━Autora Independente do Cosmos.
Atualizada em: 06.06.2025
— Despertar dos Mortos
Eles estavam atrás de mim.
E não era só por uma ou duas horas. Na verdade, eles estavam atrás de mim o tempo todo. Não importava onde eu estivesse, eles apareciam sem cerimônia, como se o conceito de tempo e espaço não fizesse diferença para eles. Quando eu estava em casa, dava para ignorar. Ou se estivesse sozinho em outro lugar, tudo bem também. Mas aí eles decidiam dar as caras na cafeteria ou no meio de uma aula, e aí não havia nada que eu pudesse fazer. Porque se eles quisessem me chutar ou puxar o cabelo, podiam. E faziam isso, com frequência.
Posso vê-los desde que me entendo por gente. Não só ver. Podia senti-los, ouvi-los e até tocá-los. Eles eram tão reais para mim quanto qualquer pessoa viva, e por isso, não era nenhuma surpresa o rótulo de “esquisitão” que ganhei dos outros. Afinal, o que você faria se alguém, aparentemente normal, começasse a conversar sozinho no meio da rua? Pois é.
Por sorte, distinguir os mortos era fácil. Eles tinham uma aura... bem, mórbida. Estavam sempre pálidos e perdidos, perambulando pelas multidões. Os novatos eram os piores; gritavam aos quatro ventos, exigindo saber por que ninguém podia vê-los. Esses eram os que mais atrapalhavam a minha paz.
Basicamente, os mortos vinham até mim para resolver suas pendências aqui na Terra, como se eu fosse uma espécie de atendente de SAC do Além. Se isso te parece legal, recomendo uma consulta psiquiátrica. Porque não tem nada de legal em ser perseguido por um fantasma que quer que você leve um pedido de desculpas a alguém do outro lado do Estado, ou que implora para que você encontre um bom lar para o cachorro que deixou para trás. Ou, pior ainda, quando uma adolescente morta resolve que você vai ser o substituto do namorado que ela nunca teve.
Nunca considerei essa habilidade como um dom. Na verdade, ajudar os mortos só me dava dor de cabeça e distanciamento social. , meu melhor amigo, era a exceção. Ele era o único que nunca se importou com meu hábito de falar sozinho e desaparecer do nada. Nos conhecemos no ensino médio, e acabamos indo para a mesma universidade, o que foi um alívio. Fazer novos amigos nunca foi o meu forte. Fora o , as únicas pessoas vivas com quem eu mantinha contato recorrente eram meus pais, Gina e... minha avó. Tá, talvez essa última não estivesse tão viva assim.
Eu estava no quarto ano de Medicina na Universidade de Columbia. Escolhi o curso e o campus por motivos práticos. Queria me especializar na Oncologia, o que significava trabalhar com pacientes que provavelmente encarariam a morte de frente. Eu poderia, quem sabe, ajudá-los a resolver suas pendências em vida, evitando que se tornassem mais uma voz na minha cabeça depois que partissem. Egoísta? Talvez. Mas parecia uma solução eficiente. E Nova York, uma cidade cheia de gente, me dava a esperança de que haveria outros como eu por perto. Nunca entendi bem como os mortos nos "escolhiam", mas torcia para que fossem distribuídos de forma justa. Era mais um plano para mantê-los longe.
A faculdade de Medicina pelo menos deixava meus pais felizes. Desde que me adotaram no Orfanato Melbourne, sempre fizeram questão de demonstrar o quanto se orgulhavam de mim, mesmo quando meus "sumiços" e acessos de rebeldia eram constantes. Ou quando precisavam me buscar na delegacia por invasão de propriedade ou desacato. Mesmo nos piores momentos, quando tentavam fazer com que eu me abrisse e eu respondia com o silêncio indiferente que aprendi a reproduzir quando era confrontado sobre os fantasmas e as consequências que causavam, eles se vestiam de uma paciência inacreditável e raramente me criticavam. Minha mãe chorava baixinho à noite, e meu pai bebia mais whiskey do que o habitual, mas sem gritos ou caras feias. Sempre me perguntei se eles se arrependiam de ter adotado um garoto tão... estranho. Mas no fundo, sabia que a frustração deles era por não conseguirem se conectar comigo, e admito que aquilo era totalmente culpa minha.
A família possuía uma próspera firma de advocacia em São Francisco, onde o nome do meu pai, Anakin (sem julgamentos, ele nasceu junto com Star Wars), aparecia em toda cerimônia de premiação empresarial da Califórnia. Ele era o tipo de exemplo de liderança que outras empresas usavam como referência em qualquer lugar do país. Mas, para mim, tudo aquilo — os flashes dos eventos de gala, os jantares executivos que invadiam a sala de jantar e até as empregadas escolhendo minhas roupas — era um lembrete constante de que eu não pertencia àquele mundo. Mesmo com o novo sobrenome, novos documentos e um quarto irado com espaço para os meus pôsteres dos Lakers, eu era o peixe fora d'água. A solução foi me esconder atrás do estereótipo de garoto prodígio que estava sempre estudando, correndo contra o tempo para se preparar para a próxima olimpíada de matemática ou um novo prêmio da feira de ciências.
Funcionou. Meus pais ficaram mais que satisfeitos com a ideia de ter um filho tão dedicado em passar longe de uma nota vermelha. No entanto, convencê-los a me deixar ir para uma universidade do outro lado do país foi outra história. Passei semanas ouvindo os soluços da minha mãe antes que eles finalmente cedessem, com a condição de que me visitariam regularmente e que eu teria que ligar com frequência. A distância também fazia parte do plano — era muito mais difícil frustrar seus pais com suas atitudes quando se está a quase 5 mil quilômetros de distância.
Mesmo assim, a superproteção deles se manteve firme e forte. Insistiram que eu não poderia ficar em um alojamento universitário qualquer, cercado por desconhecidos. Então, graças à obsessão da minha mãe por segurança (e também um pouco de conforto), acabei em um apartamento nada estudantil em Manhattan. Quinto andar, janelas enormes do chão ao teto, com uma vista deslumbrante da cidade que nunca dorme. Ela escolheu cada detalhe, e eu não me atrevi a opinar. Afinal, apesar de todo o drama, eu gostava do meu espaço próprio. E, dado o meu... probleminha com os mortos, talvez ter um lugar só meu tenha sido a melhor decisão que deixei que eles tomassem por mim.
Era mais uma quinta-feira qualquer quando saí da biblioteca Augustus, equilibrando o telefone entre o ombro e a orelha enquanto colocava alguns livros na mochila.
— O que é agora, ? — perguntei, sem muito ânimo. Estava tentando fazer com que a borda do exemplar de Brain Metastases não arranhasse a tela do iPad.
— Onde você se meteu? Eu tô faminto e você ainda não deu as caras para o almoço. E hoje tem hambúrguer de costela!
— Você não tem membros ou dinheiro? Caso tenha membros, acho que você pode comer sem mim.
— Ah, qual é, ? Minha grana foi dizimada no Queens semana passada. Pelo menos me diz onde você tá.
Suspirei e olhei ao redor.
— Bem aqui.
Ele estava de pé bem no meio do refeitório, o rosto iluminado pelo alívio.
— Por que demorou tanto? Achei que você não tinha aula agora. — disse ele, enquanto eu me aproximava.
— Estava na biblioteca, trabalhando num artigo novo.
— Ah, é? Sobre o quê dessa vez? Bactérias que produzem plástico? — perguntou, digitando algo no celular.
— Isso é super empolgante. Mas não, é só um artigo sobre saúde pública. O Natal e a Influenza são a dupla de dezembro, e o Citizen se interessa por esse tipo de coisa. Agora vamos te alimentar.
Entramos na fila semi organizada ao lado das estações de comida, que estava mais longa do que de costume. Não sabia que o hambúrguer de costela tinha toda essa magia para alguém além de e eu. Talvez porque a gente não se importava muito com o que colocava pra dentro do estômago — ele menos ainda. Tudo que fosse comestível, era minimamente aceitável.
— Você viu o ranking semestral? Saiu hoje. — ele comentou, sem tirar os olhos do telefone. — Parabéns, você está no top 5 de novo.
Revirei os olhos em resposta. Todo semestre, a Columbia divulgava o ranking dos alunos mais bem-sucedidos, com base no semestre anterior. Havia um para cada departamento e um geral da universidade. Eu fazia parte dos cinco primeiros desde o 1º ano, então aquilo já tinha perdido o impacto. Na verdade, só de pensar no inevitável telefonema de parabéns dos meus pais mais tarde, eu já me sentia exausto.
Estar entre os cinco primeiros significava receber elogios incansáveis de professores e colegas, embora eu não me importasse nem um pouco. Ainda assim, tinha suas vantagens: meus artigos eram reconhecidos pelos acadêmicos mais respeitados, e até o reitor já havia me convidado para jantar, colocando o meu nome na sua provável “lista dourada”. Aparentemente, meu desempenho era inspirador para todos. Todos, menos eu.
Não era legal receber tanta atenção quando seu plano de vida era ser completamente invisível. Principalmente, se você estivesse suscetível a passar por situações como a que eu iria passar… agora.
Enquanto estava distraído, rolando o feed do celular, senti um vento gelado percorrendo a minha nuca, arrepiando na hora. Antes mesmo de entender o que era, uma voz rouca sussurrou bem perto do meu ouvido:
— Oi!
Continuei olhando para frente, fingindo que não tinha ouvido nada. Talvez se eu a ignorasse, ela se tocasse e fosse embora. Abri o celular e comecei a zapear por qualquer coisa, deixando o tempo passar. Ela ia perceber o que todos percebem: que ninguém podia vê-la. E enquanto eu não desse a primeira mordida naquele hambúrguer duvidoso com bastante ketchup, faria parte da maioria sim, com muito prazer. Não era uma boa hora para lidar com fantasmas.
Mas é claro que ela não desanimou. Saiu do meu lado e começou a tentar tocar e tudo o que estivesse ao seu alcance. Só para esclarecer, quando fantasmas tocam pessoas comuns, o máximo que elas sentem é um arrepio ou um frio súbito que logo passa. Para os mortos, não era muito diferente; é como tentar pegar uma massa cinzenta e pegajosa que escapa pelos dedos. Já com objetos, eles são bem mais habilidosos — meus hematomas podem confirmar isso.
Pessoas como eu, no entanto, conseguiam senti-los completamente. Não me pergunte por quê. Isso fazia com que os fantasmas nos achassem com facilidade e nos usassem para resolver suas pendências, como se fôssemos seus assistentes pessoais. Por isso, apesar da minha postura indiferente, eu estava aterrorizado com a ideia de que aquela garota decidisse me tocar naquele momento.
Vi se encolher com os calafrios causados pelo toque da fantasma e reclamar do frio. Continuei fingindo que nada estava acontecendo, enquanto nos aproximávamos das bancadas. Mas, no momento seguinte, quando deu um passo à frente e eu o segui, o fantasma não se moveu, o que fez com que nossos braços roçassem um no outro por um breve segundo.
Como um amador, acabei olhando para ela e, no mesmo instante, desviei o olhar. Tarde demais. Senti os dedos dela apertando meu braço direito.
— Você consegue me ver! Ei! Você tá me vendo, né?
Balancei o braço, tentando me livrar do aperto, mas ela ignorou o recado. Fechei os olhos, tentando manter a calma, e implorei mentalmente para que ela não começasse a fazer um escândalo.
— Por favor, me ajuda! Eu não sei o que aconteceu... Ninguém consegue me ver... Parece que eu, e-eu… morri…
Os olhos dela estavam arregalados e perdidos, o rosto pálido como um papel, e os cabelos ruivos desgrenhados caíam sobre o moletom com o brasão da faculdade de Direito da Columbia. A garota parecia ter uns vinte e poucos anos. E, por mais que estivesse desesperada no momento, não podia dar atenção pra ela. Tentei sinalizar discretamente com a cabeça para que desse o fora, mas, em vez disso, ela apertou meu braço ainda mais forte.
— Por favor, eu te imploro! Me ajuda! Eu estava no meu quarto no alojamento e, de repente... — a voz dela falhou, os olhos mais esbugalhados, e senti o pânico crescendo dentro de mim. Ela parecia prestes a surtar. Surtar de um jeito nada legal.
A fila avançava e ela não soltava meu braço de jeito nenhum. Eu podia sentir as unhas dela cravando na minha pele, com uma força que só os mortos pareciam ter. Ao nosso redor, as pessoas riam e conversavam, sem fazer ideia do caos invisível que estava se desenrolando ali. Mas, se ela continuasse assim, todo mundo logo perceberia. Eles sempre percebiam.
— Agora não... — murmurei, o mais baixo que consegui, sem sequer olhar para ela, torcendo para que ninguém tivesse notado. Mas a coisa só piorou.
Ao perceber que eu realmente podia vê-la e ouvi-la, ela cravou as unhas ainda mais fundo, e senti o sangue começar a escorrer. Em seguida, fui puxado com força para o lado, bem na direção das pessoas que seguravam suas bandejas já prontas e cheias. Quando me dei conta, vi suco de laranja se espalhar pela minha camiseta, seguido pelo impacto dos meus joelhos no chão. Ouvi o grito agudo de uma garota que caiu diante de mim, com molho de tomate e abobrinha grudada na roupa.
Todos os olhares se voltaram para nós. estava imóvel, com uma expressão que variava entre o riso e o choque. Eu, por outro lado, sentia uma mistura de raiva e incredulidade. Girei a cabeça para procurar a maldita que tinha causado isso, mas, claro, ela já havia desaparecido.
Senti um empurrão no peito e caí para o lado, o caos ao meu redor voltando como um balde de água fria.
— Você é maluco? — a garota à minha frente grunhiu, tentando se levantar sem escorregar nos restos de macarrão e torta de legumes espalhados pelo chão. — Tem ideia do que acabou de fazer? Isso não pode ser sério...
Ela bufou com indignação, e algumas garotas se juntaram ao redor dela, estendendo guardanapos como se fossem paramédicos em um campo de batalha. Suas mãos tatearam o piso até puxarem uma pasta cheia de suco e o que parecia ser babaganush. Todas me olhavam com aquele olhar típico de “meu Deus, qual é o problema desse cara?” Levantei rápido, desejando que, por algum milagre, todo mundo seguisse em frente e esquecesse o espetáculo que eu acabara de proporcionar.
— Me desculpa, foi totalmente minha culpa. — Na verdade, não foi. — Deixa que eu te pago outro almoço, ou…
— Você é epilético? Ou simplesmente decidiu me atropelar? Isso foi de propósito? — ela ia aumentando o tom a cada pergunta, as bochechas ficando cada vez mais vermelhas. Ótimo, porque o que eu precisava agora, além de estar coberto de suco e brócolis, era de problemas com desconhecidos na única parte do meu dia onde eu tentava manter minha vida minimamente normal: o almoço.
— Claro que não! Foi um acidente, sinto muito, mas eu posso pagar…
— Pelo amor de Deus, não quero seu dinheiro. — ela fez uma careta antes que eu levasse a mão para o bolso da carteira. — Tenho uma apresentação importante hoje e você pode ter acabado de estragar tudo com essa sua… síndrome de Tourette, sei lá. Olha, se eu nunca mais te encontrar na minha vida, vai ser um favor. Agora me dá licença.
Ela passou por mim com um empurrão no ombro e foi embora, seguida por pelo menos três amigas, que me lançaram olhares ligeiramente menos hostis. Fiquei ali parado por um segundo até ser expulso pelas funcionárias da limpeza, que já começavam a limpar a bagunça ao meu redor. De repente, percebi o quão exposto eu estava, com todos os olhares fixos em mim, buscando entender a mesma coisa que aquela garota: como eu tinha feito aquilo? Como caí do nada sem explicação?
Quando senti me puxar pelo ombro em direção à saída, agradeci em silêncio. Minha fome já tinha desaparecido há muito tempo.
— Não sei, não foi de propósito… acho que escorreguei.
— Escorregou? Tá doido? O chão tá tão limpo que dava pra comer nele, sério! Não tinha nada pra te fazer escorregar, .
É, só tinha um fantasma.
— Sei lá, eu me distraí, só isso. — dei de ombros, torcendo para que mudasse de assunto tão rápido quanto o acidente aconteceu. — Anda, me empresta uma camisa. Ainda tenho mais duas aulas antes de ir pra casa.
Ele tirou uma camiseta azul estampada com a letra de More Than a Feeling do Boston e jogou pra mim.
— Você tá legal? Não tá tomando nada estranho pra “ajudar na concentração”, né? Essas coisas são perigosas, cara. E que negócio é esse no seu braço? Tá sangrando.
— Nada demais, deve ter sido da queda. — ri engasgado, arrancando meu braço da linha de visão dele. — Sério, tô bem. Só um acidente básico.
— Você tem ideia em quem resolveu causar um acidente básico? — perguntou, e eu fiquei calado. — Cara! Aquela era a !
— Esse nome deveria me dizer alguma coisa?
Ele bufou.
— Já te falei dela várias vezes. Das noites de quinta no Amity Hall, no Beerkeeper em dias de jogo, do …
— Ah, é… — o único momento em que não falava de mulheres era quando estava comendo (salvo exceções) ou jogando, então eu já sabia que não conseguiria lembrar de todas elas, mesmo que tentasse. — Bom, foi uma merda, mas espero que ela esqueça disso tudo bem rápido.
— Eu também espero, mas essa galera do Jornalismo não esquece nada fácil. Teve uma vez que saí com uma garota do departamento que…
Como um botão invisível, apertei “desligar” e deixei as palavras dele escaparem pelo outro ouvido. Nada contra a vida amorosa agitada do meu melhor amigo, mas meu cérebro já era sobrecarregado demais com equações moleculares e referências do PubMed. Ah, e um pouquinho de discurso básico para dizer a homens mortos que não, eles não podiam voltar a vida rapidinho só pra buscar uma jaqueta vermelha da Balenciaga para levar na viagem para o Outro Lado.
Foi exatamente no que eu pensei: o fantasma. Ela iria me procurar de novo, era questão de tempo. Pelo uniforme da Columbia e o visual… era óbvio que tinha morrido perto daqui, talvez há menos de 2 horas. Aquilo se espalharia pelo campus mais cedo ou mais tarde, e agora eu estaria pronto para a interceptação. Torcia para que ela só quisesse saber a nota de um teste ou se seu artigo foi aceito em algum congresso de verão.
Vesti a camiseta de , dei uma ajeitada na mochila e fui pra aula. As próximas três horas passaram num borrão, com a minha concentração sendo colocada à prova cada vez que um ventinho gelado tocava a minha nuca, pensando em como ignoraria uma aparição que já sabia que eu não podia ignorá-la. A não ser que ela me pegasse na aula de Psicologia Médica, onde 98% das pessoas dormiam — se fosse um dia em que eu não tivesse tomado meu expresso duplo do Blue Java, eu fazia parte dessa porcentagem.
Assim que a última aula acabou, me livrei do professor de Histologia, que estava com um discurso interminável sobre minha última análise de cápsula renal, e fui direto para o estacionamento do campus. O sol estava quase sumindo, e as luzes ainda não tinham acendido, o que me garantiu uns minutos de solidão na escuridão de concreto de Washington Heights. Meu Jeep Renegade estava bem ao fundo, escondido atrás de uma pilastra e longe de outros carros.
Entrei, fechei a porta e esperei.
Exatos dois minutos depois, senti o ar pesar, frio e macabro, dentro do carro.
— Tá legal, quem diabos é você?
A primeira coisa que ela fez foi esticar o braço e tocar em mim. Não daquele jeito violento e desesperado de antes, mas leve e rápido, só pra constatar que eu era de verdade.
— Eu... Você está mesmo me vendo? M-mas…
— Ok, vamos pular a parte óbvia da coisa. Sim, eu te vejo, te escuto, até te sinto, como ficou bem claro. E, sim, você está morta. O que posso fazer por você?
— Morta? Mas como... — o rosto dela começou a enrugar, lágrimas enchendo os olhos. — Como isso aconteceu? Eu só estava-
E mais choro. Eram poucos os que não choravam.
— Olha, preciso que você me conte exatamente do que se lembra. Ainda dá tempo de ir pra confraternização no Outro Lado, então preciso saber por que você ainda não foi pra lá
Era nessas horas que eu tinha que reunir o que minha avó chamava de compaixão, mas eu chamava de teste de paciência. Era quase uma entrevista de admissão, onde eu não exercia o papel de aceitar ou rejeitar ninguém para o Paraíso, mas de apenas agir como o gênio da lâmpada e me dispor a realizar o último desejo de almas encarnadas que não eram lá muito silenciosas até enxotá-las para o próximo nível. Não era um trabalho fácil e nem muito agradável, ainda mais porque, honestamente, a última coisa que eu queria era passar horas com um fantasma que ainda não tinha percebido que... bem, que estava morto.
A garota passou um tempo confusa até começar a pensar.
— Ash... Ele disse que as pílulas eram só pra dormir. Eu estava exausta com o projeto de final de curso, o trabalho, as inscrições pra pós, tudo isso. Então tomei as pílulas. E, bem... adormeci. — ela parecia perdida, os olhos desfocados enquanto tentava se lembrar de mais.
— Quem é Ash?
— Um cara da Dungeons. Faz Farmácia, eu acho, ou pode ser qualquer outra coisa. Não sei muito sobre ele, e esse nem é o seu nome verdadeiro. Estávamos saindo há 3 semanas, e ele me deu uns comprimidos pra dormir...
— E que comprimidos eram esses?
— Eu não lembro. Ele me entregou em uma caixa sem nome.
Revirei os olhos, já vendo o tamanho da confusão que viria pela frente.
— Tá, vamos começar pelo básico: qual é o seu nome?
— Sandy. Sandy Silo.
— Beleza, Sandy, aqui vai a notícia: você morreu, e esses comprimidos provavelmente são a causa. Agora precisamos descobrir o que está te segurando aqui, o que falta pra você finalmente atravessar o... limbo.
— Mas eu não tomei tantos assim. Ele disse pra tomar dois comprimidos, que isso bastaria pra eu dormir o dia todo. Ele disse... — as lágrimas voltaram, agora com força. — Eu confiei nele. Ele disse que não me fariam mal.
Confiou em um cara que não disse o próprio nome?
Suspirei, guardando o pensamento, tentando reunir argumentos que pudessem fazer sentido e ajudá-la a se acalmar. Talvez fosse mais complicado do que eu pensava.
— Tudo bem, então... o que você quer? Vingança? A gente pode discutir os detalhes.
— O quê? Não! Eu só... estou confusa. Eu tinha planos, sabe? Um emprego no Departamento de Polícia de Nova York, meu apartamento em Manhattan, apresentar o Ash aos meus pais...
— Ei, foco. Você precisa se concentrar no que está te prendendo aqui, descobrir o que ainda falta pra finalmente seguir em frente. Tem algo que ainda precisa resolver?
— Não sei. Minha vida foi sempre estudo e trabalho; fui em uma única festa de fraternidade, fui beijada só uma vez no ensino fundamental e agora pelo Ash, nunca fiquei de porre, ainda sou virgem...
— Vai sonhando. — minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, e uma pessoa que passava alguns metros adiante do meu carro me olhou como se eu fosse um lunático. — Olha, meu contrato não cobre orgias nem reencenações de American Pie. Então eu sugiro que você pense em algo mais... profundo.
— Não é isso! Eu... eu preciso achar o Ash. Preciso descobrir o que eu tomei, e... e como eu... — ela engoliu seco, balançando a cabeça, o rosto numa expressão de dor. — Ele é popular, vive dando festas e vende de tudo. Não vai ser difícil encontrá-lo, só preciso... preciso saber se ele foi o responsável por... por isso. — sua voz vacilou, quase um sussurro.
— Ei, calma. — relaxei os ombros e me aproximei um pouco. Pensei em fazer aquele toque amigável engraçado que Gina costumava fazer com os novatos, mas um olhar pacato era tudo o que eu conseguia oferecer. — Você parece... bem, como alguém que acabou de morrer. As pessoas provavelmente já estão sabendo da sua morte. E quanto ao que causou ela, é pra isso que existem autópsias, certo? Logo vai ser divulgado, Ash vai ficar sabendo e pode poupar nosso tempo se entregando. Entendeu?
Ela apenas balançou a cabeça, teimosa.
— Não. Não é suficiente, eu preciso saber o que era aquela coisa. Se ele sabia o que estava me dando. É a única forma de... de eu descansar, eu acho.
Ela cobriu o rosto com as mãos, e eu vi seus ombros começarem a tremer. Outro choro vindo. Nesse instante, meu celular vibrou, iluminando a tela com mensagens insistentes de : "Onde você está?", "Estacionamento, né?", "NÃO DIZ QUE FOI EMBORA SEM ME DAR CARONA", "Me deixa na Broadway", "HELLOOOO????", "VOCÊ NÃO VAI ACREDITAR NO QUE EU ACABEI DE SABER".
Ótimo. Mesmo que eu não respondesse, ele estaria no estacionamento de qualquer forma, o que significava que aquela garota tinha que vazar dali agora mesmo.
— Tudo bem, vou procurar o Ash. Descobrir o que ele te deu e se ele sabia o que estava fazendo. Mas agora você precisa sumir do meu carro.
— Espera... Qual é o seu nome?
— , muito prazer. Agora... — Inclinei a cabeça em direção à porta.
Ela arregalou um pouco os olhos.
— Você é ?
Ah, caramba.
— É, sou eu.
— Minha nossa, mas… você é o aluno número 1. Como você, como isso…
— Acredite se quiser, mas eu não tenho uma história pra te dar. É assim que as coisas são e pronto. Agora que tal fazer aquela coisinha de sair?
— Ah… Certo. — ela disse e, pela primeira vez, esboçou um sorriso meio desajeitado. — Você parece ser um cara legal, . Posso mesmo confiar em você?
— Se não pudesse, você nem teria me achado.
Ela assentiu.
— Tudo bem. Eu vou. E… sinto muito pelo seu braço.
Antes que eu pudesse responder, ela desapareceu, evaporando como uma miragem. As luzes do estacionamento finalmente se acenderam, e eu vi a cabeça de surgir ao longe, correndo no meio dos carros.
Ele me avistou rapidinho e já veio, ofegante, pressionando o peito com a mão e abrindo a janela assim que entrou.
— Cara... Tem um cigarro?
— Que foi? O prédio não é tão longe. — respondi, procurando um maço no porta-luvas e entregando pra ele. — Você devia parar de fumar.
— Como você conseguiu parar? — ele acendeu um cigarro, o tom ligeiramente sarcástico.
— Não parei. — dei de ombros e acendi o meu também.
Depois de algumas tragadas e uma respirada, ele olhou pra mim com uma expressão mista de choque e animação.
— Cara, você não vai acreditar. Acabaram de encontrar uma garota morta no alojamento feminino. Parece que foi há pouco tempo, antes do almoço. Tá uma confusão lá dentro...
Fiz a melhor cara de interessado que pude.
— Sério? Quem era?
— Uma tal de Sandy, da faculdade de Direito. Cara, você não tem ideia do que falaram sobre o corpo. Foi... horrível. Dizem que ela teve uma overdose, tinha vômito por todo lado, ela estava roxa, os olhos abertos… — ele tremeu. — Cena de filme de terror. Nem imagino a reação de quem a encontrou.
— Overdose? Eles disseram que foi isso?
— Ah, ainda não sabem nada com certeza. A ambulância acabou de levar o corpo. Devem fazer a autópsia lá no Presbiteriano. A universidade tá tentando não chamar atenção até resolverem isso. Mas o assunto já explodiu no Twitter e no Fórum, e eu acho que enviaram pro Jimmy Fallon, mas não sei por-
Enquanto falava, eu me esforçava para juntar as peças. Aparentemente, Sandy tomou os remédios na noite anterior e morreu antes do almoço, o que significava que o que quer que sejam aqueles comprimidos, a ação era lenta. Só que não dá pra ter uma overdose com dois comprimidos de tarja preta, mesmo se fosse codeína. Depressão respiratória era um objetivo final que a pessoa precisava se esforçar muito pra alcançar.
Me obriguei a afastar a estranheza de tudo aquilo da cabeça e a focar em bolar um jeito de encontrar Ash. Precisava fazê-lo me contar se ele sabia que o que ofereceu para Sandy poderia matá-la. Claro que não dava para perguntar assim, direto — o cara ia me achar um completo maluco, ou então se assustar o bastante para abrir o jogo.
Deixei na Broadway, a algumas quadras de distância de onde morava uma tal de Betty. Ele estava apavorado demais para voltar ao alojamento naquela noite, e, sinceramente, se soubesse que eu tinha sido notificado do "incidente" pela própria vítima, acho que o trauma seria ainda maior.
Minha rua estava silenciosa e calma, o que era bem atípico em qualquer parte de Nova York, seja residencial ou não. A badalação da cidade começava cedo, e mesmo que eu não fizesse ideia do cronograma das festas e nem de qualquer coisa que envolvesse 8 ou mais pessoas dividindo um teto em mansões antigas de Manhattanville, teria que arrumar um jeito de saber, pelo menos até encontrar Ash.
Claro, mesmo na era digital, encontrar uma pessoa que usa nome falso não é fácil. Sandy não tinha me dado muitos detalhes sobre ele, e eu não estava exatamente animado em procurá-la de novo antes de ter as informações que ela queria. Pensei em perguntar ao , mas sob qual pretexto? E aí, você tá sabendo desse traficante meio famoso que andou se envolvendo com a garota morta? Sabe onde ele mora? Nunca. Jamais. não era tão avulso quanto eu queria que fosse pra não estranhar esse interesse repentino.
Quando finalmente entrei no apartamento, tratei de limpar o ferimento no braço — cortes em formato de pequenas luas das unhas de Sandy — e fui direto para o banho, tentando relaxar, mas sem muito sucesso.
Depois, entrei no Fórum e busquei informações sobre a confusão daquela tarde. A única coisa que encontrei foi um resumo seco: Sandy tinha sido encontrada pela colega de quarto, uma garota chamada Janice Griffin, do curso de Arquitetura, que mal conseguiu falar com a polícia de tanto que chorava. A única foto publicada mostrava o corpo de Sandy envolto em um saco preto, com uma faixa amarela de isolamento estendida na porta do dormitório. No final da matéria, um comunicado dizia que a autópsia só ocorreria depois da autorização dos pais dela, que já haviam sido avisados, mas não deram respostas sobre quando chegariam — parecia estar rolando uma tempestade bizarra na região da Virginia, cancelando voos e trens em sequência.
Apesar disso, era uma boa notícia. A autópsia explicaria tudo. Daria fim naquilo logo, bem logo. E enquanto isso, o dormitório de Sandy seria o mais triste e cinza de todos os outros prédios da Columbia.
Porque agora ele estava assombrado.
O jornal da Columbia era tipo o paraíso das fofocas estudantis, só que com uma pegada de responsabilidade social. Preocupados em preservar as florestas e fazer bonito nas avaliações da Ivy League, eles tinham abandonado o papel faz tempo, tornando a redação inteira digital. Foi daí que nasceu o "Fórum" — nada criativo, mas a marca já estava registrada. Lá estava basicamente tudo o que você precisaria saber sobre a Columbia: eventos, simpósios, congressos... até um certo ranking dos cinco melhores alunos, em que meu nome aparecia no topo.
Dentro do Fórum, cada aluno tinha um login próprio, o que o transformava basicamente em uma rede social, mas só para quem era da Columbia. Os funcionários do jornal eram os únicos autorizados a fazer postagens, e se você precisava saber algo de um colega (como, por exemplo, informações básicas sobre um certo Ash enigmático), o Fórum era o lugar perfeito pra começar a procurar. O nome verdadeiro do jornal era Citizen Co., mas, depois de 4 anos, e eu achávamos mais fácil chamá-lo de “o Google dos escândalos acadêmicos.”
Eu não planejava vasculhar o Citizen só para saber algo sobre o Ash (não seria tão descarado assim), mas não custava nada ver se uma ideia brilhante surgia no caminho. Já tinha ido até lá algumas vezes, geralmente quando precisava pedir correção de uma publicação e me deslocava para a sala do professor responsável, o Sr. O'Donnell, que tinha uma certa felicidade escancarada toda vez que me via. Hoje era um dia ótimo para fazê-lo sorrir.
Chegar ao Citizen era como fazer as provas da autoescola de novo. O lugar era uma zona completa, com bicicletas e motos espalhadas para todos os lados, sem nenhuma faixa delimitando vagas (porque eles acreditavam mesmo que as pessoas deveriam parar de poluir o meio ambiente com carros e começar a pensar em outras alternativas). Era logo ali, ao lado do Pulitzer Hall, onde a quantidade de gente correndo para cima e para baixo era, honestamente, meio assustadora. Os jornalistas em treinamento tinham quase a mesma vibe de caos que os futuros médicos.
O prédio em si não era grande, mas ainda assim, tinha a beleza que o dinheiro podia comprar. A pintura das paredes estava em dia, e as janelas de vidro mostravam um escritório bem equipado, cheio de equipamentos modernos, funcionando a todo vapor. O Citizen era uma referência em jornalismo universitário no país, e pelo menos uns 15 alunos ali um dia seriam âncoras na CNN ou editores-chefe do New York Times.
Parei diante da porta branca no final do corredor e espreitei pela janela ao lado. Lá dentro, era uma correria: gente atendendo telefonemas, digitando, berrando de um lado para o outro — ninguém me notou quando entrei. Virei à direita e fui direto para a porta marcada com "Prof. Dr. Buddy O’Donnell". Bati duas vezes e ouvi um "entre" abafado.
— Senhor ! — ele me cumprimentou, tirando os óculos e abrindo um sorriso enorme e caloroso.
— Como vai, senhor O'Donnell? — apertei a mão dele, e ele apontou para a cadeira na frente da sua mesa, que, aliás, estava tão cheia de papéis, canecas vazias e, quem sabe, um fóssil ou dois, que eu quase duvidei que ele pudesse realmente me ver dali.
Diferentemente do restante do prédio, a sala do senhor O'Donnell era um resquício dos anos 70, uma década tecnicolor pela qual eu tinha um grande carinho. Duas poltronas em amarelo canário estavam ajustadas bem embaixo da janela, a mesa de pinheiro polida e envernizada, os abajures largos, e ele ainda tinha um modelo de rádio Grundig Satellit dos anos 60, com antena e pilhas D. De vez em quando, dava pra ouvir Sweet Home Alabama tocando em loop no aparelho, e fiz uma piada uma vez de que, se fosse pra ouvir apenas uma coisa até morrer, que essa coisa fosse Lynyrd Skynyrd. Ele se apaixonou por mim depois disso.
— O que o traz aqui tão cedo, meu jovem? — ele ajustou os óculos e deu uma olhada rápida para o relógio, como se o próprio horário o tivesse traído. — Ainda não trouxeram meu café, estamos um pouco... corridos hoje. Mas aceita uma água, um chá...
— Não, não, tudo bem. — pousei a pasta em cima da pilha já caótica de documentos, torcendo pra que não virasse um tsunami de papéis. — O professor Hughes pediu pra eu escrever mais um artigo. É sobre os últimos dados das cepas recentes da Influenza no inverno de Nova York. Ele pensou que seria uma boa ideia transformar em uma coluna pro Fórum, então vim deixar pra revisão.
— Ah, o artigo de saúde pública! — ele passou os olhos pela primeira página, balançando a cabeça com uma expressão tão solene que cheguei a pensar que ele estava rezando pelo manuscrito. — Claro, claro... Hughes me contou ontem. Vou dar os toques finais, mas… — ele tirou os óculos e olhou por cima deles, com um ar quase dramático. — Infelizmente, hoje isso não vai acontecer, receio. Você está sabendo do que houve ontem, no campus?
— A garota? Fiquei sabendo sim.
— Uma tragédia. — ele suspirou, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. — Toda a equipe está focada nisso, tivemos que suspender praticamente tudo para nos concentrarmos no caso da Silo. A CNN veio e foi um pesadelo lidar com eles... Uma dor de cabeça atrás da outra, sabe? Mas não se preocupe. Vou garantir que o artigo saia a tempo, mesmo que um pouco atrasado.
— Sem pressa, professor. — forcei um sorriso, tentando não parecer tão interessado. — Logo tudo se resolve, né? O culpado vai aparecer…
— Culpado? — ele riu com um toque de sarcasmo, como se tivesse ouvido uma piada boa. — Ah, meu jovem... Não há culpado. Esse é um caso claro de suicídio! Encontraram a pobre garota sufocada no próprio vômito. Os pais até agora estão empurrando para vir reconhecer o corpo, e tenho quase certeza de que vão se recusar a autorizar uma autópsia. O uso de drogas entre os alunos está fora de controle. Seria um ótimo tema para o próximo artigo, inclusive. Os riscos disso tudo, entende? Vou fazer uma ligação para o Travis logo mais…
Ele continuou falando, divagando sobre a juventude e os perigos das drogas, enquanto eu assentia e tentava manter uma expressão preocupada. Ter deixado ele se empolgar com o assunto e me "explicar" o caso foi um movimento certeiro — afinal, ele acabara de confirmar o que eu temia: a autópsia não sairia tão cedo. E eu precisava de respostas antes de ser perseguido por outro fantasma.
Depois de um papo rápido sobre minhas notas e a possível residência no hospital universitário de Berlim, me despedi do professor O'Donnell e me preparei para sair. Do lado de fora da sala, o escritório estava um caos, e o telefone não parava de tocar. Fechei a porta atrás de mim, aliviado, e avistei um bebedouro ali perto. Minha garganta parecia seca como o Saara, mas logo reparei na plaquinha acima do galão: "NÃO USE COPOS PLÁSTICOS, TRAGA SUA PRÓPRIA CANECA". Suspirei. Nada como mais um obstáculo — até a água nesse lugar parecia exigir um esforço extra.
Como se tivesse brotado de alguma parede invisível, uma pessoa passou por mim com a precisão de um cometa. Eu estava saindo de perto do bebedouro quando fui atingido por um esbarrão de alta potência. Papéis voaram, meu braço se esticou tentando segurar alguma coisa, qualquer coisa, e, bem... o que eu agarrei foi o galão d’água, que teve a gentileza de me dar um banho completo — e, aparentemente, dar o mesmo tratamento à pessoa que caiu em cima de mim.
Antes de mais nada: dessa vez, fantasmas não tiveram nada a ver com isso. A garota que estava em cima de mim era bem real, com um olhar tão estupefato quanto o meu. Cabelo meio molhado, meio seco, ela piscava em choque enquanto o telefone no ambiente continuava tocando e as conversas ao redor tinham se extinguido, mostrando que todo mundo estava de olho na gente. Um segundo depois, percebi quem ela era.
— Não acredito. — ela bufou, saindo de cima do meu peito como se eu fosse o chão imundo de um estacionamento. — Como é que você consegue aparecer pra arruinar o dia aqui também? Toda aquela comida não foi suficiente?
— Eu acho que você é quem deveria olhar por onde anda, sabe? — eu murmurei, tentando resgatar alguns papéis que ainda não estavam completamente encharcados.
— Ah, então eu deveria olhar por onde ando? Igual ontem? — ela deu um sorrisinho sarcástico antes de arrancar os papéis da minha mão. — Tem ideia do trabalho que foi coletar esses depoimentos? Tem ideia do tanto que ainda temos pra fazer hoje? Aliás, você é algum aluno perdido aqui atrás do professor O'Donnell pra pedir revisão de trabalho malfeito? Porque se for, pode tirar o cavalo da chuva. Ele tá ocupado, e não vai sair pra...
— Mas o que está acontecendo aqui? — O'Donnell, o próprio, abriu a porta, olhando alternadamente pra mim e pra garota. — , por que está brigando com o rapaz?
se endireitou, vermelha de raiva, mas recuou um pouco.
— Professor, esse... esse cara acabou com os depoimentos que eu consegui sobre a ação da polícia. Eu ia levá-los pra revisão e agora...
O professor O'Donnell levantou a mão como quem afasta uma tempestade. se calou instantaneamente, com as bochechas ainda mais vermelhas, lutando pra não pressionar o maxilar. E aí eu percebi que a água gelada tinha sido implacável: ela estava sem casaco, e se controlava para não tremer os lábios.
O'Donnell se voltou para nós dois.
— Não façam disso um drama. Há trabalho demais pra isso. , eu sei que você não fez isso de propósito, e estava de saída, não estava? — ele deu umas batidinhas no meu ombro, depois olhou para . — Quanto a você, senhorita , tenho uma nova tarefa. — ele entrou rapidamente na sala e voltou com uma pasta. — Digitalize, edite e finalize o envio do artigo do jovem aqui. Isso deve responder sua dúvida sobre a presença dele. É a coluna especial sobre saúde pública do centro médico de Irving.
olhou da pasta pra mim, depois para o professor, folheando rapidamente as páginas.
— ?
— O próprio. — O'Donnell assentiu. — Agora, se me dão licença, tenho que lidar com o inferno dos e-mails e chamadas de emissoras sem mais o que fazer, querendo informações que nem temos ainda. — ele suspirou e se virou para o resto da sala, onde todos ainda estavam assistindo ao show. — E vocês aí! Voltem ao trabalho, ou vão levar pontos de demérito! , sei que você vai resolver a questão do senhor . É uma das nossas melhores alunas. E chame a moça da limpeza pra dar um jeito nessa bagunça. Senhor , desculpe o transtorno. Volte em segurança ao departamento. — ele me deu um sorriso caloroso e entrou em sua sala, desaparecendo tão rápido quanto surgiu.
olhava para mim como se eu fosse uma barata que acabara de pousar bem no meio da sua sopa — olhos arregalados, lábios franzidos em desgosto e algo que parecia muito com choque. Era óbvio que nunca tinha visto o senhor O'Donnell falar assim com alguém. Aliás, nem eu.
— Então… você tá bem?
A garota suspirou.
— Você pode ir agora, por favor? Preciso chamar o serviço de limpeza e, bem, você está meio no caminho. Pode deixar que seu artigo será publicado assim que possível.
Sem esperar por mais reações, ela se virou e saiu pela porta de outra sala, me deixando sob o olhar atento dos poucos que ainda estavam presentes, como se eu fosse alguma atração de zoológico. Balancei a cabeça, voltando a mim, e fui em direção à saída, ciente de que, pela segunda vez naquela semana, estava no meio de uma confusão completamente evitável. Tinha um certo talento em criar esses momentos constrangedores, e o mais surpreendente era que geralmente eles envolviam apenas os mortos.
Na saída do prédio, me lembrei do novo problema: eu estava sem roupas extras, de novo. Não sabia se era cedo demais pra aparecer no dormitório de e implorar (pela segunda vez) por uma camiseta limpa. Nessa época do ano, deixava um casaco morando no meu banco de trás, um elemento acessível muito bem aproveitado nessa cidade que logo mais estaria se afogando em neve. De repente, pensei em oferecê-lo à tal — afinal, ela parecia precisar tanto de um casaco quanto de um calmante, mas a ideia desapareceu tão rápido quanto veio.
Porque algo mais urgente chamou minha atenção.
No mural de madeira ao lado da entrada, onde os panfletos de eventos jornalísticos se amontoavam, havia um cartaz bem maior e mais chamativo: “FESTA NA DUNGEONS! VENHA E TRAGA MAIS UM & A CERVEJA! SEXTA 21H!” O pôster parecia até piscar, como um sinal de neon para os desavisados (ou para os bem avisados que sabiam o que era bom).
Uma ideia, louca e impossível, começou a se formar. As palavras de Sandy ecoaram na minha cabeça: “Ele é popular, vive dando festas e vende de tudo”.
É, o jeito seria tentar.
Sem realmente acreditar no que eu estava prestes a fazer, entrei no carro e disquei o número do .
Quase meia hora depois, ele apareceu na porta da frente, com um olhar meio perdido e girando a cabeça como se estivesse num labirinto (a Augustus nem era tão grande assim). Acenei do fundo do salão, e ele começou a caminhar na minha direção com passos cada vez mais rápidos, e fiquei convicto de que a razão disso fossem os olhos muito retos e dentes ligeiramente trincados da bibliotecária ranzinza, que reconhecia um “arruaceiro do T.I.” de longe. Palavras dela, não minhas.
— E aí, cara? Que foi? — ele praticamente berrou enquanto puxava a cadeira à minha frente, chamando a atenção geral e recebendo um “shh!” agressivo. Suspirei, me perguntando por que exatamente eu achara que marcar encontro com numa biblioteca era uma boa ideia. — Foi mal. — murmurou em direção aos nossos vizinhos. — Galera bem nervosinha, hein?
— Eles ficam ariscos com qualquer um que provavelmente insultaria os povos sumérios por terem inventado os primeiros livros. Tipo você.
— Ei, esse negócio é coisa do passado. Isso aqui é mórbido, cara. Já inventaram o Kindle há mais de uma década, esse prédio inteiro podia estar sendo usado pra fazer mais um pub.
— No meio do centro médico?
— Vocês precisam relaxar de vez em quando, não? Pra abrir mão das orgias nos congressos e coisa assim. — ele deu uma olhada cética ao redor. Quis perguntar da onde ele tinha tirado isso, mas lembrei que eu é que tinha contado essa fofoca. — Mas e aí, o que tá pegando? Falta pouco para o almoço, quer ir no Amadeus? Eu vi o cardápio do John Jay, e hoje definitivamente não é um grande dia. Aliás... o que houve com a sua roupa?
Ignorei a última pergunta.
— Vamos numa festa na sexta.
piscou duas vezes.
— Como é?
Abri o banner de divulgação da festa na Dungeons no computador e o virei para . Ele se debruçou sobre a tela, os olhos brilhando.
— Festa na Dungeons? Uma das maiores fraternidades do lado leste? Cara, você tá falando sério? — riu alto, e mais um “shh!” se fez ouvir. Ele ergueu as mãos em rendição, mas o sorriso continuava. — Não brinca. Você tá legal, ? Desde quando o menino de ouro do ranking decidiu bancar o universitário comum?
— Sei lá, de repente quero ir nessa. — dei de ombros, tentando soar casual. — Vai dar bastante gente?
— Pode apostar que sim. Festa na Dungeons nunca decepciona, e dessa vez não vou ter que aturar os fracassados do meu departamento. — ele puxou o celular e começou a digitar freneticamente. — Preciso postar isso pra já.
Revirei os olhos.
— Não precisa sair publicando qualquer coisinha, infeliz digital. Que exagero.
— Qualquer coisinha? . Numa festa. Isso é uma notícia, meu amigo.
— Nem pense nisso, . Que parte de privacidade você não entendeu?
Ele ergueu as sobrancelhas, como se eu estivesse sendo o estranho ali.
— Ah, você quer falar de privacidade? Deixa eu te lembrar que o “estudante do ano” também é o nome mais comentado no Fórum, principalmente no início do semestre quando os Lions ainda não começaram a temporada e nenhuma outra fofoca do verão estourou por aí. E ah, algumas pessoas acham que você não existe porque é meio deprê não ter rede social hoje em dia, mas algumas garotas acham isso o máximo, elas amam um carinha low profile. E todo mundo vai à loucura quando souberem que o não é um nerd cheio de espinhas que usa camisa xadrez de botão e óculos fundo de garrafa.
Franzi o cenho, um pouco… chocado.
— Eu não sou “deprê” por não ter uma conta no TikTok. Que papo é esse? Desde quando esse tipo de discussão existe?
parou de digitar e arregalou os olhos, como se eu estivesse realmente por fora da hora, do dia e do ano atuais do calendário romano.
— Você é o aluno número 1, ! E estamos em uma das arenas de guerra da Ivy League, aqui as pessoas se preocupam com estudos e notas de teste. E pra chegar lá no topo, a galera no mínimo imagina um cara meio estranho que nunca sai do quarto e cria baratas num aquário. Esse tipo de gente nunca prega um sutiã na maçaneta da porta do dormitório quando quer trepar ou tatuam a letra de Dreams no ombro. Esse é o estereótipo que Gatinhas e Gatões deixaram dos verdadeiros nerds pra gente, infelizmente. Por isso que quando te verem… bem, eles vão gostar. Provavelmente até demais.
Ele abriu um sorriso sugestivo. Queria não fazer ideia do que ele dizia, mas infelizmente me lembrei da expressão de Sandy e de quando ouviram meu nome e entendi tudo. Aparentemente, eu não me parecia com alguém trancado o suficiente.
— Não era exatamente isso que eu tinha em mente. — murmurei, vendo meu plano de ser invisível encontrando um enorme obstáculo: a internet. Eu não estava nem um pouco a fim de ser observado e avaliado por qualquer par de olhos fora da minha bolha, onde até meu jeito de andar poderia virar pauta para uma efervescência social.
balançou os ombros com desdém.
— Isso é irrelevante. Vai acontecer de qualquer jeito.
— Se você diz... — fechei o computador e me levantei. — Agora, vamos. O almoço está garantido no Amadeus.
soltou um gritinho animado, fazendo com que recebêssemos nossa última advertência antes de finalmente deixarmos a biblioteca.
Morte no campus nunca é algo simples. No minuto em que a notícia corre, é como se o próprio ar mudasse: conversas baixas no final das aulas, trocas de olhares durante o almoço, cochichos nos laboratórios e até um silêncio que paira no corredor. Sandy era o nome no epicentro disso tudo, ainda que o mundo lá fora parecesse um pouco alheio. Para o resto do país, ela era apenas uma garota que “não suportou a pressão” — de acordo com as palavras frias de sua mãe em uma entrevista ao Citizen, que rapidamente se espalhou pela cidade. Os pais de Sandy não quiseram nem saber de autópsia; apenas sacudiram a cabeça e disseram que não queriam mais prolongar aquele pesadelo.
Não iria julgá-los por isso, mas também não iria apertar suas mãos e dizer “muito bem, vocês são o exemplo de bons pais” porque eles negaram a autópsia. O que significava que sua filha ficaria no meu pé por mais um tempo.
Na entrada do dormitório feminino, flores e velas se amontoavam, junto a uma pequena homenagem deixada em seu armário. A faculdade de Direito fez questão de honrar a aluna formanda com um recap do seu único artigo publicado e participações em projetos de voluntariado para crianças de rua em Chinatown. O reitor também organizou uma palestra sobre saúde mental e os perigos dos opióides, um discurso cheio de palavras educadas e classudas, mas que escapou a todos que já estavam chapados de alguma mistura de benzodiazepínicos às 7 da manhã para valer de alguma coisa.
Não conversei muito com Sandy desde aquele nosso trato no carro. Pensei que, depois da notícia de seus pais, ela ficasse ainda mais ansiosa e virasse um carrapato em mim, mas não aconteceu. A garota só vagava pelo campus, seus olhos inexpressivos observando as pessoas que deixavam flores, ou ficava parada ao fundo do John Jay, olhando as tortas do dia e prestando atenção em todo mundo que chegava perto. Sabia o que ela estava procurando: ser vista. Encontrar, por algum milagre divino, outra pessoa com a habilidade esquisita de ver além da névoa de normalidade desse mundo.
Não demorou muito pra ela saber que teria de se contentar comigo. E como eu não podia ignorá-la, dei um jeito de mostrar o cartaz da festa na Dungeons e explicar o que eu pretendia fazer — ou tentar. Esperava sinceramente que ela me respondesse com um “você é mesmo bem burro se acha que isso vai dar certo”, mas em vez disso, recebi seu total apoio imediato, o que era preocupante porque o plano era uma merda.
Seja como for, depois disso a garota parecia mais calma. Em paz. Nem chorou tanto quando as flores começaram a murchar no corredor. Tudo voltou a um ponto perto do normal, pelo menos até quinta-feira.
Porque na sexta, só se falava de uma coisa.
Nunca tinha me arrumado para uma festa antes. Digo, não uma festa que não envolvesse vinho Tignanello, lustres de cristal e ternos sob medida que escondiam minhas tatuagens. A galera de Vagelos fazia mais o tipo “noite de Jangga no Bard Hall, traga seu próprio kit de sobrevivência”, o que acabava se tratando de horas em uma discussão sobre quem trapaceou no jogo, quem ultrapassou a dosagem de álcool no drink de frutas, quem transou escondido no laboratório de análises clínicas e estragaram a amostra até o fim de tudo, quando os veteranos precisavam voltar correndo para o hospital, e o restante estava bêbado demais pra jogar, rir ou flertar. E sem um fiapo de música sequer.
Isso tudo não chegava perto de noites malucas ao estilo Arquivo X que eu já tinha ouvido falar de ou minha zona de conforto: sofá de casa e jantar no restaurante de fast-food mais próximo — e, se for pra ser honesto, só com duas pessoas: e Gina. Minha ideia de uma boa aventura era ir a algum lugar novo, de preferência recém-construído, lugares onde dava pra ter certeza de que ninguém tinha morrido e deixado algo para trás, empurrando cadeiras, furtando talheres e perguntando a qualquer um se teriam bons dentes para doar.
Então, dá pra imaginar minha empolgação ao descobrir que a tal Dungeons ficava em uma propriedade do século XVIII restaurada, no pé de uma pequena colina na extremidade mais afastada de Manhattanville.
É, nada como a perspectiva de fantasmas com perucas coloniais para animar a noite.
Quando finalmente estacionei o Jeep, uma quadra inteira separava a gente da entrada da casa. A rua estava abarrotada de carros e o jardim da frente lotado de gente que parecia mais animada do que eu conseguiria fingir em mil anos. Mesmo dali, dava pra ouvir a música ribombando como o apocalipse lá dentro.
— Eu disse! Hoje vai ser épico! — anunciou, já fora do carro, esticando os dois braços para cima em um alongamento especial.
Soltei uma risada, me inclinando para pegar meu casaco no banco de trás, até que me parou com a mão no meu braço.
— O que você tá fazendo?
— Pegando meu casaco? — respondi o óbvio. — Estamos a um passo do inverno, caso você não tenha notado.
— Tá maluco? — ele se aproximou e arrancou o casaco das minhas mãos, jogando de volta no carro. — Lá dentro vai estar um forno, , eu garanto. Vai ser tipo QUEN-TE. — ele soletrou a palavra lentamente, como se eu de repente tivesse me transformado em um neanderthal. — Deixa alguém além do seu espelho ver um pouco mais desse corpo, tá legal? — ele ajustou minhas mangas até o cotovelo e deu um sorriso satisfeito. — Pronto, agora com as tatuagens à mostra e um sorriso convincente, você tá vestido pra matar. Um homme fatale, entendeu? Vamos lá.
Não acredito que ele acabou de falar homme fatale.
