixaria acreditar. — É melhor a gente voltar, acho que os outros…
— Não, calma — Eunwoo agarrou o pulso de Jungkook antes que ele se mexesse. Os olhos saltados ficaram ainda mais pronunciados, mas ele logo disfarçou com uma risada engasgada. — Eles vão vir até a gente, tenha paciência. Quer que eu saia daqui segurando esse copo? Aquela mulher vai me comer vivo.
— Ela não vai te comer vivo se andarmos até a recepção.
— Acho que ela me odeia só por respirar, JK — ele fez um bico de frustração, daquele tipo ridículo que quase adiantava que ele choraria. Pelo amor de Deus, Eunwoo tinha como estar mais instável naquele dia? O que tinha naquela porcaria de bebida?
Pensando pelo lado racional, era melhor mesmo que ele bebesse toda aquela água e ficasse 1% melhor para que, como disse mais cedo, não aparecesse em um estabelecimento qualquer perturbando a ordem pública. Ele era o que mais se lembrava de que era a porra de uma celebridade e evitava esse tipo de coisa, mas também era um cara que colecionava alguns poucos momentos vergonhosos.
Sendo assim, Jungkook apenas respirou fundo e assentiu, gesticulando com as mãos a aceitação de ficar, recostando-se no balcão e tragando mais uma vez.
Não demorou cinco minutos para Mingyu e Yugyeom surgirem do caminho para o bar, lado a lado, entrando em meio às mesas e desviando de um ou dois clientes que quisessem repetir a dose da bebida forte.
— O seu cartão deu problema de novo? — Jungkook apontou para Mingyu, que franziu o cenho. — Demorou muito pra reservar uma sala. Por acaso eles não aceitam pagamento pelo celular?
Mingyu desviou os olhos para Eunwoo em um milésimo de segundo, e depois olhou para Yugyeom, e em um piscar e outro, riu fraco, balançando a cabeça.
— É, exatamente isso — ele deu um tapa no ombro de Yug, forte demais para ser considerado normal — Eles são ultrapassados, cara, não tá olhando ao redor? Queriam me cobrar taxas a mais pra usar o cartão.
— E você sabe como é o Mingyu com as taxas — Yugyeom balançou uma mão e riu, mas não parecia estar realmente rindo.
— É, ele é um idiota sobre as taxas também — Eunwoo participou, agora sugando a água pelo canudinho, seja lá como tinha conseguido aquilo.
Por um momento, brevíssimo momento, Jungkook olhou para os três amigos e franziu a testa, enxergando o mesmo sorriso hesitante em todos eles, e notando que nenhum o estava olhando nos olhos. Pelo menos por um instante. Mas antes que tivesse tempo de destrinchar essa ideia, Mingyu deu um pulo e estendeu uma chave para o meio deles:
— Mas o que importa é que a gente conseguiu e vamos poder até mesmo desfrutar de uns petiscos de frios. Ela não disse a validade deles, mas quem se importa? O importante é cantar!
— E eles tem um aparelho AMD de depois dos anos 90, ou seja, tem alguns grupos da 2º geração misturados na playlist da Celine Dion!
— Celine Dion — Eunwoo bateu palminhas animadas e se colocou de pé num pulo, agarrando a chave de Mingyu. — A Celine é demais! Você gosta dela também, não é, JK? Aposto que não, mas você tem uma voz foda e vai cantar qualquer coisa que aparecer! Se quiser, podemos até colocar Arctic Monkeys pra você, mas acho que só vão ter os álbuns de 2006 e 2007…
— Espera — Jungkook parou quando notou que já estava sendo arrastado de novo por Eunwoo, e se virou para trás. — O que estão fazendo aí?
Mingyu e Yugyeom tinham se recostado no balcão do bar, e olharam um para o outro novamente, daquele mesmo jeito.
— Hum… Nós… — Mingyu começou, mas Yugyeom completou:
— Vamos comprar umas bebidas. Vocês podem ir na frente, o lugar não é tão grande pra se perder.
— Fala sério. A gente espera — Jungkook disse em tom óbvio, porque não fazia sentido. Já estava pronto para voltar ao balcão, mas sentiu Eunwoo puxando-o de novo.
— Deixa eles aí, JK. Não vão demorar tanto assim. A Celine, lembra da Celine!
— Cara, qual é o seu…
— Vai lá antes que ele encha o nosso saco também. A gente não quer ouvir ele cantando Titanic — Mingyu fez uma careta. Yugyeom assentiu rápido.
— E você prometeu fazer a introdução de Haru Haru comigo.
Jungkook olhou para Eunwoo com uma grande expressão de “hein?”
— É, você faz o T.O.P e eu sou o G-Dragon porque fico lindo chorando — ele deu de ombros, como se o fato fosse óbvio. Eunwoo adorava relembrar os amigos de que era um ótimo ator.
— Sou o lado do triângulo amoroso que se ferra? — Jungkook arqueou uma sobrancelha. Eunwoo revirou os olhos e começou a puxá-lo de novo.
— Vamos logo, seu idiota. Estamos perdendo tempo.
Ele abriu a boca para protestar de novo, mas Eunwoo tinha ganhado mais força e o resto dos amigos não pareciam se importar com isso. Olhando de seu lugar para a parede atrás do balcão, lotada dos mais variados tipos de bebidas, Jungkook não viu nenhuma que chamaria a atenção de Yugyeom e Mingyu, mesmo que eles não fossem muito exigentes com álcool no geral. E por que não podiam pedir direto da sala? Todas elas eram equipadas para isso, até a mais simples e decadente daquele lugar simples e decadente.
Mas Jungkook relevou. Não adiantava discutir, de qualquer forma. Se deixou ser levado por Eunwoo e sua animação, curvando em um corredor do outro lado do bar, bem longe da recepção, onde se viram cercados por uma luz sonhadora e quase vespertina, totalmente diferente dos outros cômodos anteriores. Ele tateou o telefone no bolso da frente, pensando em pegá-lo e avisar a que estava bem, ou que achava que iria demorar um pouco porque tinha ido parar em um fim de mundo na saída da cidade e agora estava se preparando para a magia de um karaokê bêbado, e que muito provavelmente ela teria, sim, provas em vídeos de uma vergonha daquelas, como pedia. Era um tipo de vingança por ele ainda ter a fita de sua dancinha na Panasonic.
Mas ele não chegou a pegar o aparelho, porque Eunwoo agarrou a curva de seu cotovelo, enredando seus braços nele, como duas garotas andando pelos corredores da escola.
— Ei, JK — disse ele, e sua voz abaixou bruscamente à medida que seus passos também iam diminuindo o ritmo. — Você sabe que amo você, não sabe?
Jungkook tirou o cigarro pela metade da boca, virando o rosto para ele.
— Ah, sei muito bem disso — ele riu pelo nariz. Eunwoo não parecia estar rindo, mas estava bêbado. Com certeza estava. — Onde é essa sala? Deixa eu ver o número…
— Você sabe que te amo — Eunwoo puxou a mão que segurava a chave para trás das costas, um pouco atônito. — Amo todos vocês e amo a nossa amizade. Vocês são as pessoas mais importantes pra mim desde que me mudei pra essa cidade.
Jungkook quis rir de novo, mas pareceria um pouco estranho, já que Eunwoo estava tão… sério? O que era isso?
— Você tá bem? — Jungkook perguntou, agora um pouco preocupado. O que estava se passando pela cabeça do amigo? Era uma nova skin bêbada desbloqueada pela bebida de Yugyeom?
Eunwoo notou seu olhar intrigado e conseguiu abrir um sorriso, um que parecia muito verdadeiro e, finalmente, parou na frente de uma porta pintada em tinta spray lascada com o número 18.
— Tô ótimo. Só queria que você soubesse disso — ele estalou a língua e murmurou um baixíssimo “você tem que lembrar disso” e enfiou a chave na fechadura devagar, girando-a no trinco e pousando a mão na maçaneta. — Então, pronto pra fazer o rap do T.O.P.? Espero que tenha melhorado suas habilidades.
Eunwoo girou a maçaneta devagar e fez um gesto com o braço para que Jungkook passasse. O maknae não pescou nada em particular e revirou os olhos.
— Você esquece que vai ter que segurar um rojão bem maior sendo o G-Dragon e eu não–
Jungkook parou de falar quando viu as luzes da sala já acesas, a mesa já cheia de comida e bebida e o aparelho em data show já aceso e ligado, assim como o sofá no canto da sala já ocupado por uma pessoa. Uma pessoa que também paralisou onde estava, sem esboçar nenhuma expressão.
— Desculpa, gente. Prometo que é pro bem de vocês — Eunwoo murmurou. E então, em um piscar de olhos, já estava puxando a porta para fechá-la e girando a chave com força no trinco mais uma vez.
Jungkook não soube o que pensar. O som do trinco reverberou em sua mente dez mil vezes até ele voltar à realidade e ver o outro sujeito da sala se levantando, tão chocado quanto ele, e logo mais, tão puto quanto ele.
Estava trancado. Estavam trancados.
Jeon Jungkook estava trancado com Jeong Jaehyun.


“Eu só queria ser um daqueles fantasmas que
Você achou que
Poderia esquecer
E então eu
Te assombraria pelo espelho retrovisor em uma longa viagem
Do banco de trás.”

🖤🎤 Star Treatment


— Tá brincando… — Jaehyun trincou os dentes com força, agarrando uma porção gorda de cabelo da nuca, sentindo a raiva tomá-lo por completo assim que seus olhos trombaram com a silhueta de Jeon Jungkook, uma que agora o irritava mil vezes mais: aquelas mesmas botas, aquela mesma jaqueta e aquele mesmo cigarro.
Jungkook não parou para avaliar a ira de Jaehyun. Virou automaticamente para a porta e tentou, inutilmente, girar a maçaneta, se frustrando com a tranca idiota que não saiu do lugar.
— Filhos da puta… — ele trincou os dentes e bufou. Não sabia o que seria capaz de fazer caso estivesse na frente de Eunwoo agora. Como ele pode brincar com isso? — Eunwoo!
— Eu sei, eu sei! Mas vocês pediram por isso! — A voz do amigo veio do outro lado da porta, e incrivelmente, o desgraçado parecia mais sóbrio do que nunca. Como se o efeito daquela bebida nunca tivesse existido, nem dela e nem das outras. — Vocês precisam conversar e eu digo conversar, e não trocarem socos como dois animais. Uma conversa civilizada, ci-vi-li-za-da!
— Eu vou matar você — do nada, Jaehyun também já estava na porta, provavelmente sendo guiado pelo mesmo ímpeto de fúria, dando um tapa forte na madeira tão velha quanto a do balcão. — Abre essa porta agora, Eunwoo!
— Você sabe que eu não posso fazer isso, Jae. Você me obrigou a fazer isso também. Você tem ideia de como eu– de como todos nós ficamos? — e ele parou, suspirando, perdendo o interesse de responder a própria pergunta. — Olha só, sinto muito por ter te enganado e ter feito você dirigir até aqui depois que eu prometi uma noitada de amigos, mas eu queria todos os amigos juntos. Todos nós. E vocês vão acabar com isso hoje! — Jungkook abriu a boca para rosnar um palavrão, mas Eunwoo falou na frente. — Eu vou voltar em 1 hora, e se vocês não tiverem se resolvido ainda, vão ficar aí por mais 1. E eu tô cagando pra suas aulas de boxe, JK, você não é páreo pra mais 3. Fui.
Jungkook abriu e fechou a boca, tentando a maçaneta de novo em um gesto automático, mas conseguiu ouvir os tênis de Eunwoo voltando pelo corredor, desaparecendo, largando-o ali de vez.
Ainda chocado, puto, completamente desorientado, ele olhou para o lado. Jaehyun virou a cabeça ao mesmo tempo e o oxigênio pareceu ter virado vidro. Jungkook sentiu novamente aquele peso duro do olhar dele, enquanto Jaehyun era atingido por um milhão de farpas apenas com a imagem do maknae. Era doloroso, sufocante. Jaehyun imediatamente não aguentou e se afastou para a outra parte.
— Ótimo. Perfeito — resmungou ele, sentindo tanta raiva que era difícil comportar. Aquela mesma raiva que sentiu na sala de Mingyu, até um pouco mais ardente. — Era tudo que eu precisava. Cair nessa armadilha idiota com você…
Ele nem escondeu o tom de desprezo. Jungkook franziu o cenho e se virou pra ele, que andava de um lado para o outro com o celular na mão, prestes a tentar ligar para os outros babacas, mesmo que eles não fossem atendê-lo.
— É, você tá certo, mais idiota que isso só alguém que aceita vir num lugar desses a essa hora a pedido do Eunwoo sem desconfiar de nada.
Jaehyun se virou para ele imediatamente, com um olhar de incredulidade.
— Você vai ter coragem de dizer que a culpa é minha?
— Ninguém falou em culpa, mas fala sério, você sabia da festa, como não…
— Que porra de festa você tá falando?
— Minha festa de aniversário. A gente falou no grupo, eles estavam–
— Não sei que merda de festa e nem que merda de grupo você tá falando. Ninguém falou nada no nosso grupo, caso você não presta atenção.
Foi um pouco perturbador ouvir isso. Jungkook puxou o celular com pressa, abriu o aplicativo de mensagens e, depois de rolar e rolar a tela, notou que estava mesmo em um outro grupo, o 9.7 Centímetros, que tinha a foto idêntica ao Estação 97 que foi criado há quase uma década atrás, que sempre se misturava a tantas outras conversas e tantos outros grupos no seu telefone que era muito fácil que ele perdesse umas atualizações por lá, tipo mudança de foto e mudança de membros.
Sentindo-se meio idiota, Jungkook guardou o celular de novo.
— Tá bom, eles foram mesmo umas ratazanas. Eu não queria estar aqui tanto quanto você.
— Ah, ótimo. Um ponto pra sua sensatez. O que me garante que você não tem nada a ver com isso?
— Quê? — Jungkook torceu a testa.
— Se eles acharam que existia uma mínima possibilidade de eu querer conversar com você ou te ouvir mesmo estando no mesmo ambiente, eles estão viajando. Eu não dei indícios de que queria isso, então como tiveram uma ideia dessa?
— Eu sei lá, cara. Eu não disse nada…
— Aham, claro. Você nunca diz nada, nunca faz nada. Nada nunca é culpa sua.
Jaehyun apertou algumas teclas com mais força no celular. Mas que porra? Jungkook segurou a língua dentro da boca e precisou estabelecer todo um espírito de Monja Coen pra não se igualar à mesma raiva de Jaehyun, apesar de que, em tempos passados, já teria no mínimo dado um empurrão nele. Mas não, ele não faria uma cena dessas de novo, não estava mais afim de se sentir um lixo depois. Mesmo que fosse difícil canalizar essa luz dourada de sensatez de outro mundo quando Jaehyun estava mais do que disposto a cutucar feridas.
Bufando forte, Jungkook respondeu:
— Olha só, presos ou não, não tô afim de brigar com você. É sério. Temos que dar um jeito de sair daqui — ele imediatamente olhou para as paredes, procurando uma janela, uma báscula ou simplesmente o telefone que usariam pra pedir bebidas na recepção, mas, como esperado, essa linha de comunicação já tinha sido vedada por Mingyu há muito tempo. Toda aquela demora no balcão, que piada. Estava tudo esquematizado, e Jungkook ficou ainda mais aborrecido por não ter percebido nada.
— Os filhos da mãe não estão me atendendo. Aposto que desligaram o celular — Jaehyun resmungou, e dava pra ver a pontinha da orelha ficando vermelha de desgosto. Jungkook estalou a língua e balançou a cabeça.
— E agora devem estar se aproveitando dos meus dólares pra vietnamita — disse ele. Jaehyun o olhou confuso. — Nada. Talvez eu possa ligar pro Jimin. Ou pro Yoongi, ou Tae, ou pra–
Ele parou imediatamente quando achou o nome de no celular, e Jaehyun percebeu. Ah, como percebeu. Jungkook estava cansado de saber como seu tom de voz mudava quando o assunto estava prestes a ser materializado, até mesmo antes, quando a odiava daquele jeito escroto. sempre teve um espaço particular nas suas emoções – sempre dava pra saber que ele iria falar dela.
— Pra alguém — mesmo assim, ele preferiu desconversar e voltou pro telefone. Jaehyun soltou uma risada incrédula.
— Não, vai lá, chama ela. Vai ser super divertido ela estar aqui com toda essa situação. Bem a sua cara fazer isso.
Jungkook parou de mexer no celular.
— Bem a minha cara o quê?
— Esfregar na cara dos outros as suas vitórias. Como você se veste de modéstia na frente das câmeras, mas na vida real fica louco pra encher a boca para cuspir tudo que consegue, seja uma garota, seja um prêmio, um carro, um contrato, qualquer merda dessas.
— Eu não–
— Não, valeu. Não quero te ouvir.
Mas que porra de novo? Jaehyun já estava atravessando a sala mais uma vez, segurando o celular com ansiedade e prendendo a respiração para não falar mais do que já estava falando. Devia ter mais coisa guardada, muito mais, coisas que ele não deve ter descarregado nem pro próprio espelho, e estar sob o mesmo teto que Jungkook era um teste cósmico pra verem se o nível de sua paciência continuava intacta, mas a resposta pra isso estava clara. Ele não estava se aguentando no lugar e mexer com ele agora seria a maior merda que Jungkook poderia fazer, mas ele não era de ferro e não estava afim de ficar calado enquanto Jaehyun passava em cima dele com um trator de ofensas.
— Beleza, não quer ouvir, mas quer falar o que quiser? Quando você ficou assim, tão estúpido pra ter uma conversa?
— Olha quem tá falando, até parece que você é um diplomata.
— Exatamente, seu babaca! E sei que isso foi errado, ser desse jeito não ajudava nada e nem ninguém, mas você costumava dar o exemplo. Deu pra retroceder agora?
— Eu retroceder? Eu? Achei que mentir e enganar os próprios amigos já fosse um retrocesso o suficiente, quer me dar uma lição de moral sobre isso? — Jaehyun se aproximou a passos perigosos de Jungkook. O maknae rangeu os dentes.
— Não vou dar lição de moral em ninguém, e você deveria fazer o mesmo, porque se vamos falar de mentir e enganar, você foi tão podre quanto eu, imbecil — e esbarrou no ombro de Jaehyun quando passou por ele para o outro lado da sala, bem em frente à mesa de centro. Jaehyun, com a atenção recobrada, ficou parado por um momento até se virar.
— De que merda você tá falando?
Jungkook não queria fazer isso. Não pretendia abrir a boca tão cedo, mas se Jaehyun fosse se juntar à banda Inimigos de Jungkook, ele se juntaria sabendo de tudo.
— Acha que eu não sei de você e da Ali? — Acusou, olhando fixamente para o amigo. — Acha que eu não sei que estava com ela nos Estados Unidos, que foram juntos pra Los Angeles, que foi pra revista e esteve ao lado dela o tempo todo enquanto ela procurava por ? — Jaehyun ficou calado, amortecido, vazio de palavras e respostas. Um silêncio pior do que o do início se instalou, cercando ele e Jungkook em um ambiente fechado e claustrofóbico, igual daquela última vez que se viram, na arena da sala de Mingyu. — Pois é, seu cuzão. Eu sei de tudo. Então, se quer falar de enganar, você é só o sujo falando do mal lavado.
Jaehyun continuou imóvel, catatônico, como se tivesse caído de joelhos em um balde de cimento líquido. Até a raiva que estufava o seu peito tinha se extinguido mais da metade; só restava o choque e o rosto tenso de Jungkook na sua frente.
— Como– como você sabe disso? — Ele conseguiu perguntar, com urgência estarrecida. — Ali te procurou? Não me diga que ela procurou você.
Podia ter feito isso sem citar o meu nome, ele pensou imediatamente. Não era bom ter moral de mentiroso. Não era legal decair no mesmo nível de Jungkook.
Ele, por outro lado, deu aquela risada sarcástica, se deliciando pela saia justa em que tinha colocado Jaehyun.
— Ela não tem essa coragem ainda — respondeu ele. — E se quer saber, prefiro assim. que me contou. E fiquei me perguntando porquê você não fez isso naquele dia.
Jaehyun desviou os olhos e escondeu as mãos nos bolsos da frente da calça cargo.
— Também não sei. Acho que fiquei com muita raiva, e tudo que aconteceu depois… não cabia mais falar disso. Mas eu devia mesmo ter contado — ele voltou a encará-lo com fogo nos olhos, recuperando toda a ira de antes. — Devia ter dito tudo que eu fiz para quem sabe assim, você visse a situação como eu vejo, como qualquer um veria.
— Que situação?
— Você não merece a . Nunca mereceu. Tudo em você deixa ela mal, desequilibrada, estranha. Ela só se envolveu com você por minha causa e não tenho a menor vergonha ou culpa de admitir que tudo que fiz com Ali, todos os lugares que fui com ela, foi pensando em , foi pra manter a história dela segura, foi para que Ali não soubesse de nada, diferente de você que–
— Isso não resolveu nada, seu babaca — Jungkook interrompeu, já cansado daquele tom de voz superior que achava o mínimo ter um pedido de desculpas de Jungkook redigido em letras arredondadas e escrita a mão gravadas em um outdoor. — Não do jeito que você pensa. Ali já sabe de tudo.
Jaehyun teve a segunda onda de choque da noite, piscando os olhos freneticamente até falar:
— Quê?
Outra coisa que Jungkook não pretendia dizer, mas agora já era. Novamente: se ele quisesse continuar odiando-o pelo resto da vida, que continuasse, mas tinha que odiar baseado na verdade, e não em sua interpretação isolada das coisas.
Puxando bastante ar para os pulmões, Jungkook prosseguiu:
— A Ali sabe da . Sabe das fotos, da revista, que era ela no camarim, sabe de tudo. E tá observando de longe.
Não.
Qual é.
Não!
Jaehyun foi arregalando os olhos aos poucos. A informação pareceu muito irreal a princípio, como dizer de repente que o presidente da República tinha sido assassinado, mas a seriedade no rosto de Jungkook não deixava dúvida porque ele quase nunca ficava sério. E assim, a bomba no cérebro de Jaehyun explodiu. Foi tão forte que ele largou o corpo no sofá poeirento de 6 lugares, o semblante ainda mais atônito que antes.
— Que droga você tá dizendo, Jungkook? — ele perguntou mais devagar, e agora a raiva tinha ido embora de vez.
— Tem um cara. Ji Changmin. Ele é–
— O fotógrafo — Jaehyun respondeu na mesma hora. Se lembrava perfeitamente do sujeito. Daquele sorriso, da voz melodiosa, da presença forte e marcante. — Ele participou da minha sessão na Esquire.
Jungkook confirmou, e não se impediu de soltar uma risada amarga, aquele tipo de coisa que se parecia com tudo, menos com uma risada.
— É, ele andou se embrenhando em tudo que pode — resmungou ele, andando a poucos passos para a frente até se sentar em cima da mesinha com as comidas intocadas. — Ele admitiu pra mim que conhece a Ali, que tá de olho na , que sabe da gente. Disse isso na minha cara, e ainda ameaçou contar tudo sobre as fotos, sobre o nosso envolvimento, sobre o envolvimento de todos do grupo. Quer armar um pandemônio.
Jungkook não queria contar a história toda, porque se não, seria obrigado a contar porquê encontrou com Changmin, como o encontrou depois de novo naquela cafeteria-barra-restaurante, e que tudo isso foi motivado única e exclusivamente por , e que acabaram ficando juntos pra valer naquela última tempestade bizarra. Pra valer.
Podia poupar Jaehyun dessa parte, mesmo que ficasse um vazio na conversa. Querendo ou não, ele era o único cara que conhecia tanto quanto Jungkook dentro de seu círculo de amigos. Era o único cara que estava lá, em New York, que conheceu a garota, que se apaixonou por ela e que sabia das dificuldades e o geral de . Desde o início, era o único que merecia saber de Changmin e Ali e que seria capaz de entender a situação.
E a face estampada de puro abalo, como se Jungkook tivesse virado aquela mesa em cima dele, revelavam que ele estava, sim, entendendo tudo perfeitamente bem.
— Não pode ser — a voz saiu em um silvo.
— Infelizmente pode — Jungkook bagunçou grande parte do cabelo, embora ele já não estivesse tão arrumado assim. — Agora me fala, você não sabia mesmo disso?
— Do quê?
— Que Ali sabia. Você estava com ela, como não viu que ela tinha descoberto alguma coisa?
Jaehyun negou forte com a cabeça, parecendo um pouco irritado – consigo mesmo ou com Jungkook, por ter considerado a possibilidade de que ele saberia de algo assim e ficado quieto.
— É claro que não. Ela me disse que não tinha conseguido nada, por que mentiria sobre isso? Vi com meus próprios olhos ela subir no prédio da revista, ficar lá por mais de 30 minutos e descer chorando depois porque conheceu a garota e não teve coragem de fazer nada. Absolutamente nada. Disse que o nome dela era Hilary, e ponto final — as imagens em sua mente eram claras, límpidas e inquestionáveis, mas mesmo assim, Jaehyun se sentiu desesperado com a ideia de ter perdido alguma coisa, de ter ignorado alguma pontinha da cena, mesmo que estivesse tão atento a tudo, esperando uma mísera menção do nome de . Ele parou e pensou, forçou tanto o cérebro a voltar naquela lembrança que nem parecia estar mais ali. — Depois disso, deixei ela no hotel e voltei pro aeroporto. Não a vi mais, nem tentei nenhum contato, principalmente por causa daquela foto nossa. Eu não fazia ideia de que ela sabia.
Jungkook refletiu por um momento, torcendo os dedos das mãos enquanto apoiava os antebraços nas coxas. Jaehyun pareceu sincero, e ele não conseguia, de forma alguma, desconfiar disso ou questionar sua história. Até porque aquela cara transparecendo choque e desespero falava mais por ele do que todo o resto.
Infelizmente, nada disso apagava a esquisitice da coisa toda.
— Talvez ela tenha descoberto antes. Ou talvez depois. Não faço ideia, mas é lógico que ela não falaria mais com você depois que se separaram, ainda mais porque agora sabe que você mentiu pra ela sobre .
— Como ela chegou nisso? — Jaehyun se exasperou ainda mais. Em um segundo, já estava de pé de novo. — Não faz o menor sentido. James não falou nada da verdade, só expôs a Hilary e Ali foi embora, fim de papo. Não tem como o nome da ter rolado naquela sala, caso contrário, sua ex-namorada nem teria entrado em um carro comigo depois disso.
— Eu sei, Jaehyun. É mais provável que Ali tenha descoberto isso depois que você se mandou, e já pensei sobre essa merda umas mil vezes, mas quando foi e quem foi a corujinha fofoqueira não é o que interessa. O negócio é que ela sabe e já tá mexendo os pauzinhos — Jungkook ficou sério demais quando o encarou fixamente, muito sério. — Não tenho medo de Ali, mas não sei o que esperar dela. Esse é o problema. Mesmo que eu tenha visto todos os seus lados nesses últimos 3 anos, o jeito como ela ficou no escândalo foi diferente de tudo. Tava obcecada por um nome, um culpado, e seria capaz de qualquer coisa pra se sentir melhor.
— E o que seria se sentir melhor pra ela, nesse caso?
— Alguma coisa pesada que pode destruir a , com certeza.
Isso é mais apavorante do que você imagina, ele quis quis completar, mas naquele quesito, Jaehyun não entenderia. Para o bem ou para mal, Jungkook era a única pessoa que sabia como Ali Dalphin escrevia as próprias regras.
— Mas… e esse cara? Onde ele está? O que você fez? já sabe de tudo isso?
— Não, ela não sabe — Jungkook negou com a cabeça, sentindo aquele peso característico de novo. — Eu pensei em contar, mas– eu ainda tô tentando entender.
— Como assim? Entender o quê?
— Entender a estranheza disso tudo. Tem muita coisa que não bate, que não faz sentido. Se Changmin estivesse realmente contando tudo pra Ali, ela já estaria aqui, com plano ou sem plano, ainda mais se soubesse que eu e estamos… — ele travou. Por mais que fosse auto explicativo o status dele com , não parecia a hora certa de “esfregar na cara de Jaehyun”, como ele havia dito antes com tanto amor. — Enfim, eu já estaria recebendo uma visita dela agora. Isso mexeria com ela, por uma questão de orgulho, e se o que aquele escroto me disse daquela vez é verdade…
— O que ele te disse?
Jungkook hesitou por um momento, olhando para os próprios pés.
— Que Ali me quer de volta.
Falar aquilo em voz alta causou um furacão de sensações, uma mais estranha que a outra.
— Isso é verdade — Jaehyun confirmou. — Foi no que ela estava se agarrando na Califórnia. Conseguir algo pra ter o que te oferecer, pra você perdoá-la.
A risada que saiu de Jungkook foi automática e amarga. Seus lábios se contorceram em uma expressão de… raiva? Ah, aquilo era mesmo raiva. Uma emoção forte e esmagadora, a única que ele estava sendo capaz de sentir diante daquela piada.
Como ela tinha a audácia de querê-lo de volta?
— Honestamente, não dou a mínima para o que ela quer ou pensa. Minha única preocupação é com o quanto ela sabe. E o que ela deve estar esperando.
Jaehyun coçou a testa, ainda em busca de esclarecimento.
— Ainda não entendo como ela não saberia de vocês dois. Se o Changmin sabe.
— Eu também não sei, cara. Essa é a merda: eu não sei! — As botas fizeram barulho quando Jungkook decidiu por ficar de pé, sendo engolido de novo por aquela sensação de impotência. Quer dizer, ele ainda não se sentia impotente porque ainda não sabia com o que estava lidando, mas era questão de tempo. Falar com Jaehyun estava sendo como colocar os pratos na mesa, e colocar os pratos na mesa te dava uma sensação do problema ser físico, tangível, real, podia ser tocado. E se pudesse ser socado, Jungkook também faria o serviço, porque era exatamente o que queria fazer naquele momento: socar alguém. Socar Changmin. Gritar. — Não sei qual é a desse cara, não sei se quero saber, gostaria de ter mais tempo pra pensar nisso, mas tenho que me apressar, porque além de tudo, tá trabalhando com ele.
— Ela o quê?!
— Ele arrumou um trabalho pra ela. Um negócio super importante na Nikon, parece que estão desenvolvendo uma nova câmera ou coisa assim e anda fazendo uns testes. É uma oportunidade gigantesca pra ela, eu só–
Ele fechou os olhos por um segundo e bufou.
— Eu não consegui contar. Não consegui tirar isso dela.
Jaehyun levantou na mesma hora.
— Tá maluco?! Que se dane esse trabalho, precisa saber, Jungkook. Mesmo que seja o sonho dela, não interessa, esse sonho pode virar um pesadelo na mão desse cara, e se Ali estiver envolvida nisso também? Você não pensou nisso?
Jungkook prensou os lábios, arregalando os olhos aos poucos. Não, ele não tinha pensado nisso! Jesus Cristo, que idiota!
Os olhos de Jaehyun reviraram tanto que quase sumiram pra dentro do cérebro.
— A gente precisa contar pra ela.
A gente.
Jungkook não notou de imediato o uso do plural na frase dele, não notou uma certa união na coisa, porque estava ocupado demais com a cabeça explodindo.
— Você não entende.
— Como que eu não entendo? É você que tá escondendo coisas dela, que tá–
— Ela é minha namorada, Jaehyun — Jungkook soltou os braços. — Tem pouco tempo, mas já conheço o bastante pra saber que, por mais que ela seja maravilhosa, o seu histórico de pessoas é uma merda. Ela passou a vida confiando nos outros e sendo enganada, eu só não quero que ela se sinta assim de novo. Não até eu saber se esse cara é realmente nosso maior problema, ou se ele é só uma pedra no sapato.
Jungkook esperou que ele gritasse. Do jeito como a expressão de Jaehyun ficou, como se o maknae tivesse esbarrado na sua costela com uma faca, ele com certeza gritaria. Parecia um pouco com a expressão daquele dia, na casa de Mingyu. Ele gritaria, espernearia, desenharia no vidro das janelas com o sangue de Jungkook. Ouviu tudo que menos queria ouvir, que nunca quis, em todo aquele tempo:
é minha namorada.
E essa frase nem tinha saído dele. Tinha saído da mesma boca que ele tinha socado há dias atrás.
Mas ele também estava vendo aquela mesma coisa que viu na casa de Mingyu, o que terminou de acender a fogueira de sua raiva: Jungkook não correu. Não fugiu das próprias palavras, das próprias alegações, não tentou atirar seus sentimentos pra bem longe da janela. Isso era bem novo pra ele.
Pelo visto, não ter nada a esconder deixava as pessoas mais corajosas.
Embora achasse seu amigo um tremendo filho da puta, Jaehyun assentiu e focou no real problema no centro da sala.
— E o que a gente faz? — perguntou ele, voltando ao plural, ainda mais firme do que antes porque via a mesma coisa que Jungkook: só eles poderiam resolver aquilo. — Sobre a Ali.
Jungkook prensou os lábios, pensativo.
— Temos que falar com ela. Aliás, você tem que falar com ela — disse ele, por fim. Jaehyun arqueou a sobrancelha. — Sei que não se falam desde Los Angeles e ela vai dar desculpas pra te ignorar porque te acha um otário, mas precisamos tentar. Nem que seja pra ela admitir tudo e dizer que chegamos tarde demais.
Jaehyun piscou os olhos.
— Ok, foi mal, você pode repetir? Acho que ouvi você dizendo pra eu falar com ela.
— Eu tô falando sério.
— Jura? E em que cenário isso funciona exatamente? Porque você tá certo, Ali deve estar brincando de tiro ao alvo com a minha foto nesse exato instante, cara, então–
— Jaehyun, se liga. Em que época estamos?
— Outubro? Halloween?
— A Semana de Moda — Jungkook respondeu. Jaehyun franziu a testa, sem entender. — Recebi uns presentes da Calvin Klein, e alguns da Louis Vitton e mais um monte de marcas que falaram da mesma coisa: a Fashion Week de Tóquio. Tenho certeza que a Prada deu um jeitinho de te avisar também.
Jaehyun piscou de novo. Ele com certeza deve ter tropeçado em alguns pacotes novos da Prada que precisaria abrir e fazer postagens no Instagram até o próximo fim de semana antes que Gregory o enchesse de ligações, mas até aquele momento, tinha esquecido o assunto completamente.
Prada. Jaquetas de nylon. Broches transversais. Regatas, peças transparentes, botas de inverno e… um convite. Um comunicado de um grande evento.
— Tá bom. E…? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Você acha que ela vai estar lá?
— Acho. Tenho quase certeza.
— E no que você se baseia nisso?
— Porque já passou da hora, Jaehyun. Ali tem que voltar aos holofotes em algum momento. Não é como se ela se interessasse por outra coisa pra ganhar a vida a ponto de ter um plano B.
Jaehyun semicerrou os olhos na direção de Jungkook, querendo soltar uma risada irônica e dizer que ele só podia estar brincando, mas decidiu por falar:
— É um palpite arriscado.
— Mas acredito muito nele.
Essa confiança exalando dele deixou Jaehyun sem outra opção a não ser concordar, mesmo que fizesse isso com o rosto contorcido.
— Beleza, e como você acha que isso vai dar certo? Qualquer coisa que eu falar pra Ali vai ser como uma arma contra mim mesmo, ela não vai cair em papo furado.
— Claro que não vai cair. Mas você vai usar um trunfo — ele apontou para si mesmo. — Eu. Você vai falar de mim.
— O que vou falar de você?
— Qualquer coisa. Fala que sinto falta dela, que não a esqueci ou qualquer baboseira que você já tenha me ouvido repetir há meses atrás. Pode aumentar minhas reações, dizer que eu choro e tô na bad até hoje, não ligo. Se ela achar que estou esperando, talvez pense que não precisa armar um circo pra me conseguir de volta. Ou talvez faça o que sempre fez: fugir — ele deu de ombros, aceitando aquele fato como nunca antes. — Vai tratar meu excesso de disponibilidade com indiferença, me colocar de molho porque tem certeza que pode me ter a hora que quiser. Parece complexo, mas percebi que é assim que ela age.
Jungkook achou que, se algum dia chegasse ao ponto de admitir aquela verdade em voz alta, sentiria um pico de tristeza enorme, ou frustração, ou lacrimejar e ficar dizendo “por que? Por que?”, mas foi o contrário. Novamente: ele estava tirando os sentimentos para fora e tornando-os palpáveis, mais reais e bem menos monstruosos do que quando os estava sentindo. As verdades sobre Ali se pareciam cada vez mais um problema dela e não dele. Na sua cabeça, ele ainda a imaginava usando o corpo quente para fazê-lo se esquecer dos problemas, e que essa tática costumava ser infalível, mas depois tudo ficava mais escuro e feio do que estava antes, os problemas apenas adiados e não resolvidos. O fato de ela ter esperanças em pegá-lo desse jeito outra vez, mesmo depois de meses separados e nenhuma atitude da parte dela de explicar alguma coisa, só deixava tudo mais injusto. Era injusto que ela pensasse que as coisas com ele seriam tão instantâneas assim, mesmo se ele nunca tivesse dormido com .
Mas com Ali não existia o equilíbrio. Negar alguma coisa espontaneamente para aquela mulher parecia impossível. No entanto, hoje, Jungkook tinha certeza que não era. E pretendia dizer isso na primeira oportunidade.
Mesmo Jaehyun sabendo de tudo isso apenas olhando para o maknae, ele ainda balançou a cabeça em dúvida.
— Não sei, não. Ela parecia muito decidida a te conseguir de volta. Muito mesmo — ele suspirou, e olhou para as cervejas depositadas no tampo da mesa, tendo o ímpeto de coragem de perguntar algo que precisava ser perguntado. — Já pensou no que faria se ela voltasse?
— Não — Jungkook respondeu imediatamente, porque era a mais pura verdade. — Mas não ligo pra isso, cara. Antes esse tipo de coisa não saía da minha cabeça. Eu esperaria por ela na minha janela, receberia ela de braços abertos, faria uma festa. Se eu não tivesse passado por tudo que passei e decidido parar e entender as coisas, talvez estaria assim até hoje. Mas eu mudei. Eu soltei. Eu voltei a enxergar o mundo, voltei a me enxergar. Não importa mais o que ela faça, Ali nunca vai me ter de volta. Não sou mais o cara que ela conheceu. Mas estou certo de que ela é a mesma mulher, por isso esse plano pode dar em alguma coisa.
Jaehyun assentiu, e sufocou a areia de desgosto querendo tomar conta de toda a sua boca. Odiaria menos aquela versão sensata e madura de Jeon Jungkook se isso não tivesse acontecido às custas de , mas por um lado… era realmente bom olhar pra ele e ver um rosto normal, e não aquela face pálida que transparecia ódio e desesperança, com buracos escuros no lugar dos olhos, esperando alguém que não ia voltar.
— Isso não é só adiar o inevitável? — Jaehyun perguntou, estreitando os olhos. Jungkook deu de ombros.
— Isso é tentar acabar com o inevitável. Mesmo se ela aparecer aqui, vou falar a verdade, ela vai ver a verdade e vai se mandar. Não precisa aparecer na frente de , não precisa saber de nada além da minha decisão de não voltar. Com ela longe daqui de novo, acabou. Ali só tá fazendo isso pra curar o ego ferido, pra aplacar a própria culpa. Quando não ter o palco que quer, vai desistir. Ela não é a pessoa mais persistente do mundo.
Jungkook riu com escárnio, porque depois de tudo, tinha ainda mais certeza daquilo: ele e Ali só ficaram de pé porque ele sustentava tudo. Fazia tudo, abraçava tudo. Ela não fazia ideia de como manter as coisas na linha, esmagava qualquer indício de avanço de Jungkook na relação, morria de medo de se entregar demais e sempre o orientava a fazer o mesmo.
Jaehyun mordeu o lábio, vendo que aquela era a hora perfeita para se abrir sobre coisas que Jungkook provavelmente não precisava saber.
— Aquela história do barco… — ele começou antes que desistisse. Jungkook olhou pra ele. — Não sei se você quer saber disso, mas… foram as drogas. Ela voltou com elas, teve uma recaída. Não se lembrava de nada. Não foi consciente.
Jungkook ficou imóvel. Não tinha sentimento nenhum em seu rosto; nem surpresa, choque, raiva, ou mísero brilho de curiosidade. Não tinha nada. Parecia quase desumano.
— Acho que devo ter considerado essa possibilidade umas duas ou três vezes na época — ele finalmente disse, com a voz pacata e indiferente. — Esperei ainda mais que ela ligasse pra mim, porque a gente tinha prometido, sabe? Ela disse que se caísse de novo, me ligaria, mas– talvez isso doeu mais do que aquelas fotos. Não a traição do beijo, mas a traição da confiança. Do elo e das promessas que tinha feito comigo. É o tipo de coisa que quando quebra, não dá pra colar de novo.
— Então você tem certeza? De que se Ali voltasse, você não sentiria nada?
— É claro que eu sentiria, Jaehyun — ele bufou, estreitando os olhos, e Jaehyun arqueou as sobrancelhas. — Tenho certeza disso. Mas acho que sentiria tudo que nunca senti por ela. Tudo que sufoquei por um tempão, tudo que eu achava errado sentir, como reconhecer que ela não é quem eu pensava — um resmungo partiu de Jungkook, e aquele cubículo parecia ter ficado mais quente. Se parasse para pensar em Ali agora, sentiria toda a raiva que nunca sentiu por ela acumuladas, a maior parte motivada por aquela frase de merda “Ali te quer de volta” — Olha, entendo você desconfiar, mas eu amo a . Nunca amei ninguém assim, nunca me apaixonei assim. Ela é a melhor coisa que aconteceu comigo nos últimos anos, e entendo se você não quiser acreditar em mim, se quiser ficar preso naquele nosso início de merda, mas preciso que você acredite que eu vou cuidar dela. Que não vou deixar nada acontecer com ela, e muito menos magoá-la por causa de Ali ou qualquer outra pessoa. Eu não faria isso, Jaehyun.
De novo: aquela sinceridade esmagadora quase acabava com ele. Jaehyun passou uma língua no lábio, sentindo a pontada fria que aquela declaração dava em suas costelas.
— Ainda é uma merda escutar isso — grunhiu ele, engolindo em seco. — Sabe que eu ainda gosto dela, não sabe?
Jungkook jogou os braços para o lado do corpo, bufando fraco.
— Sei.
— Sabe que também fui pra cama com ela, não sabe?
Agora o maknae trincou os dentes com mais força, mas não desviou o olhar.
— Sei.
— E que eu odeio que ela seja sua namorada.
— Sei, sei. O que você–
— E você sabe — Jaehyun se aproximou a muitos passos de JK, mas sem intenção de fechar o punho no seu rosto mais uma vez. — que também não vou deixar nada acontecer com ela. Não sabe?
Jungkook não teve como responder. Viu os olhos de Jaehyun brilhando em honestidade e determinação e soube de uma coisa muito simples: eles estavam unidos. Talvez não pelos motivos que ele imaginou que voltariam a ficar, talvez não para sempre, mas ele estava disposto a não pular a primeira janela para ficar longe de Jungkook apenas porque ele respirava. Ainda podia existir raiva ali, mas ela tinha sido aplacada completamente pela situação emergente de . Uma pessoa que era importante para ambos, uma pessoa que precisava de ajuda, mesmo se não soubesse. Uma ajuda que eles poderiam conceder.
É o Jaehyun, afinal. Sempre ajudando os fracos e oprimidos. Jungkook riu quando se lembrou dessa frase, antes de descobrir que não tinha nada de fraca.
— É muito bom saber disso — Jungkook sorriu e estendeu a mão direita para o meio deles. — Posso contar com você?
Jaehyun olhou para a palma com repreensão.
— Eu ainda não te perdoei.
Jungkook riu.
— Eu sei. Mas isso não é sobre nós — ele deu de ombros, e aumentou um pouco o sorriso, tornando-o mais simpático. — E você disse ainda.
Jaehyun revirou os olhos e cedeu ao aperto de mão, pensando exclusivamente em , refazendo a rota de sua cabeça: primeiro, eles precisavam se livrar de Ali e Changmin. Depois ele poderia voltar a torcer para que aqueles dois dessem muito errado.
— Espero que você esteja certo sobre os seus sentimentos. Porque se você se contradizer só um pouquinho, se desviar um centímetro que seja… vou estar lá pra ela num piscar de olhos. E vou fazer de tudo pra ela voltar a me amar.
Jungkook o olhou como olhou para Candice naquele aeroporto: grato. Sorridente. Considerando ameaças como provas máximas de votos de confiança.
— Se isso chegar a acontecer, você é o único pra quem eu pediria isso.
E o selamento daquele pacto estranho chegou ao fim com o trinco da porta soando alto, e Eunwoo, Mingyu e Yugyeom colocando as cabeças para dentro da sala, uma de cada vez, vasculhando o lugar devagar em busca de corpos ou sangue.
Quando avistaram os dois parados lado a lado, nenhum deles teve coragem de falar alguma coisa. Jungkook segurou o riso enquanto Jaehyun revirou os olhos. Por fim, JK suspirou e apontou para a tela apagada do televisor e disse diretamente para Eunwoo:
— Primeiro de tudo: vou fazer questão de pichar o seu carro com tinta de graxa. E segundo — ele pegou o microfone enrolado nos fios. — Agora eu vou ser o G-Dragon. Você vai se virar como T.O.P.
Os três pares de olhos piscaram lentamente, apreensivos, até Eunwoo levantar os dois braços e gritar com um sorriso:
— Fechado!
Em um segundo, Jungkook e Jaehyun estavam tendo os ombros sacolejados em um abraço desengonçado de Eunwoo.
— Eu sou o Taeyang e não quero reclamações sobre isso — Jaehyun puxou o outro microfone, e fuzilou Jungkook com o olhar quando ele protestou.
— Eu sou o Daesung! — Mingyu correu disparado para a mesa e tomou um microfone. Yugyeom ainda estava parado na porta e soltou um palavrão entre os dentes.
— Droga, sou o Seungri de novo — ele deu um muxoxo e os outros fizeram uma careta. Ninguém queria ser o Seungri. — Mas eu vou ser o Taeyang em Bad Boy.
Quando estavam posicionados na frente da tela projetada na parede, Eunwoo finalmente se abaixou e ligou o aparelho. A tela começou a se acender e os comandos para a escolha da música ficaram pendendo para lá e para cá até Haru Haru ser selecionada.
— Ah, antes que eu me esqueça — Jaehyun se virou para os amigos segundos antes da primeira batida começar. — Jungkook tá namorando.
돌아보지 말고 떠나가라, 또 나를 찾지말고 살아가라…

