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Autora Independente do Cosmos 🛸
Atualizada em: 07.09.2024

"Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos caminharão sobre a terra.”
— Despertar dos Mortos


Eles estavam atrás de mim.
Não apenas por uma hora ou duas. Na verdade, estavam atrás de mim o tempo todo. E não apenas atrás de mim; eles apareciam por todos os lados. E tudo bem quando eu estava em casa ou sozinho em algum lugar, longe dos olhares comuns, mas eles não tinham escrúpulos sobre tempo e espaço para aparecerem. Isso me deixava maluco.
Como quando resolvem dar as caras dentro do Taqueria Diana, meu restaurante mexicano favorito, ou até mesmo durante as minhas contagens de células cancro no laboratório. A minha capacidade de ignorá-los melhorou muito com o passar dos anos, mas isso não conta quando eles resolvem te chutar ou até mesmo fazer qualquer contato físico com você. Porque sim, eles podem. Pelo menos comigo.
Desde que me entendo por gente eu consigo vê-los. E não apenas vê-los. Consigo cheirá-los, ouvi-los, tocá-los, como se fossem um outro ser humano. Não me admira o rótulo de esquisito que ganhei desde o ensino fundamental. Era a única forma que eu poderia lidar com aquilo: sendo esquisito. Falando sozinho em vestiários e banheiros de shopping aparentemente vazios, mas com o tempo aprendi que nenhum lugar é vazio o suficiente. E mandar mensagens de parentes alheios mortos por aí não era um indicativo de normalidade.
Por sorte, diferenciá-los nunca foi problema pra mim. Sendo redundante, os mortos têm uma aura... Bem... Mórbida. Eles andam pela multidão o tempo todo, com suas olheiras profundas, lábios pálidos, cabeças achatadas — caso tenham morrido depois de uma batida feia de trem ou a queda de um prédio de 40 andares — e o mesmo olhar opaco e desorientado que não mudava. Um fantasma novato é o que há de mais simples para identificar: eles têm muita dificuldade em aceitar que estão mortos e conseguem ser bastante escandalosos ao gritarem aos quatro ventos, perguntando a todos por que não conseguem vê-los. São os maiores perturbadores da minha paz.
E é aí que entra meu papel em todo esse circo.
Simplificando: os mortos costumam vir a mim para resolverem suas pendências aqui na Terra. Se isso soar como algo legal, procure um médico. Não há nada mais incômodo do que um fantasma te seguindo o tempo inteiro para que você possa levar um pedido de desculpas a um membro da família que fica a duas cidades de distância, ou simplesmente para entregar seu amado cão a um abrigo de qualidade. Sem contar nas vezes que uma adolescente que morreu sem nunca ter ido a um encontro resolve usar você de cobaia.
Nunca enxerguei essa habilidade como um dom. Muito pelo contrário, ajudar fantasmas só me dava dor de cabeça e cada vez mais distanciamento social. Meu melhor amigo, Vlad, é o único remanescente na minha vida que parece não se importar de ter um amigo que fala sozinho diversas vezes e vive desaparecendo sem mais nem menos. Nos conhecemos no meu primeiro semestre da pós-graduação, em uma situação hilária e desconfortável onde ele assistiu a uma aula inteira de Ética na mesa ao lado sem saber que estava na turma de Ética Médica. Eu ri um pouco do seu desespero, depois ri um pouco de suas piadas, e estamos aí. Era um alívio, porque fazer amigos nunca esteve em nenhum tópico da minha lista de metas. Fora Vlad, as únicas pessoas vivas com quem eu mantinha contatos recorrentes eram meus pais, Heidi e... Minha avó. Ok, talvez essa última não esteja mais viva.
Eu estava no 3º ano do programa de Medicina na Universidade Columbia. A escolha do curso e do campus tinham motivos plausíveis, pelo menos para mim. Queria me especializar na Oncologia, o que me traria pacientes que esperavam pela morte e eu poderia, de algum jeito, incitá-los a resolverem seus conflitos ainda em vida, tudo enfeitado com um papo bem coach. Poderia ser egoísta, mas era menos um fantasma que voltaria para me pedir ajuda depois. A escolha de Nova York também não foi por acaso. Uma cidade grande poderia esconder talentos, e dentre esses talentos eu quero dizer pessoas como eu. Eu não entendia bem como a seleção de mortos acontecia para nós, mas eu torcia para que eles fossem bem distribuídos de acordo com o número de pessoas disponíveis. Era mais um plano para mantê-los longe.
A faculdade de Medicina deixava meus pais felizes, ao menos. Desde que eles me buscaram no Orfanato Roseville em Sacramento, tenho sido motivo de orgulho em praticamente todas as minhas escolhas e atitudes, mesmo quando meus desaparecimentos e surtos de rebeldia aconteciam frequentemente. Ou até mesmo quando tive que ser buscado na delegacia diversas vezes entre o ensino fundamental e médio, com as acusações variando entre invasão de domicílio e desacato à autoridade. Situações de merda que saíam do controle por causa dos mortos, mas ainda assim, eles dificilmente me davam uma crítica dura. Sabia que minha mãe chorava no travesseiro à noite, assim como meu pai tirava seu Chivas Regal do armário do escritório e colocava pedras de gelo a mais, e isso me fazia pensar se eles se arrependiam de alguma forma por ter colocado um garoto estranho dentro de sua linda casa na Nob Hill.
A verdade é que eles não estavam arrependidos, e sim frustrados por não conseguirem se comunicar comigo, o que admito também ser culpa minha, que demorei pelo menos 4 anos para chamar Karen de mãe.
A família é dona de uma companhia de advocacia bastante rentável em São Francisco. O nome do meu pai, Jon , é creditado e citado em várias entregas de prêmios empresariais por toda a Califórnia e continua sendo exemplo de gestão em vários outros Estados. Os flashes dos eventos de gala, jantares executivos na sala e pessoas estranhas trocando minhas roupas me lembravam do legítimo sentimento de peixe fora d'água. Eu odiava aquilo mais do que tudo. Odiava as perguntas inconvenientes sobre o meu passado, as insinuações sobre a possível miséria que era viver em Roseville, as tentativas de arrancarem de mim um agradecimento público por ser salvo do terrível título medonho de órfão e várias, várias coisas.
A única solução para dar fim à toda essa exposição tenebrosa do único filho da família era me tornar um gênio que deveria estar sempre estudando ou se esforçando para a próxima prova ou um novo prêmio da feira de ciências.
Não deu outra; meus pais passaram a aceitar de bom grado que seu filho tinha outros interesses além de Led Zeppelin e tabuleiros de Catan. Depois disso, acumulei créditos o suficiente para desbancar até a geração passada na escola católica e assinei a matrícula em Stanford antes dos 18 anos, a exatos 40 minutos do aconchego e dos donuts de Karen. Passar os próximos 2 anos e meio entrando e saindo de laboratórios de Biologia, Química Avançada e Física, encontrando uma legião de fantasmas tristonhos pelos corredores do departamento de Biologia no prédio Gilbert e tendo que torcer para que Heidi recebesse folga mais cedo e aparecesse no parque Serra Grove em uma sexta-feira qualquer — onde eu sempre sabia que, assim que entrasse no carro dela, apareceria no próximo dia com uma nova tatuagem ou um novo hematoma — pra que me ajudasse com um probleminha de fantasma não foi a parte difícil. O difícil eram aqueles 40 minutos. Era precisar voltar para casa depois de sumir por 2 dias e não ter as mesmas histórias na ponta da língua que tinha com 14 anos — elas mal serviam naquela época também. Era mais trabalhoso do que parecia disfarçar uma noite inteira em que você foi obrigado a mudar a inscrição de uma lápide com uma viga de ferro enferrujada, ou devolver as flores brancas de um velório ao remetente, porque “aquela vaca nem gostava tanto assim de mim. Quem ela pensa que é?” Eu não tinha mais desculpas convincentes aos 21 anos.
Estava na hora de ter espaço.
Mesmo com a maioridade e de ter dinheiro suficiente pra me virar em Nova York — os investimentos na bolsa de valores da NYSE com a grana dos prêmios e estágios no laboratório de Bioquímica em Stanford foi o máximo que já fiz pensando em um futuro distante —, foi difícil convencer meus pais — e a própria Stanford — a me deixarem estudar do outro lado do país. Depois de ouvir o choro de Karen por semanas, consegui que ela concordasse, junto à promessa de que me visitariam regularmente e que eu deveria ligar sempre. Essa parte era fácil, e fiz as malas mais rápido do que qualquer outro formando do pré-college de Palo Alto. Estava ansioso pra ir pra longe, já que é muito mais difícil seus pais — e qualquer outra pessoa com o mínimo de expectativas em você — se frustrarem com suas atitudes quando não estão por perto.
Eu não me importaria de ter pegado um quarto qualquer no alojamento do centro médico de Irving com outros calouros, mas meus pais insistiram que eu não fosse parar em um dormitório da universidade cheio de pessoas estranhas e com intenções desconhecidas. Por causa da superproteção de Karen, minha chave abria a porta de um belo apartamento na Upper West Side, ao sul de Manhattan, no 4º andar do Stonehenge Tower, um edifício quadrado de tijolos brancos com janelas grandes e um cacto no beiral. O negócio foi feito pelas minhas costas e me senti frustrado no início, mas, em menos de 2 meses, quando estava ajudando Vlad com sua mudança para o Wien Hall e seu quarto minúsculo, porém agora individual, já tinha mudado de opinião, porque topar com uma alma penada verificando o pó da pequena escrivaninha do meu novo amigo foi chato. Pra caramba. Principalmente porque ele não entendeu nada quando o puxei pra fora e disse que estava doido por um café de quinta categoria no lounge lá embaixo. E entendeu menos ainda quando eu disse que precisava urgentemente verificar uma coisa no seu banheiro e o pedi pra ir na frente.
Por sorte, a assombração só queria saber se seu antigo quarto seria bem cuidado, porque ninguém esteve fazendo isso desde, sei lá… 1955? Os suspensórios me deixaram um pouco confuso com as datas, mas o que importa é que ele se mandou.