Ele agarrou meu braço e me puxou, apressando o passo. A cada metro quadrado, a enorme porta dupla de madeira parecia mais ameaçadora, deixando escapar uma mistura de sons, cheiros e a promessa de contato exagerado. estava quase correndo quando, finalmente, chegamos à entrada, os ombros roçando nos das outras pessoas que se espremiam para entrar. Uma vez lá dentro, fui obrigado a concordar com sobre o lance do calor. O frio congelante que Nova York já começava a despejar na população em pleno novembro não tinha a menor chance ali, onde a energia era pura combustão: gente dançando, se esbarrando e se esfregando ao som ensurdecedor de Black Eyed Peas, com garotas em roupas mínimas dominando o espaço em cima das mesas.
Não se passaram nem cinco minutos e eu e já estávamos com aqueles famosos copos vermelhos nas mãos, cada um com um líquido suspeito dentro.
— Vai, ! — gritou, levantando o copo com entusiasmo. Fez uma contagem com os dedos, e quando chegou a três, um pequeno grupo em volta gritou e viraram o copo, ele inclusive. Entendi a deixa e segui o movimento. O líquido desceu rasgando como fogo, quente e amargo. Pelo bem da minha sanidade, nunca quero saber o que acabei de tomar.
Antes que eu me recuperasse, já estava gritando que precisávamos de mais bebidas e marchando na direção da cozinha. O lugar estava tão lotado quanto a Times Square no ano novo, e um mar de gente acabou tendo a mesma ideia que nós: pegar qualquer bebida pra abater o gosto daquela coisa tenebrosa que se parecia muito com gasolina.
Chegando lá, percebi a quantidade de opções: vasos e garrafas térmicas improvisadas transbordavam de cervejas e vodkas, sem falar nas mesas cobertas de copos e garrafas vazias. rapidamente pegou duas Budweiser de uma das bolsas ao lado da pia e me entregou uma, junto com um cigarro, que aceitei sem hesitar.
Aparentemente, dizer "não" naquele lugar te transformaria em um exilado.
Meu amigo estava explodindo de animação. Desde o ensino médio, eu já tinha visto todos os seus lados, e sabia que, mesmo sendo um cara legal, nunca foi exatamente aquele que se enturmava de primeira. Ainda mais se estivesse vestindo os mesmos jeans manchados de agora, junto com uma jaqueta bomber com estampa de vômito (uma maneira educada de ilustrar). Eu, pessoalmente, nunca passaria meus braços e a cabeça por uma roupa daquelas. Ele analisava cada garota que passava com um olhar sugestivo, tentando engatar uma conversa, embora, honestamente, todas as tentativas caíssem por terra.
Depois de um tempo, conferi o relógio no celular. Uma hora perdida naquele lugar. Decidi que era agora ou nunca: precisava encontrar Ash. Eu não tinha um plano brilhante, mas nem o mais merda dos planos poderiam ser executados sozinhos. O que significava que eu precisava colocar em prática um antigo martírio pessoal: interagir com as pessoas. Sair distribuindo um “olá, tudo bem?” como se eu estivesse totalmente interessado na resposta.
Mas, bem, em uma hora eu ainda não tinha topado com nenhuma assombração, então talvez o lugar estivesse limpo de verdade, sem andarilhos da Segunda Guerra Mundial ou cemitério indígena construído embaixo desse piso. Isso tornava tudo 10% mais agradável.
Num piscar de olhos, se afastou e já estava em uma rodinha de garotas a poucos metros, provavelmente achando que essa era a chance da vida dele. Ele já tinha bebido o suficiente para ultrapassar a linha entre “engraçado” e “constrangedor", mas dessa vez, eu não iria julgar. Pelo menos ele estava distraído, o que me deixava livre para focar no meu objetivo e me mandar daqui o quanto antes.
Comecei a examinar o ambiente. Desde que chegamos, eu e já tínhamos rodado pelos corredores da casa, e agora estávamos em uma área ampla, entre o jardim com piscina e a cozinha de inox. A quantidade de pessoas zanzando por ali diminuiu um pouco depois que as bolsas térmicas com bebida foram distribuídas pelo restante dos cômodos. À esquerda, uma escadaria enorme levava ao segundo andar, onde existia um espaço mínimo pra passar, cercado de gente se pegando sem pudor, envolvidos em luz baixa e fumaça, sem nem pensarem por um segundo em terminar de subir para irem aos quartos. Era provável que não poderiam? Ash proibia libertinagem nos espaços feitos pra dormir? Ou cobrava por isso também, tipo uma locadora do sexo?
Existia esse tipo de coisa nas festas universitárias? Nova York era mesmo a cidade mais brilhante do mundo.
Mas aquela iluminação baixa, com luzes de LED girando loucamente com seus feixes coloridos, realmente estavam dificultando muito a minha visão. Me afastei um pouco de e do grupo alheio, andando sorrateiramente pela galera bêbada, tentando não esbarrar em ninguém (da última vez que aconteceu, uma garota com uma tiara de chifres do diabo soltou um grito: “EI! VOCÊ É MESMO AQUELE LÁ?”), apertando minha cerveja e o cigarro entre os dentes até escapulir por uma área em que meus ombros estavam mais livres e uma geladeira improvisada ficava bem ao lado de uma máquina de lavar (que estava transbordando de camisinhas). Criativo.
Foi bem ali, quando terminei de tomar o último gole daquela coisa quente e pegava a primeira cerveja em temperatura ambiente da geladeira, que eu a vi. Foi de relance, enquanto eu escaneava os arredores disfarçadamente pela 8º vez. Ela estava parada junto das mesmas garotas do refeitório, com o quadril apoiado na bancada, um copo vermelho na mão e um sorriso leve nos lábios. O primeiro que vi nela, aliás. Legal saber que ela tinha a capacidade de sorrir, e não de só rosnar como um animal furioso.
Foi só completar esse pensamento para que ela virasse a cabeça na minha direção e me visse na mesma hora. Mesmo naquela quase escuridão, deu pra ver muito bem seu protótipo de sorriso derreter e sumir como se nunca tivesse existido. Tive quase certeza que franzi as sobrancelhas, encarando ela sem desviar o olhar. A garota parecia estar desejando ter um poder de Dracarys e soltar fogo em cima de mim. Ou, se fosse possível, virar aquela máquina de lavar em cima da minha cabeça, porque estava revezando seu olhar de desdém entre mim e ela.
Ah, porra.
Segui seu olhar e notei que eu estava esticado quase em cima daquela coisa, apoiando o quadril do mesmo jeito que ela estava fazendo na bancada. Não sei em que horas fiz isso e nem quanto tempo fiquei encarando ela naquela pose um tanto perturbadora, mas me ajeitei depressa, limpando a garganta, tentando sugar um pouco mais da nicotina no cigarro quase apagado enquanto sentia o rosto arder por alguns milésimos de segundos. revirou os olhos e mudou a posição, me dando as costas completamente, deixando claro que o próximo sorriso agora viria quando ela tivesse um aneurisma severo e se esquecesse completamente da minha presença ali.
Nunca fui odiado desse jeito. Quero dizer, não sei se ela me odiava de verdade, mas estava há anos-luz de me ver como uma presença indiferente ou razoável. Tomar um banho de suco de laranja era tão grave assim? E da segunda vez, ela esbarrou em mim. Dois encontros desastrosos que me pintaram como um idiota completo, mesmo que eu não quisesse. Agora, estava muito claro que, se o ser adorável que era desprezava alguma coisa, essa coisa era eu.
Bom, não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso.
Dei meia volta para sair de perto daquela distribuidora bizarra de preservativos e consegui dar 3 passos até surgir como um furacão, trazendo umas quatro garotas com ele à tiracolo. Elas me cercaram como predadoras, sorrindo para mim primeiro com simpatia, depois com exaltação.
— E aí, ! Adivinha só: falei pra essas gatas que vim com meu melhor amigo, ninguém menos que em pessoa, mas elas acharam que eu tava mentindo. Dá pra acreditar? — ele riu com perplexidade, e então fez um gesto para as garotas. — Digam oi, meninas! Juro que ele não morde!
Uma das garotas — ruiva, cabelo liso caindo até a cintura e um batom vermelho que a deixava a cara da Rowena uns trilhões de anos mais jovem — empurrou levemente para o lado até ficar bem na minha frente.
— Então, você é o . — ela lançou um sorriso daqueles de cinema, claramente bem treinado. E, pelo jeito que as amigas se alinharam atrás dela, parecia a líder do grupo. — Caramba, é um prazer. A gente tá no primeiro ano de Medicina, e, bom, você já deve saber que as pessoas em Vagelos falam bastante o seu nome. Você é tipo uma celebridade de Irving. — ela deu um risinho e ajeitou o cabelo. — Sei que o seu negócio é terapias-alvo de câncer, mas pensei que a gente poderia conversar. Sobre o internato, ou qualquer outra coisa mais difícil…
Dali em diante, as palavras dela se perderam quando o som disparou para um nível quase desumano. Fiz o que pude para ouvir, mas acabou que fui levado, ou melhor, arrastado para fora da pista de dança, rumo ao jardim, onde o volume era menos ameaçador para os tímpanos e o número de pessoas diminuiu drasticamente. Também estava mais frio, o que explicava.
Olhei para as garotas, ponderando. Parte do meu trabalho extracurricular era mesmo reparar nos mínimos detalhes — nos olhares, nos gestos, nas pretensões não tão disfarçadas. Claro que a ruiva já tinha deixado as segundas intenções bem claras. Talvez até terceiras ou quartas. Mas, se eu já guardava toda a minha paciência e compaixão para lidar com os mortos, sobrava pouco para o resto da humanidade. E, sinceramente, eu não achava que a caloura bonita claramente rica, geniosa, cheia de opções e que nunca deve ter entrado em um transporte público estivesse precisando de compaixão.
Mas eu finalmente estava falando com alguém.
Por isso, dei meu melhor para treinar as expressões mais genuínas de interesse — precisava parecer que estava totalmente absorvido em cada palavra que saía da boca daquela garota. Nós nos acomodamos um pouco longe de e das outras, que, de algum modo, pareciam totalmente envolvidas com meu amigo. Ótimo. Aquilo tinha que ser rápido.
Enquanto ela falava sem parar sobre tudo o que a fascinava — sempre dando um jeito de incluir a mim e meus “supostos” interesses na lista —, eu tentava manter um ar de paciência. Tudo isso enquanto ela deslizava as mãos na cara dura por onde quer que pudesse alcançar de mim na fraca iluminação à beira da piscina. A cada minuto, a menina se aproximava um pouco mais na espreguiçadeira, e lá pelas tantas, eu já tinha perdido a conta de quantas vezes afastei sua mão boba, tentando passar a impressão de que só queria conhecê-la melhor primeiro e não a intenção real, que era, de jeito nenhum, me atracar com uma desconhecida numa festa que eu nem queria estar.
Provavelmente, não ia querer dar uns amassos nela nem fora daquela festa. Questão de princípios. Ela só estava interessada no cara do ranking, o que significa que estava articulando todas aquelas frases e citações mirabolantes porque pensava que eu me impressionaria. Como se eu fosse um cara que só daria importância a pessoas que soubessem o que é um dendrito e botões sinápticos.
— Então… Jessie. — soltei um suspiro de alívio no meio de uma de suas frases, satisfeito por lembrar o nome dela. — Aquela história sua sobre o experimento de difusão na célula foi… uau. Sério, deve ter dado um trabalhão, fiquei impressionado.
— Jura? Que incrível ouvir isso de você. — ela iluminou os olhos. — Peguei a ideia de um artigo seu, que, aliás, é um dos melhores que já li. A forma como você explicou osmose e as aquosas foi tão didática… e profunda. Sei que foi voltado para os alunos do preparatório, mas tinha um certo quê avançado que mal deu pra notar. Foi brilhante. — e lá veio outra mão deslizando sem qualquer permissão pelo meu braço.
— Mas então… — limpei a garganta, tentando aumentar a distância. — Imagino que foi difícil fazer tudo isso e ainda apresentar. Sei muito bem como a professora Hannah pode ser exigente.
— Bom, ela é uma vaca.
— É… meio que é. — sorri amarelo. — Aposto que você passou várias noites em claro, com aquela pressão toda. No ano passado, um cara saiu chutando a porta da sala e abandonou tudo no mesmo dia.
Ela riu, meio sem graça.
— Acho que todo mundo ouviu essa história. Teve uma hora que pensei em fazer o mesmo, sim. Se sentir exausta é uma merda, ainda mais em vários dias da semana. E eram tantos dados, caramba. Onde ela vai enfiar aquelas porras de números? Levar pra ONU? — ela resmungou com os lábios na borda do copo. Quase abri a boca e perguntei se ela tinha alguma noção de quem era Andy Hannah e de sua ligação real com a ONU, mas fiquei quieto. — Enfim, foi uma fase fodida. Mas dei um jeito, fiquei ligada por dois dias seguidos, e deu tudo certo.
Curvei os lábios para baixo.
— Sério? Que truque foi esse?
Ela retribuiu com um sorriso, um pouco conspiradora.
— Só uma coisinha que a galera faz. Segredo. Não precisamos falar disso. Mas queria contar o que a técnica do laboratório falou sobre o anatômico no meu primeiro dia…
— Qual é o segredo? — insisti, agora mais firme, inclinando-me um pouco para perto. Vi o impacto que isso teve, porque ela logo arfou um pouquinho. — Eu não tô por dentro da galera. As pessoas mal me conhecem e devem achar que eu sou uma cópia do Robocop, mas esses dias eu tô acabado. Tá na hora de mandar formulários para o internato, e eu não faço a mínima ideia de pra onde ir, qual hospital vai ser o melhor, em qual deles vou poder guardar minhas culturas, onde tem as melhores bolsas e esse tipo de coisa. Metade do departamento surge com propostas e vivem me lembrando que o tempo tá acabando. E eu só queria dormir. — dei uma risada seca e irônica, me aproximando só mais um pouco. — Então… será que eu também não mereço um descanso?
Jessie respirou fundo, como se tentasse acalmar o próprio coração ou talvez ganhar tempo para decidir se deveria ou não me contar. Mas a hesitação não durou muito; meu olhar deixava bem claro que eu não estava exatamente pedindo, e que, talvez, ela poderia receber algo em troca se dissesse. Pelo menos, queria que ela pensasse isso.
— Comprei uns remédios com um cara do campus. — ela começou, balançando o líquido dentro do copo. — Ele vende de tudo, mas sabe, nada exatamente... legal. Não faço ideia de onde ele consegue as coisas, mas o povo jura que é coisa de primeira. Pura, top de linha.
— Hum… — murmurei, me esforçando para parecer casual, quase desinteressado. — E esse cara, tem nome? Algum ponto de encontro ou algo assim?
Ela olhou ao redor, e uma pontinha de sorriso se formou no rosto dela, talvez impressionada com minha falta de sutileza.
— As pessoas o chamam de Ash. Mas todo mundo diz que esse não é o nome verdadeiro dele. — ela tinha uma expressão meio cúmplice, meio provocadora. Com certeza estava pensando que antes das 3 da manhã, eu estaria com ela no meu colo em uma das duas camas do quarto que ela compartilhava com alguma das outras no dormitório. — Tenho um e-mail, se precisar. Só dá pra falar com ele por lá. Mas, sério, gatinho, com certeza você não precisa se meter com esse tipo.
Ah, você nem faz ideia.
— Na verdade, eu preciso, sim. — respirei fundo, tentando demonstrar uma exaustão que, com sorte, parecia autêntica. — Eu não queria falar, mas… Quero muito ir pra Oxford, Jessie. E eles não responderam meu formulário até hoje, mesmo com as 3 cartas de recomendação mais fodas que alguém nesse país pode conseguir. Harvard é uma boa opção, até o Texas é uma ótima escolha, mas Oxford… eu quero eles, sabe? Mas eles não parecem se importar e a ansiedade tá me comendo vivo. É aquela que tira o sono, entende?
Ela assentiu com uma compaixão exagerada. Percebi que ela ficaria muito bonita se tirasse toda aquela maquiagem pesada.
— Claro. Meu Deus, não sabia que Oxford eram uns merdas completos. Nem parece que formaram o Stephen Hawking. — disse, com os dentes um pouco trincados. — Claro que dá pra te entender. Algumas pessoas podem ter medo de você ser o número 1 fora daqui também.
— Então, você pode me arrumar o e-mail? — perguntei, dando meu melhor sorriso de quem está à beira do abismo, mas tentando parecer digno.
Ela hesitou, mas mantive aquela expressão compenetrada que Gina vivia dizendo que a deixava molhada na mesma hora, e foi o suficiente. Rapidamente, a garota puxou uma caneta da bolsa, olhou ao redor como se fosse cometer um crime e começou a escrever as informações na palma da minha mão.
— É só mandar e aguardar a resposta dele. — ela diminuiu o tom de voz. — Ele vai te dizer onde encontrá-lo.
— Jessie, você acabou de salvar minha vida. — coloquei entusiasmo nas palavras, e ela sorriu de um jeito derretido. — Prometo que vou te recompensar com uma bebida. Duas, na verdade. É o mínimo, não?
— Só uma bebida? — ela ergueu uma sobrancelha e chegou mais perto, segurando minha mão e reduzindo a distância entre nós até que seu rosto ficou a poucos centímetros do meu. Tentei disfarçar o desconforto e toquei seu rosto de leve, numa tentativa de suavizar a situação.
— Duas bebidas, gata. — sussurrei, adotando um tom abafado. — E você sabe que compartilhamos um segredo aqui, né? Então, sem comentários sobre isso por aí. Sei que entende o que quero dizer.
Ela assentiu, rápido o suficiente para que eu me perguntasse se estava bem, e logo puxou o lábio inferior para os dentes. Dei um beijo leve na bochecha dela, agradecendo sem exageros, e senti os olhos dela me observando enquanto me afastava, sem dizer uma palavra.
Sempre fui um mentiroso de primeira. Tipo bastante. Tenho que ser, considerando que nasci com um defeito grave de ver o que as pessoas não veem e interagir com elas. Passei a vida inteira inventando desculpas e traçando estratégias para me misturar e não ser internado junto com pacientes de esquizofrenia no hospital psiquiátrico, fazendo meus pais acreditarem que eu era só… bem, o cara mais desastrado do universo. Explicava os machucados estranhos, as saídas abruptas e até as crises de "rebeldia", quando eu me metia numa briga com alguém ou precisava, sorrateiramente, invadir uma propriedade de Pacific Heights pra pegar uma fotografia de uma família que nunca vi na vida. Meus pais, a polícia e a assistente social diziam o mesmo: ele está naquela idade. Daqui a pouco as coisas se ajeitam. Não sabia exatamente o que significava “aquela idade”, mas concordava com tudo, dispersando o interesse.
Então, é lógico que fingir interesse em uma garota qualquer que conheci há menos de duas horas não era nada. Fácil. Meio chato, mas fácil. Assim que me afastei o suficiente de Jessie, mandei uma mensagem para , avisando que estava dando o fora, mas não valia a pena esperar sua resposta. Mesmo se estivesse transtornado de bêbado, o cara me mataria se eu o tirasse do seu harém particular, então só informei que ele precisaria voltar de táxi e fui apreciar minha liberdade.
No entanto, sair daquela festa foi mais difícil do que eu pensei, porque o número de pessoas na casa tinha triplicado. Atravessar aquilo foi ruim, melequento e um pouco assustador, considerando que um cara com metade do cabelo pintado de azul raspou a bunda exposta na minha calça. Ignorei os olhares espichados pra cima de mim, e os burburinhos que começavam e acabavam depressa. Impressionismo da minha mente, eu esperava. Normalmente, as pessoas só olhavam pra mim quando me viam no meu habitat natural de ser um completo esquisito.
Já passava das duas da manhã e o ar do lado de fora estava congelante, com vapor branco escapando da minha boca assim que respirei o ar puro. Abaixei as mangas da camisa e dobrei na rua, andando rápido na direção do carro, dando uma última olhada para trás, vasculhando as bordas das janelas vitorianas, a chaminé de tijolos desgastados e o quintal com gramíneas fracas, prontas para serem soterradas pela neve, procurando algum sinal de fantasma na redondeza, qualquer coisa que aquela gente bêbada não estava vendo e jamais veria.
Mas não tinha. A casa estava mesmo limpa. Uma casa velha e que deve ter sido reformada pela última vez em 1987. Uma raridade boa de se ver.
Finalmente alcancei o Jeep, só que, claro, tinha um problema. Porque é claro que tinha. Porque aquilo ainda era uma festa, e eu estava em Nova York.
Por algum motivo que jamais vou entender, um grande Toyota RAV4 preto estava parado bem na frente da porta do motorista do meu carro, bloqueando não só a minha entrada, mas também grande parte da rua. Não que alguém fosse se queixar àquela altura, já que eu era o único a sair da festa enquanto ainda havia pessoas chegando. Mas com aquele carro naquela posição, eu não conseguiria ir embora nunca, nem mesmo se chamasse um táxi.
E como se a situação não pudesse piorar, lá estavam eles: um casal, claramente se engolindo vivo, encostado na porta do carona do Toyota, bem entre meu Jeep e o carro ao lado. A garota estava prensada contra a janela, o vestido a bons quilômetros acima dos joelhos. E o jeito que o cara estava beijando ela… definitivamente era o caso de usar a palavra “engolir” com todas as letras.
Limpei a garganta, uma, duas vezes. Até que finalmente eles pararam e me olharam. E pra completar o nível de constrangimento, a garota era ninguém menos que . Ela pareceu extremamente desconcertada ao me ver, ruborizando da cabeça aos pés, fazendo toda aquela fachada de durona cair por terra.
— E aí, amigo. — o cara se virou para mim, com uma voz completamente embriagada, os olhos quase fechados. Ele não era tão alto, mas tinha postura, um cabelo claro farto e um nariz romano bastante distinto. Gina teria dito que ele parecia bem-apessoado. Pra mim, ele só era um cara fedendo a álcool barrando meu caminho. — Alguma coisa interessante pra você aqui?
— O carro é seu? — apontei para o Toyota, tentando me manter o mais educado possível. Ele balançou a cabeça afirmativamente, ainda um pouco confuso. — Poderia, por gentileza, abrir um espacinho pra eu sair? Aqui não é bem a Avenida Madison. — falei, fazendo um gesto na direção do Jeep estrangulado no meio-fio.
Ele olhou para mim, depois para o Jeep, depois de volta para a SUV, como se estivesse tentando resolver um cálculo complicado de Física. Finalmente, soltou , deu um passo em minha direção e disse, com um tom impaciente:
— Isso precisa ser agora? Eu estou no meio de uma coisa aqui.
— É, deu pra ver. Mas ainda precisa ser agora.
— A gente já vai. — disse, pegando na mão do cara com certa pressa. — Vamos, , me dá as chaves.
— O caralho de chaves. — ele soltou a mão dela abruptamente, e deu um passo pra trás, surpresa. — Sério, você acha que vai embora agora? Tá cedo demais! Fica aí e aproveita mais um pouco. Você deve ser calouro, né? Então esse é o seu momento! Vai lá, participa da bebedeira de ponta-cabeça no tanque, agarra uma gata na suíte… é disso que você vai realmente lembrar da CCU, sabia? — um sorriso enorme e afiado se abriu nos seus lábios meio vermelhos. Gina também diria que ele tinha dentes excelentes.
No meu caso, odiei todos eles instantaneamente.
— O cara entende a nossa língua? Pode fazer uma mímica ou explicar pra ele que eu tô com um pouco de pressa aqui?
Olhei para de soslaio.
— ...
— Cara, quem você pensa que é, falando assim com a namorada dos outros?
— !
O grito dela me fez virar na hora. ainda estava vermelha, mas não parecia constrangida pelo fato de eu ter flagrado seu amasso radical. Era um desconforto diferente — como se estivesse amedrontada com o grito que acabou de dar.
— Vamos embora, anda. Podemos ir pra sua casa, que tal? — sugeriu ela, quase num murmúrio.
A proposta fez o cara parar e encará-la com aquele tipo de olhar que só piorava as coisas. Mesmo tentando soar casual, a tensão no rosto de era clara, assim como seu desinteresse real em dizer aquilo. Mas é óbvio que, no estado do idiota, ele não ia perceber nada.
Em seguida, ele deu uma risada estranha, alta, tipo uma gralha, e então, sem mais nem menos, agarrou o glúteo da garota e a deu um beijo forte na sua boca antes de caminhar até a porta do motorista do Toyota. Ela ficou lá parada, os olhos fugindo dos meus por alguns segundos, até que finalmente, sem escolha, levantou o queixo pra me encarar. E foi naquele segundo que alguma coisa mexeu comigo de um jeito muito errado. Nem sei bem de onde veio, mas o instinto de dar um soco na cara do tal e desmanchar aquele sorriso de atleta bateu forte.
sumiu do meu campo de visão e abriu a porta do carona quando o motor foi ligado. Antes de entrar no carro, ela olhou nos meus olhos de novo, como se quisesse dizer algo, mas não fez. E daí, algo estranho aconteceu.
Atrás dela, vi uma sombra, meio indefinida, sem rosto, só… uma presença pesada, espreitando bem perto dela. Cravou o que pareciam ser olhos em seus movimentos, observando desde o momento em que ela subia e se acomodava no assento, puxando o cinto de segurança e murmurando algo ininteligível para o namorado imbecil que nem sequer virou a cabeça para olhá-la.
O som do motor reverberando no escuro me tirou do transe, e pisquei. O vulto desapareceu tão rápido quanto tinha surgido. Vi o carro cantar pneus e ganhar velocidade, se afastando depressa enquanto meus olhos ainda tentavam processar o que acabaram de ver.
Olhei para a fachada da casa, soltando o ar tão forte que me envolveu em uma enorme névoa branca.
Talvez aqui não estivesse tão limpo assim.
a) Não tinha como alguém que comandava um esquema daquele tamanho no campus ser tão descuidado.
b) faria perguntas que eu definitivamente não queria responder.
c) não ia sossegar até conseguir as respostas, e elas provavelmente destruiriam a sanidade mental dele — e meu status de melhor amigo na mesma tacada.
Preferi focar no caminho mais tradicional. O e-mail dizia para estar à 1 da manhã no segundo andar da Dungeons, última porta do corredor. Não me admirei com a continuidade da festa por hoje também, mas não fiquei animado de ter que voltar àquela mesma casa — não depois que tinha literalmente escapado dela ontem, e não depois de ver aquela… coisa no final. Uma coisa esquisita que não tive tempo de pensar ou pesquisar sobre (lê-se: perguntar à minha avó), mas eu não tinha escolha. Decidi que tudo acabaria naquela noite, e ainda com tempo de sobra para assistir os irmãos Soprano brigando por um pedaço de torta na reprise da HBO.
Cheguei a pensar em abordar Ash de forma mais inteligente, mas me lembrei de uma coisa que Gina vivia me dizendo: todo mundo acredita no invisível, , e todos têm medo quando são confrontados por ele. Não que isso deixasse a minha decisão mais racional. Era um plano péssimo. Terrível. Tinha tudo para dar errado. Só esperava que não desse tão errado a ponto de ser irreversível.
O som estridente do interfone me tirou dos pensamentos concentrados nas gotículas de café na máquina. Suspirei, já sabendo quem era só pelo padrão dos toques.
— Cara! — entrou pela porta antes mesmo de eu abrir direito, se jogando no sofá retrátil. — Você não vai acreditar onde eu estava.
— Então nem precisa contar. — avisei, voltando para a cozinha. Eu sabia onde morava, e se tinha batido ali bem depois das 9 da manhã e usando a mesma roupa de ontem, dava pra saber que estava bem longe de casa. — Tá com fome?
— Sempre. — respondeu, ofendido, como se eu tivesse perguntado algo óbvio. — E deixa eu te dizer: você é oficialmente o melhor amigo do mundo. Acabei de riscar o ménage da minha lista de coisas pra fazer antes de morrer.
— Que galanteador. Pretende plantar uma árvore também?
— O mundo já tá fodido, . Uma árvore a mais não vai salvar a gente do próximo meteoro.
— Faz sentido. — dei de ombros, despejando o café na caneca preta com a logo de Vagelos. — Mas ménage? Achei que tinha te visto com quatro garotas.
— Uma delas estava mais interessada nas outras do que em mim. Fica quieto e respeita minha vitória.
Ri enquanto terminava o prato favorito de : pão e geleia (sem preferência de sabor). Coloquei dois em cima da bancada e ele se levantou do sofá, faminto.
— Mas e você, sumiu ontem. — disse, enquanto mastigava como um sobrevivente no apocalipse zumbi. — Procurei por você que nem doido e nada. Meu celular até descarregou. Sorte que as garotas me deram carona pra casa. Pra alguma casa.
— Fiquei cansado, te avisei na mensagem. Parece que meu professor precisava de um relatório de última hora urgente.
Isso não era totalmente mentira ou totalmente verdade. sabia que, se existia um grupo em todo aquele campus que poderia ser visto trabalhando ou perambulando de madrugada além dos mendigos em volta dos portões, essa era a corja da faculdade de Medicina. Era normal o seu orientador te mandar um e-mail às duas da manhã pedindo coisas urgentes e você respondê-lo na mesma hora.
— E a Jessie? Ela era a mais gata das quatro. Tava na cara que você tinha tudo pra se dar bem.
— Sei lá. Não rolou. — dei de ombros, agora fazendo um sanduíche pra mim. ficou parado, o canto da boca sujo de geleia de amora, a testa franzida como se eu tivesse acabado de dizer que ia platinar o cabelo.
— Ah, fala sério. Isso é por causa da Gina?
Agora eu estava franzindo a testa.
— O quê? Como a Gina veio parar nessa conversa?
— Não sei, talvez porque ela é a única garota que ocupa algum espaço sexual na sua vida?
— Ela é só uma amiga, . Não faz sentido trazer ela pra esse contexto.
— Amigos que transam, entendi. — ele ergueu uma sobrancelha enquanto lambuzava o pão com mais pasta de amendoim. — O “clube” onde ela trabalha tem mais amigas assim? Será que ela me apresenta?
Balancei a cabeça, pegando meu café e voltando para a sala. Encerrar assuntos ignorando era meu talento especial, e ele já sabia quando parar. Especialmente se o tópico fosse Gina.
Gina Lasser era minha melhor — e única — amiga de verdade. E, sim, nosso relacionamento podia parecer complicado à primeira vista, mas, na verdade, não era. Crescemos juntos no orfanato Melbourne, duas crianças totalmente diferentes que gostavam de uma brincadeira muito peculiar: quem ajudava o Sr./Sra. Fantasma primeiro.
Sim, Gina era igual a mim.
Isso, mais do que tudo, já era um dos principais motivos do porquê éramos amigos. Nos 22 anos da minha vida, nunca conheci outra pessoa que enxergasse os mortos como eu e, por mais que eu reclame do fardo que isso às vezes se torna, é muito mais fácil lidar com ele quando você não está sozinho.
Gina nunca conseguiu ser adotada definitivamente. Eu era o oposto dela: quieto, retraído, a cara enfiada em algum livro aleatório, enquanto ela falava e agia sem pensar. Era desbocada, bagunceira, teimosa. No dia em que meus pais foram me buscar, ela gritou uma série de palavrões para eles, chorando, e até correu atrás do carro enquanto íamos embora. Aquilo me despedaçou. Por meses, cada vez que eu fechava os olhos, revivia aquela cena, o rosto dela ficando menor no retrovisor. Mas eu sempre me lembrava da promessa que fizemos um ao outro: nunca deixaríamos de ser amigos, e com certeza iríamos nos encontrar de novo. Gina tinha sido a primeira pessoa a me arrancar da concha onde eu tinha me trancado, me dando algo que eu nem sabia que precisava — a chance, mesmo que mínima, de ser eu mesmo.
Nos anos seguintes, eu dava um jeito de me esgueirar até o telefone preso na cozinha escondido dos meus pais e ligava para o orfanato sempre que podia. Queria contar a Gina sobre a minha nova vida, minha nova casa, sobre meus avanços, especialmente com os "senhores fantasmas" que estavam em peso por toda a São Francisco — especialmente na ponte Golden Gate. Fiquei sabendo que lá era tipo o point dos suicidas de toda a Califórnia —, e essas eram coisas que só nós dois entendíamos. Mas as notícias que chegavam pela senhora Drager eram sempre preocupantes: Gina tinha fugido de mais um lar temporário, brigado na escola, tentado escapar do orfanato, passado a comprar cigarros. Ela não podia ter celular, então, nossas conversas eram raras e espaçadas, até desaparecerem de vez quando cheguei ao ensino médio.
Os primeiros anos sem ela foram insuportáveis. Ninguém mais entendia o lado estranho da minha vida, aquele que só Gina conhecia e aceitava. Era literalmente como esconder uma parte enorme de mim mesmo, guardar uma raquete de tênis em uma caixa de fósforo — não dá. Então, precisei fingir que ela não existia, focar em ser um adolescente normal com problemas normais de espinhas, puberdade, pôsteres do Aerosmith e karaokê na sala com meu pai, ferindo os ouvidos de toda a vizinhança com I Don’t Wanna Miss a Thing. Para todos, eu estava bem, mas também estava sufocando. E, quando esses momentos de descontração passavam, eu automaticamente voltava pra minha concha e me lembrava da alma penada zanzando pelo jardim dos fundos da escola que eu não poderia mais ignorar, revelando a realidade a qual eu estava fadado a viver.
Foi difícil para os meus pais. É claro que eles notaram que tinha algo de errado comigo, e tentaram ajudar com o melhor que seu amor e dinheiro conseguiam oferecer, mas eles jamais poderiam. Não era algo que eu podia simplesmente explicar, colocar pra fora.
Então conheci , no primeiro ano da escola católica. Ele era o tipo de pessoa que fazia tudo parecer mais leve, como se a vida fosse o seu cenário de sitcom e ele precisasse fazer a plateia rir. Foi quando eu comecei a me envolver em conversas aparentemente normais entre outros garotos, como namoradas, jogos, Pornhub e “ei, quer ir dar um trago lá na quadra?”. Ele não ligava para as minhas "esquisitices" — como falar sozinho no vestiário da educação física, ser detido por invasão de domicílio e odiar museus com todas as forças. Ele fazia perguntas, claro, mas tinha uma habilidade incrível de deixar as coisas pra lá. me lembrava Gina, de certo modo. Não na aparência ou nos trejeitos, mas na maneira como me fazia sentir. Com ele, aquela sensação de estar sozinho diminuiu um pouco, abrindo espaço para que eu tivesse outros amigos também.
E foi por causa dele que tudo mudou. No dia da formatura do colegial, sugeriu que a gente, junto com dois outros caras da nossa turma, explorasse o subúrbio de São Francisco. Depois de algumas decisões questionáveis e subornos improvisados, acabamos em um clube noturno. Era um lugar pequeno, mal iluminado, e ninguém pareceu se importar com um grupo de adolescentes desajeitados vestindo smoking e cheirando a ponche de cereja se infiltrando. Eu estava seguindo o fluxo, já meio bêbado com a vodka que o cara de aparelho tinha roubado do estoque do pai, e nada preparado para o que vinha a seguir.
Estávamos sentados em uma mesa, esperando o show começar, quando as luzes diminuíram. Um holofote brilhou no palco. E lá estava ela. Gina.
Ela usava lingerie coberta de brilho e lantejoulas. Mesmo com anos de distância e maquiagem pesada cobrindo o rosto, eu a reconheci imediatamente. Foi como se o tempo congelasse, me levando de volta ao orfanato. Meus amigos estavam agitados, mas eu mal conseguia respirar.
Depois do show, nossos olhares se cruzaram. Ela me viu na multidão, e então tudo aconteceu rápido demais. Num instante, eu estava sentado, tentando processar; no outro, já estávamos juntos no bar, falando sem parar. Gina me contou tudo o que aconteceu desde que perdemos contato: como saiu do orfanato aos 17, os bicos que teve, as viagens por impulso, uma brevíssima fase nômade até, finalmente, acabar ali. Provavelmente, ela esperava que eu dissesse alguma coisa. “Nossa, mas stripper? O que você pensa que tá fazendo? Achei que estaria vendendo planos dentários ou abrindo uma sorveteria”. Mas não disse nada, porque nada daquilo me incomodava. Gina era alguns poucos anos mais velha do que eu e sempre foi esperta e decidida, sempre fez o que queria fazer. O fato de ela dançar seminua em um pole dance não mudava um terço da imagem que eu tinha dela. Pelo contrário, admirava o quanto ela era boa naquilo.
Isso também leva a outra parte da noite, onde ela me pagou drinks coloridos, me chamou pra dançar e acabei acordando em um quarto de hotel do outro lado da cidade 6 horas depois, pelado e arranhado. Com ela.
disse que aquele dia foi muito importante pra eu acabar com o burburinho de que eu fazia parte do espectro aroace.
Desde então, Gina e eu sempre mantivemos contato, mesmo que isso significasse trocar longos e-mails porque, de alguma forma inexplicável, ela sempre estava sem celular. Há cerca de um ano, ela se mudou para Nova Jersey, onde começou a trabalhar em um clube mais badalado e, agora, que não exigia suas habilidades de dança. Pelo jeito, a mudança tinha sido um upgrade: mais dinheiro, mais amigos e, claro, mais responsabilidade. Agora que estávamos mais próximos, conseguíamos nos ver com mais frequência. Às vezes, ela até me ajudava com... bem, assuntos envolvendo os mortos. Eu adorava isso — na verdade, valorizava cada segundo ao lado dela, porque com Gina eu podia ser eu mesmo, sem máscaras e sem pessoas prontas pra te colocar em uma camisa de força.
nunca conseguiu entender essa dinâmica. Para ser justo, poucas pessoas entenderiam só olhando de fora. Eu e Gina tínhamos uma conexão... peculiar. Havia um carinho mútuo, e sim, algumas dessas noites de bebedeira ou aquelas em que a vontade batia, eu acabava acordando com ela na minha cama, mas não era algo que eu via necessidade de rotular. Não era romântico, não era exclusivo, não era aquele tipo de coisa que você selaria com uma aliança. Era só... eu e Gina. Gastando tempo juntos. Vivendo o que só a gente podia viver.
Mas, pra — e provavelmente pra qualquer pessoa com um senso de normalidade mais convencional — ela parecia minha namorada. Ou, no mínimo, alguém por quem eu deveria estar apaixonado. O que, claro, só tornava as coisas mais complicadas, porque, honestamente, eu nem sabia direito o que significava se apaixonar.
Sentei no sofá e puxei o laptop da mesa de centro, planejando estourar Imagine do John Lennon e fingir que estava interessado em ler os artigos que o doutor Hughes tinha me passado, enquanto se jogava na poltrona. Abri primeiro meus e-mails, mas nada de Gina responder o último que mandei. Fazia só dois dias, então não era grande coisa, mas sabia que ela teria algo a dizer sobre o caso de Sandy. Ah, e provavelmente também me daria um sermão por ter ido a uma festa sem ela.
— E aí, o que vai fazer hoje? — perguntou, agora com as migalhas de pão caindo no peito.
— Vou voltar pra Dungeons. — respondi, sem desviar os olhos do laptop.
O silêncio que se seguiu foi tão expressivo quanto a cara de choque que eu podia imaginar no rosto dele.
— O quê? — ele praticamente gritou. — Espera aí... Como assim? Você se divertiu tanto ontem assim e eu nem percebi?
— Não tinha como você perceber alguma coisa com duas línguas simultâneas entrando na sua boca.
— Eu sabia que aquele beijo triplo não tinha sido minha imaginação. Obrigado. — ele esticou o braço, e deu um suspiro de alívio. — Mas ainda não sei onde tá a lógica de você querer repetir uma noite que você encerrou cedo demais.
— Sei lá. Foi mais legal do que eu esperava. — dei de ombros, tentando soar indiferente.
— Legal tipo… muito legal? — ele insistiu, com as sobrancelhas quase se unindo na testa.
Suspirei.
— Tá bom. Foi bem legal assim. Se quiser, pode ir comigo de novo.
levantou tão rápido que parecia que alguém tinha enfiado um alfinete na bunda dele.
— Cara, eu não sei o que você anda tomando esses dias, mas a resposta é sim. Pra qualquer coisa que você sugerir! Se eu encontrar mais três gatas como aquelas, juro que meu nome vai parar no Guinness. “Maior recorde de pegação da CCU”. O que acha?
— Acho que o Guinness tem mais classe do que isso, Jung.
— Cala a boca! Vamos te vestir direito dessa vez, pra você arrasar mais que ontem. Sério, as pessoas vão até querer tirar fotos, e todas aquelas garotas…
— , segura a onda. Se você se empolgar demais, elas vão sair correndo.
Ele deu de ombros, com um sorriso maroto.
— Tudo bem. Aí eu deixo você trazer todas elas de volta.
Eu estava ridículo.
Não era uma conclusão difícil de chegar, já que eu parecia uma versão carnavalesca de um leprechaun. sabia que eu odiava verde. Sabia que eu odiava mocassins. E, ainda assim, lá estava eu, parecendo um cartaz vivo de St. Patrick’s Day, pronto pra ser a estrela principal do desfile de Boston. Quis queimar tudo aquilo, ou talvez me queimar, considerando que jamais esqueceria da imagem de mim mesmo que vi no espelho.
Eu sei que era só por uma noite, e só por um trabalho extracurricular que eu fazia pelos mortos, mas aquele verde não ia rolar.
Acabei me virando com algo mais próximo de mim: camiseta branca, jaqueta de couro e jeans escuros com botas. Não era exatamente o que eu usaria em dias normais, mas pelo menos não era... verde. , por outro lado, parecia cada vez mais confiante — ou absolutamente alheio — com sua bomber estampada de animal print (um tigre, pra ser específico) que, honestamente, me fez desistir dele. Culpei o ménage pelo excesso de autoestima.
Quando chegamos à festa, percebi que havia ainda mais gente do que no dia anterior, entupindo cada ponto cardeal da casa. , com sua eficiência em viver com o nariz no celular, comentou que a divulgação das fotos de ontem no Instagram tinha feito a maior parte do serviço em atrair toda aquela gente. Disputando espaço e oxigênio em menos de 30m², havia pessoas de cidades vizinhas, atletas de universidades locais e até de nossos famosos rivais de Princeton, fazendo com que eu precisasse lidar com um mar de ombros, cotovelos e hálitos duvidosos para conseguir atravessar o salão principal.
Antes de se perder na multidão, virou-se para mim.
— Vou pegar bebidas. Fica aqui. E se te oferecerem um cigarro vermelho, foge.
Assenti, sabendo que era exatamente o que eu não faria. Assim que ele desapareceu na massa humana, nem hesitei em ir para o outro lado, direto para onde eu me lembrava ter visto as escadas. me perdoaria depois. Subi os degraus largos em semi-espiral, desviando de um montão de cenas de beijos diferentes e pessoas que já tinham perdido a batalha contra o álcool.
Marchei pelo corredor inteiro até a última porta. Ash estaria lá. Se tudo corresse bem, resolveríamos aquilo hoje, e Sandy — e tudo o que ela representava — seria coisa do passado. O que, diga-se de passagem, era uma das únicas vantagens de lidar com mortos: eles despejavam seus problemas de uma vez só e depois desapareciam, nos largando aqui com as consequências de seus escândalos.
À medida que eu caminhava, tive de novo aquela impressão de estar sendo observado. mencionara algo sobre meu nome estar circulando no Twitter depois da festa anterior, criando certo burburinho. Ótimo. Mais uma camada de desconforto. Não era o tipo de atenção que eu precisava hoje enquanto estava prestes a ter uma conversa um pouco difícil com um cara que trabalhava com tráfico de tarja preta.
Quando cheguei ao quarto, a porta estava fechada e, curiosamente, vazia de espectadores ao redor dela, como acontecia nos quartos vizinhos. Dei dois passos para o lado, me preparando para esperar, quando ela se abriu de repente. Antes que pudesse reagir, uma mão me puxou para dentro com uma rapidez instantânea. A porta se fechou atrás de mim com um clique perturbador.
A atmosfera do cômodo era medonha. A luz fraca limitava minha visão, mas o ponto mais claro estava à direita: uma grande mesa de madeira escura e polida. Atrás dela, um homem com os pés apoiados, como se estivesse em uma pausa casual no meio de uma reunião de negócios ilegais. Ao redor, mais duas figuras quase invisíveis. Por um breve segundo, me senti em uma cena deletada de O Poderoso Chefão.
Então ele se levantou, com uma calma ensaiada, e caminhou na minha direção. Sobretudo preto, jeans escuros e coturnos tão surrados que dava pra perceber mesmo a meia-luz. A fumaça de um cigarro abandonado na mesa pairava no ar, dando o toque final no cenário clichê de mafiosos.
— ? — ele perguntou, com um sorriso quebrado que não prometia coisa boa.
Estendeu a mão.
— Sou o Ash.
Apertei a mão dele, tentando não parecer tão desconfortável quanto me sentia.
— Relaxa, não precisa ficar tímido. Todo mundo aqui é amigo. — disse, despreocupado, mas não serviu pra me passar um pingo de confiança. — Trouxe a grana?
Assenti com a cabeça e puxei os 100 dólares do bolso. Cada nota parecia pesar mais que deveria. Se eu visse Ash no campus pilotando uma Harley ou dirigindo um Audi, não me surpreenderia nem um pouco. O cara cobrava bem caro pelo serviço.
Ele contou nota por nota devagar, meteu o dinheiro no bolso e fez um gesto discreto com a cabeça para um dos caras encostados na porta. O sujeito sumiu por uns segundos antes de voltar com uma maleta preta, colocando-a em cima da mesa com um baque seco.
— Certo. — Ash voltou para trás da mesa, com a maleta entre nós. — Vamos ao que interessa. Do que você precisa? Relaxar? Curtir? Apagar? A gente tem de tudo. Só falar.
Eu já tinha ensaiado essa conversa na minha cabeça umas mil vezes, mas agora, cara a cara, minha garganta parecia feita de areia. E as pessoas extras na sala só complicavam tudo — não que eu tivesse medo de briga, mas sair no tapa com dois brutamontes enquanto tentava lidar com Ash não era exatamente um plano brilhante. Já não era muito brilhante agora. E queria acreditar que eu estaria preparado caso as coisas chegassem àquele ponto, mas na verdade não estava — eu nunca estava.
— Tá tudo bem aí? — a voz de Ash era casual, mas seus olhos analisavam cada pedaço do meu rosto, procurando algo.
"Que se foda", pensei. Eu estava ali, já tinha entregado o dinheiro. Tinha que ir até o final, mesmo se fosse um final onde eu teria que relembrar os golpes básicos de defesa pessoal que eu usava contra os mortos.
— Quero a mesma coisa que você deu à Sandy Silo.
Não sei como minha voz saiu tão firme e clara.
O rosto de Ash congelou por um segundo antes de ele mascarar o choque com um risinho nervoso. Do meu lado, os dois grandalhões na porta começaram a se mexer, claramente interessados na conversa.
— O quê? — ele riu de novo, mais forçado dessa vez. — O que você acabou de falar?
— As pílulas que você deu pra Sandy. A garota suicida da semana passada. Quero o mesmo que ela ganhou. Pelo visto, dá o maior barato.
Ash apoiou as duas palmas abertas em cima da superfície amadeirada da mesa, forçando a expressão a permanecer do jeito que eu tinha encontrado no início: fria, autoritária.
— Eu não faço ideia do que você está falando, amigo. Vendo coisas pra várias pessoas todos os dias, então se você não quer nada e veio até aqui pra ficar de papo furado, melhor sair logo.
— Então a gente precisa ter algum tipo de relacionamento amoroso pra eu conseguir o produto também? — dei de ombros. — Isso é uma pena, porque não vai rolar. Se existir outra maneira, talvez-
Ash estava na minha frente antes mesmo de eu terminar de falar, sua mão segurando a gola da minha camiseta com tanta força que senti o tecido ameaçar rasgar.
— Como você sabe disso? — ele sussurrou, a tensão escorrendo por cada palavra. Um leve pânico foi muito perceptível naquele rosto de pedra. — Quem é você?
— Você não precisa mesmo saber.
— O que você quer?
— Quero saber se você a matou.
— Sandy? Eu jamais faria isso. — ele estava se esforçando para parecer ofendido, mas o suor na sua testa contava outra história.
— Faria, sim. — estreitei os olhos. — Ela morreu depois de tomar suas balinhas "inofensivas".
— Que porra?! — ele me soltou em um impulso tão forte que me fez segurar nos calcanhares pra não cair. Seus ombros não paravam de tremer. — Tá sabendo disso como? Ela saía com você também? Eu devia saber que ela não era tão monogâmica quanto dizia.
— Esse é o menor dos seus problemas, cara. Você sabia o que estava dando pra ela? Sabia que ela morreria por isso?
— Mas é claro que não! — ele passou as mãos na cabeça e andava de um lado pro outro. — Eu dei Lorazepam pra ela, mas foi só isso! Nem disse pra ela tomar tantos assim. Eu também fiquei surpreso quando soube, porque não tinha nada naquela porra além do que a bula já diz. Eu nunca imaginei que ela faria uma coisa dessas.
— E ela não fez. Ela tomou exatamente os três comprimidos que você disse, e acordou morta. Não é possível que você não tá vendo nada de errado nisso. Vai lá, cara, confessa.
— Opa, o que está havendo aqui? — uma nova voz interrompeu, profunda e grave, vindo da porta.
Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Aquela voz, carregada de irritação, vinha dele: ; o cara bêbado que eu tinha expulsado da frente do meu carro ontem à noite. Hoje, pelo menos, ele parecia sóbrio. Quer dizer, tão sóbrio quanto alguém com a cara dele pode parecer.
Minha cabeça virou automaticamente em direção ao som, e só então me dei conta de como minha última frase havia saído alta demais. Não era só ; estava logo atrás dele, parecendo tão surpresa quanto eu.
Ah, ótimo. Era exatamente disso que a situação precisava agora: plateia.
cruzou o cômodo em passos largos, parando bem na minha frente. Seus olhos alternaram entre mim e Ash.
— Alguém pode me explicar que porra tá acontecendo? — a pergunta era mais direcionada a Ash do que a mim. — Posso saber o que esse bosta tá fazendo aqui?
Ah, então ele se lembrava de mim.
— Como… Como você sabia? — Ash ignorou completamente o surto de , seus olhos ainda fixos em mim, a voz carregada de incredulidade. — Como sabia que eu disse três comprimidos?
Engoli em seco. Tinha me preparado para confrontar Ash, mas nada na minha mente calculou esse cenário ridículo com personagens extras e luz de fundo dramática. Como eu explicaria aquilo? Na frente de toda essa gente?
Mas eu também não conseguia ir embora, então a situação estava pior do que eu pensava. Janelas? Eu não conseguia enxergar direito naquela escuridão. A porta estava fora de cogitação, pelos dois caras parados que não iriam relaxar enquanto não me socassem até a morte. Armas? Nada que pudesse neutralizar quatro pessoas de uma vez. De repente, desejei mais do que tudo que , em seu momento pleno de embriaguez, abrisse mais uma porta errada na vida e me desse uma brecha.
cutucou Ash para que ele "acordasse" do transe de olhar pra mim e levantou as sobrancelhas. Ash balançou a cabeça e, de repente, a mesma expressão de bad boy que tinha assim que entrei retornou.
— Esse cara veio aqui me perguntar se eu matei a Sandy. — Ash finalmente murmurou, o rosto endurecendo novamente.
— O quê? — riu, mas foi aquele tipo de riso que não combina com diversão. Era mais cínico, afiado. Ele se virou para mim. — Você é maluco? O que te faz pensar uma coisa dessas?
— Ele sabe que eu saía com ela. — Ash quase sussurrou e revirou os olhos.
— E daí que ele sabe disso? Foi um lance passageiro, não foi? Você nem estava mais com ela quando ela decidiu fazer merda. Não tem que deixar esses cretinos entrarem aqui e perguntarem isso. — deu mais uma risada e Ash permaneceu mortalmente sério. Depois de um segundo, o rosto de também mudou. — Você não estava mais com ela, não é? A gente conversou sobre isso, eu te disse pra largar aquela infeliz.
— Ele não fez nada disso. — falei pela primeira vez, chamando a atenção de todos. — E não só isso, mas enfiou Lorazepam nela, que provavelmente foi a causa da morte, mas ela nunca quis se matar. Na verdade, ela nem sabia o que estava tomando. Ela só confiou nele. — joguei os braços para apontar para Ash. Pelo canto do olho, vi atrás de , na escuridão, o rosto pálido de choque. parecia mais com raiva.
— Que porra é essa? — ele resmungou para si mesmo. — Então, aquela meretriz também tava dando pra esse aí? — com um riso maldoso, ele se aproximou de mim, colocando uma mão nos meus ombros. — Qual é, cara? Vai pra casa. Tem coisas muito mais interessantes nessa festa do que bancar o Sherlock por uma garota morta. Você tá estragando todo o clima do lugar.
A voz dele era suave e calma, mas por que ao ouvi-la eu sentia uma força sombria prestes a me engolir?
— Ei, não acredita em tudo que aquela garota te disse. Não vê que ela estava te enganando?
— Quero que ele confesse. — falei firme, olhando em seus olhos. A expressão de tornou-se séria de novo.
— Vai pra casa, tô te avisando.
— Eu já disse que não a matei. — Ash disse, o desespero novamente salpicando seus olhos. — Eu menti, . Não terminei com ela. Eu... sei lá, não lembrei disso.
— Cala sua boca! — rangeu os dentes ao falar com o amigo, seu olhar generosamente assustador. — Olha o que a sua estupidez tá causando. Quer foder com tudo mentindo pra mim assim?
— Com tudo? O que você tem a ver com isso? É mais um integrante da trupe do mal desse cara que não fez questão de falar com a polícia? — perguntei, e só depois de meio segundo percebi o que fiz.
Na verdade, também pareceu perceber o que tinha feito. Mas não tive tempo de questioná-lo por mais tempo porque, sem mais nem menos, o cara resolveu me socar. Mas não um simples soco. Foi um baita soco de alguém que parecia ter alumínio entre os dedos. Foi tão forte na minha boca que me fez perder o equilíbrio e ser lançado para trás, batendo o canto da testa em um tipo de quina e desabando no chão logo em seguida.
A primeira reação do meu cérebro foi ficar embaralhado com o baque e minha visão ficar turva, então eu sabia que alguém tinha gritado alguma coisa assim que caí, mas era como se eu estivesse embaixo d'água. E antes que eu pudesse me recuperar, senti a gola da minha camiseta sendo puxada e mais um soco. Depois outro. E mais outro. Ele nem me dava tempo de sentir dor.