P.S.[1]: caso te interesse em visualizar melhor esse icônico momento dos amigos, deem uma olhada em Haru Haru e na minha favorita Bad Boy desse monumental grupo que fez história no k-pop e que com certeza foi inspirador não só para os nossos 97liners, como pra muitos idols da nossa geração. Imaginar eles atuando exatamente como no MV vai ser uma experiência muito diveritda.

P.S.[2]: e como punição, é claro que o Jungkook foi o Seungri em Bad Boy.




Já eram quase 4 da manhã quando Jungkook finalmente digitou a senha da porta da frente e foi abraçado pelo aconchego de sua casa.
Estava tão tarde que nem mesmo Bam foi recebê-lo, como sempre fazia. O cachorro, que ficava maior a cada dia que passava, estava deitado em cima das próprias pernas no sofá, e se conteve em apenas levantar as orelhas e a cabeça quando a luz se acendeu, olhou quem chegou e logo em seguida voltou para a posição inicial, caindo no sono de novo.
Jungkook estava louco para fazer a mesma coisa que ele, então apenas largou as botas na entrada, fez um carinho no seu colega de quarto e jogou a jaqueta na poltrona, arrastando os pés para as escadas e o andar de cima, aproveitando para digitar um “cheguei” para , que já devia estar dormindo há muito. Ele não esperou uma resposta e só voltou a guardá-lo, pensando de repente se a contaria sobre aquela noite, se diria que agora ele e Jaehyun poderiam se considerar minimamente civilizados e que poderiam até voltar a fazer parte do mesmo grupo.
E ah, deveria contar também que agora todos desse grupo sabiam sobre eles? Graças a fofoca de última hora de Jaehyun? Por causa disso, todos eles se embananaram no início da música e, de repente, fazer um cover perfeito de BigBang tinha caído pra segundo plano. Pelos próximos 20 minutos, o assunto da vez foi: quem é a nova namorada de Jeon Jungkook? Não havia nada que ele pudesse fazer a não ser falar.
Completamente esgotado e com a energia drenada pelo repertório de 15 músicas e mais 8 cervejas, ele já estava arrancando a camiseta antes mesmo de abrir a porta do quarto, planejando só jogar uma água no corpo ou ir direto para a cama de uma vez. Era uma ideia perfeita e tentadora. O plano era dormir sem pensar em que horas teria que estar de pé no dia seguinte, ainda que fossem cedo demais para o seu gosto.
Jungkook estava tão cansado que demorou pra perceber. Demorou tempo demais, até. Ele abriu a porta e andou cinco passos até notar a luz. Um feixe violeta, e depois outro verde, azul, laranja, todos passeando pela sua pele, seus pés, seu abdômen, tomando as paredes e o teto do jeito que ele bem conhecia.
Ele levou um susto tremendo, sentindo um pequeno pânico imediato porque tinha certeza absoluta de não ter deixado nada daquilo ligado. Deveria checar se as portas de vidro estavam trancadas também? E Bam, não surtou com algum desconhecido na casa? E o seu cofre, as suas roupas, o seu estúdio, e tudo…
Daí ele olhou para a cama no centro do quarto. Mesmo com a galáxia disparando em formas nas paredes, a escuridão ainda era predominante, mas ela não o impediu de reconhecer a silhueta deitada no colchão, respirando suavemente em um sono profundo, embrenhada nos cobertores e em seus milhões de travesseiros.
Jungkook paralisou por um momento, largando a camiseta no chão, sendo invadido por um tipo de felicidade violenta que poderia facilmente mandá-lo dessa pra melhor.
era um emaranhado de cabelos respingando no seu lençol, desenhando círculos e espirais por todo canto, enquanto suas pernas estavam na mesma posição de sempre: uma para dentro do cobertor e a outra para fora, exibindo a calcinha cinza por debaixo de uma camiseta qualquer dele, e o jeito como ela respirava… Jungkook não compreendeu o que sentiu. Não sabia que palavra usar. Talvez ela nem existisse no dicionário.
Mas soube de uma coisa: sentia que estava em casa. Definitivamente, em casa.
Ele ficou parado por alguns instantes no escuro, tentando dispersar um nó esquisito que atarraxou na garganta, com medo de estar bêbado demais. Deu um passo à frente e quis muito tocar nela, mas voltou a guardar a mão imediatamente. Tinha que tomar um banho, tinha que agir normalmente, mesmo que ela não estivesse olhando.
Nem 5 minutos se passaram e ele já estava achando aquele banho um desperdício de tempo. Maldito desperdício de água, de shampoo, de sabonete, de qualquer coisa que ele precisava fazer pra manter a boa aparência por causa do trabalho em vez de esquecer de tudo isso e ir abraçá-la.
Ele tratou de se secar e se vestir mais rápido do que normalmente faria e, quando voltou ao quarto e a viu parada no mesmo lugar, perdida no vale dos sonhos pesados, ele mordeu o lábio e sentiu o coração palpitando de novo. E de novo, e de novo, e de novo até balançar a cabeça e sentir o sono se enredando sobre ele novamente. Jungkook arrastou os pés para o outro lado da cama, entrou embaixo do edredom com muito cuidado para não acordá-la, se aproximou dela pelas costas e estendeu o braço para abraçá-la de conchinha, fungando o cheiro de seu pescoço e seu cabelo.
murmurou um “hmmm” e se mexeu um pouco. Depois de 1 minuto, se mexeu de novo até virar o corpo para o lado dele, sem abrir os olhos, e depositou a cabeça no seu peito, como fazia sempre, no automático.
É, o dicionário atual não apontava nenhuma palavra pra definir aquilo. O sorriso dele estava brilhando no escuro, e o seu cérebro estava igualzinho aquela Via Láctea no teto.
— Torci mesmo pra você mudar de ideia — ele sussurrou quase sem voz, dedilhando suas costas e seu cabelo. — Obrigado.
Jungkook estalou um beijo leve na sua testa e, antes de ser varrido pelo sono, sibilou perto de seu ouvido:
— Não vou deixar nada de ruim acontecer com você. Eu prometo.
E, naquele momento, ele também prometeu nunca descumprir a promessa.



Em um belo dia nublado no meio daquele outono, Changmin estava passando pelas portas duplas da Hybe para fazer uma visita.
Normalmente, ele decidia racionalmente não pisar muito naquele prédio, que chamava às vezes de território inimigo, mesmo que Jeon Jungkook já tivesse finalizado todos os seus trabalhos pesados para se tornar o mais novo cantor solo de sucesso da Coreia do Sul e do mundo. Não, não era apenas pelo maknae infeliz. Era por ele mesmo. Era por mais uma socialização cansativa, onde ele seria obrigado, pela manutenção de sua personalidade sempre altiva e simpática, a sorrir e conversar com todas as pessoas que o conheciam quando queria fazer isso apenas com uma pessoa. A garota que agora não saía de seu pensamento, tomando espaços obsessivos e vertiginosos, engolindo seu juízo, fazendo-o ficar acordado à noite com a triste constatação de que estava perdendo. Merda, ele estava perdendo!
Havia tanta em seu cérebro, tantas coisas que queria dizer a ela, tantos choques de realidade, que se empilhavam e empilhavam em cenários imaginários que, no fim, nenhuma dessas palavras podia ser lida, de tão emboladas e histéricas. Ele tinha mudado de ideia duas ou três vezes sobre aquele plano-barra-pedido de Ali, pensou em contá-la sobre tudo de uma vez, deixar que ela viesse e armasse o pandemônio que quisesse, ver sofrer porque só assim ela entenderia. Só assim entenderia o que ele quis dizer, veria a verdade sob seus olhos. Eu te disse, não disse? Te falei que isso não ia dar certo, te falei que ele não era pra você.
Aquele era o único cenário que o acalmava, que o fazia pensar que ainda havia esperança. Mas, ainda assim, não discava o número de Ali. Não entregava o jogo de uma vez. Porque ela era instável demais para o seu gosto, e ele tinha alguma cautela. Podia tentar uma coisa, talvez. Algo que faria chorar, mas as lágrimas dela não eram um problema. Seria sempre um convite para que ele as secasse.
Naquela tarde, ele vestiu o sorriso no rosto, ajeitou os fios já bem alinhados na janela de um carro vazio qualquer no estacionamento e entrou no edifício, fazendo seus cumprimentos básicos e gentis até dizer para uma recepcionista qualquer que estava indo ver Kang Sooyoung. A mulher o deu passe livre imediatamente, alegando que a diretora adoraria revê-lo depois da reunião que estava tendo com a equipe de criação.
Ah, sim. Sooyoung devia estar louca pra vê-lo.
Ele sorriu mais um pouco e seguiu para o elevador com a expectativa já característica quando pensava nela. era da equipe de criação. Ele já começava a imaginar como ela estaria vestida, como estaria seu cabelo, como estariam suas fotos novas, quais os assuntos tão profissionais que insistiria em conversar…
Ah, às vezes ele sentia muito por não poder estender os dedos e tocar sua boca. Não poder tocar naquelas pernas, não poder sentir seu quadril, qualquer merda dessas que configurava um desejo desmedido por alguém.
Ele saltou no corredor do 5º andar, onde ficavam os inúmeros gabinetes de auditórios para reuniões, e não para dois andares acima, onde ficava a sala de Sooyoung, como foi orientado. Ele caminhou por toda aquela extensão de salas de vidro até chegar na última, vedada o suficiente para que apenas um som seco passasse para fora, e não demorou para ser avistado pela diretora, que estava, literalmente, apertando o botão do projetor que mostrava um “Obrigada” de fim de apresentação.
Ela sorriu e acenou lá de dentro. De costas, virou a cabeça para trás em um impulso, e por um momento, ela também sorriu, um sorriso como o dele, um sorriso de satisfação em vê-lo.
Isso, gata. Pode ficar feliz o quanto quiser. Fique ainda mais feliz, me deixa entrar ainda mais.
logo voltou a atenção para o bloquinho nas mãos e Changmin tomou a liberdade de dar um passo à frente e entrar, tendo a certeza que a reunião havia acabado.
— Querido! Você por aqui — Sooyoung sempre ficava feliz demais ao vê-lo. Talvez fosse pelo fato de que seu desejo mesmo era sair com ele daquele edifício no último horário e jogá-lo por cima do capô de seu carro em uma cena brutalmente erótica, onde ele arrancaria suas roupas com violência e pressionaria seus peitos no para-brisa, e por isso ele a tratava tão bem. Bem daquele jeito sedutor, ilusório, plantando a esperança de algo que jamais se realizaria, mas que a manteria com aquele sorriso e aquela devoção para cima dele, manteria a chama acesa para quando ele precisasse realmente dela. Sooyoung parecia ser uma mulher extremamente forte e potente por fora, mas ninguém era tão observador quanto Changmin. Aquela mulher era carente e manipulável por dentro, e nem estava tentando manter as portas fechadas para ele.
Ele sentiu isso no arrepio da pele dela quando a abraçou, sem se preocupar com formalidades, chamando a atenção de alguns olhares aleatórios da sala, pouco se lixando se iriam escrever uma fofoca completa sobre isso nos grupos da empresa.
— É o seu dia de comer cordeiro. Acha que esqueci? — disse ele, solícito. A mulher corou absurdamente.
— Meu Deus. Você ainda lembra disso? — ela riu pelo nariz. Do outro lado da sala, Yoona cutucou as costelas de rapidamente, mandando-a prestar atenção em uma cena que já viu algumas vezes, mas que ainda continha o mesmo choque inicial: Kang Sooyoung rindo. De verdade. Nada maquiavélico ou forçado.
estalou a língua para a amiga enquanto terminava de juntar suas coisas, pegando blocos, post-its, agendas e juntando-os na bolsa preta crossbody de sempre. Changmin reparou, pelo canto do olho, que ela estava usando jeans wide lag e um suéter branco, deixando o colo abaixo do pescoço exposto e o cabelo caindo até muito perto do quadril, cheio e presente como sempre, mas… tão linda, porra. Andava exalando um tipo diferente de beleza ultimamente, e toda vez que via isso, a voz dela daquele dia falava em sua cabeça: sim, ele me conseguiu de volta.
Ele precisou recuperar o sorriso depois de um milésimo de segundo de hesitação, balançando a cabeça enquanto via Sooyoung listar os motivos do porquê não conseguiria almoçar com ele naquele dia, mesmo que ele não tenha feito nenhum convite e muito menos ouviu uma palavra do que ela disse.
— Ah, não se preocupe, temos todo o tempo do mundo. O que vocês estavam aprontando aqui? — ele finalmente se virou para , que estava quase na porta, passando bem ao lado dele.
riu e revirou os olhos.
— Sigiloso, senhor Ji. Coisas que nem você poderia ouvir.
— Ah, mas eu sou ótimo em guardar segredo — ele lhe deu uma piscadinha, e Sooyoung riu, um pouco abobada. Era claramente ridícula a forma como ele a afetava.
— A curiosidade matou o gato, então… — deu de ombros, fazendo Changmin rir, e fazendo-a rir do mesmo jeito, e de repente aquilo ali se parecia com uma bolha fechada, que deixou Sooyoung um pouco desconcertada e Yoona olhou para o relógio no celular.
— Bom, eu vou indo nessa, preciso me reunir com os outros roteiristas e tentar colocar essas anotações em prática. Você pode me emprestar a Wonnie, por favorzinho? — ela lançou um olhar pidão e um biquinho para , que estreitou os olhos.
— Tá bom, vá. Mas só porque não vou mesmo precisar dela hoje.
— Você é uma deusa, — Yoona apertou os ombros de em um abraço desajeitado e, sem mais nenhum comentário, fez uma breve reverência para Sooyoung e Changmin e deixou a sala.
— Eu vou precisar imitar ela. Tenho umas fotos pra fazer hoje — estava começando a se retirar como Yoona, mas Changmin falou na frente:
— Posso ir com você? — perguntou ele. olhou para Sooyoung na mesma hora. Ele se virou para a mulher. — Ah, Soo, você sabe que tô andando meio entediado esses dias, não é? Quis tirar um tempinho sabático em casa, mas não tá sendo o que eu esperava. Acho que perdi a inspiração e tô tentando recuperar ela de volta. Olhando outras pessoas, talvez. Queria ficar olhando pra você, mas você está muito ocupada.
Sooyoung corou ardentemente de novo. arqueou as sobrancelhas explicitamente, um pouco chocada pela primeira vez com alguma atitude humana da diretora. Caramba, Changmin sabia mesmo o que estava fazendo. Ele achava uma brecha e se embrenhava com sucesso no coração até daquelas que todo mundo pensava que não tinham.
Ela sufocou um riso, e Sooyoung puxou todo o controle que tinha para agir com normalidade.
— Ah, eu entendo como é isso, e sinto muito, querido, por não te dar muita atenção hoje. Estamos preparando um lançamento, você sabe como é essa loucura — ela balançou a cabeça, e olhou para rapidamente até sorrir de novo. — , ele pode ir com você, se não for te atrapalhar, é claro. Acho que Changmin tem muitas coisas a ensinar também, talvez ele dê dicas muito úteis sobre o novo conceito.
Por um momento, um instante mais rápido que um piscar de olhos, pensou em negar. Não soube do motivo, nunca, jamais, pensou que seria ruim ter Changmin e sua experiência profissional presentes com ela em qualquer canto, nunca pensou que negaria extrair grande parte de seu conhecimento, mas naquela janelinha de momento, uma voz fantasma sibilou no seu ouvido aquela palavra, fria e urgente: Não.
Mas aquela brisa de dúvida sem sentido algum desapareceu rápido no ar e ela suspirou quando assentiu.
— É claro. Vamos te entreter um pouquinho — ela riu, ainda que tenha saído um pouco engasgada. Changmin e Sooyoung sorriam do mesmo jeito e logo a diretora estava se despedindo porque tinha uma outra reunião urgente com a equipe de figurinistas que, novamente, não conseguia chegar em um acordo, principalmente sobre o peso ideal que aparentemente Soobin não estava mais apresentando.
Depois que ela saiu, cruzou os braços na frente de Changmin, estreitando os olhos.
— Tá legal, o que foi aquilo?
Ele piscou os olhos, confuso.
— Aquilo o quê?
— O seu flerte com a Sooyoung. Acha que estavam sozinhos? — arqueou as sobrancelhas, segurando a risada que não conseguiu dar antes. Changmin revirou os olhos e riu com menos empenho.
— É o meu jeito de falar com mulheres mais velhas. Faz elas te respeitarem mais, sabia?
— Aham. É tudo por respeito — riu mais um pouco e começou a sair da sala. Changmin logo a seguiu.
— Ei, você precisa compreender o que eu tô tentando dizer. Adoro as quarentonas. Mulheres mais velhas adoram quando são paqueradas por caras mais novos, faz elas se sentirem mais jovens, mais confiantes, com boa auto estima, e consequentemente, mais aptas para serem agradáveis. É uma conta muito simples.
— Acho que você vai ter que repetir essa conta, porque só ouvi: adoro as quarentonas, adoro as quarentonas. Se você se casar com ela, pode convencê-la a melhorar o café em cápsulas da cozinha? Ou nos dar mais dias de folga?
riu um pouco mais alto e Changmin revirou os olhos, segurando a língua na própria boca antes que dissesse que ela não fazia ideia do que ele adorava mesmo. Do que estava adorando ultimamente.
— Tudo bem, , pode parar de me zoar e me dizer pra onde estamos indo?
— Para o estúdio de dança — parou na frente do elevador e apertou o botão para os andares mais acima. — Vou começar a registrar os bastidores da coreografia principal dos meninos. Uma delas é surpresa, então só vai ser lançada bem depois. Eles não veem a hora.
Ela sorriu com apreço, começando a mexer na bolsa para verificar a câmera e tudo que precisava, e naqueles breves minutos em que o elevador não chegava e tinha a cabeça abaixada para a bolsa, Changmin sentiu uma vontade surreal de pegar na sua mão e dizer que ela não precisava daquilo. Não precisava de nada daquilo, porra! Não precisava daquela baboseira sem fim de ficar perdendo tempo com idols, com gente tão fútil reciclando outros conceitos fúteis, pelo amor de Deus. tinha sido feita para mais, para muito mais, tinha sido feita para o mundo inteiro. Vê-la ali era um desperdício tão grande que o dava raiva, sempre dava raiva.
Quando ela o olhou de novo, ele tentou sorrir como antes, o que não adiantou muito, mas ela não percebeu. O sino do elevador apitou e as portas se abriram, e ele entrou atrás dela.
— Para o estúdio de dança, então — ele soube performar uma animação na voz e recostou o quadril no espelho em suas costas, agarrando as barras de metal com as duas mãos. apoiou uma mão também e ele aproximou seus dedos do dela. Era um impulso, um teste para ver alguma reação. Os braços de estavam ao lado dos seus, suas mãos na mesma posição que a dele, era só chegar mais perto, só escorregar mais um pouco…
Mas afastou a mão no último minuto, afundando-a dentro da bolsa em resposta a um toque baixinho e insistente no celular. E o jeito como sorriu abobada para a tela já dava pra saber quem era. Era lógico quem era.
E toda aquela onda de ódio estava novamente ali, ardendo como as chamas insistentes de um incêndio nunca apagado.
Antes de contorcer o rosto por completo, as portas se abriram, e levou um pequeno susto, distraindo-se.
— Ah, meu Deus, foi muito rápido dessa vez. Geralmente esse elevador é pior do que aquele do prédio da Esquire — ela imediatamente saiu, guardando o celular de volta na bolsa e puxando o crachá enrolado do bolso de trás. — Você não vem?
Changmin umedeceu os lábios e sorriu enviesado.
— Atrás de você, gata.
Ele esperou em vão por mais alguns segundos e depois soltou os dedos já brancos de tanto apertar a barra de metal, ainda sentindo uma raiva pulsante que incendiaria todo aquele prédio.