Ou seja: Karen foi um gênio, mesmo que nunca fosse saber disso. Como eu poderia pensar em morar com outras pessoas? Isso seria ignorar meu problema com os mortos. Morar em um lugar bem longe do campus e sem horários de entrada e saída foi a melhor decisão que deixei que tomassem por mim.
Era quinta-feira quando saí da biblioteca Augustus direto para o lobby, tentando guardar um enorme exemplar de Brain Metastases de Hayat na mochila quando senti o celular vibrar no bolso.
— Fala — atendi, posicionando o telefone no ombro enquanto empurrava o livro com mais força.
— Onde você está? Eu tô morrendo de fome — Vlad gemeu do outro lado. — Já tá quase no fim do horário de almoço. E hoje tem hambúrguer! A gente nunca se atrasa pro hambúrguer.
— Você não tem membros ou dinheiro? — Finalmente, consegui empurrar o livro inteiro. — Caso tenha membros, acho que você pode comer sem mim.
Ele estalou a língua e sabia que estava revirando os olhos.
— Qual é, . Você sabe que minha grana foi reduzida a zero no Lion’s Head semana passada. Me diz que pelo menos tá perto do JJ’s.
— Chego em 5 minutos.
— O Jeep chega em 3.
— 3 minutos na porta do John Jay e o seu bife vai ser bem passado.
Argh. Feito.
Vlad já estava de pé na frente do restaurante do John Jay Hall quando finalmente apareci, com seus tênis Air Jordan falsificados, fones de ouvido e o boné de sempre com a aba pra trás.
— Por que demorou tanto? Disse que não tinha aula nesse horário — ele murmurou quando me aproximei, e imediatamente caminhamos para os balcões de comida.
— Não tenho, tava na biblioteca. Andei preparando um artigo novo.
— Ah, é? Sobre o que é dessa vez? Bactérias que produzem plástico? — Vlad perguntou enquanto parava atrás da última pessoa na fila. Foi o momento perfeito que ele encontrou para começar a mexer no celular.
— Não, é só um artigo simples sobre as últimas descobertas da imunoterapia, e vou ver se consigo publicar no CJ antes do Spring Break. Tem certeza que hoje é hambúrguer?
A fila estava quilométrica. Tinha mais gente do que o normal, gente demais para um cardápio tão simplista. Eu e Vlad devíamos ser os únicos veteranos que ainda eram fissurados pelo hambúrguer de costela do John Jay, também porque a gente sempre aproveitava as fatias de torta de damasco que davam de sobremesa no mesmo dia — uma coincidência boa e bizarra. Devia ser por causa daquela piscadinha sedutora que Vlad lançou para a confeiteira no nosso primeiro ano. Mudou o rumo da coisa toda.
E hambúrguer de costela era um dos únicos motivos que me fazia sair de Vagelos e percorrer 15 minutos pela Riverside Dr. ao invés de me contentar com o prato do dia do Native Noodles. Vlad se importava bem mais com o que colocava no estômago do que eu.
— Viu o ranking semestral que saiu hoje? — Vlad nem tirou os olhos do celular quando disse, e muito menos emitiu qualquer tom de surpresa. — Você é o número 1 de novo.
Bufei em resposta.
Em todo começo de semestre, a Columbia divulgava um ranking dos alunos que foram mais bem sucedidos de acordo com o semestre anterior, tanto os da graduação quanto da pós, o que deixava o corpo discente completamente alucinado. Eu nunca imaginei que, entre a aristocracia da Ivy League, era mais descolado ser inteligente do que ser rico. A publicação do pódio era mais aguardada do que as férias de verão e, durante todo o semestre, esse lugar parecia um programa de sobrevivência.
Às vezes, sentia falta de Stanford e sua completa indiferença pública à genialidade alheia.
Já me senti cansado só de lembrar que, dali há algumas horas, receberia uma ligação de felicitação dos meus pais e precisaria responder à bajulação de professores e colegas no próximo horário. Isso não devia ser algo realmente ruim, ainda mais quando esse tipo de “título” trazia algumas vantagens: a revisão dos meus artigos sempre passava na frente no CJ, havia listas de hospitais e institutos de pesquisa entulhando minha caixa de entrada com propostas e o reitor me mandava convites de confraternização direto de seu e-mail pessoal. Era uma cascata de eventos que eu passava desde o primeiro ano, o que aprendi a lidar, mesmo que isso fugisse totalmente do meu plano aflito de ser invisível.
Naquela tarde, especialmente, eu gostaria muito de ter esse super poder.
Enquanto Vlad ainda estava concentrado em alguma rede social, um vento gélido arrepiou os cabelos da minha nuca. Antes que eu pudesse sequer pensar, uma voz rouca soprou em meu ouvido:
— Olá!
Continuei olhando para frente, apesar de saber que isso não funcionaria por muito tempo. Percebi que ela virou o rosto para os lados, perdida, afoita. Abri meu celular, fuçando qualquer coisa sem sentido, torcendo para que ela notasse que ninguém podia vê-la e se mandasse dali. Não era uma boa hora para lidar com os mortos.
Infelizmente, ela não só saiu do meu lado, como começou a tentar tocar em Vlad e em tudo que aparecesse à sua frente. Para elucidar: quando os mortos tocam as pessoas comuns, elas sentem no máximo aquele arrepio e um momento frio que gela a espinha. Os humanos, para os mortos, não eram muito diferentes: ao tocá-los, era como se tocassem em uma massa cinzenta, derretida, escapando de suas mãos. Mas eram ótimos pegando objetos, meus hematomas comprovam isso.
Pessoas como eu conseguiam senti-los totalmente — e jamais me perguntei o porquê. Isso tornava muito mais fácil para os mortos nos acharem e nos fazerem de gato e sapato para resolvermos suas malditas pendências. E era por isso que eu estava apavorado com a ideia daquele fantasma resolver me tocar naquele momento.
Eu devia sair daqui. Definitivamente devia.
Vi Vlad tremer mais uma vez com o toque desastrado da fantasma.
— Caramba, por que estão com esse ar condicionado ligado? O inverno é logo ali.
Fingi que não vi nem ouvi nada. A fila ainda estava grande e não avançava tão rápido, mas essa deixou de ser a minha preocupação. As bancadas foram chegando mais perto e a garota também, e foi então que, em um espaço de milissegundos, quando Vlad deu um passo à frente e eu o segui, a fantasma se meteu no espaço que ele antes ocupava, fazendo com que nossos braços roçassem um no outro de forma quase vulgar.
Como um amador, aquilo fez com que eu olhasse diretamente pra ela e desviasse o rosto no mesmo instante. Tarde demais. Senti as mãos dela agarrarem meu braço direito.
— Você pode me ver! Ei! Você consegue me ver, não é?
Balancei o braço disfarçadamente para sinalizar que me soltasse, mas ela me ignorou. Fechei os olhos, nervoso, implorando pra que ela não fizesse um escândalo aqui.
— Por favor, você precisa me ajudar! Eu não sei o que aconteceu, eu– Ninguém me vê– Ninguém me vê!
Os olhos dela pairavam em uma expressão apavorada, lamentável. Virei um pouco para observá-la e vi uma menina de uns vinte e tantos anos, cabelos castanhos escorridos e cheios de frizz, pálida como um papel. Usava um moletom da faculdade de Direito com o brasão da Columbia, e parecia ser do nosso século.
Ótimo. Aluna morta na área. Fantástico.
Eu não podia dar atenção a ela de forma alguma naquele momento, mas ela não estava com cara de que me deixaria em paz. Sinalizei com a cabeça do jeito mais moderado que consegui para que ela desse o fora, mas infelizmente ela não apenas entendeu o gesto como negou veementemente segui-lo, mostrando isso cravando as unhas em mim com mais força.
— Por favor, eu te imploro, me ajuda! Você precisa me dizer o que tá acontecendo, eu estava no meu dormitório e então– e então… — Ela não conseguiu continuar, os olhos tão arregalados que já estavam me deixando em pânico. Parecia que iria surtar a qualquer momento.
A fila avançou mais um pouco e nada de ela soltar o meu braço. Respirei fundo, tentando pensar rápido em como resolveria a situação. As pessoas ao meu redor riam e conversavam, não fazendo ideia do que estava rolando ali, mas se ela resolvesse pirar, eles iriam saber, de uma forma ou de outra. Senti suas unhas se afundarem ainda mais na minha pele, com uma força que eu sabia que era adquirida pelos mortos porque eles não eram mais, bem… Humanos.
Porra! — Xinguei automaticamente, prensando os dentes um no outro pra sufocar a dor. Agradeci por ninguém ter notado, nem mesmo Vlad, que já estava resmungando sobre a demora excessiva e colocando a culpa nos vegetarianos, mas tudo isso pareceu ter piorado a situação.
Vendo que eu realmente podia vê-la e ouvi-la, suas garras se enfiaram em mim com tanta força que trouxe o sangue à tona e no momento seguinte, estava sendo puxado como um boneco de pano para o lado esquerdo, bem na rota de saída de pessoas com suas bandejas cheias e recém preparadas. O próximo cenário que vi foi minha camiseta encharcada com o que parecia ser suco de laranja e meus joelhos batendo no chão, seguido de um grito agudo de uma garota que caiu à minha frente, com a mistura da comida que caiu sem dó em sua roupa.
Todos os olhos presentes se viraram para a cena. Vlad estava estático atrás de mim, e vi pela sua cara de ameba que ele não sabia se ria ou se ajudava. Tudo que eu conseguia sentir era choque e raiva, porque não importava o quanto você se preparava para um momento como esse, eles nunca eram úteis quando fantasmas de verdade apareciam na vida real.
Ainda virei os olhos para procurar a maldita que tinha causado isso, mas é claro que ela tinha desaparecido.
Senti um empurrão no meu peito e caí pro lado, voltando à realidade caótica.
— Você é maluco? — a garota à minha frente grunhiu, tentando se levantar sem escorregar nos restos de macarrão e torta de legumes destruídos. — Deus do céu, não acredito…
Ela bufou com indignação, e algumas garotas se aproximaram dela com guardanapos, todas olhando pra mim com um misto de choque e desprezo. Me levantei do chão ao mesmo tempo que ela, torcendo para que as pessoas seguissem suas vidas e esquecessem o show.