Se há algo que os socos fizeram por mim — além de me garantir uma dor do caralho —, foi me ajudar a clarear os ouvidos e a mente. A confusão deu lugar a um entendimento maior do que estava acontecendo. Aquela voz aguda, entrecortada por gritos era de , sem dúvidas. Mas, antes que eu pudesse processar direito, um impacto forte atingiu minha barriga. O ar me fugiu dos pulmões. Todo o universo inchou e sangrou diante dos meus olhos.
Os socos sozinhos não estavam mais sendo suficientes para aquele boçal.
Foi quando percebi que estava mesmo levando uma surra. O sangue escorrendo da minha testa nublava minha visão, pingando no chão. Ainda assim, ouvi as risadas de . Elas pareciam... distantes, o que não fazia sentido para alguém que deveria estar me acertando. Então lembrei: as outras pessoas do recinto. Dois caras guardavam a porta, ambos estudantes e não muito brutamontes, mas, na desvantagem de dois contra um, fugir era uma estratégia risível.
A voz de seguia ao fundo, mas as palavras eram indistintas, como se estivessem no fundo de um abismo. Não era comigo que ela falava. Não podia ser. Talvez, se parassem de me espancar por um segundo, eu conseguisse ouvir melhor. Mas, entre tentar me defender e me agarrar à consciência que insistia em escapar, ouvir era um luxo que não podia me dar.
Então, como por um milagre, eles pararam.
A dor inundava cada parte do meu corpo. Parecia que eu nunca mais seria capaz de levantar a cabeça de novo, mas fiz mesmo assim. Forcei os olhos, como se fingir que minha visão estava intacta fosse disfarçar meu estado deplorável. estava sorrindo, o tipo de sorriso que não alcança os olhos e faz você se perguntar como a humanidade chegou até aqui. Ele segurava pelo braço. Ela gritava meu nome, desesperada, e lutava para se soltar. Depois de algumas tentativas frenéticas, conseguiu.
Ela correu até mim, abaixando-se e me forçando a olhá-la nos olhos.
— Ei, ei, olha pra mim. Você está bem? — ela me balançou, apesar de não ser o certo a se fazer, mas reconheci o seu desespero: ela também não queria que eu apagasse. — Por favor, aguenta firme. Diz alguma coisa. Qualquer coisa!
— , o que você pensa que tá fazendo? — ouvi a voz de . — Vem pra cá agora mesmo.
— Já chega! — gritou, virando-se para ele. A coragem na voz dela estava tingida de medo, trêmula, mas estava lá. — Para com essa loucura! Você tem noção de quem ele é? Se ele mostra a cara desse jeito no campus, pode rolar até uma investigação e então a casa vai cair pra vocês! Uma coisa vai ligar à outra, será que vocês não entendem isso? Ele é , caramba!
Sei que quis me dar uma mãozinha, mas aquele silêncio pesado e sufocante que tomou o ambiente depois da menção do meu nome não era exatamente uma ajuda. Muito pelo contrário. Revelar minha identidade não era me fazer um favor.
— Quê? — murmurou Ash. — O que um cara desse tá fazendo aqui? — então, o silêncio foi quebrado por sons bruscos: uma mochila sendo fechada, passos apressados.
— Você está saindo? — soou indignado.
— Claro que estou! Se seu pai descobrir essa merda, vai ser muita sorte se eu só perder a bolsa de estudos. — Ash disparou, já na saída.
— Meu pai é um idiota, vai encobrir tudo. Ninguém vai sair prejudicado.
— Só se for pra você, Park. Ele continua sendo o reitor, e não vai deixar barato pra nenhum de nós. Vamos nessa. — Ash lançou, antes de sumir, acompanhado pelos outros dois.
Apenas permaneceu, tremendo tanto que quase podia ouvir os dentes batendo. Uma luz forte me indicou que ela estava tentando discar algo no telefone, mas minhas costas contra o chão dificultavam o ângulo. Então, passos. Sombrios, ameaçadores. voltou.
— Vamos embora, . Agora. Larga esse idiota. — ele a puxou pelo braço novamente.
— Não. — ela sussurrou, a voz trêmula voltando a aparecer.
— Não vou repetir.
— Não! — se desvencilhou com força, surpreendendo-o. — Se eu o deixar aqui, só vão encontrá-lo amanhã. E você sabe disso. Ele precisa de um hospital urgente.
Por um instante, o quarto ficou em silêncio. se aproximou, colocou uma mão nas bochechas dela, forçando-a a olhá-lo. Sua voz saiu baixa, perigosa:
— Você vai se arrepender disso, .
Algo no tom dele me fez querer me mexer. Com dificuldade, muito mais raiva do que força, empurrei meu corpo para cima, tentando me colocar de pé. Mas ele já tinha saído, as palavras ainda pairando no ar como ameaça.
, ofegante, pegou o telefone de novo. Desta vez, juntei o que restava de energia para segurar sua mão antes que ela completasse a ligação.
— Nada... de hospital. — consegui balbuciar, cada palavra um esforço, muito mais dor do que eu pensava envolvida. Eu tinha 95% de certeza que meu nariz estava quebrado.
Ela piscou, atônita.
— Nada de hospital? Olha pra você! Você enlouqueceu? Você está sangrando e... Ei! Você não pode se levantar!
— Eu preciso ir. — fiz um esforço sobre-humano para conseguir segurar na mesma quina onde havia batido, que percebi agora que se tratava de uma pequena mesinha de cabeceira. A dor no abdômen foi tão aguda que me arrancou um gemido, me puxando de volta para o chão. Algo quente e metálico encheu minha boca antes que eu pudesse evitar; o sangue jorrou, confirmando o que eu já temia. Ótimo. Além dos socos, eles provavelmente me deram de presente uma contusão pulmonar de leve. Ou não tão leve assim.
— ! — gritou novamente, e pelo menos agora sua tremedeira era pelo medo de que eu morresse a qualquer momento e ela fosse a única testemunha. — Por favor, aguenta, não apaga! Que se dane o que você diz, você vai pra um hospital agora mesmo.
— Não... por favor. — minha mão encontrou os pulsos dela antes que ela alcançasse o celular. Não sei como consegui. — Você não entende... eu não posso.
Os olhos dela estavam brilhando, quase transbordando lágrimas. E, honestamente, eu a entendia. Estava sendo um completo idiota por fazer isso com ela, mas a última coisa que imaginei era estar numa situação dessas com , uma garota que não me conhecia e que não sabia o quanto hospitais eram o lugar errado para eu pisar agora. Pelo menos como paciente.
O problema é que ela tinha um ponto: eu sozinho não conseguiria nem chegar na porta. Mas envolver mais alguém não era uma opção.
— O que você quer dizer com "não pode"? Por que não pode? — a voz dela quebrou, e a garota sacudiu meus ombros com mais força do que eu achava possível para alguém tão pequena. — Ei, acorda! Você não pode dormir, entendeu? Onde tá aquele seu amigo? Como é o nome dele? Posso chamar ele… Fala comigo!
Mas a escuridão já tinha decidido que era minha hora. A cada segundo, o peso nos meus pulmões aumentava, como se alguém tivesse decidido estacionar um caminhão lá dentro. A dor irradiava por todo meu corpo, e o som da voz de parecia vir de muito, muito longe.
Nos meus últimos instantes de consciência, o mundo ficou enevoado, quente e vermelho. Só lembro de murmurar algo que soou como "Irving" antes de tudo desaparecer.
Erro. Grande erro.
A dor foi como uma onda de choque, me forçando a cair de volta. Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo, e percebi o ambiente ao meu redor. Escuro. Alguns feixes fracos de luz entrando pelas persianas. Frio, graças ao ar-condicionado (como se lá fora já não estivesse frio o suficiente). E eu, sem camisa, deitado em uma maca no canto da sala com uma faixa enrolada no abdômen. Legal. Minha noite claramente tinha dado uma guinada inesquecível.
Havia três outros leitos espalhados, atrás de cortinas azuis puxadas para o lado, e uma mesa de madeira com uma poltrona preta na frente perto de um deles. A memória da noite anterior voltou como um tapa: a confusão, o caos, me arrastando para longe daquela caverna de feiticeiro. Ela tinha mesmo me trazido para o centro médico de Irving, como eu e minha voz gorgolejada tinham dito.
Com um grunhido, me forcei a sentar novamente. A dor foi tão violenta que minha visão quase ficou preta. Mas não podia ficar ali para sempre — ainda mais que não fazia ideia de como tinha entrado. Depois de uma batalha épica contra o meu próprio corpo, consegui ficar de pé. Cada movimento parecia demorar 1 hora para ser feito, mas pelo menos consegui me autoavaliar: a respiração estava mais fácil, nenhuma costela quebrada. Provavelmente um monte de contusões. Mas definitivamente, nenhum plano de ir ver um médico tão cedo.
No canto da sala, avistei uma pia com um espelho. O que vi no reflexo me fez gemer. Meu rosto parecia… o irmão gêmeo do gigante Sloth. O nariz estava inchado como uma bola de tênis, a ponte levemente curvada para o lado. Sem dúvidas, quebrado. Um curativo torto na testa, hematomas vermelhos espalhados como se eu fosse um quadro abstrato. As marcas roxas abaixo dos olhos já estavam chegando com força total. Ótimo. Perfeito. Se não fosse por esse detalhe, talvez eu conseguisse disfarçar as demais fraturas. Infelizmente, aquilo teria de ser resolvido da única forma rápida e não recomendada que eu conhecia.
Respirei fundo. Hora do show.
Com um estalo assustador — e um grito que certamente acordaria qualquer um num raio de dois quilômetros — coloquei o osso de volta no lugar. Era tão horrível quanto parecia. Na verdade, era muito mais horrível do que isso.
— Meu Deus, o que tá fazendo de pé? — a voz de entrou na sala, e nunca fiquei tão feliz em ouvi-la.
Ela correu até mim e segurou meu braço, me guiando de volta para a maca. Não existia nenhuma possibilidade de eu resistir a isso — minhas pernas já estavam prestes a desistir de mim.
— Gelo. — murmurei, ainda pressionando o nariz recém-reconfigurado com as mãos.
Ela olhou para mim como se eu fosse o maior idiota do mundo, e provavelmente não estava errada. Mas não disse nada. Em vez disso, saiu da sala quase correndo e voltou poucos minutos depois com uma compressa improvisada feita de gaze.
Chiei um agradecimento enquanto pressionava aquela coisa no meu rosto. tirou o casaco que usava e se sentou ao lado das minhas pernas no leito.
Pela primeira vez, prestei atenção nela. Ela estava exausta, o vestido manchado de sangue — meu sangue, aliás. As sobrancelhas loiras estavam paradas em uma expressão contínua de irritação, e o cabelo tinha sido penteado com os dedos em algum dos banheiros desse prédio, com certeza.
Meu olhar seguiu para o casaco que ela tinha jogado no colchão. Meu casaco.
Ela percebeu.
— Ah… Foi mal, peguei emprestado pra ir à cafeteria. Espero que não se importe.
— Não me importo. Mas… você tá bem? — apontei para os braços dela, onde marcas vermelhas eram visíveis perto dos cotovelos.
Ela olhou e deu de ombros.
— Isso? Não é nada. Eu estou bem. Deveria se preocupar com você mesmo. Tem ideia do quanto me assustou?
— O que aconteceu? — tirei a compressa. — Como eu cheguei aqui?
— Você estava determinado a não ir pra um hospital e mencionou essa enfermaria antes de apagar. Tive que te arrastar até o carro. E quando eu digo arrastar, foi literalmente isso. Ainda bem que todo mundo estava bêbado demais pra reparar, porque foi vergonhoso.
— Você dirigiu?
— De jeito nenhum. Chamei um Uber. O motorista não era de fazer perguntas. Mas trouxe sua chave comigo. — ela apontou para a bolsa vermelha apoiada em uma cadeira.
Fiquei olhando para ela, confuso, e talvez, um pensamento nada urgente ou nada útil tenha se passado pela minha cabeça na hora: por que largou meu carro pra trás? Justo em um lugar cheio de pessoas com grande potencial ao vandalismo?
Meu Deus, eu ainda não estava recuperado.
— Eu já entendi esse seu olhar. — ela balançou a cabeça e soltou uma risadinha sem graça. — Antes que você pergunte, eu não dirijo.
— O quê? — não acreditei que ela tinha mesmo captado aquilo. — Mas… Naquela noite, com o boçal, você parecia bem confortável em dar uma de Ayrton Senna.
— Não disse que não sei dirigir. — ela deu de ombros, um pouco teatral demais. — Só não dirijo.
A explicação parecia absurda, mas, sinceramente, meu cérebro estava cansado demais para discutir a lógica falha.
— Pode relaxar, eu avisei uma amiga que estava na festa pra ficar de olho no seu carro algumas vezes. Claro, isso gerou algumas perguntas que eu não soube responder, mas, sinceramente, esse é o menor dos problemas.
— Você não precisava ter feito isso.
— Eu sei. Mas já que eu me propus a ajudar, não ia desistir por causa de... sei lá, falta de mobilidade.
— Não, eu quis dizer isso. — apontei para mim mesmo. — Você não precisava ter se envolvido nisso, entendeu? Essa era uma situação minha, algo que eu precisava resolver sozinho.
Ela inclinou a cabeça, avaliando minhas palavras.
— Hum. Entendi. — sua voz era séria agora, mas havia algo curioso no jeito que ela estreitou os olhos. — Bom, acho que é tarde demais pra isso, né? Na verdade, já era tarde demais a partir do momento em que eu te vi naquele quarto. Sabe, as pessoas que vão lá têm um certo objetivo, e eu não pensei que fosse desse grupo de pessoas.
Eu quase ri, mas o cansaço venceu.
— Tá falando do gabinete do traficante de dipirona? Relaxa, não é o que você tá pensando. Não tenho interesse em me envolver nisso.
— Difícil de acreditar. Quem marca um encontro com o Ash geralmente não tá só “olhando”.
— É, eu imaginei. — dei de ombros, encerrando a conversa ali. Ou pelo menos era o que eu esperava. — Mas isso é um problema meu, você não entenderia. Assim como nunca vou entender o que você fazia lá.
desviou os olhos, mas logo os voltou para mim de novo.
— Tá bom, não vou perguntar sobre isso. Mas... Eu ouvi umas coisas lá. Sobre a Sandy. Não sabia que você tinha um lance com ela, ela parecia bem apaixonada pelo Ash.
Eu pisquei, confuso.
— Um o quê? Não, pera... Não. Nada disso. Nunca tive nada com a Sandy. Na verdade, eu nem a conhe-
Droga.
Parei com a boca aberta. Idiota!
— Espera aí, o quê? Você ia dizer que nem a conhecia?
— Não é isso. — minha voz saiu defensiva, apressada. — Só não éramos tão próximos quanto seu namorado pensou.
Ela estreitou os olhos.
— Você sabia coisas demais pra quem não era tão próximo dela.
— Eu também sei coisas demais sobre saxofones, e não quer dizer que eu já tenha chegado perto de um.
— Ela encontrou com você naquela noite? Te contou sobre algum problema que estava passando? Vocês eram amigos de biblioteca ou coisa assim?
Um vinco se abriu na minha testa. Meu nariz doeu com isso.
— Você é da polícia? Tá querendo me interrogar, ? Amanhã eu vou acordar e descobrir que você vendeu essa história pro jornal?
— A gente só tá conversando, . Nem tudo precisa ser tão preto no branco. Você me deixou curiosa, só isso. — ela respondeu, mas engoliu em seco. De uma coisa eu podia estar certo: aquela garota não estava ali por ninguém além de si mesma. Provavelmente, devia ser uma dessas meninas metidas à Nancy Drew, sedentas por um mistério alheio, com um quarto separado em casa onde guardava mapas e equipamentos de observação montados em um tripé. Esse tipo de gente que eu não podia me envolver. — Eu tô acompanhando o caso da Sandy desde o início e até agora não surgiu nenhuma nova informação. E daí você aparece dizendo aquelas coisas…
Porque aparentemente, eu sou um imbecil.
— Pois é, mas eu não posso te ajudar com isso. — me levantei, ignorando a pontada de dor que subiu pela lateral do meu corpo, e comecei a procurar as minhas roupas.
— Você já vai? E os seus machucados? — soou exasperada, como se eu fosse um adolescente rebelde saindo pela janela no meio da noite. — Eu te trouxe aqui porque eu não ia discutir com um cara inconsciente, mas você precisa de um hospital urgente.
— Eu me viro. Obrigado. Agora, preciso chamar um Uber pra buscar meu carro. — comecei a procurar meu celular. Não estava achando a camiseta de jeito nenhum, nem os sapatos.
— Calma aí. — deu um passo à frente e colocou a mão no meu peito, me forçando a parar. — Olha, eu realmente não quero me meter nos seus problemas malucos mais do que já me meti porque já notei o quanto você é um Billy the Kid disfarçado, mas você não pode mesmo sair desse jeito.
— Você saiu desse jeito. — gesticula com o queixo para o vestido dela, ainda com manchas de sangue.
— É por isso que seu casaco ajudou. Mas a questão aqui é que já amanheceu, e se alguém nos ver e começar a tentar adivinhar o que aconteceu, a gente tá ferrado. Então, que tal você sentar por mais uns minutinhos nessa bendita cama e me esperar trazer umas roupas emprestadas clandestinamente do achados e perdidos? Aproveita e toma o seu café. Não andei até o Taszo’s e implorei por desconto de 1 dólar à toa.
Ela nem me deu tempo de protestar antes de desaparecer pela porta, deixando um rastro de perfume adocicado no ar. Por um lado, estava certa: ninguém poderia descobrir o que aconteceu ontem — e digo ninguém, mesmo. Por causa da briga e de tudo que resultou dela. impunha isso como ameaça velada só pelo olhar apreensivo e amedrontado: "Mantenha a boca fechada, ou o animal que chamo de namorado pode acabar com você — e talvez comigo também, caso eu esteja por perto e sinta pena da sua estupidez de novo."
Eu não tinha a menor intenção de abrir a boca. Meus problemas agora eram outros, muito maiores. Como resolver as novas complicações que surgiram da falha monumental em resolver as antigas. Uma grande merda que eu pensaria melhor depois de terminar aquele café.
Alguns minutos depois, estava de volta. Desta vez, trajava uma camisa listrada de meia manga e um macacão branco, como se estivesse pronta para ir tomar café num daqueles bistrôs parisienses dos filmes Before Sunrise. Sem cerimônia, jogou um jeans e uma camiseta limpa na minha direção, junto com um moletom.
— Toma. Veste isso. — ela não esperou uma resposta. Apenas começou a recolher as roupas manchadas do chão e enfiá-las em uma sacola de pano que dizia "Enfermaria da Irving" em letras desbotadas.
— Vou lá fora apagar mais alguns rastros da nossa presença aqui enquanto você se troca. — disse, agora recolhendo itens aleatórios de cima da mesinha ao lado da maca, que, só agora percebi, estava um caos.
— Você que fez o curativo? — perguntei, raspando uma mão no peito.
— Fiz. Nada ao nível Grey’s Anatomy, mas o Google era o único professor que eu tinha, então espero que não se importe. Pra ser honesta, achei que você fosse sangrar até morrer, então andei rápido. Não tava afim de carregar esse trauma.
— É, nem eu.
Assim que saiu, troquei de roupa. O jeans era simples, e a camiseta preta, boa e confortável o suficiente para não parecer que estava prestes a ir para o lixo. Coloquei as roupas sujas na sacola que ela havia separado, amassei o copo de papel da cafeteria e o joguei na pequena lixeira, e saí da sala. estava encostada na parede, com os olhos perdidos no teto, balançando a perna direita sem parar.
Assim que me viu, remexeu na bolsa e me entregou minha carteira, chaves e meu celular.
— Tive que desligar isso. Um tal de não parava de ligar. Acho melhor você acalmá-lo antes que ele tenha um ataque.
— Mais tarde eu ligo. Valeu.
— Beleza. Olha, só porque é domingo não significa que o campus está deserto. O movimento é baixo, mas existe. Então vamos sair separados e bem na surdina. Já foi complicado o suficiente arranjar um jeito de meter a gente aqui de madrugada. Não quero criar mais burocracia pra sair.
— Tudo bem.
Ela fez um gesto com a cabeça, pronta para ir embora. Mas eu a chamei antes.
— , espera.
Ela se virou com uma expressão que dizia “o que foi agora?”.
— Obrigado. Como eu disse, você não precisava ter feito tudo isso. E... espero que isso fique só entre nós.
Ela soltou uma risada curta, carregada de ironia.
— Pode ficar tranquilo. Ninguém vai saber que eu carreguei em um Uber até a enfermaria da Irving. Mas, convenhamos, daria uma ótima matéria pro CJ.
Meu olhar deve ter sido suficientemente assassino, porque ela levantou as mãos em rendição.
— Tô brincando! Acredite, eu não quero ser associada a isso em momento nenhum.
— Ótimo. Ficamos entendidos.
— Ficamos. — ela deu um passo para ir embora, mas parou de novo, girando nos calcanhares como se tivesse lembrado de algo. — Mas sabe, , você é mais estranho do que eu pensei. E tudo bem ser estranho, contanto que você não derrube todo mundo no caminho como sempre. Mas uma coisa que eu não consigo sossegar foi o jeito que você falou da Katherine, e acredite, eu não tô interessada em te chamar pra uma entrevista e nem nada disso. Mas eu sei que você sabe de alguma coisa. E essa matéria é muito importante pra mim, não que isso seja do seu interesse. Também sempre achei essa história muito suspeita e mal contada, e pra casos assim eles geralmente arquivam na pasta do suicídio, mas tem mais coisa nisso aí, eu sei que tem. E eu tô afim de descobrir. E você foi um dos responsáveis por me motivar a voltar a mexer nisso, então na verdade eu que tenho que te agradecer.
— Espera aí, eu não queria...
— Adeus, senhor . — ela acenou, dando um tchauzinho, e saiu apressada.
— Você não vai achar nada! — gritei.
Mas duvido que ela tenha escutado.
Estacionei o Jeep em frente ao prédio e soltei um suspiro pesado, o tipo que faz os ombros caírem de cansaço. Não encontrar plantado na porta da minha casa já foi um alívio imediato. Isso me dava um pouco mais de tempo — tempo para pensar em uma desculpa convincente sobre o meu estado. Na verdade, quanto mais tempo eu o evitasse, melhor.
Entrei direto no apartamento, correndo para um destino certo: o banheiro. Em questão de segundos, já estava enchendo a banheira com gelo. Esse era o meu protocolo de emergência: machucado? Gelo. Dúvidas existenciais? Gelo. Vida desmoronando? Gelo.
Quando finalmente me joguei na banheira, uma dor familiar me abraçou. Não que eu estivesse reclamando. Já tinha passado por isso tantas vezes que ela não me incomodava mais. Mas, dessa vez, algo parecia... diferente. Não nos machucados em si — aqueles caras podiam ter me transformado em carne moída, sim, mas os mortos teriam feito muito pior. Era outra coisa. Uma sensação estranha. Uma parte de mim sabia que devia prestar atenção, mas a outra estava ocupada congelando as ideias.
A dor do gelo ajudava a reorganizar os pensamentos, e eu precisava disso. estava martelando na minha cabeça de um jeito enjoado e repetitivo. Tinha certeza que ela acabaria deixando a história de Sandy para lá, mas ao mesmo tempo, ficava preocupado de tudo não ser apenas fogo de palha. Honestamente, esperava muito que fosse. Não porque me importava com vê-la dando com a cara na parede, mas porque, em algum momento, sua curiosidade viria para cima de mim, o que significava que chegaria perto de uma verdade assustadora para ela, e isso, é claro, seria um problemão.
Ainda assim, tinha algo que ela disse que eu não conseguia ignorar: a história estava mal contada.
Mal contada é um eufemismo, aliás. Sandy não se suicidou. Eu sabia disso porque ela mesma me contou, mas, caso eu fosse uma pessoa normal e ficasse sabendo por outro veículo, pensaria a mesma coisa. E , se tivesse coragem suficiente para seguir adiante naquilo, precisaria enfrentar perguntas que provavelmente nem queria as respostas. Os amigos do namorado, por exemplo. Ash, e o resto do grupo. A sujeira deles era visível até de longe. Mas , estando naquele quarto, ligada a Ash... a garota não estava tão por fora quanto gostava de fingir. Era o suficiente para eu concluir que ela tinha falado aquilo no calor do momento. Ou pelo menos era isso que eu precisava acreditar para conseguir dormir.
Saí da banheira quando comecei a sentir que os meus dedos estavam muito perto de cair. Refiz novos curativos — os de não estavam ruins, mas estavam longe de ser ideias. O gelo reduziu os inchaços, o que foi um ponto positivo. Meu nariz, porém, continuava uma obra-prima do Salvador Dalí, mas histórias para narizes quebrados existem aos montes. Os hematomas nas costelas também estavam seguros, longe dos olhos de por baixo do meu moletom. E com um bom estoque de analgésicos, eu talvez conseguisse fingir que estava em ótimas condições. Minha mentira ainda não estava completa e eu não tinha clareza sobre todos os acontecimentos porque, bem... Eu estava desmaiado na maior parte deles
Mesmo assim, algo me dizia que não estava tudo sob controle. E eu odiava essa sensação. Minha vida dependia de controle. Controle era como eu conseguia manter uma vida dupla funcionando sem explodir. Não podia me dar ao luxo de pontas soltas. Nem de pessoas curiosas (qualquer coisa que pudesse se tornar uma bola de neve e fazer homens de branco invadirem o meu apartamento).
Era simples: menos pessoas na minha vida significavam menos perguntas, menos mentiras e menos desculpas. Uma matemática que sempre funcionou.
Exceto com .
Ele era a exceção. E por mais que me incomodasse mentir para ele, a outra alternativa era pior. Não é que eu achasse que ele sairia gritando meu maior segredo aos quatro ventos. Era só que... bom, ele correria. De mim. E eu não queria que ele corresse.
Por isso, fiz o que sempre faço: afastei a sensação de descontrole, guardei as verdades num lugar bem fundo e fingi que estava tudo bem. Porque, na minha vida, é assim que as coisas funcionam. Sempre foi.
Com isso, dormir se tornou um conceito abstrato demais para a bagunça na minha cabeça. Então, fiz o que qualquer pessoa sensata faria: liguei o celular. provavelmente tentaria me ligar de novo, e dessa vez eu atenderia. Era o mínimo, certo? Mas meia hora passou, e nada. Nem uma chamada. Concluí que ele devia estar apagado — ou pior, vindo para cá. Suspirei, resignado. Já que o inevitável estava a caminho, decidi que esperaria com uma cerveja na mão. Péssima ideia, considerando os analgésicos que eu já tinha tomado, mas quem estava preocupado com coerência?
Levantei, fui até a cozinha e alcancei a garrafa. Antes que pudesse dar o primeiro gole, um grito ensurdecedor atravessou o ar como uma faca, fazendo com que eu largasse a cerveja. O som do vidro se estilhaçando no chão foi seguido pelo estrondo de copos explodindo na bancada.
Eu virei tão rápido que quase desloquei o pescoço.
— Sério, vó? Essa era minha última cerveja!
Ela estava lá, no meio da bagunça, me analisando de cima a baixo com o olhar de quem já sabia que ia sobrar para mim.
— Santo Deus, mas o que foi que aconteceu com você?! — gritou, indignada. — O que você aprontou dessa vez, moleque?
— Ah, é uma história longa. A senhora morreria de tédio.
— Muito engraçado. Fala logo, seu insolente. — ela me deu um tapa no braço, e eu, é claro, aproveitei para exagerar na reação.
— Ai, vó! — fiz uma careta digna de Oscar.
— Meu Deus, me desculpa, querido. — a preocupação genuína durou exatamente meio segundo antes de voltar ao modo interrogatório. — Mas quem fez isso com você? Me diz o nome dessa alma penada que eu mesma resolvo!
— Calma aí, Viúva Negra. — comecei a catar os cacos de vidro no chão. — Iso não foi trabalho de nenhum fantasma. Foi só uma briguinha normal, com gente de carne e osso.
— Briguinha?! — ela quase teve uma convulsão. — Desde quando você virou um delinquente? O que você estava fazendo, rolando no chão com brutamontes? Ah, se seu pai soubesse disso…
— Qual pai? — dei de ombros, jogando os cacos na lixeira. — Se for o Anakin, ele não vai saber de nada. Sou bom em apagar meus rastros, lembra? Agora, se a senhora tá falando do meu outro pai…
— Não tô falando de ninguém! — a voz dela tremeu, como sempre quando o assunto virava para isso. — Qual o motivo de tudo isso? Foi por causa de alguma garota? Não me diga que Gina te meteu em outra encrenca.
— Não tem nada a ver com garotas. Quer dizer... talvez um pouquinho.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Um pouquinho? O que isso significa?
Suspirei, cansado daquilo, mas contei tudo. Sandy, os capangas de Ash, a surra e, claro, a ajuda inesperada de . Minha avó ouviu cada detalhe com a paciência que só um fantasma centenário poderia ter. Quando terminei, ela balançou a cabeça, claramente desaprovando cada parte da história.
— Então você ajudou essa tal de Sandy?
— Acho que sim. Consegui o que ela queria, mas não sei se é o suficiente.
— Bom, você fez sua parte. Se ela continuar aqui, eu mesma mando ela pro outro lado. — nós dois rimos. — Mas essa ... Ela namora o ignorante que te bateu? E agora quer brincar de detetive? Você confia nela?
— Não confio em ninguém, vó. Já disse isso. é curiosa demais e tem um puta mau gosto pra relacionamentos. Mas vai cansar logo e desistir, tenho certeza.
Ela não pareceu tão convencida quanto eu esperava, mas deixou o assunto morrer. Por alguns minutos, pelo menos.
Então, claro, a campainha começou a tocar incessantemente. Suspirei, sabendo exatamente quem era.
— chegou. — murmurei.
Minha avó deu um último olhar de julgamento antes de desaparecer no ar, não sem antes resmungar algo sobre "moleque pervertido".
Abri a porta, e lá estava , entrando sem pedir licença, como sempre.
— Eu espero que você tenha uma boa explicação pra ter me deixado plantado no meio da festa e que ela diga como você sumiu deixando seu carro pr… — ele virou na minha direção, e o olhar dele congelou no meu rosto. — Mas que porra é essa, ?! Você não atende as ligações a noite toda e agora parece que se meteu em briga de gangue?
— Sabia que isso podia facilmente ser interpretado como briga de casal? — provoquei, tentando desviar o foco.
Ele olhou para os lados, como se alguém realmente pudesse nos ouvir dali.
— Cara, o que tá pegando? — ele disse, num tom entre irritado e preocupado. — Eu passei horas achando que você tava, sei lá, num necrotério ou coisa pior. Achei que ia ter que identificar seu corpo e explicar pra sua mãe como você foi parar lá.
— Um necrotério? Muito dramático, não? — dei uma risada curta, mas o olhar que ele me lançou era de quem não ia achar graça nem das próprias piadas. — Tá, ok. Tive uma noite complicada, só isso. Me perdi na festa, bebi um pouco demais, e talvez tenha rolado uma briga. Essas coisas normais de festa.
— “Talvez” uma briga? — ele arqueou as sobrancelhas, incrédulo. — Você tá com a porra de um curativo no nariz, . Não parece o cacete de um “talvez”.
— É, pois é. — tentei dar de ombros, mas o movimento fez meu nariz doer ainda mais. — Nada grave. Só um nariz fodido, mas em uma semana já vou estar novo em folha.
Eu tentei rir de novo, numa tentativa patética de minimizar a situação. Não funcionou. cruzou os braços, e seus olhos estavam tão arregalados que eu achei que ele ia explodir.
— O quê? — ele praticamente gritou. — Como pode tá rindo com isso? Você levou uma surra! E agora eu quero nomes. Anda, quem foram os idiotas que te bateram? Vou descobrir um monte de podre deles e jogar no Fórum. Vou hackear o Wi-Fi da casa deles e mudar a senha pra “eu sou um zé boceta”. Ninguém vai escapar, .
— Ei, calma aí, Mr. Robot. — coloquei as mãos na frente, como se isso fosse conter a avalanche que era irritado. — Tá tudo bem. Juro. Foi só uma briga de bêbado, nem lembro direito quem começou e porquê. Pode relaxar.
— Relaxar? — ele me olhou como se eu tivesse perdido completamente o juízo. — Ah, claro. Não lembrar de uma briga é sempre um sinal de que ela foi super tranquila. Se toca, olha pra você, cara. Como pode chamar isso de “uma briga de bêbado”? O que eles fizeram pra você? Você precisa me contar.
— , eu já contei. Ou, pelo menos, o que eu lembro. Foi rápido, bagunçado e, sinceramente, não importa mais. — suspirei, esfregando as mãos no rosto. — Eu só quero dormir um pouco antes de terminar os relatórios pra amanhã. Então, você veio pelo café ou...?
— Você tá maluco? — ele segurou meu ombro com força, me forçando a encará-lo. — Desde o ensino médio eu não te vejo com tantos curativos, e você era uma máquina de arrumar briga naquela época. Se tava com problemas, por que não me ligou? O que você arrumou dessa vez? Derrubou cerveja em alguém e chamou o cara de "irmão perdido do Nick Carter"?
— Eu podia ter feito isso. É o meu estilo. — sorri. Ele não se convenceu. — Qual é, cara. Não foi nada. Sei que eu sumi, foi vacilo. Mas não ia te meter numa confusão dessas. Não tinha nada de grave. Você tinha coisa melhor pra fazer, não tinha?
— Não tenta desviar o assunto. — ele me olhou sério, mas sua expressão suavizou um pouco. — Desde que viemos pra Nova York, você tava tão tranquilo, tão... de boa. E agora aparece assim? Já imaginou o que sua mãe faria se recebesse uma ligação da polícia?
— Iria surtar. — suspirei, derrotado. — Tá bom, vou tomar mais cuidado. Prometo.
Tentei sorrir, mais confiante do que antes. Ele pareceu engolir minha história, embora eu soubesse que não ia escapar de mais perguntas depois.
— Certo. Mas não teve mesmo nada a ver com zoar o Nick Carter ou o cabelo de alguém, né? Sabe que nem todo mundo entende suas piadas.
— ...
— E que horas foi isso? — ele continuou, ignorando minha tentativa de mudar de assunto. — Saí da festa às cinco da manhã e seu carro ainda tava lá.
Passei as mãos pelos cabelos, tentando pensar rápido. Eu sabia exatamente o que faria ele acreditar, mas isso só ia complicar ainda mais as coisas.
— Eu tava ocupado. Com... uma garota.
Seus olhos se iluminaram como os de uma criança que acabou de ganhar a nova pista lava-jato da Hot Wheels.
— Uma garota? Como assim uma garota? Você tava beijando alguém enquanto levava uma surra? Isso é multitarefa em outro nível.
Revirei os olhos.
— Eu não tava beijando ninguém enquanto levava uma surra. Foi antes. Ou depois. Nem sei mais.
— Não acredito! — ele praticamente saltou pra mais perto. — Tá, mas quem é ela? Qual o nome dela? Quero saber tudo.
— Não lembro. — minha voz saiu firme, mas ele não pareceu notar. — E nem vou lembrar agora porque tô exausto e cheio de OxyContin no sangue. Então, se puder me deixar descansar...
— Mentira! Foi tão bom assim? Cara, como você não me conta isso assim que cheguei? Eu perdoava a briga sem mim na mesma hora.
Foi muito difícil me livrar dele depois disso. Repeti várias vezes que não lembrava quem era a tal garota, nem o que tinha rolado, e acabou aceitando, mais porque adorava brincar com minha “frieza emocional” do que por acreditar em mim.
Depois que ele saiu, o efeito dos analgésicos começou a passar, e a dor voltou com força total. Antes de pensar demais, tomei mais dois comprimidos, apaguei na cama e caí no sono antes de chegar ao quinto carneirinho.
— A partir de hoje vou mudar esse toque. Isso é tortura. — resmunguei, assim que consegui arrastar o ícone verde para o lado. Ainda estava sentindo um estranho embrulho no estômago, as pontas dos dedos frias como gelo.
— De jeito nenhum! Esse toque é perfeito. — Adrian respondeu em sua voz normal, mas para os meus ouvidos recém acordados, soaram umas três oitavas a mais. — Como mais você vai saber que sou eu? Um clássico do Duke que ninguém com menos de 60 anos toleraria só pode ser a sua mãe.
— Já ouviu falar em identificador de chamadas, mãe? É uma invenção moderna. Revolucionária, até.
— E daí? Nosso toque é uma declaração. Vou saber se você se livrar dele e ficar muito triste. — sabia que ela estava fazendo um biquinho de desaprovação, mesmo sem ver. Ela sempre fazia isso quando eu tentava argumentar contra seus costumes bregas e ultrapassados.
Barulhos repetitivos em cima de uma superfície de madeira e, em seguida, o chiar de uma panela no fogo indicavam que Adrian estava na cozinha. Fui relaxando lentamente os músculos, sufocando um gemido de dor tardio por ter levantado rápido demais. A escuridão estava menos impenetrável no quarto, mas ainda era muita escuridão. Não fazia ideia de que horas eram.
— Eu te acordei? — ela continuou, e pude ouvir o tilintar de talheres e outras conversas baixas ao seu lado. — Por que está dormindo uma hora dessas?
De que horas estávamos falando?
— São as aulas — de qualquer jeito, a resposta estava sempre na ponta da língua. — Travis anda me mandando ler mais do que o normal. E ando virando umas noites no plantão do HICCC. Eles falsificam minha carteirinha.
— É o quê?
— Brincadeira — falei antes que ela ficasse nervosa. Ainda estava com muito sono pra irritar Adrian hoje. — Você imagina porque quero agarrar qualquer horinha livre pra dormir.
— Ah, querido, é claro! Como pude esquecer! Você foi o número 1 de novo, meus parabéns! Ingrid, foi o número um de novo! Estou criando um prodígio! — ela afastou o telefone para chamar nossa empregada. Pude ouvir as felicitações dela ao fundo. — Seu pai está em uma reunião importante com convidados de Londres na sala de estar, mas ele também ficou feliz! Com certeza vai te ligar amanhã — e com certeza ela estava com um sorriso de ponta a ponta por isso. — Já escolheu seus orientadores do internato? Eu e seu pai estávamos fazendo uma lista, e vimos que Ashley Gómez da pediatria do Hospital Memorial de Chicago está disponível e adoraria te conhecer! Tenho certeza que se eu conversasse com o diretor…
— Você não vai fazer isso — interrompi em um tom calmo, porém sério. Estava ali um dos maiores motivos que me deixavam nervoso em relação à Adrian nos últimos 5 anos. Estava sempre precisando pará-la antes que ela assumisse o banco do motorista da minha vida e me rebaixasse a um mero passageiro, ditando as direções e decisões por mim. — Ainda faltam uns 3 meses antes que eu comece o internato, e não sei se crianças choronas seriam minha primeira opção.
— Mas você é ótimo com crianças.
— Não sei de onde tirou isso.
— O sobrinho de Ingrid. Não se lembra? Você o ajudou com matemática.
— Ele não era uma criança — rebati, lembrando-me daquele carinha de 15 anos que estava quase passando do meu tamanho e que ainda estava na escola primária por ter repetido o ano umas zilhões de vezes, tendo uma dificuldade absurda em fazer contas de multiplicação com números quebrados. Adrian sabia que cálculos não eram muito a minha área — a não ser que envolvessem medidas, fórmulas prontas e um acervo gigante de regras de três — mas achou que eu poderia ajudá-lo — e eu realmente ajudei, pelo menos com os números. Com as drogas e as gangues, aí já não tinha muita coisa que eu pudesse fazer. Ocorreu-me que ele sempre agia de modo nervoso e inquieto toda vez que precisava pisar lá em casa, mas se roubou alguma coisa de valor, nunca fizeram o favor de me contar. — E de qualquer forma, vou precisar passar por elas até a formatura, não preciso me apressar pra conhecê-las agora. Prometo que vou decidir isso antes de fevereiro, tá bom? O que está cozinhando?
— Adivinhe só! Vieiras com parma! — ela riu e aceitou bem a mudança brusca de assunto, tagarelando um pouco sobre os temperos, tempo de cozimento e a importância do tipo de louça que precisava ser usada para servir uma porção de comida tão insignificante, mas que era um prato cheio para a etiqueta. Em 2 minutos, tinha esquecido o assunto do internato. — O doutor Bardini trouxe uma louça tailandesa de presente e seria falta de educação não usá-la no jantar, apesar de eu particularmente preferir aquela que compramos em Roma, você lembra? Mas seu pai insistiu que usássemos a dele — ela bufou e pude sentir seus olhos se revirando nas órbitas.
Ouvir minha mãe papeando sobre jantares executivos em casa enquanto picava os legumes, preparava o molho, conversava com Ingrid e ouvia jazz baixinho, me deixava nostálgico e com saudades de casa. Podia visualizá-la usando seu avental rosa com bolinhas brancas, um coque perfeitamente alinhado, preparando uma comida deliciosa usando salto e maquiagem. Parecia uma bolha de perfeição onde nada, nenhuma única coisinha ruim poderia acontecer.
— Não vejo a hora de ver você em casa, meu bem! Sua avó vem para o Natal e vamos preparar aquele clam chowder que você adora. E por falar nisso, como está o clima por aí? Aqui o inverno se aproxima, mas as pessoas continuam indo à praia, você bem sabe como. Um cliente do seu pai da Flórida nos convidou para passarmos o feriado de ação de graças na fazenda, e eu estaria melhor se você pudesse ir junto — ela suspirou tristemente, já imaginando minha resposta.
— Ação de graças em um lugar deserto cercado de cavalo, grama e cigarras? Vou precisar de um tratamento psiquiátrico depois — soltei uma risadinha, e ela resmungou algo como “idiota”. — Já conversamos sobre isso antes. As pesquisas no HICCC precisam muito de mim nesse semestre, e não vai fazer mal você e papai passarem o feriado com outras pessoas. A sua comida fará todos bem mais felizes, aposto que nunca provaram um molho de cranberry como o seu.
— Eles provavelmente devem contratar uma cozinheira — resmungou.
— Eles vão te provocar desse jeito? Que gente mais sem coração — joguei as pernas para fora da cama, esticando mais os ombros. Percebi que uma fresta particularmente grande da cortina estava aberta, jorrando uma luz forte e branca dos postes para dentro do quarto, o que causaria um grande déficit do meu sono dependente da escuridão total, e como não havia ninguém para fazer isso além de mim… — Dá essa chance pra esses manés executivos, vai. A esposa desse cara não é aquela que é professora de yoga?
— Na verdade, ela é especialista em Niyama e Pranayama.
— Nomes difíceis de coisas que doem o corpo, que seja. Vai pro meio do mato e mostra pra ela os seus 6 dias por semana de pilates. Vou ligar duas vezes para ter certeza que você está se comportando.
Ouvi uma risada e uma fungada ao mesmo tempo. Adrian estava finalmente começando a ficar emotiva.
— Vai ser a primeira e última vez — disse, com a voz embargada, mas que logo se recuperou. — Não gosto dessa ideia. Sinto sua falta. Eu e seu pai vamos te ver assim que ele conseguir fechar esse contrato hoje, fiquei sabendo que o reitor Park está organizando um recital de Natal. Aí podemos voltar para São Francisco todos juntos.
— Combinado.
Eu esperava ter resolvido todos os meus problemas antes do Natal.
Ouvi Ingrid falar algo sobre pôr a mesa e mais tilintar de talheres.
— Vou ter que desligar, querido. Parece que a reunião terminou.
— Tudo bem, mãe. Manda um abraço e boa sorte ao papai.
— Você está bem, não é? Estou tão atarefada que até me esqueci de perguntar… — sua voz agora estava estourada, provavelmente porque estava equilibrando o telefone no ombro com a cabeça tombada enquanto andava pela cozinha e organizava os petiscos. — Está precisando de alguma coisa? Você está se alimentando direito? Comidas de delivery e restaurantes de universidade não se enquadram como direito, caso você esteja pensando nessa resposta.
— Abriu uma barraquinha ótima de churrasco na Rua 88, você ia adorar, janto lá toda semana. Mas acho que os vizinhos começaram a reclamar que seus gatos estão desaparecendo…
— Não tem graça — ela cortou, e não pude aguentar uma risada que doeu cada milímetro de músculo do nariz. — Está correndo ainda? É importante se exercitar, mesmo que você não tenha muito tempo. E não quero te ver com um cigarro na boca de novo!
— Cheguei aos 70kg no supino, é um número importante aos 21 anos — não pretendia contar quando foi a última vez que eu tinha feito um supino.
— E o ? Está te fazendo companhia? Besteira, esse garoto não larga do seu pé — ela suspirou e ouvi os pratos sendo empilhados um a um. Ouvi mais uma vez a voz de Ingrid.
— Está tudo em ordem, mãe. Vai servir o jantar antes que papai comece a ter de contar as piadas de golfe para entreter os convidados, ninguém merece isso.
— Você tem razão! — ela riu. — Te amamos, querido. Estou com muitas saudades!
— Eu também, mãe.
O visor do celular marcava 8:00 da noite quando desliguei. Ainda não me sentia completamente descansado. Além das dores no corpo, tinha aquela confusão mental, o esforço que meu cérebro estava fazendo para tentar lembrar de alguma coisa. Uma sensação esquisita demais.
Andei até o banheiro, ligando a torneira e jogando um pouco de água no rosto. A palidez continuava ali, nada convidativa, dando um aspecto doente e mirrado. Os hematomas diminuíram de tamanho, mas permaneciam da mesma cor, o que significava que eu precisaria de outra banheira de gelo.
Voltei para a cama com o intuito de tentar dormir de novo. Senti que poderia dormir por pelo menos dois dias inteiros, procurando as melhores desculpas pra minha ausência nas aulas práticas, nas reuniões com Travis, nas pesquisas do HICCC e tantas outras coisas que enchiam minha agenda imaginária, mas de repente estava sendo alvo de pensamentos desenfreados. Os mesmos de antes, aqueles que começaram fracos porque minha mente estava fraca e cansada, mas que agora estavam mais nítidos, vivos e urgentes.
Saltei da cama, colocando jeans, tênis e um moletom preto estampado com o desenho do dedo do meio torto e ossudo do E.T. de 1982. Puxei a cortina para cobrir a luz e saí, não sabendo exatamente o que estava fazendo, mas já estava fazendo. Precisava falar com Sandy — afinal, era aquilo que eu fazia. E daria fim aquela história hoje mesmo. No fim das contas, ela só queria saber a resposta de Ash, não é mesmo? Uma resposta que ela mesma não poderia conseguir sozinha. Depois disso, não conseguia ver motivos para que ela estendesse o assunto.
Hoje, Sandy Silo iria finalmente partir em paz.
Eu nunca tinha pisado no campus fora do horário letivo desde que me mudei para Nova York, e agora estava aqui, quebrando regras pela segunda vez no mesmo dia. Sair não tinha sido difícil — os estudantes ainda circulavam aos finais de semana, já que a biblioteca, os laboratórios, restaurantes e as demais instalações com projetos ativos continuavam funcionando. A enfermaria de Irving não era uma delas, o que me fez questionar, mais uma vez, como diabos conseguiu nos colocar lá dentro da última vez.
Agora eu estava duplamente arrependido de não ter perguntado. Ela parecia saber todos os atalhos, todos os segredos, enquanto eu só sabia que estava prestes a me meter em mais problemas. deveria dar aulas sobre como burlar o sistema.
Estacionei o carro do outro lado da avenida, longe o suficiente das grades pretas do portão principal. Um único vigia noturno estava na guarita, mais concentrado no celular do que em qualquer outra coisa. Sorte minha, porque meu cérebro estava esgotado para inventar desculpas convincentes.
Desci do carro e contornei as grades, mantendo distância suficiente para ficar fora de vista. Com um olhar rápido, analisei o portão. Tinha uns cinco metros de altura, mas as barras horizontais formavam uma espécie de escada improvisada. Fácil.
Assim que meus pés tocaram o chão do outro lado, puxei o capuz sobre a cabeça e segui em frente, com passos rápidos e olhar fixo no chão. As luzes do campus brilhavam ao longe, refletindo no concreto, e meu coração disparou quando avistei dois vigias com lanternas. Respirei fundo e passei por eles, rezando para não ser notado.
Dois minutos depois, vi as luzes acesas dos dormitórios e soltei um suspiro de alívio. Talvez fosse um sinal de que eu não estava completamente fora de lugar. Algumas pessoas passavam por mim, provavelmente estudantes voltando de festas clandestinas. Não era o único a quebrar regras naquela noite.
Cheguei ao John Jay Hall sem ser notado, o que já parecia um milagre. O prédio era imenso, com seus 15 andares e fachada imponente. O tipo de lugar que parecia dizer “você não pertence aqui.” Mas eu precisava entrar. Tirei um grampo do bolso e comecei a trabalhar na fechadura da porta lateral, agradecendo silenciosamente por ela ainda não ser digital. Em menos de um minuto, estava lá dentro.
O interior era escuro, as luzes reduzidas ao mínimo. O silêncio era denso, perfurado por algumas mínimas vozes nos andares de cima. Subi pelas escadas de emergência, segurando a lanterna do celular. Cada degrau parecia gritar sob meus pés, mas não havia outra opção. O elevador estava fora de cogitação.
O restaurante estava vazio e silencioso. Olhando-o dessa forma, parecia muito maior do que era normalmente, com a aglomeração de pessoas impedindo uma visão panorâmica do local. As mesas de madeiras vazias, os pilares também de madeira, o pé direito alto com o teto em mármore branco, os lustres espalhados pelo lugar totalmente apagados. Foi aqui que eu encontrei Sandy pela primeira vez, naquela cena infame de queda. Hoje, se eu caísse, contava que pelo menos ninguém veria.
Não é que eu pudesse chamar os mortos a hora que eu quisesse. Mesmo se eu pudesse, isso seria algo que eu definitivamente nunca faria. E não era como se eles pudessem me encontrar onde quer que eu esteja. Se eu não soubesse que eles ficavam presos aos arredores de onde haviam morrido, ficaria preocupado de receber uma visita indesejada na minha casa, mas felizmente sabia que não era possível. Eles até poderiam, mas não sabiam como. Não tinham lembranças para isso.
Em situações como aquela, bastava que eu chamasse seu nome. Sempre eficaz, não demorou muito para que a garota se materializasse no escuro, pálida e com uma expressão confusa, como se ainda não entendesse muito bem como aquilo acontecia.
— , é você? — ela olhou para os lados. — Está sozinho?
— Como vai, Sandy?
— Estou bem. — ela abriu um sorriso, que logo desapareceu. — Quer dizer, na medida do possível. Eu queria olhar os jogos de sinuca do JJ’s, mas eles estão fechados hoje. Muitos colegas meus jogavam ali.
— Escuta, vou ser breve. — interrompi-a antes que começasse um monólogo. — Precisamos conversar sobre Ash.
— Você o encontrou?
— Encontrei. Ele foi bem gentil. — meu tom sarcástico fez com que ela inclinasse a cabeça curiosa. Em um piscar de olhos, ela estava próxima do meu rosto, quase encostando em meu nariz, e abaixou meu capuz.
— Meu Deus! — sua boca se abriu em choque enquanto ela dava um passo para trás. — O que aconteceu com seu rosto? Você brigou com Ash?
— É, mais ou menos. Pode-se dizer que ele tem muitos amigos.
Ela abriu ainda mais a boca.
— Não acredito que ele mandou Jorge e Rodney fazerem isso! Eu devia imaginar que ele teria esse tipo de atitude covarde. Nem sei o que dizer, … — ela respirou fundo, claramente indignada.
— Relaxa, não é a primeira briga que eu meto. Mesmo que essa tenha sido um trabalho em conjunto, eu já estou bem. O mais importante é que confrontei Ash, e ele negou a história toda.
— Negou?
— Ele disse que não te matou. E… — hesitei. Não acredito que eu ia falar isso. — Parecia estar dizendo a verdade.
Ela ficou em silêncio e andou um pouco em círculos. Pensei em mais alguma coisa para dizer, mas não havia nada. Ela deveria sumir agora, certo? Deveria sim.
— Então… Agora está tudo bem? — perguntei, após vários minutos de silêncio.
Ela parou de andar, mas ainda mantinha os olhos no chão.
— Isso não faz o menor sentido. — murmurou em voz baixa. Ela levantou a cabeça e havia algo novo e estranho nos seus olhos: uma raiva que não estava ali antes. — Tem que ter sido ele!
Engoli em seco. Aquilo não era um bom sinal.
— Sandy, olha… Ash te deu Lorazepam. É um remédio forte para ansiedade, mas com três comprimidos você no máximo perderia suas aulas do dia seguinte. Na sua idade, uma overdose estava fora de cogitação. O que não deixa de ser uma irresponsabilidade tomar, mas ele não te mataria.
— Ele pode ter alterado o medicamento. Sabia que Ash produz algumas de suas drogas? Deve ter feito essa especialmente pra mim. — sua boca se curvou em uma careta de choro, apesar de seu corpo tremer em raiva.
— Sendo racional, uma overdose só seria possível se você já estivesse sob efeito de outra droga antes de tomar o remédio. O seu corpo não aguentou.
Ela olhou para mim estupefata.
— O que você disse? — havia um vinco em sua testa. Pude ver que ela começou a dar passos em minha direção. — Está dizendo que eu usei drogas naquele dia? — abri a boca para responder, mas ela foi mais rápida. — Não que te interesse, mas eu nunca usei drogas. Aquela era a primeira vez que eu iria embarcar nessa. Se eu adivinhasse que nunca mais voltaria dessa maldita experiência, eu jamais teria aceitado, você me entendeu?!
Ela aumentou a voz na última frase, não que mais alguém pudesse ouvir. Sua raiva e frustração eram explícitas, ela não estava levando o assunto muito bem.
— Como você pode pensar isso de mim?! — continuou. — Janice me dizia que eu era sem graça por não ceder ao estilo de vida de Ash, mas eu não conseguia. Mesmo assim, eu sentia que nós… — ela respirou fundo, tentando não chorar. — Ele negou completamente sua participação nisso tudo? Eu devia saber que ele pularia fora de uma forma ou de outra!
O problema não eram os gritos e a expressão furiosa de Sandy. O problema é que quando um fantasma resolvia se revoltar, eles não tinham muita pena do lugar ao redor — e nem das pessoas. Então, quando algumas cadeiras voaram acima de mim e os vidros do salão começaram a balançar, eu notei que precisava tomar uma providência.
— Sandy, se acalma...