"Ah, o amanhecer ainda pesa uma tonelada
Eu fiz algumas coisas que não deveria ter feito
Mas eu nunca deixei de te amar."

🖤🎤 The Ultracheese


não entendeu nada quando viu o estúdio vazio.
As horas no seu relógio estavam corretas, mesmo que aquela coisa que vivia no seu pulso fosse tão velha quanto seu antigo flip, e o corredor tinha sido esvaziado justamente para o ensaio daquela tarde, mas quando ela e Changmin curvaram para dentro da sala ampla, não encontraram viva alma zanzando por ali, muito menos a música soando e o barulho das solas dos tênis deslizando no piso liso.
— Já é a hora da pausa? — Changmin perguntou, olhando para todas as direções. vincou ainda mais a testa.
— Não, já eram pra ter começado — ela pensou em ligar para Sooyoung, mas a tal reunião com os figurinistas já devia estar acontecendo. Pensou em ligar para Yoona, mas como ela saberia daquela informação? Não tinha nada a ver com o seu departamento. E não conhecia o coreógrafo o bastante para ter o seu telefone e perguntar onde raios estava ele e os garotos, e também não…
Um barulho alto e extremamente estranho soou de algum canto da sala, nos arredores de algumas das araras enfileiradas na parede acústica preta, um que surgiu rápido e desapareceu no ar. e Changmin levantaram a cabeça no susto. Tentaram entender o som, adivinhar de onde vinha, mas ele tinha sumido. Que negócio era aquele?
Por fim, concluíram que era algo insignificante que só foi ouvido porque a sala estava mergulhada no silêncio e, sem ter nada além de espelhos e roupas reserva espalhadas, as paredes funcionavam como um microfone de ecos gigantescos. Nada de importância mundial.
— Então eles estão matando o trabalho. Que sutil, não imaginei que os idols certinhos da Big Hit fizessem isso. Já estão deixando a fama subir à cabeça? — Changmin zombou, e esperou que risse, mas não era hora disso. Os membros do TXT não matavam o trabalho, não era do feitio deles, mesmo que só estivesse ali a menos de 1 ano e perdido os outros 2 anteriores da estreia. As pessoas passavam a ficar mais relaxadas com a disciplina depois de anos, não é? Muitos anos. Tipo uma década depois, como os veteranos do andar de cima.
Mas não dava pra negar: era estranho. Os garotos não estavam ali e não tinha recebido nenhum comunicado de adiamento ou cancelamento do ensaio, o que poderia significar fortemente que eles estavam sim matando o trabalho, e estavam fazendo escondido de Sooyoung, que estava nesse momento achando que tudo estava correndo como o planejado.
bufou e soltou os ombros.
— Eu não entendo — ela tentou olhar ao redor de novo, mas só havia extensões de piso vazio, um espelho gigante e caixas e mais caixas de bagunça nos cantos. — Era pra eles estarem aqui. Bem aqui, com o Yeo e o…
Aquele mesmo barulho se fez presente de novo, agora mais alto e mais esquisito ainda. foi capaz de identificá-lo um pouco: parecia uma tosse, mas uma tosse violenta nascida do fundo do pulmão, uma que não conseguia ganhar força fora do corpo, uma que voltava e depois retornava, voltava e retornava, como…
Como se estivesse sufocando.
olhou para o mesmo canto das araras e apressou o passo para lá, pensando inicialmente, debilmente, que alguém poderia ter deixado um cachorro ali. Um cachorro! Não era assim tão absurdo, ela já tinha visto Beomgyu fazer isso com seu chihuahua. Prender a coleira de um animal qualquer nas araras era confiável, e não havia nada de errado. Ele pode ter deixado o animal ali enquanto matava o ensaio, ou o atrasava seja lá por qual motivo, e um cachorro era uma explicação muito válida, simplista, completamente aceitável e normal.
Vendo que tomou a dianteira, Changmin a seguiu, agora ele mesmo se vendo curioso com a coisa e, quando alcançou o cabideiro, girou o corpo para olhar atrás, no espaço entre a parede e as outras bagunças de caixas.
Quando soltou um grito, Changmin literalmente correu.
Foi um grito trêmulo, derramado pra fora dela como um líquido derramando da jarra. Seco, dolorido e apavorado.
— O que foi? — Changmin arfou com certa ansiedade quando se aproximou, e nem precisou que respondesse. Talvez ela nem fosse capaz. Ele nem precisava tocar nela para saber que a garota estava tremendo, se arrepiando, travando um berro na pontinha da laringe e talvez uma crise de vômito por quase 40 segundos.
40 segundos. Foi o tempo máximo que ficou parada, de pé, empalidecendo por completo e arregalando os olhos diante do corpo caído no piso, um corpo que tremia 5 vezes mais do que ela, com a boca aberta em uma tentativa desesperada de respirar e soltar a espuma branca que escapava pra fora, que o sufocava, fazendo seu corpo convulsionar, seus olhos piscarem freneticamente, sua consciência se perder.
compreendeu as coisas rápido, ainda que não de forma consciente. Foram 40 segundos de choque até que ela largasse a bolsa com brutalidade para qualquer canto e se ajoelhasse ao lado do garoto, colocando as mãos em seus ombros com um pânico horroroso nascendo do estômago.
Soobin! — ela gritou o nome do líder, gritou enquanto puxava seus braços pesados para cima, gritou novamente quando viu Changmin se materializar ao seu lado do nada, ajudando-a a empurrar o garoto de quase 1,90 para virar, e nem sabia mais qual era seu tom de voz ou o que estava falando quando abriu a boca: — Soobin! Soobin, meu Deus– a Sooyoung! Changmin, chama a Sooyoung!
O rosto de Soobin estava ficando roxo, avançando para níveis fantasmagóricos, cadavéricos. O pânico de pressionava seu coração, pressionava todos os seus órgãos. Ela mal notou em quê estava ajoelhada. Não notou a umidade do vômito dele na sua calça, atravessando o tecido de seus jeans rasgados, empapando seus joelhos e coxas, não notou que ele estava ficando gelado e cheio de suor, muito cheio de suor.
— Changmin, por favor… — ela gemeu, virando a cabeça e não encontrando Changmin de imediato, não vendo nada, voltando em seguida para Soobin porque só ele importava em seu campo de visão. Um zunido insistente quebrava o ouvido de , uma metralhadora massacrava o tímpano, uma vertigem de outro mundo nascido do nada a fazia apertar ainda mais o braço de Soobin ao mesmo tempo que seu corpo não parecia se mover direito. — Soobin! O que está acontecendo! Soobin… — ela fungou alto, sem saber se estava chorando ou se só estava insanamente apavorada. Insanamente petrificada. A espuma branca continuava saindo da boca dele, os dedos continuavam roxos, e tudo aquilo trazia lembranças, tudo aquilo parecia muito familiar, parecia ser algo que estava se perdendo, e se perdendo, e se perdendo… — Uma ambulância! Changmin! — ela gritou de novo, berrou dessa vez, porque não estava vendo ele! Merda, não enxergava nada! Ele tinha ido embora? Num momento como esse? — Changmin! Changmin, por favor! Chan–
Ela sufocou mais um soluço violento. Estava perdendo a força no braço. Soobin ainda tremia. Soobin estava indo embora. Soobin estava…
De repente, teve o corpo empurrado para o lado por mãos firmes e grosseiras, mas que fizeram a força necessária para que seus olhos abrissem de novo, assim como os ouvidos, assim como todos os seus sentidos. Tudo estava enevoado, distante, em câmera lenta. Ela ouviu o barulho agora claro de vômito. Viu o braço de Changmin entrando na sua frente e os dedos dele se engancharem na garganta de Soobin. Viu o garoto convulsionar com mais força para soltar tudo. Viu, viu, viu, apenas isso, como se estivesse vendo um reality na TV, apenas uma espectadora, sem participar de fato. O terror ainda estava pulsando no seu sangue, corria pelas suas veias a mil por hora, e tudo parecia tão fosco, indistinto…
Porra!”, ela ouviu Changmin, mas ele parecia estar no estacionamento lá embaixo, há mil quilômetros dali, sem fazer parte da realidade. Ela viu seu braço mover mais uma vez, ouviu sua voz ao longe falando com outro alguém, e agora estava apenas ouvindo, ouvindo, ouvindo, completamente paralisada, atônita, deslocada da vida, presa em um momento sombrio que se disfarçava de lembrança, uma que ativou um horror sem tamanho e quase esquecido de , aquele que ela dificilmente presenciava, aquele que tinha acontecido uma vez…
Minutos, segundos, horas ou dias depois, sentiu os dedos nos seus ombros, sentiu outros dedos em sua bochecha, e seu nome ser chamado infinitas vezes até que o som penetrasse a redoma escura ao qual ela foi presa, e o rosto de Changmin finalmente focalizou na sua panorâmica, e ela sentiu os mesmos dedos balançando-a, sentiu o ambiente se assentando no cérebro.
! Cacete! Tá me ouvindo? — ele agora gritou, e ela piscou os olhos rápido, piscou e piscou até sentir os cílios encharcados batendo no rosto. — Me responde, você tá me ouvindo?
Ele perguntou com mais um grito, e esse agora tinha terminado de desentupir tudo. conseguiu assentir com a cabeça e ouviu Changmin soltar um suspiro e um palavrão, ambos de alívio.
Ela olhou para o lado imediatamente. O corpo de Soobin ainda estava virado de lado, mas ele não tremia mais, não fazia absolutamente nada, estava imóvel, completamente imóvel.
— E-ele… E-ele…
— Ele tá vivo — Changmin respondeu, puxando o queixo de para perto, forçando-a a não olhar mais para o corpo. — Ele tá vivo, já chamei uma ambulância e os seguranças, chamei a Sooyoung, chamei até a porra da faxineira. Agora você tem que levantar daí agora.
Ele parecia levemente aborrecido com algo, ou estava tão nervoso com tudo que simplesmente não conseguia mais sorrir. Naquele momento em específico, em que estava tão transtornada com a situação, o olhar de Changmin era duro e raivoso, o tom de sua voz soando baixa e grave, o modo como ele cresceu por cima dela e parecia tenebrosamente autoritário, eram partes de sua personalidade tão amável que nunca, jamais havia visto.
Mas ela seguiu o olhar dele para o piso e entendeu a sua urgência. Sentiu a umidade em seus joelhos e agora no resto de suas pernas, o cheiro forte e pungente no ar, percebendo agora que tinha se sentado, que tinha sujado os antebraços, as mãos, que estava quase em posição fetal na vertical, que tinha de novo tido aquele tipo sinistro de apagão como na noite daquele telefonema com sua mãe.
Changmin não disse mais nada, mas continuou olhando pra ela, esperando, praticamente ordenando: levanta dessa merda agora, ! Anda logo!
Ela não conseguiu dizer alguma coisa minimamente inteligente, mas deixou Changmin puxá-la para cima, sem se importar com a sujeira do vômito de Soobin, até porque a mão dele também estava no mesmo estado. Ele a colocou de pé e a virou para ele, deixando-a de costas para o corpo, sentindo cada articulação de ainda vibrando, desfalecendo, tentando voltar ao normal.
— Você não tá bem — não era uma pergunta, e não iria retrucá-lo. Estava apavorada, não estava entendendo nada, e nem sabia se queria entender. — Presta atenção em mim. Preciso do seu celular. Preciso chamar aquela sua amiga, ou sua assistente, alguém pra vir te ver. Me dá o seu celular.
engoliu em seco várias vezes, e aquilo arranhou fisicamente, a saliva descendo como areia, mas ela conseguiu mover o braço para tatear o bolso de trás, e não sentiu nada. Tentou o outro e nada. Tentou colocar o braço de lado para sentir a bolsa e percebeu nada outra vez. Ela não entendeu. Olhou para o lado e não a viu. Se preparou para virar o pescoço para trás, mas Changmin grunhiu um:
— Não olhe pra trás! — ele ordenou de novo, e sentiria medo daquela voz nos dias normais. Os olhos dele focaram em um ponto distante dela. — Já achei.
Ele a soltou por um instante para ir atrás do aparelho jogado no chão, ao lado da bolsa, sabe-se lá em que momento aquilo tinha ido parar lá. Changmin o agarrou com pressa e voltou para perto de , um pouco ofegante, talvez um pouco suado também, não conseguia reparar nos detalhes. Seu coração ainda estava martelando, batendo na garganta, e a cabeça estava pior ainda.
— Sua senha — ele pediu, com mais delicadeza, talvez agora temendo que seu nervosismo a deixasse naquele estado catatônico de novo. virou o rosto lentamente, muito lentamente para o celular, e não conseguiu estender as mãos para pegá-lo. Não por falta de força física, mas por falta de força para ver. Encarar a sujeira de vômito nas mãos e se sentir tonta de novo, se sentir dentro daquela lembrança horrenda que era muito parecida com a cena que estava atrás dela agora, com a diferença que não estavam nos fundos de uma igreja.
Ela abriu a boca seca aos poucos.
— 4… 5… 9… 2…
Changmin desbloqueou o telefone e começou a digitar com rapidez, fazendo coisas que ela não viu, nem queria ver, e nem percebeu direito que ele estava se afastando, olhando para a porta, batendo os pés de nervosismo, talvez esperando quem tinha chamado, talvez aguardando outra coisa, não sei, não sei! o viu se retirando e sentiu aquela coisa ruim de novo, olhou para os dedos sujos de Soobin e sentiu o pulmão comprimindo, lutando para que ela o deixasse funcionar. Não havia vento na sala, mas ela sabia que o rosto estava molhado, sabia que ainda estava chorando, sabia que não conseguia olhar adiante ou acima porque suas pernas perderiam a força de novo, e ela cairia como ele, estaria no chão como ele, estaria no chão como sua mãe…
— Changmin… — ela soluçou com urgência, um pouco de desespero, sentindo o turbilhão de lágrimas aumentar ainda mais a intensidade, tudo aumentar. — Changmin.
Ele ouviu e se aproximou mais dela, os olhos ainda duros, mas agora balançados, quase preocupados.
— O que? O que foi?
— Eu não quero… — ela sufocou mais um grito, mais um choro, um nó apertado que não deixava sua voz sair. — Não quero ficar aqui… Por favor… Não quero, não quero que ele morra, por favor, Changmin, não deixa ele morrer, não deixa…
Ela teve a voz abafada pelo abraço que cobriu todo o seu rosto, e , desorientada, deixou-se afundar na camiseta dele, deixou que ele passasse o braço pelos seus ombros, deixou que ele a arrastasse para bem longe de Soobin e não parou de chorar por nenhum segundo.
E ela ainda estava chorando quando ouviu os passos no corredor, quando ouviu os gritos histéricos de Sooyoung e seus assistentes, e quando os homens de branco com macas começaram a entrar.



Jungkook era um ponto preto e brilhante na frente daquele fundo branco escorregando pelas paredes e pelo chão.
Seus olhos já estavam cansados de tanto flash, de tanto spray, de tantas mãos aleatórias deslizando pelos seus braços, peito e rosto, e aquela camisa de botões que foi aberta completamente fez a sessão demorar ainda mais. Ele nem sabia que horas eram porque o estúdio não tinha janelas, mas que se dane, parecia ser a hora perfeita pra um café e um cigarro. Como estava tentando parar, talvez precisasse de dois cafés, mesmo que isso fosse substituir um vício pelo outro, mas precisava de uma pausa, pelo amor de Deus.
Felix, o fotógrafo alemão contratado depois de uma reunião animada entre Jungjae e Joo Hyuk, estava sorrindo demais quando afastou a câmera do rosto, parecendo extremamente satisfeito, olhando para Jungkook como se ele fosse a Madonna.
— Você tá ótimo, Jungkook. Essa calça foi feita pra você! — ele suspirou ao reparar por mais tempo no caimento da cintura de Jungkook, que delineava o jeans de lavagem escura da Calvin Klein com perfeição, deixando a borda da cueca boxer à mostra, o que seria o suficiente para causar um rebuliço na internet.
É claro que Jungkook não estava se importando com esses detalhes. Quando as pessoas ouvissem a música e lissem aquela letra, seria um artifício para falatório bem mais eficiente do que seus músculos avantajados e seu visual sexy como nunca antes visto. E ele ainda não estava 100% pronto pra lidar com essa situação, mas agora não tinha mais volta.
Com um sorriso, ele se virou um pouco de lado e suspirou.
— Pausa pro café? — sugeriu, mas não parecia uma sugestão de verdade. Não parecia que estava perguntando. Soava mais como um aviso.
Felix imediatamente verificou as horas no relógio digital no pulso.
— Nossa, como pude esquecer? Começamos há 2 horas, precisamos de café — ele respondeu, passando a faixa da câmera pelo pescoço. — Pode pedir o que quiser, Jungkook. Voltamos em 20 minutos?
— Perfeito — ele respondeu e se afastou daquele fundo branco estático, caminhando até a mesa enorme longe dos painéis de luz e dos staffs loucos que poderiam querer ver até se o bico do seu sapato estava direito. Jungjae já estava lá, recostado na parede com seu terno de lã azul da Hugo Boss inseparável, esticando a mão para puxar um pãozinho atrás do outro de dentro de uma das milhares cestinhas de comida, bebericando uma cerveja em embalagem pequena.
Jungkook cruzou os braços e revirou os olhos.
— Eu devia demitir você qualquer dia desses — resmungou ele, pegando um pãozinho da cesta. Jungjae bateu as migalhas que pegaram na gravata.
— Você vai me chutar por aproveitar as suas regalias? Sabe que eu consegui essa sessão pra você, não sabe?
— Obrigado por fazer seu trabalho? — Disse, com ironia perplexa. — Precisa me deixar mais famoso, esqueceu? Cadê a Meg?
— Foi fumar lá fora. Ela não aguentou tanto tempo quanto você. Me passa a faca? — ele apontou para o meio da mesa enquanto tinha os olhos grudados na tela de um iPad, e Jungkook não precisava verificar para saber que, pelo menos, quando o homem decidia trabalhar, ele realmente era muito eficiente.
Jungkook passou a faca e pegou um copo de café.
— Cadê o meu telefone?
Jungjae apenas balançou uma mão aleatória para a bolsa em cima de outra mesa, e usou essa mesma mão para abrir o pote de geleia e enfiar um dos pães dentro, sem tirar os olhos da tela e de suas planilhas. Os ombros caídos de Jungjae denunciavam um cansaço e falta de sono, e seu rosto parecia um pouco sujo, com migalhas do pão grudando na barba por fazer e as olheiras estavam disfarçadas pelos seus óculos escuros até mesmo dentro de um ambiente fechado.
Ele parecia muito com um zé ninguém com problemas de alcoolismo e que não pagava pensão aos filhos, mas talvez era por isso que Jungkook gostava tanto dele. A aparência de quem teve um final de semana ruim todos os dias da semana escondiam todo seu brilhantismo e habilidades sociais que salvaram Jungkook desde que ele tinha 19 anos.
Daquela vez, o lançamento solo de seu cliente estava pegando todo o tempo disponível dele que poderia estar sendo usado em viagens às praias do Havaí ou curtindo boates subterrâneas em Bangkok, mas ele lidava bem com isso quando pensava na grana. Dinheiro era o único Deus de Kim Jungjae. E agenciar o idol mais famoso do mundo era a garantia de encher uma piscina até o peito com ele.
Sem perguntar porque raios ele simplesmente não pegava uma cadeira para se sentar enquanto mexia naquela coisa, Jungkook andou até a bolsa e puxou o zíper para pegar o celular.
— Por Deus, eles não tem vergonha na cara de oferecer só 150 milhões? — Jungjae resmungou, e sua voz tinha um tom genuíno de agravo. — Querem que você seja o embaixador de uma marca gigantesca, e só oferecem essa merreca? Isso não é nem ⅓ do que eles vão ganhar com as vendas em cima da sua imagem, não é absolutamente nada. Mas fica tranquilo que já estou marcando uma nova reunião com eles, e não vou–
— Espera — Jungkook o interrompeu quando o nome de Yoongi começou a piscar na tela. Jungkook atendeu, tomando um gole do café qualquer sem marca que vinha no copinho de papelão. — Alô?
Cacete! Finalmente você atendeu! — Yoongi falou alto do outro lado, tão alto que fez Jungkook dar um pequeno salto. — Onde você está, porra?
Ele estava usando aquele tom de voz de professor, aquela coisa brava que te colocaria de castigo no cantinho da sala caso errasse a próxima conta da tabuada. Jungkook não o via falar assim há anos.
— Eu tô no estúdio do Greg, em Hangang. Eu tinha algumas fotos promocionais, o que–
Jungkook… — ele soltou o ar com força, e repentinamente parecia mais calmo, mas ao mesmo tão tenso que todos sentidos de alerta de Jungkook ativaram. Ele pressentiu algo errado antes que ele dissesse. — falou com você?
— Falou o quê?
Você precisa vir pra agência agora. É sério. A
Uma pausa. Uma pausa gigantesca, pesada, inimiga do mundo.
Acho que ela precisa de você. E… a gente também, eu acho.
O tom de Yoongi era morto, sobrenaturalmente afastado da realidade. Jungkook largou o café. Ele mesmo ficou surpreso com a torrente de emoções que a visão de com qualquer tipo de problema que desse motivos para Yoongi falar daquele jeito lhe provocou. Ele não era atingido por nada assim há um tempo, nada tão incontrolável. Ele não se despediu, não esperou, não falou, não pensou, não fez nada. Sua mente apagou completamente naqueles minutos, e suas pernas já estavam se movendo por conta própria para a porta, seja de entrada ou saída, não importava, ele só precisava achar o estacionamento e entrar na Mercedes. Não sabia o que tinha pegado, não sabia o que estava segurando nas mãos. Jungkook simplesmente se foi.
E não olhou para trás nenhuma vez.



Não parecia ter nada de especialmente grave acontecendo quando Jungkook ultrapassou as portas giratórias da entrada, nem quando passou por todas as catracas possíveis do saguão, sendo observado por dezenas de pessoas não porque era uma celebridade com o rosto escancarado ali, mas porque ele estava correndo. Com uma camiseta com apenas três botões fechados. O peitoral exposto era algo que tirava a atenção de qualquer um, mas ele não passou de uma visão passageira, porque logo estava no elevador, e logo estava no corredor do setor de criação, virando a cabeça pra todos os lados em busca de .
A coisa estranha começou bem ali. Seguranças, uma infinidade deles, estavam espalhados pelos rodapés das paredes, alguns parados como estátuas, outros cochichando entre si, ou sussurrando coisas para um walkie-talkie moderno, falando tão rápido que ninguém além do ouvinte do outro lado seria capaz de entender. Jungkook puxou o celular e tentou ligar pra Yoongi, mas ele não estava atendendo. Os homens de preto o encaravam, mas não moviam um músculo para falar com ele, ou impedi-lo de colocar a cabeça para dentro das salas, mesmo que ele parecesse um tanto frenético demais. Não havia ninguém por ali, ninguém que parecia estar prestando atenção nele, e isso era, de alguma maneira arrogante, bem esquisito.
Prestes a desistir e perguntar a qualquer um por qualquer informação, uma mensagem de Yoongi chegou:

Yoongi: Vai pro 4º andar

Ele não pensou mais e partiu pro elevador mais próximo, onde dois seguranças formavam uma parede na frente das portas duplas. Quando ele se aproximou, os dois se afastaram para que o maknae passasse e Jungkook até poderia achar aquilo estranho e bizarro, porque fala sério, seguranças no elevador? Teve um ataque terrorista por aqui ou coisa assim?
Mas ele apenas acenou com a cabeça e entrou, apertando no botão para os andares acima. A última coisa que notou antes das portas se fecharem foi uma funcionária qualquer se aproximar do elevador e ser gentilmente impedida pelas duas colunas de músculos.