— Me desculpa. A culpa foi minha — na verdade não foi. — Eu te pago um outro almoço, qual é o seu nome?
Claro que foi sua culpa. Por acaso fez de propósito? — chiou ela, o tom de voz aumentando a cada sílaba, as bochechas vermelhas contrastando com seu cabelo ruivo. Ótimo, tudo que eu precisava agora era ser enquadrado por problemas com terceiros por causa dos mortos em plena Columbia, o lugar onde eu havia feito todo o possível para ser uma zona quase intacta dos meus problemas extracurriculares.
— Não, não foi. Olha, sinto muito mesmo. Posso te pagar o almoço, me deixa só–
— Esquece, cara. Tenho uma apresentação muito importante hoje e espero que ela não tenha sido arruinada pela sua síndrome de Tourette. Pode não terminar de me atrasar e me dar licença?
Ela bateu no meu ombro ao sair e foi seguida por pelo menos três garotas, estas com olhares menos assassinos e posturas menos avantajadas. Fiquei estático em completo espanto por um segundo, sem palavras pra explicar tamanha… merda! Só acordei quando a equipe de limpeza me cutucou para que eu saísse do centro da bagunça de comida destroçada. Olhei em volta pela primeira vez e me senti como se estivesse nu, com tantos olhares direcionados a mim, acompanhados de cochichos e risadas. Grunhi e abaixei para pegar minha mochila, encarando Vlad uma última vez antes de caminhar para a saída, agora puto e sem fome.
Nem precisei verificar para saber que ele estava vindo atrás de mim.


— Cara... O que foi aquilo? — Foi a primeira pergunta de Vlad quando chegamos ao banheiro mais próximo. Estava vazio, o que me deu a chance de arrancar a camiseta e jogá-la na pia, mas vendo seu estado mais de perto, era mais recomendável que fosse jogada no lixo.
Pensei em sua pergunta, encolhendo os ombros antes de respondê-la.
— Eu não sei, não foi de propósito. Acho que eu escorreguei.
Abri a torneira para lavar as mãos. Vlad me olhou em completa perplexidade.
— O quê? Escorregou? Tá doido? O chão tava tão limpo que eu poderia lambê-lo. Não tinha nada pra você escorregar.
É, só havia um fantasma.
— E dá pra confiar no seu julgamento quando passou o tempo todo no Twitter? — Tentei desconversar, fazendo uma nova bagunça na mochila, procurando algo que eu sabia que não estava ali. Vlad continuou me olhando, nem um pouco convencido. — Sei lá, cara, acho que só me distraí. Podemos esquecer isso agora? Preciso que você me empreste uma camiseta porque ainda tenho duas aulas antes de ir pra casa.
Vlad hesitou, mas não demorou muito pra estalar a língua e simplesmente deixar a situação pra trás. Pelo menos, toda a parte estranha da coisa. Ele logo abriu a mochila e tirou de lá uma camiseta preta escrita:

//life motto
if (sad() === true) {
sad.stop() ;
beAwesome() ;
}


— Valeu — agarrei ela no ar quando ele a lançou.
— Cara, você tá legal? Não tá tomando nenhum desses remédios malucos pra ajudar na concentração que vendem por aqui, né? Essas coisas são perigosas, . É claro que você sabe disso. E que negócio é esse no seu braço? Tá sangrando...
— Até parece. Não é nada, deve ter sido por causa da queda — Dei uma risada e arranquei meu braço de sua vista, vestindo sua camiseta com piadas de programação que eu não entendia. — Tô perfeitamente bem, foi só um pequeno acidente.
— Você tem ideia em quem resolveu causar um pequeno acidente? — ele perguntou e eu fiquei calado. — Cara! Aquela era !
— Esse nome deveria significar alguma coisa pra mim? — Dobrei a camiseta arruinada em várias partes antes de enfiá-la na mochila.
— Já te falei dela algumas vezes. Das vezes que vi ela e as amigas no Inwood quando é noite de jogo, e às vezes no The Hamilton quando dão dose dupla de tequila e ela sempre coloca aquelas botas de cowboy super sensual que destroça meu coração. Isso e o fato de ela ser a namorada do Vito. Essa parte é insuperável — Vlad soltou um muxoxo e minha expressão continuava a mesma de quando eu tinha acordado naquela manhã. — Cara! Vito Brando, o filho do reitor. Um monstro italiano de 1,93 que é o capitão dos Lions de Basquete, e eles namoram tipo há uns 2 anos, em que mundo você vive?
— Ah... Claro. — O único momento em que Vlad não falava de mulheres era quando estava comendo ou jogando, então sempre ativei o meu filtro pra reter apenas as informações realmente importantes que ele tinha a dizer e que o resto fosse mandado pra lixeira do meu cérebro. Tipo aquilo. — Vida agitada a dela, com certeza vai esquecer disso tudo hoje bem depressa.
— Agitada? A gata é a nossa número 2. Tá no programa de LL.M.[1] da Faculdade de Direito, toca um violino brega, é Flyer das líderes de torcida dos Lions, bate ponto nos decathlons acadêmicos, e tudo isso sendo 1 ano mais nova que a gente. É uma prodígio do cacete. E ela até pode não trabalhar no CJ, mas tem muitos amigos lá, e sério, essa gente guarda um rancor fodido do mundo. Lembro de uma garota que saí uma vez…
E pronto. Filtro ativado.
Com o meu almoço completamente arruinado, eu só precisava de alguns minutos com um cigarro na área externa e guitarras potentes de Slayer nos meus ouvidos antes de seguir para o próximo momento interminável de produção intelectual.
Mas o tempo naquela sala oval do prédio Allan Rosenfield pareceu a maior perda de tempo do mundo, levando em conta que a voz da Dra. Winslet não era alta ou interessante o bastante para driblar o tédio da tarde, e ouvir sobre Psicologia Médica bem ao lado de uma janela gigantesca com vista para o rio Hudson não ajudava na concentração. Digo, não estava ajudando hoje.
Atualizei o site do Colloquium pelo menos 10 vezes antes da metade da aula. Fechava a aba na mesma hora, antes que qualquer olho atrás de mim resolvesse prestar atenção no que eu fazia no laptop — e isso não era arrogante, não depois que descobri que Demas Tryon vivia procurando brechas no meu material, olhando por frestas de cotovelos e ombros que me fazia quase acreditar que ele nem era humano. Tem muita gente sem noção por aqui.
Mas nem isso seria um motivo bom o bastante pra explicar porquê , o aluno número 1, estava concentrado em outra coisa que não fosse nas citações de Schneider e, ainda por cima, olhando o site do Colloquium! Era a mesma coisa que estar espionando o TMZ, o maior tabloide de fofocas dos Estados Unidos.
Bem, seja lá qual o termo que usavam pra descrever o Colloquium, não havia uma única menção nele sobre a morte de uma estudante. O que deixou minha mente ainda mais bagunçada, porque se ela estava aqui, então tinha morrido aqui. Era assim que as coisas funcionavam. Fantasmas eram limitados por raios de distância, e isso era uma regra na maioria das circunstâncias — na maioria.
Ela ainda não tinha sido encontrada? Estava morta em alguma sala fechada, vítima de bullying ou ataque cardíaco repentino? Tinha morrido na biblioteca, naquelas seções dos últimos andares que ninguém pisa? Ou fazia parte do time de Atletismo e morreu depois de dar um salto mortal?
Talvez ela já tenha sido encontrada e estavam ocupados demais chamando uma ambulância, o que logicamente seria inútil.
Ela voltaria, eu tinha certeza disso. Apareceria em qualquer lugar desses hectares de terra do campus. Devia estar nesse momento me procurando como louca ou já ter me achado, mas teve um pouco de empatia por ver que eu estava ocupado e esperaria mais um pouco. Um vexame por dia era mais do que o suficiente.
Forcei minhas mãos a ficarem paradas e voltei a atenção pro cabelo cinzento da Dra. Winslet, torcendo para que só encontrassem um cadáver nesse lugar quando eu estivesse bem longe.

⛓︎


Os ventos do fim do outono eram sempre uma antecipação violenta do inverno.
Neve era um artifício tão bom quanto um chute no saco. Desnecessária, importuna e criada para deixar tudo ainda mais gelado. Era nessas horas que sentia falta do calor e do verão da Califórnia. Melhor andar por aí com uma prancha de surf no teto do Jeep do que com três casacos em prontidão no banco de trás.
O estacionamento ficava no fim da Avenida Haven, em um grande pavilhão próprio com dois andares, cimentado de cima a baixo, com fileiras e mais fileiras de lâmpadas presas em vigas e, ainda assim, escurecido como breu, guardando uma caligem tenebrosa 24 horas por dia.
Eram nessas sombras que eu me preparava para ficar a sós com um fantasma que, provavelmente, me diria nomes e fatos que eu não me lembraria depois, mas precisava, caso quisesse que ela desse o fora o mais rápido possível.
Sempre estaciono meu Jeep Wrangler atrás de uma pilastra, sem muitos carros por perto — pelo menos, por enquanto. Às vezes, era complicado explicar que aquele carro era meu. Quando Jon decidiu que um garoto de 17 anos com notas como as minhas e uma carta de aceitação de Stanford merecia ter seu próprio meio de locomoção, ele não esperava que eu fosse pedir aquilo. Na época, eu não sabia nem escrever o nome dele direito. Só sabia que ele era grande, assustador e irado naquela cor preta. Eu me imaginava dirigindo-o desde que vi sua foto em algum jornal que entregavam semanalmente em Roseville. Quando prometi que me esforçaria ao máximo para não gastar minhas economias em multas de trânsito, aquele monstrinho estava parado no meio-fio em menos de 24 horas.
Quando me acomodei no banco do motorista, fechei a porta e esperei.
Em menos de cinco minutos, o ar pesou, gélido e macabro por dentro do veículo, assemelhando-se à mesma atmosfera que eu sentia em funerais.
— Tá legal, quem diabos é você?