— Me acalmar?! Eu fui assassinada, ! Eu tinha planos, tinha um futuro brilhante pela frente! E tudo isso foi tirado de mim da noite pro dia! Para as pessoas ainda pensarem que eu fiz isso comigo mesma. — ela recomeçou a chorar, e isso fez com que os vidros tremessem com mais intensidade. — O que meus pais devem estar pensando, toda a minha família na Virginia, devem estar decepcionados comigo...
— Tenho certeza que sua família também sabe que você jamais faria isso.
— Mas eles não liberaram a autópsia, não é mesmo? Como era de se esperar! Minha mãe quer evitar a vergonha de ter uma filha que se drogou e não aguentou a pressão de uma universidade de prestígio, que não soube ir em frente!
— Agora não é hora de se preocupar com o que sua mãe pensa ou deixa de pensar! Se você me disser exatamente o que aconteceu naquele dia, talvez possamos chegar a uma conclusão…
— Não está claro?! Ash fez isso comigo! Ele fez isso comigo! — uma cadeira da lateral do salão voou acima do chão e se espatifou no teto, e aquilo com certeza foi ouvido por toda a área do corredor. — Ele vai me pagar, ele vai...
— Sandy, se acalma! — falei, entre dentes, olhando para trás em direção à porta de entrada. Alguém com certeza havia escutado. — Por que Ash te mataria? Você não me contou-
— Eu já te contei tudo, mas você não vai me ajudar! Ninguém vai me ajudar a fazer com que ele pague! Ele me avisou que seria assim, que você não estava do meu lado. — ela me encarou, o ódio escancarado em seu rosto. — Pois agora eu mesma vou resolver essa história! — ela deu as costas para sair, mas a peguei pelo braço antes que ela fizesse isso.
— Do que está falando? Quem é ele? — ela me ignorou e tentou se soltar. — Eu tô falando muito sério, Sandy. Ou você se acalma e acaba com esse show, ou-
Eu não era tão ingênuo a ponto de pensar que ela me escutaria. Mas também não esperava que ela fosse me dar um empurrão e eu seria literalmente jogado pelos ares até bater na parede ao lado da porta de entrada do restaurante. A dor foi tamanha que eu tenho certeza que apaguei por três ou quatro segundos, mas quando abri meus olhos, ela já tinha desaparecido. Uma explosão do lado de fora, quebrando o restante dos vidros e janelas de pé e em seguida um apagão mostravam a extensão das atitudes de Sandy: a energia já era.
As mesas antes perfeitamente enfileiradas agora estavam dispostas em uma confusão de balbúrdia. Uma das cadeiras foi parar janela afora, e outra estava pendurada no vidro da cozinha. Um dos lustres espatifou-se no chão. Agora literalmente o prédio inteiro estava um breu.
Xinguei-a mentalmente, e confesso que não esperava que as coisas fossem chegar àquele ponto. Essa era a bola de neve que eu tanto queria evitar. Sandy havia desaparecido e, do jeito que estava transtornada, eu tinha certeza que ela tinha saído do prédio — e isso era a coisa mais perigosa que poderia acontecer com ela naquele estado. Felizmente, ela não conseguiria chegar à casa de Ash naquele dia, já que suas memórias ainda deveriam estar turvas e ela precisaria de um tempo para se adequar lá fora. Infelizmente, agora Ash era um alvo e de fato estava em perigo.
Sandy havia deixado o salão em caos, e não demoraria muito para que alunos e seguranças chegassem ali, e isso significava que eu tinha que sair o mais rápido possível. Me levantei com dificuldade e tentei ligar minha lanterna novamente, mas a queda havia deixado meu celular em frangalhos, e não sabia se ele funcionaria novamente. Completamente no escuro, tateei as paredes até achar a porta por onde havia entrado e ao tocar na maçaneta, um choque na minha testa fez com que eu fosse jogado novamente ao chão e gemer de dor. Avistei um fio de luz chegando perto de mim, que vinha da boca de uma lanterna e um rosto conhecido se ajoelhando ao meu lado.
— Não acredito. — gemi, tentando me levantar.
— Era só o que me faltava. — bufou, sussurrando. — Mas o que raios você está fazendo aqui, garoto?
— Eu que pergunto, você acabou de literalmente bater com a porta na minha cara.
— A minha bola de cristal quebrou, então não deu pra adivinhar que você estivesse aqui. — ela revirou os olhos. — Posso saber por que você está nesse breu parecendo um marginal e fazendo... — ela parou de falar assim que iluminou o restante do salão. — Mas que merda aconteceu aqui?! Eu ouvi uns barulhos e vim...
— Não dá tempo de explicar, temos que sair daqui agora.
— Não é possível que você tenha feito tudo isso. Eu ouvi vozes antes de chegar, com quem você tava falando?
Antes de responder, ouvi passos correndo e mais feixes de luz porta afora.
— A gente precisa correr!
Antes que ela protestasse, peguei em sua mão e puxei-a porta afora, em direção contrária às escadas por onde eu havia subido — e por onde agora subia uma quantidade considerável de pessoas pela falta do elevador.
As escadas eram a única saída existente do prédio àquela altura. Se alguém nos visse naquela cena ao lado da destruição, não precisava pensar muito para saber quais conclusões tirariam. Os dormitórios ficavam muitos andares acima, o que me dava tempo de abrir a segunda saída de emergência, ouvindo os gritos estarrecidos dos alunos ao longe. Desci os dois lances o mais rápido que consegui, estabilizando as costas na porta vermelha e tentando pensar o mais rápido que podia. Eu não sabia exatamente o que teria no corredor à minha frente, mas os guardas não iriam descansar agora que já tinham visto nossas silhuetas (e depois de verem a bagunça que estava no restaurante). Maldita Sandy, lançou um convite a pessoas de fora com todo aquele circo.
Eu e não tínhamos muito para onde correr. Àquela altura, os guardas já deveriam ter acionado mais colegas de trabalho e até mesmo a polícia, não por conta de dois penetras mas sim pelo vandalismo no John Jay — fora todo o desespero dos alunos que com certeza teorizavam um ataque terrorista. Eu precisava urgentemente lidar com aquela reviravolta.
— , o que está acontecendo? — sussurrou e pude ver que ela estava com medo. — Foi você…
— Não, mas seria difícil explicar às pessoas caso elas nos pegassem.
O barulho de vozes na rádio patrulha ia ficando mais alto. Era questão de tempo até que eles chegassem àquela porta. Estávamos no térreo e mapeei a direção da entrada dos fundos por onde eu havia entrado. Não muito longe dela, existia uma sala estreita de almoxarifado com uma porta azul na frente. Poderia não ser uma ótima ideia, mas também não era ruim. Eu contava com a aglomeração de pessoas reunida principalmente à frente do restaurante, três andares acima. Meu peito arfava e cada respiração eram como lascas de pedra nas minhas costelas, mas eu não podia descansar. Encostei na parede antes de entrar no corredor, e pude ouvir os passos dos guardas a pouco mais de 50 metros.
— ... — respirava acelerado, ainda segurando minha mão. — O que você tem na cabeça? Ainda não estou entendendo.
— Precisamos nos esconder. Se formos pegos aqui hoje vai ser um desastre, e eu vou precisar da sua ajuda pra isso.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos antes de concordar. sabia perfeitamente que aquela era a verdade; e ela também estava envolvida.
— Vou colocar na sua conta. — ela se endireitou, encostando na parede ao meu lado. — O que você quer fazer?
— A gente precisa chegar ao almoxarifado.
— Sem chance, ele está trancado uma hora dessas.
— Isso não é problema.
Dessa vez eu não pude observar o olhar que ela me lançou — como se eu fosse louco — e rapidamente a puxei na primeira brecha que as vozes ficaram mais distantes. Andamos rápido, sem correr, rente à parede e um pouco abaixados para as luzes que vinham do pátio não correrem o risco de nos pegar e chegamos à pequena porta azul. De joelhos, puxei novamente o grampo do bolso e entreguei a lanterna à , que apontou para a fechadura enquanto eu fazia o trabalho de destrancá-la.
— Uau. — ela disse, assim que ouviu o clique. — O que mais você esconde embaixo desse capuz?
— Vá por ali. — uma voz não tão distante soou como se estivesse ao nosso lado, e de repente passos correndo pareciam vir em nossa direção.
Em um impulso, empurrei para dentro da sala e entrei logo em seguida, fechando a porta e apagando a lanterna mais rápido que consegui. Segundos depois, pelo menos quatro guardas passaram em frente à porta e começaram a vasculhar o corredor à nossa frente minuciosamente. Olhei para e imediatamente tapei sua boca com minha mão ao ouvir sua respiração tão acelerada e alta, a ponto de surtar.
Havia uma pequena fresta de vidro em forma de quadrado na porta azul, não grande o suficiente para ver algo no escuro, mas se eles ficassem curiosos o suficiente a ponto de abrir a porta, não teríamos saída. Um suor escorreu pelo meu rosto ao ver uma lanterna passeando perto do vidro, e senti as mãos de agarrarem com força em meu casaco. Ela estava com medo. Olhei em seus olhos, que estavam arregalados e visíveis mesmo no breu, e lhe lancei um olhar firme, tentando acalmá-la de alguma forma.
O feixe de luz parou por alguns segundos ao lado do vidro e se afastou depressa, junto com as vozes. Suspirei aliviado e soltei meus ombros, como se um caminhão tivesse saído das minhas costas. Tirei a mão da boca de e pela primeira vez reparei como estávamos grudados. Não que a sala desse vazão para que ficássemos muito mais longe do que aquilo — era um cubículo que já estava um pouco abarrotado pelas vassouras e produtos de limpeza. Mas ao ver que, sem o obstáculo da minha mão, nossos narizes estavam quase se encostando, dei um passo pra trás, de repente constrangido pelo momento.
— Foi mal. — sussurrei, passando as mãos pelo cabelo.
— Isso foi uma loucura. — ela balançou a cabeça, atônita com a situação. — Quando vamos sair daqui?
— Quando eles derem uma brecha pra gente chegar até os fundos.
— Ah sim, Kim Possible. E quando seria isso? Você viu o estado do John Jay, daqui a pouco vamos ter que nos esconder da polícia, e não apenas dos vigias noturnos.
— Pois é, e se você resolver ajudar podemos fugir dos dois. — disse, enquanto me abaixava para revirar umas caixas de papelão.
— O que você tá fazendo agora? Tem certeza que tá em condições de se mexer desse jeito?
— Esse é o menor dos meus problemas agora. — levantei e peguei um dos esfregões, quebrando a ponta pelo joelho e amarrando um pano branco em uma de suas extremidades.
— Tá legal, é sério, o que é isso? Não... Você poderia me dizer o que raios está fazendo aqui pra começo de conversa?
— E você? O que tá fazendo aqui? — me virei para ela.
— Vim ver uma amiga. — ela deu de ombros.
— Os dormitórios estão no sétimo piso, você deveria estar presa no elevador a essa hora.
— Não ando de elevadores. Pelo visto foi a coisa certa a se fazer.
— Não precisa inventar desculpas pra mim. O que tá investigando aqui uma hora dessas?
Ela levantou as sobrancelhas surpresa, e uma vermelhidão aparente até no escuro mostrou que ela estava constrangida.
— Bem... De qualquer forma é um assunto confidencial, pra minha matéria. Não preciso te responder sobre isso, pelo menos a minha vinda aqui não causou um crime ao patrimônio.
Revirei os olhos e voltei ao que estava fazendo. Achei um vidro de álcool na primeira prateleira, já que era algo que era bastante usado e estava sempre à vista, e despejei sobre o pano.
— Tá legal, o plano é o seguinte: um de nós vai jogar esse pedaço de madeira bem perto da porta de entrada e isso vai chamar a atenção dos guardas por perto. Enquanto eles se concentram nisso, nós corremos até o portão dos fundos e os guardas que estão lá já vão ter sido acionados pelos guardas daqui da frente, então vamos ter exatamente pouquíssimos segundos de brecha pra ir embora. Você me entendeu?
Ela me olhou chocada por alguns segundos, mas assentiu. Procurei um isqueiro nos meus bolsos e bufei ao perceber que eu estava realmente levando a sério o plano de parar de fumar. pareceu perceber o que eu procurava e sacou um isqueiro da bolsa, entregando-o pra mim. Automaticamente, olhei em dúvida pra ela.
— O quê? Eu sou precavida.
Assenti e me preparei pra ligar o fogo no pano, quando ela segurou minha mão.
— Deixa que eu faço.
— Não precisa, é melhor eu fazer.
— Quer parar de ser teimoso? Olha seu estado, você vai nos atrasar até chegarmos aos fundos. Pode me dar isso.
Ela agarrou o bastão de mim e abriu a porta devagar, me lançando um último olhar antes de correr para a direita. Sem perder tempo, corri para o lado contrário em direção aos fundos.
Ouvi algumas vozes dos guardas do lado de fora gritando para prestarem atenção ao fogo, e visualizei a porta dos fundos por onde eu tinha chegado. De repente eu parei, tomado por uma preocupação com , a garota enxerida que deixei para trás. Olhei para fora, onde já conseguia ver a silhueta das grades, e depois para trás, onde não tinha nem sinal de . A sirene da polícia já estava estourando ao longe. Em um dilema como esse, eu precisava escolher o meu lado sem dúvidas. Se eu fosse pego no meio daquela confusão, as consequências seriam tão fodidas que mal podia descrever. Eu mal poderia adivinhar a reação dos meus pais. O reitor me daria tantos pontos de demérito fossem necessários, isso se eu não fosse detido na delegacia mais próxima e tivesse que pagar uma fortuna de fiança, ou talvez fazer trabalhos voluntários durante toda a minha vida, quem sabe. E não sei porque, depois de citar exatamente todas as possibilidades de merdas que poderiam acontecer daquela situação, eu decidi voltar atrás pra buscar .
A minha perna já não estava funcionando muito bem, e a dor que eu sentia não me deixava pensar direito. Para minha sorte, andei só alguns passos e avistei correndo com os olhos arregalados em minha direção. Sem dizer nada, ela agarrou meu braço e me puxou direto para a porta de saída, onde saímos pelo pátio extenso, nos embrenhando no escuro até o portão.
Tenho certeza que alguém nos viu. Jurei escutar um “Eles foram por ali” e uma lanterna pegar a ponta do meu capuz, o que me fez correr a plenos pulmões. Segui em direção à Riverside Dr, saindo de Morningside Heights, entrando em Washington Heights, próximo ao centro médico. Cheguei às grades mais afastadas do hospital, onde com certeza seríamos vistos. Meu carro estava há pouquíssimos metros de distância dali.
— Droga. — murmurou ao ver o muro, e jurei que ela estava tremendo um pouco.
— Está tudo bem? — perguntei, já posicionando meu pé nas linhas horizontais.
— Ah... Sim.
— Ei, olha pra mim. — fiquei de frente pra ela, falando baixo. — Eu vou primeiro e você vai atrás de mim, do outro lado eu te seguro. Ok?
Ela acenou, mas parecia nem estar respirando.
— Promete? — sua voz falhou e eu mal a escutei, mas assenti do mesmo jeito. — Anda, eles estão chegando.
Consegui escalar o muro de 5 metros facilmente assim como na chegada, só que dessa vez tive que morder os lábios pra não gemer de dor. Ao chegar do outro lado, a bolsa de voou em minha direção e por pouco não a deixo cair; isso sinalizava que ela estava pronta para subir.
— Toma cuidado. — tentei falar o mais alto que a situação me permitia. Ela não respondeu e, depois de alguns segundos, escutei um grito agudo vindo do outro lado das grades e um estrondo no chão. — ! , tá tudo bem? — ok, dessa vez eu gritei.
— Cala a boca! — ela reclamou entredentes. — Eu estou bem! Foi só um mau jeito.
Depois de quase 2 minutos, a cabeça de apareceu no topo do muro onde ela de apoiava com o braço esquerdo, que estava sangrando na área do cotovelo. Como ela havia se machucado daquele jeito de uma distância tão pequena?
Estendi os braços, pronto para pegá-la, esperando que ela fosse cair objetivamente, mas ela simplesmente se desequilibrou ao tentar se sentar e caiu de qualquer jeito em cima de mim, que já não estava na máxima capacidade por causa dos filhos da puta da Dungeons. Quando me dei conta, ela já estava em cima de mim, e nós dois no chão.
— É sério... Você precisa parar de fazer isso. — resmunguei, e fiquei extremamente nervoso ao perceber sua respiração pesada em minha boca. Por que ela sempre tinha que ficar tão perto de mim?
— Merda, foi mal. — ela rapidamente saiu de cima de mim, estendendo a mão para me ajudar a levantar. Reparei que um dos seus joelhos também estava sangrando.
— Você tá legal? — apontei para seus machucados.
— É, parece que sim. Só está um pouco dolorido, mas nada que um curativo não resolva.
As sirenes começaram ao longe com mais força e voltamos à realidade.
— O que a gente faz agora?
— Entra no carro! — falei e não dei tempo de ela protestar. Corremos um pouco até achar o Jeep no mesmo lugar. Ela rapidamente abriu a porta do carona e dei a partida para finalmente sair dali.
Gostaria de dizer que tinha um destino em mente, mas quando se dá a partida e chuta a embreagem com tanta força a ponto de cantar os pneus pelo asfalto, a gente só torce para não encontrar nenhuma velhinha de andador querendo atravessar a faixa de pedestres. Quando me dei conta, já estava atravessando a ponte Robert Kennedy pelo Rio Harlem e seguindo pela rodovia eterna através de pontos que não me eram exatamente estranhos, mas eu estaria mentindo se dissesse para onde levariam.
permaneceu calada durante todo o percurso, mesmo quando me viu acelerar com mais vontade nas imediações da Ilha de Randall, onde os assaltantes não hesitavam em roubar nem padres e noivos de casamento. Nas poucas vezes que observei a garota, ela estava pálida como se fosse vomitar e segurava o cinto de segurança com as duas mãos. Na falta de ter algo mais inteligente para dizer, apenas continuei dirigindo pela Grand Central, torcendo para que nenhum policial de uniforme preto estivesse esperando na primeira rodovia.
Era por volta de meia-noite quando finalmente estacionei na rua semi vazia debaixo da placa que indicava Avenida Rockaway, nº 133, bem na frente de um restaurante genérico com letreiro branco em um toldo verde empoeirado e portas de correr de vidro fosco engordurado chamado Simmer Down, dividindo a calçada com paredes velhas e completamente pichadas. Dava para ouvir o barulho da linha do metrô a menos de 10 metros à frente, e alguns gritos misturados com música vindo do prédio residencial logo acima, de tijolos raspados encardidos e milhares de escadas de emergência entre uma janela e outra, assim como eram todos os outros prédios de tijolos ao redor.
Brooklyn. Quem diria.
Mais especificamente, em Ocean Hill. E pela minha pouca e até um pouco superficial experiência de Nova York, sabia que Ocean Hill nunca estava em nenhum catálogo de turismo.
Voltei a olhar para . Ela ainda não tinha se mexido um centímetro sequer, mesmo que agora eu percebesse que o aperto no couro do cinto tinha diminuído bastante desde que passamos pela Ilha de Randall. A luz amarelada que conseguia escapar para fora da janela do estabelecimento conseguia ser mais forte do que os postes da avenida, fazendo sombras e reflexos um tanto endurecidos nas poças da chuva recente no meio-fio. Novamente, a imagem daquelas ruas lotadas de neve me veio à cabeça, e senti um frio súbito antes de suspirar e dizer:
— Você tá legal? — perguntei, quebrando o silêncio quase esférico que tinha englobado aquele carro. Só depois que abri a boca e ouvi minha voz, percebi o que tinha feito, o que tinha acontecido e onde eu estava agora, com quem estava. Quase tive a certeza de que quem estava tremendo agora era eu.
Não recebi uma resposta dela por um tempo.
— Acho que estamos em Brownsville. — comentei, como se para organizar os fatos na minha própria cabeça. — Ou num lugar muito parecido com ele. Tenho certeza que passamos por uma filial da Dollar Tree logo ali atrás, e eu não saberia disso caso eles não vendessem cartões de saldo do Xbox Pass. Meu Deus, não acredito que dirigi 30km em 25 minutos, ficaria orgulhoso. — e Anakin também, mesmo que descobrisse sobre a multa de trânsito que eu com certeza receberia por causa disso. Acabei ficando em silêncio de novo, sentindo vontade de morder a língua por tagarelar qualquer coisa inútil quando o que eu mais precisava perguntar era: — Você está bem?
— Você só sabe perguntar isso? — finalmente respondeu, a rispidez na voz quase me cortando como faca. Na mesma hora, ela soltou os dedos do cinto e suspirou forte, balançando a cabeça lentamente enquanto virava o rosto para mim. — Foi mal, eu… é, estou bem. Acho que sim. Você sempre dirige como um maluco? E que ideia é essa de vir parar no Brooklyn? O Astoria Park estava bem ali do lado, podíamos só esperar.
— Astoria Park? O lugar cheio de seguranças e que é tão minúsculo que não esconde nem um carrinho de Hot Wheels? Quanto mais o meu carro.
— Tinha o Central Park…
— Ah, claro, eu também prefiro ser esfaqueado a responder umas perguntas da polícia. Boa escolha.
inflou as narinas sob a semi escuridão, mas conseguia ver as bochechas dela corando de nervoso. Eu não tinha culpa se a garota parecia ser completamente alheia à criminalidade dessa cidade. Ela não saía de casa?
— Mas concordo com a velocidade. Talvez eu tenha exagerado. — completei, dando de ombros. Realmente me sentia no dever de reconhecer aquilo e pedir desculpas, porque a garota parecia que ia mesmo vomitar.
Em vez disso, baixou os ombros e revirou os olhos.
— Exagero é uma forma muito gentil de chamar. Eu assisto ao jornal, . Como Ocean Hill pode ser uma ideia melhor do que o Harlem? — olhou em volta rapidamente, baixando um pouco a voz, mesmo que não tivesse mais do que três cabeças passeando pela calçada, ensacadas com sobretudos e botas pesadas, correndo para entrar no primeiro lugar que parecesse quente o bastante, como a estação do metrô e outros estabelecimentos espalhados com luzes ainda acesas e que exalavam um cheiro quente e confortável.
O que me deu uma ótima resposta.
— Porque aqui pelo menos tem café.
franziu o cenho, sem entender minha colocação. Talvez nem eu estava entendendo direito, só quis perguntar:
— Você está com fome? — pareceu ainda mais confusa, de um jeito até mais profundo. Como se fosse uma insanidade completa pensar em comer uma hora daquelas, depois de tudo. — Provavelmente vão passar algum tempo tentando vasculhar Morningside Heights até se tocarem que restabelecer a energia é uma prioridade principal. E sem energia, não tem câmeras. Acho que a gente tem um tempinho.
— Ah. É. Faz sentido. — sua postura fraquejou. Ela me encarou, não mais achando a ideia do café maluca, mas sim a ideia de confiar em mim uma completa insanidade. Engoliu em seco, olhando a rua relativamente deserta e aceitando nosso destino. — Acho que posso aceitar um café.
Soltei o cinto de segurança e desliguei o aquecedor, sentindo pela primeira vez a intensidade do frio lá fora. Um puta frio. Nem tinha aberto nenhuma janela e já conseguia sentir a temperatura escrota de novembro entrando por cada porozinho do Jeep. voltou a tremer, e duvidava muito que aquele suéter cardigan cheio de furinhos que ela usava resolveria alguma coisa sobre isso. Lembrando-me na hora certa do casaco que eu sempre guardava no banco de trás, curvei o corpo para pegá-lo e coloquei-o no colo dela no momento em que ela desatava o cinto.
— Veste. — e sem esperar resposta, abri a porta e saí.
A sub inscrição no letreiro do Simmer Down dizia que funcionava como “restaurante e padaria”, mas pelo lado de dentro a realidade parecia muito mais ampla do que isso. O aroma de massa fresca, café, cigarro e uma boa dose de álcool sem passar despercebido enchia qualquer metro quadrado de chão e parede até que você não soubesse mais qual era a verdadeira denominação do lugar. Uma frase grafitada logo abaixo do desenho de uma xícara de chá em uma das paredes com tijolos de tinta lascada na esquerda dizia, em letras um pouco menores: Aberto para qualquer ocasião. Isso finalmente explicou tudo.
Tinha mais gente do que eu esperava para um dia qualquer perto do final de semana. Uma enorme quantidade de fumaça vagava em um canto específico perto da janela, dentro de um grupo de caras grandalhões que conversavam baixo, uma mistura de cigarro normal com cigarro de palha, com charuto barato e até aroma doce de cigarro eletrônico, mesmo que isso não combinasse em nada com a estética street daquelas luzes que sofriam uma metamorfose conforme você ia avançando para dentro: começavam amarelas lá fora e iam pouco a pouco se transformando em vermelhas até o interior do balcão na outra extremidade, tornando ele um pouco mais legal à primeira vista, mesmo que passasse bem longe de ser um lugar limpo. Flores azuis e mosqueadas artificiais pendiam de cactos nos beirais das janelas; três homens jogavam cartas em uma mesa nos fundos e um casal entrelaçava as pernas um no outro por baixo da mesa a alguns lugares de onde eu e nos sentamos, no meridiano de toda aquela diversidade. Se eu fosse chutar, diria que ele pegou aquela garota na Avenida Alabama ou na Wortman, e com aquele mega hair ela não podia cobrar menos de 100 dólares a hora.
se ajustou no banco acolchoado verde oliva na minha frente e, graças ao tom laranja da luz — que já seria vermelha se nos sentássemos a duas cadeiras depois —, consegui ver melhor o seu rosto.
A palidez estava melhorando, e meu casaco — grande demais para sua estatura, mas honestamente, tudo parecia grande para — tinha conseguido fazê-la parar de tremer, mas ela ainda parecia incomodada, fechando o maxilar como que para segurar a própria língua. Surpreendentemente — muito surpreendentemente —, o incômodo não parecia ser por causa do nosso cenário underground que estava mais para uma casa de cassino que tocaria uma marchinha de hip-hop a qualquer momento, ou pelo cheiro de uma miríade de coisas que ela e sua meia dúzia de brincos de ouro nas orelhas não deveriam passar perto. Não. Ela estava incomodada enquanto olhava para mim.
Antes que eu dissesse alguma coisa, uma garota alta e de cabelo azul se aproximou de nós dois com um bloquinho de papel.
— Boa noite, pombinhos. O que vão querer? — ela abriu um largo sorriso no rosto enquanto se inclinava um pouco sobre a mesa, deixando o decote extremamente à vista até para quem tinha o maior grau de astigmatismo do mundo. A garota tinha costurado alguns metros de renda preta barata sobre uma camiseta verde do mesmo tom oliva dos assentos, e juntado tudo em um vestido que mais mostrava do que escondia coisas. Não que eu estivesse olhando.
— Pode me trazer um hambúrguer e um café, por favor. — respondi e a garçonete girou ainda mais o corpo em minha direção para anotar o pedido, me concedendo um sorriso ainda maior do que o anterior.
— Só um café pra mim, por favor. — sibilou de seu lugar. A garçonete de cabelo azul, que agora percebi que brilhava como fogo contra a luz, apenas rabiscou apressada no bloco de notas amassado, disse "Já volto" e seguiu para além do balcão, parecendo ajeitar o cabelo e caminhar de forma não natural.
soltou uma risada brusca pelo nariz.
— Uau. Até com a cara arrebentada você consegue seduzir as garotas.
— É o preço de ser naturalmente atraente. — abri um sorriso sarcástico. Ela apenas revirou os olhos. — Tem certeza que não quer comer nada?
— Eles não devem ter nada sem carne por aqui. E eu acho que não vou conseguir engolir alguma coisa até amanhã, então... — ela deu de ombros e abaixou os olhos, brincando com os guardanapos.
— Você realmente parece que vai vomitar.
— É a minha primeira vez fugindo da polícia, o que você queria? — ela parou com guardanapos e me olhou.
— Não fugimos exatamente da polícia.
— Você entendeu. — ela rangeu os dentes, irritada. Parecia estar doida para soltar um grito. — É inacreditável as situações que eu tenho passado toda vez que você aparece na minha frente. Como eu ia adivinhar que eu acabaria essa noite em um bar estranho tão longe da minha casa?
— Como assim? Achei que fosse seu maior sonho. — cerrei os olhos. me encarou com tanta raiva que aquele grito ficou muito, muito próximo de acontecer, se a garçonete não tivesse aparecido antes.
Ela colocou os pedidos à nossa frente e pegou o bloquinho mais uma vez, virando-se inteiramente para mim.
— Desejam mais alguma coisa? — perguntou, sorridente.
— Por enquanto é só isso, obrigado. — assenti com a cabeça e ela se retirou, ainda com seu caminhar peculiar. não parecia disposta a tirar sarro dessa vez.
— Tá legal, Ethan Hunt, precisamos conversar. Posso guardar todos os segredos possíveis sobre você que, acredite, são mais dos que os que eu tenho com minha melhor amiga, mas nada é de graça. Eu preciso que você me conte sobre o que estava fazendo lá.
— Vai voltar a me interrogar como se eu fosse um criminoso?
— Isso é sério, ! Amy já deve ter enchido minha caixa postal, todos do jornal já estão sabendo da baderna que aconteceu no John Jay, e eu vou participar da execução dessa matéria, e por mais que você duvide disso, eu minto muito mal. Então, pra eu não me sentir tão culpada por ter estado na cena do crime e mais, por ter encontrado você lá, eu preciso não ficar no escuro nessa situação.
— Eu já disse que eu não fiz aquilo. — dei de ombros enquanto dava uma mordida no hambúrguer. Eu sabia que as perguntas dela viriam mais cedo ou mais tarde.
— Mas você estava lá antes que eu chegasse, e tenho certeza de ter te ouvido falando com alguém. Você está acobertando outra pessoa, não é?
Suspirei, tentando pensar em alguma coisa.
— Não tinha mais ninguém lá. Você deve ter me ouvido falar sozinho, já ouviu falar nisso? Cheguei em um lugar que parecia ter sofrido um ataque terrorista, acho que tive todo o direito do mundo de murmurar.
Arqueei uma sobrancelha, como se o que eu disse estivesse fazendo total sentido — quando é claro que não estava.
— Isso ainda não explica-
— Olha, eu fui ao laboratório pra ver um experimento pro meu relatório. Células cancro, metástase, mitose desgovernada, caso queira mais detalhes. Era em Irving, e lá não é tão longe assim do John Jay, um amigo vive lá. Queria pegar um livro de volta, então passei pelo restaurante. Não é nada tão alarmante, fora o horário que eu resolvi fazer isso. — levantei as sobrancelhas. — Satisfeita?
Ela inflou as narinas um pouco, ainda desconfiada, mas sem mais a pose de quem iria me alvejar de acusações.
E aí, senti que era a minha vez.
— E será que eu posso devolver a pergunta? O que você estava fazendo lá?
— Você já não sacou lá naquela salinha? — ela puxou a caneca de café, bebendo um gole devagar.
— Ainda o caso da Sandy?
— É claro que sim. Não achou que eu desistiria, achou? — achei! Achei que uma boa noite de sono daria conta do recado, espantaria essa ideia de merda da sua cabeça! — Eu estava relendo os depoimentos e não achei nada de… anormal. Não sei qual palavra usar. Nada que mostrasse que Sandy teria qualquer motivo pra fazer o que fez. Aliás, o que não fez. Então, vim olhar uns arquivos dela no Citizen, e queria ver se no JJ’s-
ficou em silêncio e ergueu o queixo rápido, arregalando os olhos para mim, percebendo o que fez.
— N-não, eu não quis dizer-
— Você foi olhar os arquivos da Sandy. No meio da noite. Escondida. — fiz uma cara de espantado, cruzando os braços. — , quem diria. Que menina má.
— , em hipótese alguma isso pode sair daqui! É sério, isso é caso de expulsão!
Dei uma risada mais alta, apoiando os cotovelos na mesa.
— Fica tranquila, justiceira. Você abriu arquivos sigilosos de outro aluno e eu fui visitar um traficante. Nós dois fugimos de uma cena de crime e estamos no Brooklyn à meia-noite, já temos o bastante pra guardar um do outro.
— Também acho que não precisamos de mais. — vi ela corar um pouco e abaixar a cabeça. — E seus machucados? Estão melhorando? Porque sua cara eu te garanto que não está.
— Valeu pelo feedback. — dei uma risada seca. — E considerando que ganhei eles há tipo 24 horas atrás, a resposta é não. Eles não estão melhorando, mas qualquer coisa, eu sei usar uma base.
— Você foi ao hospital?
— Fui. — menti, tomando um gole do café. — Bandagens e analgésicos no esquema.
Foi claramente uma piada, mas de repente, os olhos de não saíram de cima dos meus por um minuto longo demais até ela desviá-los para as próprias unhas e engolir em seco.
— Aquele dia foi uma droga. Nunca imaginei que Ash ou fariam… isso. — ela espiou meu rosto de novo, especificamente no nariz dessa vez. — Machucar alguém assim, do jeito que fizeram, foi injusto. Seria injusto com qualquer um. Queria que soubesse disso.
Pisquei, tentando esconder a surpresa.
— Nunca imaginou? Podia jurar que você já estivesse acostumada a ser plateia dos ataques de raiva do seu namorado.
— Não preciso que você acredite, mas ele não é sempre assim. — ela disse, me olhando através dos cílios longos. — Isso não justifica o que ele fez na Dungeons, mas-
— Ele nem sempre parte pra cima de quem o contraria? Ah, é claro que dá pra acreditar nisso. Se não fosse, como ele e Ash continuariam com a parceria amigável no esquema do tráfico, né? — pareceu em choque, abrindo a boca pra falar algo, mas logo a interrompi. — Qual é, , acha que eu sou idiota? Vai tentar lançar um papinho que não tá por dentro de tudo?
— Eu nunca disse-
— Não disse porque mentiria. E vamos lembrar que você mente muito mal.
A cara dela fechou, as costas escorregaram no banco. Ela devia estar com tanta raiva de mim que seria capaz de levantar e ir embora no primeiro táxi, mas se saísse agora, só serviria para confirmar coisas. E tinha orgulho demais para isso.
Mas dava para testá-la mais um pouco.
— Você também sabe de tudo, justiceira. — arrastei a caneca de café para o lado, aproximando o corpo. — Devo perguntar se você tem algum cargo ou sociedade no negócio?
Ela revirou os olhos, sacudindo a cabeça.
— Você não sabe do que tá falando.
— O que eu sei é que não dá pra acreditar que você seja um elemento de fora que não faz ideia do que rola no ninho do mal do maior traficante do campus. E é simplesmente conivente com tudo isso, mesmo sabendo que eles podem ter algo a ver com a morte de Sandy?
— Como você tem tanta certeza disso? — perguntou com o olhar duro.
— Seguindo informações, . Fazendo o que ninguém mais fez: perguntar ao Ash. Infelizmente, ele não leva perguntas muito na boa. — dei de ombros e gesticulei para o nariz. deslizou os braços pelo tampo da mesa e se aproximou de mim, agora os dois inclinados um para o outro como um casal fofocando.
— Você não fez perguntas ao Ash, você acusou ele. E o que no mundo te faz pensar que Ash faria uma coisa dessas com Sandy? Se você os conhecesse-
— Não mudaria nada.
— Porque Sandy te disse alguma coisa, não foi? Ela disse alguma coisa sobre o Ash que te faz pensar agora nele com o maior suspeito.
Quis quebrar aquela caneca na minha testa, ou eu ser a pessoa que iria embora no primeiro táxi. Me sentia dando munição para maluco.
— Isso não é bem da sua conta, , mas te garanto que se Sandy estivesse aqui, ela gostaria de fazer a mesma pergunta para o seu amigo. — dei de ombros, e vi os olhos dela vasculhando o meu rosto como raios laser, procurando pescar qualquer coisa fora do lugar. — Mas pela reação dele, ou Ash é um puta ator e soube fazer um papel lindo de um cara fazendo nas calças, ou ele realmente não matou a Sandy.
arqueou as sobrancelhas.
— Então quem faria isso? — ela abaixou mais o tom de voz. — Estamos falando de homicídio aqui. Homicídio mascarado em suicídio.
— Não sei. — respondi. — Não é você que está encarregada desse trabalho?
— Qual é, . — como se fosse possível, ela aproximou ainda mais o rosto de mim. — Sei que você conhecia a Sandy, o que é estranho porque ela nunca mencionou sobre conhecer o número 1, mas isso quer dizer que você sabe de algo que não quer me contar. E acho que já provei o bastante que não vou espalhar suas maluquices por aí, porque, né... De certa forma eu estou envolvida também. Então, de algum jeito, nós podemos trabalhar juntos nisso. Eu publico a matéria e pego de volta a visibilidade desse assunto quem sabe a nível nacional, e posso até citar seu nome pra ganhar mais bajulações. O que você acha?
— Acho que você não deveria se meter nisso. — eu disse sério, e ela me olhou confusa. — Se liga, . Nada garante qual será a reação de se ele souber que você está mexendo com isso. Nem ele e muito menos Ash.
Ela revirou os olhos, voltando a se encolher no banco.
— não tem nada a ver com isso, por que insiste em falar dele?
— Porque você já tem um caso gigantesco bem embaixo do seu nariz e não mexe nisso pra proteger seu namoradinho. Eu te garanto que toda aquela zona acontecendo no escurinho da Dungeons vai alimentar a sua fome de mídia mais rápido do que você pensa.
— O que você disse? — ela riu pelo nariz, os dentes cerrados um no outro. — Em primeiro lugar, não estou protegendo ninguém. Ash está aqui há muito mais tempo do que eu e só tô interessada em coisas maiores do que universitários fumando maconha e tomando pílula sem receita, o que aconteceria com ou sem a existência do Ash por aqui. E jamais imaginei que isso mataria algum deles. — ela respirou fundo, mas dava para ver que estava nervosa. — E vou repetir, : você não sabe nada sobre . Ou sobre mim. Vai ser bem mais feliz nesse lugar se ignorá-lo, eu te garanto.
Quis dizer de novo que ela estava protegendo ele, que estava sendo capaz de tudo, de inventar todas as mentiras para que não precisasse usar seu nome na sua investigação fajuta, mas os olhos de … Aquela ondulação das íris era uma coisa que eu já tinha visto antes. Mais vezes do que eu gostaria.
— Você tem medo dele. — afirmei, e ela abriu a boca para continuar falando, mas logo se calou.
— Eu não tenho medo dele. — seu lábio tremeu.
— Mentirosa.
— Conheço há muito tempo. Sei que ele se estressa fácil, que tem um temperamento difícil, que pode gritar e humilhar as pessoas quando elas-
— Olha como ele trata você. Isso é um diagnóstico para idiotas com toda certeza. Garota nenhuma merece isso.
Vi seu rosto corar um pouco por baixo da luz. parecia ser o tipo de garota que odiava corar.
— Não importa. Ele é filho do reitor, um dos homens mais importantes do Estado, então automaticamente ele vira uma peça inatingível. Não é tão simples assim acusá-lo de ser cúmplice no esquema de Ash.
Dei uma risada, que pareceu deixá-la mais nervosa ainda.
— Obrigado pela informação, mas seu namorado e todo esse império de Rivotril são o menor dos meus problemas. Eu só quero saber quem matou a Sandy.
— Então nós dois queremos a mesma coisa. Por que não podemos nos ajudar?
— Nos ajudar. — ri de novo, mais amargo dessa vez. — Temos objetivos completamente diferentes com essa história.
— Pelo menos eu te disse qual é meu objetivo. Qual seria o seu?
— Isso continua não sendo da sua conta.
As narinas dela inflaram, frustradas.
— Tudo bem, lobo solitário, pode fazer isso sozinho. Também consigo fazer perguntas ao Ash, e aposto que de uma forma bem menos agressiva do que você.
— Eu não faria isso se fosse você. — disse, sério, pensando sobre a promessa de Sandy sobre encontrar Ash. Não acredito que ela conseguiria isso tão depressa, mas se ele estivesse vagando pela Columbia…
arranhou uma risada ácida pela garganta.
— Porque os capangas dele podem me calar de algum jeito? Tenho certeza que não preciso me preocupar com essa parte.
Não foi Ash que os mandou me baterem!, eu quis gritar. O que ela pensava que estava dizendo, planejando? Não tinha estado lá na noite anterior, não tinha tinha se tocado de que, se não fosse por ela, talvez eu estivesse pior? E ela pretendia jogar contra essa sorte sozinha?
Isso me irritou. Pra caralho. Mais do que pensei.
— Que droga, . — resmunguei. — Afinal, por que raios está tão obcecada com esse assunto? Tenho certeza que vão ter outras oportunidades de você cair nas graças do senhor O’Donnell e conseguir publicar um outro ótimo furo, com seu nome estampado nos melhores noticiários do país. Podem até divulgar uma foto sua, essa gente ama garotas de boa aparência com ativismo social na veia e que sabem recitar Jane Austen.
— Você é um babaca. — ela revirou os olhos de novo. — Pode duvidar o quanto quiser dos meus objetivos nesse caso, mas ele não deixa de ser injusto. Eu sempre tive certeza que Sandy não faria isso com ela mesma, por mais que eu a conhecesse pouco. Só que sozinha, não consigo ir pra lugar nenhum, provar coisa nenhuma. Mas quando vi que você pensava a mesma coisa que eu, pensei que era possível. Que a história dela poderia ganhar uma nova narrativa e, quem sabe assim, amolecer aquele coração de pedra da mãe dela. — suspirou. — Conversamos bastante enquanto ela saía com Ash. Ela e a mãe, bom… Posso dizer que entendo. Eu e Sandy tínhamos muitas coisas em comum.
— Namorar idiotas está incluso nessa lista?
— Engraçadinho. Vai bem além disso. Tínhamos os mesmos ideais.
— Ah, você diz de toda essa coisa vegana? Deve existir algum clube desses no centro médico pra pessoas como você, com noites de massagem em porquinhos, pintura de cartazes e jantar especial com aquela coisa que tem gosto de sola de sapato.
Se eu não estava louco ou vendo coisas, podia jurar que segurou um riso.
— Já existe um clube para veganos na CCU, e tofu não tem gosto de sola de sapato. Você devia experimentar uma ou outra coisinha do John Jay. Dá pra comer praticamente tudo que você come sem derivados.
— Os sorvetes são péssimos.
— Todos os sorvetes do John Jay são péssimos. — disse. Fui obrigado a concordar. — Mas eles seguem o ritual da segunda sem carne. Então você-
— Nas segundas eu como no Hewitt.
me olhou espantada e, dessa vez, soltou uma risada mais alta, uma que escapou dela sem a sua permissão, como uma rolha escapando de um champagne.
— O Hewitt não é uma opção. — ela colocou uma mão na boca, ainda rindo. A maioria dos restaurantes na Columbia aderiam à segunda sem carne, menos o Hewitt, um estabelecimento lotado de gordura e cerveja 12 horas por dia bem no subsolo do Barnard College na Broadway. — Qual é a sua comida favorita? Tenho certeza de que pode encontrá-la na minha versão.
— Quer saber mesmo? — ela assentiu. — Bolo de carne. Panqueca de carne. Guisado de carne. Viu? Não dá.
balançou a cabeça. A essa altura, suas risadas já tinham diminuído, mas o sorriso não sumiu completamente. Senti aquele quentinho no peito ao lembrar do bolo de carne da senhora Drager no Melbourne. Não era nada igual às iguarias que Adrian passaria a me servir a vida toda, mas o sabor da comida de Grace estava em outra coisa. Outra camada da minha vida.
— Isso não é justo. Achei que seu gosto fosse mais… — procurou a palavra.
— Refinado? — completei, vendo-a concordar lentamente. — Achou que eu só bebesse vinho do Porto e fumasse Nat Shermans? Ou melhor, deve ter achado que eu passo meu tempo livre em um campo de golfe usando camisa polo e balançando um sininho pra pedir limonada.
— Infelizmente, não consigo me segurar para julgar as pessoas. — ela estreitou os olhos. — Sempre pensei que o notável aluno número 1 fosse um cara sério, sofisticado, com gostos elegantes bem diferentes de tatuagens, piercings e X-Burguer de bares suspeitos no meio da noite. — ela deu uma risadinha quase adorável. — É incrível como um cérebro brilhante pode habitar em um cara boêmio, delinquente e um tanto esquisito. Não dizem que médicos não podem fumar?
— Todo mundo pode fumar. Tirando crianças e gestantes, esses é melhor evitar. — puxei a caneca de café. Tinha quase me esquecido dela. — Mas eu diria que você ficaria chocada com a quantidade de médicos que fumam. De tudo. Toda essa expectativa e ilusão em cima de pobres mortais que dormem menos do que a maioria, é de dar dó. — fiz uma careta quando senti o líquido já frio do café. — Mas não precisa se preocupar comigo, sou só um cara que quer desbravar o câncer e viver dentro de um laboratório. Não vou precisar cuidar de você.
Dei um sorriso divertido e ela corou, desviando os olhos para o café. Depois de um segundo, percebi que talvez, muito talvez, ela tenha ficado constrangida. Mas como eu era péssimo nessas coisas…
Dei um pigarro antes de continuar:
— Então… — falamos ao mesmo tempo. Fiquei em silêncio para que ela falasse.
— Câncer, é? Tem algum motivo especial pra isso? — ela gesticulou a mão, hesitante.
Tinha um motivo. Não um que eu pudesse contar.
Levantei os ombros, descontraído.
— Gosto de ler. — puxei minha mão para baixo, brincando com a barra da minha jaqueta. — E você? Por que a profissão mais enxerida de todas?
— Esses são os detetives. E informação é uma coisa importante. Sempre gostei de saber em primeira mão coisas que outros não sabiam. Quer dizer, na maioria das vezes. — ela baixou os olhos repentinamente e encarou o café, a expressão se esfriando. Esperei que ela complementasse o que disse, mas aquilo pareceu tudo. O fim do assunto.
Ficamos em silêncio novamente. Fiquei com vontade de perguntá-la se havia algo errado, mas era óbvio que havia.
Talvez fosse a hora certa para dizer que precisávamos ir. Mas daí uma música baixinha começou a tocar no fundo e me atrevi a prestar atenção. Reconheci os acordes de Something, o segundo verso soando com a voz arranhada e estourada de um rádio com defeito: I don’t wanna leave her now, you know I believe and how… Cantarolei uma parte dela e automaticamente tamborilei os dedos de leve na mesa, acompanhando o ritmo da música.
Olhei para . Ela inclinou os ouvidos e também pareceu ter reconhecido a música. Seus olhos cintilaram na minha direção e, de repente, não consegui desviar. Uma sensação estranha me tomou, como se toda aquela gente do Simmer Down tivesse desaparecido e só deixassem a gente, livres para andar, comer e beber todo o café que a gente quisesse. Porque, de repente, não existia café melhor do que o do Simmer Down. Não existia lugar melhor.
A boca de repetiu baixinho um You’re asking me, will my love grow? I don’t know, I don’t know distraidamente, e comecei a entender porque meu pai, de repente, em momentos aparentemente normais, se levantava da mesa e tirava minha mãe para dançar.
Um berro ensurdecedor calou a música ao redor e me fez pular de susto, acordando do que seja lá o que foi aquela sensação esquisita, eliminando-a o mais rápido possível da minha mente. Olhei para trás e um dos caras na mesa do baralho pareceu ter levado toda a grana da noite.
— Beatles, é? — deu um sorriso de canto, um pouco envergonhada. — Você é realmente uma caixinha de surpresas.
Franzi o cenho. Ela tinha voltado com a missão de me zoar?
— Vai, me fala. Achou que eu escutasse Mozart, tocasse piano e batesse ponto no Opera House?
— Eu não fui tão longe assim a ponto de fazer suposições sobre o seu gosto musical.
— Mentirosa.
Cerrei os olhos e estava rindo de novo. Foi tão contagioso que me fez rir junto, e de repente estávamos rindo um do outro sem motivo algum — e foi tão bom, divertido e… estranho. Foi inexplicável o que senti na boca do meu estômago. Devia ser o X-Burguer duvidoso.
Foi então que todos os acordes da melodia e qualquer clássico dos anos 60 rolando pelo ambiente foi bruscamente interrompido nos meus ouvidos pela mais nova onda de frio bizarro que pesou o ar em volta. E, dessa vez, entendi perfeitamente de onde vinha.
Entre a senhorita de aplique da Avenida Alabama e , havia uma pessoa. Uma pessoa que não estava ali antes.
Diminuí a risada, pouco a pouco, músculo por músculo, tensão por tensão.
É só mais um morto, pensei. Eles estavam por toda parte, em cada centímetro quadrado de Nova York, em lugares antigos e nos não tão antigos assim. A estrutura do Simmer Down não era lá uma modernidade arquitetônica como os arranha-céus de Manhattan. As infiltrações nas paredes acima do balcão e perto dos ventiladores enferrujados tinham lá a sua história. É só mais um morto. Se não lhe der atenção, eles vão embora rápido, sempre vão. É só mais um, é só mais um…
Mas aquele não era um fantasma normal.
Ele surgiu em meio à um vulto negro e espesso, materializando-se em um homem alto e magro, de roupas igualmente pretas da cabeça aos pés e grandes rodelas escuras embaixo dos olhos, pálido como... Bem, um fantasma. Se me concentrasse, conseguiria ouvir os cochichos gerais de pedidos em uníssono pedindo para que fechassem aquelas janelas por causa do frio, mesmo que todas já estivessem fechadas, e a garçonete de cabelo azul passaria os próximos 20 minutos virando a cabeça para todos os lados, tentando encontrar a fonte de tal frio congelante em um lugar sem nenhuma fiação de ar condicionado. E aquele frio… era muito frio. Uma corrente de ar que parecia quase sólida, atravessando a pele, penetrando nas veias.
Estava imóvel, vazio, indiferente, olhando fixamente para um ponto à sua frente. Para . Nada mais. Seu olhar era firme, arrisco dizer que até furioso, acompanhando cada mísero movimento dela, enquanto passava a mão por uma das nesgas de renda do suéter por debaixo do casaco, tentando ver se tinha deixado alguma parte de pele exposta à todo aquele frio bizarro. De repente aquela sensação ruim, esmagadora, angustiante que tinha sentido há dois dias atrás veio à tona. Uma lembrança quase apagada, soterrada no meio de todos os eventos que aconteceram depois, mas que agora parecia tão viva quanto o gelo maciço pairando no ar.
Ansiedade começou a tomar conta do meu peito. ainda balbuciava algumas palavras, e eu fazia o possível para agir normalmente, mas não dava para mentir: nunca vi uma coisa dessas antes. O que estava acontecendo? Por que esse cara não parava de olhar para ela?
— Mas o que você está olhando... — ela perguntou depois de alguns minutos, virando a cabeça para trás.
— Vamos embora! — falei abruptamente, tirando minha carteira do casaco e jogando algumas notas na mesa.
me olhou confusa e, em seguida, olhou o relógio na parede.
— Nossa, você tem razão, temos que ir. Ainda nem pensei na desculpa que vou dar à minha mãe caso ela resolva acordar no meio da noite. Será que existem pontos de táxi por perto?
— O quê? — parei, perplexo. — Olha, sei que eu não sou sua pessoa favorita do mundo, mas não precisa descontar na boa educação que ganhei dos meus pais. Jamais te deixaria pegar um táxi sozinha uma hora dessas.
— Nada pessoal, meu caro cavalheiro, mas se alguém por acaso me ver saindo de um carro desconhecido de madrugada, isso não vai ser nada-
— Levanta antes que eu te carregue, .
Ela arregalou os olhos para mim, mas levantou. Nosso momento descontraído, ou seja lá o que foi aquilo, tinha acabado.
— O que você tem?
Peguei na mão de e andei a passos largos para fora do bar. Escondi-a atrás de mim ao passar do lado do fantasma estranho, e ele não olhou para mim nem sequer uma vez; continuava com seus olhos cravados nela a cada passo. Mas que merda era essa?
Felizmente, ao sairmos do bar, ele continuou lá. Depois de 2 minutos, olhei de novo e ele tinha sumido. Fui tomado por um alívio instantâneo, mesmo sem ter a mínima porra de ideia do que tinha acabado de acontecer.
— ! — gritou, me fazendo acordar e voltar para o presente. Olhei para ela, que parecia irritada, e notei que ainda estava segurando a mão dela. Acabei puxando a minha tão rápido que ela franziu toda a testa. — Meu Deus, o que foi aquilo? Como você me arrasta de um lugar assim? As pessoas ficaram olhando.
— Foi... Foi instinto, me desculpa. Podemos ir agora?
— Instinto? — abriu a boca, abismada, com um toque de desprezo. — Seu instinto é sair pegando na mão de garotas pra fugir de bares no meio da noite? O que acontece depois? Um amasso no carro?
— É o quê? — não fazia ideia do que ela estava falando. Meu coração estava batendo no meu ouvido.
revirou os olhos.
— Tanto faz. Não me surpreenderia se você fosse um galinha de primeira.
Ela se virou e entrou no carro. Chequei o bar lá dentro uma última vez e fui para o banco do motorista.
— Onde você mora? — perguntei, puxando o cinto de segurança.
mal tinha acabado de responder o Queens e eu já estava dando a partida, talvez indo mais rápido do que quando saímos da Columbia. Estava com pressa de deixar aquele lugar, apavorado pelo desconhecido — e eu não me lembro a última vez que fiquei daquele jeito. Talvez quando vi meu primeiro fantasma ao pé da escada no Melbourne quando eu tinha 3 anos, e por isso não consegui controlar muito a questão do comportamento, mas me saí melhor do que Gina. Ela gritou e chorou tanto que Grace precisou medicá-la para se acalmar.
Mas aquilo lá dentro… eu não sabia o que era aquilo, mas sabia o que eu estava vendo: o fantasma estava na cola de e isso me perturbava mais do que a própria aparição.
Quando dei por mim, estava estacionando na frente da enorme mansão onde morava, nos arredores de Bayside. Não que me interessasse quanto dinheiro ela tinha, mas olhando para a fachada colonial, o enorme jardim cercado e o teto de pináculos altos, pelo visto era muito. As luzes estavam apagadas e uma faixa de neblina atravessava as luzes fracas dos postes como gelo seco, adiantando o frio que devia estar fazendo do lado de fora.
— Bem... Obrigada pela carona. — ela desatou o cinto de segurança e virou uma parte do corpo para mim. — Não preciso dizer que não podemos contar nada disso pra ninguém, não é? Nada mesmo. — ela tirou a jaqueta devagar e estendeu para mim, os olhos brilhando sob a iluminação em apenas um lado do rosto. — Valeu pelo café também, e tudo mais. Tomara que seus machucados sarem logo. Tudo fica pior no frio. Então, eu vou… — ela colocou a mão na maçaneta, mas não abriu. Parecia esperar que eu dissesse alguma coisa, mas não abri a boca. Ainda estava olhando para ela e pensando. Olhando para ela e para a escuridão bizarra do seu quintal. Olhando para ela e para as sombras das casas vizinhas.