No próximo andar, Jungkook se viu inserido no pandemônio esmagador de pessoas, falatório, correria e soluços.
Ele estava tentando ligar pra sem parar, mas nenhuma chamada completava, o que era pista suficiente para que ele soubesse que alguma coisa estava fora do lugar. Uma preocupação irracional, maluca, subia pelas suas costelas como garras afiadas, um medo louco de algo grave ter acontecido que só se intensificou quando viu toda aquela gente entulhando o corredor, e ainda mais quando não viu ou percebeu nenhum rosto conhecido, e quando viu pessoas chorando ou quase isso, as faces de alguns trainees estampadas de medo, pessoas de branco andando pra lá e pra cá e uma fila de gente na lateral da outra parede, e tantas coisas, tantas coisas…
Foi muito complicado se embrenhar ali no meio, e ele notou que estava sendo observado, mas não importava. Jungkook tinha uma vaga ideia do que poderia estar fazendo naquele andar, marchando intencionalmente na direção das salas de dança, pretendendo gritar o nome dela se fosse preciso, ainda que tivesse um milhão de pessoas na frente.
Finalmente – finalmente! – ele avistou algo familiar naquele cenário: o cabelo preto escorrido e repartido no meio da garota de 1 metro e meio que Jungkook já considerava que conhecia. Ele aproximou-se dela num piscar de olhos.
— Yoona — Jungkook arfou, e a garota deu um pulo no lugar, enrijecendo os músculos; não pela surpresa de estar sendo abordada por Jeon Jungkook, mas porque sua cabeça estava em outro lugar, pensando em mil coisas que não fossem no presente. — Yoona, cadê a ? O que está acontecendo?
Yoona ficou parada e quieta por um tempo eterno de milissegundos, e seus olhos pareciam… confusos. Turvos. Ela levou um momento para reconhecer o rosto dele de verdade.
— Ai, meu Deus, como você chegou aqui? Eles não estão deixando ninguém subir pra cá.
— Por que não? O que é toda essa gente? Onde está a ? — ele gesticulou com mãos furiosas, sentindo o coração bater dentro da garganta, a cabeça prestes a rachar. Yoona olhou imediatamente para os lados, preocupada com os ouvidos alheios, porque o tom irrevogavelmente alterado de Jungkook tinha subido demais, e não era hora de mais nenhuma comoção no lugar.
Yoona engoliu em seco e se virou.
— Vem comigo.
Jungkook a seguiu sem pensar duas vezes, andando mais um pouco até virar no próximo corredor, longe daquele com as salas de dança, um corredor que estava mais vazio do que qualquer outra parte do prédio, mas ainda tinham pessoas. Especialmente, pessoas zanzando de um lado para o outro, e ele viu… aquilo eram enfermeiros? Um estetoscópio? Agulhas? Luvas de látex e um leve cheiro de hospital?
Um pavor irracional transpassou toda a medula espinhal de Jungkook, e a imagem de explodiu de novo, pulsou com o medo, com a dúvida, uma imaginação da mais terrível de que aquelas pessoas de branco poderiam ter algo a ver com ela.
Mas em um minuto, ele a viu.
De longe, ela já parecia um caco. Naquele imenso corredor largo, estava sentada em uma cadeira de plástico encostada na parede, os ombros caídos junto com a cabeça, as pernas fracas, a cabeça apoiada nas mãos, exalando algo tão profundo e ruim que ele sentiu de longe.
Havia uma mão apoiada em seu ombros, dedilhando seu cabelo, uma mão vinda de um corpo que estava de pé, mas Jungkook não olhou para corpo nenhum, não olhou para merda de pessoa nenhuma. “!”, ele arquejou com alívio por saber que era ela, e na mesma hora levantou o queixo e a cabeça, um pouco devagar do que de costume, e quando viu que era ele, conseguiu também se colocar em pé e, numa junção imediata e necessitada, Jungkook a puxou para perto em um abraço, guardou ela dentro dos seus braços, apertou nele para sentir que ela estava mesmo ali, para tirar aquelas imagens malucas da cabeça, deixou ela ali até que toda aquela adrenalina de preocupação que o atingiu desde Hangang evaporasse no ar.
, aturdida, um pouco chocada, sentiu tudo desaparecer instantaneamente. Não da forma ruim como tinha sido dentro da sala, mas da forma como só Jungkook era capaz de fazer. Da forma como ele tinha nascido para fazer, com ela e por ela. passou os braços por sua cintura, apertou suas costas e respirou o cheiro dele, um aroma de realidade, um que a fez sentir alívio pela primeira vez naquele dia, dentro daquela loucura.
E, assim, ela estava chorando de novo. Um tipo de choro engasgado, mais contido, muito feliz e ao mesmo tempo muito triste porque teria de responder as perguntas dele, contar tudo que viu, e o pior: tudo que sentiu.
Yoona viu o abraço intenso e o choro de nascendo no meio e imediatamente sentiu uma dor inexata no coração, uma que ela afastou imediatamente porque precisou avançar para tocar no braço de Jungkook, gesticulando com o queixo para que ele olhasse para trás, para todas as pessoas encarando, pessoas que ela também não dava a mínima, mas que poderiam dizer coisas que prejudicariam .
Jungkook se afastou lentamente de , e mesmo tendo avistado alguns funcionários e até conhecidos desentendidos no outro lado, não soltou o ombro dela de imediato. Usou a outra mão para pegar na dela por quase um minuto inteiro e permaneceu ali, de frente para uma imagem tão desesperadora e angustiante que fez seu coração quebrar em mil pedaços: as lágrimas de descendo dos olhos já inchados, o cabelo um pouco desarrumado, e o estado um pouco amarfanhado das roupas…
puxou sua mão de volta, dando um passo para trás.
— Não– Não devia ter feito isso — ela falou baixo, somente para ele escutar, tentando secar as lágrimas com as costas da mão, mas não tinha muito sucesso nisso. Elas logo caíam de novo, uma atrás da outra. — Eu tô um caco, eu estou– O cheiro…
Jungkook vincou a testa, sem entender nada. De fato, havia um cheiro estranho no ar, um aroma forte que ele não sabia explicar, e quando finalmente baixou os olhos para as roupas de , entendeu que o odor estava vindo dela. E quando ela reparou nisso, se sentiu ainda pior, quis que ele não a tocasse mais, que se afastasse porque ela estava suja e ele não, e esse estado parecia ser ainda mais mental do que físico.
Jungkook estendeu o braço e ela o afastou com delicadeza, mas afastou. Ele trincou os dentes e olhou para os lados, vendo Yoona agora encarando e todo o seu torpor com uma certa compaixão e logo depois, encostado na parede ao lado da cadeira dela… Ji Changmin.
Jungkook não quis saber o que ele estava fazendo ali, e muito menos olhou demais para aquele rosto fechado e explicitamente desgostoso por vê-lo. Que se foda o que aquele idiota achava, Jungkook ainda estava se sentindo de fora de tudo, ainda mais desesperado por aquelas manchas e o cheiro de .
— O que houve? — ele baixou o tom de voz e tentou tocá-la de novo, conseguindo alcançar um dedo sem força. não o respondeu. — Pelo amor de Deus, , eu preciso saber. Por que você está assim? Por que está todo mundo aqui? Por que…
— Soobin teve uma overdose.
Yoona cortou as perguntas sem rumo de Jungkook, roubando todas as próximas palavras dele. A mão que segurava a de se soltou automaticamente pelo choque. Ela parecia que começaria a chorar de novo, só de ouvir o fato outra vez, só de se lembrar. Jungkook sentiu como se tivesse pulado de cabeça em uma banheira com gelo.
— Quê? — De uma hora para outra, ele não tinha mais voz. Não tinha qualquer pensamento.
Yoona manteve a postura, mas a cor pálida de seu rosto mostrava que ainda estava presa naquela informação, ainda estava tentando entender o que havia acontecido, mas um senso interno fazia-a se obrigar a ficar firme em decorrência de todo o mal estar que já estava sentindo.
A garota engoliu em seco e falou:
— Ele já estava no chão na sala de dança quando e Changmin o encontraram. Ele estava… tendo convulsões e quase detonando a própria língua, mas Changmin o ajudou. Ele já foi levado pelos paramédicos, e encontraram 4 frascos de Adderal na mochila dele. Também tinha Vicodin e um outro analgésico. Ainda não sabem qual deles causou isso, ou se foram todos de uma vez — Yoona baixou a cabeça, talvez se tocando finalmente de que aquele pesadelo estava acontecendo, de que um cara tão jovem e cheio de vida como Soobin tinha mesmo feito aquilo, tinha mesmo passado por aquilo, bem embaixo de seus narizes.
intensificou o choro, mesmo que fizesse isso de forma ainda muito baixa. Jungkook ainda estava sem palavra nenhuma para verbalizar, mas virou a cabeça para , desejando ainda mais abraçá-la depois de imaginar aquilo.
Ela levantou a cabeça para ele, e estava pedindo um abraço com todas as forças, desejando que ele a levasse embora dali, desejando voltar no tempo e nunca ter entrado naquela sala.
— Não consegui fazer nada — ela disse em um engasgo, a voz quase se perdendo, soando como vento. — Não consegui ajudar. Não consegui…
— Isso é mentira — Changmin se manifestou pela primeira vez em horas, o tempo recorde em que conseguiu ficar calado sobre tudo. Mesmo com todas as pessoas chegando, as perguntas acontecendo, os choros, berros e providências sendo tomadas, transformando aquele corredor tranquilo em um caos completo, o rapaz se manteve quieto como um túmulo e majoritariamente perto de , tão perto quanto uma sombra, e mesmo que Sooyoung ou Yoona, ou algum paramédico o dissesse para tomar uma água ou se sentar, nada foi capaz de convencê-lo a se afastar míseros 2 metros dela. E estava abalada demais para reparar ou sequer se importar com isso. — Se não o tivesse virado de lado, o garoto teria sufocado em 20 segundos. Ele teria soltado tudo para fora em menos de 10, mas eu quis adiantar o processo. É por isso que ela está assim. Foi uma merda.
O “assim” de Changmin soou como referência à roupa de , manchada e fedida, e não ao estado explicitamente abalado dela, e um certo toque de desprezo por isso resvalou sem querer pela sua voz, mas ninguém reparou. Ou, pelo menos, Jungkook não foi capaz de reparar. Não era o que realmente importava naquele momento; o que importava era e seu sofrimento tão agudo que passava para ele. Toda aquela agonia e tristeza que ele estava sentindo na própria pele. Tantas e tantas coisas ruins que ele não estava sabendo compactar.
Ele olhou para Changmin por um tempo e voltou a pegar na mão de , sem absolutamente nada de mais inteligente pra dizer que não fosse:
— Vou tirar você daqui.
E ele estava pronto para seguir com esse plano, para pegar na mão dela e costurar todas aquelas pessoas como em um filme de romance irreal, colocá-la no seu carro e levá-la embora para a sua casa, deixando claro que ali era seu espaço livre para falar e chorar, que ela podia contar com ele, que não estava sozinha, não estava sozinha de jeito nenhum!
Isso parecia simples. Mas Yoona balançou a cabeça em negativa, gesticulando também com as mãos.
— Você não pode sair agora, Jungkook — ela disse meio encabulada, um pouco chocada por ter que falar com ele de um jeito tão informal. — Sooyoung pirou um pouco e exigiu exames toxicológicos em todos os artistas da empresa, tanto trainees quanto membros mais velhos como você. Quem quer que tenha te avisado pra vir, já deve estar na sala com os médicos. Jin e Hoseok foram os últimos a irem.
Jungkook bufou, bagunçando um pouco do cabelo arrumado, tensionando os músculos no aperto de mão de . Não estava nenhum pouco preocupado com exame nenhum. Talvez, muito talvez, se isso tivesse acontecido há 3 meses atrás e ele tivesse acabado de sair do apartamento de Mingyu, poderia se preocupar e muito, mesmo que, em teoria, não aconteceria nada com ele. Mas Sooyoung devia estar uma pilha de nervos, completamente fora de si para fazer isso naquela hora.
— Ela não podia esperar um pouco? Não acabaram de tirar o Soobin daqui? — ele semicerrou os olhos e Yoona abaixou a cabeça, contorcendo os lábios para os próprios pés para travar a língua na boca, uma língua que concordaria com Jungkook, que estava guardando aquela mesma reclamação. É, isso mesmo, ele tinha acabado de sair dali em cima de uma maca, com a boca roxa e o rosto sujo, mas ela diz que é preciso focarem no mundo real e era inviável o aparecimento de anfetaminas proibidas em qualquer canto da empresa.
De uma forma absurda, a diretora executiva parecia estar agindo como se Soobin tivesse apontado uma arma para ela e ameaçado amarrá-la. Como se estivesse zangada com ele.
Yoona não sabia explicar o bolo horrível que sentia no estômago por lembrar disso, e jamais conseguiria externar isso ali, na frente de Jungkook ou qualquer outra pessoa.
— Vai. Você precisa ir — conseguiu dizer em sua voz fraca, inclinando a cabeça para o corredor ao lado. — Os outros devem estar te esperando, e os meninos do TXT também. Eles devem estar arrasados — ela engoliu mais um choro.
— Não vou deixar você aqui assim — nem amarrado, ele queria gritar. Jungkook quis desesperadamente negar aquilo, se recusar. balançou a cabeça em negação.
— Mas você precisa. Todos eles vão fazer, e se te deixaram passar é porque sabiam que você precisava vir aqui. Você tem que ir, Jungkook.
Ele negaria de novo, mas a voz arrastada e estupidamente calada de Changmin veio à tona:
— Não vai me dizer que você tá com medo de uma agulha, Jeon? — provocou, com um sorriso fora do padrão, um que era venenoso sem disfarce. — Ou tem medo do seu resultado?
e Yoona viraram a cabeça para ele em choque explícito. Jungkook sentiu que poderia dominá-lo com um braço só. Sentiu que poderia agarrar a nuca dele e bater a cabeça na parede até que ele perdesse todos os dentes da frente e desistisse de sorrir pelo resto da vida. Sentiu que poderia pegar seus dois braços e amarrar atrás do pescoço como um laço. Imaginou tantos e tantos golpes para aplicar naquele idiota que o fariam ser expulso da empresa imediatamente, e ir parar na cadeia mais próxima, não importava quantos milhões tinha arrecadado para a casa.
No entanto, por incrível que pareça, Jungkook não reagiu. Nem sequer fez uma cara feia. Não iria ficar chocado com o veneno de Changmin porque era exatamente o que esperava dele, diferente de e Yoona e todas as outras pessoas que ele enganava.
— Se eu estivesse com um monte de Alprazolam no meu sangue agora, acredita em mim, você não estaria mais aí de pé — ele se virou para Yoona, falando gentilmente. — Você pode levar ela pra casa, por favor?
Ela nem precisou de um segundo para assentir.
— Claro.
— Vou correndo pra sua casa assim que terminar — ele se virou para , sem a necessidade de diminuir o tom de voz ou disfarçar alguma coisa. Changmin segurou um grunhido na garganta, mas nem tanto assim. assentiu para o namorado, sentindo um amor descomunal por ele no momento, reconhecendo que a coragem estava começando a caminhar para o seu coração e, na hora certa, ela estaria bem para contá-lo. Para ele e só para ele. Jungkook era a única pessoa naquele momento que seria capaz de entendê-la, de acolhê-la, o que o tornava a única pessoa de que ela precisava.
Ele se inclinou para beijar sua testa e deu uma última olhada para Changmin antes de seguir seu caminho, um olhar que trouxe aquele mesmo dia do escritório para Changmin, o fatídico dia em que aquele cara tinha agarrado seu colarinho e se colocado no topo, acima dele, pronto para desfigurar seu nariz com apenas um soco.
O ódio vivo de Changmin formigou em toda a extensão de seu corpo até ele ter coragem de falar de novo:
— Vou acompanhar vocês até o carro — disse ele, e não discutiu. Deixou Yoona passar um braço pelo seu ombro e conduzi-la para a outra porta oposta à que Jungkook havia entrado, procurando deixar aquele lugar sem ser vista, sem ser perguntada, sem mais nenhum olhar ou plateia, por mais que Sooyoung tenha dito que deveriam conversar. Que ela deveria tomar um chá e se acalmar.
poderia se acalmar a partir do momento em que deixasse aquele lugar.
Antes de passar pelo batente da porta, Changmin tentou pegar na mão de mais uma vez, ajudando-a a endireitar o corpo. Ela puxou e a enfiou no próprio bolso, sem pensar direito no que estava fazendo, mas achando necessário passar o recado.
E Changmin não sorriu mais.



só percebeu que estava em Seongdong-gu, e especificamente na frente de seu prédio quando Yoona tocou seu ombro. Foi um gesto sutil, parecido com o vento, mas que serviu para despertar de sua concha e fazê-la, pelo menos, olhar para a rua.
300 coisas diferentes se passaram pela cabeça de Yoona, todas que soariam desesperadas demais, aflitas se fossem ditas em voz alta, então ela apenas manteve todos os questionamentos dentro de si. não precisava ser questionada sobre suas reações, e muito menos precisava ouvir mais um “vai ficar tudo bem”, que tinha sido dito e repetido tantas vezes no centro daquela confusão que Yoona não se via capaz de proliferar mais ainda aquela mentira. As coisas poderiam melhorar? Claro que sim, mas nem de longe de uma forma tão imediata. Agora, eles olhariam para Soobin como se o tivessem encontrado no meio de um círculo, cheio de pontos de pentagrama, fazendo algo escandalosamente grotesco. Como se ele estivesse apto a carregar o título de coitadinho apenas pelo tempo que passasse no hospital; depois disso, seu estigma estaria formado, e ele seria visto como uma besta encarnada por todos os cantos, uma presença desconfortável, motivo suficiente para que ninguém quisesse olhá-lo nos olhos. Onde já se viu, tentar um suicídio bem ali, onde as pessoas estavam tentando trabalhar? Não poderia esperar e fazer isso em casa? Eles tinham que ter visto isso? Que insensibilidade da parte dele.
— Você pegou tudo? — Yoona perguntou gentilmente, e assentiu sem nem mesmo verificar a bolsa.
— Changmin pegou pra mim — respondeu, como se aquele fosse motivo mais do que suficiente para fazê-la descansar. Changmin resolveu, é tudo que preciso saber. Eu confio nele, e depois de hoje, acho que confio ainda mais.
Yoona não fazia ideia do que realmente tinha acontecido naquela sala nos primeiros minutos em que encontraram Soobin, mas teve um pequeno panorama depois de ver o estado de . Apenas ela estava sendo capaz de emitir alguma coisa sobre toda aquela loucura, porque Changmin… Ah, só Deus sabia o que Changmin estava pensando. O que pensou ou fez na hora. Seu maxilar esteve travado o tempo inteiro, na entrada e na saída daquela sala. Ele mal se mexia, a não ser para tocar nos ombros de e acariciar suas costas, lembrando-a de que ele estava ali. Seus olhos só pegavam as paredes e, por um instante muito louco, Yoona pareceu captar um brilho de fúria todas as vezes que ameaçava chorar de novo, ou simplesmente se levantar e sair de perto dele.
Era óbvio que o cara tinha sido um tipo de herói, mas ele parecia o ser humano mais indiferente da Terra. Yoona achou que ele não parecia tão apavorado quanto se poderia esperar de uma pessoa que tinha acabado de enfiar o dedo na garganta de outro e salvar sua vida. Na verdade, se fosse pensar demais, Changmin parecia irritado por ter sido obrigado a fazer o que fez. Por ter que sujar suas mãos, literalmente, e por ter que tirar de toda aquela nojeira, como se o fato de ela não ter sido capaz de se levantar sozinha fosse a coisa mais patética e desprezível que ele já viu.
Mas não, Yoona não sustentaria esse tipo de afirmação. Changmin havia salvado a vida de Soobin e ponto. Tinha ajudado a voltar a si e ponto. Ele era um milagre em forma de gente que estava no lugar certo e na hora certa, e não um ser humano diabólico que escondia coisas atrás de um sorriso arrojado.
— Vou entrar — colocou a mão na maçaneta do Mustang, e antes que puxasse a trava, se virou para Yoona e conseguiu esboçar um mísero sorrisinho, que se parecia mais com a imitação de um. — Muito obrigada pela carona. Por tudo, na verdade.
Yoona suspirou e puxou os ombros de para um abraço, mesmo que ela fosse reclamar de ainda estar cheirando mal. Não importava. Ela pensou em dizer várias coisas novamente, mas apenas reforçou:
— Isso vai passar — e disse em seu ouvido: — Já está tudo bem. Você não está mais lá e não está vendo mais aquilo. Já passou — ela se afastou de , e torceu para que ela não chorasse mais. — Agora entra, toma um banho e deixa o seu namorado cuidar de você, tudo bem?
conseguiu abrir um sorriso mais verdadeiro, ainda muito pequeno, mas já bastava para Yoona.
— Eu vou deixar — e abriu a boca para dizer algo mais, para completar com uma sentença que provavelmente já estava pronta para falar para Yoona, mas se sentiu completamente sem forças para isso. Inexplicavelmente sem força. Só conseguia pensar em banho, um longo e demorado banho, um casulo de fumaça quente onde nenhuma das coisas ruins que ainda estava sentindo sairia mais para fora, onde todas aquelas lembranças tenebrosas poderiam ser sufocadas de novo.
Yoona balançou a cabeça e finalmente deixou o carro, agarrando a bolsa nos braços sem colocá-la pelos ombros, cruzando o caminho inteiro para a entrada do prédio sem olhar para os lados, sentindo aquele bolo no estômago de antes finalmente ganhando força, ganhando vida, aumentando de tamanho e exigindo sair, exigindo que ela os encarasse de novo.
Por que eu? Por que preciso ser tão amaldiçoada e me lembrar disso? Por que precisei passar por isso?, ela se perguntou com ainda mais intensidade, o cérebro imitando um disco arranhado. Por que eu eu eu eu eu? Por que não alguém horrível?
Ao entrar no apartamento, mal trancou a porta e correu para o banheiro, flexionou os braços na privada e deixou tudo sair.


"Você está ficando cínica e assim não dá
Eu jogaria o otimismo de volta na visão expandida
Meu bem, se eu fosse você."