A garota parecia menos desesperada do que mais cedo, com os olhos menos perdidos, mas ainda confusa. Ali, sentada sob as sombras ao lado da janela do carona, ficava ainda mais pálida e doente. Meus olhos se tornaram tão acostumados a vê-los que os deixavam facilmente confundíveis com pessoas reais, por alguns minutos. Ela coincidia com a imagem de alguém que precisava apenas sair e comer um lanche.
— Você está realmente me vendo? O quê...
— Ok, vamos pular a parte óbvia da coisa. Eu te vejo, eu te escuto e te sinto, como ficou bem claro naquela cena ridícula mais cedo, e você está morta. O que posso fazer por você?
Morta?! Mas como... — Seu rosto começou a enrugar-se em um choro. As lágrimas já se reunindo na frente de suas íris. O sotaque arranhado me fazia querer adivinhar da onde ela vinha. México? Costa Rica? — Como isso aconteceu? Eu estava apenas dormindo.
— Olha só, preciso que me conte exatamente o que se lembra. Ainda dá tempo de participar de uma confraternização no outro lado, então preciso que você pense porque ainda não foi pra lá.
Assisti-la rodando as engrenagens de sua mente era a mesma coisa que assistir ao trânsito de pedestres na Broadway. Acima de nós, a noite ia se aproximando e precisei juntar toda a compaixão e paciência que guardava para os mortos para poder dialogar de forma branda, sem instigá-los a armar uma tempestade sem escrúpulos que destruiria o espaço a uma margem de 15 metros. É, isso era muito possível e muito ruim.
Mas era realmente pior perder horas com um fantasma que não sabia, bem, que estava morto.
— Ash, ele apenas... Ele disse que as pílulas eram pra dormir. As coisas estavam estressantes, com o projeto de finalização do curso, meu estágio, formulários, currículos, então eu tomei. Fiquei grogue, vi tudo escuro e acabei adormecendo, eu… Foi isso.
Os olhos dela estavam vazios e pasmos enquanto as imagens tomavam forma em sua cabeça. As palavras saíam e voltavam, o que me dizia claramente que não dava para deixar o rumo da conversa na mão de uma mente tão insegura.
— Quem é Ash? — perguntei antes que ela descrevesse os detalhes das sensações que sentiu antes de morrer, e não era exatamente isso que eu precisava que ela se lembrasse.
— Um cara da Valfenda. É uma das fraternidades independentes, fica em Manhattanville. Não sei qual curso ele faz, pode ser literalmente qualquer um. Esse também não é seu nome de verdade. Estávamos saindo há um mês, mas ele estava esquisito desde o Halloween. Há dois dias, ele me arrumou uns remédios para que eu pudesse relaxar e dormir.
— Que remédios?
— Não sei, ele me entregou em uma caixa sem nome.
Revirei os olhos, prevendo o que viria.
— Escuta, como você se chama?
— Marta. Marta Balin.
— É o seguinte, Marta. Eu sinto te dizer que você de fato morreu e essa inundação de remédios que você tomou parecem ser o motivo. Agora o que te falta saber para enfim atravessar o limbo...
— Mas eu nem tomei tantos assim. Ele me disse para tomar apenas três comprimidos e que isso bastaria para que eu dormisse por um dia inteiro. Ele disse... — O próximo choro estava vindo, desta vez mais alto. Abri a boca para pedir que ela não fizesse aquilo antes que causasse um incêndio no lugar, mas sua voz indignada saiu na frente: — Eu confiei nele. Ele disse que não me faria mal. Eu só precisava dormir!
Confiou em um cara que não disse seu nome de verdade?!
As luzes fluorescentes piscaram e balançaram minimamente quando outro soluço ruidoso escapou de sua garganta. Puxei o lábio inferior, vendo os galhos das árvores do lado de fora oscilarem pelo vento repentinamente forte que as atacava. Eu não ficaria surpreso se ela causasse um princípio de um furacão ou outro pequeno desastre natural com aquelas emoções conturbadas.
Parece difícil de acreditar, mas fantasmas realmente tinham poderes bizarros que mexiam com o espaço em volta, mesmo que em menor escala, quando ninguém parecia notar que algo de estranho estava acontecendo. Era o caso de folhas de papel que voavam sem vento, copos que caíam no chão e mesas sendo arrastadas devagar. Outras coisas incríveis aconteciam enquanto crianças e idosos jogavam biscoitos para os pombos no meio da praça, mas, é claro, ninguém repararia nessas coisas. Era algo mostrado especialmente para mim, o grande ímã de fantasmas.
No entanto, minha avó tinha me contado certa vez que o mundo era mais extenso e fantástico do que se imaginava. Que essa coisa de poderes e habilidades reais existiam em pessoas vivas também, de um jeito sutil e ainda mais forte. Mas não era nada empolgante como os X-Men ou a sociedade de Boku no Hero. Era mais como colocar alguém para dormir com as palavras certas enquanto tenta afanar a bolsa de uma velha senhora que, é claro, só via o que tinha acontecido depois de acontecer.
Eu esperava sinceramente que Marta não fosse esse tipo de pessoa.
— Tudo bem, o que você quer? Vingança? Interrogatório? Jogar ele em um balde de cimento? Podemos discutir os termos.
— O quê? Não. Eu só... Estou confusa. Eu tinha planejado tudo, meu emprego no NYPD, meu apartamento no Queens, apresentar Ash para os meus pais...
— Ei, não é hora de se martirizar por planos que não fazem mais parte da sua realidade. Você precisa se concentrar no que ainda está fazendo aqui e pensar no que precisa resolver para alcançar o tal paraíso, e, quando fizer isso, aí sim vou poder ajudar. O que mais poderia prendê-la nesse mundo?
— Eu não sei. Passei a vida toda estudando para o LSAT, e depois para o Bar Exam e só fui em uma festa de fraternidade. Pensei que, se fizesse isso, meus pais pegariam menos no meu pé, mas continuei sendo pressionada a ser perfeita do mesmo jeito. Fui beijada apenas uma vez no ensino fundamental e agora por Ash e nunca fiquei de porre, e ele nunca chegou a descobrir que ainda sou virgem...
— Vai sonhando, garota! — Falei mais alto do que pretendia e visualizei uma pessoa passando em silêncio alguns metros à frente do meu carro, e aquele olhar que me lançou com certeza confirmou que ela me achava um maluco que estava no lugar errado (muito longe de uma instituição para esquisitões lesados que não davam certo em lugar nenhum). — Meu contrato não inclui participar de orgias ou reencenar American Pie, então eu sugiro que você pense melhor.
— Não é isso! Preciso achar o Ash, preciso saber o que tomei... Preciso saber se ele tem alguma culpa... — Ela suspirou e balançou a cabeça como se sentisse dores. — Ele é um cara discreto, mas seus negócios são populares, ele sempre frequenta as festas e tem uma lista ilimitada de produtos. Se eu conseguir achá-lo…
— E o que vai dizer pra ele? Vão sentar juntos numa varanda e dividir um licor de morango enquanto você pergunta se ele por acaso teria te matado sem querer? Ótima ideia, ele vai adorar — pisquei. — Só tem um problema: você agora é um cover do Gasparzinho e isso dificulta um pouco o lance da comunicação. Ou achou que as pessoas de mais cedo estavam fingindo não te ver?
— Mas você estava me vendo.
— Sou uma coisa completamente diferente deles, acho que deu pra notar.
Por um momento houve silêncio, onde Marta abriu e fechou a boca várias vezes em busca de alguma coisa para dizer ou perguntar. Mas logo seus olhos se perderam novamente e começaram a fitar a mim, o estacionamento, a avenida, todos os lugares ao mesmo tempo.
— Eu não… — e ela estava prestes a chorar de novo. O famoso choro de “tá caindo a ficha, eu tô morta”. — Eu não sei o que fazer.
— Lembrar. Você precisa se lembrar. E me dizer o máximo de coisas pra eu conseguir te ajudar — respondi, chamando sua atenção. A garota continuou olhando ao redor, puxando a respiração várias vezes pela boca, e seria uma indelicadeza tremenda dizer a ela que aquilo não era necessário porque ela não respirava mais, então só esperei.
— Isso é… tudo. Tudo que eu consigo pensar — um vinco de dúvida tomou sua testa. — Preciso ver o Ash, preciso saber se foi ele que me matou... — A voz dela falhou.
Perguntar a alguém se matou um outro alguém não era tão fácil quanto ela provavelmente estava pensando, mas não era o momento de explicar isso para Marta.
— Tudo bem, vamos com calma. — Disse eu, tentando passar segurança necessária que não a fizesse cair aos berros. — Você parece ter morrido há pouco tempo, e se estava dormindo na sua cama, não vão demorar a te achar. Quanto à causa, podemos esperar a autópsia e validar se o que realmente te matou foram as pílulas, e não alguma doença crônica e desconhecida que explodiu sem mais nem menos. Já assistiu Dr. House, né? Essas coisas acontecem o tempo todo. E antes disso, tudo vai ser divulgado, Ash vai ficar sabendo e quem sabe economize nosso tempo agindo como culpado. Podemos combinar assim?
Ok, pela expressão dela, ser rápido e direto não foi a melhor abordagem. Quer dizer, eu não era muito inteligente em todas as áreas da vida. Lidar com fantasmas me tornava um belo preguiçoso e perdido que tinha uma primeira conduta fixa, que era aceita pela maioria dos mortos: vou resolver o seu problema, mas não me venha com nada absurdo demais, ok?
Minha avó com certeza me daria três horas de sermão se presenciasse aquilo.
— Não. — Marta respondeu depois de ficar calada por um tempo. — Eu não tenho nenhuma doença, então essa ideia não faz sentido. Foram as pílulas, eu tenho certeza. Preciso saber o que era aquilo, preciso saber se ele sabia o que estava me dando. Só assim posso lidar com isso e ir… Ir para onde tiver de ir.
Ela enterrou o rosto entre as mãos e os ombros se mexeram para recomeçar mais uma crise de choro. Respirei fundo, comprimindo os lábios, avaliando o estado do ambiente em volta e pensando em uma forma de brindá-la com algum comentário filosófico profundo que a fizesse se sentir melhor, mas essas coisas não eram muito a minha praia. Condolências eram dadas para quem continuaria a vida neste plano, e não para os que já foram.