Por fim, ela apenas se virou para ir.
— , espera! — falei no último instante. — Sobre o assunto da Sandy... Acho que podemos trabalhar juntos.
arregalou os olhos.
— O quê? Você tá falando sério? — de repente, apareceu um sorriso, um muito maior do que no Simmer Down. — Não brinca. O que aconteceu? O que te fez mudar de ideia?
— Isso não importa. Você topa ou não?
— É claro que eu topo! Isso é demais! — ficou tão extasiada que se aproximou de mim para, talvez, me dar um abraço, mas desistiu disso na última hora. Em vez disso, a garota abriu a bolsa e rabiscou um número em uma folha quadrada sem pauta, colocando-a na palma da minha mão. — Liga pra mim amanhã bem cedo, manda mensagem, o que for. Precisamos discutir sobre isso urgentemente. — ela deu mais um sorriso e voltou a abrir a porta. — Se não me ligar até 12:00, vou aparecer no seu departamento. Não dá mais pra voltar atrás. — e com uma piscadinha, saiu do Jeep, saltitando até a entrada do enorme portão de ferro batido.
Meu estômago fez aquilo de novo, aquela torção esquisita que lançava um arrepio para minha nuca. Meu Deus, talvez eu precisasse mesmo de um médico.
Depois de ver entrando em casa, ainda aguardei mais uns minutos antes de ir embora.
Mas não havia referência. Eu nunca vi uma coisa daquelas antes, e pensei bastante nisso. Na maioria das vezes, eu era procurado pelos fantasmas que acabaram de morrer, e eles geralmente tinham problemas bem simples, apesar de irritantes: retire os botões de ouro do meu cardigã furado e enterre pra minha família não achar; coloque uma moeda naquela jukebox e toque “What a Wonderful World” uma última vez; diga à loira do drive-thru do McDonald’s que ela parece ser bem gostosa, e por aí vai. Vez ou outra sempre tinham aqueles mais pirados, que já estavam aqui há tanto tempo que mal se lembravam de sua própria identidade. Era com esses que eu ganhava grande parte das minhas cicatrizes e fazia minha mãe pensar que eu era completamente problemático, porque era um saco tentar despachar um fantasma que não queria ser despachado.
Mas eu nunca, jamais tinha topado com um espectro com aquela aura negra e perturbadora. Sua presença era tão sufocante que eu ainda podia sentir minha garganta fechando, o ar me esmagando. Totalmente sinistro. E saber que era o alvo dessa coisa estranha não ajudava em nada. É claro que fantasmas tinham lá suas desavenças com os vivos — ninguém era tão iluminado assim a ponto de morrer sem odiar ninguém. Mas essa gente não andava por aí perseguindo suas mágoas. Eles nem podiam se deslocar assim livremente. Mas esse cara… Ele esteve presente naquela festa e estava presente no bar, e deveria estar presente agora mesmo ao lado dela enquanto ela dorme. Isso começou a me deixar maluco, resistente a qualquer fio de sono. Aquilo… não estava só observando ela, parecia querer matá-la.
E não dava para deixar isso acontecer.
Pensei que ficando perto dela, talvez, eu pudesse vê-lo de novo e decifrar aquela coisa, tentar mostrar que o planeta Terra não tinha mais vaga para ele ou coisa assim. No momento do impulso, falei que me juntaria a ela no caso de Sandy, o que foi uma completa insanidade, mas agora não tinha mais volta. Em um final de semana, eu acumulei todos os problemas que evitei a vida inteira.
Antes de dormir, consegui ligar meu celular com algum custo e mandei uma mensagem para o número que havia anotado na folha branca. “Espero que saiba que seu número termina com 69”, digitei, desejando por um segundo que ela respondesse na mesma hora, mas eram 4 da manhã e isso seria mais preocupante do que bom, então engoli a ansiedade e deixei minha mente apagar.
A Columbia estava um caos naquela manhã. Tinham avisos e congestionamento por toda parte, meia dúzia de caminhões com caçambas e alguns rostos conhecidos dos principais noticiários locais. Todos se perguntavam como o restaurante do John Jay Hall tinha sido destruído na noite anterior justo em um momento de maior falha de energia desde o inverno de 1994, onde as câmeras não conseguiram filmar nada e nenhum elemento do cenário catastrófico apontava para alguma causa acidental. Aparentemente, a polícia falaria com pelo menos umas 10 pessoas que se auto intitularam como testemunhas oculares e juravam ter visto delinquentes escapando da cena de estragos, mas aparentemente, não conseguiam descrever seus rostos.
Tudo isso estava na primeira página do Fórum e nas conversinhas de corredor, fazendo eu me perguntar se tinha algo a ver com isso. Ela devia ser melhor mentindo atrás da tela de um computador do que pessoalmente.
E, claro, graças à grande faixa amarela na frente do John Jay, todo mundo ia ter que se apertar no Ferris Booth, onde o hambúrguer era mediano e a batata frita era murcha.
Mas antes disso, dirigi até o centro médico de Irving e bati na salinha da senhora Meals, a enfermeira titular do departamento, que quase teve um ataque ao ver meu estado. Pedi sigilo a ela como sempre e me coloquei aos seus cuidados mais experientes — Nova York já tinha me trazido problemas com os mortos antes, o que significava que a expressão chocada da velha Mila Meals deveria diminuir cada vez mais, mas aquela mulher era muito facilmente surpreendida. E não sei se é porque ela já era idosa, mas a desculpa dos meus supostos treinos de boxe sempre funcionavam muito bem.
Depois de meia hora, me sentia muito melhor com os curativos e remédios certos, mas Mila deixou claro que eu precisava ir para casa e descansar — e, claro, parar de lutar. Mesmo que eu não estivesse pensando em fazê-lo, agradeci a ela e me preparei para a próxima resolução de problemas do dia.
Não consegui ligar para porque meu celular tinha decidido funcionar a hora que queria, então fui direto para o Mudd Building, em uma sala no subsolo onde a galera do T.I. costumava chamar de "biblioteca”, que na verdade se parecia com uma lan house. O cômodo tinha várias mesas compridas e computadores de ponta, paredes de cor preta fosca, um carpete igualmente preto e uma prateleira com livros grossos de linguagem binária. Era aqui que meu amigo gostava de passar o tempo quando não estava comigo, então foi quase imediato enxergá-lo nos fundos, usando um headphone enquanto se concentrava em um jogo online.
Puxei uma cadeira e me joguei ao seu lado, dando uma leve cutucada no seu ombro. virou o rosto para mim por um segundo e estalou a língua.
— Não se pausa jogos online. — murmurou, voltando a olhar a partida.
— Se você estivesse ganhando, eu aceitava numa boa. Mas… — espiei a tela bem na hora em que ele acabou de receber um dano quase letal. — Tenho umas perguntas pro meu hacker particular.
não disse nada por alguns segundos, e em seguida digitou rápido algumas palavras no chat e retirou o fone, fechando a tela.
— Você sabe que eu recebo multa por abandonar a partida, né? Então, se for pra você me pedir pra baixar um dos seus livros de Anatomia na deep web, pode transferir o dinheiro pra minha conta agora.
— Tenho todos os livros que eu preciso, só quero bater um papo. — arrastei a cadeira para mais perto. — Na verdade… Meio que menti pra você. Sobre a surra que eu levei na festa. Eu sei quem foram os caras.
— Como é que é? — ele sussurrou, cruzando os braços. — Eu devia saber, ninguém mais sai batendo nas pessoas sem nem dizer o nome antes, isso é tão ensino médio. E por que não me contou isso quando te perguntei? Eles te assustaram tanto assim?
— Não foi esse o caso. Eu vou te contar, mas você precisa me prometer que além de não contar pra ninguém, não vai fazer nenhuma gracinha como ficar ligando e desligando o telefone deles ou clonar o cartão pra fazer compras em sex shop.
— Ei, eu só fiz isso uma vez! E o babaca mereceu.
— Você lotou o porta-malas dele de pintos de borracha e fez todo mundo pensar que ele era gay.
— Ele era gay. Por que acha que ele enchia tanto o seu saco? Queria chamar sua atenção e não tava sabendo pedir.
— Tá bom, que seja. Promete que não vai fazer nada. — cerrei os olhos, tentando parecer sério o suficiente. revirou os olhos até as órbitas e acabou assentindo. — Ok, eu… tive uma discussão com o filho do reitor. Ele e a -
— Você brigou com Park? — falou um pouco alto demais, e duas das únicas pessoas que não usavam fones enormes na cabeça se viraram para nós com uma cara feia. Dei um soco de leve na perna de e abri um sorrisinho amarelo de desculpas. — Foi mal, cara, mas... Como uma coisa dessas aconteceu? Você dançou perto demais da garota? Olhou demais? Foi vingança por ter enchido o cabelo dela de comida? Ele é bem mais medonho do que eu pensei.
— Não, não foi só ele. Tinha um cara chamado Ash, e mais dois-
— Ash?! Você está falando do Ash do esquema dos entorpecentes?
— Shiu! — alguém balbuciou ali perto e eu escondi meu rosto entre as mãos, me perguntando porque eu insistia em ter conversas reveladoras com em lugares fechados.
— Espera aí, , como você sabe da existência do Ash? Só quem sabe sobre ele já... Você sabe... — ele fez um gesto ridículo de alguém aplicando uma seringa no antebraço e explodindo depois.
— Não foi pra nada disso que você está pensando. E como você conhece o Ash?
— Eu não o conheço necessariamente, só vi o cara uma vez numa festa aleatória em Marble Hill onde o Alvy comprou a melhor erva de todas as ervas. Só assisti tudo, mas pareceu aquelas cenas de 8 Mile, com seguranças grandões e tudo. Eu teria medo se ele me olhasse por mais de um minuto, se… — parou, ficando meio pálido de repente. — Ah que merda, não me diga que Ash estava junto com ! Não me fala que os dois te deram a surra juntos.
— Não foi bem assim… — suspirei e fechei os olhos por um instante. Eu não sabia como explicar aquilo sem ter que falar tudo. — Eu estava interessado em uma coisa que Ash vendia, foi isso. Mas na hora, o entrou no quarto e acabamos discutindo. Foi aí que rolou a briga.
agora virou o corpo quase inteiro para mim, os olhos arregalados no seu pico.
— Você é completamente maluco mesmo. — por um momento, eu não sabia se ele queria rir ou me sacudir. — Vai mexer desse jeito com gângsteres, cara. Quer dizer, não que faça parte de uma gangue, mas Ash sim, e eles andam juntos, e ninguém é idiota pra não ligar uma coisa na outra. Olha o estado em que ele te deixou. Ah, mas eu juro que se ele aparecer na minha frente-
— Você não vai fazer nada, esqueceu o que eu acabei de falar? Fora que ele só deu o primeiro soco, o resto do trabalho foi concluído pelos dois grandalhões que você disse.
— Covardes! — rangeu os dentes, e tinha uma expressão realmente furiosa. — Mas por que você brigou com o ? Teve mesmo alguma coisa a ver com a ? Cacete, não me diga que você e ela-
— Tá maluco? — neguei rápido, franzindo a testa. Fiquei um pouco horrorizado demais com o pensamento. — Claro que não, a garota não tem nada a ver com a história, eu nem conheço ela. Acho que eu só fui... exigente demais com o atendimento, só isso. E já tinha rolado um estranhamento entre eu e no primeiro dia da festa, então ele não deixou passar.
— Estranhamento?
— O cara queria usar meu carro de motel, me vi no direito de reclamar. — dei de ombros. ainda estava com a boca entreaberta e o queixo caído como se encarasse o paciente mais insano do hospital psiquiátrico. Isso porque, no meu lugar, ele com certeza teria se sentado na calçada naquele frio e esperado fazer o que quisesse fazer com de muito bom grado só para não ter que enfrentá-lo. — Eu já tava bêbado nessa hora, não importa. O que importa é que eu quero saber o que você sabe sobre o Ash.
primeiro me olhou como se eu tivesse falado que queria comer metal. Depois, voltou a esbugalhar os olhos daquele jeito e balançou a cabeça em negação várias vezes.
— Não. Não, não, não. De jeito nenhum. — ele moveu o dedo indicador de um lado para o outro. — Você não vai marcar uma revanche e nem ir tentar comprar essas porcarias sozinho de novo. Ficou doido de vez, ? Esse cara fabrica drogas, fabrica, igualzinho em Breaking Bad ou até pior. Todo mundo fala-
— O que todo mundo fala?
— Não, eu não vou falar.
— Eu não vou comprar nada dele, pelo amor de Deus. Tenho acesso ao estoque do Presbiteriano com uma assinatura, acha mesmo que vou me arriscar a ir atrás do Ash de novo?
— Então por que foi lá da primeira vez?
— Porque… ele faz personalizado, não faz? — lembrei na mesma hora das palavras de Sandy. E lembrei que eu não tinha acreditado nela. — O cara é tipo o aprendiz do Jesse Pinkman. Faz literalmente o que você quiser.
soltou um suspiro longo e apoiou um dos cotovelos no braço da cadeira, girando o pescoço rapidamente para olhar para os lados.
— Olha só, não tem muito segredo sobre o que o Ash faz ou não, o cara literalmente te apresenta os serviços quando te encontra. Ele pode misturar cannabis com aspirina e te deixar viajando por horas. O ecstasy dele é o melhor da região, e dizem que ele só não vende metanfetamina 100% pura porque os carteis de verdade não iam gostar. É um cara que tá literalmente no limite do perigo, fazendo tudo de um jeito discreto, mesmo que não tão discreto assim. Dizem que até os professores compram dele, e eu duvidava disso, mas depois que vi o treinador do time de Lacrosse dar aquele ataque no meio do campo, eu não-
— E sobre ele? O que tem sobre ele? — interrompi , tentando disfarçar minha pressa. Não queria saber de verdade sobre os prêmios de Ash de “melhor traficante estudantil de drogas”, queria o cara. A pessoa.
demorou um pouquinho mais para entender o que eu queria.
— Nossa, nada. — ele deu uma risada seca. Pela sua cara, eu poderia estar fazendo uma piada. — Na verdade, acho que nem os amigos dele sabem alguma coisa. O cara é conhecido por um nome falso e ninguém é interessado o bastante pra consultar a pauta de presença das aulas dele. Todo mundo sabe o que todo mundo sabe: que ele vende todo tipo de coisa. Que tudo dele é bom. E, por algumas opiniões alheias, que ele é descolado. Fora isso, nada.
Suspirei, coçando um dos olhos. Nada daquilo ajudava.
— Não achei ele nada descolado. Sabe se ele andava namorando alguém?
— Não faço a mínima ideia, . Caras descolados saem com uma garota diferente a cada festa, isso é o básico. Tenho certeza que elas se animam com essa coisa de bad-boy-que-provavelmente-carrega-uma-arma, o que é muito injusto com as pessoas de bem aqui. Mas, espera, eu acho que… — ele juntou as sobrancelhas, lembrando de algo. — Tenho quase certeza que já o vi com a Sandy. Sabe a Sandy Silo, a garota que morreu semana passada? — um arrepio passou pela sua espinha.
era o tipo de cara que acreditava que falar o nome das pessoas mortas automaticamente era um ritual de invocação. Bom, pelo menos ele poderia ficar tranquilo com relação a isso.
— Sei… — assenti. — Então todo mundo sabia deles?
— Não todo mundo, até parece. Ela era a maior nerd, o Ash não sai com esse tipo de garota. O negócio dele são líderes de torcida gostosas ou motoqueiras gostosas. Mas eles foram vistos juntos, mais de uma vez. Talvez ele tenha feito uma caridade, vai saber. — deu de ombros distraído, e pareci compenetrado enquanto me lembrava do rosto de Ash quando foi questionado sobre ter matado Sandy. E do jeito como falou dela para . Um jeito que não combinava com alguém que estivesse fazendo caridade. — Mas por que o interesse agora em quem ele namorou? Se ele já é assustador, imagina só com quem ele dorme.
— Você quer mesmo julgar com quem as pessoas dormem? Já olhou o seu histórico? — arqueei as sobrancelhas. Ele me deu um soco no braço imediatamente, praguejando. — O quê? Só tô dizendo que talvez também fosse interessante pra você viver no anonimato em pleno século XXI se quer tanto fazer sucesso com as garotas.
— Desculpa te decepcionar, mas quero uma garota pra quem eu possa contar tudo, inclusive da minha rota favorita do League of Legends. E pelo menos eu tenho um histórico. — resmungou e começou a desligar o computador. — E viver assim é conveniente pro negócio dele. Afinal, como iriam entregar alguém que ninguém sabe o nome? E mesmo que soubessem, é quase impossível provar isso por causa do nas costas dele, o que já é ameaçador para qualquer um por si só. Ninguém chega perto do filho do reitor. — ele puxou a mochila debaixo da mesa. — Onde vamos almoçar hoje? Com todo esse circo sinistro que aconteceu no John Jay. — tremeu. — Não quero chegar perto de lá, cara. Fica muito perto do alojamento feminino. Parece estar até… mal assombrado.
Dei um sorriso de lado e caminhamos para fora da sala. Ele mal fazia ideia.
Mais uma sessão de burburinhos e deduções estava acontecendo durante as minhas aulas naquela tarde. Parte delas eram adivinhações em relação ao que poderia ter causado o alvoroço no John Jay e parte sobre a festa na Dungeons. Depois do professor ter de pedir silêncio mais de duas vezes, desisti de prestar atenção, não que eu já não estivesse tendencioso a isso. À medida que qualquer distração acontecia, aquela aparição horrenda voltava a tomar meus pensamentos, fazendo com que eu consequentemente encarasse meu celular e visse que ele continuava sem resposta de . Isso já estava me deixando agoniado, e já eram quase 15h00. Será que ela tinha faltado às aulas? Será que estava tão cansada que dormiu até agora? Será que não estava em casa? Meu Deus, precisava urgentemente focar naquele esquema de biologia molecular para não enlouquecer.
Quando a aula na sala oval finalmente se encerrou, ouvi meu celular vibrar uma, duas e três vezes. Puxei-o do bolso e soltei um suspiro longo quando vi o nome dela no visor, seguido do nome de , que dizia que esperaria na frente do Lerner Hall para irmos ao Super Nice tomar um expresso com urgência. Abri as mensagens de logo depois:
“E o seu número termina com 666, agora cala a boca?”
“Me encontra no almoxarifado, consegui uma chave. Agora.”
Meu coração disparou. Minhas aulas aconteciam no centro médico em Washington Heights, e até chegar em Morningside Heights eram menos de 10 minutos dirigindo, mas ainda assim, esperava que não se importasse de esperar um pouco. Juntei minhas coisas rapidamente e atropelei algumas pessoas ao sair da sala, enfiando mochila e jaleco no banco de trás de um jeito desordenado. Já no banco do motorista, enterrei o pé na embreagem e, em poucos minutos, já estava na frente do lugar.
As autoridades tinham se dispersado da frente do John Jay àquela hora, restando apenas os responsáveis pela reforma dos danos, que andavam para lá e para cá no primeiro piso, sem se atentar em mim, um cara que entrou sorrateiramente sem seguir para a direção do elevador que levava aos dormitórios. Encarei a porta azul já conhecida, observando a escuridão impenetrável de dentro através da abertura de vidro, já pronto para pegar o celular e perguntar à onde ela estava, quando essa mesma porta abriu em um solavanco e quase pegou na minha cara — de novo.
Ela me puxou para dentro com rapidez, fechando a porta logo depois. Uma luz amarela jorrou acima de nós dois, mostrando detalhes do cubículo que não dava para ver ontem, como o quanto ele era pequeno. Se ela desse mais um passo, estaria colada comigo, colada de um jeito desconfortável, então fiquei parado enquanto ela olhava através da fissura da madeira para ver se não existia chance de alguém entrar de repente. Considerando a quantidade de poeira e alvejante vencido naquela prateleira, a resposta era óbvia.
Observei-a sem dizer nada. Ela estava bem. Ao menos parecia bem. Tinha um pequeno curativo no seu cotovelo onde ela havia se machucado ao cair do muro, mas fora isso, a garota estava perfeitamente saudável. O cabelo loiro solto, com duas mechas presas atrás, uma blusa de lã em gola alta, uma saia preta quase camuflada com uma meia calça escura, terminando tudo com uma bota marrom que subia até seus joelhos. Quase perguntei a ela se era normal se arrumar tanto em uma segunda-feira, mas isso poderia soar como um interesse que eu não tinha. Quando ela se virou, vi que não havia olheiras em seus olhos e nem aura diabólica alguma atrás dela.
— . — o grito dela furou minha bolha de concentração, e vi seus dedos estalando na frente do meu nariz. — O que deu em você? Tem alguma coisa no meu rosto?
— Tem. Quer dizer, não. Foi mal, estou meio distraído. Não dormi muito bem essa noite. E você?
— Eu o quê?
— Você dormiu bem? Está tudo bem?
— Ah... Sim. — ela franziu o cenho, confusa com a pergunta. — Não dormi as horas necessárias, mas quem se importa? A gente precisa falar sobre-
— E os seus machucados? Deu um jeito neles?
— Eu mesma cuidei disso, tenho um kit de primeiros socorros básico. Não é a primeira vez que eu faço isso.
— Como assim não é a primeira vez? — me apressei. estava torcendo a testa mais uma vez.
— Porque as pessoas se machucam. E nem todas correm pro hospital por causa de um raladinho. Qual seu problema hoje? Vamos direto ao ponto.
Ela estava me olhando como se eu fosse um maluco, e sei que eu estava mesmo parecendo um com toda aquela ansiedade, mas de repente eu não sabia como agir. A qualquer momento, o fantasma poderia aparecer, e quando aparecesse, não sabia se ele faria algo, como jogar uma daquelas vassouras na cabeça de , ou ficaria apenas parado, fitando-a daquele jeito macabro de antes. Conseguiria chamá-lo para conversar em outra hora, sem ela por perto? Ele falaria comigo?
Percebendo meu silêncio, continuou:
— É o seguinte, o que vou te dizer é um pouco chocante, mas isso não saiu da minha cabeça nem por um minuto e eu preciso saber se você está disposto a qualquer coisa pra descobrir quem matou a Sandy.
— Sim... Sim? Isso foi um pouco assustador, o que você está pensando?
— Estou pensando que, antes de irmos atrás de um assassino, precisamos saber como ela foi assassinada. Sei que quando a gente fala em overdose, a polícia não coloca a culpa em alguém, mas sei que Sandy não usava drogas. Também sei da história do Lorazepam. Graças a você. — ela apertou a alça da bolsa com um pouco de força. — Sei que Ash fez isso porque ela pediu, e sei que ela estava passando por uma fase turbulenta, mas… É estranho. Ash entende de medicamentos, aumenta os componentes de um, diminui em outros, personaliza do jeito que você quiser. É muito conveniente ter dado algo para Sandy e ela morrer no dia seguinte.
— Então você acha…?
— Não é sobre isso. Primeiro precisamos saber o que exatamente Sandy tomou. A polícia não achou mais nada no quarto dela depois, nenhuma única pílula de aspirina, então ele não deu uma cartela inteira, só a exata quantidade que agora tá se perdendo no organismo dela. Não dá pra perguntar isso para o Ash, precisamos ver. — ela soltou um longo e pesado suspiro. — Precisamos da autópsia.
— E você acha que essa não foi a primeira coisa que eu pensei? Mas não dá, os pais dela já negaram, e não tem mais-
— Eu estou dizendo de nós fazermos isso, . — ela me interrompeu, abaixando o tom de voz na última frase. — Quer dizer, você fazer isso.
Fiquei sem fala por alguns segundos. me olhava com um certo desespero pela minha resposta. Quando reencontrei minha voz, só consegui proferir a seguinte coisa:
— Você ficou maluca?
— Eu sei, eu sei. — ela respirou fundo, balançando as mãos. — Sei que isso parece loucura, mas eu não sei de que outra forma forma a gente pode descobrir isso, tá legal? Perguntar mais coisas ao Ash sobre esse assunto não é uma opção, ele saberia o que eu estou tentando fazer, e também tem o-
— Se liga, . Talvez você tenha se esquecido de que precisamos de uma coisa muito importante pra fazer uma autópsia, que é o corpo da pessoa! — falei entredentes, ainda com a expressão de choque. — Aliás, depois de um tempo, não seria mais uma autópsia e sim uma exumação! Você tem ideia de que está propondo que desenterremos um cadáver?
— Ela ainda não foi enterrada.
— Que seja, quer invadir o necrotério do hospital e puxar o corpo da Sandy do frigorífico? Pra fatiar em busca de provas? Tem ideia de como isso é uma piração?
— Eu não falei em fatiar…
— Olha, é muita gentileza sua confiar tanto nas minhas habilidades de cortar o corpo de alguém, mas qual é, a garota acabou de morrer. O corpo dela mal começou a deterioração…
— É exatamente por isso! Tenho certeza que ainda dá pra descobrir alguma coisa enquanto ela tá no congelador, porque depois disso, acabou. Sandy vai ser enterrada daqui a dois dias, porque a maluca da mãe dela não quis mover um dedo para transferir o corpo para a própria cidade. Ela nem se importa se a história que contaram sobre a própria filha é verdade, se Sandy não tinha outros motivos, se-
— Foi pra isso que você quis tanto a minha ajuda? Por que não quer ir pra cadeia sozinha? Estou mesmo impressionado, .
Ela torceu a boca, e achei que veria raiva ali, mas não. parecia envergonhada, até frustrada, as bochechas corando e descorando em um instante.
— Eu sei o que parece. Mas eu não quero te ferrar, de jeito nenhum. E talvez eu esteja ficando um pouco desesperada porque o tempo está passando e as pessoas estão esquecendo, mas se nós não conseguirmos nada que prove que Sandy não cometeu suicídio, a polícia nunca vai reabrir esse caso, entendeu?
Abri a boca para protestar, mas as palavras se perderam. Eu realmente não sabia o que dizer, e mesmo sendo totalmente contra aquela ideia de merda, não sabia como convencer disso. Realmente era necessário provar que Sandy não havia cometido suicídio, precisávamos ter um assassino, mas fazer isso daquela forma nos levaria à consequências desastrosas. E eu nem digo da polícia em si, que já seria calamidade o suficiente, mas não sabia do que eu sabia: não se saía mexendo livremente assim nos cadáveres alheios, ainda mais se a alma penada ainda estivesse por aí. Isso era desconfortável para caralho. Fantasmas mantinham certa ligação com seus corpos físicos, e nunca era bom subestimar essa conexão. Já topei com uma fantasma que não queria ir embora de jeito nenhum porque não queria ser enterrada com brincos cor-de-salmão. Outro estava com um humor capengando a cada dia mais que seu corpo era comido embaixo da terra. Um dizia que conseguia sentir o cheiro da putrefação no seu estado espiritual. Era complexo, era chato, e chamaria a atenção de Sandy. A última coisa que ela precisava agora era de dois enxeridos abrindo seu corpo sem mais nem menos.
ainda me encarava, esperando uma resposta.
— , olha... Não vamos fazer isso, tá bom? Podemos pensar em outra coisa. Tenho certeza que existe outra solução pra isso, uma não tão radical.
— Então eu imploro que você me diga qual é. — ela deu de ombros, um pouco menos ansiosa do que antes.
Mordi os lábios. Na verdade, realmente havia um jeito, igualmente não muito recomendado. Uma coisa que só eu poderia fazer, mas não sabia como iria convencer disso.
— Você confia em mim? — perguntei sério, me aproximando um pouco de seu rosto para falar mais baixo. Ela abriu e fechou a boca algumas vezes, hesitante.
— Acho que ainda não sei responder isso.
— Eu quero evitar que você se meta em uma enrascada, então só dessa vez, será que pode confiar um pouco em mim?
— Se eu confiar, vai me dizer o que pretende fazer?
— Não vou.
— !
— Não posso explicar, mas vai dar certo, eu juro. Pelos próximos dois dias, eu preciso que você não faça nada, me entendeu? Sai com suas amigas, assiste um jogo dos Lions, adianta suas matérias do Natal, mas não faz nenhuma loucura. Por favor? — olhei no relógio do celular e vi que já tinha deixado esperando tempo demais, e eu não estava afim de responder mais perguntas naquele dia. — Tenho que ir, meu amigo está me esperando. A gente pode continuar essa conversa depois.
tentou dizer alguma coisa, mas, por fim, só assentiu e aceitou. Achei que precisaria passar alguns minutos acalmando ela, ou ouvir coisas como: “Se essa sua ideia não der certo, você vai ver só”, mas nada disso veio. Passei por ela e girei a maçaneta, pronto para sair, mas não esperava que ela fosse sair junto comigo ao mesmo tempo. E, infelizmente, o corredor não estava tão vazio como eu esperava.
Tive poucos momentos na vida em que literalmente fui "pego em flagrante". Resultado de muitos cálculos e organização das situações, o que significava que eu mentia e escondia muito bem o que andava fazendo. Mas já estava claro que ultimamente minha vida estava passando por um enorme kamikaze, um que estava preso de cabeça para baixo permanentemente. Então dá para imaginar o quão embasbacado fiquei ao ver que estava passando exatamente na frente da porta azul, no exato momento em que eu e deixávamos a sala.
Acho que chocado era pouco para descrever a cara que ele realmente fez.
— ? — disse ele, levantando os olhos do celular, olhando de mim para . — Hã… Você…
Ninguém disse nada. Literalmente, fiquei sem palavras diante de tanto constrangimento.
— , mas… Como você veio parar aqui? Não disse que ia me esperar lá na frente? — dei uma risada seca, me aproximando dele e dando um tapa leve em seu ombro. Ele me olhou como se estivesse me sacudindo mentalmente.
— É, e você demorou, então eu estava indo até o meu quarto pegar um carregador. — ele olhou novamente de mim para , ainda meio chocado, ainda me pedindo uma explicação.
Fiquei calado novamente, e tampouco falava. Na verdade, ela parecia louca para sair correndo.
— Então, você quer um café, né? Eu também tô morrendo de vontade de um, é melhor a gente se apressar se não as mesas no Super Nice vão estar todas lotadas. Ah, essa é a , você a conhece, né? — apontei para ela sem olhá-la, balançando os braços com agitação. Não esperei que respondesse. — Ótimo. Agora vamos, eles só tem os pretzels recheados nos primeiros 15 minutos. E relaxa, pode usar meu carregador. — falei sem pausas, procurando não dar espaço para uma interação de . Ele ficou ainda mais confuso e se deixou ser arrastado por mim direto para longe do corredor, cumprimentando brevemente antes de sairmos.
Caminhei apressado para fora, até deixando para trás em um momento. Quando chegamos ao meu carro, já estava preparado para o que viria.
— Você quer começar a me explicar o que diabos você estava fazendo preso com em um cubículo agora ou depois do capuccino? — perguntou enquanto entrava no banco do carona.
— Não é nada disso que você está pensando. — respondi enquanto pegava um cigarro do maço que eu guardava no porta-luvas para situações onde eu, bom, não estava afim de falar.
— Já saquei, não quer me contar. — disse enquanto me oferecia um isqueiro ao ver que eu tateava meus bolsos. — Mas se você pensa que eu vou te deixar em paz até saber dessa história, pode parar de sonhar.
— Não tem história nenhuma. Eu e ela só... Nós só estávamos conversando.
— Porra, já viu quanto espaço tem nesse lugar pra conversar? Tá achando que eu sou idiota? — ele soltou uma risada perplexa. Não soube o que responder. — , eu juro que não tô te julgando para o que quer que tenha acontecido naquela salinha. Muito pelo contrário. É a , cara! Ela é tipo a responsável pelas fantasias de qualquer pessoa que goste de mulher nesse campus, sacou? O problema é que ela tem namorado! E não um namorado qualquer, ela namora o , e você já sentiu na pele que não dá pra arrumar um problema com aquele maluco. Tava ciente disso quando resolveu ir conversar com ela?
— Você não tá entendendo-
— Quem não tá entendendo é você, ! Aquele papo da sua briga com ele não ter sido por causa dela foi mentira? Hoje mesmo você disse que nem a conhecia, e agora saem de uma cena totalmente comprometedora juntos. Já imaginou o que aquele maluco faria se tivesse visto aquela cena em vez de mim? Ou outra pessoa, que seja, você sabia que ele tem mais informantes que o FBI? Eu estou te falando, esse mauricinho é um doido de primeira. Já ouviu os rumores sobre ele? São medonhos, dizem que ele já atropelou e matou um cara, mas a história foi toda acobertada e ele nem foi à julgamento. Teve outra vez que ele…
Liguei o carro e deixei falando. Eu não precisava saber do que era capaz; ele já tinha me deixado bem claro que o que ele quisesse, simplesmente teria. Isso não o tornava assustador para mim, pelo contrário. Até achava um pouco de graça, como se olhasse para uma criança mimada buscando qualquer coisa que acrescentasse no ego. Talvez lidar com fantasmas medonhos tenha me tirado o temor dos vivos, vai saber.
Não falei com de novo pelo resto do dia.
Talvez ela estivesse preocupada demais para me mandar uma mensagem, como se aquilo fosse chamar a atenção de mais alguém. Ela era extremamente cautelosa com imagem e reputação, e acho que deveria ficar um pouco ofendido com isso, porque a garota preferia morrer a ser vista comigo, mas sei que aquele boçal de namorado tinha algo a ver com isso. tratou de me lembrar desse fato o caminho inteiro indo e voltando do Super Nice.
Mesmo assim, senti que ela iria atender o meu pedido. confiaria em mim, seja lá como e porquê. E por conta disso, eu precisava encontrar Sandy de novo o mais rápido possível. Depois da noite passada, não a vi em lugar nenhum do campus, e isso me preocupava — a garota tinha entrado oficialmente no modo fantasma problemático.
Para definir a situação: um fantasma raivoso é algo extremamente incômodo, maçante e desagradável. Eram os responsáveis que mais tinham me ferrado até hoje, porque não se tratava mais de resolver os problemas deles, se tratava de impor limites. Depois de deixarem essa vida, os mortos que ainda não estavam preparados para deixar essa terra geralmente vagavam com uma ideia fixa na cabeça, a pendência que eles tanto precisam resolver para enfim atravessarem o limbo — ou irem para o céu, ou o inferno, ou para a próxima vida, a lista de teorias era infinita. Eles perambulavam por aí até encontrarem um pobre ser humano que, por um infeliz acaso, consegue vê-los e automaticamente ajudá-los — mais conhecidos como eu, Gina e outras pobres pessoas. Um fantasma novato era fácil de ajudar, e até tinham prioridade na minha lista de tarefas. Ao verem que o problema da sua ideia fixa havia sido resolvido, eles simplesmente partiam, e nunca mais apareciam.
O problema era quando um fantasma começava a se desviar dessa ideia fixa. Quando encontrei Sandy no dia em que morreu, ela tinha apenas uma dúvida: descobrir se Ash a matou, com intenção ou não. Porém, mais rápido do que jamais vi antes, a garota esqueceu desse pensamento e fez algo que era a ponta do iceberg de uma enorme dor de cabeça: quis resolver as coisas por conta própria. Da garota assustada que não entendia como sua vida acabou daquele jeito, ela upou para uma versão determinada e furiosa. E isso, além de grave, era muito, muito estranho.
Não é que Sandy deveria acreditar cegamente na resposta de Ash e se mandar. Fantasmas também têm direito a uma dose de justiça. Mas o jeito como ela decidiu não acreditar nele, não foi normal. Isso era de se esperar de fantasmas que estavam vagando há tanto tempo que mal se lembravam de sua identidade e muito menos do porquê ainda estavam aqui; isso os corroía tanto que os deixava totalmente surtados e perigosos, com uma única meta de perseguir, perturbar, assombrar e até matar outras pessoas. 1º regra da função mediador: nunca deixe que um Poltergeist mate uma pessoa. Isso vai além de todas as fronteiras.
Mas uma garota morta há uma semana não tinha todo aquele ódio — até fantasmas brutalmente assassinados levavam um tempo até toda a frustração vir à tona. Então, eu precisava achá-la. Sem chance de deixar uma garota morta barulhenta e despreparada zanzando por aí arrastando mesas, abrindo portas e resfriando salas. Ela podia mandar bem na telecinese, mas eu tinha mais músculos — o suficiente para pará-la por um tempo, pelo menos.
Eu ainda tinha uma aula depois que voltei do Super Nice, mas a Dra. Hannah e sua palestra sobre feminismo teriam que esperar. Deixei no mesmo prédio das engenharias e cruzei o campo de Morningside Heights, desde o primeiro edifício até o último, o que totaliza uns seis quarteirões, chamando por Sandy o tempo todo. Não queria acreditar que ela não estava por perto — isso seria fodido, muito fodido. Mas os métodos padrões de invocação não estavam dando certo, o que era péssimo, porque aí significava que eu teria de usar outro método. E nem preciso dizer o quanto era desagradável invocar um fantasma.
Deixei meu carro no estacionamento e andei até o Blue Bottle Coffee, passando pela porta da entrada bem na hora que uma chuva amena começou a cair. Tinha acabado de tomar um café, mas a verdade é que aquilo que tomei com não era café de verdade. Meu amigo gostava de cappuccino e bebidas que levavam cafeína sem necessariamente ter o sabor puro da bebida amarga, e eu era obrigado a entrar nessa onda e pedir um mocha às vezes, fazendo careta pelo leite e pelo chocolate, mas me esforçando ao máximo para suprir sua linguagem de amor tempo de qualidade. É, ele se importava muito com essas coisas.
Pedi um expresso duplo e me sentei em uma mesa ao lado da janela. A garota da recepção tentou disfarçar o olhar atravessado que lançou para mim e o curativo no nariz, torcendo por dentro que eu não fosse um meliante que, do nada, começaria a quebrar coisas. Não julgava ela — a gente via de tudo em Nova York. Tomei um gole do café e puxei o iPad, sentindo a queimação do gosto fazer cócegas na minha língua.
Decididamente, super apaixonado por café e nada apaixonado por imitações de café.
Mandei mais um e-mail para Gina. Já era o 3º desde o final de semana, e mesmo que eles fossem curtos, já significavam que eu estava um pouco apressado. “... E aí, se a situação ficar feia, vou precisar de você pra cavar uma cova. Botas de látex continuam combinando com o seu cabelo?”, mandei uma carinha sorrindo, mas creio que esse tipo de piada só tinha graça entre a gente.
O céu estava na cor de hematoma quando saí do Blue Bottle e voltei ao estacionamento, desistindo de procurar por Sandy. Quando fantasmas não queriam te atender de forma natural, não havia nada que você pudesse fazer. Aprendi isso com minha avó ao longo dos anos, mesmo que ela seja um caso muito específico na comunidade do além: só vinha quando queria, e ainda com sermão para dar. Talvez ela pudesse me ajudar a acalmar Sandy naquela situação, mas não vou contar com isso. Ela poderia dizer que eu estava sendo preguiçoso. Peguei as chaves no meu bolso ao mesmo tempo que meu celular apitou com uma mensagem, e o nome de na tela apareceu com a pergunta: "Onde você está?"
"No estacionamento, não é? NÃO SE ATREVA A IR EMBORA SEM MIM!"
“Jogo dos Knicks no Bodega 88. Bora?”
“Eu sei que você vai dizer não, mas é meu dever chamar.”
Comecei a digitar uma resposta enquanto entrava no carro, dizendo que estava com muita pressa e que ele tinha menos de 5 minutos para aparecer e não ficar a pé, quando vi uma pessoa conhecida há poucos metros à minha direita.
Estacionar atrás da pilastra todas as vezes te dava o privilégio de ver e não ser visto. Foi assim que, do outro lado do pavilhão, em uma fila de motos que preenchiam as delimitações atrás de linhas amarelas, vi Ash caminhar despreocupadamente com suas botas pesadas até se aproximar de uma Harley-Davidson e montar na sua carroceria. Na mesma hora, me abaixei no banco do motorista até que apenas a parte superior da minha cabeça fosse visível. Ele descartou o cigarro que fumava no chão e remexeu nos bolsos por dentro do sobretudo até pegar um celular. Estava vibrando alto por uma chamada recebida. Ele atendeu com um sorriso — esse cara sorria! — e começou a falar sem parar. Não deu para ouvir muita coisa da conversa; Ash sabia mesmo falar baixo, mas aquele sorriso ainda estava no rosto dele, então não dava para acreditar que estivesse falando sobre o próximo malote de codeína ou quem era o otário que estava devendo ele. Na verdade, sinto que ele não sorriria daquele jeito nem se estivesse ouvindo sobre os lucros do final de semana. Parecia um sorriso diferente, mas que todo mundo reconhece quando vê: o sorriso de quem está falando com alguém que gosta. É um tipo de sorriso que não fica só na boca.
De repente, quis que ele parasse de sorrir. Na verdade, quis que ele calasse a boca, ligasse aquela moto e vazasse dali. Porque nada que ele estivesse fazendo seria tão alarmante quanto ao que estava na sua frente — ou melhor: quem.
Sandy se materializou do nada em frente a Harley-Davidson preta de Ash, e por um momento prendi a respiração. Ele conversava calmamente no telefone, mas os olhos dela estavam fixos, arregalados, completamente medonhos, o que denunciava algo que eu já sabia, e que estava despreparado para ver:
Ela vai surtar, ela vai surtar. Eu tinha certeza disso. Imediatamente, usei toda a força estranha de minha mente para chamá-la, sussurrando quase que inaudivelmente, implorando para que ela fosse embora. Não posso dizer que ela me ignorou; em vez disso, Sandy virou o rosto lentamente para mim, e me fitou por um momento. Estava assustadoramente macabra com aquele olhar, quase abrindo um sorriso sugestivo. Balancei a cabeça inúmeras vezes em negação, cerrando os dentes. Quando ela simplesmente me ignorou e voltou a olhar para Ash, e quando as vigas de metal acima de sua cabeça começaram a tremer vigorosamente, eu soube que aquilo não ia terminar bem.
Ash finalmente pareceu perceber algo errado. Xinguei. Saiu até alto demais, mas ninguém além dela me escutaria, já que as vigas agora estavam tremendo violentamente e tentar bancar o diplomata não estava fazendo a garota parar. Mas antes disso, precisava fazer algo mais urgente, que era impedir que Ash fosse esmagado pela barra de metal que estava prestes a cair na sua cabeça a uns 8 metros de altura.
Saí do carro em um solavanco, vendo que Sandy ainda sorria daquele jeito medonho. Escutei o “crac” da viga justo no momento em que Ash tirou o telefone do ouvido e inclinou a cabeça lentamente para cima, presenciando uma das instalações cederem, e a viga ficando pendurada por um dos lados.
— SAI DAÍ! — gritei a plenos pulmões, forçando as pernas a correrem o mais rápido que conseguiam. — PARA COM ISSO AGORA, SANDY! VOCÊ VAI MATÁ-LO!
Nisso de gritar para alertar o cara, talvez eu a tenha deixado mais irritada — ou até mais ansiosa pra terminar o serviço, porque em seguida a outra instalação da viga se rompeu em um estalo e atingiu em cheio não só a moto de Ash, mas como todas as outras vizinhas à dele, causando um estrondo parecido com uma bomba e fazendo alguns dos carros acionarem o alarme pelo impacto.
A viga estava ligada diretamente a uma pequena parte da rede elétrica do estacionamento, e toda a alarde de faíscas e lâmpadas explodindo me cegaram por uns minutos, me jogando para trás. Automaticamente, protegi meu rosto com os braços, respirando poeira e fuligem. Quando voltei a mim, Sandy ainda estava no mesmo lugar com um olhar carregado de ódio e ouvi claramente um grito vindo do meio dos escombros. Levantei rapidamente e avistei Ash, que tinha conseguido pular para o lado no último segundo da queda da viga, mas não conseguiu salvar uma de suas pernas, que estava presa embaixo do enorme bloco de metal.
Uma poça de sangue começou a se formar na área onde sua perna havia sido soterrada, e vi que a barra de ferro que ligava à viga na pilastra havia penetrado logo acima do joelho. Ele gemia de horror, os olhos agitados de medo, o corpo ainda processando a dor.
— Ei, você consegue me ouvir? EI! — gritei, balanço-o um pouco para testar seus estímulos. Tateei meus bolsos rapidamente e percebi que tinha deixado meu celular no carro na pressa de correr até aqui, o que me deixou frustrado.
— Me... ajuda... — ele disse grogue, as mãos tremendo, o rosto lívido de pavor. Olhei mais de perto. A perna não tinha sido totalmente esmagada por puro milagre, mas o ferro atravessando o fêmur não era um bom sinal. — Tá doendo tanto, por favor, me ajuda! Cara, por favor...
— Fica calmo, eu vou tirar você daí. Aguenta mais um pouco! — arfei, fazendo a primeira coisa que passou pela cabeça: levantei e empurrei a viga para longe, o que não foi nem um pouco fácil. A coisa devia pesar duas toneladas, e ouvi Ash gritando quando a coisa se moveu por cima de seu pé. — Não se mexe. Preciso imobilizar sua perna.
Ele começou a balbuciar reclamações, palavras desconexas, coisas que vinham de seu delírio de dor, mas nenhuma delas foi mais alta do que a voz que disse:
— É tudo culpa sua, . — Sandy decidiu falar, depois de minutos em um silêncio tão brutal que me fez esquecer de sua presença. Ela não tinha se mexido nem um centímetro desde a queda da viga, e ainda olhava fixamente para Ash. — Você fez isso comigo! Agora se arrepende e chora pelos cantos como se eu fosse acreditar, seu miserável? Você não merece nem isso, seu filho da-
— ? O que você disse? — olhei diretamente para ela, a confusão estampada em meu rosto. Aquele era o nome dele? Como ela sabia o nome verdadeiro de Ash se tinha me deixado claro que ele nunca a contara?
Me pareceu estranhamente pertinente perguntar isso para ela naquela hora, mas é claro que foi uma péssima ideia. No instante seguinte, Ash agarrou com força a barra da minha camisa, me fazendo girar o corpo para ele. As veias em sua testa estavam dilatadas e seu rosto estava contorcido de sofrimento, de forma que eu tinha a certeza de que ele iria desmaiar a qualquer momento. Mas ainda assim, o cara abriu a boca para pronunciar:
— Como... — sua respiração estava ofegante; ele tentava desesperadamente se concentrar na frase ao invés da dor. — Como você sabe o meu nome? Com quem está falando? Sandy...
Mas ele não foi capaz de terminar a frase. Seu aperto afrouxou e o corpo desabou para trás. Merda, merda, merda. Olhei por sobre o ombro e Sandy havia desaparecido, e se eu não tirasse Ash daquele estacionamento naquele momento e o levasse para o hospital, ele poderia dar adeus à uma das pernas. Mesmo ainda debilitado pelo final de semana, fiz o maior esforço que consegui para arrastar de vez o restante do metal em cima de seu pé e consegui ver melhor o sangramento na coxa, escapando da perfuração do ferro e jorrando para o piso, empapando tanto a calça dele quanto a minha. Arranquei o casaco imediatamente, pressionando o ferimento o máximo que consegui. Se arrancasse essa barra aqui, ele morreria, mas se continuasse sangrando daquele jeito, o cara não perderia apenas a perna. Eu só precisava de um minuto para correr até o carro e pegar o celular, só um minuto.
Chequei seus pontos vitais e parei de tocar na sua perna. Me levantei e me preparei para correr de novo. Foi então que uma pancada em algum lugar da minha cabeça embaçou minha visão, me inebriando por alguns segundos. Senti minha cabeça sendo puxada para trás, e de repente estava no chão.
Tudo aconteceu em câmera lenta. Avistei Sandy e seu sorriso horripilante, irônico, debochado. Ao lado dela, um vulto negro, destemido, assustador.
Meus braços não me obedeciam, e eu sentia meu peito se afundando, e minha consciência sendo bifurcada. Como se cordas gigantes e espessas fossem lançadas em minha direção e se agarrassem a mim, e elas me puxavam para uma escuridão desconhecida. Um novo tipo de pânico me tomou. Não era o medo da morte, parecia o medo de ser... tomado. Eu sentia a tentativa de separação do meu corpo com minha alma de forma atenuante. Era desesperador, uma angústia sem fim. A escuridão foi me tomando cada vez mais, e de repente eu não via mais nada, não sentia mais nada, e estava no nada, vazio, escutando apenas uma voz que parecia tão ao longe, mas fazia todos os pelos do meu corpo se eriçarem: uma risada maléfica, inescrupulosa, cortante. E foi ficando cada vez mais longe até que não pude distinguir mais coisa alguma.
Em vez de tentar escapar da escuridão estranha ao redor — e esticar os ouvidos para captar os resquícios de Sandy e o vulto —, adentrei ainda mais nela, procurando aquele rosto, querendo tocá-lo, puxá-lo para mim. De repente, repuxou os lábios em uma linha dura, séria, os olhos azuis parados, fitando-me seriamente. Uma lâmina surgiu em um brilho intenso, rasgando sua garganta em um corte fundo e preciso que fez o sangue ser jorrado para frente, matando-a sem deixar que a garota desse um mísero grito. “Não!”, berrei, correndo desesperadamente até a imagem dela.
Uma lufada de ar invadiu meus pulmões violentamente. Fui impulsionado para frente, abrindo os olhos e dando de cara com uma luz branca e forte. Desnorteado, ofeguei com força, com dor, sentindo a brisa gelada na testa molhada de suor e o corpo inteiro tremer.
A luz. Tinha muita luz. Não mais escuridão. Aquela escuridão.
E não via mais .
Virei para o lado, tentando respirar fundo e me acalmar, abrindo e fechando os olhos, buscando reconhecer o espaço. Eu não estava mais no estacionamento. O ar era quente, mais quente do que seria um novembro de Nova York. Tudo era branco, com algumas míseras partes em azul claro, e o cheiro de álcool e látex era mais forte do que a poluição do Centro. A mente zoneada não me esclarecia muito mais do que isso, e o som de uma porta sendo aberta e algo sendo derrubado me fizeram deixar o reconhecimento para depois.
— ! — reconheci a voz de , que me pegou pelos ombros e me deitou de barriga para cima. — Meu Deus, cara, você acordou! Enfermeira, ei! Tem alguém aí? Enfe-
Enfermeira?
Puxei a barra de sua camisa, fazendo-o olhar para mim enquanto me apoiava em um braço para sentar. A força desse movimento me fez notar o cateter no nariz. E, junto com ele, logo ao lado, a infusão de soro entranhada no meu antebraço esquerdo, ligado a um equipamento de bomba. Levei a mão ao nariz, sentindo o tubo do cateter indo desde atrás de minhas orelhas até o pescoço. Tentei retirá-los, mas eu estava lento demais.
— Ei, cara, tá maluco? — afastou minhas mãos rapidamente. — Você vai ficar bem quietinho aqui enquanto eu vou atrás de uma enfermeira. Ei, tem alguém escutando? Eu quero-
— O que eu estou fazendo aqui? — puxei-o novamente, e tentei soar firme e sério, mas minha garganta era como o chão seco de um ferro velho. Meu aperto perdeu a força quando tossi descontroladamente por dois segundos. enfiou um copo de água embaixo do meu queixo, e virei aquilo de uma vez só.
— Cara, vai com calma, vai se engasgar.
Tossi mais algumas vezes.
— Fala logo, o que aconteceu? Por que eu estou aqui?
— Você não se lembra de nada?
— Lembro do estacionamento e da viga, e de que Ash estava... — interrompi minha frase antes que eu dissesse que também me lembrava de Sandy e de como ela quase o matou. — Ash! Porra, como ele está? Você pediu ajuda? Ele ainda deve estar lá, temos que ir lá! — comecei novamente a tentar retirar todas as infusões, mas fui barrado por de novo, e dessa vez ele tinha uma expressão quase amedrontada no rosto. Isso me irritou. — Cara, qual é o seu problema? Temos que ajudar!
— , isso foi há três dias. A gente já ajudou. Trouxeram vocês dois pra cá.
Pisquei, perdido. Tentei absorver o que ele tinha acabado de dizer. três dias.
Não fazia sentido nenhum.
Infelizmente, antes que eu pudesse refletir sobre isso, ou refazer todos os meus passos, uma mulher de branco entrou correndo pelo quarto, vindo na minha direção já tirando o estetoscópio da nuca.
— Há quanto tempo ele acordou? — disse enquanto pegava um pequeno aparelho de medir pressão nos bolsos.
— Tem uns cinco minutos. Eu gritei porque ele estava virado para o lado quando entrei, achei que estivesse vomitando ou sei lá. — respondeu com as mãos agitadas.
— O senhor deveria ter apertado o botão de chamada. — a enfermeira respondeu ríspida, apontando para o grande botão vermelho instalado no leito, perto da cabeceira. deu um sorriso sem graça e se desculpou. — Como se sente, senhor ?
A pergunta dela demorou um segundo a mais para chegar ao meu entendimento ainda bagunçado.
— Estou ótimo, nunca estive melhor. Inclusive, acho que não preciso de mais nada disso. — apontei para os tubos e tentei me levantar, mas ela também não me permitiu.
— Não tenta dar uma de esperto, querido. Você chegou aqui desacordado, com vários hematomas, uma costela quebrada, pontos abertos, uma tentativa falha de colocar um nariz quebrado no lugar, lotado de aspirina no sangue e perdeu a consciência por três dias. Sabe o que significa isso, não sabe? Seu número 1 no rank com certeza deve saber. Mais de 6 horas sem responder a estímulos é classificado em coma. Então, mesmo tendo feito todos os exames, sinto informá-lo que só sairá daqui com a permissão do médico. — ela recitou tudo isso sem ao menos olhar para mim, apenas anotando algo na prancheta de plástico em sua mão e colocando-a de volta na base da cama. — Eu vou chamá-lo agora mesmo. Sugiro que não faça nenhuma tentativa de fuga, será pior para o senhor.
Em seguida, ela já estava desaparecendo pela porta. Fiquei estático, ainda com as palavras de fritando na minha mente. Três dias. Coma. Tentei desesperadamente me lembrar de algo, mas não vinha nada. Eu não poderia ter desmaiado por todo aquele tempo. Aquela sensação, o sufoco, o vazio... eu ainda podia senti-los, como se tivesse passado por isso há 10 minutos.
Me recostei na cabeceira da cama, me empenhando para não dar uma de Rick Grimes e sair cambaleando pela porta daquele hospital sem pedir permissão, e olhei novamente para — e, de repente, para algo que estava atrás dele.