🖤🎤 There'd Better Be a Mirrorball


não quis saber porque ele estava com aquela mesma roupa de mais cedo. Ou porque estava com o mesmo cabelo arrumado, ainda com uns resquícios de fixador. Nem porque estava tão atrasado do horário que disse que ia chegar. Não. Ela só queria saber do cheiro, da pele, do abraço e do beijo dele. Só isso importava naquele momento, no exato instante em que ele passou pelo batente da porta do 402.
Jungkook fechou os olhos por um mero segundo ao sentir os braços dela ao redor de si, famintos pelo colo dele, e não aquela coisa fraca e quase despencando que o tinha abraçado mais cedo na agência. Ele ficou aliviado também pelo cheiro do shampoo no cabelo molhado de , pela pele macia do óleo de banho, pelas roupas limpas que afastavam a imagem dela naquele corredor, e todo esse alívio era mais por ela, por saber que ela estava sentindo a mesma coisa ao se ver livre de todos os vestígios daquela merda de situação.
— Você jantou? — perguntou ele, avançando mais para dentro de casa sem se separar dela, fechando a porta com um braço só. apenas negou com a cabeça colada no peito dele. — Vou preparar alguma coisa pra você.
Só então ela notou o braço dele cheio de sacolas de mercado qualquer, e algo dentro de uma delas estava gelado, suando pelo plástico.
— Tudo bem — respondeu com a voz fraca e se afastou para que ele agora andasse livremente pela casa. Foi uma atitude dolorosa, porque ela preferia um milhão de vezes mais ficar abraçada com ele do que comer alguma coisa. Não havia nada que pudesse bater no seu estômago naquela hora que não corresse o risco de ser embrulhado zilhões de vezes como papel de presente e ser catapultado para fora, mas conhecia Jungkook. Ele insistiria nisso, e ela não queria deixá-lo mais preocupado. Imaginava como ele estaria agora, e sabia que a “pergunta” vinha, mas não estava mais com medo. Só não estava disposta a tomar a iniciativa de começar.
Antes de sair, ele a puxou para o sofá em silêncio, beijou sua boca e depois sua testa, e depois puxou um pacote de trufas recheadas de dentro de uma das sacolas, colocando no colo de . Só depois seguiu para a cozinha.
teve uma vontade aguda de chorar. Não de tristeza dessa vez, mas sim porque estava se sentindo incalculadamente amparada e não precisou abrir a boca pra isso. Teve vontade de chorar porque, no fundo, queria gritar: estou tão, tão feliz por você estar aqui. O dia foi uma merda, o mundo todo hoje parece uma merda, então tô um caco. Não quero conversar! Não quero te contar, mas por favor, não vai embora, não vai embora.
Jungkook jamais iria embora, mas provavelmente tentaria conversar sobre o assunto. E nos próximos 35 minutos de silêncio total, onde se sentia toneladas de vezes mais leve por saber que ele estava na cozinha, há menos de 6 metros dela, cortando coisas e cozinhando seja lá o que fosse, dando o espaço que ela precisava para pensar ou chorar ou refletir ou simplesmente vagar pelo ócio, ela sabia que ele estava matutando a primeira pergunta. E ela precisaria matutar a primeira resposta.
Não sabia o que fazer com aquela história se revirando no seu cérebro, as lembranças que pensava estarem mortas e enterradas, de repente colocando cabeça e mãos pra fora do túmulo, analogicamente como uma horda de vampiros, múmias e todos os monstros que as histórias já inventaram.
Mas desde que Jeon Jungkook era seu por inteiro e seu coração já não batia apenas no próprio peito, mas nas mãos dele também, não achava justo esconder toda aquela merda que passava em sua cabeça agora. Se ele não perguntasse, ótimo, ela não diria uma palavra. Não hoje, pelo menos. Mas se ele perguntasse…
Ela parou de pensar nisso quando ele chegou com um bowl que saía fumaça, cheirando a algo muito bom com uma mistura de temperos que ainda não sabia identificar, e colocou no colo dela, pegando o pacote de trufas que ela não tinha aberto e se sentando ao lado, finalmente olhando para o seu rosto.
Ele viu o que esperava: o inchaço dos olhos e toda a expressão abatida que não saía tão facilmente com um banho. olhou pra baixo e reconheceu a mesma sopa que ele fez para a sua ressaca há tantas eras de semanas atrás. Agradeceu internamente por não ter que empurrar uma comida mais pesada. Olhou pra ele e conseguiu esboçar um mísero sorriso de agradecimento, ou pelo menos fingiu um muito bem. Aproveitou pra reparar um pouco melhor na roupa que ele estava usando: o jeans escuro, as botas de bico fino, a camisa de manga solta até os cotovelos com os mesmos muitos botões abertos e a correntinha fina de prata que reluzia na sua pele. Se ela não estivesse com a mente tão pesada e distraída, certamente teria pulado em cima dele sem pensar duas vezes.
— Você tá lindo nessa roupa — ela comentou, remexendo na sopa cheirosa, demonstrando que iria tentar comer. Jungkook deu um sorriso de canto e puxou a perna dela para cima, fazendo girar no sofá para ficar de frente para ele.
— É exclusiva pra mim. Parece que me querem como embaixador — ele deslizou os dedos para começar uma massagem lenta no seu pé. — Acho que só por isso concordaram em continuar o ensaio amanhã. Jungjae está analisando as propostas, mas pode acontecer. Nunca pensei que fosse gostar do estilo denim, mas acho que fico bem de azul.
sorriu com um pouco mais de força e tomou um pouco da sopa. Estava deliciosa, como quase tudo que Jungkook fazia, e a vontade de chorar veio de novo. Pelo cuidado, pelo desejo quase desesperado de que ele não fosse embora naquele dia. Não naquele dia, porque ela não fazia ideia do que faria com o fato de ter que ficar sozinha com os fantasmas de sua família de novo.
Jungkook notou os lábios dela tremendo levemente, a pontinha do nariz ficando mais vermelha.
— Soobin vai ficar bem — ele disse na frente, procurando tirar um pouco daquela expressão cabisbaixa de . — Conversei com a Sooyoung e os outros agentes sobre o estado dele, e ele já está estável. Parece que o Changmin agiu na hora certa e do jeito certo também, se não, talvez o pior teria acontecido — Jungkook sentiu o cascalho de desgosto na boca, mas passou rápido. Naquele dia especificamente, não odiaria Changmin. Pensaria com racionalidade que ele tinha um lado bom e ruim como qualquer ser humano. Podia estar sendo um merda com , mas ainda faria de tudo para ajudar alguém que precisava de ajuda.
sentiu o frio descer na espinha com a imagem vívida dos olhos desfocados e quase saindo desta Terra de Soobin naquele piso, e tudo o mais que aquilo poderia significar. Morte, morte, morte. Nunca mais despertar. Sair fora de vez do combate da vida. Tantas ideias e denominações que a davam uma espécie de pânico estapafúrdio, uma ansiedade sem igual.
Como esperado, o estômago embrulhou e ela precisou parar de comer.
— Foi horrível — começou a falar. Não havia saída. Precisava salvar o resto de sua sanidade antes que explodisse como daquela vez. Não podia mais entulhar nada dentro dela, não tinha mais espaço pra isso. — Foi tão… Assustador. Jungkook, foi a cena mais assustadora da minha vida.
Ela fez uma careta de choro, e as lágrimas logo vingariam. Ele imediatamente chegou mais perto, afagando sua bochecha.
— Ei, eu sei, eu sei. Tenho certeza absoluta que foi, e eu sinto muito por você ter que ver aquilo, . Sinto muito mesmo — ele frisou a palavra porque já estava guardando aquilo há tempo demais. Eu sinto muito mesmo. Era sincero, desesperadamente honesto. Ele negociaria com o tempo e pediria para estar no lugar dela para ver aquilo, ou se não, estar no lugar de Changmin porque logicamente faria a mesma coisa por Soobin. Faria a mesma coisa por qualquer um, e o fato de ter passado por aquilo sem conseguir se mexer o enchia de agonia. — Se for te fazer melhor, eu falei com Beom e Yeonjun, e eles me garantiram que Soobin não estava tentando um suicídio. Mesmo que tenha acontecido isso, conheço aquele cara desde que ele era trainee e não consigo acreditar que ele faria uma coisa dessas. Eles acham que foi pela sobrecarga de trabalho, ou pelos comentários da internet, ou… — Jungkook sentiu a garganta fechar, devido a um sentimento muito parecido com raiva. Com frustração. — Ou por tudo isso junto. E duvido que ele tenha recebido algum apoio psicológico da empresa.
— Achei que ele estava indo ao psicólogo — já tinha ouvido uma história assim. Trabalhar de perto com os meninos a garantia informações desse tipo. Jungkook assentiu.
— Estava. Quero dizer… Beom me disse que Sooyoung andava marcando os ensaios justo nos horários das sessões dele. E que parecia fazer questão disso, como se fosse de propósito.
— Ah, meu Deus… — empalideceu, ao mesmo tempo em que ficou mais confusa do que nunca. Jungkook não parecia tão chocado assim; talvez já tivesse seu momento quando ficou sabendo daquilo mais cedo, ou simplesmente nada mais dos bastidores de uma grande agência era capaz de surpreendê-lo mais.
— Ele me disse pra não contar pra ninguém, mas não sei o que fazer com essa informação, . Fiquei com tanta raiva, perplexo até, principalmente com o que ele disse depois.
— O que ele disse? — Ela nem sabia se queria mesmo ouvir, mas Jungkook parecia precisar falar. Precisar, assim como ela.
Jungkook não respondeu imediatamente. Algo na sua expressão mostrava um explícito desgosto em fazê-lo. Como se alguém tivesse sacado uma arma bem no seu nariz há algumas horas atrás e ele ainda estivesse tentando digerir isso.
— Que Soobin foi questioná-la sobre isso, e ela respondeu que– Argh, que merda — ele engoliu em seco. — Respondeu que nem eu e nenhum dos outros do BTS precisou disso no início e “veja só onde estão hoje”.
A voz dele saiu pesada e sem vida, junções de coisas que eram malévolas demais, que ele gostaria de não escutar ou pegar de volta o momento em que elas não aconteceram. tremeu a mão que segurava o bowl, o ar lhe faltando na garganta.
— Não acredito.
— Eu sim. Infelizmente, eu acredito.
— Isso é muito grave, Jungkook — é impossível de tão grave, ela teve vontade de gritar. — Não posso acreditar que Sooyoung faria ou falaria algo assim. Sei que ela é rígida e cobra muito das pessoas, mas querer impedir sessões de terapia…
— Estamos na Coreia do Sul, — retrucou ele, com a voz amassada, irritada, frustrada. — As pessoas não gostam de terapia. Não gostam de psicólogos e não acham que eles são necessários ou são médicos pra curar alguma coisa. A saúde mental nesse lugar tem um estigma fodido que mata um monte de gente todos os anos. Ainda são pouquíssimas empresas que oferecem essa regalia, mas a maioria não passa de fachada, pra viver de aparências pro público ocidental. Do lado de dentro a coisa é bem diferente, e Soobin é só mais uma prova disso. Pegaria muito mal alguém como ele, eu ou os outros começar a mostrar que tem problemas. Que somos alguma coisa parecida com pessoas. Isso é uma droga. Achei que nós… — ele parou, bufando naquele espaço, agora usando as duas mãos para bagunçar o rosto todo, decepcionado até os ossos. — Achei que o nosso sucesso serviria de alguma coisa. Achei que pudéssemos usar nossos nomes e influência pra trazer algumas questões à tona, que pudéssemos mudar alguma coisa, que estivéssemos aqui pra impedir que o que aconteceu com Sulli, Jonghyun e outros nomes acontecesse de novo.
Jungkook respirou fundo de novo e notou o brilho lapidado nos olhos de alguém que estava se contendo, desamarrando algumas palavras aos poucos, e ela nunca o tinha visto daquele jeito. Bravo, claro, mas com outros motivos, um que não estivesse exclusivamente ligado a ele, mas a outras pessoas que ele gostava.
E foi um momento sincero. Tão sincero que ela se sentiu ainda mais compelida e conectada com ele, propensa a abrir o coração.
— Eu… não esperava por isso — ela tentou, largando a sopa na mesinha de centro. — Ver o Soobin daquele jeito já foi tão… — ela ameaçou repetir a careta de choro, mas não estava mais se importando. — Foi horrível. Não consigo pensar que pode ter outros como ele nesse exato momento comprando anfetaminas por aí porque estão sendo obrigados a lidar com as coisas sozinhos, por não conseguirem–
Jungkook a puxou para perto quando ela começou a chorar pra valer. afundou o rosto no ombro dele, sendo invadida por uma tristeza que já quase não reconhecia, sentimento que não fazia mais parte de seu sistema há um tempo, mas depois de tudo aquilo… O que mais poderia estar sentindo?
— Eu sei como é, . Você não teve culpa de nada, você fez o seu melhor. Ele vai…
— Não. Você não sabe — ergueu o corpo para encará-lo, prensando os lábios que ainda tremiam um pouco. — Você não sabe como é. Ou como foi. Não sabe porque eu travei completamente. Porque tudo aquilo me trouxe coisas, coisas que eu achei que tinha esquecido, que eu deveria ter esquecido, pelo amor de Deus.
Ela colocou as duas mãos na cabeça, em um estado bruto de desespero. Jungkook vincou a testa e se ajeitou no sofá, agarrando um dos pulsos dela.
— Espera, do que você tá falando? Do que você se lembrou?
— Da minha mãe. E de quando ela– Ela–
não conseguia completar a frase. A memória agora era tão viva que parecia recente demais, parecia pertencer a horas atrás, e não os anos que pertencia de fato. Era uma porta que ela não pensaria duas vezes em fugir, se afastar para não abri-la, sabendo o que encontraria caso arriscasse: a culpa. A agonia. O martírio. Aquele comichão na maçã do rosto, o mesmo lugar que o ferro a pegou.
Jungkook engoliu em seco e não quis imaginar.
— Tudo bem, não precisa falar — disse ele, mergulhando naquele desespero dos olhos marejados dela. Ele estendeu a mão para acalmá-la, mas ela negou com a cabeça, fungando nervosamente.
— Não, eu preciso. Eu preciso falar. Preciso tirar isso de dentro de mim — ela apertou a boca só um pouquinho, e secou o que tinha de lágrimas. — Preciso porque ignorei essa época completamente, pensando que desse jeito ela fosse desaparecer, mas– Depois que meu pai morreu, minha mãe ficou desolada. E aí, quando meu padrasto apareceu na nossa vida, eu raramente me lembrava do fato de que minha mãe, bem… ela pode ter mesmo amado meu pai algum dia. Na verdade, acho que ela nunca amou ninguém como ele, e tudo que teve com Antônio depois foi apenas… uma enorme tentativa de entretenimento. De esquecer que ela já foi feliz e que provavelmente jamais seria de novo. Ou era o que ela achava. Era o tipo de pessoa que acreditava que amor só acontece uma vez na vida, e que quase sempre acaba em tragédia. Acho que por isso, por mais louco que pareça, ela se sentia um pouco aliviada por Antônio ser do jeito que era. Ficava aliviada por ele não ser igual ao papai, assim ela não precisava amá-lo de verdade. Só precisava esquecer, ser outra pessoa. Mas ela já estava sendo, antes mesmo dele — disse com um muxoxo, um chilreio de choro que não se completou.
“A gente morava numa cidadezinha no interior da Bahia, e eu não vou te dar detalhes sobre ela agora, mas por maiores defeitos e falta de saneamento básico que tivesse, ainda era um lugar bom pra se morar. Não era por causa da nossa casa, ou da escola, ou dos jardins, mas porque meus pais estavam juntos, eram apenas Agda e Renato, casados há 7 anos e morando felizes em um lugar onde as cigarras cantavam à noite, onde não era preciso ir ao mercado pra comprar frutas e armas de fogo eram coisas da televisão. Minha mãe costurava roupas para as meninas do bairro e, quando soube que estava grávida, meu pai registrou todos os meses de gestação dela. Da primeira à última semana. Eram as melhores fotos que ele guardava, as suas favoritas. Tudo que era relacionado a mim ou ela, eram seu tesouro. Até quando peguei uma das suas câmeras e joguei pra lá e pra cá quando tinha 3 anos ele amou, e registrou. Pouquíssimas pessoas eram como ele. Creio que todo mundo que o conheceu se sentiu amado de uma forma especial.”
Ela respirou fundo de novo, e deixou Jungkook tocar sua perna, deixou ele chegar mais perto.
— A gente ficou arrasada, Jungkook. Eu nem posso– Eu mal me lembro de como fiquei, porque sempre sentia, de alguma forma, que ela tinha ficado pior do que eu. E eu já sentia que tinha perdido meu rumo, meu pilar, minha segurança na vida. Mas me lembrava das palavras dele sempre, me apegava ainda mais à memória boa que ele era pra mim, mas Agda, ela… Ela enlouqueceu. Jogou sua sanidade no lixo. Mesmo sem a bebida, ela parecia alguém que acabaria atirando em si mesma a qualquer momento. E isso me deixava apavorada, mas não pelos motivos que se espera, porque eu não entendia o que estava acontecendo. Eu só tinha 11 anos. Não entendia porque ela não sentia ainda mais vontade de viver e honrar o papai do que a vontade de morrer. De não se levantar da cama. Eu não entendia.
“Eu não fazia ideia do que a depressão podia fazer com uma pessoa naquela época. Não conseguia pensar em um nome para aquilo, só sabia que minha mãe estava muito mal e desconfiava que ela precisava de um médico, mas eu também não sabia o nome desse médico. Achava que um médico do coração resolveria. Ela devia estar sentindo dor lá, e se fosse eu, correria atrás de um na mesma hora porque tinha aprendido com meu pai que era melhor prevenir do que remediar, em tudo na vida. Mas ela não melhorava, e as contas estavam chegando, e a comida estava acabando, e visitas de homens do banco chegavam e iam embora enquanto minha mãe dormia, e chorava, e então dormia mais um pouco até que só o seu corpo estivesse na casa.
“Foi então que um dia ela entrou no meu quarto e disse que íamos à igreja. Agda nunca foi religiosa e acho que na hora me senti meio decepcionada com o destino. Não tínhamos comida. Ela devia estar dizendo que íamos a um supermercado, ou para casa de um parente distante que ela se lembrou de ter, ou para uma lanchonete, ou qualquer coisa que resolvesse nosso problema imediato. Mas então, me toquei de que ela estava ali, na porta do meu quarto, de pé, com o cabelo arrumado e roupas que não fossem pijamas surrados e não discuti. Ela não mandou eu me arrumar, mas fiz do mesmo jeito. Senti que ela não estava me dando escolha de sair da situação, mas ainda assim, fui de bom grado. Vi ela virando o restante de uma garrafa de vodka em cima da mesa e me puxou para fora. Tinha ficado com tanta raiva dela no dia que apareceu com aquela garrafa que fiquei feliz de vê-la vazia. Torci para que fosse a última. Torci para que ela voltasse a ser a minha mãe, para que se convencesse que sua vida não acabou.
“A igreja era um bom sinal nesse quesito. Eles cuidavam dos pobres e necessitados, e sempre tinham algo para doar. Comida. Roupas. Comida. Eu não me sentia nenhum pouco corajosa em pedir algo a eles porque não sentia que estávamos necessitadas – estávamos apenas paradas, com um luto pesando nos ombros, mas que poderíamos sacudir e voltar à vida. Fazer o que tínhamos que fazer. Continuar vivendo como papai gostaria. Mas, se mamãe tomasse essa atitude, eu não discutiria. Naquela altura, aceitaria qualquer coisa.
“Mas quando chegamos na frente da catedral, mamãe não entrou pela porta da frente, por mais que eu fosse capaz de ouvir a música lá dentro. Ela passou pelo portão de ferro e andou rápido para o outro lado, o pequeno jardim que levava aos fundos, onde os recém casados geralmente saem e que papai gostava de me levar pra ver a chuva de arroz e tirar fotos dos sorrisos das pessoas. Sempre achei aquilo impressionante e também sempre fiz o que ele me dissesse. À noite, aquele lugar não parecia tão feliz e animado como naquelas fotos. À noite, tudo era apagado, vazio, silencioso, por mais que houvesse as cantigas da missa atrás de nós. À noite, nada parecia tão feliz quanto era de dia, ou era porque meu pai não estava mais ali e Agda não era Renato, Agda não estava refletindo nenhuma luz ou alegria, e Agda estava andando rápido demais até a escadaria de pedra até se sentar em uma delas.
“Foi então que ela mexeu na bolsa. E tirou de lá um frasco amarelado, com o selo arrancado com brutalidade…

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— O que é isso, mãe? — apontou para as pílulas vermelhas e azuis, e algumas das duas cores juntas, refletidas no alaranjado do pote, cheias até o bico. Agda sorriu, ou fez uma péssima demonstração disso com aquele repuxar de lábios sem vida e sem força.
— Isso aqui são os remédios que a mamãe toma pra relaxar — ela fez um carinho no braço de . Tinha mantido a garota de pé na sua frente para que pudesse se igualar ao tamanho dela enquanto se sentava na escada. — Pra dormir. Sabe? A mamãe anda precisando dormir.
— Você já está dormindo demais — disparou, não como uma acusação brusca, mas como uma forma de corrigir o pensamento equivocado. Ninguém deveria dormir tanto assim, não é? — Toda hora você está dormindo. Os remédios já fizeram efeito, pode parar com eles.
Agda sorriu agora mostrando os dentes, transmitindo uma onda de amargor ao apertar os ombros de com um pouco mais de força, perscrutando cada detalhe da filha, cada fiapo de inocência que ainda tinha.
— Tem razão, querida, está na hora de parar com eles. De acabar com tudo.
assentiu.
— O papai disse naquela fita cassete que você nunca gostou de dormir. Disse que você gosta de sonhar acordada. O que ele pensaria se te visse dormindo o tempo inteiro? — suspirou e, com carinho, enganchou um dedo em um cacho do cabelo semi arrumado da mãe.
Agda transformou a expressão. Para ser franca, ela estava se controlando desde que saiu de casa, desde que levantou da cama, desde que tomou a decisão que tomou naquele dia. Ela parou de sorrir e contorceu os lábios para esconder um grunhido. Apertou os dedos que seguravam com rigidez e teve vontade de empurrar aquela garota longe, vontade de sacudi-la até destrambelhar a cabeça e não lembrar do próprio nome.
Fardo. Todas as vezes que olhava para , Agda sentia um fardo. Ou por ela ou por . Sentia uma coisa estranha no fundo do âmago por aquela garota desde que a viu na maternidade, desde que a levou para casa com Renato, desde que o viu ninar, trocar, cuidar, colocar pra arrotar, tudo por aquela garota, um bebê, um que ela não esperava.
Agda queria um menino. Sempre pensou que era o que deixaria Renato feliz, realizado. Era o que ele dizia quando eram jovens e apaixonados e apenas sonhando com um casamento distante: quero ter um filho. Um moleque com o seu rosto, os seus olhos, as suas mãos bonitas e as minhas piadas na ponta da língua. Vou jogar bola com ele, vou correr na lama do quintal, vou cuidar dos machucados dele, vou tirar muita foto. Na verdade, vou fazer isso com qualquer um. Vou amar qualquer que seja o fruto que der no nosso pé.
Agda ignorou as últimas sentenças de Renato e focou na imagem de seus olhos apaixonados com a ideia do filho. Vou jogar bola com ele. Um filho. Correr na lama do quintal. Um filho. Filho. Renato queria um filho e Agda o daria um filho. Era tudo que conseguia pensar quando se amaram, quando os enjoos começaram, quando ela soube que estava gerando e quando decidiram surpresa no dia. Não era incomum na cidadezinha do interior. “É emocionante”, disse Renato. Agda seguia no mesmo fluxo.
Sabia que era um menino. Tinha feito toda e qualquer superstição que ajudava a definir sexo de criança. Já tinha comprado enxoval azul, berço azul, ficava vendo azul por toda parte. Tudo era sinal para Agda. Daria um filho a Renato, do jeito que ele queria, e ele iria querer fazer mais. Nunca deixaria ela. Ela carregava um sonho dele, e era o bastante. Nunca seria deixada, abandonada. Nunca.
Em alguma noite de abril no fim dos anos 90, portando, veio em vez de Renato. Júnior. Agda já tinha nome, já tinha apelido, já tinha sonhos pro menino. Já tinha roupinha tricotada, tinha amiga distante grávida ao mesmo tempo pra ele ter os primeiros amigos, já tinha a escola que ia matricular. Já tinha tudo, tudo… E de repente, não tinha mais nada.
era o bebê que se enganchou no seu colo depois do expulsivo. Pequena, franzina, mas saudável. Muito saudável. Era um bebê que já chegou avisando que não morreria tão cedo, que a mãe podia ficar tranquila quanto a isso. Em meio aos gritos de parabenização, mais um bando de enfermeiras e médicos, Agda ficou em silêncio. Muda. O líquido no seu rosto era do suor e das lágrimas de dor, e não da felicidade e do alívio. A criança chorou e se esperneou nos seus braços, e ela teve vontade de pedi-la pra parar. A exaustão irracional e fez murmurar para ela: para com isso. Cala a boca! Cala a boca e me deixa pensar!
Quando pegaram o bebê de seus braços ainda com o cordão umbilical, ela ainda estava pensando. Raciocinando. Como assim? Menina? Não podia ser. Não era o que tinha pedido, não era o que tinha imaginado! Ela não pediu uma menina, ela não teria uma menina! Ela quis continuar aberta, quase pedir para que aquele bando de gente não verificasse se não tinha mais um, se estava tudo bem! Não podia ser! Não podia ser!
“É uma menininha linda, Agda! Parabéns!”, disse uma das enfermeiras com pulos de felicidade, e Agda ainda desnorteada, sem palavras na boca, sem reação. Não, não, não. Não!
Ela não é minha. Não é de Renato. Tirem ela daqui, tentem de novo, procurem outro, joguem fora, se quiserem!
A mente exausta trabalhou a mil por hora por 5 minutos até que ela apagasse de cansaço, pensando que tinha se confundido, que não tinham olhado entre as pernas do bebê direito, que tudo ia passar.
Quando Agda acordou, Renato estava sorrindo e aos prantos. Sorrindo como nunca sorriu e chorando como nunca chorou. Aquele sorriso com lágrimas nos olhos. Mas não era na sua direção.
O bebê já estava dormindo sereno na incubadora ao lado da maca, e Renato tocava nas mãozinhas fechadas, nos pezinhos dentro das meias que iam até a canela, na cabeça com poucos fios de cabelo. Ele parecia estar vendo uma paisagem do horizonte da praia de Punta Del Este, o paraíso que ele sempre quis fotografar. Parecia estar vendo a melhor coisa de sua vida ali, pesando um pouco menos que 3kg e medindo um pouco mais que um tênis 42, um pacotinho muito melhor do que todas as viagens que ele já tenha desejado no mundo.
Renato se apaixonou por no mesmo segundo que a viu. E Agda, abrindo os olhos e se sentando para ver a cena, só conseguiu focar em uma coisa.
A roupinha do bebê. O conjuntinho com detalhes em retalhos que ela mesma tinha bordado, todo em azul pontilhado com desenhos em branco, vários dentes-de-leão. Um esforço que ela teve porque queria que aquela fosse a primeira vestimenta de seu filho, seu menino que deveria estar ali agora, dormindo e sendo adorado pelo pai.
— Ela é linda, Guida — Renato disse no segundo dia de hospital, agora segurando o bebê nos braços. — É linda, é perfeita. Já escolheu um nome pra ela?
Não, porque ela veio errada! O pensamento exausto e maluco de Agda gritou, esperneou. Pareceria loucura dizer em voz alta, então ela apenas forçou a expressão tranquila.
— Não, não pensei — e ficou em silêncio, umedecendo os lábios secos. — Acho que não vou conseguir pensar em um agora.
— Que tal ? — Renato se aproximou da cama. — Era o nome que minha mãe me daria caso eu fosse menina. E olha só — ele ergueu o bebê mais para cima, até encostar sua bochecha na bochecha de . — Acho que ela vai se parecer comigo. Vamos ser unha e carne. Não é, ?
Agda teve vontade de chorar. Sentiu a garganta fechar, o nariz arder.
— É… . Parece ótimo.
Você está estragando tudo, Renato. Não precisa abraçar essa criança pra fazer eu me sentir melhor. Não precisa fingir que gostou disso. Não realizei seu sonho. Não te dei motivos pra você confiar em mim, pra você nunca querer ir embora. Você está odiando isso que eu sei. Você vai odiar.
— Eu esqueci… — Agda falou para cortar os pensamentos, e parecia ter uma serpente se enrolando na glote, o veneno pingando na sua língua. — Eu não trouxe roupas para ela. Não fiz roupas pra ela, não temos enxoval, não fiquei pronta…
Renato desviou os olhos de e encarou a esposa com o cenho franzido, uma expressão de “Hã?”
— Do que está falando, Guida? Já temos tudo pronto. Nossa princesinha tá muito bem vestida. É a coisinha mais fofa do mundo, olha só!
Ele riu quando abriu a boca para um bocejo e fez sons de gracejo de bebê, coisas incomunicáveis e incompreensíveis para os humanos adultos. Agda teve vontade de gritar com ele. Não tá me ouvindo direito? Essa não é a roupa dela! Eu não fiz pra ela!
— É azul! — ela arfou, sentindo um pouco da dor do parto do dia anterior. — Essa roupa era pra um menino… E ela não é um menino.
Foi o mais perto em toda a vida de Agda que ela teve coragem de expor a frustração para Renato da forma mais clara que conseguiu: ela não é um menino e isso é errado. Não queríamos uma menina, lembra? Você confiou em mim e eu fiz alguma coisa errada no processo, e agora ganhamos isso, não é justo.
Ele notou os lábios franzidos da mulher, suas mãos apertando o cobertor do hospital, e soltou uma risada um pouco incrédula.
— Do que você está falando? Qual o problema com o azul? Ficou perfeito nela — ele ergueu a criança um pouco mais alto de novo, como se Agda não estivesse conseguindo vê-la direito para dizer alguma coisa dessas. — Isso não passa de besteira arcaica. combina tanto com azul assim como eu combino com você. Vai ser a cor favorita dela, escreve o que eu digo. Nossa filha já é uma garota incrível.
Agda não queria saber disso. A coisa que menos lhe importava era imaginar um futuro para aquela garota, ter que mergulhar na alegria de Renato. Sua cabeça já estava fazendo as contas para o fim do puerpério, já estava se forçando a esquecer aquilo para tentar de novo, para trazer de volta seu menino perdido em alguma rota das cegonhas. Aquela garota saiu dela, mas não era dela, e Renato logo logo ficaria triste, logo logo perguntaria do filho que tanto quis. O que ele faria com aquela menina?
Renato fez muitas coisas com aquela garota.
cresceu jogando bola, brincando de pega, fazendo machucado no chão de terra, subindo em árvore, nadando no mar, pescando e tudo o mais que uma criança até os 11 anos poderia fazer depois das obrigações com a escola. Renato fazia questão de todos os dias perguntar o que ela tinha aprendido, tanto na escola quanto fora dela, porque a vida iria ensiná-la as coisas mais importantes, dizia ele. era inteligente, esperta, sabia se virar com as menores coisas, aprendia rápido e era astuta, independente demais para uma garota tão nova.
Independente e solitária, de certo modo. Mas não triste. Antes do pai morrer, não conhecia essa palavra. Se alguém a dissesse naquela época, aos 10 anos de idade, que ela era triste, ela se chocaria com isso. Ficaria confusa, mas não perdida. Do que está falando? Triste?
Ela conhecia tristeza como apenas um nome que diziam na TV, e pessoas tristes na TV eram tristes demais, estavam passando por enfermidades terríveis, fome, guerras, torturas. Muitas coisas que estavam distante dela, que na maior parte dos dias, na grande maioria, se sentia plenamente normal e feliz. Tinha uma casa perto há poucos quilômetros da praia, um quintal com pé de limão, uma bola de futebol de plástico, tinha fôlego e ânimo para correr, um pai incrível que irradiava uma luz de esperança para ela, as câmeras dele, e sua mãe…
Sua mãe era um dos blocos do dia que a deixavam… confusa. Frustrada. Um pouco irritada. Mas não exatamente triste.
Agda estava sempre pronta para corrigir , em tudo. Quando levou aquela garota para casa do hospital, ela achou que tivesse superado aqueles pensamentos. Manteve acesa a esperança de novas tentativas. Era uma mulher bonita e saudável, e sempre poderia dar mais filhos à Renato. Se viesse mais uma menina, não tinha problema, ela poderia tentar de novo, e de novo, e de novo, até seu legado vir. Até lá, ela cuidaria de da melhor forma possível, mesmo que Renato estivesse sempre tomando a frente, amando aquela garota de um jeito quase sufocante.
Eles tentaram. Agda quebrou o resguardo, foi pra cima dele com o pensamento no filho. Invocou até mesmo o rostinho dele durante o ato, tentou mais de uma vez. Nada. Tentou de novo, no próximo mês, e no próximo e no próximo.
1 ano se passou.
2 anos se passaram.
3 e 4 anos.
crescia e ficava cada vez mais parecida com o pai, em rosto, nariz, boca, e até o sorriso. Não tinha as piadas dele pronta na ponta da língua, mas de resto, fazia tudo. Brincava com ele, ria com ele, trocava segredos com ele. Começou a mexer naquelas câmeras dele, começou a tomar gosto pela coisa, pediu pra ser ensinada. Estava se igualando a ele cada vez mais, e isso era inaceitável.
Agda não era mesmo religiosa, mas perdeu as contas de quantas vezes pediu perdão a Deus por odiar aquela menina às vezes. Algumas vezes. Vezes pontuais, quando Renato se dizia cansado para tentarem de novo depois de ter brincado muito com . Quando ele dizia para relaxarem – ela ouvia vamos desistir! – porque ele não estava com pressa, já que tinham . Quando ele disse para Agda para deixarem para comprar aquele vestido que ela tanto queria no próximo mês porque ele estava economizando para dar uma câmera para . Quando o nome sempre vinha na frente do nome Agda, apagando suas necessidades e desejos completamente, tomando mais espaço, tomando um lugar que não era dela!
Agda se confessou para o padre, rezou infinitos pai nossos e infinitas ave Maria e tentou. Tentou amar a filha. Tentou desobstruir do pensamento que ela não deveria vir. Tentou pensar que só estava naquela fase ruim de toda mulher, a fase que não conseguia ter filhos tão rápido. Tentou, tentou, tentou.
Mas então, ela olhava para aquele rosto e simplesmente se sentia imersa num vazio. Se sentia longe, longe de alguma coisa. Sentia que, por mais que alimentasse a garota, trocasse suas roupas, cortasse suas unhas, penteasse seu cabelo e arrumasse sua cama, ainda era um território distante pra ela. Como se algo esquentasse dentro do seu peito e ela não conseguisse ficar perto por muito tempo, como se aquela cópia de Renato a assustasse, a intimidasse.
Agda tinha a sensação curiosa e desconcertante de ver algo extraordinário quando olhava nos olhos. Algo que ela não entendia, não merecia. Depois de um tempo, era como se visse um breve flash de Renato neles, e isso doía, esbarrava nas feridas.
— É verdade, o que seu pai pensaria? — ela guardou o cascalho na boca, mas não sorriu mais. Balançou o pote na frente dela, chegando mais perto a ponto de sentir o hálito do álcool. — O que ele pensaria se nos visse nessa situação? Ele não tem pais ou parentes vivos, e o meu pai perdeu um braço inteiro em uma máquina de cana e morreu, enquanto a minha mãe agarrou essa oportunidade pra ir embora e me deixar com uma velha senil a beira da morte que me fez lavar e passar as mesmas roupas de caminhoneiros nojentos por mais de 10 anos, e acha que alguém disse pra ela que eu deveria estudar? Que eu deveria ter o mínimo de segurança? De direitos? Que assediar garotas menores de 18 anos pode te levar pra cadeia? — Agda riu um pouco, um riso rançoso, sem vida. sentiu um arrepio de medo, os dedos da mão apertando seu braço com mais vigor. — Não, o seu pai não gostaria de nos ver assim, mas ele não está mais aqui, então deveríamos ir encontrar com ele, não acha? Só pra uma visitinha. Só para perguntarmos o que ele realmente quer.
tentou se soltar e Agda deixou, largando-a apenas pelo tempo para agarrar a bolsa e puxar de lá uma garrafa plástica de água, abrindo a tampa do tubo.
— Você tá me assustando — murmurou, sem coragem de dizer em voz alta. — Quando vamos entrar na igreja? Já deve estar acabando.
— Ah, sim, vai acabar logo sim. Eu te prometo, querida. Mas precisamos estar relaxadas e espertas para entrar aí e conversar com o padre. Soube que eles oferecerem jantares, empregos, até mesmo aulas de graça. Você não queria fazer aulas de inglês?
— Queria. A escola não ensina muito bem — ela olhava fixamente para o tubo de remédios e a garrafa de água, tentando ligar um objeto a outro, tentando pensar no que sua mãe faria.
— Joga essa merda de escola pra lá. Você não precisa disso. Pode aprender inglês aqui — ela arranhou a garganta, perdendo o controle das expressões, mostrando o que realmente queria mostrar. Agda era o contrário de todas as mães: torcia para que chegasse com uma nota vermelha. Uma reclamação, um boletim vergonhoso. Que chegasse com um 5 ao invés de 9, um 6 ao invés de 10. Que fosse menos boa nas coisas. Que não se aproximasse tanto de uma vida que Agda jamais teria, que nunca nem pensou em ter.
Para Agda, a família deveria ficar junta pra sempre, ninguém deveria abandonar ninguém, ninguém recusaria o fardo de ninguém, ninguém se sobressairia, seria mais esperto, mais inteligente, mais bem sucedido. Isso era errado. Se ela estava na merda, também deveria estar, e não tirando notas boas e pensando em faculdade! Quem ela pensava que era?
— Aqui. Pega — ela depositou algumas cápsulas na mão, e colocou algumas nas mãos de , que precisou juntar duas para que cabessem. — Eu tomei um pouco antes de sair, mas essas devem resolver. Podemos fazer juntas no 3, o que acha?
arregalou os olhos para as mãos, mal ouvindo a pergunta de Agda. Havia tantos. Só na sua mão havia um número que ela não conseguia contar, vários punhados de cores nas palmas e de tamanhos diversos que ela tinha certeza que não seria capaz de engolir.
— Eu não quero isso — balançou a cabeça em negação, estendendo a mão de volta para a mãe. — Não quero tomar isso, mãe.
— Você não quer relaxar, ?
— Não, eu quero entrar na igreja.
— Já disse que precisamos tomar isso pra entrar.
— Não precisamos. Ninguém tomou quando estava entrando, nem hoje e nem nunca, eu sei disso porque papai conhecia o senhor Venâncio, ele era coroinha e nunca disse…
— Por que você está estragando tudo?! — Agda explodiu em um grito, fazendo os ombros de tremerem de susto. — Por que você sempre tem que estragar tudo?!
— Mamãe… — não reconheceu aqueles olhos ferozes por um instante, olhos maliciosos de fúria, olhos perigosos. A mulher agarrou no seu braço com brutalidade, e desta vez não estava blefando em machucá-la. Na verdade, tinha um desejo escondido para fazer tal coisa.
— É o seguinte, , estamos fodidas nesse momento e estou arrumando uma solução pra gente. Uma solução imediata e melhor do que tudo nesse momento. Você vai ver tudo acontecendo muito rápido, não vai doer e nem nada disso. Vamos só relaxar, recuperar as forças e voltar a tentar de novo. Vamos estar em um lugar melhor e situação melhor, pode ter certeza. Agora tome a sua parte que vou tomar a minha.
Ela a soltou e voltou a agarrar a garrafa, juntando o restante das cápsulas coloridas em uma mão e vertendo garganta abaixo sem piscar, massacrando o restante com os dentes, fazendo um bolo na glote até conseguir empurrá-las com o líquido forte, mandando tudo para dentro sem pensar duas vezes, sem nem mesmo hesitar.
Quando Agda abriu a tampa daquela garrafa, sentiu o cheiro. Aquela coisa forte, alcoólica, deprimente. Aquela coisa que era fruto das piores brigas da cidade, que jogava homens bons nas valas dos homens maus – e temia que acontecesse com mulheres também.
— Vai, é a sua vez — Agda disse para a filha, empurrando a garrafa com sua última poça de conteúdo. As pálpebras da mulher tremeram violentamente por um segundo. Seus ombros pareceram mais baixos, jogados. Instantaneamente, viu o efeito daquela coisa já se manifestando na mãe, tornando seus olhos escuros, uma sombra estacionando no rosto inteiro, transfigurando-a em algo feroz, inundada em caos interno.
Apesar de assustada, pegou a garrafa e cheirou o bico, fazendo uma careta pior.
— Isso não é água — ela trincou os dentes, e sentiu vontade de chorar. Chorar porque sua mãe não estava bem. Chorar porque estava sendo submetida a aquilo. Chorar por tudo.
— Não importa, isso vai ajudar a não doer. Anda, bebe.
— Eu não quero…
— Se você não tomar, eu vou ter que tomar no seu lugar. E isso pode dar merda, uma merda muito grande.
— Não, mamãe… — balançou a cabeça em negação, segurando o choro até onde podia. — Para com isso. Vamos pra casa. Você pode dormir lá, por favor…
Agda puxou os comprimidos da mão de com menos força do que antes, mas com a esperteza do susto. Deixou a garota assustada de novo, e perdeu a garrafa. Quando viu o que ela estava prestes a fazer, um pânico silencioso tomou conta de si.
— Não, mãe! Não faz isso.
— Você está me fazendo fazer isso, ! Não quis acabar com a porcaria do remédio, não quis ser ajudada, agora você está me obrigando! É você que me obrigou!
— Não! — balançou a cabeça em negação convincente, as lágrimas agora explodindo como cascatas. Ela tentou erguer a mão para impedi-la, mas de repente, sem entender ou ver de onde surgiu, teve o corpo jogado para o lado, os cotovelos batendo no chão de pedra e raspando na pele, tirando sangue e absorvendo areia e sujeira. Ela viu apenas de relance o último gole de Agda e sua mão lançar a garrafa no matagal mais próximo, ao mesmo tempo em que a música de dentro do templo aumentava, entoando cantigas de amor e esperança no plano de fundo sombrio das escadas.