Antes que eu dissesse alguma coisa, a luz forte do meu telefone piscou e vibrou com uma mensagem de Vlad, chegando uma após a outra. Elas apareciam freneticamente no visor:

"Onde você está?"
"Estacionamento da Haven, não é?"
"NÃO OUSE TER IDO EMBORA SEM ME DAR CARONA"
"Me deixa na Amsterdam, tenho um compromisso, se é que me entende"
“Posso comer aquela torta de maçã que você guardou na minha geladeira?”
"TÁ AÍ????"
"VOCÊ NÃO ACREDITA NO QUE ACABEI DE SABER"

Mesmo que eu não respondesse, Vlad estaria no estacionamento de um jeito ou de outro e isso significava que eu teria que me livrar de Marta naquele instante.
— Tudo bem, é o seguinte: vou procurar esse tal de Ash e me certificar de saber o que ele te deu e se sabia o que estava fazendo. Agora você precisa sumir do meu carro.
Eu já não estava com muita vontade de parecer simpático, mas tentei o meu melhor para entregar um belo sotaque californiano de confiança.
— Você faria isso? — ela se empertigou no banco, repentinamente ansiosa. Concordei com a cabeça, murmurando pacificamente um “tenho que fazer”, mas ela era incapaz de notar a minha ironia. — Obrigada, obrigada, você… — suas sobrancelhas se juntaram em dúvida.
, muito prazer. Agora... — Apontei para a porta do carona.
— Meu Deus. Você é ? — Ela pareceu surpresa até demais. Era só o que me faltava. — Nunca imaginei que o número 1 fosse tão jovem. Ou que pudesse ver… pessoas como eu.
— É, pois é, só não conta pra ninguém, beleza? — ironizei, olhando para a frente a tempo de ver o vento abrandando entre as folhas.
— ela repetiu meu nome e deu um sorriso pela primeira vez. — Você parece ser um cara legal. Vou confiar em você pra me ajudar a entender toda essa loucura. Obrigada por isso e… Sinto muito pelo seu braço.
Ela evaporou na mesma hora que as luzes do estacionamento finalmente se acenderam e o topo da cabeça de Vlad surgiu no meio dos carros, correndo mais do que o normal.
Não demorou para que eu fosse avistado, já que normalmente estacionava no mesmo lugar, mesmo que fosse uma região de difícil acesso e que era alvo de olhares tortos de taxistas que passavam descendo as rampas do terceiro bloco e precisavam dar a ré para não correrem o risco de baterem no concreto, já que o Jeep não os dava espaço suficiente para manobrar. Vlad entrou ofegante, com as mãos no peito, e abriu a janela quando se instalou.
— Cara... Tem um cigarro?
— O que aconteceu? O prédio não é tão longe — respondi, enquanto fuçava meu porta luvas e tirava um maço, entregando-o em seguida. — Você precisa parar de fumar.
— Como você conseguiu parar? — ele respondeu, enquanto pegava um isqueiro no bolso da frente da mochila.
— Não parei. — Dei de ombros, acendendo meu próprio cigarro e tragando logo em seguida. Seria melhor fazer isso na área residencial próxima à Columbia, onde os idosos se sentavam pacificamente nas varandas e lotavam seus pulmões de nicotina em cachimbos e já tinham deixado de sentir o cheiro de algo mais fraco do que meu Camel há muito tempo, mas aquilo teria que bastar para que eu assimilasse a situação de Marta.
Vlad voltou a falar, depois de respirar e absorver a fumaça algumas vezes.
— Cara, você não vai acreditar. Eu não via uma movimentação dessas no Colloquium desde o Natal passado, quando os Lions venceram o campeonato contra Harvard. Se liga: uma garota foi encontrada morta lá no Lenfest Hall, no alojamento feminino. Parece que ela morreu hoje, um pouco antes do almoço. Imagina só! Na hora que todo mundo comia, uma pessoa estava morta bem ali, a menos de 10 minutos de distância. Tive muita vontade de pular em um táxi e ir para casa, ainda bem que você ainda estava aqui. Está uma loucura lá fora…
— É mesmo? Quem é a garota? — Reuni um pouco de interesse na minha voz. Queria dizer que alguma intuição maluca me dizia que também seria melhor entrar em um táxi, ir direto para o aeroporto de LaGuardia e pegar o primeiro avião para São Francisco. Karen me abraçaria e ficaria contente em me ver, mas também não entenderia nada e certamente se desapontaria quando eu não contasse, portanto, era fácil descartar a ideia.
— Uma tal de Marta, da faculdade de Direito. Você tinha que ouvir o que disseram sobre como ela estava. Um horror. Parece que ela teve uma overdose, então tem vômito para todo lado, ela está roxa, gelada, os olhos estavam abertos… — Ele tremeu por uns instantes. Se eu estivesse presente na cena do crime, e por acaso Marta estivesse falando a verdade, diria que a pessoa que a matou precisava voltar imediatamente para as suas séries de TV e se esforçar um pouco mais para montar um cenário de suicídio.
Porque tudo estava parecendo bagunçado demais. E eu não era nenhum especialista em transgressões, mas passei quatro anos tentando me livrar de um fantasma na escola católica, que jurava ter sido morto por causa de um apagador porque seu corpo estava dentro de uma marcação em giz. Provavelmente tinha sido isso, ou um ataque epilético, ou até mesmo tétano, mas aparentemente no século 17 as pessoas não investigavam muito bem as coisas.
— Um filme de terror. Nem imagino como a pessoa que a encontrou ficou… — continuou Vlad, expelindo a fumaça para fora da janela.
— Você curte Indiana Jones, achei que gostasse de coisas mortas — dei de ombros. Vlad me encarou como se quisesse me chutar para fora do carro.
— Coisas mortas há milhares de anos, ! Que comparação de merda! Ela acabou de morrer! — Ele estava arfando de perplexidade. Dei uma risada sarcástica e finalmente girei a chave, preparando-me para sair.
Vlad não demorou muito para enterrar o rosto no celular de novo, digitando com ansiedade, passando páginas e páginas da manchete já postada e explicada (ou inexplicada, com o máximo que eles sabiam até o momento). Lá fora, o caos estava instaurado da mesma forma que Vlad havia dito, mesmo que estivesse concentrado em um canto específico: o prédio do Lenfest Hall, que me fazia avançar em metros lentos pelo trânsito congestionado causado pela grande ambulância parada com as portas duplas abertas na entrada lateral, prontas para receberem o corpo de Marta.
Ele veio em cima de uma maca fina, enfiado dentro de um saco preto, com flashes de câmeras, luzes vermelhas e azuis e uma multidão curiosa ao lado. Os espectadores da desgraça humana estavam em todos os lugares. Pude ver a mesma Marta em espírito parada ao lado delas, observando a si mesma sendo guiada para dentro de uma geladeira gigante, vendo o final físico de sua vida. Um corpo que nunca mais acordaria, sonhos que nunca se realizariam.
Não consegui suportar o olhar triste que ela emanava, então apenas virei a cabeça para a frente.
— Uma overdose? — perguntei, tentando me distrair da bagunça enquanto prosseguia para a última parte da saída. — Eles disseram que foi isso?
— Ah, eles ainda não sabem de nada. A ambulância acabou de chegar. Eles devem examiná-la no Hospital Presbiteriano. O reitor fez questão de não causar alarde enquanto eles resolviam isso, mas parece que não deu muito certo. Já é um dos assuntos mais comentados do Twitter, e o Colloquium está pegando fogo. Todos dizem que ela realmente se matou.
Olhei para a multidão novamente. Marta agora tentava inutilmente tocar nas portas, segurá-las, com lágrimas brotando de seus olhos. Senti pena, mas também receio. Essa garota, que aparentava ter a minha idade e devia passar o tempo livre comendo chocolate e lendo romances, não cometeria suicídio. Esse tipo de fantasma normalmente não vagava por aí, desesperados por conseguirem o que queriam. Marta era o total oposto disso. E não havia porquê duvidar dos mortos, eles literalmente não tinham mais nada a perder.
Uma outra pessoa chorava na cena. Não sei porquê reparei nela, entre tantas outras; não sei se foram as roupas agora diferentes, com um jeans e um suéter azul, sem a blusa branca que foi arruinada pela comida, uma caixa de violino presa nas costas ou se foi o guarda-chuva vermelho ao redor de suas mãos, mas ela certamente não chorava como as outras. Era um choro silencioso, discreto, com as lágrimas descendo e já desaparecendo pelas costas de sua mão, lábios ligeiramente repuxados em puro controle. Ela parecia motorizada, alguém que estava chocada demais para se desesperar.
Eu estava prestes a perguntar a Vlad qual era mesmo seu nome quando o Ford finalmente andou diante de mim, e esqueci do assunto.
Deixei Vlad na Avenida Amsterdam, a uns metros do Playa Betty’s onde ele aparentemente assistiria ao jogo dos Yankees com uma tal de Catherine com cerveja e batata frita. Não fazia ideia de quem era a garota, mas avisei para que ele tomasse cuidado e ficasse esperto com os ladrões que roubam turistas e estudantes — e aqueles que roubam qualquer um.
— Pode deixar, só vou fazer um lanche e já volto para casa — ele assegurou enquanto soltava o cinto de segurança.
— Você vai largar o lanche pela metade para beijar essa garota — falei em tom óbvio. Ele levantou os ombros, sugestivamente.
— E quem sabe eu não termine com ela no meu colo? Seria um ótimo jeito de acabar esse dia horrível, quero passar bem longe daquele lugar hoje.
Se você soubesse que fui informado pela própria vítima, você estaria mais traumatizado.
— Tudo bem, até amanhã.
Ele arreganhou um sorriso para mim, com alguns dentes tortos, e saiu.
Dirigi para casa tentando encaixar as peças. Marta não havia tomado comprimidos o suficiente para simplesmente morrer; três era um número razoável para causar um susto, dependendo do remédio, mas nenhum fármaco nessa quantidade tinha poder o suficiente para causar aquele estrago — ela precisaria se esforçar muito. A situação era toda estranha e eu precisava bolar uma trilha onde eu me encontrava com Ash e o fazia revelar o nome da droga que vendeu para Marta. Não que perguntar de frente resolveria alguma coisa, no mínimo ele me acharia um maluco, mas esse tipo de colocação era totalmente inevitável para pessoas como eu.