— Cara, você sabe o susto que me deu? — ele voltou a falar, sentando-se na ponta da cama ao lado dos meus pés. — Foi uma loucura chegar lá e ver você naquele estado, e o Ash também... Foi muito sinistro! E todas aquelas pessoas em volta, a ambulância, os bombeiros e todo o caos para tirar-
— Quem mais sabe que eu estou aqui? — interrompi, apreensivo.
— Acho que a Columbia inteira. Ou talvez toda Manhattan. Seu fã clube aumentou drasticamente o número de membros. — ele digitou algo rápido no celular, provavelmente procurando o Twitter e mais daqueles lotes de comentários que eu nunca entendia. Por fim, virou a tela na minha direção, mostrando uma pequena manchete escrita em linhas muito pequenas: Acidente no Pavilhão de Washington Heights. — O Citizen te acha um herói.
— Merda. — resmunguei, passando as mãos na cabeça. — Divulgaram meu nome? E os meus pais? Diz que eles não sabem disso.
— Tenho 99% de certeza que não. Quando eles internam alguém com mais de 21, qualquer pessoa pode ser responsável por ela. Então parabéns, está olhando para o seu benfeitor. — sorriu, mas não parecia totalmente feliz. — Mas ficar mais de 48 horas sem responder nenhuma mensagem da Adrian é tão perigoso quanto um atentado terrorista. Por isso o 1%, caso você não tenha entendido.
— Obrig-
— Nem pensa em me agradecer por isso, seu idiota. Se você demorasse mais um dia pra acordar, eu teria de avisar os seus pais, mesmo sabendo que sua mãe me colocaria numa lápide. Essa foi, de longe, a situação mais insana que você se meteu.
— Eu sei. Eu não te culparia por isso. — falei, repuxando os lábios pra esconder o quanto aquilo seria fodido. Anakin e Adrian não perderiam tempo em cruzar o país inteiro para estar ali. Tentariam me levar de volta a todo custo. Me diriam que Stanford era melhor – e mais perto deles. Minha vida em Nova York acabaria em um piscar de olhos.
Mas meus pais… Meus pais seriam bem ruins. Mas outra pessoa seria pior.
— Você pode buscar mais água pra mim? Ainda tô com sede. — pedi para , tentando manter meu olhar perfeitamente reto em sua direção.
Ele respirou fundo.
— Eu busco, se me prometer que não vai tentar fugir daí.
— Não vou. Aquela enfermeira me deu muito medo.
— É, em mim também.
Quando ele pegou o copo da minha mão e se mandou, esperei alguns segundos para começar a falar.
— O que a senhora está fazendo aqui?
Ela não me respondeu de imediato. Em vez disso, apenas se aproximou da minha cama e colocou a mão no meu rosto, daquele jeito maternal. Geralmente eu conseguia ler seus olhos, mas hoje ela parecia mais séria que o normal.
— Meu querido. Estou tão, mas tão feliz de ver você acordado. Não sabe o quanto eu vivi na agonia durante esses dias.
Coloquei minha mão sobre a dela, acariciando seus dedos finos com rugas quase invisíveis. A sensação de tê-la por perto naquele momento me trouxe um pouco de alívio, como se a presença dela me fizesse perceber algo que eu demoraria a notar sozinho — eu estava vivo. Estava vivo depois da experiência mais bizarra que já passei e que não poderia incluir em nenhum relatório médico. Só ela entenderia isso. Ou, pelo menos, me escutaria de verdade, sem que eu parecesse um completo maníaco.
— Como você está se sentindo? — vovó perguntou enquanto se sentava ao meu lado. Suas mãos saíram da minha bochecha e apertaram meus dedos com força.
— Estou bem, eu acho. Foi muito rápido, ainda não consegui entender tudo que aconteceu. — suspirei, coçando os olhos levemente. Tinha certeza de que eu parecia mais cansado do que realmente estava. — Onde você se meteu? Te chamei várias vezes e você não apareceu.
Ela desviou os olhos, envergonhada. A culpa era o próximo sentimento que ela deixou transparecer na expressão. A mão que segurava a minha estreitou o aperto e vi seus olhos ficarem marejados quando teve coragem de me olhar.
— Eu não sabia. Eu não fazia ideia. Estou tão arrependida. — seu nariz de repente estava vermelho, o que era um detalhe minimamente chocante para um fantasma. Sempre soube que vovó não era um espírito comum, mas algumas coisas nela ainda me surpreendiam muito. — Eu devia ter escutado, deveria estar lá quando tudo aconteceu. Eu conseguiria te salvar, conseguiria…
— Tá tudo bem, vó. A questão não era minha segurança, eu estava tentando ajudar um cara. Ele sim podia ter morrido. Eu só… — abri e fechei a boca. As imagens eram um completo borrão maluco na minha mente. — Eu só estava lá. E de repente não estava mais.
— Consegue se lembrar de alguma coisa? — minha avó estava mais perto, agora cravando aqueles olhos enormes no meu rosto atentamente. — Ouvi um daqueles médicos falando, você não foi atingido pela viga e nem estava perto quando o disjuntor explodiu, mas eles te acharam desacordado. Sem nenhuma explicação. — o lábio tremeu quando diminuiu o tom na última frase. Tive vontade de rir, se eu não soubesse que ela me bateria por isso.
— Talvez eu tenha entrado em choque? — sugeri, mas pelo olhar dela, não era hora de ironias. — Tudo bem. Eu vi a Sandy. Ela estava tentando matar o Ash, ou , seja lá quem for. Eu tentei impedir, e ela causou essa confusão. Mas ela estava diferente, parecia... Transtornada. Com um ódio anormal. Tenho certeza de que ela o mataria se eu não estivesse lá. — suspirei. Vovó continuou parada, agora franzindo a testa de leve. — Isso não devia acontecer, certo? Sandy enlouqueceu muito rápido, rápido demais pra uma garota que acabou de morrer. Achava que os mortos ainda levavam um tempo até chegarem nesse comportamento, mas ela se lembrava de tudo, até sabia o nome de Ash. Nunca vi uma coisa dessas antes, foi bizarro.
O rosto dela perdeu todos os traços de cor que antes apareciam de vez em quando. Vovó ergueu mais os ombros, a boca prensada em uma linha fina enquanto pensava.
— Entendi. É mesmo… estranho. — concluiu, os olhos perdidos em algum ponto do colchão. — Pra ela ter conseguido mover uma estrutura tão grande e causar aquela calamidade, não consigo nem imaginar quais forças estão atuando sobre essa garota. O mundo invertido é cheio de segredos.
Normalmente, eu daria uma risada por vê-la chamando o além de mundo invertido — a única analogia pop que ela tinha aceitado de mim na vida —, mas sua expressão era tão fechada que não segui em frente. Ela estava com raiva de Sandy? Raiva de Ash? Raiva de si mesma por não ter aparecido quando chamei? Não parecia nenhuma dessas coisas e parecia todas ao mesmo tempo. Nem posso dizer que era raiva. Parecia mais que ela estava… intrigada. Uma preocupação evidente no meio das sobrancelhas juntas.
Mas eu já estava bem. Ela não precisava se preocupar comigo. E nem com Sandy e seu ódio estranho e assustador.
De repente, pensei sobre o que vovó disse. E fez sentido. Sandy estava perdendo a cabeça, mas não poderia ter ficado desse jeito sozinha. Não sabia explicar o conceito de forças no mundo paranormal, mas a lembrança do vulto estranho ao seu lado atravessou minha mente, e em como vi aquela mesma aura negra outras vezes antes disso. Olhando para . Querendo matá-la.
Meu Deus.
— Pode não ter sido Sandy quem fez isso comigo. — soltei de repente, os olhos distraídos nos tubos de infusão nos braços.
— Do que está falando? — não vi a cara que ela fazia, mas senti ela se aproximando de mim. — Só tinha você e aquele rapaz desacordado no outro quarto, e duvido que ele pudesse se levantar com aquela perna pra te atacar.
— Não. Não ele.
— Então quem? Você não me disse que estava lidando com duas assombrações.
— Não estou. Quer dizer... Mais ou menos. Tem algo acontecendo que estou tentando descobrir o que é.
Ela não se moveu e ficou séria, esperando que eu continuasse. Contei tudo, desde que vi a aparição pela primeira vez na festa da Dungeons até a vez no bar. Tentei detalhar a forma como aquele fantasma era diferente, estranho, como a força que emanava dele era assassina e sombria, mas não tenho certeza se fui bem claro. As sensações eram complexas demais para colocá-las em palavras.
Na minha frente, vovó passou de parcialmente relaxada para totalmente rígida. A mão que segurava a minha foi para o peito, e jurei que a vi tremendo, não só na região dos dedos, mas em todo o corpo. De repente, ela estava de pé, e se antes estava pálida, agora parecia quase se fundir à parede de gesso.
— O que foi? O que a senhora tem? — perguntei ansioso, e me arrastei para chegar ao pé da cama. — Você já viu isso antes?
— Digamos que sim. — ela sussurrou, virando-se para a janela, os olhos cravados no tempo cinzento lá fora. — E isso não é nada bom.
— O que ele é? Ou melhor, o que ele quer com a ? Como eu me comunico com ele-
— Você não vai.
— O quê? — franzi o cenho. Ela voltou a se aproximar de mim e a pegar em minhas mãos, dessa vez com mais urgência e medo.
— Você vai se afastar dessa garota imediatamente, ouviu? Achei que tinha me dito naquele dia que ela não era importante, que você nem a conhecia. Como pode mentir pra mim desse jeito?
— Mas eu não menti, nada disso mudou. A gente só se encontrou por acaso, ela conhecia a Sandy, nós não-
— Não existem acasos, ! Quantas vezes vou ter que te explicar isso? — minha mão foi apertada com força, igual os dentes dela estavam fazendo uns com os outros naquele exato momento. Quase fiz uma careta, mas não me mexi. A voz dela soou ainda mais firme: — Você vai ficar longe dela e essa coisa nunca mais vai se aproximar de você de novo, me entendeu? Isso não tem nada a ver com você, , e a sua segurança é a minha maior prioridade, então estou exigindo: fique-fora-disso.
De acordo com os meus cálculos, 100% das vezes que eu ignorava um alerta — ou exigência — da minha avó, eu acabava me dando mal. Nunca tive motivos para duvidar dela, a velha simplesmente sabia de tudo. Quando viva, ela levava o nome de Madame Uhura e trabalhava como cartomante em algum lugar das ruas de Seul. Fora esse detalhe e histórias de suas experiências com os mortos, eu não sabia muito mais. Também não adiantava muito perguntar: sua capacidade de se esquivar de assuntos importantes era mágica.
Tinha 4 anos quando ela apareceu para mim pela primeira vez, não para pedir ajuda ou coisa do gênero. Foi apenas um: Oi, pequenino. Você é o , não é? Eu sou a sua avó.
Minha primeira reação foi sair correndo. Não por medo dela, longe disso. Mas a verdade me provocava um medo ainda mais profundo do que os fantasmas. A realidade de estar frente a frente com alguém que tivesse qualquer relação sanguínea comigo era apavorante. Porque olá, eu estava em um orfanato. E, naquela idade, já tinha ouvido o suficiente que crianças que moravam num casarão velho com outras crianças eram a escória da sociedade. Gente que não pertencia a lugar nenhum. Gente que ninguém queria.
Tive minhas dúvidas de vez em quando, e às vezes fazia perguntas chulas, do tipo: “quem são meus pais?”, mas não sabia se realmente queria as respostas. No fundo, não era tão ruim que ela não colaborasse nessa parte. Talvez estivesse tentando me proteger daquela afirmação esmagadora que incomoda até quem não tem nada a ver com o assunto: seus pais nunca te quiseram. Na verdade, pularam de alegria quando se livraram de você. Você foi o acidente repentino na estrada, o corpo que eles precisavam se livrar jogando do penhasco. Resolvi deixar para lá. Por mais estranho que pareça, a intenção da Madame Uhura nunca foi atender às minhas necessidades parentais, mas sim me situar sobre o meu dom e me ensinar a lidar com os fantasmas em suas diferentes facetas. Tinha sido assim desde o primeiro dia. Sem mais perguntas sobre quaisquer coisas da minha provável origem.
Sabia que essa história não colava para todo mundo. Gina mesmo demorou a aceitar que eu confiasse cegamente em uma fantasma velha que alegava ser minha avó, assim, sem mais nem menos. Estávamos cansados de saber que fantasmas com muito tempo de planeta Terra diziam qualquer coisa, faziam qualquer coisa. Mas não conseguia explicar. Sentia uma coisa estranha entre nós, uma conexão espiritual diferente de tudo que já imaginei sentir, e me considerava cético demais nessas coisas. Mas algo profundo circulava a Madame Uhura e me fazia confiar nela de olhos fechados, mesmo que tivesse de confiar no improvável — tipo o lance de ela ser minha avó biológica e de já ter visitado uma floresta mística. O conhecimento que ela tinha sobre o outro lado era extenso, e tinha certeza que existia mais coisas escondidas em algum lugar daquela memória infalível, coisas que ela mascarava para mim. Tipo aquele papo de agora.
O jeito como suas mãos ainda estavam me apertando indicava que ela estava no ápice da aflição, de uma forma que eu nunca vi antes. Nunca imaginei que veria algum dia.
Apesar disso, não consegui controlar a sensação opressiva que me tomou. Aquilo parecia errado, injusto, cruel.
— O que você está dizendo? — soltei minhas mãos, explicitamente indignado. — Você entendeu a parte de que ele vai matá-la? Ele só está esperando o momento certo, eu sei disso, e não posso deixar acontecer.
— , a sua missão é com os mortos. Você precisa ajudá-los a seguir em frente, a encontrar a paz. Pessoas vivas irão morrer um dia, você não pode interferir nisso, mexe com o equilíbrio da Natureza. O que você viu não é um fantasma, um Poltergeist ou um espírito perdido, então sua jurisdição acaba. Me entendeu? Pode ajudar essa menina depois da morte, caso ainda encontre a alma dela.
— Como é que é? — falei um pouco mais alto do que pretendia e puxei o braço com força. O bombeador de soro quase se desequilibrou e caiu. Olhei automaticamente para a porta. Não demoraria muito para aparecer, mas não dava para encerrar aquela conversa agora. Não quando minha avó, a avó que eu sempre conheci, com a mesma aparência havia décadas, tinha um olhar tão frio no rosto que congelava o quarto inteiro. — Você consegue se ouvir? Acabou de dizer pra eu deixar a garota morrer. Isso não faz sentido, a primeira regra…
— Toda regra tem exceção, , e essa não é diferente. Espíritos malignos existem, e são o próprio terror encarnado. Não trabalham para a estabilidade do Cosmos, não fazem parte nem da Vida e nem da Morte, são outra coisa que definitivamente não podemos lidar. Se algum deles está atrás dessa garota, não é algo aleatório, o que significa que não há nada que você possa fazer! Estou mandando que você se afaste dessa menina agora mesmo, ou ele vai te matar também!
Fiquei parado, o sangue fervendo, a agulha no meu braço agora frouxa, a veia latejando. Não estava entendendo droga nenhuma, e isso estava me frustrando mais do que pensei.
— Você nunca me contou isso. — trinquei os dentes, sentindo o despertar de uma afobação negativa. — Sempre disse que espíritos malignos eram aqueles pobres coitados que jogavam facas nas pessoas, soldados da Primeira Guerra, os que possuíam pessoas-
— O maligno tem várias camadas, . E esses são só a superfície, a pontinha do iceberg. A coisa que você viu é o lado mais escuro da existência.
Um pedaço de vento frio arrepiou a base da minha nuca, e meus dedos ficaram rígidos como a barra de ferro daquela cama. De repente, minha avó se parecia com um fantasma de mentira, aquele tipo de assombração dos filmes de terror, e não a Madame Uhura de sempre. Isso supostamente me deu o direito de sentir raiva.
— Você não tá falando nada com nada. O que a pode ter feito pra uma coisa dessas estar atrás dela? E mesmo que tivesse jogado alguém no rio ou desmatado a Amazônia, não podemos deixar alguém ser morto por uma criatura que nem respira, não faz parte do trabalho.
Mais tarde, tenho certeza que ficaria chocado comigo mesmo por dizer isso. Na verdade, por sentir também. Nunca me importei com o Código de Honra dos Mediadores, que, no caso, eram as diversas regras e alguns macetes para despachar almas penadas do nosso plano, mas uma coisa não saía da minha cabeça recentemente: a sensação macabra que comprimia meu peito toda vez que lembrava daquele indivíduo e sentia sua intenção de matar. Um sentimento verdadeiro, real, que curiosamente me fazia querer sair do “agir por agir” nessa missão maluca de guiar fantasmas e fazer alguma coisa que impediria um desastre.
E, bom, eu podia não ter nada a ver com , mas me parecia que a garota realmente precisava de ajuda, e não ser jogada nos braços da morte.
A boca de vovó balbuciou baixinho coisas que não consegui ouvir, mas seus olhos estavam tão fixos nos meus que, em um instante, vi sua imagem duplicar e borrar, uma pontinha de vertigem querendo se infiltrar no meu cérebro e transformá-lo em gelatina. Perdi um pouco da força nos braços, mas a sensação logo passou. No minuto seguinte, ela estava mais perto de mim.
— Isso não pode mais acontecer, . Desde a primeira vez que falei com você naquele orfanato, desde a primeira vez que te vi, durante todo esse tempo, fiz de tudo para você nunca encontrar nenhum deles. Nenhum. A essa altura, ele já sabe quem você é e das coisas que não pode fazer a você, mas não significa que não pode tentar. Como ele já tentou. Sou uma idiota, como não pensei nisso antes? Eu sabia. Sabia que algo tinha acontecido… — ela andou pra lá e pra cá, falando sozinha. Aquela vertigem estava se transformando em sono.
— Do que você tá falando agora? — franzi o cenho, talvez mais por cansaço do que curiosidade. Ela se lembrou da minha presença e voltou a me tocar, dessa vez no ombro.
— Eu sabia, . Sabia que tinha algo errado… com a sua alma. Ela não parecia estar aqui quando eu cheguei, antes de você acordar. Meu Deus, isso é muito perigoso! Você não pode mais se envolver com essa história. A garota deve morrer em, no máximo, 1 ou 2 meses. Não vai demorar muito, então não precisa se preocupar. Agora só quero que você esqueça isso e volte a dormir.
A lembrança da escuridão, do medo e do vazio vieram à minha mente de novo, tentando apagar tudo que eu estava pensando antes, todas as palavras que eu ainda diria. Senti minha cabeça, involuntária, balançar a cabeça em um sim, e o corpo voltando a deitar na cama, confuso, sem entender porque eu não sentia mais raiva. “Algo de errado com a sua alma” com a sua alma, com a sua alma… um frio congelante atrofiou todos os meus músculos. Soube imediatamente que meu coma não era um coma. E soube que aquilo era mais grave e assustador do que imaginei.
— Ela é só uma garota. — ouvi minha avó murmurar, mas a voz estava muito baixa, quase dentro da minha cabeça. — Precisa deixar que ela arque com o destino dela. Prometa que vai deixar.
Demorei um tempo muito longo para concordar com a cabeça em um movimento duro, e tinha certeza do desgosto ardente estampando meu olhar, mas não tive tempo de reclamar ou questionar sobre mais nada porque, no momento seguinte, e o médico entraram na sala, vovó desapareceu e eu apaguei.
Meu celular estava oficialmente morto quando o resgatei de dentro de um saco plástico, junto com as minhas chaves, carteira e tudo que estava nos meus bolsos no dia do acidente. Por mais que eu tenha protestado, não recebi alta no dia que acordei e ainda me prenderam por mais 16 horas para uma “observação obrigatória e eficiente”. Nesse meio tempo, fez o favor de ir ao meu apartamento pegar uma muda de roupa e trazer o meu carro. Era o início de uma noite fria quando eu troquei o traje hospitalar por jeans e jaqueta, pronto para ir embora. Pelo menos, todo aquele tempo no hospital tinha me renovado totalmente. Eu não sentia mais dores e os hematomas que ganhei na Dungeons desapareceram como se nunca tivessem existido. Foi como matar dois coelhos numa cajadada só, ainda que indiretamente.
Tive o impulso de perguntar à enfermeira que fazia minha baixa como estava. Ela disse que estava tudo bem — o sujeito desmaiou de dor várias vezes no caminho até o hospital e teria de usar muletas por um tempo, mas não corria risco de vida. No fundo, torci para que ele estivesse sem memórias dessa baderna toda, assim não poderia se lembrar de mim e nem que eu sabia seu nome verdadeiro, e muito menos que chamei Sandy na sua frente. Aceitaria o posto de herói anônimo com muita satisfação.
entrou no quarto assim que eu terminei de colocar o coturno.
— Nunca pensei em te contar isso, mas preto com cinza é bem cafona.
Revirei os olhos.
— O que faz aqui? Eu disse que não precisava vir me buscar, estou bem pra dirigir. Posso ir pra casa sozinho.
— E quem disse que você vai pra casa? — ele sorriu. — Pensei que não seria nada mal se a gente fosse comemorar sua alta depois de todo esse susto. E ah! — ele levantou o dedo assim que abri a boca. — Antes que você seja um chato, eu trouxe alguém pra me ajudar a te convencer.
Abri a boca para reclamar, mas só consegui abri-la ainda mais ao ver Gina entrando pela porta. Ela correu e me envolveu em um abraço apertado, dando uma surra em todos os meus sentidos ainda um pouco lentos com o cabelo preto que cheirava a sândalo, o perfume de capim-limão, e o casaco com pedras brilhantes. Seus lábios se aproximaram do lóbulo da minha orelha, onde ela murmurou um “você está ferrado” com uma voz suave e, logo depois, se afastou para encostar a boca na minha em um selinho demorado.
— Feliz em me ver? — disse, com um largo sorriso.
— Claro, mas... — balancei a cabeça e olhei feio para .
— Ei, não olha pra ele desse jeito! Se não fosse por , eu jamais ficaria sabendo dessa sua tentativa de fazer parte dos Vingadores. Tentei te ligar um milhão de vezes e nada, já estava achando que você tinha morrido. Aí ele me liga e vem com essa! — Gina bufou.
— Foi mal, estou meio sem celular. — dei de ombros. — Você está de folga? Não queria te receber num ambiente desses. — apontei para o quarto.
— Você sabe que tiro folga quando eu quero. — ela me deu uma piscadinha. — Mas sim, já estava planejando vir te ver há um tempo. E trouxe presentes. — Gina ergueu uma sacola de papelão que trazia em uma das mãos. — Então, gatinho, você não tem opção de rejeitar a nossa noitada de hoje.
sorriu empolgadíssimo, assentindo com a cabeça várias vezes. Sair com ele e Gina seria uma receita para o desastre — e uma grande ressaca —, e normalmente não me importaria com isso, mas senti o impulso de negar. Parecia existir algo muito importante que eu precisava pensar naquele momento, mas não sabia o quê. Como se eu tivesse esquecido uma palavra e meu cérebro estivesse se contorcendo para lembrar.
Por fim, acabei aceitando, o que rendeu gritinhos de e um enorme sorriso de Gina.
Em menos de 1 hora, estava apertando o Jeep entre dois carros no estacionamento abarrotado e sem organização alguma do DazzleBottom, no East Village. As batidas da música eletrônica podiam ser ouvidas a cinco quarteirões de distância e as pessoas se amontoavam na entrada, barrada por dois caras enormes e mal encarados, típicos da vida noturna de Nova York. Gina bateu a porta quando saímos e ajeitou sua blusa, um tecido dourado brilhante em frente única, grudado de uma forma muito inteligente para não deixar escapar mais do que deveria. Ela pegou na minha mão, me puxou para a entrada e veio atrás da gente.
— É... Acho que tá bem cheio, que tal nós irmos pra outro lugar? — comentou ao ver a enorme quantidade de pessoas na fila (que não era bem uma fila quando a galera não sabia ficar em linha reta).
Gina riu, virando-se para ele.
— Você não aprendeu nada, não é?
Em seguida, minha amiga me soltou e andou até os seguranças, marcando o asfalto úmido com as solas de seus saltos extremamente finos enquanto caminhava com elegância e muita sensualidade — tudo que Gina fazia era sensual. Ela costurou a multidão abarrotada, que mal conseguiram levantar a voz para lançar uma vaia, e chegou na frente dos caras de preto. Depois de uma conversa particular e muito rápida, os grandalhões simplesmente desataram a faixa da porta, abrindo passagem para que ela entrasse. abriu a boca chocado e eu apenas ri, puxando-o pelo cotovelo quando Gina acenou para que nós seguíssemos em frente.
— Qual é dessa vez? O dono daqui é seu cliente? — perguntei na escuridão azulada do hall, já começando a falar mais alto por causa do som.
— Eca, não! — ela fez uma careta. — Mas ele gosta das minhas apresentações a ponto de me dar um cartão vip. — um cartão roxo em neon estava brilhando entre suas unhas pintadas de vermelho.
— Maneiro! — gritou ao nosso lado. — Posso ganhar um desses também?
— Se conseguir encontrar uma sugar mommy disponível onde estamos indo, você vai poder tudo, lindinho.
Balancei a cabeça e ri. Gina devia pensar bem antes de falar aquelas coisas com — ele tendia a acreditar.
Ao entrar na arena da boate, quase perdi o fôlego. Não sabia se era o efeito de 3 dias no hospital e 2 deles completamente apagado, mas as luzes coloridas e spotlights piscantes me causaram uma certa fotofobia momentânea. Pisquei com força, sentindo uma dor estranha por trás dos olhos, de repente me lembrando aleatoriamente do dia anterior, quando minha avó foi me visitar assim que acordei.
Pisquei de novo.
Minha avó foi me visitar?
— Ei. — Gina agarrou minha mão e me virou para ela. Mal percebi que parei de andar. — Tá tudo bem? Quer uma água?
A música voltou com tudo aos meus ouvidos, e as luzes se espalharam em uma explosão única na minha frente, não me incomodando mais. A sensação esquisita tinha passado, mas ainda assim falei:
— Seria ótimo.
O lugar estava lotado, com os ombros batendo aqui e ali, e parecia mais animado do que nunca. Gina usou seu cartão mais uma vez para nos levar ao final de uma escada, onde nos sentamos em uma mesa redonda com assentos de sofá mais confortáveis do que na minha casa. Imediatamente, um cara montado em um smoking (só que sem a parte da camisa) colocou um drink vermelho com frutas à nossa frente, 3 garrafas de água, uma mini tábua de frios e um cardápio encouraçado. Gina gesticulou algo para ele que, de novo, não consegui entender.
— Uau! O que você é, algum tipo de magnata desconhecida? — perguntou, tomando um grande gole do drink.
— Tenho poder sobre os magnatas, isso conta? — Gina levantou a sobrancelha e tenho certeza de que ficou excitado. Ele era o tipo de pessoa facilmente surpreendida, e minha amiga se divertia muito com isso. Puxei uma das garrafas de plástico na mesa ao mesmo tempo que 2 dançarinas se aproximaram da nossa mesa, vestindo nada mais que vestidos colados, máscaras na área dos olhos e pele brilhando em glitter.
— Oi, Leslie. E Leslie. — Gina cumprimentou as duas. — Se divertindo hoje?
— Tudo na mesma, Gina. Soube que veio com visita… — uma delas espichou os olhos pequenos por trás da máscara para eu e . Mais perto da luz, ela tinha algumas mechas loiras nas pontas do cabelo. Podia ser a Leslie nº 1.
Gina abriu um sorriso largo.
— Esses são e , uns amigos nerds da Columbia. Quiseram um pouco de diversão no sábado à noite.
— Universitários, é? — Leslie nº 2 falou, com um sorriso sugestivo. Essa não tinha mechas loiras, e sim avermelhadas, mas a postura, os ombros, o queixo e o nariz eram iguais à outra. Como gêmeas idênticas. — Então sabem como beber.
— E dançar. — Gina levantou o indicador, e o apontou para . — Esse daqui especialmente já veio louco por isso. Que tal vocês mostrarem pra ele as últimas tendências da pista de dança?
Elas olharam para como leões que avistam um filhote de cervo. O que não tinha problema nenhum, porque ele adorou isso. Certamente, Dançar Agarrado Com Duas Gêmeas Gostosas era um dos itens da lista dele de Coisas Que Vão Salvar Meus 20 e Poucos Anos.
— Vai ser um prazer, gracinha.
passou por um misto de expressões até pegar na mão estendida da garota e se deixar levar para a escada íngreme, direto para a vastidão das luzes fortes e do som explosivo. Algo que me dizia que eu não o veria de novo até amanhã bem depois do café.
— Você sabe que ele vai fazer um altar com a sua foto lá no alojamento depois disso, né? — murmurei para Gina e bebi mais um gole de água. Ouvi a risadinha espalhafatosa dela.
— Interessante. Achei que ele já tivesse feito isso depois de me ver dançar.
O garçom foi até nossa mesa novamente, dessa vez trazendo um enorme balde de gelo repleto de uma mistura de cervejas caras e whiskey caro que eu chamava de Lavagem Cerebral. Logo que ele saiu, Gina chegou mais perto de mim no sofá acolchoado e se curvou para perto da minha clavícula, os olhos verdes cobertos de sombra escura e delineado impecável.
— E então, quer começar a me contar de livre e espontânea vontade ou vou ter que te embebedar pra isso? — perguntou enquanto começava a encher o copo.
— Acho que é melhor você começar, Lasser. O que o dono daqui é mesmo seu?
— Cliente do clube, já disse. — estreitei os olhos. Ela bufou. — Tá bom. Um cliente do clube com uma viúva muito, mas muito brava, que ameaçou revelar a senha do cofre ultra secreto dele e espalhar do outro lado da cidade, pra concorrência perigosa de Gettysburg. Você acredita nisso? Existem mafiosos na Pensilvânia.
— Jura? Nenhum professor Keating que fica recitando poesia pra mauricinho?
— Infelizmente não. Mas, bem, tem muitos andarilhos. Guerra de Secessão e tudo mais. Fica um monte deles ali em volta do Museu Memorial, é um saco pra passar despercebida.
Gina verteu uma dose do whiskey sem nem esboçar uma careta. Minha tolerância ao álcool era a de uma criança perto da dela.
E só ela chamava fantasmas de andarilhos.
— Então você contou pro chefão que a ex mulher assassinada dele-
— Assassinada não. Embolia pulmonar. Ela exagerou na lipoaspiração.
— Isso foi bem abaixo do que eu esperava. — arqueei uma sobrancelha, aceitando a outra dose que ela encheu. — Ele surtou muito?
— O normal. Ele veio da Virgínia, sabe como é. Esse povo do sul acredita em mais folclore do que a gente, só precisei explicar que a esposa falecida dele veio me contatar e que eu só estava ali porque precisava, que era um tipo de trabalho e um trabalho digno, sem envolver muita grana e nada de tabuleiro Ouija. Falei das exigências e agora metade da fortuna dele foi pra instituições de caridade e ele está proibido de vender qualquer grife da esposa mesmo que passe fome. E ah, cartão vip com all inclusive pelo resto da vida. Isso já foi ideia minha. — ela piscou novamente, e sorriu de um jeito que me fez lembrar dela quando éramos crianças, no interior de Sacramento. — Agora, a sua história.
— Não tenho nada pra contar. — dei de ombros e engoli a dose. Gina franziu os lábios com gloss brilhante.
— Você acha mesmo que vou levar numa boa o fato de ter ido te visitar em um hospital depois de ter ficado em coma? Acorda, . Isso não é normal nem no nosso meio.
— Foi só um acidente.
— Não foi um acidente normal. Atravessar fora da faixa e ser atropelado é um acidente normal. Engasgar com azeitona é acidente normal. Desmaiar depois de salvar um cara de ser esmagado por uma viga? Com quem acha que está falando? — Gina soltou um resmungo que não deu pra entender enquanto colocava um canudo colorido cheio de curvas em espiral dentro de uma taça funda com whiskey. Logo depois, ela já estava me encarando de novo, esperando uma resposta.
— Não sabia que era tão bom em repassar notícias.
— Tudo que esse garoto faz de bom tem a ver com você. E ele também me disse que o tal do Ash estava em algum quarto especial perto do seu, um com mais espaço e TV de tela plana. Ele é cheio da grana ou o quê?
— Ah, ele tem muita grana, sim. — balancei a cabeça. — Mas não fiz isso por ele, nem conheço o cara. Fiz porque ele morreria em 10 segundos se eu ficasse parado, e se não fosse pela viga, seria pela ex-namorada morta que soltou aquilo em cima dele.
Gina ficou interessada. Aquele brilho no olho dela não escondia a sua empolgação em toda aquela coisa que parecia estranha ou minimamente inexplicável para os olhos humanos.
— A garota fantasma, a tal da Sandy dos e-mails, é isso? Foi culpa dela isso ter acontecido com você?
— Não. Não exatamente… — desviei os olhos para o copo vazio. Poderia dizer que sim, tudo era culpa de Sandy, e limitar o assunto a isso. Poderia dizer que não tinha nada estranho naquele dia. Mas eu não era bom em mentir para Gina. Para o resto do mundo, sim. Para a única pessoa que compartilhava essa esquisitice comigo, não. — A gente tem que falar disso agora? Tá tocando Akon, pelo amor de Deus. A gente devia tá bebendo tequila e rindo do dançando. Ele sabe uns passos de reggaeton e acha que toda música combina com isso.
— Tá de brincadeira? Você estava no hospital, caramba.
— Já fui parar no hospital mil vezes, Gina. Quebrei o braço 3 vezes só no 8º ano, caí da arquibancada no ensino médio e aquele filho da puta da fazenda de gado perto do Melbourne tentou arrancar a minha orelha. Ir para o hospital não é nada. — respondi, me virando para ela. — Você vai saber de tudo, é só que agora, as coisas estão meio… Apagadas. Não sei. Ainda tô um pouco confuso.
Ela suspirou forte.
— Talvez você possa-
— Não, Gina. — olhei para ela. Não sabia exatamente como estava a minha cara, mas falei o mais sério que consegui. Não queria falar daquilo. Mal lembrava do que tinha acontecido, então, de que valeria o meu discurso?
Por fim, ela sacudiu a cabeça e largou o copo na mesa.
— Você está mesmo bem? — perguntou baixo, mas ainda assim pude entender seus lábios. Ela levou uma das mãos na lateral do meu rosto, acariciando-o. Só concordei com a cabeça. — Então é o que importa agora. Eu senti uma saudade fodida de você e isso significa que não vou ficar perdendo tempo vendo se esfregar nas gêmeas. Anda, vem comigo, nossa noite vai ser incrível.
Uma noite incrível ao estilo Gina Lasser era uma série de eventos imprevisíveis. Apesar disso, deixei que ela me carregasse escada abaixo para o centro da pista de dança, agora mais abarrotada de gente, com mais seguranças flanqueando cada ponto cardinal do salão, para o caso de algum espertinho tentar sair sem pagar a comanda. Chegamos no balcão de um bar um pouco afastado da bagunça, com amostras de garrafas pequenas e arrumadas nas prateleiras, que tomavam a parede inteira.
Estava muito disposto a entornar qualquer bebida pela frente, mais do que já estive na vida, então não tive preferência. Precisava desviar meus pensamentos do presente, daquela sensação esquisita que me dizia que eu estava perdendo alguma coisa. Deixando algo para trás. Ou alguém.
Sempre tive um total de zero habilidades de dança, mas eu perdia toda a minha decência com Gina e doses de José Cuervo. A quantidade de pessoas não permitia que nos mexêssemos livremente, mas o trunfo dela era sempre o mesmo: dançar em qualquer lugar, mesmo que tivesse de subir na mesa do barman, e cativaria mais do que as próprias atrações da festa. Em pouco tempo, o ambiente já estava mais abafado, e tudo parecia tão engraçado, lento e despreocupado. Minha camisa colava tanto nas costas que pensei em arrancá-la ali mesmo, o que não cheguei a fazer, mas meu casaco já era. O rosto de todo mundo aparecia e desaparecia no acende-apaga-acende-apaga das luzes, e a batida pesada da música te colocava dentro de um mundo próprio. Perdi Gina algumas vezes durante o processo, aceitei o cigarro de um cara que nunca vi na vida — que logicamente não era um cigarro —, e então as coisas definitivamente passaram a funcionar em câmera lenta, inebriantes, me deixando tão sedado que eu sentia o toque corporal de outras pessoas sem me importar.
Meus pés pararam de repente. Uma leve fisgada, tão leve que poderia ser minha imaginação, atravessou minha cabeça como uma flecha e causou dor. Uma dor esquisita, que não incomodava exatamente, mas era dor. Pensei na minha avó. Pensei no quarto de hospital onde acordei mais cedo, e onde apaguei de novo sem nenhuma explicação. Pensei na visita dela, ainda que eu não me lembrasse de uma palavra que foi dita.
Uma sensação de merda, esquisita pra caramba.
A confusão voltou ao meu entendimento quando Gina reapareceu. Seu corpo colou no meu de um jeito íntimo, sensual, quase promíscuo. Passei um braço pela sua cintura enquanto ela virava de costas e rebolava com certo conhecimento da coisa. Mesmo chapado, eu conseguia identificar o cheiro do seu cabelo, que não tinha mudado em nada durante todos esses anos, e a pele lisa e suada das costas que, em muitos momentos, já fiquei passando a ponta do dedo até ela pegar no sono. Ela moveu o quadril de um jeito tão fascinante que meu corpo começou a reagir e afundei meu rosto em seu pescoço, sorvendo novamente o cheiro familiar, a presença, o toque. Todas essas coisas simples que eu até poderia ter com outras pessoas, mas com Gina era diferente. Gina me conhecia. Gina sabia quem eu era, sabia dos meus segredos. É onde eu não precisava me esconder.
No momento seguinte, ela estava me beijando. Um beijo intenso, urgente, praticamente em chamas. Muito bom, sem novidades, sem mudanças. Era Gina, o bloco mais verdadeiro da minha vida. Apertei seu cabelo na nuca e puxei-o para trás, querendo olhar em seus olhos por um momento.
Só que não foi Gina que eu vi.
O rosto de estava a centímetros do meu, dois glóbulos azuis incandescentes, a cor de uma cadeia de montanhas de gelo. A garota abriu um sorriso fraco sem mostrar os dentes e se aproximou ainda mais para dizer: "Você não pode me deixar morrer, ."
Me afastei de Gina por 3 passos, esbarrando em pelo menos duas pessoas, puxando ar para os pulmões. Ela me olhou confusa e agarrou meus ombros, murmurando palavras que não consegui escutar. Um zumbido invadiu meus ouvidos, me ensurdecendo para o mundo, tomando toda a minha mente enquanto as imagens iam se formando na cabeça, e junto com elas, as palavras que foram ditas. Minha avó, espíritos do mal e um grande conselho.
Me lembrei de tudo.
Abri um pouco os olhos, me arrependendo no mesmo instante pela dor de cabeça fodida que veio, consequência de ignorar a palavra limite. Me sentia pior do que um trapo. De barriga para baixo, pude ver o tapete persa vermelho aos pés da cama, presente da minha tia Saavik (é, papai Star Wars, titia Star Trek, meus avós eram incríveis) logo depois de saber da minha carta de aceitação na Columbia. Alguns detalhes da costura eram verdes e combinavam com o verão (igual a cor do cabelo dela, que mudava a cada estação. Verde, amarelo, rosa, azul, dependia do humor). Naquele momento, todas aquelas linhas duplicaram e dançaram diante do meu cérebro incapacitado de racionar com a ressaca terrível que estava prestes a começar.
Pelo menos, eu estava acordando na minha casa. Isso é o mais importante.
Virei para o lado e vi as costas de Gina, enrolada no meu lençol escuro. O cabelo castanho estava bagunçado em cima do travesseiro, e pela respiração delicada, ela estava dormindo como uma pedra. Suspirei e levantei da cama em silêncio para não acordá-la, indo direto para o banheiro. Abri a última gaveta da pia, sedento pelo primeiro Tylenol que encontrasse, afundando os dedos em um estoque insano de comprimidos de penicilina a naproxeno, gazes, algodão, band-aids e, no pior dos casos: linha de sutura Catgut, o tipo de coisa que eu sempre esperava muito não precisar usar.
Tomei dois comprimidos de Advil, engolindo a seco, e liguei a torneira para lavar o rosto, sentindo ainda mais desconforto com a água gelada. Quando levantei a cabeça e encarei o espelho, pensei na noite passada.
Acho que sonhei no meio daquela pista. Ou sei lá. Não consigo explicar o que foi aquela explosão de imagens que quase me fez tropeçar em cima de um cara, e fez Gina me olhar como se eu tivesse abusado do ecstasy. De repente eu estava dançando, e então estava mergulhando na sensação do completo vazio de novo, olhando uma paisagem de escuridão e nada misturado com nada, e aí estava pensando em , e na abominação em forma de gente que andava atrás dela como um espectro, me causando uma espécie de desespero. Lembrei da festa na Dungeons, lembrei do John Jay, lembrei do bar na madrugada, de Sandy ao lado daquela coisa no estacionamento, da conversa com minha avó e me perguntei como — como! — simplesmente me esqueci de tudo isso. Como?
Um mal estar bagunçou meu estômago por completo, e tenho certeza que aquelas tequilas não tinham nada a ver com isso. O discurso da Madame Uhura repetiu e repetiu mil vezes na minha cabeça, um martelo batendo sem parar no prego. Tinha feito uma promessa para ela, querendo ou não. Uma promessa que me mandava ficar quieto, na minha, mesmo que eu não soubesse como fui capaz de concordar com isso.
Entrei no chuveiro, tomando um banho quente e nada relaxante, porque só consegui ficar parado em cima do círculo do ralo, vendo uns pontinhos minúsculos de glitter e tinta verde escoando pelas aberturas de metal, as duas coisas grudadas não sei aonde da minha pele. Caramba, fiquei mesmo muito doido naquela boate, estava impressionado comigo mesmo.
Voltei para o quarto e puxei a primeira calça de moletom que achei no armário, secando o cabelo de um jeito furioso com a toalha. Não estava nem um pouco afim de me olhar no espelho de novo; sabia exatamente o que encontraria — o mesmo cara de ontem, só que mais emaciado e pálido. Fui para a cozinha, torcendo para que metade desse problema pudesse ser resolvido com um bom café da manhã. Liguei a cafeteira e peguei ovos, bacon, pão e tudo que consegui achar numa geladeira completamente desleixada com as necessidades de um ser humano. Não que Gina fosse exigente com esse tipo de coisa, mas interagir com gente rica por tanto tempo te mudava em alguns aspectos.
— Estou com fome. — Gina apareceu assim que o bacon começou a estalar. Estava usando uma das minhas camisetas do Steve Miller Band, com uma estampada feroz e sombria, que pegava muitos centímetros acima do joelho. — Hmmm, ovos com bacon? Você é um clichê total.
— É clichê quando a gente não sabe a validade do bacon? — fiz uma careta. Ela arqueou as sobrancelhas e se segurou para não rir. — Na próxima te compro croissant. Os da padaria da esquina parecem ser legítimos.
— Não tô nem aí pra essa porcaria, . Só quero um copo de leite e um cigarro. — Gina andou até a geladeira e abriu. O suspiro que deu já dizia tudo. — Eu não devo perguntar há quanto tempo isso tá aqui, né?
Neguei com a cabeça. Ela bufou e voltou a fechar a porta.
— Bom, eu nem gosto tanto assim de leite mesmo. — ela veio para perto de mim no cooktop e beijou meu ombro tatuado, apoiando as duas mãos na bancada. — Aceito a sua gororoba matinal se prometer que vamos jantar juntos hoje à noite. Onde eu quiser.
— Alguma coisa cara e chata que combina com gravatas?
— É lógico.
— Não sei…
— Ah, você vai sim. Sabe por que? — seus braços agora passaram pelo meu pescoço, me desviando do cheiro dos ovos. — Porque a gente ainda precisa conversar. E muito sério.
Quase revirei os olhos. Gina se inclinou para me dar um beijo rápido e voltou a se afastar na direção do quarto.
— Vou tomar um banho. A noite foi quente demais. — piscando por cima do ombro, ela sumiu para dentro do banheiro. Baguncei o cabelo, sem saber como esconder o desânimo. Geralmente, não dava a mínima para as ocasiões em que Gina queria me usar de bicho de estimação; mas ainda não queria falar sobre ontem. Ou anteontem. Ou da semana inteira.
Enquanto eu ouvia o chuveiro, terminei os ovos, peguei umas maçãs sobreviventes da geladeira e o café, colocando tudo na mesa. Quando comecei a organizar as louças dentro da pia, a campainha tocou.
Era quase impossível que estivesse aqui tão cedo. A essa hora, ele devia estar tomando capuccino direto do umbigo de uma das gêmeas. E qualquer outra pessoa seria anunciada antes pelo interfone que tinha o toque de uma motosserra — mas outra pessoa? Ninguém vinha aqui a não ser por .
Quando abri a porta, meu coração disparou.
— ?
Ela olhou para mim pelo tempo máximo de dois segundos até virar o rosto, de repente corando até a raiz dos cabelos. Foi então que percebi que eu não tinha me dado ao trabalho de colocar uma camiseta e aquela calça de moletom estava posicionada em um cós tão baixo que deixava na cara que eu só estava usando ela.
Limpei a garganta, ajeitando aquela coisa.
— Er... O que tá fazendo aqui? Como subiu? — perguntei, tentando mudar o foco da situação constrangedora.
— Pedi para o senhor de regata preta na portaria pra me deixar subir. Disse que você era um primo que não me ligava há séculos, parece que ele comprou. Quero dizer, ele tá usando regata num frio de cinco graus, ele é da Tribo Quileute, por acaso? — falou rápido, gesticulando com as mãos sem jeito, mas logo parou quando desceu os olhos e viu que eu não estava muito diferente do sósia do Jacob Black. — De qualquer forma, desculpa aparecer assim do nada. Acho que eu só queria verificar se você não estava morto ou sei lá. Você resolveu sofrer um acidente depois daquela nossa conversa onde me pediu pra esperar por dois dias, e daí fica em coma. Foi meio bizarro. Principalmente porque você salvou a vida do Ash.
Pisquei. Ainda estava com as mãos na maçaneta.
— Todo mundo sabe que era o Ash?
— Na verdade, não. As pessoas sabem que era você porque os repórteres calouros soltaram a língua no JJ’s, mas a suposta vítima foi registrada como só um estudante qualquer. Sei que era Ash porque Rodney contou para o , e os dois pensam que eu não tenho ouvidos. — embora aquele tom fosse indiferente e cuidadoso, sabia que estava trincando o maxilar. Em seguida, ela suspirou e deu um passo para mais dentro do apartamento. — Tentei ligar pra você. Tipo um milhão de vezes. Deixei recados, deixei mensagens, e quando fui ao hospital, você não estava mais lá. Só me restou perguntar seu endereço ao computador do Citizen e aparecer aqui.
— Fingindo ser a minha prima? — frisei, arqueando as sobrancelhas. Se fosse em qualquer outra situação, eu estaria rindo, ainda mais depois de vê-la corando furiosamente de novo. Mas naquele momento, quando o rosto dela emoldurado na minha frente, usando duas tranças loiras bagunçadas que batiam no cachecol azul claro enrolado no pescoço, me transportou imediatamente para a noite passada e aquele caos mental sombrio, mal consegui mexer os braços direito. Tinha plena certeza de que não deveria estar na minha porta agora, à sei lá quantas horas da manhã. — Foi mal, meu celular morreu no acidente.
— E o que raios foi esse acidente?
Ela balançou a cabeça e mordeu o lábio inferior, se impedindo de falar mais alguma coisa. Mal conseguia imaginar quantas perguntas ela teria, e quantas eu teria que me desviar. Era um momento péssimo para falar sobre isso.
— Acho que um cara que acabou de sair de um coma não vai ter muito o que te contar.
— É claro. — abaixou a cabeça, se concentrando em algo que segurava nas mãos. As próprias mangas compridas da blusa de malha. — Que idiotice da minha parte. Como você está agora? Sentindo alguma dor, um desconforto, qualquer coisa assim? Seu nariz parece normal de novo, caso isso ajude.
O canto de sua boca se puxou em um leve sorriso, mas não chegou a sorrir de fato. Mesmo assim, aquele comichão estranho na boca do meu estômago voltou com tudo, como se os meus órgãos internos estivessem se contraindo, e eu ainda nem tinha tocado no meu café da manhã.
— Sono é saúde, tem um monte de artigos por aí explicando isso.
— Você parece mesmo ter dormido pra caramba. Perder a consciência foi seu único jeito de respeitar um repouso. — ergueu o queixo, seus olhos cruzando com os meus por um momento. — Está bem mesmo, não é?
Mais uma pontada na barriga. Acho que era o intestino. Meu jejuno parecia estar se enrolando sobre si mesmo até se sufocar.
— Sim, tô bem, mesmo. Está satisfeita agora?
— Não vou ficar satisfeita até conversarmos. — ela disse, voltando ao estado sério de novo, mas relaxado. — Tem tempo livre pra um café?
me fitou como se tivesse tomado vinte segundos de coragem para dizer aquilo. Não controlei as sobrancelhas se juntando de surpresa. A pessoa mais cismada do mundo em ser vista comigo, estava agora me chamando para um café. Tipo como fazem dois amigos. Ou conhecidos muito conhecidos.
E eu automaticamente quis cancelar tudo para aceitar o convite.
De repente, a voz da minha avó invadiu minha mente, junto com todas as imagens, discursos, sombras, tudo de maluco e bizarro que tinha acontecido nos últimos dias. A lembrança do rosto de na escuridão, um rosto destinado a ser retalhado, tão diferente do retrato delicado que ela estava agora, com aquelas tranças e o cachecol. Travei o maxilar, sentindo o fervor de injustiça pinicar a pele de novo, penetrando até os ossos, começando uma briga dentro de mim para ver quem eu iria escolher seguir.
levantou uma sobrancelha, ainda aguardando minha resposta.
— Na verdade...
— Com quem você está falando, ?
Ah, merda.
Merda.
Esqueci completamente que Gina estava aqui.
Não só isso, mas esqueci que ela estava tomando banho. Então, quando ela surgiu no ambiente enrolada numa toalha branca e secando o cabelo com outra menor, a situação se tornou um pouco… constrangedora. De novo. Difícil de explicar.
Olhei para imediatamente. Pela cara que ela fez, talvez não estivesse esperando encontrar uma cena dessas quando decidiu procurar meus dados no Citizen.
— E quem é essa aí? Você não me disse que tinha feito uma amiga nova, . — Gina se aproximou de nós dois na porta, abrindo aquele sorriso de boas-vindas de sempre. — Oi, como vai? Sou a Gina. Lasser, mas não se apega nisso, a formalidade só serve quando o sobrenome é bonito. — ela estendeu uma mão para , que ruborizou e demorou alguns segundos para cumprimentá-la com um sorriso fraco.
Isso definitivamente estava desconfortável.
— Gina, essa é a... — minha voz saiu mais rouca que o normal, e olhei fixamente para . — . . Uma colega da faculdade.
— Humm, mais uma futura médica?
— Não, ela faz… outra coisa.
— Espero que não seja nada que envolva capacete de segurança ou botina, você é bonitinha demais pra isso. — Gina brincou, encarando o cabelo trançado de como se olhasse um poodle na gaiola do pet shop. Sabia o que aquilo significava: bonitinha para Gina queria dizer que os traços de a intrigaram, e não que necessariamente ela fosse bonita de verdade. Lancei um olhar de esguelha discreto para que ela parasse. — De qualquer forma, é muito bom saber que o fez mais amizades depois que se mudou pra essa selva, deve ser muito maçante aguentar o panaca do o tempo todo. — ela riu, e tentou imitar, mas os cantos da boca mal subiram. — Ah, que falta de educação a minha. Você quer entrar pra tomar café da manhã com a gente? Não tem nada além de ovos com bacon, mas somos americanos, não é? O que importa é que o café é de qualidade.
Minha amiga lançou sua famosa piscadinha para , que continuava com uma expressão que eu não sabia decifrar. E ficou ainda mais difícil de fazer isso depois que Gina se aproximou de mim e enganchou o braço no meu cotovelo, me abraçando de lado.
Nunca desejei tanto que um repeteco do furacão Sandy acontecesse ali, agora, desmanchando aquela cena.
Cravei os olhos em , sem saber exatamente o porquê, mas querendo passar uma mensagem: não é exatamente isso que você está pensando! Mas fala sério, tinha uma garota bonita de toalha se agarrando em mim na minha sala antes das 9 da manhã, não tinha como interpretar aquilo do jeito que não era — e eu nem estava com roupas o suficiente para provar o contrário.
E por que raios eu queria provar alguma coisa? Era Gina. Nunca me importei de ser visto com ela, de beijar ou abraçar como todo mundo faz quando bate um clima, de deixar que as pessoas achassem e rotulassem do jeito que quisessem. Mas, de repente, quis abrir a boca e despejar uma enxurrada de explicações, mesmo que elas não fizessem sentido nenhum.
Mesmo surpresa e um pouco envergonhada, conseguiu imprimir um sorriso de canto.
— Hoje não vai dar, preciso resolver um assunto urgente. — ela me fitou por um segundo ao dizer isso. — Bom saber que você tá mesmo bem, . Parece que eu não precisava me preocupar. Foi um prazer te conhecer, Gina. Tenho que ir, dá licença. — e com uma última encarada, se virou e foi embora.
Dei um passo à frente automaticamente, como se estivesse pronto para ir atrás dela, mas por que? Por que? Por que estava pensando numa coisa dessas?
Fechei a porta com um pouco de força e vi Gina parada atrás de mim, de braços cruzados.
— Então agora você tem uma amiga? — perguntou, com um olhar divertido.
— Ela não é uma amiga. — torci a boca, caminhando até a mesa. Eu não sabia o que era.
— Então ela é a sua stalker? — Gina continuou. Olhei para ela. — Estava ouvindo a parte do pesquisar seu endereço em alguma coisa que com certeza é proibida. Tá interagindo com gente louca agora?
— E desde quando você escuta atrás da porta? — arqueei as sobrancelhas. — Não faz o seu estilo.
— Garotinhas que parecem a Tinker Bell e cheiram a morango também não são o seu estilo, gatinho. — ela agarrou a toalha pequena da poltrona e deu de ombros, voltando para o quarto.
Ignorei seu comentário e encarei o líquido escuro do café na caneca, tentando parar de pensar. Mas aquela voz estava ali, martelando a sentença na minha cabeça, e estava berrando desde que abri a porta para e tudo ficou mais claro.
“A garota deve morrer em, no máximo, 1 ou 2 meses. Não vai demorar muito, então não precisa se preocupar.”