“Vim buscar e vim salvar o que estava já perdido. Busca, salva e reconduze a quem perdeu toda a esperança: Onde salvas teu irmão, tu me estás salvando nele.
Eu vim para que todos tenham vida,
Que todos tenham vida plenamente.”


Agda abriu um sorriso e ela se sentiu péssima por isso. Suas pernas enfraqueceram de repente e sua visão embaçou. Já estava meio embaçada desde que tinha passado pelo batente da porta de casa, sem se lembrar se apagou as luzes, se fechou as janelas, se o tapete da sala estava no lugar certo. Vai saber. No fundo, sabia que não precisava se preocupar tanto com isso porque teria resolvido. Ah, claro, . Aquela garota resolvia tudo, sempre. Com certeza apagou as luzes. Encheu as garrafas de água. Tirou a poeira dos móveis. A garotinha perfeita.
Agda tinha feito questão de ensiná-la esse tipo de coisa desde cedo, não porque queria que ela fosse útil e independente, mas porque apenas com tarefas triviais de casa é que ela largava um pouco de Renato. Quando ele também a deixava um pouco em paz, sem chamá-la o tempo todo para mostrar uma foto nova, um filme novo, uma brincadeira nova. Era o único jeito de sentir que estava ali, que tinha algum controle sobre aquela situação que tinha saído do controle. Mesmo que mal tinha aprendido a andar, ela mandava a garota aprender. Mandava se virar. Se ela caía, Agda a mandava levantar. Se chegava com um machucado depois das brincadeiras de menino que insistia em ter lá fora, Agda a mandava se lavar. Apenas mandava, observava, e deixava. Era melhor do que segurá-la, era melhor do que o que Renato fazia, adorando a filha como se ela fosse o seu mundo. O seu único mundo.
Agora ela via se levantando sozinha do chão enquanto ela mesma desabava, começava a ver o mundo em dois, triplicado. Viu a boca de se abrir em câmera lenta e gritar em câmera lenta, e correr até ela em câmera lenta, e declarar coisas com lágrimas nos olhos que também caía em câmera lenta. Por que essa garota estava chorando assim? Por que tinha sempre que chorar quando algo não ia do seu jeito? Era patética. Mesmo que não chorasse tanto como outras garotas de sua idade, Agda não suportava quando ela chorava. Parecia um aviso para Agda que ela precisava da mãe, e por um acaso essa mãe era Agda, e Agda não podia pensar que era um sacrifício ser a mãe dela, por mais que se sentisse exatamente assim.
Ela mal sentiu o concreto duro da escada no rosto, e não sentiu mais nada. Uma onda de nada tomou todo o seu corpo, como se ela estivesse entrando dentro de buraco, uma câmara a prova de som, toda pintada de preto. A mente apagou, os sentidos apagaram, a língua adormeceu e até mesmo seu oxigênio pareceu diminuir, diminuir, diminuir até ser quase nulo, afogando seu corpo dentro de uma piscina de gelo e sal.
Agda não estava exatamente planejando se matar, assim como os suicidas não pensam racionalmente na morte. Ela queria descansar. Dormir. Queria acordar em um mundo onde tivesse Renato, onde não se sentisse tão sozinha, onde não tivesse que lutar sozinha, onde não tivesse que criar alguém. Ela só queria que as coisas fossem diferentes, que as vozes da desesperança parassem, que o mundo visse que tudo estava uma merda sim, que perder Renato era o fim sim, e que se não reconhecia isso, ela era ainda mais patética! Se ela o amava tanto, como não pensava que tudo tinha acabado? Que elas não tinham chance alguma? Que eram fracas, pobres, coitadas, um par inviável para continuar vivendo, nada ao contrário disso. Ela só tinha 11 anos, o que poderia fazer pra ajudar? E Agda não conseguia terminar uma simples tarefa de lavar alguns pratos, sendo totalmente inútil como ser humano.
Sim, ela poderia morrer. As duas não fariam falta para ninguém. As duas não tinham amigos, não tinham mais familiares, não tinham mais dinheiro para pagar o aluguel, não tinham comida. moraria na rua se ela fizesse aquilo sozinha, ou iria para uma instituição onde apanharia todos os dias e seria obrigada a trabalhar antes dos 13 anos. Com sorte, poderia ser adotada algum dia, mas se passasse dos 18, teria que ir embora de qualquer jeito e tentar a vida. Foi a primeira, talvez única vez, que Agda sentiu empatia e um quase amor por aquela garota, sem toda a culpa de não ser uma boa mãe barrando o caminho, sem todo o rancor que escondia no peito por uma criança que não tinha culpa de nada. Apesar de tudo, imaginar sendo criada por desconhecidos em um futuro desconhecido não a agradava tanto. Queria controlar as coisas até nisso. Talvez mudasse de ideia sobre os remédios quando a visse ficando em paz. Quando a visse indo, como estava vendo naquele momento.
E o momento penosamente traumático na vida de aconteceu naquela escada larga de brita atrás da catedral em uma pequena praça da cidade, onde ela viu a mãe fechar os olhos e tremer. Tremer e tremer e tremer como alguém sendo eletrocutado por fios invisíveis, abrir e fechar os olhos em movimentos mecânicos, suar e sufocar como alguém possuído que estava claramente morrendo.
Ela não sabia a causa. Não tinha entendido os detalhes da coisa, mas não importava. Sua mãe estava morrendo. Sua mãe estava morrendo, sim, morrendo!
Estava morrendo como seu pai havia morrido; não pela causa, mas pela morte em si. Morrendo morrendo morrendo morrendo. Estava se esvaindo desse mundo, com o rosto virado para o céu e o corpo torto entre um degrau e outro.
gritou. Correu. Gritou de novo, berrou por socorro, chorou e esperneou, tomada de pânico, terror, de todas as coisas ruins que jamais saberia explicar para alguém, como não soube responder ao psicólogo e ao policial que viu depois, jamais conseguiu tirar aquilo da garganta. O que vivenciou desde o momento que Agda caiu até as convulsões começarem foi um turbilhão sem palavra no dicionário. No início, ela apenas ficou parada, encarando, sem desviar os olhos, pensando por um momento débil que a mãe estava brincando. Que estava punindo com uma brincadeira de mau gosto, o que não seria estranho porque Agda gostava de puni-la. Achava necessário porque , mais uma vez, não tinha lavado os pratos direito. Porque não tinha arrumado o cabelo naquela trança que Agda mandava. Porque não tinha escondido aqueles cachos revoltados, porque não usou o vestidinho que ela comprou na consulta ao médico, porque usava calças demais e batom de menos. Porque ela era uma criança muito brincalhona. Era muito criança. Era muito um menino, e ela não era um menino, e nem devia se atrever a pensar que era.
nunca pensou que fosse um menino e nunca desejou ser um menino, mas naquela hora, olhando o estado catatônico de Agda, teve a impressão de ver o flash de algo no rosto já quase vazio da mãe, e percebeu a tormenta que a mulher estava vivendo. Uma tormenta que causava. Um terror que tinha como motivo . Sua mãe tomou aquilo em seu lugar porque ela não foi capaz de obedecê-la de novo, porque não conseguiu ceder aos pedidos dela de novo, porque insistia em continuar não usando vestidos ou laços no cabelo, porque continuava sendo apenas a filha de seu pai e não de sua mãe, porque era uma péssima filha pra ela!
A culpa atingiu ao mesmo tempo que o estalo do pânico. Atingiu seus pés e os fez tropeçar para ela no desespero, atingiu sua garganta para começar a gritar, atingiu todas as glândulas lacrimais para começarem a enxurrar e enxurrar, formando uma máscara de água no rosto da garota, uma máscara negra cheia de dor, culpa, remorso, cheia de todos os sentimentos maléficos e nefastos que uma criança não deveria sentir.
Ela mal viu quando a primeira pessoa apareceu. Quando braços puxaram os seus e a afastaram da mulher em uma overdose violenta nos degraus. não conseguia enxergar nada através dos espelhos de água dos olhos, e só sabia gritar, espernear. Não deixem ela morrer! Mãe, não morre, por favor! Mamãe! Por favor, mamãe! Eu vou ser uma filha melhor, eu vou cuidar de você, eu vou usar os vestidos, por favor, mamãe! Por favor!
Mais pessoas chegaram. A sirene de uma ambulância acompanhou o restante dos barulhos. Mulheres e homens apareciam na panorâmica de , suas vozes não ganhando vazão nos ouvidos dela, seus rostos embaçados, suas mãos com toques distantes na pele quente e petrificada e apavorada da menina. Não dava pra se lembrar de nada desse dia porque simplesmente não estava presente, sua mente a transportou para outro plano. Um outro plano cheio de dor, sofrimento e com apenas uma frase zanzando e repetindo, sem parar:
É tudo culpa sua.



não chorou tanto quanto pensou que choraria ao relembrar a história, mas a camiseta de Jungkook estava um pouco molhada de qualquer jeito.
Tinha sido um sacrifício pessoal se abrir daquele jeito. Ela não se preocupou com julgamentos ou nos possíveis pensamentos dele sobre o assunto, e gostou disso. Era como um passo grande de confiança, tanto dele quanto dela. Também era como desenterrar alguns corpos e sepultar outros, tudo ao mesmo tempo, e o mais estranho é que parecia precisar disso.
Jungkook permaneceu calado o tempo inteiro, alternando apenas os olhos para arregalados e não arregalados, torcendo e distorcendo a boca, segurando um grunhido, as veias saltando nas têmporas e nos próprios braços. sabia da revolta que toda a sua história de vida poderia trazer, já tinha tido uma experiência parecida com Candice, mas era exatamente por isso que ficava quieta e guardava os terrores pra si. Não iria adiantar nada. Não adiantava sentir raiva e querer matar algo ou alguém que já estava morto por dentro. Não adiantou naquela época e não adiantaria agora. demorou a aceitar que, no fundo, ela não era nada para Agda além de um empecilho, um encosto. Tinha sido exatamente o que disse para ela antes de ir embora: “Eu não sou nada pra você, não é?
E Agda, com o desprezo nos olhos e a raiva imaculada brilhando nas pupilas e ainda com a mão erguida que tinha acabado de desferir em , respondeu com convicção:
Você não é nada que eu pedi.”
Então, ela tentou matar Agda no coração, já que ela queria tanto morrer. Matou toda a sua infância e aquela cidade, matou os poucos momentos que viu a mãe sorrindo pra ela, matou tudo que a pudesse levar de volta para aqueles sentimentos trancafiados, para tudo que tinha acontecido e ela não podia desfazer.
— Eu… não sei o que dizer — a voz de Jungkook quebrou o silêncio pesado, e percebeu que ele tinha parado de tocar sua cintura. Tinha esticado o braço para atrás dela no sofá, fechando os dedos em punho. — Eu não faço a mínima ideia do que pensar!
E arfou, porque a única coisa em que conseguia raciocinar era que tudo brilhava em absurdo. Grandes, enormes absurdos. Uma raiva que provavelmente não deveria sentir estava nascendo em ondas no seu peito. Um ódio crescente. Ele não sabia a causa nem origem, só sentia ódio.
ergueu o queixo e se afastou um pouco dele, tentando limpar as lágrimas e ficar mais apresentável.
— Eu também não sei o que pensar. Achei que tinha esquecido disso, vivi a vida sem lembrar que esse momento existiu. E me deixou com um medo, de repente, de ter mais aqui dentro guardado — ela respondeu, e baixou o tom bruscamente com aquele pensamento horrível de ter mais. De haver mais monstros. De ter mais pensamentos que a fizessem se perguntar se não tinha mesmo matado alguém, já que quase matou a própria mãe. Seu pai tinha sido a mesma coisa? A culpa foi dela e sua mente simplesmente apagou? Se fosse assim, ela abriria mão da inocência que sempre achou que tinha no meio de Agda e Antônio. Seria uma vitória incrível para eles, sem dúvidas.
Jungkook entendeu parcialmente o que ela queria dizer e se virou, os olhos novamente ficando alarmados.
— Não, não. Você não pode pensar assim, . Quero dizer… talvez você tenha memórias horríveis guardadas, talvez todo mundo tenha, porque usamos esse mecanismo de defesa com frequência, mas você não pode ficar agoniada e tentando acessar isso a força pra reforçar um sentimento de culpa. Aliás, você não tem culpa de nada. Pelo amor de Deus, sua mãe estava louca — ele falou e se arrependeu na mesma hora, bufando forte. — Quer dizer, ela estava doente, e você era só uma criança. Uma criança que também estava sofrendo e que precisava da assistência de um adulto minimamente são, e não consigo enxergar isso na sua mãe quando ela quem tentou matar você — Jungkook ficou surpreso com o quão claramente o desprezo que sentia pela mãe de veio à tona. O desprezo e o choque, a raiva. Talvez ele não deveria mesmo dizer coisas daquele tipo, mas era mais forte do que ele. Era mais forte, droga. Ela estava sofrendo por isso! — E o Soobin… é diferente com ele, tenho certeza. Ele não estava tentando se matar e você não piorou nada por ter paralisado. Eu nem imagino como deve ter sido isso pra você, meu bem. Deve ter sido medonho e odeio não ter estado lá pra te ajudar, pra te dar apoio. Não ter tirado esse pensamento da sua mente no momento em que ele surgiu.
Os olhos preocupados dele conseguiram derreter mais uma camada de medo e angústia do peito de , e as coisas foram ficando cada vez mais leves, mais perfumadas, mais claras de novo. Ela assentiu e secou mais lágrimas, mas agora elas não pareciam tão desesperadas, tão sem rumo. tinha aprendido que chorar não era tão ruim assim, que não seria fraca ou julgada por isso, mas chorar por aquela memória malfadada tinha sido de péssimo tom. Cruel. Trouxe medo junto com a choradeira, trouxe um desespero sem fundamento para uma cabeça que já estava no lugar.
Pelo menos, ela tinha Jungkook. E percebeu que ele era um ótimo ouvinte, mesmo que soubesse que a história doeu tanto nele quanto nela. E ficar assim, em silêncio, sendo amada e ouvida em um momento particularmente tenebroso e assustador, era uma das tantas coisas que não abriria mão. Nunca. Era algo que a deixava mais forte.
Jungkook limpou a garganta, fazendo um carinho nos seus dedos.
— Aquele dia no Covil, quando Nitro te entregou as fotos depois da nossa conversa — ele começou, fazendo-a olhar pra cima. — Eu deixei um cartão no envelope. Você viu?
assentiu, se lembrando do retângulo de papel que estava no mesmo lugar na escrivaninha.
— Eu vi.
— Você poderia tentar. Minha terapeuta recomendou ele, e não sou adepto a nenhum discurso anti-psicos desse país, acho que vai te fazer muito bem. Sempre vou estar aqui pra te ouvir sobre qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, mas não posso prometer que não vou xingar o tempo inteiro e mandar alguém ir pro inferno.
conseguiu achar graça e relaxar os músculos faciais. Em seguida, vincou a testa pela primeira frase.
— Você faz terapia?
Ele piscou os olhos rapidamente, como se não tivesse se tocado do que contou.
— Hmm… Já faz um tempo que a Minji não me vê, mas é, eu faço. Me ajudou a ver algumas coisas, perceber outras. Melhor dizendo: me ajudou a não ser mais um idiota.
— É? Em qual das áreas?
— Você.
Ele acariciou seu rosto, e sentiu a pele formigar daquele jeito que ninguém jamais conseguiria fazer.
— Parei de ser um idiota sobre o que sentia por você e foi como tirar uma corda do pescoço. Olhei pra mim mesmo depois de muito tempo e entendi a merda que eu estava metido, mesmo que não conseguisse aceitar isso de primeira. Às vezes a gente não aceita mesmo, mas passar pelo processo é importante. A gente tem que dar o primeiro passo pra subir essa escada, mesmo que a gente se arraste por todos os outros degraus, mas quando percebe, já avançou demais pra desistir. Daí é só continuar até o topo. Um dia você vai ser tão livre do passado que nada mais vai te abalar, tenho certeza disso.
sorriu com alegria e se aninhou de novo no peito dele, sentindo a vontade de chorar evaporar, sumir, e a paz de estar no lugar certo e na hora certa com a pessoa certa.
— Vou fazer uma ligação, então. É um passo? — ela riu pelo nariz e o viu fazer o mesmo. — Obrigada. Por tudo. Por você — ela beijou seu queixo e roubou um selinho da sua boca. — Não teve nada que eu quis mais hoje do que ver você. Do que ouvir a sua voz.
— Você teria ouvido antes se aquele babaca não estivesse com o seu telefone — ele quis trincar os dentes com a lembrança, mas Jungkook não achou que fosse o momento pra isso e suspirou. — Tudo bem, não importa, o negócio é que estou aqui. E vou ficar com você, pelo tempo que você quiser. E garantir que você não pense mais nisso pelo resto da noite.
Ela mordeu o lábio inferior e sorriu um pouco.
Scarface?
— Você fala a minha língua, gata.
sorriu e o beijou, sentindo de repente como se nenhuma tristeza tivesse saído de sua boca, de sua mente e de seus olhos naquele dia. Sentiu o poder verdadeiro do se abrir, o poder de descarregar coisas para fora, tirar o lixo de verdade. Sobrava mais espaço dentro da gente, o corpo finalmente se concentrava no que realmente importava.
E o que importava era ela e Jungkook ali, naquele momento a dois, naquele lugar seguro onde ela amava e era amada, onde se sentia, finalmente, andando pra cima, evoluindo, mesmo quando olhava para trás.
Ela murmurou sobre ir fazer pipoca, ou sobre precisar se levantar e andar um pouco, pegar um refrigerante ou qualquer coisa dessas. Jungkook assentiu e permaneceu sentado, e foi até a cozinha, abriu a geladeira e notou o freezer meio aberto, parecendo empanturrado.
Ela puxou a portinha retangular e perdeu a fala.
Havia pelo menos 6 potes grandes de sorvete de pistache empilhados no cubículo, lutando pelo espaço com os pepinos congelados de Candice e alguns iogurtes. Embaixo, havia mais trufas. Do tipo caro, que ela já pediu a Candice de aniversário e eram suas favoritas. Agora havia tantos pacotes que ela mal via o fundo da geladeira.
olhou para trás na direção da sala, vendo-o de costas enquanto se ajeitava confortável no sofá e começava a ligar a TV, dezenas de vezes menor do que a dele, mas que não o importava nem um pouco. Nenhuma simplicidade na casa de o incomodava, porque ele também era simples. Também era um cara que só queria passar a noite de quarta feira assistindo um filme de traficantes mafiosos com a namorada, comendo pipoca e trufas com recheio de limão até sentir sono e ir se deitar, fazendo carinho no cabelo dela até pegar no sono.
segurou mais uma onda de choro. Elas estavam ficando impossíveis naquele dia, mas respirou fundo e puxou um dos pacotes, amando Jungkook mais do um cérebro racional permitia.



Folhas da cor e do formato de moedas esvoaçavam em volta de Changmin quando ele colocou os pés no terraço do edifício velho e acambetado de Nowon-gu, apertado entre outros prédios iguais, sendo o único com menos iluminação e menos características que se esperava para uma estrutura que não estava exatamente vazia.
Havia algo que Changmin não contou a naquela breve abertura de sua vida no vagão do metrô, onde contou sobre sua família e sobre o seu início dramático no ramo da fotografia. Seu pai, aquele tirano maluco que tinha sido um covarde até o último minuto de vida, realmente havia deixado algo para ele antes de bater as botas, um algo que não fosse parte da herança magnífica e do patrimônio cristalino da intocável família de Gwangju. Esse algo não era apenas um pequeno apartamento em Nowon-gu, mas sim um prédio inteiro, já reformado, com vários blocos de apartamentos grandes e sem móveis, sem eletricidade, sem água, um verdadeiro beco de ratos e fantasmas. Havia apenas um deles, onde as luzes de vez em quando se acendiam, e de vez em quando abriam as janelas, e de vez em quando saltava um cheiro de comida aqui e outro ali: o do térreo. O primeiro apartamento, com apenas um lance de escadas da saída. Rápido para chegar e rápido para deixá-lo. Era o que mais importava para Changmin: ficar pouco tempo. Não deixar que a casa se acostumasse muito com ele. Não deixá-la pensar que algum dia pensaria em ficar de vez.
Também foi bastante modesto quanto à fortuna da família, mas Changmin não se importava com isso. Fazer parte da família Ji era coisa de um passado tão distante e esquecível, que não valia de nada olhar pra essas tumbas. Tiveram problemas, sim, ele tinha certa mágoa sim, mas agora era um homem crescido que não via sentido em encarar o passado. Família era uma denominação indiferente pra ele, que nunca viu necessidade de falar ou contar, mas acabou abrindo a boca para naquele vagão sabe-se lá por qual motivo. Nunca entendeu direito, nem queria entender. Só que a sensação que tinha de ver vários lugares dentro dos olhos dela o puxou primeiro, deixando-o com vontade de oferecer algo. Naqueles olhos se escondiam lugares inexplorados, coisas que ninguém ainda foi capaz de interpretar.
Ah, era um enigma. Um delicioso enigma. Ela o atraía tanto como o campo eletronegativo de um átomo. Era um universo fechado, desconhecido, mas que mesmo assim você sabia que encontraria coisas boas. Coisas extraordinárias. Ainda que, naquela tarde, naquela situação de merda onde a viu chorar tanto que o fez perder o foco por um instante, ele se concentrou no momento, no seu rosto, e viu que ela estava virando um lago espelhado, e não apenas negro. Ele estava mais perto de ver coisas, mesmo que as coisas em questão fosse um trauma muito fodido que envolvia drogas pesadas e talvez uma cena ainda mais fodida do que aquela.
Changmin soube na hora: ela não era tão forte assim. Não era tão inatingível. Podia estar envolta em uma casca dura, mais dura do que aço e mais profunda como a terra, mas ela também tinha sua cota de fraqueza e até mesmo de dramaticidade. Tinha seus momentos patéticos de choro, de melodrama. Ele observou bem esse momento como se estivesse em uma aula, aprendendo sobre um novo espécime: os olhos vítreos, estudando como se desejasse ter um papel e uma caneta para fazer anotações, a despeito do cidadão aleatório se contorcendo no chão.
Foi nessa hora que seu propósito começou.
Por isso demorou tanto para se mexer e ajudar o garoto. Esperou que ela fizesse primeiro, esperou para ver até onde ia sua coragem. Ela demorou demais e seria péssimo ver alguém morrer na sua frente, então ele fez o serviço. Com asco, com nojo, mas fez. Levantou aquela oca do chão, que não parecia nem de longe a personalidade divinatória que ele vinha ficando obcecado, mas de novo: não estava fingindo. não conseguia fingir coisa alguma aos seus olhos. E ele gostava disso, gostava tanto que relevava as atitudes idiotas e patéticas da garota. Pelo menos estava sendo patética de verdade, e não para chamar atenção. Era um ponto que ganhava, subia no seu conceito.
Mas ali, no terraço, enquanto pegava o cigarro eletrônico do bolso e se sentava no deck de madeira com poeira e algumas folhas mortas do outono, ele pensou naquele choro. Pensou que já tinha visto tantos tipos de lágrimas, mas aquelas doíam, de alguma forma. O deixavam constrangido, incomodado, com vontade de virar o rosto. Mas ao mesmo tempo, lembrou que veria aquela cena se repetir. Futuramente. Muito em breve, inclusive. Antes do inverno. Veria ela chorar daquele jeito de novo e garantiria que ela não estendesse muito a choradeira. Ofereceria o braço como suporte desta vez, diria a ela para ser rápida porque não tinham tempo a perder.
Ele olhou para o próprio telefone apagado nas mãos, pensando em ligar, mas desistindo logo depois pela imagem que formava no cérebro, a informação que ela já estaria acompanhada por aquele boçal. Ele tinha conseguido afastá-lo o quanto pode naquela tarde ao ficar com o celular dela, não apenas pelo asco de vê-lo com , mas porque Jungkook tinha olhos de águia pra cima dele. E ele não podia ser observado naquele dia, não naquele dia, porque tinha dado início a um plano belíssimo que não poderia ser interrompido ou sequer descoberto.
O plano perfeito ali, naquela sala de dança, enquanto um garoto inocente sufocava com o próprio vômito. Triste, mas perfeito. Oportunista. Ele viu e apenas seguiu o resto do roteiro. E tinha dado certo, totalmente certo.
Mas antes de comemorar demais, o telefone vibrou e o nome de Ali entrou em seu campo de visão, fazendo-o bufar e revirar os olhos. Desejava uma ligação dela tanto quanto desejava um ataque terrorista.
— Alô…
Seu maldito — a voz dela se incorporou de forma tão presente que parecia ter gritado ali, logo atrás dele. — Onde você está?
Ele vincou a testa e não entendeu imediatamente, mas logo afastou o celular para ver a data no telefone. Era outubro. Que ótimo.
— Foi mal, gata — ele não parecia nem um pouco arrependido, e Ali sabia disso.
Foi muito mal, Edgar. Achei que te encontraria no Tamawari aqui em Tóquio. Esqueceu que dia é hoje?
— Você já desfilou? Como anda Donatella?
Ótima. Já conseguiu os novos amantes japoneses. Um deles tem uma tatuagem de um pássaro e uma pedra em cima do coração e me chamou pra ir à boate da Yakuza. Você tem ideia de como me sinto aqui?
— Acho que tenho, mas você não precisa. Encarar uma passarela é como andar de bicicleta ou ler, Alison. As pessoas nunca desaprendem isso, por maior o tempo que se passe — ele juntou as pernas para cima, tragando a máquina mais uma vez, recebendo a fumaça de volta no rosto pelo vento forte da cobertura. O alívio por ela não estar gritando era o maior de todos.
Eu sei, mas a Fashion Week não é apenas desfilar. Você sabe disso. Marco já me disse dos grandes nomes que querem uma reunião com ele logo depois do desfile, e todos os sites parecem ter exposto minha volta. Não tenho tempo pra essas coisas.
— Nem pensa nisso, Dalphin — Changmin abortou tudo quando entendeu. Quando se lembrou. Já fazia tempo que tinha tido aquela conversa, quando ele ainda estava em Bruxelas, quando ela o tinha explicado seus planos, e o que aconteceria depois da Fashion Week no Japão. — Nem pense em voltar agora.
Ele não estava vendo Ali, mas sabia que ela devia estar com a testa franzida, encarando o celular com uma grande expressão de O QUÊ?
O que você disse? — ela riu fraco, sem humor — Por que eu não deveria voltar?
De repente, Changmin sentiu vergonha do aviso. Sentiu vergonha do ímpeto que teve de falar aquilo. Não, Ali não deveria voltar para Seul agora. Era muito perto, muito imediato. Eram menos de 2 semanas para ele colocar seu plano individual em ação. Ela chegaria e ele não teria feito nada ainda, não teria movido nada, e encontraria tudo na maior bagunça, encontraria aqueles dois juntos e de repente uma nova guerra mundial estava instaurada.
Ali atrapalharia ele. Isso não podia acontecer.
— Porque você não tem nada pronto. O que vai dizer pra ele?
Vou dizer que o motivo de toda aquela merda que passamos está andando livremente pelas ruas da mesma cidade que ele, dentro da empresa dele, é lógico. Ele vai ficar do meu lado.
— Como tem tanta certeza disso?
Porque foi o que Hoseok me disse. Você se esqueceu dessa parte? — ela estava começando a ficar irritada. Changmin não fazia o tipo que se esquecia de alguma coisa. — Esqueceu que foi ele quem me contou de Candice e Yoongi? Esqueceu que de todos os 7, ele era o que responderia minhas perguntas, mesmo que o Jungkook não soubesse? Ainda mais se fosse sobre o Jungkook. Ele torcia muito pela gente, sabe. Diz sempre que ele ainda me ama, e eu acredito. No início, ele não queria se envolver numa confusão dessas porque não tínhamos provas e estava no auge de tudo, mas agora podemos resolver isso por nós mesmos. Na surdina, mesmo que eu ainda queira dar um jeito de colocar o nome dessa desgraçada na primeira capa do jornal.
Changmin revirou os olhos. Misericórdia. Ela estava usando aquele tom determinado, aquele tom que sempre resultava em problemas.
Ele bufou forte, tentando pensar em algo.
— Ali, me escuta. Mesmo que ele esteja louco pra te ver, agora não é um bom momento, tudo bem? Ele está prestes a lançar a música nova, vai começar a trabalhar no álbum novo, tá uma confusão…
Se eu for esperar Jungkook ficar sem trabalho, nunca mais vou pisar na Coreia, Changmin. Ficamos juntos por 3 anos, sei bem como funciona a agenda dele, e acredite, nada disso impediu encontro nenhum entre a gente. Qual é o seu problema?
Ele fechou os olhos com força, trincando o maxilar, martirizando a si mesmo por não ter pensado naquilo antes.
— Não tenho problemas.
Isso tem algo a ver com ela? Por acaso, você se solidarizou com ela ou algo assim?
Ah, não. De jeito nenhum. A coisa era bem mais embaixo, tão embaixo que Ali nem tentou perguntá-lo porque era absurdo. Edgar Zieger, o famoso fotógrafo mundialmente discreto, que ela bem conhecia, nunca tinha se apaixonado, nem sequer chegado perto da ideia, e estava constantemente servido das maiores belezas mundiais que os olhos humanos já viram. Ele também não era de se jogar fora, e Ali já tinha presenciado aquele rosto pela manhã, com seus óculos de grau e o cabelo de quem acabou de acordar e tinha certeza que agradaria a quem tivesse olhos para enxergar. Mas na questão da paixão… Edgar nunca tinha topado com aquele esplendor de sentimento. Essa coisa forte e um pouco maluca, impulsiva, que deixava você sem reconhecer a si mesmo.
Ele pensou o mesmo que ela, mas ao contrário dela, sorriu sozinho, de uma forma um tanto macabra, um sorriso que exibia outros tipos de pensamentos.
— Talvez tenha um pouco a ver com a garota, sim — ele soltou, concentrado na imagem reluzente e poderosa de . — Ela é bem talentosa, sabe. Independente do quanto você a odeie.
Ali riu com ainda mais sarcasmo.
Então você a quer pra você?
— Não tenta adivinhar as coisas — ele cortou antes que estendesse o assunto de novo, antes que ela decidisse olhar para essa direção, na direção dele. — Só confia em mim. Espera mais um pouco. Deixa ele sair um pouco desse estrelato, deixa as coisas voltarem a abrandar. Ele está prestes a tomar todos os charts mundiais. Você quer estragar isso colocando o nome dele nessa furada de novo?
Claro que eu não quero prejudicar ele.
— Então pronto, fica na sua só por um tempinho. Não vai demorar, são só umas lives, umas fotos e uns programas musicais. E então, depois disso, vou te receber de braços abertos em casa.
Ele falou com toda a confiança que tinha dentro de si e esperou. Ela permaneceu quieta e ele quase podia vê-la mordendo o lábio inferior, pensando e pensando, concordando com ele porque era verdade. Estar a caminho da Coreia agora causaria um tsunami no tempo errado, antes do previsto. E ela não conseguiria nem que Jungkook a olhasse nos olhos caso estragasse sua grande estreia solo. Ela só pioraria as coisas.
Por fim, ele ouviu a respiração bufante dela do outro lado, um resmungo que não entendeu, mas que não parecia ter sido direcionado a ele.
— Tudo bem, que assim seja. Te ligo depois — ela disse a contragosto e esperou mais um tempo até voltar a perguntar: — Posso mesmo confiar em você?
Edgar soprou mais uma grande dose de pêssego para o ar.
— Alguma vez não pode?
Mas ele deslizou um pouco na entonação, e Ali não era tão idiota assim. Ficava bem menos idiota quando estava sóbria, e não tinha deixado claro para ele aquele detalhe. Para Changmin, Ali Dalphin nunca estava sóbria, não pelo tempo suficiente para que toda aquela merda saísse de vez do seu organismo. Mas ela estava, de verdade, por mais difícil que fosse. Estava limpa e sã. Atenta a todos os detalhes. E soube que havia algo errado imediatamente.
Mas bem longe de Ji Changmin, nos fundos de uma cafeteria que se parecia com um presídio perto de Harajuku, o point mais badalado da Semana de Moda no Japão, Ali desligava a chamada enquanto revirava os olhos para a pessoa que tinha, aparentemente, seguido-a desde o showroom no pavilhão até ali, parada como uma estátua há menos de 3 minutos.
— Pois bem. Sou tão inesquecível assim pra você, Jaehyun?
Ele abriu um lapso de sorriso duro e afiado sob aquelas luzes alaranjadas.
— Vamos conversar.