O próximo passo era descobrir o cronograma de festas universitárias e como eu encontraria um cara sem nome e sem rosto.
[1]LL.M é um curso de pós-graduação voltado para alunos com formação em Direito e que desejam aprofundar seus conhecimentos em uma área específica da profissão.


Existem várias coisas na Columbia que me deixavam perplexo.
Distribuição de notas tendenciosas aos atletas, processo seletivo absurdo em fraternidades famosas, aquela goteira imensa nos fundos da Augustus, a proteção fajuta de dados de alunos, matrículas feitas ainda em caneta e papel e, é claro, o CJ.
Eu morria de medo daquele lugar. De um jeito um tanto claustrofóbico.
O Columbia Journal era administrado pelos próprios alunos e ficava localizado em um prédio pequeno ao lado do departamento de Jornalismo, dentro do gigantesco Pulitzer Hall. Prezando pela abolição das notícias em papel e, consequentemente, a preservação das florestas, eles mantinham um site bem informativo e moderno que também chamavam de Colloquium. Lá estavam todas as informações sobre a Columbia e fatos importantes que aconteciam por lá, como eventos, congressos, simpósios e, claro, o pódio semestral. Cada aluno tinha seu próprio login e funcionava como uma rede social, porém restrito apenas aos alunos da universidade e com postagens feitas apenas pelos funcionários do jornal. Se existe um lugar onde você poderia achar o básico sobre a maioria dos alunos da Columbia, esse lugar era o CJ.
Claro que eu não esperava conseguir informações sobre Ash de uma forma tão descaradamente errada. Roubar documentos escolares era uma das minhas especializações na escola católica, mas apenas porque, aparentemente, muita gente morria no século 19 por causa de intensos contatos com as novas descobertas químicas da época e mesmo assim gostariam de saber a nota de um teste. E não me surpreendia como aquele lugar velho gostava de guardar coisas mais velhas ainda.
Mas mesmo na era digital, era difícil achar alguém sem qualquer referência de um nome. Ash não era nome de ninguém. Eu verifiquei. Existiam mais de 1.000 alunos espalhados pelo campus, em todos os departamentos, e nenhum deles sequer começava com essas três letras.
Estranho. Muito estranho.
Eu já havia visitado o CJ algumas vezes, quando meus artigos precisavam de alguma correção e eu tinha que me deslocar até a sala do professor responsável pela gestão do jornal, o Dr. Reggie Campbell, o único daquele lugar que não me fitava com um olhar tão furioso por ter interrompido seu trabalho, como os outros faziam. Hoje eu iria submetê-lo a uma análise do novo texto que eu havia preparado ontem, e normalmente isso me deixaria preocupado com uma aprovação de publicação ou não, mas agora isso não me incomodava tanto. Ir até lá estava sendo mais uma desculpa para uma conversa do que qualquer outra coisa.
Chegar ao CJ significava estacionar em um espaço apertado e atarracado de bikes e motocicletas. Acho que não existia pior lugar para se parar com um Jeep Wrangler. Até mesmo o senhor Campbell tinha sua Vespa presa por uma corrente nas barras de metal ao lado do prédio, mesmo que eu acreditasse que fosse muito mais por um lance particular de colecionador.
O edifício era um dos menores — tudo parecia menor ao lado do Pulitzer Hall —, mas bem estruturado e limpo. As paredes estavam com a pintura em dia e, pela janela de vidro onde se podia ver o escritório, os equipamentos eram bem modernos e atendiam às demandas. O CJ era uma referência no ramo de jornais universitários sem fins lucrativos pelo país. Pelo menos uns dez alunos ali presentes seriam os próximos âncoras da CNN e editores chefes do New York Times.
A porta branca no final do corredor estava fechada, mas visualizei a correria das pessoas pela divisória de vidro ao lado da entrada. Elas atendiam telefonemas, digitavam, gritavam umas com as outras de uma ponta à outra da sala, o que fez com que absolutamente ninguém me notasse assim que entrei. Ninguém que arranhasse os dentes e gritasse para mim “você vai parar onde está agora mesmo.” Virei à direita e segui para a porta com o nome Prof. Dr. Reggie Campbell e bati duas vezes, ouvindo um "entre" em seguida.
Ele encarava desesperadamente a tela do computador antes de se virar para o batente.
— Senhor ! — Sorriu, tirando os óculos e se levantando da cadeira com um suspiro relaxado.
— Bom dia, professor, como vai? — Apertamos as mãos e ele apontou para a cadeira à sua frente. Sua mesa estava tão abarrotada que eu fiquei em dúvida se ele podia realmente me ver.
— O que o traz aqui tão cedo, meu jovem? Ainda não trouxeram o meu café, estamos um pouco apertados hoje, mas aceita uma água, um chá...
— Não, professor, tudo bem. O senhor O’Toole me pediu pra escrever uma coluna, parece que quer fazer mais um pedido de fundos pra uma nova pesquisa, então terminei ontem. Vim trazer para o senhor dar os toques finais. — Tirei a pasta da mochila e a coloquei em cima da mesa.
— Ah, o texto sobre as células T no melanoma. O’Toole me falou ontem. Aquele cara vive dizendo como é importante que o nosso país seja o primeiro a falar sobre a cura do câncer, mesmo que isso seja mentira e provavelmente sempre será — ele voltou a colocar os óculos e passou os olhos por cima do papel. — Muito bem, muito bem... Farei os preparativos, é claro. Mas, infelizmente, creio que ele não poderá ser enviado hoje. Você está sabendo do que aconteceu em nosso campus ontem? — Ele baixou os óculos até o meio do nariz e me observou.
— Ah, claro... A garota. É, eu fiquei sabendo.
— Pois é, pois é, uma tragédia — ele suspirou. — Por esse motivo, nossa equipe está trabalhando dobrado hoje, tentando dar conta de tudo. Os assuntos secundários foram deixados de lado e estamos nos concentrando apenas no caso da Balin, mesmo que não haja muito a ser dito. A CNN veio aqui latindo regras e códigos e foi uma dor de cabeça mandá-los embora. Mas pode deixar que a revisão do texto não passará muito do prazo.
— Não se preocupe com isso, professor. — Dei um sorriso leve. — Vi que as coisas estão bem caóticas, é só andar pelo campus para saber. Mas tudo vai se resolver, eles pegarão o culpado–
— Culpado? Não há culpado, meu jovem. — Ele soltou uma risada divertida, como se gostasse do fato de ter de explicar o caso pra mim. — Isso é um caso claro de suicídio! Oh, meu Deus! Encontraram a pobre garota sufocada no próprio vômito. Não me espanta os pais estarem enrolando para virem reconhecer o corpo e não duvido que não vão sequer autorizar uma autópsia. Céus, o uso de drogas entre os estudantes têm aumentado significativamente nos últimos anos. Seria uma ótima sugestão se Simon lhe pedisse para escrever sobre isso, os riscos são sérios…
E então, Reggie começou a simplesmente tagarelar.
Dei um sorriso falso, ouvindo seu monólogo enquanto balançava a cabeça e concordava. Jogar pra cima dele como se eu fosse uma diva ocupada que mal tinha tempo de abrir o Colloquium para ler sobre o assunto, ou não tivesse amigos ou ouvidos para saber de outra forma foi uma boa, já que ele não se incomodava em mostrar serviço. Ali estava uma informação interessante que precisou ser coletada: a autópsia não sairia tão rápido como eu pensava, e isso significava que eu ficaria com um fantasma no meu pé por mais tempo.
Após um breve bate papo sobre minhas notas, meus projetos de pesquisa em andamento, minha futura residência no Centro de Câncer MD Anderson e, é claro, as propostas de emprego antecipadas de laboratórios que eu provavelmente jamais colocaria os pés, me despedi de Campbell e me preparei para sair da sala. O barulho tinha aumentado no pequeno espaço do escritório e o telefone não parava nem por um minuto. As pessoas ainda encaravam umas às outras com seus melhores olhares de “vou acabar com a sua raça”, mesmo que não fosse para ninguém em específico. Fechei a porta atrás de mim, avistei um bebedouro ao lado e percebi como minha garganta estava seca. Havia uma placa acima do galão escrita com letras em caixa alta e negrito: "NÃO USE COPOS PLÁSTICOS, TRAGA SUA PRÓPRIA CANECA".
Infelizmente, eu teria de beber água em outro prédio.
Quando me virei para enfrentar a cólera coletiva e caminhar até a saída, tudo aconteceu em um piscar de olhos.
Como se tivesse brotado de alguma parede divisória do ambiente, uma pessoa passou andando a passos largos ao meu lado, enquanto eu saía da frente do bebedouro. O esbarrão foi tão intenso que vi papéis voarem e meu braço tentar segurar em algo antes que eu atingisse o chão, e infelizmente esse algo foi o galão cheio de água que me deu um banho e na pessoa que constatei ter caído exatamente em cima de mim.
Antes de mais nada, desta vez fantasmas não tiveram nada a ver com isso. Eles não estavam lá, eu garanto. A pessoa em cima de mim era humana e uma garota, com uma expressão tão estupefata quanto a minha. Seu cabelo virou uma mistura de molhado e seco, e seus olhos estavam cravados nos meus. Por um milésimo de segundo, senti mais calor ali do que todos os dias de verão juntos naquele lugar.
O barulho dos telefones continuava, mas as conversas cessaram, o que demonstrava que todos estavam olhando para nós. Isso era ridículo, eu deveria ter simplesmente andado direto para a entrada… Espera, essa não é...
Tarde demais. Ela pareceu ter se lembrado no mesmo momento que eu e toda a situação caótica do refeitório veio à minha mente.
— Tá de brincadeira — ela bufou, saindo de cima do meu peito como se quisesse que eu atravessasse o chão. Não duvidava nada que ela quisesse usar meu tronco como degrau. Uma risada sarcástica escapou de sua garganta, sem um pingo de simpatia. — Resolveu causar sua zona por aqui? O John Jay não foi o suficiente? — ela ajeitou as roupas rapidamente, afastando algumas gotículas dos ombros.