Gina não ficou por muito tempo depois do café. Aparentemente, uma das filiais do Zoana’s no Brooklyn (o clube noturno onde ela trabalhava em Nova Jersey) estava com problemas “disciplinares” — o que costumava significar que alguém tinha passado a mão em outro alguém que não deveria —, e me fez acabar descobrindo que minha amiga tinha subido um pouco de cargo, mas garantiu que ainda jantaria comigo, me dizendo a hora e o local antes de sair. E por jantar eu quero dizer uma sessão de perguntas intermináveis e relatórios completos de todo o intervalo que passamos longe um do outro.
Depois de vê-la entrando em um Tesla branco e lustroso pela janela — alugado, com certeza —, fui tentar fazer algo de útil. Infelizmente, não dava para escapar da sociedade por muito tempo. Peguei o laptop e fui checar meus e-mails. A maioria dos não lidos na minha caixa de entrada pertenciam à minha mãe, que ficou sabendo, logicamente por , que meu celular tinha morrido e que eu compraria outro assim que possível — o que, no caso, seria agora mesmo porque seus últimos e-mails eram desesperados e furiosos por não estar conseguindo falar comigo, e isso era um alerta vermelho. Suspirei e comecei a respondê-la, dizendo que tempo era o único empecilho que tinha me impedido de resolver aquilo — uma explicação muito boa, convincente, polida, com todas as bordinhas arredondadas. O mais importante era não deixá-la pegar um avião para Nova York e topar com todo o caos bizarro que tomou conta da minha vida nos últimos dias. Pedi um aparelho novo pela internet, torcendo para que esse fosse um pouquinho mais sólido do que os anteriores e passei para os próximos e-mails.
A maioria eram recados de professores, confirmando os dias da semana que fiquei ausente e repassando todas as demandas que deram em aula, como slides completos de esquemas do cérebro humano e avaliações de lâminas novas da seção de Oncologia do hospital. Nem tive tempo de ficar chocado; sabia que isso tinha total a ver com . Devia ter formulado o e-mail mais formal que conseguiu fazer e mandado para todo o corpo docente, técnicos do laboratório, e qualquer pessoa que cruzasse comigo em qualquer dia da semana, pedindo por favor que me atualizassem de tudo para fazer meu lobo frontal voltar a funcionar e manter minha reputação de número 1 intacta.
Deve ter sido um pouco humilhante de alguma forma, mas esse era tipo o jeito dele de cuidar de mim.
Além desses, havia um e-mail do reitor, enviado diretamente de sua conta pessoal. Fiquei confuso, porque definitivamente não precisava de nenhuma atualização dele, mas não era nada disso. Era um convite para um baile beneficente.
Eventos humanitários organizados por uma das universidades da Ivy League era o tipo de coisa voltada para a maior classe de Nova York, e quem sabe de outras partes do país. Seria oferecido pelo reitor em pessoa em prol da nova reforma do estacionamento, restaurante do John Jay e da construção do novo prédio laboratorial ao sul do campus, quase uma pequena extensão do centro médico de Irving. Pensei imediatamente em ignorar o convite e não ir, apesar de as letras pequenas indicarem que apenas alunos selecionados a dedo estavam lendo o que eu lia agora, e que seria encarecidamente respeitoso que todos comparecessem àquele grande momento.
Fechei o computador e passei o restante do dia em tentativas fracassadas de fichar todas as minhas leituras pendentes do PubMed, mas minha cabeça não estava me obedecendo. Continuava voltando sem parar para ontem, para o hospital, para a queda da viga, para na minha porta. Ficava pensando na tal coisa urgente que ela tinha para fazer e que nem dava para eu perguntar o que era, não só porque estava sem celular, mas porque não podia. Não dava mais para ficar perto dessa garota, não depois do recado da Madame Uhura martelando sem parar no meu canal auditivo. Só que mesmo assim… mesmo assim.
Tentei chamar minha avó. Seria inútil, eu sei, mas tentei. Ela sempre assumia uma postura relativamente autoritária quando eu estava prestes a fazer alguma merda, mas ainda precisava de explicações. Não conseguia aceitar que ela tinha mesmo me mandado fazer aquilo. Ainda parecia um sonho bizarro, uma alucinação, tipo o rosto de no lugar de Gina — o que deve ter sido culpa da maconha, e o que mais deveria ter dentro daquele copo. Todo o resto parecia fora do lugar, escondendo coisas da minha vista, e eu sei que nunca quero saber de nenhum mais quando se trata de fantasmas, mas parecia que alguém tinha fechado a porta na minha cara justo quando eu estava prestes a ver uma coisa muito foda. Tipo um show particular do Metallica ou o LeBron James com uma agulha elétrica pronto para me tatuar.
É claro que eu esperei. Esperei a porra do dia inteiro, matando um cigarro atrás do outro nesse processo. não tinha dado às caras, o que só podia significar que as gêmeas sugaram toda a sua bateria — mental, física e a do próprio celular —, e tudo isso fez com que as horas passassem mais lentas do que imaginei, mas passaram. De repente, já era hora de eu me encontrar com Gina de novo. Infelizmente, não tinha nenhum meio de comunicação onde eu pudesse perguntar se ela não queria trocar toda aquela cerimônia por uma pizza metade calabresa metade anchovas do Joe’s Pizza, então me apressei para o quarto e encarei o closet minúsculo com a minha infinidade de peças exatamente iguais.
Escolhi a única calça de alfaiataria que eu tinha, uma camiseta de botões e um blazer de lã que não exatamente combinava com o resto, mas não matava o visual inteiro. Tudo terminou em uma mistura uniforme de muito preto e azul escuro, e terminei de concluir com um tênis da Adidas Park Street branco ( o chamava de off-white). A prioridade era me manter minimamente quente, mas não estava muito confiante com isso. Ao sair do elevador, meu pacote já estava esperando na recepção — e o funcionário da vez estava mesmo usando regata, junto com uma corrente grossa de prata e um pingente no formato de cruz. A história da tribo Quileute quase me fez dar uma gargalhada sem querer.
Quando entrei no carro, abri a caixinha e puxei o celular, mas voltei a jogá-lo no porta-luvas, encarando as horas pelo relógio no painel. Gina odiava atrasos, tanto quanto odiava flores, então me apressei e dei a partida.
Ela já estava esperando em uma das mesas circulares ao lado do imenso aquário do Le Bernardin. Usava um vestido verde escuro, com uma fenda que ia muitos centímetros acima do joelho e o cabelo preso em um coque no topo da cabeça, deixando exposto o colar de esmeraldas e os brincos da mesma cor. Ela sim sabia combinar as coisas.
O vinho já estava na mesa quando sentei, bem na hora em que um garçom murmurou um “a senhorita não vai se arrepender” e se retirou logo em seguida.
— Château Cheval Blanc? — li o nome na garrafa, franzindo os lábios para baixo. — Acho que não vim vestido para isso. — apontei para a minha roupa, que definitivamente parecia fora da ocasião.
Gina sorriu, os olhos me vasculhando em cada centímetro.
— Para o inferno com gravatas, prefiro você desse jeito. — disse ela, e abriu o cardápio. Em seguida, estalou os dedos, chamando outro garçom, que se aproximou com um tablet para anotar os pedidos. Não fiz questão de nada em especial, apostando que ela saberia o que fazer.
— Camarão de Montauk? Disse que eles são um bando de cretinos. — falei quando o garçom se afastou. Gina colocou mais vinho na taça.
— Cretinos que fornecem os melhores ingredientes para os melhores restaurantes, infelizmente. Como você disse que odeia ostras belon…
— Eu nem sei o que são ostras belon.
— … Então, os camarões vão dar conta do recado. — ela girou um pouco a taça antes de tomar um grande gole, deixando uma marca do batom vermelho no vidro. — E não te chamei aqui pra ficar zombando da boa comida que eu estou te oferecendo. Vai lá, desembucha.
Desviei os olhos, puxando a garrafa de vinho que devia valer o equivalente a pequenos mísseis no Oriente. Ainda ficava esperando um fiapo de ouro grudar na minha língua quando bebia esse tipo de coisa.
— Até quando vai fugir do assunto? — Gina apoiou os cotovelos na mesa, a expressão começando a tomar seus traços de aborrecimento.
— Até você se esquecer completamente daquilo. — suspirei, bebendo um gole grande de uma única vez. Como sempre, parecia só vinho.
— Você deve pensar que eu tô brincando. — ela ralhou, cerrando os olhos. — Ontem foi divertido, e você é uma delícia, mas acabou. Vamos falar sério aqui: você estava em uma cama de hospital logo depois de ver uma garota morta tentando levar o namoradinho para um encontro no além. Preciso perguntar por que diabos você quis se arriscar desse jeito?
— Você acabou de dizer, ela ia matá-lo.
— E daí? Podia ter chamado uma ambulância, gritado com a garota, tentado resolver as coisas sem envolver suas costelas. O que estava pensando? — agora ela parecia com mais raiva. Gina era totalmente contra à auto imprudência. Ela resolveria o problema de algum fantasma, sim, e nem ficaria brava se precisasse correr com seus sapatos Jimmy Choo ou rasgar uma jaqueta da Prada, mas se achasse um arranhão em qualquer lugar do corpo depois, eles teriam um problemão.
— Não dava tempo de chamar ninguém, Gina. O caso era literalmente de vida ou morte. E eu não me machuquei lá. Foi só… — parei, a lembrança do vazio vindo junto, arrepiando a base da minha nuca. Fiquei pensando em quanto tempo mais eu precisaria para agir normalmente depois de tudo aquilo.
Ela arqueou uma sobrancelha, esperando o resto.
Acabei despejando tudo para ela, desde a primeira vez que vi Sandy no John Jay, nossa conversa no carro, a confusão na Dungeons e o acidente com a viga. Quer dizer, foi quase tudo. O nome de não veio junto com as partes que envolviam a coisa macabra, e não sei (de novo) explicar porquê. Gina encheu a taça de vinho várias vezes, até precisar pedir outra garrafa. Ela bebia bastante quando estava nervosa e, no fim do relato, estava me encarando com um olhar distante, muito parecido com a expressão inicial da minha avó.
— Então você encontrou um deles. — afirmou em voz baixa, e seus outros dedos começaram a dedilhar a mesa. — Isso aconteceria algum dia.
— Um deles? Espera, você também já viu isso? — aproximei meu tronco da mesa, o sangue pulsando para os ouvidos. Gina não se mexeu. — Como assim, Gina? Essa é uma situação nova só pra mim? Por que nunca me contou antes?
— Porque não era importante. — respondeu ela com firmeza, mas vi seu lábio tremer. — Quer dizer, é só mais um fantasma, com algumas habilidades especiais talvez, mas não passa de um espectro.
— Habilidades especiais? — questionei, e ela desviou os olhos. — Que habilidades, Gina? Que papo é esse?
— Habilidades, . Poderes. Telecinese, super força, terremotos e tudo de ruim que você puder imaginar. Os andarilhos são capazes de um monte de coisas, eu sei, mas só alguns podem fazer estragos de verdade. E esse é um deles. — ela bufou, fechando uma mão em punho. Parecia estar tremendo de novo. — Eles são… demoníacos. Não conheço palavra melhor. Não estão procurando a nossa ajuda porque já se condenaram, por isso não podemos fazer nada por eles. Então, a Madame Uhura estava totalmente certa quando disse pra você ficar longe desses malucos.
Puxei ar pelo nariz. De repente, o barulho dos pratos, talheres e conversas ao redor não passavam de ruído surdo. Olhei para Gina, procurando minha amiga crítica e sarcástica de dentro daqueles olhos amedrontados lotados de maquiagem. Minha circulação sanguínea foi substituída por água gelada.
Odiava quando Gina plantava sementinhas desse tipo na minha cabeça. Ah, você sabia que fantasmas não ligam pra sal? Pois é, Hollywood enfia um monte de mito na cabeça das pessoas. Mas a parte do enxofre é verdade.
Sabia que o além é como outra dimensão? X e Y é tipo a pontinha do iceberg do universo. Dizem que esse era o motivo real do porquê Einstein criou a Teoria da Relatividade Geral: ele sabia dos fantasmas e concluiu que a nossa realidade é tipo um tecido; se for desdobrando, vai achar um monte de estampas novas. O Purgatório é uma delas.
Enquanto eles não forem embora, a ligação com a família nunca se quebra, e por isso tanta gente fica triste por tanto tempo. Essa coisa de “fulano gostaria de te ver feliz” é a maior balela do mundo. Se o andarilho quisesse que um ente querido ficasse bem, teria vazado do mundo desde o início, e não ficar deixando a pessoa enlutada sentir sua presença pela casa.
Fantasmas comuns não movem nada tão pesado com o poder da mente, tipo igual naquele filme Poltergeist. Eles empurram copos, abrem portas, puxam o pé das pessoas para debaixo da cama e tudo isso, mas existem uns vermes por aí que nascem com alguma coisa. Habilidades especiais. Nada como os X-Men, mas rola alguma coisinha na mente dessa gente que não some depois da morte.
Esse tipo de coisa. As informações aleatórias que eu nunca pedia, e até ria na maior parte das vezes, porque mostravam um lado dos mortos que não significava muito para mim. Um lado profundo, humano e assustador, o que não batia com o que eu via. Quando um fantasma apertava o botão do descontrole, eles costumavam chorar, espernear e socar — tanto a mim quanto a parede de concreto, o gramado, até mesmo a máquina de salgadinhos da área arcade do shopping até pegar um pacotinho de snickers. Nunca tinha visto fazerem mais do que isso. E daí me lembrei de toda a merda que Sandy tinha feito no John Jay e mais uma trilha de gelo desceu pela minha espinha.
Não deu muita vontade de rir de Gina daquela vez. Ela não podia ter ficado tão criativa nos últimos anos.
— Minha nossa, de que merda você tá falando? — consegui falar depois de muitas vezes abrindo e fechando a boca. — Por que não dá pra ajudar? Só por que eles não se lembram de nada? Por que devem estar aqui desde sei lá, o século 19? Isso não explica porque ele estava perseguindo alguém... Como uma retaliação, algo do tipo. — Gina olhou para o lado e estalou os dedos mais uma vez, pedindo indiretamente outra bebida, como se isso fosse a solução. Levantei uma sobrancelha, mas ela não disse nada. — Qual é, Lasser, você não pode ficar em silêncio agora. Me fala o que você sabe.
O garçom surgiu com a terceira garrafa de vinho e com o aviso que nossos pedidos já ficariam prontos. Gina encheu nossas taças e ainda não dizia nada.
— Gina... — falei entre dentes.
— Que porra, . — ela largou a taça na mesa em um movimento tão violento que pensei que quebraria o vidro. — Desde que eu te conheço, você sempre teve horror à nossa... coisa. — a palavra saiu baixa e furiosa. — Você sempre fez o que tinha que fazer e só. Se acomodou nas aulinhas com a Madame e tocava o barco, sempre no controle de tudo, levando uma vidinha normal como se não tivesse nada de diferente em você. Na gente. Mas eu não, eu queria entender essa porcaria toda. Porque eu era desse jeito, porque teria de passar a vida toda sendo interceptada por cadáveres e ouvindo que era uma aberração. Depois dos 12 anos, já deu pra sentir que esse negócio era pra sempre e os andarilhos não iriam embora. Tinha que saber o que fazer com isso. Então, fiz umas pesquisas.
— Pesquisas. — sacudi a cabeça, rindo sem humor. — Eu já te falei-
— Sim, você pensa que todas essas pesquisas são fajutas que vieram de lunáticos ou do fã clube do Stephen King, mas eu realmente fiz alguma coisa, . Eu tive de fazer, principalmente depois de encontrar com um deles. — Gina cerrou os dentes. O frio estava de volta, passeando agora pela base do meu ouvido. — Foi no ensino médio, quando eu matei aula com algumas meninas da outra turma. Elas me davam cigarros de graça e odiavam Sacramento tanto quanto eu. Fomos pra cobertura de um prédio abandonado em River Park porque elas queriam pichar as iniciais dos namorados na parede. Quando chegamos lá, o lugar já tava ocupado por um cara de pé no parapeito, pronto para pular. As meninas se assustaram e até tentaram gritar aos quatro ventos para que ele não fizesse aquilo, mas elas não estavam vendo o que eu estava. Que aquele cara não estava ali por vontade própria. — ela baixou os olhos, passando o dedo indicador pela circunferência da taça. — O espírito estranho me deixou com tanto medo que eu não consegui fazer nada. Ele estava segurando o cara naquela posição, e de repente... Jogou ele lá de cima. Direto para a margem do rio.
Minha respiração saiu entrecortada. Meu corpo de repente parecia não pesar nada. Queria poder ficar chocado, assustado, em pânico, mas na verdade só consegui ficar paralisado. Como se Gina estivesse confirmando toda a história da minha avó, cessando as minhas dúvidas antes mesmo que eu desse vazão para elas, e o resultado era o mesmo: nada bom.
— Gina... — tentei dizer, mas a voz saiu rouca e arranhada. Olhei bem para o rosto dela, pegando sua palma por cima da mesa. — Caramba, que merda. Eu não sabia, você nunca me disse isso.
— Claro que eu nunca disse, sempre quis esquecer esse dia. Você não tem ideia de como foi medonho e bizarro. Foi o primeiro fantasma que eu vi que não estava ali para pedir ajuda, e sim pra matar alguém. E sei que, pela droga das regras, não devemos deixar que os mortos arrastem alguém com eles, mas ele estava tocando no cara e eu não sei como, mas automaticamente fiquei com medo por mim. — ela fechou os olhos por um segundo, puxando a mão um pouco gelada para o próprio colo. Conhecendo Gina, devia estar fazendo de tudo para não me deixar vê-la com nada perto de medo. — Depois disso, eu fiquei desesperada e me meti em uma biblioteca pela primeira vez. Não que fosse ajudar muito, mas lá tinham computadores e você sabe como é a Drager com tecnologia. Peguei alguns livros, passei umas páginas, encontrei relatos, achei de tudo. Alguns eram completamente sem pé nem cabeça, e outros até que convincentes... E um deles me deixou completamente atordoada.
Esperei o restante. Pela cara que Gina fez, aquela era exatamente a parte que não queria contar.
— Eram só alguns livros velhos e idiotas, não sei porque-
— Gina. — encarei-a, muito sério.
Ela passou a língua nos lábios, com certeza odiando o fato de não poder puxar um cigarro agora.
— Um dos livros falava sobre espíritos malignos que roubam as almas dos vivos. Não é como uma possessão, mas uma apropriação completa. Se eles têm um alvo, não há como escapar. Essas coisas têm um motivo, e alguns mitos gregos dizem que são resquícios do submundo que se desprendem do fogo do inferno para buscar uma vingança pessoal. Tipo alguém ganhando um vale matança. Eles têm contas a acertar com alguém desse plano, e essa pessoa fica com os dias contados. Só que… — ela molhou os lábios de novo. — Essas coisas não levam apenas um, entendeu? Eles querem a alma de alguém específico, mas se forem interrompidos ou confrontados, levam você junto, mesmo que você seja o Papa Francisco. Eles são os leões e nós somos as gazelas. Eles ultrapassam tudo que a gente conhece. — Gina parou, esfregando o pulso de leve, olhando para mim com aqueles olhos agitados, enquanto eu ainda estava processando tudo. — Mas eram livros muito velhos e difíceis de ler, tive que usar o Google tradutor, e aquelas páginas quase quebraram na minha mão. Então, que se dane tudo isso. Você está aqui, não é? É só ficar longe deles, como a Madame disse. Nossa jurisdição é outra.
Gina riu, quase me convencendo, mas a tensão em suas mãos apertando a taça fez as unhas ficarem brancas. Mesmo assim, tentei imitar, mas não consegui. Estava com vontade de levantar, sair e pensar. O barulho ao redor parecia não entrar no meu ouvido; minha cabeça estava cheia de histórias, cenários, verdades e as loucuras que minha melhor amiga tinha acabado de soltar.
Mexi distraidamente nos cinco botões da minha camisa, olhando para o vinho tinto, pensando em sangue. Parecia que uma agulha estava presa na minha garganta, me impedindo de falar ou engolir.
Não sei quanto tempo se passou até que ela me chutasse levemente por baixo da mesa, me tirando dos meus pensamentos.
— Ei. Para de pensar nisso. — disse, mais séria do que antes, como se fosse um aviso de vida ou morte.
— Foi mal. — minha saiu áspera, e ajeitei a postura, colocando os dois braços em cima da mesa. — Só estou surpreso.
— É, eu sei. É bem diferente ler histórias de terror quando você sabe que é tudo real. — disse ela. No automático, sorri com escárnio. Gina balançou a cabeça. — Você ainda não acredita, não é?
— No quê?
— Em tudo. No inferno, .
Consegui puxar minha taça de vinho, querendo desesperadamente misturá-lo com whisky.
— Você sabe que não.
— Pois deveria. A criatura que você viu veio direto de lá.
O silêncio inevitável deixou a comida menos apetitosa. Gina ainda tentou puxar conversa, mas a agulha na minha garganta me impediu de falar muito, mesmo tentando. Toda a sua história de fantasmas e demônios me causou uma espécie de ânsia, o que deu adeus ao meu foco no presente.
Sendo verdade ou não, era revoltante ter que ficar parado e dar espaço para que um fantasma — ou seja lá o que ele fosse — pudesse matar livremente, porque "é assim que é". Não que eu sempre tivesse como propósito de vida defender os fracos e oprimidos de assombrações, ou até me meter onde não fui chamado, mas é que tudo aquilo soava tão cruel e desumano que não dava para ignorar. Me sentia como um personagem de Fargo, um cúmplice involuntário em algum crime hediondo.
Não conseguia ficar parado. Minha vontade era levantar e ir embora, mas não podia deixar Gina sozinha. A preocupação dela e da minha avó eram válidas, fundamentadas em experiências reais. Eu é que parecia estar indo na contra mão de todos os ancestrais por simplesmente achar toda aquela merda um absurdo, sendo o Nicolau Copérnico de toda a geração de mediadores.
Mas, afinal, por que isso era tão importante? Eu sabia, eu senti, que me aproximar daquela coisa só me traria problemas — tipo a morte —, mas ainda assim… Pensava em . Não de um jeito exclusivamente preocupado, mas curioso. Não tinha mais do que uma semana que cruzei com ela pela primeira vez, e éramos tão próximos quanto o Polo Norte era do Polo Sul, mas ser um alvo de vingança sombria? A menina usava hidratante de morango. E eu não saberia disso se ela não tivesse esbarrado comigo um zilhão de vezes.
Fatos à parte, não estava conseguindo aceitar bem essa ideia. Deixar morrer assim, sem poder fazer nada, desafiava cada músculo do meu corpo. Era um peso mais insuportável que o silêncio de Gina. Se fosse outra pessoa, qualquer outra pessoa, eu estaria me sentindo assim também? Estava angustiado daquele jeito só porque era ela? Não sabia responder isso, o que não fazia o menor sentido.
Por fim, falei com Gina que ia ao banheiro. Ela quis protestar, mas viu que não funcionaria. Sabia que tinham coisas na minha cabeça que eu não conseguia me livrar, e a comida praticamente intocada na mesa só reforçava isso. Aquela agulha presa na minha laringe estava, aos poucos, se transformando em um prego, lançando um gosto de ferrugem e metal na minha língua, corroendo tudo que eu queria dizer.
O banheiro, com seu mármore negro do chão ao teto, deixava tudo mais escuro e frio, apesar da máxima iluminação. Parei em frente ao espelho, meu subconsciente analisando o cara do reflexo, apontando o dedo para ele — para mim — enquanto questionava minha sanidade. Não era uma boa ideia, não era uma boa ideia, definitivamente não era uma boa ideia. Fechei os olhos por um instante, tentando me lembrar do vazio denso, o breu tomando o controle de tudo, uma sensação muito parecida com ser jogado sem pára-quedas de um avião.
A sensação de ter a alma arrancada de mim. Roubada.
Lembrei também das vezes em que ignorei um conselho/ordem da minha avó, e que isso nunca dava certo. Aquela cena no hospital provavelmente foi o conselho mais importante que ela me deu na vida! Pensei em sua expressão fria, na história de Gina e em como as duas coisas mostravam o quanto eu andava negligenciando quem eu era nos piores momentos. Ainda estava sentindo um pouco de remorso por não ter estado lá por Gina quando aconteceu, mesmo que eu estivesse a 140km de distância e não falava com ela há mais de 6 anos. Por isso mesmo, era praticamente um desrespeito querer correr atrás de uma coisa que foi tão sombria e traumática na vida dela, desrespeitoso com a preocupação que ela e minha avó tinham por mim.
Vou repetir cada tópico desses na minha cabeça até esquecer todo esse assunto. Iria funcionar. De repente, meu sonho era que funcionasse.
Liguei a torneira da pia e abaixei para jogar uma água no rosto. É isso, eu ficaria bem. Iria superar tudo isso. Voltaria para a mesa e, automaticamente, faria uma piada sobre os camarões e sobre Montauk. Pediria sobremesa. Diria que ela estava parecida com um quadro da Maria Antonieta sem a parte das perucas e que hoje, especificamente hoje, tinha gostado pra caralho do perfume dela — almiscarado, uma mistura de pimenta rosa e framboesa, nada doce, nada novo. Pronto, voltaríamos a ser quem sempre fomos. Iria funcionar agora. não estragaria mais nada hoje.
Molhei o rosto mais uma vez, mantendo as mãos na região dos olhos por mais tempo do que o necessário, sentindo o frescor da água morna. Estava prestes a estender os dedos para a máquina de secador de mãos quando dei uma última olhada no espelho. E vi que eu não estava mais sozinho no banheiro.
E muito menos em boa companhia.
Antes que eu pudesse reagir, Sandy me empurrou como um trapo contra a parede, cravando a mão no meu pescoço, com um olhar horripilante. O aperto não estava tão forte, então imaginei que, talvez, ela não estivesse ali para me matar.
— Então você está vivo! — murmurou, com uma risada seca que ecoou no pequeno espaço. — Eu achei que tínhamos um acordo, ! — sua voz era rouca, entrecortada, quase medonha. Definitivamente, não era mais a garotinha assustada do carro.
— Sandy, se acalma... Eu tentei conversar-
— Você estava tentando me enganar! Assim como Ash! E ainda teve coragem de ajudá-lo, seu miserável de merda! — o aperto no meu pescoço se intensificou, restringindo o oxigênio. — E também trouxe aquela idiota da para se meter na minha vida, francamente, , você é um desgraçado. Nosso acordo já era!
— Sandy... — tentei articular algumas palavras, mas com a força dela aumentando junto com a raiva, ficou cada vez mais difícil.
— O quê? Vai negar tudo? Vai dizer que não trabalha com o Ash ou criou um tipo de parceria escrota com ele depois de apanhar feito um cachorro naquele buraco? Você é desprezível, . — ela se aproximou, as linhas de expressão mais explícitas e duras. — Eu deveria acabar com você agora, sabia? Mas primeiro vou acabar com a vadia que se acha no direito de remexer no meu corpo, como se eu fosse uma marionete! — Sandy berrou, tão perto que alguns fios do meu cabelo balançaram com a força do grito.
Sem saber de onde veio a força, puxei a perna esquerda e consegui atingi-la um pouco acima da barriga. O golpe fez o aperto em meu pescoço afrouxar, e aproveitei para enfiar o cotovelo no nariz dela, fazendo-a dar vários passos para trás e se apoiar na pia. Respirei ofegante, tossindo algumas vezes, sem perdê-la de vista para caso tentasse me atacar de novo.
— O que... você acabou de dizer? — perguntei, ainda tossindo. — ...
Sandy soltou uma gargalhada, e vi o espelho e todas as outras vidrarias do cômodo vibrarem.
— Seu estúpido! Aquela imbecil da sua amiguinha está agora mesmo em Woodlawn achando que pode cavar a minha cova como uma idiota. Ela não sabe que isso é falta de educação? Não pensou que eu não gostaria nem um pouco disso? — ela sorriu de forma perversa. — Ah, a doce . Sempre foi assim, metendo o nariz onde não deve. Agora, finalmente, ela pode aprender uma lição.
Sandy deu um último sorriso e simplesmente desapareceu no ar.
Ah, não.
Não, não, não, não, não.
não podia estar fazendo aquilo. De jeito nenhum.
Minha boca ficou seca. Lembrei do dia da nossa conversa no almoxarifado. Uma conversa onde ela dava soluções nada seguras para descobrir quem matou Sandy e eu barrava todas elas imediatamente. Achei que ela tinha entendido que estava terminantemente proibido se arrastar pelo subsolo de um hospital e puxar um corpo de 20 graus negativos para procurar restinhos de lorazepam.
Mas… Woodlawn. O enterro de Sandy. O enterro que aconteceu bem no dia que eu estava apagado.
Puta que pariu.
Não vi em qual minuto aconteceu, mas de repente, meus pés estavam se movendo sozinhos, correndo para fora do restaurante, desviando de garçons e mesas como um atleta de Spartan Race. Se ouvi gritos de Gina ou de outro funcionário, foi incoerente. Só conseguia pensar em como chegaria no túmulo novinho de Sandy Silo.
E em como me livraria dela depois.
Celulares novos têm uma burocracia do cacete para ligar. E era muito difícil fazer isso enquanto você dirigia como um maníaco, ultrapassando sei lá quantos sinais vermelhos, ouvindo uma sinfonia de buzinas, assassinando no mínimo 20 leis de trânsito, e aquela porcaria ainda estava perguntando qual idioma eu preferia usar.
Puta merda.
Não dava para esperar aquela coisa resolver me ajudar. Já estava sentindo uma gota de suor na minha testa. Dobrei na Henry Hudson, atravessando a ponte inteira como o Toretto e finalmente vi as árvores do parque Ewen, afundando o pé no acelerador, derrapando para o canto direito da pista, cantando os pneus de um jeito que não deixaria nenhum policial muito contente. Caso tivesse algum policial na avenida Riverdale naquele momento.
Nunca fui muito íntimo do Bronx, mas o cemitério de Woodlawn era um clássico. Tanto para os maconheiros, turistas, mendigos ou os fãs de Duke Ellington. Sem contar que era um point de fantasmas perdidos. Da última vez que estive aqui, um bando deles estava se aprontando para fazer uma homenagem ao Mick Jagger bem em cima de uma sepultura, e precisei lembrá-los que esse astro do rock ainda não tinha morrido. Eles quase me lançaram um graveto no olho por isso.
Mas o fato de Sandy poder estar indo para lá era uma coisa que eu não podia pensar agora. Era estranho, era uma merda, mas iria ficar para depois. Porque Sandy Silo morreu no alojamento da Columbia, a mais ou menos 15 quilômetros daqui, Sandy Silo era uma alma penada do John Jay, e por isso não devia saber como chegar em um restaurante francês no Centro da cidade e nem na porra de um cemitério no Bronx.
Já passava das 20h00, o que significava que os portões duplos de ferro batido já estavam fechados, com algumas lâmpadas dos postes apagadas, mergulhando toda a fachada na escuridão. Havia uma neblina densa e bizarra no ar, tanto pelo frio quanto pela atmosfera dos mortos. Parecia meio macabro, mas era mais irritante na maior parte do tempo. Estacionei o carro a uma boa distância da entrada, ao longo da avenida Jerome, onde o Jeep conseguisse ficar bem escondido debaixo de árvores escuras já quase sem folhas. Mal vi o momento em que fiz toda essa sequência de abrir a porta, bater a porta e correr para as grades de ferro que rodeavam toda a extensão de 162 hectares do cemitério, olhando para os lados disfarçadamente antes de saltar por uma delas.
Caí como um gato, correndo na direção de alguma área plana que ainda não estivesse ocupada com árvores ou mausoléus de famílias milionárias. O túmulo de Sandy devia estar em algum lugar por ali, e se não estivesse, eu tinha me fodido porque não tive carisma para aguentar as configurações iniciais do celular para poder ligar para . Pelo visto, eu poderia fazer isso, já que me lembrava do seu número de cor. E isso era meio assustador.
Entrei na área estreita onde as lápides ficavam mais juntas e as árvores ficavam mais cheias, robustas, fechando tudo ao redor. Respirei ofegante, soltando uma porção de fumaça branca pela boca, subindo a pequena colina cheia de grama úmida e pedacinhos de flores. Algo no meu peito vibrava, aquela sensação familiar que significava exatamente o que era: eu estava sendo observado. O que era impossível de não acontecer naquele lugar.
Cemitérios não eram bem a minha praia. Não só pelos fantasmas, mas todo o rastro de sentimentos ruins que eles causavam. Fedia a toda tristeza, desespero, angústia e tudo isso que as pessoas despejavam por aqui, tornando essa terra um lugar difícil até para respirar. Quando se chorava por um ente querido em alguma dessas pedras, a alma penada sentia, e ficava ainda mais difícil ir embora. Então se passam 10, 20, 40 anos e os idiotas continuavam aqui, sentados em cima das próprias tumbas, esperando alguém que muito provavelmente já caiu fora do mundo também.
Se as pessoas soubessem que vir chorar aqui mais atrapalhava do que ajudava, talvez facilitassem o meu trabalho.
Quase no fim do caminho, finalmente, avistei uma luz fraca ao longe. Parecia vir da boca de uma lanterna pequena, e estava se mexendo rápido e depois devagar, como se a pessoa estivesse em movimento. Não parei para tentar adivinhar muito e corri a plenos pulmões em direção à luz, torcendo para que Sandy tivesse desistido da ideia do ataque.
A neblina ficava mais densa à medida que eu chegava mais perto do ponto luminoso, cada passo me causando mais arrepios e embrulhando o estômago, como se a própria necrópole estivesse sussurrando: “Ei, já deu, né? Vaza daqui, você sabe como isso acaba.” Ou seja, uma placa neon piscando: Sai fora antes que dê merda.
Gritei o nome de . Iria achar aquela maluca, pegar na sua mão e levá-la o mais longe possível dali. Não que os outros fantasmas me preocupassem — através da névoa, eu podia ver suas formas surgindo, podia ouvir suas vozes balbuciando e se lamentando, perambulando por entre as árvores altas ou deitados imóveis sobre os jazigos de concreto. Dois deles alisavam uma placa de metal grudada em um mausoléu à direita, com uma arquitetura catedrática impressionante, como se fosse um bicho de estimação. Alguns outros olharam para mim, mas eu não olhei para eles, e estava funcionando… por enquanto. Mas andar por um cemitério ignorando fantasmas que te encaram como se você fosse uma modelo da Victoria’s Secret? Não é fácil.
Apressei o passo. O foco de luz virou imediatamente na minha direção, me cegando por alguns momentos e me fazendo parar. A próxima coisa que senti foram braços passando em volta do meu pescoço, e aquele aroma doce e intenso, que eu ainda não sei como não me dava enjoo.
— ! Meu Deus, não acredito. — arfou, a respiração tão rápida que parecia ter corrido uma maratona. Ouvi um fungar de leve escapando do seu hálito quente, como se ela estivesse segurando um choro.
Instintivamente, puxei seu rosto para olhá-lo melhor. Ela estava pálida, tremendo naquele suéter fino, o cabelo loiro bagunçado e grudado na bochecha.
Ela se afastou rápido quando percebeu que eu a olhava demais, como se tivesse acabado de perceber o que tinha feito — me abraçar e tudo mais. Sua expressão rígida voltou no mesmo instante, e ela passou as costas das mãos debaixo dos olhos, secando algumas lágrimas.
— Você tá legal? — perguntei, minha voz saindo mais preocupada do que eu pretendia. Peguei em seu braço, tentando enxergá-la melhor. — Você se machucou? Viu alguma coisa? O que tá acontecendo?
Olhei para os lados enquanto falava, preparado, o corpo inteiro em estado de alerta. Sandy não a deixaria correr simplesmente assim. Ela era um espectro, podia sumir e desaparecer quando quisesse, e se pretendia mesmo fazer algo com , já teria feito. Demorei a porra de uns 17 minutos pra chegar até ali, era tempo o suficiente para encontrar em pedaços. Onde ela estava, caramba?! Queria que eu chegasse primeiro e garantisse o camarote?
— Eu estava… eu… — a voz de se quebrava, lutando contra os soluços. — Como você chegou aqui? Como sabia…?
— Isso não importa agora. Você não deveria estar aqui! — olhei para ela, um pouco de irritação pingando nas minhas palavras. — Achei que a gente tinha combinado que essa ideia era péssima. O que deu em você, ?
Cerrei os olhos, encarando a garota de novo, procurando o que eu achava ser impossível que ela carregasse sozinha, (mas muitas coisas impossíveis andavam acontecendo ultimamente): pás, picaretas, enxada e tudo que seria necessário para violar uma cova.
Mas não tinha nada com ela. Só o celular com a lanterna ligada na mão trêmula e alguma sujeira nas roupas.
— Eu não sei! — parecia perdida, os olhos vagando para longe. — Eu passei no túmulo da Sandy e… E aí…
Meu coração deu um salto. Peguei a lanterna acesa da mão dela e iluminei ao redor. Atrás de , uma estátua de anjo de pedra branca com uns seis metros de altura nos observava. A pintura estava lascada, as últimas folhas de outono ainda estavam espalhadas pelo chão e um vento gélido as empurrava serenamente para longe. Um resquício de fuligem e lodo sazonal derretia pelos seus olhos encardidos de mármore, dando a impressão de que ela estava chorando. Tudo ao redor estava imerso em um silêncio tão pesado que berrava coisa errada. Nem o burburinho dos mortos eu conseguia escutar mais. Todos tinham sumido.
Isso era merda. Nada de bom ia acontecer se a gente continuasse ali.
— Temos que sair daqui agora. — falei, virando para a direção oposta.
— Espera…
— Se você mencionar algo sobre “terminar seu serviço”, eu nem sei o que eu faço com você, . Já chega de ideias de merda. Vamos sair antes que alguém nos pegue!
— Serviço? — ela franziu a testa. — Mas do que você está falando? Eu só estava-
Eu não tinha tempo para explicações. Coloquei a mão nas suas costas e sua mão e comecei a guiá-la na direção do muro de grades, pretendendo deixar que ela me xingasse de todos os nomes possíveis lá fora, em outro lugar, no meio da avenida, que seja, até que ela perdesse a voz, mas não aqui. Meus músculos ainda estavam tensos, e talvez eu estivesse pressionando o tecido de seu casaco com tanta força a ponto de sentir a pele por baixo, mas qualquer uma dessas questões desapareceu assim que ouvi o sussurro.
— Não tão rápido, .
A voz de Sandy foi um sopro na escuridão, soando surpreendentemente macia e abafada, tão diferente daquela coisa arrastada que saiu de sua garganta no banheiro do restaurante.
Me virei bruscamente, mas não havia nada ali. Só o vazio. Cada nervo do meu corpo estava na tensão máxima, mas tudo que eu ouvi foi uma risadinha baixa e mais um sopro gelado. Coloquei atrás de mim, agora apertando sua mão.
— , o que foi?
Ignorei. Sandy estava brincando comigo. Desde o início, sabia que eu viria atrás de e queria armar um espetáculo mexendo com a garota na minha frente. Devia ter feito alguma coisa com ela lá atrás, enquanto colocava seu plano em ação. Pretendia armar um espetáculo como fez no John Jay, mas dessa vez, eu não seria o único a sentir.
Isso já estava me tirando a paciência.
Movi a lanterna de um lado para o outro, mas Sandy não aparecia — apenas sua voz, provocando, dizendo coisas que eu não conseguia entender em um timbre que mal era dela.
Você não pode escapar de mim…
Você não tem vergonha de vomitar por aí que é minha amiga? Agora que estou morta, é muito fácil!
Onde você estava quando eu precisei, ?
Por que não fez nada pra me salvar?
Por que NÃO O IMPEDIU DE FAZER ISSO COMIGO?
Você permitiu que ele me matasse. A culpa também é sua…
Me matou igual fez com seu irmão, com seu pai, com mais quem, ? Quem será o próximo da sua lista?
— Cala a boca. — grunhi com os dentes trincados, e saiu mais alto do que imaginei. Mas que porra de papo era aquele?
Os dedos de se apertaram ainda mais nos meus.
— , o que tá acontecendo? — sussurrou, e se era possível, parecia estar tremendo ainda mais. Não respondi de novo, ainda procurando Sandy, sem saber o que esperar.
Se ela não ia aparecer, pra quê caralho todo esse jogo?
— Vem comigo. — falei em um fio de voz e comecei a puxar de novo, apressando os passos pelo caminho. Foi quando tudo aconteceu.
Num piscar de olhos, foi arrancada para longe de mim, gritando ao ter o corpo arrastado pelo chão e lançado contra a estátua do anjo com uma força que seria capaz de rachar qualquer pedra desgastada. “!”, corri até ela na mesma hora, vendo-a cair de bruços sobre o gramado, e teria chegado a tempo se algo invisível não tivesse me puxado para trás, jogando todo o meu tronco para o chão com um baque surdo.
Sandy se materializou à minha frente, com um sorriso macabro.
— Filha da puta. — resmunguei, tentando levantar. — O que você pensa que está fazendo, porra?
— Fazendo o que ninguém faria por mim. Ou você acha que eu vou deixar todos eles seguirem em frente depois de tudo o que aconteceu? — sua voz era baixa, venenosa. — Todos eles que não me avisaram dos planos de Ash, que provavelmente já sabiam que ele tentaria se livrar de mim e, é, aquela ridícula bem ali que te fez vir correndo pra cá é uma dessas pessoas. E andei aprendendo coisas novas nos últimos dias. Vou aproveitar para usá-las agora. — Sandy se abaixou para perto do meu rosto, abrindo mais um sorriso sugestivo, mas que me adiantava muita merda. — Vou te dar uma chance, . Sai daqui e volta para o seu jantar. Isso não é sobre você. Inclusive, se aquilo lá era um encontro, acho que-
Só que ela não terminou de falar, porque o meu punho finalmente se mexeu. Acertei seu nariz em cheio, fazendo-a gemer e cambalear para trás, e depois atingi seus tornozelos, derrubando-a finalmente. Levantei aos tropeços, correndo até , torcendo para que Sandy se atrasasse um pouquinho na recuperação.
— ! — ajoelhei ao lado dela, seus olhos meio fechados e meio abertos, a feição atordoada. Em um impulso automático, coloquei os dedos no seu pulso. — , olha pra mim. Você está bem?
Ela abriu mais os olhos quando me enxergou. Devia estar vendo tudo embaçado. Respirei fundo, respirei rápido, tentei acalmar os batimentos o máximo que eu podia. Agarrei seus dois ombros, sacudindo de leve.
— Vamos lá, . — olhei para trás. Sandy estava balançando a cabeça, voltando a si. — Fala comigo, você se machucou? Você… — segurei a cabeça dela. Senti o líquido quente nos meus dedos.
— ... — murmurou, e conseguiu sentar o mais rápido que conseguiu quando encarou ao redor, os olhos ainda pesados da confusão mental. Quando afastei a mão de sua cabeça, vimos o sangue. Seus olhos se alarmaram. — Ah, meu Deus…
— Tá tudo bem, tá tudo bem. — falei rápido, raspando a palma da mão na grama. — Você vai ficar bem. A gente vai cuidar disso. Precisamos sair daqui. Consegue andar?
— Eu não… — de repente ela congelou, a testa franzindo violentamente, os olhos amedrontados encontrando os meus. — As vozes… você ouviu? Tinham vozes… Pareciam com ela. Com Sandy.
Minha garganta ficou seca. Ela parecia querer chorar de novo, apavorada. Mas que merda. Desviei os olhos de , sem concordar, sem fazer nada, absolutamente nada que não fosse agarrar seu cotovelo e murmurar:
— Vamos sair daqui primeiro e eu vou te explicar tudo depois. Agora vem, levan-
— Você não vai a lugar nenhum! — ouvi o grito de Sandy na mesma hora em que ela puxou a gola do meu casaco, me jogando para trás violentamente.
Rolei pelo chão, minha cabeça girando. Antes que eu pudesse reagir, ela me chutou no abdômen e enfiou um soco direto na minha boca.
— O primeiro vai ser você, então. Depois eu me resolvo com a enxerida. — ela subiu por cima de mim, a mão voando para o meu pescoço de novo. — E então, a próxima é Janice, e, por último, Ash. Esse vai ganhar um tratamento bem especial.
Dessa vez, aquele aperto tinha uma força imensurável. Nenhum dos outros fantasmas novatos que encontrei tinha uma força daquelas. Movi os braços, mas o corpo não obedecia. Senti o ar passar cada vez menos pela minha glote e meus olhos quase se catapultando das órbitas. Em pouco tempo, a visão estava escurecendo, e nossa, que droga. Eu não tava muito afim de morrer hoje.
De repente, ouvi a voz de , perfurando a bolha de ódio de Sandy. Seus dedos vacilaram por um instante, não o bastante para que eu me livrasse dela, mas para que eu olhasse e visse agora totalmente de pé, correndo até mim, com uma expressão de puro medo e terror.
— Não-o-o… — engasguei quando tentei falar, me agitando completamente. Mal tive tempo de avançar em alguma coisa quando Sandy ergueu a mão livre e, em um piscar de olhos, estava sendo lançada para trás de novo, rolando pela grama como eu pela força invisível.
Uma raiva indescritível tomou conta de mim. E quando digo indescritível é porque não sei, não faço a mínima ideia, de como consegui fazer o que eu fiz. Firmei os cotovelos no solo e joguei a cabeça com toda a força que podia no nariz da desgraçada, engolindo o gemido de dor que se alastrou pela minha testa. Isso fez com que suas unhas me soltassem, e meus braços voltaram a funcionar para que eu conseguisse empurrá-la para o lado, enfiando o punho no seu nariz. E depois outro, e outro, e outro. Ela gemeu e tossiu, e terminei com um pontapé no tórax, prendendo ela no chão de vez.
Tossi algumas vezes, puxando o máximo de ar que podia enquanto colocava o pé no seu peito, vendo ela gemer de dor.
— Eu tô… te avisando — falei entredentes, imperiosamente, sem espaço para discussão. — Se chegar perto dela de novo, ou de qualquer um que você tenha dito agora, vou te mandar direto pro inferno. Perdi a paciência com você, porra. Quando vai entender que eu tô tentando te ajudar?
Mesmo com a aparência pálida e frágil, Sandy fez questão de abrir um sorriso, lotado de escárnio, exibindo a maioria dos dentes quebrados que logo voltariam a se regenerar.
— Seu burro… — um punhado de risadinhas fez ela tremer todo o corpo. — Esse seu numerozinho de herói não serviu de merda nenhuma. Ele vai atrás dela! E com ele… — ela tossiu, um punhado de plasma nojento saindo da boca. — Com ele você não tem chance nenhuma, nenhumazinha. Tic, tac, tic, tac. Pode fazer sua contagem regressiva, imbecil…
Ela tossiu com mais violência e aí, simplesmente desapareceu no ar.
Fiquei parado por um segundo, um mísero segundo em que me permiti ficar confuso com o que ela disse. Um segundo. Quando concluí que não entendi porra nenhuma, virei para trás para procurar . Ela estava sentada, as costas curvadas, apoiando uma palma no solo, e a outra mão segurando a testa enquanto me olhava de um jeito… esquisito. Aquele tipo de careta que já recebi muito na vida, a que me dizia exatamente o que ela devia estar pensando.
Com-quem-você-está-falando?
Engoli em seco. parecia com medo e seria estranho não estar. Devia ser bizarro e desesperador ver uma pessoa prestes a morrer de asfixia sozinho, gritar sozinho e depois socar o ar sozinho.
Beleza, isso era uma merda, mas iria para o fim da fila. Corri até ela, me abaixando da mesma forma que antes, o coração batendo tão rápido que era capaz de me ensurdecer. Toquei seu rosto de novo para olhar a ferida. Tinha um corte novo, aparentemente superficial em cima da sua sobrancelha que também sangrava, e seus olhos, que antes eu achava estarem focados em mim, na verdade pareciam grogues e embaralhados, voltando de um pesadelo.
— . Ei. — sussurrei, afastando seu cabelo do rosto. — Você consegue levantar? Fala comigo. A gente precisa sair daqui, o meu carro tá na avenida, só precisamos andar até-
Ela colocou os dedos nos meus lábios, me silenciando. ergueu o queixo e fixou o olhar ali, na minha boca, enquanto raspava a unha no meu lábio inferior, observando, observando, observando.
A gente não tinha tempo. Eu não tinha certeza se Sandy tinha se mandado de vez. Não fazia ideia de onde estavam o resto dos fantasmas. A névoa estava se dissipando, mas não tinha sumido. Alguém podia ter ouvido aquela confusão, um coveiro despertando, algum dos mendigos no portão, os bêbados do parque Ewen ou um motorista qualquer passando pela Jerome naquela hora que por acaso fosse um bom cidadão e abominasse vandalismo.
Mas eu fiquei parado. Obsequiosamente parado. Olhando para enquanto ela olhava para minha boca e (tocava na minha boca) espalhava um calor absurdo por toda a região da minha epiderme, dos tecidos, da merda dos nervos sensoriais como um dragão cuspindo fogo. E acabei olhando para a boca dela também.
Então, depois de 1 segundo ou 1 hora, ela puxou o dedo de volta, trazendo sangue escuro e aguado para baixo da unha. Um sangue que não estava ali.
Passei a ponta da língua no canto da boca. Senti o gosto de ferro na mesma hora.
— Você… Ah, meu Deus. Você tá sangrando. — disse ela, a voz fraca. — , eu não… eu não sei o que aconteceu, eu vi você quase-
— É, eu sei. Preciso te levar pra um hospital agora. — interrompi, começando a me mexer para levantar. — Você bateu a cabeça, pode ter uma concussão ou coisa pior. Me diz, por favor, que consegue levantar.
me encarou por um tempinho antes de aceitar minha mão e se colocar de pé, quase caindo de novo por um segundo. Segurei-a pelos ombros, firmando sua postura.
— Consegue andar?
balançou a cabeça uma vez, e então duas, e no momento seguinte deu um passo para trás e assentiu.
— Quero sair daqui. Vamos.
Só murmurei uma concordância, pronto para começar a andar e guiar a gente para fora daquela neblina. Mas, como o universo estava decidido a conspirar contra mim naquela noite, toda a merda ainda estava muito, muito longe de acabar.
Era como se meu cérebro estivesse me avisando antecipadamente. Cinco, quatro, três, dois…
Sirenes.
Pelo menos duas delas começaram a apitar, e luzes vermelhas e azuis estavam piscando à distância. Xinguei entre os dentes quando avistei lanternas se aproximando, dessa vez lanternas de verdade nas mãos de homens de farda de verdade, ziguezagueando em busca da origem da confusão. Os zeladores finalmente tinham notado alguma coisa.
Era tudo que eu não precisava.
arregalou os olhos, e talvez pode ter recomeçado a tremer.
— Fala sério… — ela soltou o ar, olhando em volta. — O que a gente faz, ?
— Só faz o que eu disser. Vamos! — dessa vez, não tive tanto cuidado: puxei sua mão e literalmente corremos na direção das grades, o único caminho de fuga que eu tinha em mente.
Passar pelo gradil não seria o maior problema. O verdadeiro desafio seria despistar os coveiros e os policiais que estavam patrulhando a área. Puxei para a escuridão da base do muro a poucos metros da estátua, tentando não fazer ruído algum.
Não precisei falar nada. olhou para a cerca de ferro que rodeava tudo e entendeu rápido.
— Tá legal… tá legal. — disse, começando a levantar a perna para passar.
A avenida estava vazia quando pulei depressa para o outro lado. A cerca de Woodlawn não devia ter mais do que 1m80cm de altura, servindo apenas para delimitar o espaço do gramado e deixar claro o que era cemitério e o que não era. Pousei os pés de forma mais digna do que da primeira vez, mas zoneou um pouco, cambaleando para o lado e quase caindo, se eu não a tivesse segurado. O problema foi que o barulho soou mil vezes mais alto no asfalto por conta do silêncio ensurdecedor da rua parcialmente iluminada por postes amarelos e sem uma alma penada, preenchida apenas pelo zumbido das sirenes que se aproximavam cada vez mais.
— Que droga… — ela trincou os dentes, levando uma das mãos para o machucado na testa. Abri a boca para perguntar, de novo, se estava tudo bem, mas o reflexo da luz azul piscante me fez desistir. A gente não tinha tempo para isso. Deixaria ela vomitar o quanto quisesse depois que entrasse no meu carro (que, de preferência, não fosse dentro do carro).
E por falar em carro, não conseguia vê-lo em lugar nenhum. Em nenhum metro quadrado do asfalto. Em nenhuma calçada. Corri ao lado de , olhando para todos os lados, até me tocar, do jeito mais burro possível, que não saí de Woodlawn pelo mesmo lugar que entrei. Toda a confusão, a luta, a estátua do anjo, o sangue, todas essas coisas aconteceram depois da colina, longe dos portões principais, o que significava que eu só encontraria o Jeep se contornasse toda aquela grade até onde exatamente estava a polícia naquele momento.
— Porra. — xinguei quando vi a luz vermelha na frente, parando abruptamente e travando o cotovelo de . Os filhos da puta estavam rondando. Os faróis, como olhos monstrengos, invadiam a escuridão, e logo logo jorrariam uma luz escaldante que não daria pra esconder nada; pular para dentro do cemitério estava fora de cogitação.
Na verdade, fugir e se esconder já estava fora de cogitação. Infelizmente, eu e não éramos mais rápidos do que um carro, e querendo ou não, duas pessoas cheias de suor, sangue e fuligem correndo em uma avenida escura e vazia de Nova York? Sem chance da gente não conhecer o interior da viatura.
— Ai, caramba… — ela suspirou em derrota.
— Caralho.
— …
— Tô pensando. Calma, tô pensando. — ofeguei, passando uma mão rápida pelo rosto, ouvindo as engrenagens do meu cérebro correndo como um hamster. A boca de abria e fechava, seus olhos corriam em todas as direções, chegando a mesma conclusão óbvia: não dava para correr.
E não dava para ficar.
A luz dos farois já estava chegando nos meus pés.
— Temos que ir… — no automático, girou para dar meia volta, mas ergui o braço para impedi-la.
— Não. Não vai dar.
— Tá maluco? Eles vão nos pegar. É a polícia. A gente não pode-
— Lembra que eu falei pra fazer o que eu disser? — interrompi, e ela hesitou por um segundo antes de concordar com a cabeça. Puxei bastante ar pelo nariz. — Então fica parada.
Foi aí que beijei ela.
Tipo na boca de .