"Continuo me lembrando que isso não é uma competição
Quando minha volta invencível se transforma na reta final."

🖤🎤 Perfect Sense


— Por que você não pensou que, sei lá, ligar fosse uma opção menos esquisita do que isso? — Ali perguntou a Jaehyun enquanto guardava o celular na bolsa, exibindo um sorriso doce e quase inocente. — Eu fui tão terrível assim pra você aparecer no café em vez de me convidar pra um?
— Você sempre foi terrível, isso meio que impede de eu te convidar pra alguma coisa — disse Jaehyun, sereno e imperturbável. Ele era capaz de te dar uma facada sem nem mover a sobrancelha. — Mas se pensa que eu te segui, tá enganada. Só consegui a informação de outro jeito.
— E que jeito seria esse?
— O jeito “seu agente tá podre de bêbado no after do Marc Jacobs e disse que você provavelmente estaria aqui.” — ele apontou para o entorno do lugar com uma torção mínima no queixo. — Lugar peculiar, eu diria. Achei que você gostava de uns pontos mais apresentáveis da cidade.
— Achei que você também, stripper da Prada — ela vasculhou a vestimenta dele com um olhar curioso e desdenhoso ao mesmo tempo. Ele usava um terno em lã angorá vistoso e caríssimo, com sapatos lustrosos e cabelos caprichosamente penteados para cima, montando um visual elegante e atraente que fariam Donatella exclamar como uma menininha.
Jaehyun segurou a vontade de revirar os olhos e fitou o ambiente em volta mais uma vez.
— Bom, já que estamos aqui, eu vou pedir um Americano — e começou a andar na direção de uma mesa afastada na lateral, bem longe do balcão ou da entrada. Ali ergueu uma sobrancelha.
— Agora isso é um convite?
Jaehyun se virou antes de se sentar.
— Você pode ir embora, se quiser.
— Tá falando sério?
— Não. Senta aqui.
Ela quis xingá-lo, mas ele parecia sério demais naquele visual diretor de escola e isso acabou dando uma vontade de rir, mas ela não se moveu. Não tinha tempo pra tomar um café, e nem tinha qualquer interesse em fazer isso com Jeong Jaehyun. Já bastavam os dias do Texas a Los Angeles, aquele choro vergonhoso no carro, o olhar julgador dele em seu momento mais vulnerável e, claro, o fato de que ele a fez de idiota. Ele era tipo a última pessoa que ela queria passar um tempo, logo abaixo de seu pai.
Porém, mesmo já tendo feito tudo que precisava ser feito com Jeong Jaehyun, ela encarou aqueles olhos miúdos com um nítido desafio e suspirou.
— Tudo bem — ela se sentou na cadeira à frente da dele, apoiando os antebraços na mesa. — Vamos ver como você me entretém.
— Não sou bom com essas coisas.
— Abra alguns desses botões e vamos saber a resposta.
Ele fez um mínimo movimento de cabeça e digitou algumas coisas no painel digital em cima da própria mesa larga de carvalho. A alguns metros dali, o balcão da entrada deveria estar recebendo seus pedidos sem que eles precisassem se levantar.
— Acho que você preferiria mil vezes estar sentada com outro stripper vestido de Prada do que eu.
— Você tem razão. Não faço ideia do porquê você está aqui — o sorriso dela diminuiu bruscamente, mas não sumiu. No fundo, talvez ela soubesse porque ele estava ali, mas não queria ser a pessoa a revelar isso. Talvez fosse porque estava arrependido por ter mentido pra ela sobre toda aquela merda e quisesse se redimir. Ou só queria colocar em prática mais uma tentativa de enrolá-la de novo, porque tinha certeza que ela era apenas uma garota linda e divinatória por fora, mas oca e burra por dentro.
— Estou aqui pra conversar — respondeu ele. Ali emitiu um ruído sufocado.
— Essa é nova. O que a gente teria pra conversar?
— Bom, a gente já conversou bastante.
— Sim, quando eu estava em um momento ruim. Mas descobri que quando as coisas vão bem, não tenho a menor vontade de falar com você.
Jaehyun crispou os lábios e nem tentou refutar nada, porque no instante seguinte, uma garçonete baixinha usando avental preto chegou a passos rápidos na mesa deles, largou as duas canecas fumegantes de café no tampo e se retirou.
Ele agarrou o braço da cerâmica e engoliu uma grande parte do líquido, fazendo uma careta pela ausência do açúcar, exigência de Gregory e toda a parafernália da Prada com seus modelos extremamente magros, perfeitos e disciplinados. Imaginou que Ali estaria na mesma, mas viu que ela não tocou no café. Nem mesmo olhou pra ele.
— Não tem açúcar, pode ficar tranquila.
— Isso é uma perda de tempo — ela trincou um pouco o maxilar, e não estava falando do café.
Jaehyun depositou a caneca de volta na superfície da mesa.
— Olha, não vou acreditar em você e nesse papo de que não quer falar comigo. Quer dizer, eu sei que você nunca quis ser minha amiga e nem nada disso, e eu muito menos, mas você foi atrás de mim em Chicago. Você me acha confiável.
Ela quis rir. Gargalhar como louca.
Confiável. É. Você é a reencarnação do Dalai Lama, como não seria confiável?
Ali não conseguiu segurar a ironia. Encarou aquele rosto tão pálido e confiante em busca de um vacilo, e ganhou um retorno disso. Jaehyun tremeu ligeiramente os dedos repousados na caneca, e desviou os olhos para a lanterna de papel cúbica acima da cabeça deles, jorrando luz dourada sobre toda a mobília.
— Tá bem. Já entendi — ele suspirou, e recostou-se com mais folga para trás na cadeira. — Você tá brava comigo. Já sabe de tudo.
Ali fez um ligeiro movimento com a sobrancelha, mas não disse nada. Jaehyun concluiu, com voz derrotada:
— É tudo por causa das fotos, não é? Você ficou preocupada com a repercussão que a coisa teve e eu nunca mais te liguei. Fui um idiota, me desculpe. Mas olha, deu tudo certo, nem uma criança seria capaz de te reconhecer no meio daquela coisa borrada–
— O quê? Acha que eu tô zangada por causa daquela palhaçada de faz de conta que inventaram sobre a nossa foto? A fanfic mais ridícula de todas da sua namorada secreta?
— Então você está zangada.
Ali endureceu o canto da boca sem nem tentar esconder o desgosto que estava sentindo. Ele parecia estar se fazendo de desentendido e ao mesmo tempo não parecia, o rosto entalhado do cara era um mistério. Tão misterioso quanto a sua aparição do nada.
— Você é um mentiroso — ela soltou, e mexeu na alça da caneca. — Acho que você devia voltar pra suas aulas de teatro. Vão devolver sua carteirinha se continuar sendo tão ruim.
— No que eu estou mentindo?
— Preciso mesmo dizer? Você tá mentindo sobre tudo — ela deu de ombros, e estava odiando ainda mais aquele rosto inexpressivo de quem está por fora do assunto. — Por que você está mesmo aqui? Como chegou aqui? Acabou de pousar ou estava me observando o tempo todo? Marco está mesmo bêbado enquanto tenta um contrato com o Jacobs pra mim ou você também inventou isso?
— Faz menos de 1 hora que pousei, o que significa que infelizmente não consegui te ver no desfile da Versace e o Marco parecia mais estar flertando com o Jacobs do que te conseguindo um contrato — ele verificou o Rolex brilhante no pulso por um segundo, ainda programado no horário de Seul. — E faz tempo que eu não te vejo. Queria saber como você estava depois– depois daquela loucura toda.
Loucura. Ótimo jeito de definir.
— Eu? Melhor impossível.
— Bom. Bom — ele desviou os olhos para o café novamente, e estava estampado no rosto que não acreditava naquilo. — Fiquei um pouco preocupado com você. Sabe, você não levou a situação muito bem, tava chorando e tremendo no banco do carro o caminho todo e pensei que, talvez, depois que eu fosse embora você tentaria ir atrás da garota de novo, sem mim pra te impedir…
— Não precisei fazer isso — ela tentou sorrir, mas nem o veneno invadindo sua boca foi capaz de deixá-la fazer isso. — Ela veio até mim.
Jaehyun travou os dedos antes de um novo gole. Agora não tinha conseguido disfarçar tão bem assim a indiferença.
— Como assim?
— A vadia me ligou e marcou um encontro, foi isso.
— E o que ela te disse?
Ali desejou ter força suficiente pra virar aquela mesa naquele rostinho lindo e no paletó impecável até desfigurá-lo inteiro. Ou ter um surto de violência e jogar o café quente nele. Várias coisas que o fariam entender que ela estava cansada de ser tratada como trouxa por ele.
Com a raiva espumando dos olhos como a borda do café, Ali se aproximou do meio do móvel, erguendo o queixo para murmurar entre os dentes:
— Você sabe muito bem o que ela me disse, seu imbecil desgraçado.
Os olhos dele permaneceram estáticos por meio segundo até brilharem com o entendimento, o que o fez abrir a boca e tornar a fechá-la, duas vezes.
Jaehyun olhou para os lados instintivamente, mesmo que não tivesse ninguém a uns oito metros deles.
— Eu– Eu não entendi, o que ela…
— Para com isso agora, Jeong Jaehyun, ou juro que levanto e saio agora dessa merda.
Jaehyun relaxou os ombros, agora inteiramente derrotado, sem esconder os vincos na testa e o maxilar trincado. Ele também tinha um brilho de raiva nos olhos, mas Ali imaginou que era mais por ele do que por ela. Ela não achava que ele queria estar ali, agora, naquele lugar e em sua companhia, mas estava se esforçando por algum motivo. Qual?
— Tá bom. Acho que não adianta mais mentir.
— Você é horrível nisso — ela torceu a boca. — Mas é muito persistente. Conseguiu me distrair o suficiente na América pra que eu não percebesse nada. Se pudesse, pediria pro universo pra me devolver aquele dia vergonhoso em que pedi sua ajuda.
— A garota te contou? — Jaehyun continuou como se ela não tivesse falado mais do que umas sílabas aleatórias. — A Hilary. O que ela–
— Ela me contou tudo, seu babaca. Tudo que você não fez questão de me contar — ela espumou, segurando a mão para não desferir um tapa na mesa. — Como eu fui tão burra? É claro que você sabia quem era. Você estava no camarim, e mesmo se não a tivesse visto, você a viu depois em Seul. Viu e não disse nada, absolutamente nada sobre isso! Pelo amor de Deus, você é um otário — a raiva de Ali ia tomando espaços ainda mais amplos dentro do seu organismo, mas ela não se importava. — Uma garota que claramente tem alguma obsessão pessoal pelo meu namoro, que viajou pela droga do Pacífico pra ir parar na cola do Jungkook e você sabendo de tudo isso, deixou acontecer! Você tem ideia de como ela pode ser perigosa? Tem ideia das coisas que ela pode aprontar pro Jungkook? E você nem fez o favor de contar pra ele!
O nojo no rosto de Ali parecia quase estapear Jaehyun, mas ele não parecia tão ofendido quanto ela pensou. Os ombros estavam rígidos sob o paletó fino, os olhos vazios e, subitamente, ela viu os dedos apertados em cima da mesa, como se ele estivesse tentando prestar atenção em duas coisas ao mesmo tempo: no discurso dela e nos sibilos dentro da própria cabeça.
— Não– Calma aí — Jaehyun passou uma mão desorientada no rosto, forçando sua atenção em Ali. — Você tá viajando. não fez isso pra perseguir o Jungkook, ou você–
— Ela estava matriculada nas minhas aulas do curso. Isso não soa estranho pra você?
— Não sabia que as aulas na UNS eram limitadas a um aluno.
— Não vem com essa, ela foi atrás de mim no banheiro. Me pegou em um momento frágil e acreditei que ela era uma pessoa legal querendo me ajudar. Quando fui embora, foi com ela que eu falei, foi nela que eu confiei. Eu tava um caco naquela época, e só queria me abrir pra alguém que parecia não dar a menor bola pra mim. Mas pensando agora, todas as peças se encaixam. Ela soltou nossas fotos na mídia e não acreditou que fôssemos terminar, mesmo com todos os xingamentos e rumores falsos. Então veio pra Seul pra verificar isso por conta própria e tentar conseguir mais material pra essa merda de assunto continuar em alta e lucrar em cima disso. E eu caí.
Ali falava com uma convicção inabalável, como se estivesse respondendo seu nome, sua idade e a cor favorita de lingerie. Jaehyun continuava parado, os olhos se arregalando e voltando ao normal em um looping infinito, preso em uma brisa particular de puro desvario que levavam suas respostas imediatas pra longe.
— Você– Nossa, deve ser medonho morar dentro da sua cabeça.
— Não me diga que é mentira.
— Ah, é mentira sim. Mais da metade do que disse é mentira.
— Então ela conseguiu te enganar também — Ali sorriu com amargor, inclinando a cabeça. — Nada mal. Você parece mesmo influenciável.
— E você parece um pouco desequilibrada, mas isso não é estranho — ele voltou a puxar a caneca para um gole de café, falando docemente de novo, retornando à postura sutil de elegância já gravada nos movimentos. Ali cerrou os dentes do outro lado da mesa, sem sentir mais necessidade de fingir alguma coisa.
— Foi pra isso que você veio, não é? — ela decidiu dar uma chance ao café. — Você sabia que eu sabia, ou já tinha uma suspeita muito forte. E quis confirmar.
— Não posso querer ver se você tá bem?
— Corta essa, você não se importa tanto assim comigo. Mas se veio até aqui e procurou saber onde eu estava, quer dizer que se importa muito com ela.
Embora nenhum vento tocasse a pele de Jaehyun, ele sentiu um arrepio desconfortável nas costelas, resultantes tanto do tom ácido da voz de Ali quanto daquele sorriso emoldurado de “te peguei”. Ele se esforçou muito para não exibir nenhuma expressão de choque ou afirmação.
— Se você está dizendo…
— E você não está negando.
— Porque isso não importa. não é seu alvo. E em algum momento você vai perceber isso.
— Eu não disse nada sobre alvos.
— E nem precisa. Acha que eu sou idiota? Sei que você tá tramando alguma coisa pra se livrar da garota, ou pra perturbar toda a paz da capital por causa de uma vingança que não faz sentido. tirou aquelas fotos, mas não publicou e fim de papo. Vai me dizer que sua Kim Possible não te contou isso?
Ele arqueou uma sobrancelha com um tom de voz óbvio e sarcástico demais para o próprio gosto, mas não conseguia se controlar. As soluções de Ali sobre aquele assunto e até sobre a vida no geral eram problemáticas demais. E, infelizmente, na teoria, com o seu nome, status e dinheiro, não havia nada que a impedisse de ser a maluca que quisesse.
Do outro lado da mesa, a loira abriu um sorriso sem mostrar os dentes, delineando a borda da caneca com as unhas pintadas de púrpura.
— É claro que você não entenderia — murmurou ela, visualizando o que estava acontecendo ali: Jaehyun a manteria falando e falando até que dissesse algo que pudesse ser usado contra ela. — Devo te alertar que suas tentativas de me fazer mudar de ideia vão falhar de novo ou deixar você ir falando só pro meu entretenimento?
— Qual é, Ali — ele bufou e o café perdeu a graça. — Pensa comigo. Você queria a garota pra ter o que apresentar ao Jungkook, pra que ele te perdoe. Mas e se ele já tiver feito isso?
Ali parou. Os olhos confiantes de Jaehyun brilharam sob aquela luz forte, e ela sentiu que, pela primeira vez na vida, estava ouvindo-o de verdade.
— D-do que você está falando? — Sua voz vacilou explicitamente, o que foi patético, mas ela não voltou atrás. Jaehyun expirou baixinho pelo nariz e se aproximou um pouco mais para o meio da mesa.
— Lembra da história que me contou do barco?
— Você contou pra ele — Ali torceu a boca. Suas costas foram automaticamente para trás. — Ah, Deus. Então ele sabe. Por que você– O que ele disse?
— O que você acha?
— Eu não sei…
— Você acha mesmo que o Jungkook ia… deixar de te amar? — Jaehyun soltou a frase como se gorfasse um filhote de foca. Dava pra sentir a areia na língua, entre os dentes. Mentir descaradamente daquela forma nunca foi do seu feitio, e mesmo que estivesse acontecendo tanto ultimamente, ainda era muito difícil. Talvez Ali estivesse mais certa do que esperava sobre aquele lance de ele ser um fracasso como mentiroso. — Depois de tudo que vocês viveram, todos os planos que fizeram. Acha que ele esqueceria você?
Apesar de tudo, os ombros dela enrijeceram tanto que até as pálpebras tinham congelado, impedindo-a de piscar. Ele viu o movimento nervoso das pupilas, os dedos dela despencando sobre a madeira, toda aquela proteção e parede de ferro que tinha erguido para fugir dos discursos dele se dissolvendo como massinha. Se tudo desse errado, ela gritaria agora com ele e sairia pela porta da frente com ainda mais desejo sanguinário de detonar . Talvez até desse um jeito de fazer algo com ele, uma brincadeirinha de mau gosto, como incluí-lo em toda aquela história publicamente só pelo prazer de ver o circo pegar fogo.
Mas a rigidez de Ali indicava o contrário. Por alguns minutos, o silêncio reinou tanto que o único som entre eles eram os passos e tilintares de louças e máquinas de café vindas do balcão.
— Você está dizendo que… — a voz dela começou como um ruído baixo farfalhando no ar, mas se transformou muito rapidamente em um som mais concreto: — Droga, Jaehyun, não mente pra mim. Para com isso.
— Sou um péssimo mentiroso. Você mesma disse.
— Você só tá dizendo isso pra livrar a sua amiguinha de sofrer as consequências do que fez. Qual é o seu problema? Tá transando com ela?
— Não — mais um pedaço enorme de cascalho que se deslocou através da garganta dele. Aquela conversa com Ali estava sendo um belo teste de manipulação de feições, onde ele precisava admitir fatos desagradáveis e fingir que não eram tão desagradáveis assim. — E com certeza eu e não somos da sua conta.
— Ótimo, não dou a mínima pra vocês dois. Você parecia mesmo ter um desvio de caráter patético.
— Eu tô falando sério. Sobre o Jungkook — ele apoiou os antebraços na mesa e se aproximou mais, compondo o rosto com mais seriedade. Não dava pra deixá-la distrair agora. — Você se desdobrou pra ferrar com a pra ter ele de volta, mas e se você não precisar dela pra isso? E se soubesse que ele já tá te esperando? Sendo muito chato, aliás. A vida dele parou no tempo. Talvez ele possa querer te prender no pé da cama se te encontrar de novo, pra você nunca mais fugir.
Ela riu com sarcasmo, e Jaehyun não retribuiu ao gesto. Estava sério demais, com seu bom ar de superintendente de sempre, aquele tipo de pessoa com um senso de humor muito limitado. Ele está mentindo, ele está mentindo, a cabeça dela gritava, balançando bandeiras vermelhas em direção à Jaehyun, mas seu coração não quebrava esse galho. Estava agitado, entusiasmado, pisoteando toda a sua razão e todos os seus planos só de se deixar imaginar a história de Jaehyun como verdade. Estava suspirando de felicidade por isso.
Jungkook ainda a amava. Dava vontade de berrar isso, suspirar apaixonada. Durante todos aqueles meses, Ali tinha deixado essa suposição na caixinha que pertencia: a de suposições. A de assuntos a serem resolvidos mais tarde, depois que fizesse o que precisava fazer, que envolvia colocar no seu devido lugar e se livrar daquele peso de injustiça do peito. Depois disso, poderia se concentrar nela e Jungkook, e no que fariam agora que estavam livres, longe da pessoa que poderia aproveitar pra repetir a dose e colocá-los na boca do povo de novo.
Ali quase nunca chegava nessa parte na imaginação dos seus planos. Não conseguia prever as reações de Jungkook, imaginar se ele ainda iria querer alguma coisa. Por mais que ficasse ao lado dela no combate à paparazzi e agissem juntos depois que ele soubesse de tudo, voltarem a namorar era um papo muito incerto na sua cabeça. Afinal de contas, sua fuga existiu, o barco existiu, o beijo no estranho existiu e alguma coisa deve ter mudado nele depois disso. Deveria ter mudado.
Mas agora…
— Íamos morar juntos. Se tudo aquilo… — ela se interrompeu e olhou para baixo para alisar o braço, puxando as mangas do suéter Burberry para cima. — Bom, ele queria morar comigo, na verdade. Eu tava um pouco indecisa. Acho que fiquei apavorada por isso também.
Jaehyun assentiu devagar, exalando uma compreensão misturada com indiferença que o fariam ser eleito o melhor do clube de teatro da escola.
— Ele continua do mesmo jeito, Ali. Vai querer continuar de onde parou, você sabe como ele é. Maluco de paixão por você, é capaz de te comprar uma aliança.
— Você tá exagerando — ela riu sem humor, mas o coração deu uma pirueta.
— Será que eu tô mesmo?
Ali o encarou por muito tempo. Não estava mais pescando mentiras, estava querendo ouvir mais. Sua postura tinha mudado quase radicalmente, e ela se esqueceu de toda a história de , revistas de fofoca, Los Angeles e Ji Changmin. Ponderou muito se essas coisas valiam a pena a partir do momento em que o que mais queria já estava disponível, esperando, deixando explícito que ela não precisava correr.
Uma vibração sutil fez Jaehyun levar a mão ao bolso de trás da calça social e olhar para a tela piscando com neutralidade antes de recusar a chamada e suspirar.
— Tenho que ir. O showroom dos fornecedores vai começar e é hora de torcer pra não lacrimejar com tanto flash — ele deu de ombros e bebeu um último grande gole do café. — Pensa no que eu disse. Se quiser voltar pra Seul, já sabe o que vai encontrar. Só precisa escolher se vai querer seguir o caminho mais fácil ou mais difícil.
— Querer um pouco de justiça é tão difícil?
— Não, esse é o caminho fácil. Difícil é ser honesta consigo mesma e virar a página. — ele puxou uma nota gorda de dinheiro da carteira, já convertido em ienes, e a depositou na mesa. — Vamos tomar um café qualquer dia desses, caso se sinta solitária quando chegar no aeroporto de Incheon.
Ali sorriu um sorriso que as serpentes fariam caso pudessem.
— Valeu o convite, mas você não seria a primeira pessoa na minha lista.
— Já vai atacar de cara assim? — Jaehyun arqueou as sobrancelhas. A loira deu de ombros.
— Eu tenho amigos.
— Ah é? Isso é novidade — ele engoliu em seco. O nome de Changmin buzinou nos seus ouvidos. — Eu conheço seu amigo?
— Não sei. Ele é fotógrafo, coreano, bonito, aquela cidade não é cheia deles? — e no momento seguinte, Ali estava se levantando, passando a bolsa Gucci pelo ombro enquanto jogava o cabelo para trás das duas orelhas. Em alguns metros atrás deles, uma moça que segurava um cappuccino descafeinado mirou aquela bolsa com um desejo ardente nos olhos antes de sair. — Vou deixar você aí e sair primeiro. Não precisamos correr risco desnecessário, não é? — ela sorriu sem mostrar os dentes e se virou para a porta, mas parou e voltou, inclinando-se para ele e sibilando: — Posso pensar no que você disse. Mesmo que eu saiba que talvez seja tudo porque você quer levar a paparazzi pra cama.
Jaehyun abriu um sorriso enviesado, com talvez os únicos resquícios de egoísmo que acumulou durante toda a vida.
— É, talvez eu queira.