— Olha, você deveria olhar pra onde anda — eu disse, enquanto tentava salvar os papéis menos encharcados do chão.
— E você deveria começar a usar botas ortopédicas. Com licença — ela arrancou os papéis da minha mão e olhou para as partes danificadas e molengas com uma careta. — Isso deu o maior trabalhão. São depoimentos, tanto da polícia quanto da equipe do CJ, é o único material que a gente tinha sobre o caso se quiséssemos publicar hoje. Você tem ideia disso?
Abri a boca para responder, mas ela foi mais depressa:
— Mas é claro que não, você deve ser algum aluno turista que está aqui pra pedir alguma revisão de trabalho mal feito ao senhor Campbell e tentar convencê-lo a aumentar sua nota. Sinto te informar, mas isso não faz muito o tipo dele, principalmente se você–
— Mas o que está acontecendo aqui? — Reggie abriu a porta, olhando para mim e a garota. — , por que está brigando com o rapaz?
Ela recuou por um instante com a pergunta repentina. Depois, continuou, agora em um tom mais baixo:
— Professor, esse cara causou o maior estrago nos depoimentos que eu e Isadora conseguimos sobre a ação da polícia. Eu ia levá-las agora mesmo para o senhor–
Reggie levantou a mão direita e se calou na mesma hora. Suas bochechas tomaram um leve tom de vermelho e ela me lançou mais um olhar de desprezo pelo canto do olho. Eu tinha milhares de momentos desse tipo, recebendo olhares atravessados e disfarçados das pessoas, mas nunca por um mal entendido tão estúpido que não envolvesse fantasmas.
Com um grande suspiro, Reggie retirou os óculos de grau novamente e os levou à testa, em uma expressão cansada.
— Srta. , o que nós conversamos sobre isso? Você não pode fazer o trabalho da srta. Montenegro.
— Eu sei, professor, mas…
— O que aconteceria se Niki descobrisse que você passa o tempo livre correndo atrás de policiais e civis com um bloco de papel, fazendo perguntas? Não tinha que estar se preparando para o recital de Natal?
abaixou a cabeça em uma reação envergonhada, porém não arrependida. Eu não entendia bem o que estava acontecendo e não tinha pensado no fato de que ela também não deveria estar aqui, mas na hora do impacto, meu cérebro tinha simplesmente adormecido, assim como quando tinha trombado com ela ontem.
— Tenho, professor. Mas achei que podia ajudar. Achei que eu deveria ajudar — ela concluiu, a voz baixa como um sopro.
O sr. Campbell desviou os olhos e se virou para nós dois simultaneamente.
— Tudo bem, mas não discutam aqui, há muito trabalho a ser feito. Sei que o senhor não fez de propósito, inclusive ele estava de saída. — Ele deu umas batidinhas no meu ombro. — Quanto à você, senhorita , se quer ajudar pode se ocupar com uma nova tarefa que lhe darei agora. — Reggie entrou na sala tão rápido quanto saiu e trouxe uma pasta consigo. — Digitalize, edite e faça todo o processo de envio à revisão do artigo deste jovem, que foi o que veio fazer aqui hoje, caso responda às suas dúvidas de antes. Vai ser a postagem principal da seção científica do Colloquium do mês que vem.
olhou de mim para o professor e pegou a pasta, um pouco frustrada, passando um olhar rápido sobre o conteúdo.
Algo a fez arquear as sobrancelhas completamente, surpreendida.
— Você é ?
— O próprio — o senhor Campbell respondeu. — Agora, se me dão licença, preciso atender às milhares de chamadas e responder e-mails de emissoras sem mais o que fazer querendo nos importunar por informações que ainda nem temos — ele suspirou e se virou para os demais que ainda nos observavam. — E vocês aí! Voltem ao trabalho, ou vão levar pontos de demérito! , tenho certeza que pode resolver o assunto do senhor e voltar para o seu ensaio. Confio em você, é uma das melhores alunas que temos, mas se eu pegá-la substituindo Isadora Montenegro de novo, teremos problemas. Agora chame a moça da limpeza para dar um jeito nessa bagunça. Mil perdões por todo esse incômodo, senhor . Volte em segurança para o departamento. — Ele deu um sorriso caloroso em minha direção e, quando me dei conta, já tinha entrado de volta para sua sala.
A expressão de era um misto de choque e desgosto. Estava claro que era a primeira vez que ela via o senhor Campbell falar com alguém daquela forma, e queria dizer que também não entendia o exagero de gentileza.
— Então... Tá tudo bem? — perguntei, vendo-a com os olhos aéreos, como se tivesse perdido alguma coisa na cena anterior.
— Você pode ir, por favor? Preciso chamar o serviço de limpeza e você está no caminho. Pode deixar que seu artigo vai ser enviado assim que possível.
Ela deu as costas e desapareceu por outra sala, me deixando à vista de alguns outros remanescentes que ainda observavam a cena. Não demorou muito para que eu retornasse do meu estado estático e seguisse para a porta de saída, farto de mais uma confusão com terceiros em um tempo recorde, o que era inédito pra mim. Geralmente eu entrava em situações constrangedoras e problemáticas apenas com os mortos.
Pelo menos hoje ela partiu com um espaço vazio atrás dela, sem os outros protótipos de Mean Girls em seu encalço como ontem.
Na saída do prédio, comecei a pensar que teria que recorrer à Vlad mais uma vez para trocar minhas roupas, e esperava que ele não insinuasse que eu tinha um déficit de atenção por simplesmente ter derramado água em mim mesmo por acidente. O cérebro dele era menos cético do que eu gostaria, mas costumava interpretar tudo errado.
Com a aproximação do inverno, um casaco morava no banco de trás do Jeep, pronto para ser usado a qualquer minuto que a temperatura decidisse cair demais. De repente, pensar nele me fez lembrar que a garota lá dentro estava sem casaco e tinha se molhado ainda mais do que eu, e tenho certeza que sentir pena disso me daria alguma ideia ridícula, mas antes que isso acontecesse, algo chamou minha atenção primeiro.
Em um mural de madeira na parede ao lado da porta que cheguei, estavam colados cartazes e panfletos. Havia divulgação de eventos jornalísticos, como congressos e visitas técnicas, mas havia um cartaz colorido e maior do que todos com os dizeres: "FESTA EM VALFENDA! VENHA E TRAGA MAIS 1 & A CERVEJA! SEXTA 22H!".
A ideia mais desequilibrada passou pela minha cabeça.
Me lembrei imediatamente das palavras de Marta sobre Ash — e onde ele morava. Infestar a própria casa com pessoas e bebidas parecia algo muito comum pra esse cara, e se estava aberto ao público... Era válido arriscar e ir atrás da única informação coerente que tinha recebido dela.
Sem acreditar no que eu estava prestes a fazer, entrei no carro e liguei pra Vlad.

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Eu não tinha tanta certeza se Vlad era realmente capaz de encontrar a biblioteca Butler. Nem mesmo com o Google Maps. Sua demora em chegar e sua recusa em pisar em uma biblioteca nos últimos 15 anos sugeriam isso. Ler não fazia bem o estilo de Vlad Oldman — a não ser que estivesse interessado em uma garota da turma de Literatura. Fora isso, os códigos binários mecânicos e os jogos online tomavam o resto de sua atenção.
Depois de meia hora, vi ele entrar ao longe, parando no meio da escadaria até que enxergasse meu braço acenando do fundo do salão. Vlad olhou para algo lá atrás de mim, algo que se parecia com um alguém, o que o fez andar mais rápido e esboçar uma careta engraçada, me adiantando duas coisas: ou Catherine estava lendo um livro de Emily Brontë em algum canto da sala e tinha dito a palavra amigos, acabando com as possibilidades de Vlad estar ocupado no próximo 14 de fevereiro, ou as paredes grossas e envelhecidas ao estilo neoclássico construídas em 1930 ainda o davam certo arrepio.
Principalmente porque não estávamos tão longe assim do Lenfest Hall.
— E aí, cara? O que houve? — Vlad falou especialmente alto enquanto afastava a cadeira à minha frente, recebendo a primeira advertência das pessoas com um "shh" bem agressivo. Ele parecia pálido e distraído, e me perguntei por que diabos havia marcado de encontrá-lo logo em uma biblioteca (e na mais antiga de todas, onde Vlad podia jurar que era mal assombrada). — Foi mal — ele sussurrou para nossos vizinhos mais à frente. — Galera bem nervosinha...
— É que eles não gostam da escória da Computação, gente que não faz ideia da onde fica uma biblioteca — debochei, movendo os olhos entre ele e a estátua de ferro logo ao lado, dedicada a um general qualquer da Guerra Civil.
— Ei, esse negócio de livros é coisa do passado. Isso aqui é mórbido, cara. Não lembra o que aconteceu ontem? — Ele olhou em volta com uma expressão de desprezo. Como se também quisesse que eu reparasse no que tinha ao redor: um imenso castelo de pedra de várias décadas passadas, nenhuma reforma significativa, milhares e milhares de portas estranhas e nunca abertas.
É, Vlad tinha lá seus problemas com velharias que pareciam mortas demais. Ou as que não pareciam tão mortas assim.
— Mas e aí, o que tá pegando? — Ele apoiou os antebraços no tampo da mesa. — Tá quase na hora do almoço, quer ir naquele indiano, o Roti Roll? O cardápio do John Jay não tá dos melhores e ainda preciso terminar um trab– Peraí, cara, sua roupa...
— Vamos sair na sexta à noite.
Falei sem hesitação, ainda digitando a última palavra que encontrei para o relatório. Voltei a olhar pra cima logo depois, vendo Vlad piscar duas vezes e travar com a boca entreaberta.
— O quê?
Suspirei e abri o banner de divulgação da festa que tinha visto mais cedo bem ali no laptop e virei-o para Vlad.
— A festa na Valfenda? Cara, essa é uma das maiores fraternidades do noroeste! Não acredito! — Ele soltou uma risada, o que nos rendeu uma segunda advertência. — Foi mal — sussurrou mais uma vez, e o vinco em sua testa ainda não tinha desaparecido totalmente. — Mas… Isso é muito novo. Você tá legal, ? Por que de repente você quer virar um universitário?