Eu queria ter alguma justificativa. Queria saber explicar porquê fiz o que fiz, porque me joguei em uma série de decisões impulsivas desde o instante em que Sandy apareceu naquele banheiro. Desde que atravessei 23 quilômetros em menos de 30 minutos e agarrei o rosto de como se fosse a coisa mais natural do mundo. Minha mente tentava me convencer de que tinha sido por uma boa causa: distração, mentira, necessidade, fuga. Qualquer coisa para não terminar a noite numa cela, algemado, tendo que inventar desculpas que não combinavam. Fugir, era tudo que eu estava pensando. Fugir, fugir…
Mas aí, de repente estava abrindo a boca dentro da minha, eu automaticamente estendi a língua, ela também, e quando as duas se tocaram, ela soltou uma espécie de gemido, que fez toda essa narrativa da minha cabeça se transformar em um monte de Blá Blá. Blá-blá-blá. Blá.
Puta merda, o que eu estava fazendo?
E por que, de novo, eu estava tendo aquele lapso? Aquele momento estranho que tive em Ocean Hill, quando os Beatles começaram a tocar e eu olhei para ela como se olha para qualquer pessoa, mas não consegui desviar o olhar de jeito nenhum. Eu tentei. E agora, naquela avenida gelada e vazia, depois de ter quebrado os dentes de um fantasma e fodido com a única calça social que eu tinha, parecia que eu estava ouvindo a porra dos Beatles de novo.
Uma luz branca e forte iluminou a lateral do meu rosto, puxando-me de volta para a realidade. Entreabri os olhos e vi um policial se aproximando de nós, a lanterna apontada como uma arma. Afrouxei o aperto no cabelo de e soltei um pouco do seu quadril, muito devagar, sentindo uma urgência absurda de respirar. Não fazia ideia de em que momento meus braços se mexeram daquele jeito, e muito menos como acabamos do outro lado do meio-fio, quase imprensados no muro de grades que tínhamos acabado de pular cinco minutos atrás, comprimidos em uma pegação bem, bem desconcertante.
— Ei, vocês aí! — o policial gritou, já bem perto, e parei de beijá-la de vez, afastando meu rosto, arfante, o canto da boca machucada latejando. Ela demorou uma eternidade para abrir os olhos e entender o que estava acontecendo, aquele par de írises azuis mirando o meu rosto sem foco. Quando percebeu, tentou se afastar de mim, mas a impedi com o braço ainda em volta dela, lançando um olhar óbvio: “Ainda não acabou. Finge mais um pouco, e depois você pode me matar.”
Ela franziu a boca, ainda confusa e desnorteada, mas agora com um traço normal: aborrecida.
— Vocês acham que isso aqui é lugar pra fazer esse tipo de coisa, a essa hora? — o policial perguntou, agora desligando a lanterna e nos encarando.
abaixou a cabeça, e percebi que ela tinha colocado os dedos no lábio inferior e tirado, a cabeça ainda meio longe daqui. Soltei um pigarro, tentando parecer confiante.
— Desculpe, senhor. Já estamos indo embora, nós só-
— O que aconteceu com a roupa dela? — ele me interrompeu, apontando para os jeans claros e o suéter de sujo de terra. — Aliás, o que houve com vocês dois? A senhorita está bem? Esse rapaz fez alguma coisa com você? — ele se aproximou, e meu coração disparou. hesitou por um segundo antes de falar:
— Não, não! Não é isso. Ele não fez nada… — a voz dela estava tão rouca que quase virei a cabeça para verificar se era a mesma pessoa. Ela coçou a garganta como eu, gesticulando com as duas mãos. — É difícil explicar, senhor...
Ela olhou para mim, pedindo ajuda, mas é óbvio que ainda não tínhamos uma história.
— Difícil, é? — o policial estreitou os olhos, visivelmente desconfiado. — Posso saber de onde os dois estão vindo?
— Senhor, é complicado...
— Complicado? — ele cruzou os braços, nos encarando daquele jeito que me dava certeza de que não escaparíamos dele nem se, por um milagre, levantássemos voo dali. — Recebemos uma denúncia de possíveis vândalos aqui no cemitério. Vocês sabem algo sobre isso?
— Não sabemos. — respondemos juntos.
— Então por que diabos estavam saltando daí de dentro?
Abri a boca para responder, mas as palavras sumiram. A porra do meu cérebro parecia estar jogando ping-pong com os meus sentidos; dois segundos concentrados no policial, cinco segundos concentrados nos meus dedos em volta de , que não se decidiam se ficavam quentes ou gelados.
Virei a cabeça para ela, que me lançou aquele olhar: “Agora é com você”. Ótimo.
Puxei meu braço de volta, agora oficialmente retornando à capacidade máxima da inteligência.
Ou quase isso.
— Err... Senhor, é meio constrangedor... — tentei sorrir, sem jeito.
— Ou você se constrange na minha frente agora ou vão ter que se constranger na delegacia. Decide, rapaz. — ele disse, firme.
Travei a mandíbula, desejando que algum dos mortos dando voltas em torno do cimo da colina quebrasse um galho naquela hora e fizesse tanto barulho que esse pobre policial seria obrigado a parar de me encarar desse jeito — um jeito que me obrigava a pensar rápido, e eu geralmente era bom em pensar rápido, mas naquele dia, e naquela hora, não estava funcionando.
E, pelo visto, continuaria a não funcionar.
— Nós só... bem, só estávamos tentando... você sabe, fazer em um lugar diferente! — odiei cada unidade de palavra que saiu da minha boca, e percebi virando a cabeça para mim na mesma hora, chocada. Mesmo sem olhar, sabia que ela tinha ficado uns 50 tons mais vermelha, e eu uns 80 graus mais quente. — Não deu nada certo. Na verdade, foi um fracasso, como o senhor pode ver.
O homem piscou umas duas vezes, roçando o dedo em cima do botão de power da lanterna, pronto para ligá-la novamente.
— Como é que é, meu jovem? — ele arqueou uma sobrancelha, irredutível. — Quer que eu acredite que vocês dois fizeram o sexo mais bizarro da face da Terra em cima da sepultura de algum pobre coitado pra mostrar que são descolados ou algo assim? Acha que eu não notei os machucados? Ainda mais os dela. — ele voltou o olhar para . — Senhorita, vou dizer de novo, se esse rapaz fez…
— Tá legal, ele fez. — interrompeu. Agora foi a minha vez de virar o rosto e praticamente gritar um O QUÊ?
O policial deu um passo à frente, apreensivo. soltou um suspiro longo.
— Meu… namorado e eu — ela começou, a palavra saindo meio engasgada. — viemos mesmo pra fazer em um lugar diferente, mas não é sexo, o nosso lance é bem mais legal do que isso. — ela tentou sorrir? O policial se perguntou a mesma coisa. — Krav maga. Sabe, dar uns chutes, uns socos, enforcar alguém sem pensar em matá-la. É uma excelente arte de defesa pessoal, aposto que o senhor adoraria, pra pegar bandidos e tudo mais. E, no nosso caso, dá pra ficar coladinho por muito mais tempo.
Agora ela estava mesmo sorrindo, tocando o ombro no meu, se aninhando como um gatinho. Queria ter o que falar, ou o que pensar, mas estava tão chocado quanto aquele policial. O cara tinha saído de desconfiado para desconfortável em um segundo.
E “namorado” foi uma baita novidade. Considerando que hoje de manhã ela era a minha prima.
Vi as fases do raciocínio passando através dos olhos semicerrados dele, agora olhando para mim em busca de um furo. Imediatamente, tentei sorrir como , os dois soltando aquelas risadinhas fingidas.
— É, é, o senhor pensou que eu tava falando do quê? Claro que eu e a minha… namorada… minha namorada e eu, a gente ama krav maga.
— Amamos mesmo.
— A gente dorme igual um bebê depois.
— E é muito excitante.
Meu sorriso quebrou, mas logo recuperei. Sentia alguma coisa comprimindo o peito, uma ansiedade maluca que estava quase me fazendo mudar de ideia e usar um golpe de krav maga de verdade naquele policial e abrir uma brecha para correr até o Jeep.
Ele abriu e fechou a boca duas vezes, dizendo quase curioso:
— Em um cemitério?
— Como eu disse, é excitante. — respondeu na frente, e abaixou a mão para pegar na minha, mas recuou no último segundo. — Que isso, o senhor deve saber do que eu tô falando. Já viu Clube da Luta? O frenesi é muito parecido.
Não sei como conseguia ficar sorrindo enquanto falava aqueles absurdos, mas o que me restava? Só imitar. E devo ter feito isso muito bem, porque o cara ficou nos encarando por um tempo, um tempo muito longo, com a expressão de quem pensava que a delegacia não era bem o lugar certo para nós dois, mas outro tipo de instituição — uma onde os profissionais usavam roupa branca, te davam umas pílulas, arrumavam sua postura com eletrochoque, essas coisas.
Mas, por fim, ele estalou a língua e soltou uma risada alta.
— Ah, entendi! Vocês, jovens, não têm mais o que inventar. — ele finalmente guardou aquela lanterna no bolso. Eu e éramos dois mímicos ali; o que ele fazia, a expressão que fazia, o volume da gargalhada que dava, a gente imitava. — Mas olha só, é quase meia-noite, e estamos no Bronx. Vocês sabem o que eu tô falando, né? Nenhuma defesa pessoal serve se alguém decidir te dar um tiro a 100 metros de distância. Sugiro que vocês continuem essa... atividade, em outro lugar. Mas, se querem uma dica, acho que sexo é mais gostoso e menos perigoso do que essa coisa aí. Ah, por falar nisso. — ele tirou um cartão do bolso e me entregou. — Meu cunhado tem um motel aqui perto, em Norwood. Não é cinco estrelas, mas é bem melhor do que esse muro. Podem ficar animados à vontade lá.
Tive um desejo intenso de me enfiar no chão e nunca mais sair.
— Agora sumam daqui, e quando eu voltar, não quero mais ver vocês. — ele finalizou, antes de voltar para a viatura e arrancar.
Levei alguns segundos a mais para me mexer depois que ficamos sozinhos. Aquele calor maldito tinha tomado todas as partes do meu rosto, e por um tempo, nem quis olhar para . Quando fiz, ela não me olhou de volta, ajeitando o suéter e o cabelo, o rosto tão vermelho quanto estava antes.
— Então... — comecei a falar, mas ela logo ergueu a mão para me calar.
— Você ouviu o policial. Temos que sair daqui. Agora. — ela começou a andar na direção de antes, mas logo parou e se virou para mim. — O que ainda tá fazendo com esse cartão?
Acordei em um sobressalto e joguei aquela coisa na lixeira mais próxima.
Passava da 01h00 da manhã quando atravessou as portas do Mount Sinai e saiu para o ar gelado da Avenida Madison.
Só percebi isso quando ela estava quase no meu carro. Nos últimos 40 minutos, fiquei recostado na porta do motorista do Jeep, parado e calado por tanto tempo que alguém poderia pensar que eu era uma estátua de cera. Uma penca de aviões atravessavam o céu de minuto a minuto, saindo do aeroporto de La Guardia, a 7 km dali, apagando meu cigarro por pelo menos três vezes até eu desistir de vez. Não precisava dele agora, já que não passava nada na minha mente, ou passava tanta coisa que nem valia a pena gastar uma guimba de Camel para isso. Nada os faria calar a boca.
Quando vi ela se aproximando, joguei o cigarro apagado no chão na mesma hora, endireitando o corpo. estava com o meu casaco outra vez, aquele limpo e quente que morava no banco de trás, e vi fita adesiva e gaze cobrindo aquela corte em cima da sobrancelha, sem nenhum outro sinal de sangue.
— E aí? O que eles disseram? — perguntei apressado, chegando mais perto. Não tinha outro curativo em lugar nenhum, nem onde ela tinha batido a cabeça.
— Tá tudo bem. Sem concussão. — respondeu, umedecendo os lábios secos. — A tontura já passou e me deram uns analgésicos. Ele disse que eu só preciso descansar.
— Não pediram pra você ficar em observação?
— Não preciso.
— …
— Quero ir pra casa. — ela desviou os olhos para a porta do carona, caminhando até lá. — Temos que ir pra casa.
Ela puxou a maçaneta e respirei fundo antes de entrar. O clima parecia mil vezes mais pesado e tenso dentro daquele compartimento, minúsculo de repente. Nem se abrisse a janela, talvez, diminuiria o sufoco. Todas as coisas que precisavam ser ditas estavam empanturrando o ar, e talvez por isso tenha insistido tanto em entrar no hospital sozinha, pedir seus curativos sozinha, e ficar o mais longe possível de mim. Posso apostar meus discos que alguma parte dela estava torcendo para não me encontrar ali quando saísse.
— Soube que pagou a conta do hospital. — ela disse quando estendi a mão para a ignição. — Não precisava.
— Precisava, sim. — murmurei. Liguei o carro, deixando o som do motor invadir e barrar seus protestos antes mesmo que eles aparecessem.
Mesmo com as engrenagens do Jeep nas alturas e um Iron Maiden estourando todos os circuitos do meu som, o silêncio ainda era vivo, quase físico. No fundo, eu sabia o que era isso. Estava preparado para o interrogatório que inevitavelmente lançaria sobre mim. Enquanto dirigia, tentei elaborar mentalmente histórias e desculpas, qualquer coisa que pudesse explicar o que aconteceu naquela noite sem passar nem perto da verdade. Até pensei em corroborar a teoria dela de que eu era mesmo epilético — ou apenas louco.
Mas as perguntas não vieram. Até quando curvei na Interestadual e entrei em Bayside, cheio de mansões geminadas gigantes e jardins com botão de rosa, a garota não disse uma palavra. E isso me incomodava mais do que qualquer bombardeio de questionamentos. Quando estacionei a alguns poucos metros de sua casa, estava encolhida no banco do passageiro, com o olhar perdido em algum ponto distante, e tudo o que eu queria era saber o que se passava na sua cabeça.
Desejei não tê-la trazido pra casa tão cedo, mas não tive coragem de perguntar se ela queria ir para algum outro lugar. Eu definitivamente não deveria fazer isso. Parte de mim queria acreditar que o silêncio era por causa do beijo, que ela ainda estava pensando se me dava um tapa na cara ou um chute no saco, mas sabia que era mais do que isso. Muito mais. Ela tinha me visto lutando com a porra de um fantasma! Um beijo não chegava nem perto disso.
Mas porra, por que ela não estava saindo? Por que não estava se mexendo, arrancando o cinto, voltando para a sua realidade de garota linda e popular, decidida a me ignorar como se eu tivesse lepra pelo resto da sua vida!? Em vez disso, ela estava ali, alimentando um silêncio tão profundo entre nós que dava para ouvir o som das sementes de pinho caindo em cascata dos pinheiros do seu quintal.
Acendi a luz do carro, e isso pareceu despertá-la. Havia um medo em seus olhos que eu definitivamente não queria ver ali — um medo de mim, na pior das hipóteses. Estendi a mão para abrir o porta-luvas, e ela se encolheu ainda mais. Peguei o kit de primeiros socorros que guardava para emergências e olhei para o ralado pequeno nos seus joelhos, exposto através do tecido rasgado do jeans. Talvez ela não tenha achado nada demais nele ou o médico de plantão devia estar no seu ciclo de 24 horas de privação de sono, com o café perdendo o efeito. Ela seguiu meu olhar, e logo disse:
— O que está fazendo com isso? — sua voz soou baixa, quase apagada, sem traço de ansiedade ou pânico. Apenas cansaço.
— Não achei que você gostaria de chegar em casa assim. — respondi, mantendo a voz firme, embora soubesse que fingir que nada aconteceu não resolveria nada. — Posso cuidar disso, se quiser.
Se ela pedisse para que eu fosse embora, eu iria sem hesitar. Estava disposto a fazer qualquer coisa para dissipar a expressão de desconforto no seu rosto. Tinha algo ali, no seu olhar, que estava me machucando de uma forma estranha.
Para minha surpresa — e, sim, um pouco de alívio —, ela se virou para mim e deslizou a perna sobre a minha. Puxou a barra da calça para cima, mostrando traços de sujeira nos tornozelos e nas meias que antes eram brancas. Apoiei sua perna, ajudando a levantar o tecido pesado. Quando raspei o dedo na sua pele exposta, senti o corpo formigar de um jeito vergonhoso. Soltei, mas sem me afastar. me observava com um olhar cauteloso, avaliando cada movimento meu, como se esperasse que eu fosse dar uma de maluco de novo.
Sem dizer nada, abri a caixa e peguei clorexidina e a gaze, começando a fazer o curativo em silêncio. Terminaria bem rápido, graças à professora de Clinical Skills, que deve ter sido uma ex-participante desses reality show de vida selvagem, tipo Survivor, porque nos tratava como escoteiros mirins ao invés de futuros médicos. Ou você fazia um curativo excelente em 60 segundos ou daria cinco voltas no campo de futebol da Baker Athletics. A mulher era insana.
encostou a cabeça na janela e cerrou os olhos quando toquei em seu joelho com o antisséptico.
— Ai! — ela trincou os dentes, o corpo tremendo por alguns segundos. — Acho que eu posso fazer isso sozinha…
Ela tentou puxar a perna, mas segurei firme.
— Já estou terminando. — cortei. Não queria soar grosseiro, mas um pouco da minha frustração escapou. Ela não podia aceitar a minha ajuda? Para nada? Nem para subir um muro, pagar a conta de um hospital ou para desenterrar a porra de um cadáver no cemitério? Tinha que sair metendo os pés pelas mãos e se arriscando sozinha sempre?
Soei extremamente como a minha avó agora, mas era parte da loucura que eu tava sentindo. Se queria me torturar com um silêncio que não deixava claro se era raiva, dúvida ou medo, que fosse, mas eu estava odiando aquilo pra caralho.
Ela não discutiu comigo, deixando que eu terminasse o curativo. Posicionei sua perna de volta no chão com cuidado e voltei minha atenção para o da cabeça.
— Posso ver se tá tudo certo com esse também? — perguntei, e na mesma hora quis me agarrar e me sacudir, gritando: o que. você pensa. que está. FAZENDO?
Acredito que em qualquer outra situação, iria rir daquele jeito debochado e me achar um arrogante filho da mãe. Olha só, se acha tão inteligente e esperto a ponto de precisar revisar o trabalho de um médico de verdade? Que criatura incrível você é, número 1.
Mas ela não disse nada, e nem recusou. Aproximou-se de mim, fazendo meu peito sofrer aquela fisgada de antes, como se eu estivesse prestes a ter um AVC — não conhecia exemplo melhor para explicar aquela dorzinha incômoda. Afastei seu cabelo para trás da orelha, vendo ela tremer, então coloquei minha mão livre em seu rosto para estabilizá-la. Aqueles olhos azuis estavam me olhando de um jeito que ninguém olhou, perfurando a pele, ossos, músculos, tecidos, indo direto para a alma — como se tentasse decifrar se tudo o que havia visto era real, se realmente estava aqui comigo, depois de me ver dando socos em uma força invisível, dizendo coisas ao vento, revelando toda a maluquice que habitava dentro de mim.
As perguntas estavam ali, eu podia ver agora claramente. Mas eu não sabia se ela queria as respostas. Talvez fosse essa a razão pela qual ainda não tinha saído apavorada do meu carro ainda: não tinha certeza ou confiança plena no que tinha acabado de ver.
A maioria das pessoas era assim. Fantasmas agem no cotidiano o tempo todo, com um prazer incondicional de se mostrarem presentes ao mundo, mas as pessoas preferem simplesmente ignorar e aceitar como ilusão de ótica, estresse, esquizofrenia, loucura. Aceitam que essas coisas não são reais, que fantasmas não existem, que o mundo é colorido e normal. Era mais fácil assim, é claro. Já desejei inúmeras vezes poder trocar de lugar com elas. A ignorância é uma benção que eu jamais poderia usufruir.
Mas ali, com o rosto dela tão próximo do meu que era capaz de sentir sua respiração, eu sabia que estava além desse senso comum. Vi que eu tinha aguçado sua curiosidade e confundido todo o seu córtex cerebral. Eu vi ou não vi? Verdade ou ilusão? Estresse ou medo? Não era tão simples assim colocar essas questões para fora.
Esperava que nunca fosse.
Soltei seu rosto e guardei o kit. Voltei as mãos para o volante, prestes a dizer que precisava ir, mas ela falou primeiro.
— Você ainda não me respondeu.
Olhei para ela, o cenho franzido.
— Como sabia que eu estava lá?
Pensei por um momento. Com , eu sempre soltava a primeira coisa que me vinha à cabeça, e isso costumava funcionar. Mas algo me dizia que com seria diferente.
— Já disse que isso não importa. — respondi, tateando o console central até achar o maço que eu guardava. — O importante é que eu estava lá. — acendi o cigarro, mesmo sabendo que ela não gostava e nem entendia a mensagem que eu queria passar: não tô afim de conversa.
Ela seguiu cada movimento meu com os olhos, a boca torcida em uma expressão de frustração. O medo ainda estava lá, mas agora se misturava com algo mais intenso, algo que parecia à beira de explodir.
— Por que eu precisaria de você lá?
— Porque, por incrível que pareça, existem coisas que você não pode fazer sozinha.
soltou uma risada curta e sem humor, a garganta arranhando de um jeito alto.
— Ir para Woodlawn é com certeza algo que posso fazer sozinha. E eu precisava-
— É, porque a porra da sua caçada virou sua missão de vida, né? Que se dane se danificar ela no processo, a matéria no Citizen importa muito mais.
Olhei para a janela, expirando aquela raiva repentina. virou a cabeça pra mim, enrugando toda a testa enquanto buscava entender minha reação. Eu também não entendia, mas talvez aquilo era o que Gina e minha avó sentiam quando eu dizia que queria visitar o casarão assombrado de Amityville no Halloween só para descobrir se era mesmo assombrado e elas diziam que não, não, isso é muito perigoso, então definitivamente não. Honestamente, talvez ele não fosse mesmo assombrado, mas se fosse, as coisas ficariam feias. Do tipo que era burrice pagar para ver. Entendi isso naquela hora, quando remoí a imagem do que estava tentando fazer — mexer no corpo de uma assombração instável e imprevisível.
Burrice pura.
— Eu não entendo porque você tá desse jeito…
— É, você não entende, . — grunhi, agora largando o volante de vez, sentindo toda aquela coisa nascida não sei da onde queimar em ondas e mais ondas. Estava me cegando. — Você me ouve falar com todas as letras pra resolvermos as coisas juntos, pra não agir de cabeça quente, e daí aproveita a primeira oportunidade pra ir naquela porra sozinha se achando a Lara Croft. Tem ideia do risco que você correu?
— O quê… É um cemitério.
— As pessoas morrem em cemitérios, . É preguiçoso e genial ao mesmo tempo, mas elas morrem.
— Então você estava preocupado que eu pudesse morrer, é isso?
Não respondi. Tinha centenas de milhões de palavras se acumulando na minha garganta, nenhuma que fizesse algum sentido, então sei lá o que eu responderia. Sim? Eu pensei mesmo que ela poderia morrer, porque uma fantasma enlouquecida ameaçou fazer isso, porque uma outra coisa bizarra e estranha queria a mesma coisa, porque aparentemente, tinha uma faixa imensa escrita com letras garrafais e sublinhadas que era o próximo nome a ser marcado numa lápide a ser enterrada no gramado úmido daquele mesmo cemitério em algum momento das próximas semanas.
E eu prometi deixar as coisas rolarem. Respeitar a natureza do cosmos, da vida e da morte e essa merda toda que minha avó explicou. Mas, quando vi, já estava me mexendo, já estava odiando tudo de novo.
Então, é, preocupado parecia ser uma boa definição, mas a palavra tinha um certo impacto que não pegaria bem, então relaxei todos esses pensamentos vorazes e resmunguei:
— Espero que você esteja preocupada com isso. — coloquei o cigarro na boca e voltei para a posição do banco, percebendo depois que me aproximei dela. Tinha que ir embora. Nem devia estar aqui. — Olha, se você já estiver bem…
— Eu não estou bem! — ela vociferou, me surpreendendo. Ali estava a raiva, soterrando todo aquele medo de antes. — Já chega. Para com isso. O que… O que foi aquilo? Como você… Como eu…
tropeçou nas palavras, sem conseguir encontrar o ponto de partida para o que queria dizer. A confusão tomou conta de seu rosto, e senti o peso de um estádio inteiro no peito, contorcendo o estômago. Não entendi o sentimento. A garota estava ali, finalmente, pronta para me enquadrar, acabando com aquele silêncio fodido. Aconteceria mais cedo ou mais tarde. E eu estava pronto para negar.
Mas de repente senti raiva por ter que fazer isso.
Quis socar o volante e socar a mim mesmo por ter me metido nessa merda. Por ter saído do restaurante e ido até Woodlawn. Mas logo me dei conta: se eu não tivesse feito isso, poderia estar morta agora. Essa constatação fazia minha raiva se voltar contra mim mesmo. Eu não conseguia explicar nada.
Não tentei completar o que ela disse. Não tentei perguntar. Só mantive uma expressão indiferente, agora quase entediada, como se ela tivesse acabado de dizer que iria viajar com magos — alguma coisa assim que não dava para levar a sério. Não ia deixá-la olhar para dentro de mim de novo, ficar curiosa sobre algo que não existia a menor chance de ela saber.
Isso tinha sido um erro. Tudo isso.
— Você parece cansada pra cacete. — falei, tragando um pouco do cigarro e ligando o motor. O barulho fez o meu próprio corpo vibrar. — Já tá bem tarde e vou seguir sua filosofia de não querer ser visto aqui uma hora dessas. A não ser que suas câmeras de segurança sejam só um enfeite.
Do nada, se inclinou para o meu lado e arrancou o cigarro dos meus lábios, jogando-o pela janela. Levei um susto, mas não demonstrei. Seus olhos brilhavam com uma fúria e desespero que estavam piorando aquele rombo no meu estômago.
— Eu lembro. Eu vi. Eu não sou louca. — sussurrou, o rosto tão próximo do meu que eu podia ver as marquinhas mínimas de uma fileira de sardas na sua bochecha. Ela sabia o que queria dizer, mas a voz vacilava, como se tivesse medo até de ouvir a si mesma. — Eu ouvi… ela falou… sobre o … — sua expressão se desfez em algo parecido com choro, mas se segurou, os olhos marejando até que uma lágrima finalmente escapasse.
No momento seguinte, ela estava abaixando a cabeça, os ombros tremendo enquanto tentava controlar os soluços. Meu maxilar doeu de tanto que trinquei os dentes, a vontade de socar Sandy mais algumas dezenas de vezes crescendo dentro de mim. Não sabia o que exatamente ela tinha feito com , não sabia que porra era aquela que disse, mas o fato é que agora não era o momento de eu saber. Para ser honesto, sentia um alerta vermelho bizarro sobre aquilo, a voz da minha avó triplicada com megafones gritando: não queira saber! Não pergunte! Não se envolva nos segredos dessa garota assim como não quer que ela se envolva com os seus!
Tudo bem, eu não ia saber. Não ia perguntar. Mas ela não deveria começar a chorar.
— Vai pra casa, . — repeti, a voz baixa e controlada. Até eu quase acreditei nela.
Mas ergueu a cabeça, me olhando com uma expressão ainda pior do que antes, enxergando alguma coisa… a mais. Seus dedos se agarraram ao tecido da minha camisa e me puxaram para mais perto.
— Você… — sua respiração estava entrecortada. — Você viu alguma coisa. Estava vendo alguma coisa. Não me faz de idiota! Você estava lá! Você se lembra, você a ouviu! Ela falou do meu pai, sobre o … Meu Deus, . Ela disse que eu… eu… — seus soluços se intensificaram e ela fechou os olhos com força, deixando mais lágrimas rolarem. Parecia que alguém tinha me colocado em um caixão e estavam fechando a tampa aos poucos, e eu não conseguia me mexer para avisar que estava vivo. — Era Sandy. Eu tenho certeza. Fui visitar o meu irmão e ela estava lá, estava lá e te machucou, e tudo isso aqui, e eu também, toda aquela loucura, você a viu! Não mente pra mim, , você a viu e lutou com ela! É como daquela vez, ele também estava vendo…
— Meu Deus, do que você tá falando? — interrompi, todos os nervos inchados e quentes, mantendo o olhar frio e distante. — Você ficou tão obcecada com essa história de autópsia que foi tentar fazer uma besteira em Woodlawn, e eu fui livrar a sua cara, foi isso. De nada, inclusive. E você levou uns tombos, o que seria meio engraçado se a gente não tivesse que correr pra não ser pego pela polícia. Acho que você nunca ia poder fazer parte da equipe de Atletismo, já que quase me derrubou junto um monte de vezes até a grade. E não se joga o cigarro de ninguém fora desse jeito, . Que falta de educação.
Sua boca se abriu em choque, e eu me senti um cretino. procurou alguma faísca de verdade nos meus olhos, ou fingimento, mas tudo o que encontrou foi indiferença. Insensibilidade — até um pouquinho de aborrecimento. Era a mágica que você aprendia com o passar do tempo: foca na casca. É a única parte sua que as pessoas podem ver.
E eu tinha certeza que estava fazendo como sempre, fingindo bem como sempre. Mas o vinco na testa de não foi embora.
— Não, você também ouviu. — insistiu, a voz subindo de tom. — Você falou com ela, naquela escuridão… Eu sei que tinha algo na escuridão, você se lembra, não vem querer me despistar.
— Eu não estou-
— Pode dizer o quanto quiser que bati a cabeça, mas você se lembra, você…
Nervoso, afundei os dedos no seu cabelo com uma mão, puxando nossos rostos para perto até nossos narizes se tocarem. Meus olhos transmitiram impaciência e uma raiva não disfarçada. Queria que ela entendesse o recado: cale a boca.
— Quer mesmo saber do que eu me lembro? — minha voz saiu baixa, quase um rosnado. — Lembro disso… — tracei a linha de seus lábios com a ponta dos dedos, fixando meu olhar ali. — E disso… — apertei um pouco mais o cabelo entre os dedos, avançando. Um jato de ar quente pareceu envolver toda aquela carroceria. Aspirei seu perfume doce, jogando aquela coisa estranhamente não-desagradável para dentro do meu corpo inteiro.
Vi a raiva dela vacilar, seus olhos quase se fechando em um suspiro entrecortado. Não fazia a menor porra de ideia do que estava fazendo. Esperava que ela me empurrasse. Esperava que me socasse. Esperava qualquer coisa, menos aquele olhar.
Um desejo estranho e sombrio surgiu, me enchendo por dentro. “Você não lembra?”
Soltei o cabelo dela de repente, como se os fios queimassem minha pele, e afundei no banco do carro.
— É tudo que eu lembro, , e pelo visto você também. Não precisa inventar historinhas só porque tá tímida.
me encarou com um olhar muito parecido do John Jay, naquele primeiro dia vergonhoso do almoço: desprezo. Talvez eu preferisse que ela me desse aquele soco na cara. Tudo em mim pedia para sair dali, para gritar. Eu queria que ela e aquele perfume idiota desaparecessem do meu carro, queria não ter vontade de contar para ela que era tudo verdade. Queria sufocar a curiosidade avassaladora sobre cada detalhe da vida dela e usar como mapa para tudo que estava acontecendo, queria não me sentir um lixo por vê-la chorar e ficar parado.
Mas conhecer mais do que eu conhecia estava fora de cogitação. Não dava, não podia fazer isso. Nunca ia ser somente uma pergunta. Eu ia querer afundar.
Agora claramente aborrecida, não disse nada e se livrou do meu casaco, secando o que restava do choro e controlando suspiros esparsos. Ela colocou a mão na maçaneta, pronta para ir embora e me odiar pelo resto da vida.
Mas antes que saísse, respirou fundo.
— Nunca mais faça isso.
Meus olhos estavam fixos no painel, no desenho do tanque de gasolina. Nem fodendo que eu ia olhar para ela agora.
— Te dar uma carona? — falei, soando exatamente como queria: um babaca.
— Me beijar. E… me tocar desse jeito. — sabia que ela tinha virado a cabeça, mas continuei não olhando. Era o jeito de deixar claro que aquilo não significava nada.
— Como quiser, . — apoiei o cotovelo na janela, acomodando o pé na embreagem. — Nunca mais vou te beijar.
E então, ela foi embora, e repeti aquela mesma manobra de mais cedo para sair dali o quanto antes, focado exclusivamente na estrada, desconsiderando trânsito ou faixas de pedestres, a cabeça zoneada costurando tudo. Pensei em abrir todas as janelas para expulsar aquele cheiro do meu carro para sempre. Se fizesse isso, não existiria mais resquícios de antes mesmo de chegar em Manhattan.
Mas não abri nenhuma.
Gina ia me matar (e com razão).
Assim que eu completei o pensamento de que não estragaria mais a noite e voltaria a ser um cara bonzinho — aos padrões de Gina —, eu fiz isso e muito mais. Quero dizer, deixar ela sozinha no meio de um puta restaurante fino depois de beber vinhos de 6 mil dólares, quase atropelar o garçom e nem me dar ao trabalho de ligar o telefone novo era motivo para ela me odiar para sempre. Talvez não para sempre, mas sofrer um gelo por algumas semanas, isso com certeza ia rolar. Talvez ela finalmente cumpriria aquela ameaça ridícula de ir a um feiticeiro morto que tinha conhecido em Hoboken e pedir para ele me deixar instantaneamente calvo.
Pensei em várias formas de como explicaria o que tinha acontecido, e nenhuma delas parecia convincente de verdade. Tudo ainda estava meio nebuloso, mesmo depois de ter cruzado toda a I-95 só pensando nisso, matutando a noite, querendo esquecer e sendo barrado pelo meu próprio cérebro. Cansava só de pensar em recapitular tudo de novo.
Para bem ou mal, não precisei considerar muito o assunto, porque Gina estava parada no meio da minha sala assim que abri a porta por volta de 2h45min, usando um roupão azul marinho e bebendo uma taça de vinho, enchendo a casa com Bed of Roses do Bon Jovi, o único tipo de som na minha coleção que ela ouvia sem fazer careta.
O barulho da porta chamou sua atenção e não consegui dizer nada diante daquele olhar. Só respirei fundo, fechando a porta atrás de mim.
— Eu juro que posso explicar.
— Essa merda de Nova York agora anda ensinando rapazes a largarem damas plantadas no meio do jantar? — ela arranhou, descendo os olhos por mim. — Você tá um lixo.
— Eu não devia ter feito isso. Desculpa, não foi... — abri e fechei a boca. Patético. Nada saía. Aqueles olhos de águia de Gina sempre me ajudavam a controlar o nervosismo quando ia mentir, mas isso não funcionava quando fosse mentir para ela. — Fui um merda. Vacilei com você. Eu prometo que vou te compensar.
— Vai mesmo? — ela largou a taça na mesa de centro, desatou o cinto do roupão e deixou o tecido cair. A pele nua brilhou na luz forte que vinha da janela, destacando bem os mamilos endurecidos. — Vamos ver se você consegue se redimir.
Em um segundo, Gina estava me beijando, violenta e provocadora, mordiscando meu lábio inferior enquanto deslizava os dedos para tirar meu casaco.
— Que cheiro é esse? — ela perguntou com a boca na minha. Parei, sentindo uma singela onda de frio. Tinha pensado que fumar mais um cigarro dentro do Jeep daria conta de disfarçar aquela porra de cheiro de bala de . É claro que não funcionou.
— Não importa. — voltei a beijá-la. Faríamos isso de qualquer jeito, então que fosse agora, aqui, em um momento milagroso que eu necessitava de distração. Com um puxão, Gina me levou até a cozinha, onde se sentou na bancada, envolvendo as pernas na minha cintura.
— Lembra como a gente queria experimentar aqui? — ela sussurrou no meu ouvido, os lábios roçando minha pele. Meu corpo respondeu antes mesmo de eu conseguir pensar; a pulsação acelerou, o sangue correu a toda velocidade para o meio das minhas coxas e, oficialmente, o tesão nublou todo o raciocínio.
Arranquei a camiseta suja de poeira, lama e gramado, beijando seu pescoço, descendo até os seios enquanto ela abria o zíper da minha calça. Mas então, sem aviso, Gina desceu da bancada e se virou de costas, inclinando-se sobre a superfície, o tronco todo pressionado contra a pedra fria.
— Você sabe o que fazer. — murmurou, olhando para mim por cima do ombro, mordendo a boca daquele jeito que faria até um neanderthal responder um “aham, é claro, minha senhora”.
Foi o suficiente para eu terminar de me livrar das roupas. Segurei sua cintura e comecei a me mover, uma das mãos enterrada em seu cabelo. O cabelo de Gina era incrível. Comprido, fino, cheio de ondas. Nem precisava olhar muito para saber que sempre tinham sido daquela cor escura, parecida com um tronco de árvore na chuva. Dava para segurar uma enorme porção na mão de uma vez. Ela gemeu e eu beijei seu ombro, colando meu corpo no dela, inclinando a cabeça para passar a língua na curva do pescoço, aspirando o seu cheiro com força…
Então, de repente, minha mente se virou contra mim. Voltou para mais cedo, para o carro, para . A lembrança da pele dela (sua perna na minha), da proximidade sufocante, do cheiro doce que eu sempre detestei, da possibilidade. Eu quase podia sentir meus dedos no cabelo dela de novo, os lábios nos meus, o gosto do beijo.
Fechei os olhos com força, tentando me focar em Gina. Ouvi ela pedindo que eu fosse mais rápido, sua voz cortando o ar como um lembrete de que eu estava ali e não em outro lugar — um lugar onde existia uma grade e as mãos de subindo até a minha nuca, sua língua explorando a minha boca com a mesma determinação de um Indiana Jones e colocando a porra do meu corpo inteiro numa fornalha. Quando abri os olhos de novo, o cabelo escuro de Gina era um choque de realidade. Escuro, comprido, nada parecido com o loiro médio que eu toquei mais cedo, nem a boca, as costas, nem a porra do cheiro. O caralho desse cheiro!
E, de repente, eu simplesmente parei. Só parei.
Me afastei de Gina, ofegante, coçando os olhos enquanto procurava minha calça. Se algum desses malucos que dizem prever o futuro me falassem que algum dia eu iria brochar com Gina Lasser, eu iria rir. Gargalhar, para ser mais exato. Por mais que tenha tido uma experiência ou outra antes dela — quando me acrescentava nos convites que recebia para alguma festa de adolescentes com porre —, minha conexão com a minha melhor amiga era outra história. A gente não só transava, mas se divertia pra caralho. Ajustava uma posição, reclamava de outra e sempre fazia questão de gozar junto. Era legal, era gostoso, era o sonho secreto de qualquer cara.
Mas todo esse delírio não funcionou hoje, igual tudo não vinha funcionando direito nos últimos dias.
— O que foi? — perguntou ela quando notou que eu saí.
Vesti a calça com a mente desnorteada, virando na direção da sala, tentando lembrar onde eu guardei o maço. Podia sentir o peso do olhar de Gina nas minhas costas.
— Qual é o problema? — ela se aproximou, tomando meu rosto com cuidado. Não queria que ela olhasse para mim naquela hora. — Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa hoje?
— Não, não aconteceu nada. — respondi bruscamente, rápido demais, me desvencilhando da sua mão e indo direto para uma das gavetas ao lado da pia, achando os cigarros finalmente.
— É, realmente não aconteceu nada. — o sarcasmo dela não passou despercebido. Ela tinha uma falta de tato impressionante quando alguém a interrompia no seu momento “quase lá”. E, dessa vez, nem fiz por provocação. — E isso não é normal. Vamos lá, o que houve?
Suspirei e acendi o cigarro. Não sabia nem por onde começar a falar, nem se queria mesmo falar. Abri a geladeira e peguei duas cervejas, entregando uma para ela, junto com minha camiseta meio destroçada que joguei no chão.
— Olha, me desculpa. — falei, sem realmente encará-la. — Não sei o que aconteceu. Talvez eu esteja preocupado com as provas, com as amostras que ainda não fui olhar enquanto tava no hospital, sei lá. Dizem que essas coisas podem afetar o desempenho.
— E desde quando essas baboseiras de médico tem algum efeito no seu pênis? Você me fez gozar duas vezes um dia antes daquela cirurgia no cérebro que você ia assistir.
— Era no pâncreas.
— Que seja! O que houve agora?
Ela vestiu minha camisa e nos acomodamos no tapete em frente à enorme janela da sala, observando o brilho noturno de Nova York. Ficar em silêncio não ajudava em porra nenhuma, Gina não tinha uma bola de cristal, mas mesmo assim, pela primeira vez na vida, a única pessoa que sabia tudo sobre mim estava ali do meu lado e eu ainda queria muito ficar sozinho.
— Fala comigo, . — ela passou a mão pelo meu cabelo, os olhos curiosos.
A calma dela só fez minha ansiedade crescer. Gina tomou um gole da cerveja e, antes que eu pudesse colocar o cigarro na boca, ela o pegou de mim, frustrando minha tentativa de me calar. Respirei fundo. Não tinha mais como fugir.
— Eu vi a Sandy no banheiro. — dei de ombros devagar. — Ela pirou e me atacou. Tava completamente surtada.
— E? — Gina arqueou uma sobrancelha. — Ficou esse tempo todo brigando com uma andarilha? Me recuso a acreditar.
— Não exatamente. Ela estava… indo machucar alguém. Por isso eu saí daquele jeito.
— Machucar ou matar?
— Não tem muita diferença no caso deles, Gina.
Ela balançou a cabeça lentamente.
— Tá bom, então… um espírito vingativo? É isso? Não é muito cedo pra essa garota?
— Foi exatamente o que eu pensei. É muito estranho. Até semana passada, ela mal conseguia zanzar pelo campus. Agora, me encontrou num lugar onde eu nem costumo ir. Só fico pensando se agora ela pode aparecer aqui…
— Sem chance. Ela não vai aparecer.
Gina decretou com uma calma e segurança quase atípicas dela. Não era acostumado a vê-la afirmando alguma coisa que parecesse indiscutível — tudo tinha dois ou três lados para Gina.
— Como você sabe? — franzi o cenho.
— Como você não sabe? — Gina inclinou a cabeça para o lado. — Não ouviu nada que eu disse no jantar? Você até pode ignorar tudo que vem do outro lado, mas não dá pra negar o que tá na sua frente: sua doce vovozinha pentelha. A assombração mais foda desse plano.
Olhei para ela, sem entender. Gina revirou os olhos.
— A sua avó não é normal, , se liga. A velha te encontrou do nada no Melbourne, te segue pra tudo que é canto, desde a periferia de Sacramento até naquela viagem pra Roma com a sua mãe, e sabe exatamente cada lugar onde a gente pode se foder ou não. Fora que a presença dela é… diferente. Você com certeza já sentiu. — ela tragou o cigarro, e não respondi imediatamente. — Ela protege esse lugar com unhas e dentes. Não deixa nenhuma alma penada chegar perto de você.
Eu tinha alguma noção das particularidades de vovó. Não tinha ideia sobre como ela tinha morrido ou como, não sabia como era possível estar usando camisa social e saias longas em um dia, e no outro com um xale de lã e vestidos de verão estampados, e muito menos como não estava presa em lugar nenhum, escolher se queria aparecer para você ou não. Digo, às vezes Gina a via, e às vezes vovó estava bem do meu lado e não deixava que minha melhor amiga soubesse disso. Era somente algumas das inúmeras coisas sobre ela que eu não sabia e jamais saberia, mas ia adquirindo uma certa aceitação sobre esses mistérios. Ela não era uma pessoa ruim, isso me bastava. Poderia prosseguir com a minha vida sem saber de mais um A.
Por isso, acabei rindo um pouco.
— Protege esse lugar? Com o quê, uma armadura do Maximus de Gladiador? O que não faria sentido, porque ela odeia roupa apertada. — não pretendia ser tão meramente debochado, mas algumas coisas saíam automáticas. Gina semicerrou os olhos e roubei meu cigarro de volta. — Qual é, minha avó é cheia de truquinhos, mas ela é só um fantasma que, quando viva, podia ver outros fantasmas. Não tem nada de especial nisso.
Dei um gole na cerveja. Ela me olhou com aquela cara séria e irritada de quando eu deixava claro, nem que fosse nas entrelinhas, de que não via nem um pingo de glamour em bater papo com gente morta, não importava em qual geração e nem se faziam isso de um jeito menos ou mais maneiro do que os outros.
— Claro, claro. Você subestima muito a Madame Uhura. — ela umedeceu os lábios e revirou os olhos. — Mas é só com isso que você tá preocupado? Se você deu uma lição nela, essa garota não te acha de novo nem tão cedo.
— Não é comigo que estou preocupado. — murmurei, olhando para a janela.
— Então o que é? — suas sobrancelhas se juntaram por alguns segundos antes de ela soltar um "Ahh" de descoberta. — A pessoa que ela queria matar, claro. Por acaso tem algo a ver com o cara entrevado em uma cama de hospital com a perna fodida agora mesmo?
De repente, fiquei num dilema. Sobre os mortos, eu não escondia nada de Gina. Absolutamente nada. Parecia extremamente errado fazer aquilo com a única pessoa que eu conhecia que compartilhava aquela realidade comigo, como se eu ferisse um código de irmandade desde o nascimento.
Mas as coisas estavam muito estranhas comigo hoje.
— Mais ou menos. — respondi, vago. Ela piscou, esperando o resto da resposta. — Ela queria matar outra pessoa.
— Uau. Nervosinha ela. — Gina soltou uma risada enquanto bebia outro gole. — O que foi isso? Ela faz o tipo Carrie White do bullying coletivo ou Jennifer Hills de Doce Vingança?
— Ninguém mais faz bullying com sangue de porco.
— Você foi a todos os bailes de formatura do mundo desde 1975? Então, cala a boca. — Gina inclinou a cabeça. — Quem era o próximo alvo?
Abaixei a cabeça, encarando a mancha imensa de sujeira no tornozelo da calça.
— Era... uma garota. Sandy me disse pra onde estava indo e que pretendia matá-la. Eu nem pensei direito e fui.
— Hmmm. — ela murmurou. — Saiu correndo pra salvar uma garota, que situação atípica de . Devo ficar com ciúmes?
— Claro que não. — neguei rápido, a garganta queimando de repente. — Eu nem a conhecia, só que isso não importou, porque Sandy tá completamente enlouquecida. Alguém precisava detê-la.
— E pelo seu estado, você deteu. — ela reparou de novo pela minha roupa arruinada. — Agora a pergunta que não quer calar: por que não me levou junto? — ela deu de ombros, fazendo uma pergunta óbvia. — Esqueceu que esse é o nosso lance? Você passou dias me falando sobre esse caso, achei que me incluiria na diversão. Sabe que eu nunca recuso uma boa briga. Tudo isso poderia ter sido resolvido bem rapidinho e agora estaríamos fazendo coisas bem mais interessantes... — Gina dedilhou meu antebraço, deslizando pra perto de mim até ir de encontro à minha boca.
Num impulso, desviei antes que nossos lábios se tocassem, meu intestino delgado fazendo uma luta de chicote com as minhas vísceras.
— Err… Você tá certa. Na hora eu não pensei em te meter nessa, me desculpa.
Ela concordou com a cabeça, mas sua testa estava enrugada daquele jeito de novo, uma expressão desconfiada. Logo agora que eu tinha conseguido desirritá-la.
— Aconteceu mais alguma coisa hoje, ?
O dilema. Dessa vez, me apertava como as paredes do compactador de lixo da Estrela da Morte, prontas para me esmagarem se eu não achasse uma saída bem rápido. Sim, tinha acontecido mais algumas coisas, coisas que eu estranhamente não queria falar sobre.
Percebi que eu nunca tive essa conversa com Gina — sobre outras garotas. De nenhum jeito, do mais inocente como um beijo aleatório no after do congresso de Imunoterapia em Boston, ou até quando me meti numa noite de jogos (que deveria ter sido um grupo de estudos com os residentes do Hospital Geral de Massachussets) no alojamento de Harvard e acabei acordando na cama de uma garota que me ofereceu bolo de laranja batizado no café da manhã. Não lembrava de muita coisa, mas acabei aceitando o bolo e mais umas três rapidinhas antes de me mandar, sem fazer ideia do nome dela. Nunca contei isso para Gina, e nem via motivos para tocar no assunto, porque a verdade é que não importava. Nunca mais vi a garota e provavelmente não veria. Esse era o meu padrão: poderia me interessar por uma menina ao ponto de me divertir, mas a coisa não fluía além disso. Na primeira pergunta mais pessoal que ela fizesse sobre a minha vida, eu já estaria mentindo. Não podia ser quem eu era, não podia fazer piadas grotescas sobre sangue de galinha e sepulturas e nem ficar relaxado caso encontrasse um fantasma do nada no meio de um café. Essas coisas só eram possíveis com Gina. Ela era única.
Isso não queria dizer que eu estava preso a ela, nunca me senti assim. Gina tinha pavio curto e uma capacidade enorme de achar defeitos em toda e qualquer garota que eu achasse bonita, mas tudo era mais uma piada do que um problema. Nossa relação era a mesma. Complicada, como diria , mas eu preferia chamar de descomplicada: sem a palavra namoro na frente, sem planos absurdos para o futuro, sem promessas mirabolantes, nada que estragasse alguma coisa pela raiz.
Mas quando eu pensava em falar sobre , minha garganta fechava. Como se eu quisesse guardar aquele beijo, aquelas dúvidas e aquela confusão só para mim dessa vez, sem contar para ninguém, mesmo se fosse Gina. Sabia que poderia esperar a pior das reações — não pelo beijo insignificante, mas por ser O Alvo, a pessoa com uma criatura macabra nas costas, a que eu tinha prometido ficar longe. Não tava disposto a ser lembrado disso naquele momento.
De qualquer forma, minha amiga ainda esperava uma resposta, e tentei bolar uma explicação no meio da minha cabeça confusa.
— Já disse que não. — dei de ombros. — Só tô cansado, e… tive problemas técnicos na hora da fuga. — mostrei as palmas das mãos raladas e as marcas avermelhadas dos dedos de Sandy na base do pescoço.
Ela deu uma risada e pegou as palmas de minhas mãos, passando os dedos de leve sobre os machucados. Seu olhar parecia estar viajando para outro lugar.
— Eu devia saber que não tinha acontecido nada grave. — ela dizia com um sorriso em linha reta. — É que depois do que você me contou e de tudo que passou... Sei lá, só pensei... — ela balançou a cabeça, o sorriso desaparecendo aos poucos. Notei um mísero arrepio no seu braço, surgindo e desaparecendo logo depois.
Gina raramente deixava transparecer qualquer sinal de fraqueza. Só acontecia em momentos muito específicos ao longo dos anos, e mesmo assim, era só porque ela estava preocupada comigo. Não que ela tivesse motivo — eu sempre soube lidar com os fantasmas. Mas, dessa vez, eu entendia. Depois de tudo que ela me contou, não podia culpá-la.
— Por um instante, achei que você tinha ido atrás dele. — sua risada saiu seca, quase sem humor. — Sabe? Daquela coisa… — ela estremeceu, balançando a cabeça para afastar o pensamento. — Enfim, foi uma ideia ridícula, né? Você não faria isso, não depois do que ele te fez.
Minha garganta secou, mas assenti. Gina ainda não relacionava a garota que havia aparecido em minha porta naquela manhã com a que estava exposta à morte, e eu não fazia questão de dizer. Ela se apressaria em me afastar para bem longe de , o que, pensando racionalmente, poderia ser uma ideia bastante necessária.
Conversamos madrugada adentro. Gina comentou que tinha ligado para ela, tentando me encontrar, reclamando que eu ainda não tinha usado meu “super poder de mauricinho” para comprar um celular novo. Ah, é... Lembrei que ele estava largado no carro, e eu tinha esquecido completamente dele mesmo depois de chegar. Como sempre, Gina avisou que eu não a veria pela manhã. Seu voo para Los Angeles saía cedo e, aparentemente, ela faria o tour mais chato do mundo pela Cidade dos Anjos com um sheik que prometia investir uma grana pesada no clube, mas garantiu que mandaria lembranças à minha mãe.
Finalmente, o cansaço me atingiu, e eu me arrastei até o quarto. Depois de um banho rápido, deitei ao lado de Gina, planejando apagar antes que ela me abraçasse. Mas quando fechei os olhos, os pensamentos continuaram ali, me cercando. Um maldito loop infinito dos últimos dias, cada cena se repetindo na minha mente. Eu não sabia se devia refletir sobre tudo ou ficar ainda mais ansioso.
Ah, vamos lá, cérebro. Agora não.
Mas parecia impossível. Eu tinha quebrado uma promessa que fiz à minha avó sem hesitar, tudo por causa de uma garota que eu mal conhecia — e que, por algum motivo estranho, eu sentia uma necessidade insuportável de defender. E havia algo nela, algo escondido, que me deixava com mais dúvidas do que respostas. Segredos que explicariam porque a cabeça dela estava a prêmio.
Caramba.
Os últimos 10 dias tinham me empurrado para um abismo escuro e profundo, sem nenhuma certeza. Mesmo que minha avó ou Gina tivessem lançado uma corda e conseguido me segurar em um galho, eu ainda olhava para baixo, consumido pela curiosidade de descobrir a verdadeira profundidade. O que era uma tolice, já que, de qualquer forma, o desfecho seria desastroso. Eu cairia, juntando-me ao mar de ossos cadavéricos dos outros infelizes que, como Ícaro, se aproximaram demais do Sol.
Mas até a tragédia de Ícaro teve um propósito. E era o que eu sentia quando olhava para toda aquela escuridão.
Continua...
As palavrinhas no dicionário são poucas e muito rasas pra explicar o que toda essa história significa pra mim. Toda escritora que se preze tem um sentimento especial sobre a sua primeira obra, e os meus são tão grandes e expressivos que não cabem aqui nessa notinha. Finalizei GF faz mais de 2 anos, mas sigo falando sobre ela e divulgando pra quem quer que seja porque acredito que esse tipo de história é atemporal, é divertida e instigante ao mesmo tempo. Hoje em dia eu ando reescrevendo essa epopeia, mas acho justo para aquelas que quiserem saber o que esperar, ver tudo que tá contado aqui, nessa fic cheia de WTFs e outros xingamentos, mas também muita risada e até um pouco de tristeza (vamo ser sincera, né).
Se você nunca leu, tenho certeza que seu último pensamento depois do final será: "ainda bem que eu parei aqui." E ainda bem mesmo! Foi um prazer te mostrar isso. ఌ︎.
E eu tenho outras histórias pra contar, caso você tenha ficado interessada! Me segue no instagram (@sialversion) ou pode ir direto na minha página de autora que lá tem de tudo um pouco.
Beijos,
Sial.