Eu acho isso uma péssima ideia, você precisa saber disso”, Candice disse naquela manhã enquanto misturava furiosamente uma grande porção de leite no café. “Devia ficar em casa descansando, rezando, ou assistindo a 5º temporada de Gilmore Girls. Se está precisando tanto se distrair, existem várias opções maravilhosas que não seja encarar de novo um lugar mal assombrado.”
Lá não é mal assombrado”, torceu o nariz enquanto puxava a torrada da torradeira.
Agora é, e vamos tomar sorvete de pistache por dois meses por conta dessa cena terrível e macabra com o Soobin. Ah, é mesmo”, Candice puxou um dos potes do freezer, amontoado em cima de outros tantos. “Sorvete. Método clássico e com 99% de eficácia pra esquecer as merdas da vida. Quando estou triste, é pra ele que eu levo meus problemas, você devia tentar.
Por um momento, quis revirar os olhos e ignorar a amiga completamente, mas sabia que Candice estava apenas muito apavorada pra dizer coisas coerentes. Ela era péssima pra lidar com cenas cruéis e problemáticas de verdade, envolvendo-se na magia de Hollywood sempre que batia de frente com aquele tipo de coisa. Ela era uma jornalista, afinal de contas. Um tipo especial que buscava notícias escandalosas e descrevia atrocidades detalhadamente em um documento de Word Pad, sendo um dos seres humanos mais talentosos com as palavras que já conhecera. Candice seria capaz de te fazer acreditar que a Terra era quadrada, se assim quisesse.
A história de Soobin, no entanto, foi real demais pra ela. Saber que existem celebridades por aí que passam o tempo livre se enchendo de drogas pesadas pelo nariz ou pela boca era uma coisa, mas ouvir um relato tão pessoal e detalhista vindo de uma pessoa tão próxima era outra. Fez parecer que a própria Candice esteve lá, o que lhe revirava o estômago.
Apesar disso, conseguiu convencê-la de que estava bem e que, caso sentisse que estava ficando louca e em pânico de novo – com suas lembranças recém descobertas, que não fez questão nenhuma de contá-las a Candice –, correria pra sala e colocaria o primeiro filme de ação que encontrasse no streaming. Yoona tinha falado sobre um com um bando de feras com chifres brancos que despencavam do céu em ondas, e parecia ser trash o bastante pra que ficasse bem entretida.
E na manhã que finalmente estava voltando ao trabalho, topou com algumas coisas estranhas.
A primeira foi o SMS que recebeu de Wonnie dizendo que Sooyoung tinha dado carta branca para que ela ficasse um dia a mais em casa depois do ocorrido com Soobin. Só isso, sem nenhuma explicação. Talvez aquele fosse o jeito da diretora de se preocupar com o estado mental de , ou talvez ela só não suportasse ainda olhar pra qualquer elemento que tinha feito parte daquele escândalo do garoto e seus remédios.
A segunda foi ter, de fato, aparecido na empresa e não ter recebido um mísero olhar de avaliação ou julgamento sequer.
É lógico que o assunto não tinha sumido dos corredores, ainda mais que só fazia um mísero dia que Soobin tinha sido levado ao hospital, mas se tinham coragem de julgar a vítima, também tinham de julgar a pessoa que a encontrou e entrou em colapso nervoso. Essa pessoa, no caso, era , que imediatamente começou a chorar e soluçar sem mostrar um centímetro de utilidade para ajudar uma vida humana. Uma vida humana muito importante, por sinal.
achou que estariam falando. Era óbvio. Naquele dia, todos em torno dela estavam olhando, cochichando, adivinhando, supondo, e Deus era muito bom por não ter dado-a a habilidade de ler pensamentos, porque com certeza se chocaria ainda mais com o que encontraria lá. Reparou pouco nisso, porque estava se sentindo oca e perdida no meio da confusão, mas ao passar por aquelas portas giratórias de vidro na entrada, esperava ser bombardeada com a mesma visão dessas pessoas em prontidão pra jorrar sua curiosidade, maldosa ou não, pra cima dela. Mas nada disso aconteceu, e foi muito melhor assim, porque estava determinada a nunca mais abrir a boca pra falar daquilo com mais ninguém.
Ela passou pela catraca e fez o caminho de sempre até o setor de criação, sendo observada uma vez ou outra, mas nada que desse para achar estranho. As pessoas já a encaravam de canto de olho há meses, porque alguns funcionários das outras empresas acopladas à Hybe ainda achavam surpreendente ter uma estrangeira – talvez latina, talvez africana, talvez nativa americana, vai saber – trabalhando sob o mesmo teto que eles, uma que estava durando até tempo demais.
Ela mandou uma mensagem para Yoona dizendo que estava de volta, cortando o assunto da amiga, que tinha lhe mandado um áudio de 5 minutos só para contar das novidades que tinha ficado sabendo por literalmente ouvir conversas no corredor:

Bang Si Hyuk está pensando em construir um pequeno lago na entrada da empresa. Ele ficou doido? O que pensa que isso é? Um hotel? As pessoas vão acabar se confundindo e pronto, perdemos a autoridade.
Você voltou? Então já está tudo bem?
Besteira, você voltaria mesmo se tivesse que amputar uma perna.
Mas é sério, se não estiver bem, me fala que te levo pra casa na hora. Prometi à sua melhor amiga e ao seu namorado que cuidaria de você.
Quero dizer, prometi ao Jungkook nos meus pensamentos. E acho que você não precisa saber as coisas que já pensei sobre ele.
No passado, NO PASSADO
Eu era ridícula há 1 mês atrás
Você pode pegar novos cartuchos pra impressora? Estão no almoxarifado do 2º andar.
Eu até pegaria, mas Dongwook quer discutir sobre a inserção de atrizes ou não no roteiro do MV, e isso vai levar tempo, e infelizmente não posso deslizar pra fora daqui sem que ninguém me enxergue, eles são fofoqueiros
Não que eu não seja, mas você entendeu
Pode pegar?

tinha acabado de entrar no elevador enquanto lia todas as mensagens, chocando-se cada vez mais com a capacidade de Gong Yoona de digitar. Ela também sabia digitar, mas definitivamente não sabia como alternar tantos assuntos em incríveis 10 segundos.
A caixa metálica ainda não havia se movido quando ela respondeu: Sim, estou bem. Vou pegar os cartuchos. E pare de fazer promessas.
Yoona era um pouco exagerada com aquela coisa de promessas. Fazer uma significava que ela perderia o sono e a boa saúde para cumprir. Parecia nobre, mas para , era muito exagerado. Ou ela estava tão acostumada a um plano de fundo onde as pessoas simplesmente quebravam seus combinados e desapareciam, que encontrar alguém como Yoona era um pouco assustador. Alguém ser tão honesto e nobre sobre outras pessoas? Jesus, que coisa mais estranha.
Mas por um momento, se sentiu grata por isso. Por ela. Porque agora sabia que achou Yoona um pouco estranha aquele tempo todo só porque ela não achava que merecia tanta atenção, tantos elogios, tanta disponibilidade de uma pessoa, seja de amor ou amizade. Achava Yoona inconveniente – por mais que ela realmente era, algumas vezes – porque preferia pensar coisas que a fizesse achar um defeito nela, pensar mal, não deixá-la se aproximar. não gostava que as pessoas ultrapassassem algumas linhas, não gostava de contabilizar muito do novo, ficava nervosa com a iminência de alguém se aproximando demais e correndo o risco de topar com a sua bagunça.
Candice tinha forçado esse portão adentro, mas foi exclusiva por um bom, bom tempo. Nada aconteceu depois da invasão da loira. Mas quando Jungkook surgiu e todas as questões pessoais e emocionais que foi forçada a encarar sobre si mesma, ficou congelada em um diorama de incertezas, questionando sua vida inteira até entender que seu coração poderia sim caber outras pessoas, outras coisas, outras estações favoritas. Que ela estava erguendo paredes para um mundo cheio de coisas boas e novas. Sentindo-se mais amada, mais especial, competente e digna de felicidade, não viu problemas em simplesmente ter amigos. Trazer mais pessoas pra perto. Deixar que elas entrem e tomem um café, até que saibam de alguns aspectos de sua vida.
Ela emergiu para fora daquela caverna escura da qual não se lembrava de ter se enfiado e a sensação era simplesmente maravilhosa.
Então, ela abriu a conversa de Yoona e editou a última mensagem.
“Trata de manter a sua promessa.”
saiu no 2º andar e continuou digitando no telefone. Perguntou a Jungkook se era um bom dia para almoçarem juntos ou se ele faria hora extra de novo. A poucos dias do lançamento, não sabia direito quais eram os horários dele, e muito menos o próprio. Pela primeira vez, o maknae estava participando de tudo, de cada detalhe de cada etapa da produção, mesmo que isso o deixasse maluco às vezes, mas ele estava lidando bem. Tinha dado dicas sobre os takes das câmeras, ficado ao lado do diretor para os detalhes, viajado até o limite do país para gravar tudo, e precisou de apenas 1 segundo para dizer seu primeiro “não” por causa de algo que não concordava. De alguma forma, ele também estava saindo de uma caverna com aquele lançamento solo, um onde ele se jogava na frente de tudo e tinha confiança em fazer as coisas do seu jeito. Quem diria, Jeon Jungkook. Se fosse um sucesso como estava previsto para ser, nada mais o pararia. O próximo destino seria o mundo inteiro.
Ela estava sabendo lidar melhor com a ideia, mas ainda não queria ficar pensando nisso. O próximo passo agora era que ele finalizasse e fizesse a festa que tanto prometeu aos amigos: uma festa de lançamento, nem que fosse para beberem cerveja na beira de sua piscina. Uma festa que era importante pra ele, muito importante.
Ela não recebeu uma resposta imediata e parou em frente à porta do almoxarifado mais rápido do que pensou, e tentou abri-la naturalmente. Nada aconteceu. Ela tentou de novo e nada. A porta não parecia estar trancada, por mais incrível que pareça. tentou empurrar e ela se moveu um pouco. Mais um pouco, e ela estava chegando lá. Empurrou de novo e quase tropeçou para dentro, batendo o queixo na metade de um armário industrial, que tinha sido arrastado de um jeito torto e sem capricho para manter a porta fechada.
— Mas que merd… — praguejou, entrando mais um pouco, esfregando o queixo com frustração, mas quando estava lá dentro ouviu uma movimentação e as respirações abafadas sendo pegas de surpresa, e o que ela viu foi pior que uma coronhada na cabeça.
Taehyung automaticamente empurrou o cara que estava beijando para trás, o que fez o rapaz quase estalar o pescoço. Quando foi vista, os dois arregalaram os olhos e ficaram imóveis, como se tivesse surpreendido-os com uma pistola apontada para ambos, mas não dava pra ignorar a própria cara de incredulidade que ela fazia.
Taehyung quase gritou:
— Puta que pariu!
— Droga — o outro falou em um sussurro, e não o reconheceu. Não fazia ideia de quem era, mas usava um crachá da empresa, o mesmo crachá que ela usava.
Foi então que a realidade desabou sobre sua cabeça e ela levou as duas mãos aos olhos.
— Desculpa, desculpa — o pedido saiu automaticamente de sua boca, sem parar. — Desculpem, eu não sabia — ela virou as costas para sair, sem saber o que fazer, o que pensar. Não havia mais tempo para desver aquilo. A porta estava logo ali e foi pra onde os pés de marcharam, mas um impacto no seu ombro a fez voltar a parar, um impacto forte demais seguido por um borrão vermelho atravessando o batente antes dela e desaparecendo. Ela se virou de novo para trás, encontrando apenas Taehyung na outra parede com aquele rosto contorcido de flagrante.
O outro cara tinha se atirado para cima dela sem mais nem menos, focando apenas a saída. Ele devia estar muito assustado.
— Foi mal, — curiosamente, ele não parecia constrangido. Não tanto quanto ela. — Você não devia ter visto isso.
— Não devia mesmo — ela respondeu no automático. — Quer dizer, ninguém deveria. Isso foi arriscado pra caramba, a porta nem estava trancada, e ele era… — um funcionário! ela quis gritar com um certo horror, mas parou porque a vergonha de Taehyung parecia estar finalmente aparecendo. Ele olhou para o chão e tudo ficou ainda mais pesado, esquisito. Não havia nenhum ruído ali, como se o mundo tivesse parado para observar aquela cena e esperasse a próxima reação dele.
Bem, com certeza estava esperando alguma coisa dele. Mesmo que nem percebesse isso.
— Ele trabalha no setor financeiro. Fica só a um andar daqui, achei que não daria problema — ele justificou como se fosse a juíza do caso, o que não era nada razoável. — Mas é claro que não pensei bem nisso. Olha, desculpa, eu…
— Você não tem que me pedir desculpas, Taehyung.
— Eu sei, é só pra completar com um pedido: não conta pra ninguém. Tudo bem?
Ora essa, ele nem precisava pedir isso!
— É claro que sim. Só tenta não… Você sabe.
— Claro. Mas é claro. Isso nunca mais vai acontecer — ele se aproximou de , claramente aliviado, ainda com um pontinho vermelho na bochecha. — Eu e ele, nós… Não é nada. Conheci ele tem 3 dias e achei que eu precisava de algo mais imediato, pra ver se esqueço um pouco… dos meus problemas.
assentiu. Aparentemente, Jennie tinha mudado o nome para problemas.
— Aham. Você não tem que explicar também, além das desculpas. Podemos só esquecer e fingir que nunca aconteceu, que tal?
— Ótima ideia.
— Perfeito.
Completamente maluca para sair daquela sala, se virou novamente para a porta, e quis dar um grito abafado quando sentiu os ombros de Taehyung roçando nos seus, pronto para sair junto com ela.
— Vai ao estúdio? — Diga não, ela torceu, porque significava que precisariam pegar o mesmo elevador e estender todo aquele constrangimento horrível.
Ele pareceu pensar na mesma coisa, porque logo balançou a cabeça em negação, mais vezes que o necessário.
— Não, não, vou pra casa. Eu só vim falar com o Bang, ou… Só vim — ele desviou os olhos e baixou o tom de voz. — Vou pra casa agora. Dar um mergulho, ou tomar uma água, ou, você sabe… — ele quis parecer sugestivo, mas estava piorando tudo. queria só sair sem falar nada. Queria que ele calasse a boca e abrisse a porta, só isso.
— É, claro. Preciso ir, estão me esperando.
Ela nem se preocupou com o tom, só queria escapar daquele ar parado à sua volta. Taehyung entendeu e assentiu, finalmente girando a maçaneta e saindo, mantendo a porta aberta para que saísse atrás e ainda caminhou com ela por longos metros até o elevador, despedindo-se timidamente antes de seguir para as escadas.



fez questão de esquecer do assunto assim que as portas duplas do elevador se fecharam, mas no meio de toda a confusão, tinha esquecido outra coisa também: os cartuchos. Ela nunca tinha visto Yoona ficar nem perto de brava, mas pareceu por um momento que uma pontinha de frustração raivosa escapou daqueles dentes quando ela disse: A que horas aqueles marmanjos com síndrome de superioridade vão receber as cópias do meu rascunho desse jeito?
Ela se sentiu mal depois, mas já estava voltando ao almoxarifado, porque dizer que preferia não voltar iria soar esquisito. Bem esquisito. Preferiu confiar nos afazeres de Taehyung e torcer, torcer muito para que não encontrasse o rosto do outro zanzando por lá – ou em lugar nenhum da empresa. Ela não o julgou em momento nenhum, mas fala sério, não dava pra tomar mais cuidado? Se outra pessoa, qualquer outra pessoa que não fosse a namorada secreta de um idol, os pegasse naquele cubículo, a coisa podia ficar feia. Ele não dava valor ao próprio emprego?
entrou e foi em busca dos cartuchos, sem olhar para nenhum dos lados. Era como se o tempo tivesse se tornado um ente letárgico ali dentro, mal existindo. A única sensação verdadeira que ela sentia era a da eletricidade da pressa, catando o primeiro pacote que encontrou e partindo para fora de novo, jogando o assunto para fora da mente outra vez.
De volta ao mesmo andar que Yoona, ela entregou o que tinha que entregar e correu até sua baia, jogando-se na cadeira de rodinhas em frente ao computador e entulhando a visão com aquela tempestade de planilhas que nunca tinham fim, mas que eram mais do que necessárias. Naquele momento, estavam sendo bem necessárias mesmo para um dilema que apareceu na sua cabeça sem mais nem menos quando pensou em Jungkook: conto ou não?
Preciso contar ou não?
sentiu o dedo formigar e até pegou o celular, mas desistiu no último minuto. Ela não era tão fofoqueira assim. Não esse tipo de fofoqueira. Era muito mais de ouvir do que de falar, mas ultimamente, estava ficando com a língua extremamente solta com Jungkook, comentando de coisas que não comentava, reclamando do que não reclamava e elogiando também o que não elogiava. Algo acontecia e, não importava se era grandioso ou não, ela já corria pra contar pra ele. A questão não era o conteúdo, era a atitude do falar, a conversa jogada fora. tinha isso com Candice, para assuntos que Candice entenderia, assuntos de garotas e de colegas de quarto, mas existiam assuntos que só um casal poderia ter, como: sabe aquele restaurante de wrap que você me levou? Ele fechou :(
O dono da lojinha de utilidades na frente da SNU me perguntou de novo se eu andava vendo o cara esquisito que me enquadrou na prateleira há meses atrás.
Nitro te contou que já sacrificou uma galinha? Por que Bob Dylan pediu?
Ele conhece o Bob Dylan?
O senhor Ahn tá insistindo que a Minolta vai rodar com filmes em 8mm, sendo que já deixei claro que meu modelo é outro e que só roda em 35. Fiquei cansada de explicar e ele não deu pra trás. Isso pode me travar completamente na hora de montar o portfólio.
Acho que vou alterar minha linha de pesquisa, não aguento mais fotografia ficcional. O fotojornalismo anda bem mais a minha cara, e não me suga tanto.
Eles não querem mais a Fuji no MV. Isso significa sacrificar grande parte da identidade do novo conceito, como eu explico isso?
Você nem imagina que cena eu presenciei hoje.
Ela começou a digitar e parou. Colocou os fatos na mesa: Jungkook e Taehyung eram amigos. Sabiam quase tudo um sobre o outro, inclusive das tendências que poderiam ou não ter dentro de uma empresa e dentro de uma dor de cotovelo. O fato de Tae estar beijando um funcionário clandestinamente em um depósito de papel cromado e filmes velhos de analógicas não iria surpreender Jungkook em nada. E talvez ele ficaria sabendo disso, naquele mesmo dia, talvez numa mensagem aleatória que Tae poderia mandar, tipo: Vocês não sabem da merda que fiz hoje.
E ele ainda mandaria no final: sabem o que é pior? Fui pego. me pegou.
Ele ficaria sabendo. Ainda comentaria com depois e os dois iriam rir disso antes de dormir, e pronto, ele não estava com urgência de saber.
Então bloqueou o celular e voltou às suas planilhas, crendo que tinha feito a escolha certa.



Tudo começou depois do almoço, quando Yoona tinha esquecido de levar seu chá de bolhas sabor pistache para a sala, um lançamento do Mamo-E que ela acreditava muito ser a nova melhor cafeteria da cidade.
sabia que ter ganhado a bebida não tinha a ver com ser amada por Yoona ou coisa parecida, mas porque o atendente do lugar era uma cópia esculpida do Park Bo Gum. A única diferença é que tinha uma tatuagem esquisita no antebraço esquerdo, um desenho com a forma de ossos de pássaros (ou alguma coisa perto disso), mas fora isso, atendia todos os requisitos de beleza e simpatia para tomar o lugar de plano B de Gong Yoona. O plano A, aparentemente, estava dando mais trabalho do que ela imaginava.
Cheol Gook Doo estava sendo incompreensível, de acordo com ela. Não entendia de flertes, e estava se mostrando quase como alguém que não entendia de pessoas. De mulheres, para ser mais exata. Estava difícil saber o que mais precisava fazer para que ele caísse no seu papinho e nos seus convites. Em última análise, ele seria descartado de uma vez por todas e abriria as portas para o sósia do Bo Gum ou alguns outros ratos de academia que Yoona vivia babando no meio da rua, mas existia algo em Gook Doo… Algo que não via e não compreendia, mas que não deixava Yoona largar o osso. Tinha a ver com sua inteligência? A serenidade com que conduzia as coisas? Ele convivia bastante com Candice Chaperman e parecia estar com as faculdades mentais em dia, então tinha uma cabeça bem forte, não é mesmo? Não havia como não ter.
Mas de qualquer forma, com Gook Doo ou sem Gook Doo, Yoona prometeu uma bebida muito interessante e não levou, o que fez soltar um muxoxo triste e voltar para a sala. Ela e Yoona almoçaram bibimbap e um corn dog cada uma para limpar as energias, como disse Gong. E também porque ela estava querendo começar uma dieta no dia seguinte e sabia que teria que começar a fazer sacrifícios – vários sacrifícios, que poderiam durar muito tempo, ou até que o plano A ou B se concretizassem. Yoona sempre gostava dos caminhos mais difíceis.
Foi no caminho de volta que ela notou os olhares aleatórios. Em seus termos, as pessoas sempre a olhavam de vez em quando, em qualquer parte que já pisou daquela cidade, tantas vezes que ela nem se incomodava mais. Era seu cabelo, seu tom de pele, suas roupas, pele, seu histórico com o BTS, o trabalho que andava fazendo com TXT, pele, a pouca maquiagem, o conhecimento quase geral de que era amiga de Candice Chaperman, pele, as sapatilhas, o seu testemunho na quase-morte de Soobin, pele pele pele pele?
Não dava pra adivinhar de verdade os motivos. Eram tantos. E se era algum problema, então esse problema pertencia a eles, não a ela.
Por isso, foi fácil ignorar e logo apertar o elevador e esquecer o assunto de novo. Ela tinha muito trabalho a fazer e não sentia que seria capaz de finalizar nem metade das demandas naquele dia.
Foi só depois de quase 1 hora, quando estava relendo todos os pedidos e abordagens que o diretor daquela vez, Yooshik, tinha respingado em uma reunião que durou quase o dobro do tempo preciso para disparar todas as suas exigências com os novos MVs – tanto o oficial quanto o de surpresa –, que ela levou um susto com a rajada de vento que Wonnie trouxe pra sua mesa quando chegou ofegante e um tanto desesperada.
— Ainda bem que te achei — ela quase não conseguiu terminar essa frase. franziu a testa e a olhou de cima a baixo, confusa.
— O que aconteceu? Da onde você veio?
— Eu fui almoçar. Lá em Insadong. Com uma… amiga minha — Wonnie desviou um pouco os olhos, mas não convenceu nada. — Enfim, não importa. O que importa é a mensagem que recebi e o que eu ouvi quando cheguei.
— O que você ouviu?
Wonnie ficou parada um pouco, piscando os olhos na direção de de forma um pouco incrédula.
— Você não tá sabendo? — ela sussurrou um pouco mais, e olhou para os lados, buscando ver uma ou duas cabeças que escapariam do foco para olhar as duas. Ou melhor: olhar .
— Sei do quê?
— Você não sabe de nada?
— Sei do quê? — repetiu, agora começando a ficar irritada.
Wonnie soltou um pequeno gemido e olhou para os lados de novo. Mas que diabos?! Quando estava prestes a se levantar, a estagiária abaixou quase o tronco inteiro e sussurrou com a voz muito baixa:
— Estão falando que você está pegando um idol!
Sentir o corpo gelar foi pouco perto do que realmente sentiu. Foi praticamente nada em relação ao abalo que a paralisou por completo.
— O-o quê? — Ela tentou se manter impassível, mas gaguejou e com certeza empalideceu, os efeitos sendo vistos nos cristais dos olhos de Wonnie.
— Eles te viram com um idol, ! Um do BTS, ainda por cima!
Agora estremeceu ainda mais, e nada, absolutamente nada, seria capaz de passar pela aberturinha minúscula que sua garganta tinha se tornado. Nem um mísero fiapo de vento teria chance.
Mas ela não disse nada. E se Wonnie fosse muito observadora, coisa que sabia que não era, notaria que ela não estava chocada com a notícia por confusão de fatos, mas sim por flagrante.
— Ma-mas… — e ela não parava de gaguejar. Que beleza! Nem seu bloco de anotações ela estava segurando mais. — Como… como?
Deus do céu, eles tomavam cuidado! Estavam sempre tomando, principalmente ali, na cidade! Tinha sido em Jeju? Tinha sido daquela vez em que eles foram tomar um sorvete perto da Namsam Tower, bem ao lado do mesmo rapaz da barraquinha de Bunggeopang de antes? Parecia tão inofensivo. Ser Jeon Jungkook era algo complicado, um prodígio da música e da dança, com músculos e rosto sendo constantemente validados pelos outros, mas ele ainda podia ser uma pessoa normal às vezes, caramba!
Eram tantos lugares e situações que poderiam ter sido o palco daquilo tudo, que as sinapses e os nervos de estavam esbaforidos e desesperados demais para tentar adivinhar.
— Eu não sei! Não sei como eles souberam disso. Mas tem uma foto… — Wonnie abaixou ainda mais a voz e ainda mais os ombros quando olhou pra trás de novo e pescou o primeiro par de olhos observando, que disfarçou e se escondeu na mesma hora, como quem não quer nada. Era aquele colega de Seojun da equipe de figurino, um que não se lembrava direito de como se chamava, mas sabia que era meio língua solta. Todo mundo naquele departamento era, de certa forma. Nada melhor para aproximar as pessoas do que fofocas que só elas poderiam saber.
A palavra foto gerou outra convulsão de medo em e, dessa vez, ela fez questão de reagir rápido e puxar Wonnie para ainda mais perto, fazendo a estagiária quase tropeçar quando flexionou os joelhos e se abaixou na frente dela.
Foto?! — estava com os dentes apertados entre si. Wonnie assentiu rápido, puxando o celular do bolso.
— Juro que não sei como conseguiram, juro juradinho, . Criaram um grupo de todos os estagiários de todos os setores e mandaram lá. Falaram que tá rodando pela empresa inteira — ela falava enquanto deslizava os dedos pela tela, até parar e virá-la para . — É tudo que eu sei dessa bomba.
Quando a foto no celular pipocou na frente de , sua primeira reação foi o choque e depois o alívio completo, as duas coisas se alternando em menos de 2 segundos. De repente, ela teve vontade de rir, de gargalhar, e quase fez isso. Precisou engolir a risada, engolir a força.
— É disso que estão falando? — ela puxou o telefone, observando aquele click ridículo, mas que tinha ficado muito bem nítido: Taehyung segurando a porta do almoxarifado enquanto ela saía, e em seguida os dois caminhando lado a lado pelo corredor, casualmente e sem nenhum tom de maldade.
Claro, a não ser pelo fato de que os dois estavam saindo de um cubículo onde não havia mesas de trabalho ou reuniões, ou nem mesmo um fundo branco para fazer fotos. Estavam saindo de um lugar pequeno e apertado, onde as pessoas simplesmente não ficavam, e isso era motivo o suficiente para criarem histórias mirabolantes sobre isso.
Por causa do alívio tão grande de não ter sido flagrado com seu namorado de verdade, não deve ter percebido que aquela foto também era um problema gigantesco naquele momento, e Wonnie pareceu ainda mais assustada com isso.
— Como você pode estar rindo? — ela perguntou, perplexa. — Tem ideia que essa foto já deve estar cruzando a cobertura do prédio nessa hora? Vai ser um milagre em vida se esse negócio não sair daqui.
— Fica calma, Wonnie, não aconteceu nada entre mim e Taehyung, absolutamente nada. Fui pegar uns cartuchos no almoxarifado e ele estava… Devolvendo uns filmes.
Deus do céu, essa mentira precisava ser convincente.
Mas o estado de Wonnie era tão enérgico e desesperado que ela não se conteve em agarrar os pulsos de .
— Eu sei que não aconteceu nada, Kim Taehyung nem faz seu tipo — ela disse com tanta convicção que precisou juntar as sobrancelhas em uma expressão do tipo “oi?” — Mas as outras pessoas não sabem disso, . Se essas fotos forem vendidas pra alguma sasaeng, como vou garantir a sua sobrevivência?
— Ahm… Sasaengs?
— Tem sasaengs por aqui! Todas as empresas tem, são tipo informantes para as principais revistas de fofoca, os tabloides online, as tretas no Twitter, tudo isso. A coisa mais importante pra essa gente é causar um caos, e eu não queria te ver no meio disso — Wonnie choramingou agora entre as duas mãos, parecendo ligeiramente desolada com apenas a ideia da coisa. No entanto, não conseguia compartilhar daquele sentimento. Estava aliviada por não precisar mentir. Por tudo ser um imenso, astronômico mal entendido.
— Levanta, Wonnie — ela suspirou, virando-se para o computador em uma calma desmedida para o momento. — Não precisa se preocupar com isso.
— Como não?! — Wonnie se chocou, mas pelo menos se colocou de pé. — Você não viu o que Candice passou? O que ainda está passando, na verdade. Tem ideia do que isso poderia causar se chegasse nas autoridades…
— É uma mentira, Wonnie. Eu não vou me preocupar com uma mentira. Tenho certeza que Taehyung também vai negar tudo lindamente na mesma hora.
E ela voltou a ler as exigências no papel, enquanto Wonnie a encarava com a mesma cara contorcida em mais uma infinidade de pontos de exclamação.
— Não acredito que você está calma — ela disse com certa frustração. — Não acredito que você está muito calma. Tem ideia do que as pessoas estão dizendo? O que elas devem estar pensando?
— É pra isso que serve o livre arbítrio. Podem imaginar o que for, não vai transformar uma mentira em verdade.
— Argh! Por que você precisa ser tão madura? Seu nome está em jogo! Ele está prestes a ficar no alvo de malucas!
não disse nada. Era lógico que a situação era muito confusa, muito inesperada e muito chata, mas só de não ser de verdade… Honestamente, ela poderia aguentar qualquer coisa. Falaria a verdade de sua parte e descansaria tranquila. Só de não ter sido pega com Jungkook, e não ser obrigada a mentir descaradamente para o alto escalão, já era bom demais. Ela ficaria medonha de ridícula se tivesse de mentir sobre aquilo.
Mas a situação atual não pedia essa necessidade. Então tudo bem.
— Você é quem vai fazer parte do meu alvo se não me mandar a relação dos fornecedores que tem o filme BTX em 40 minutos — ergueu uma sobrancelha autoritária, que não tinha nada de autoritária, mas que dava algum efeito mínimo se não estivesse sorrindo.
Wonnie grunhiu e resmungou algo sobre querer ajudar e abaixou a cabeça quando se retirou de perto da mesa e foi para a sua, 3 metros apenas depois, ainda com o bico de tristeza na cara que fez quase revirar os olhos. Ela entendia Wonnie, entendia mesmo, mas ela já tinha dito o que precisava dizer, e repetiria a mesma coisa se alguém mais a questionasse. E pelo amor de Deus, quem fotografava os idols dentro da própria empresa? Isso não era errado? Não ia contra um trilhão de regras daquele trabalho?
queria que as pessoas estivessem concentradas exatamente nisso: em quem tirou aquela foto, e dá-lo a devida punição por sair espalhando notícias falsas por aí, notícias que realmente poderiam dar um problema gigantesco pra ela, mas esse mini pensamento revolto não durou muito. Até porque ela se lembrou de um fato engraçado e importante.
Ela também esteve por trás da foto mais escandalosa do BTS, revelando para o público uma verdade que precisava estar escondida. Então, ou ela estava no meio de uma página do Livro do Karma, ou só estava no meio de um mal entendido maluco e engraçado mesmo. Um que ela tinha certeza que não iria se estender.



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Nota da autora: Olá! É um prazer te ter aqui!
Seguinte: caso você tenha caído aqui de pára-quedas, a história começou no Filme I, uma fic linda, gostosa e esclarecedora. Visite esse surto AQUI caso você ainda não conheça.
Se você está no lugar certo, aproveita pra visitar os links lá em cima. Temos a playlist oficial da fanfic cheia de música boa e também o insta pra saber quando vai sair a próxima atualização. ❤
Por fim: nunca deixe de falar o que achou de cada att, isso é MUITO importante pra mim! Agradeço de coração pelo seu tempo e pelo seu feedback!


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