— Não sei, de repente quero ir nessa. — Dei de ombros, com indiferença. — Passar três anos dentro desse lugar pode deixar a gente um pouco maluco. Não entendo nada de festas, mas essa parece que vai ser boa.
— Você pode apostar que sim! — Vlad arregalou tanto os olhos de animação que, se não estivéssemos na biblioteca, teria gritado até ser ouvido do gramado lá de fora. — As festas da Valfenda não decepcionam nunca. Os caras sabem seguir a filosofia da soberania élfica, e sabe o que é melhor? Elas sempre duram 48 horas! Dessa vez eu posso ir sem os fracassados do meu departamento. Cara, preciso postar isso… — E então, ele já estava com o celular de novo, começando a digitar freneticamente.
Certo, pensei. Isso cheira muito a uma noite de tortura, e se Vlad me fizesse comprar uma blusa nova pra todo aquele martírio, eu juro que repensaria esse plano.
— Não precisa publicar qualquer coisinha, infeliz digital. Que exagero...
— Não é qualquer coisinha! Olha a situação: vai a uma festa, senhoras e senhores! Finalmente vai dar às caras! — Ele disse em um tom tão óbvio quanto “dããã”. — Esse era o seu grande plano antes de sumir pra sempre na sua residência no Texas? Botar pra quebrar na festa mais sinistra de todas?
— Eu só vou ir à festa, sabe, atravessar a porta e aparecer, para de falar como se fosse um grande evento. E meu Deus, para de postar isso! Já ouviu falar em invasão de privacidade?
Vlad franziu o cenho como se eu não tivesse falado absolutamente nada depois da primeira frase.
— “Grande evento”? Você sabe o que é, grande gênio? Não se faça de inocente — em um instante, ele já aproximava o tronco para o centro da mesa, estendendo o celular para que eu visse. — Se parasse de demonizar tanto o Twitter, veria como você provavelmente seria a pessoa mais seguida desse campus. Não vê quantas curtidas? Acabei de postar isso, — ele rolou a tela para mostrar a tal notícia: um tweet escrito “Alcancei a honra divina e vou levar à Valfenda! Fodam-se os Hobbits!” e números crescentes que só subiam. Por um momento, fiquei literalmente sem palavras. — O seu nome é o primeiro do ranking, se liga! É claro que você é a droga de uma subcelebridade. E o melhor de tudo: as pessoas não vão se decepcionar quando te virem, com certeza. — Ele soltou mais uma risada, digitando com mais velocidade.
Agora quem estava embasbacado era eu. Uma subcelebridade nem fazia sentido, pelo amor de Deus. Vlad estava tão animado com a ideia que me perguntei se ele podia voltar a tagarelar sobre suas últimas matérias de JavaScript porque me pareciam mais interessantes de ouvir.
— Mas o quê...? — Franzi as sobrancelhas, ainda no estado letárgico das informações. — Vlad, isso não importa. Não estou indo lá pra chamar atenção.
Eu não quero chamar atenção, pensei em reiterar. Eu não posso chamar atenção, era uma ênfase mais verdadeira, mas preferi permanecer com o que tinha dito. A não ser por nós, não havia mais ninguém conversando, e sofrer repreensões mais uma vez era desnecessário.
Vlad parou de digitar e olhou para mim, genuinamente estupefato com a minha reação tão pouco… Entusiasmada. Quer dizer, ele parecia ter escutado que bati o carro ou que coloquei fogo no meu apartamento. Mas não dava pra evitar, eu realmente achei que era só uma festa. Ninguém quer perder tempo procurando outras pessoas em uma festa.
A não ser eu, que tinha a intenção de procurar um possível assassino.
— Cara, tá falando sério? — Ele suspirou. Quando não respondi, Vlad simplesmente revirou os olhos. — Você não pode esperar que as pessoas vão passar batido pelo aluno número 1. Elas vão se surpreender em saber que você não é um nerd esquisito acneico. Na verdade, você não é tão desagradável de se olhar. As garotas vão chover em cima de você, tem noção? Talvez até sobre algumas pra mim...
— Esse com certeza não é o meu objetivo.
— Isso não importa, meu amigo, apenas vai acontecer.
Agora eu me deixei revirar os olhos em puro tédio. Era uma batalha perdida. Já não me metia entre Vlad e seu Counter Strike, não ia me meter em suas expectativas irreais também.
— Se você diz... — Dei de ombros e desliguei o laptop. — Agora, vamos almoçar. E, sim, vamos ao Roti Roll.
Vlad fez um barulho estranho com a garganta, muito parecido com um gritinho animado, o que fez com que recebêssemos a última advertência antes de sairmos da Butler, que hoje estava mais fria que o normal.


Não tive coragem de deixar nenhuma flor pra ela.
Quer dizer, não que eu estivesse pensando nisso. Flores não eram o meu forte nem quando se tratava da minha mãe. Ela já recebia várias delas nas dezenas de jantares executivos que dava em casa, ou nos que frequentava há muitos quilômetros da costa oeste, ou até mesmo nas reuniões da tal Sociedade das Velhas Senhoras da elite de São Francisco. Já a deixei bem na porta de uma coisa dessas uma vez, e não sei como suportava ficar 10 minutos naquilo.
Mas bem, ao longo daquela semana, parecia não existir uma única alma viva que não tenha deixado flores ou um suspiro para Marta Balin.
Elas entulhavam o acesso ao Lenfest Hall, os corredores da Columbia Law School, e um pouco na porta do Massawa, um restaurante etíope onde aparentemente ela passava o pouco tempo livre que tinha bebendo chá gelado com os — menos ainda — amigos do seu círculo.
Até mesmo Shea von Sydow, um sujeito sueco muito carrancudo de cadeira de rodas que trabalhava digitalizando documentos de alunos na administração central, acendeu uma vela diante do antigo armário de Marta, perto do vão da porta da galeria de artes.
Uma série de palestras foi organizada pela Faculdade de Direito para falarem sobre saúde mental e os perigos dos narcóticos, contando com uma homenagem especial à querida aluna formanda que os tinha deixado de uma forma tão abrupta. A iniciativa era interessante, mas só na forma em que todos os presentes seguravam as canetas preguiçosamente, ou cutucavam redes sociais no celular enquanto algum profissional da área estava falando, já dava pra perceber que não foi o método mais inteligente para convencê-los a parar de comprar pílulas com cloridrato de metilfenidato de vez em quando. Ou até algo mais forte do que isso.
Marta pensava o mesmo. Porque estava presente no auditório, e em todas as situações que seu nome era mencionado, em cada bendita reunião formal ou mera fofoca de corredor.
E se ela algum dia desejou ser uma mosquinha para escutar conversas a dois que aconteciam depois de um “olá”, agora já estava repensando isso pra valer. Porque o efeito manada das flores e velas não passava de uma conveniência, totalmente isento de sinceridade absoluta.
Eu tentei avisar. Digo, tentei acalmá-la quando começou a gritar no banco de trás do Jeep há dois dias atrás, bem na hora em que eu tentava sair do estacionamento. Me assustou tanto que quase lancei meu celular pelos ares — e é com muita propriedade que digo que pouquíssimas coisas me assustam. E dizer a ela que “a vida é assim mesmo, as pessoas são escrotas” quase a fez dar um bote pra cima de mim.
Eu já devia ter aprendido uma forma mais correta de acalmar um fantasma.
No entanto, as conversas foram mais tranquilas depois disso. Ao longo dos dias, eu a via vagando pelos corredores com seus gemidos agudos, observando essas mesmas pessoas e seu show de afeto tardio com tristeza, lamentando-se como bem mandava o roteiro de uma assombração derrotada. Eu não fingia mais que ela não existia — sabia que ela estava ali e sabia que ela sabia; só não queria ser cobrado pelo nosso acordo e precisar me esquivar das suas garras quando dissesse que ainda não tinha dado andamento nele. Talvez ela não ficasse tão nervosa a esse ponto, mas queria preservar a integridade dos meus ouvidos.
Pra não dizer que não fiz nada: mostrei a ela o cartaz da festa de sexta-feira na Valfenda, o que a deixou surpreendentemente tranquila — e um pouco agitada demais.
— Você vai encontrá-lo — disse para mim na última terça-feira, pegando uma caneta esferográfica em cima da mesa da biblioteca, aparentemente vazia naquela tarde. — Ele mora aqui. Bem nesse quarto. Eu acho… Que era nesse… Ou nesse…
O desenho era uma representação tosca de uma casa muito grande e retangular, com alguns tijolos malfeitos que pulavam da folha. Não sabia exatamente o que Marta queria mostrar, já que alguns quadrados maiores, que deviam representar janelas, estavam dispostos de forma tão bagunçada que faria o prefeito de Nova York mandar demoli-la na mesma hora. Contudo, depois de um tempo observando seus pensamentos embaraçados, entendi perfeitamente o que estava acontecendo.
Marta não se lembrava. Era o que acontecia com os mortos: as lembranças sobre quem eram e onde pertenciam ficavam vivas na memória por um certo tempo, até que começavam a se esvair. Quanto mais ficavam no limbo, mais as coisas deste plano escapavam de suas cabeças, e traços de seu antigo cotidiano não os atingiam mais da mesma forma.
E era por isso que eles precisavam dar o fora para sei-lá-onde o mais rápido possível. Antes que se esquecessem de seus próprios nomes e de suas próprias desavenças, ficando presos aqui pelo resto da eternidade.
Deixei claro para Marta que, mesmo sendo um velho ranzinza de 50 anos no corpo de 23, eu sabia usar o Google e, graças à Vlad, olhei a fachada da Valfenda no Instagram — depois de ele ter passado quase 10 minutos me mostrando seu carrinho na Amazon com as novas placas de vídeo RTX alguma coisa —, então ela podia confiar que eu chegaria até a porta certa no final de semana.
Ela ficou contente, mesmo que eu estivesse o total oposto disso.
Quando o dia finalmente chegou, as peças de Vlad chegaram junto, e juro que quis usar alguma delas como desculpa para me livrar daquilo.
Nunca tinha me arrumado para uma festa na vida. Digo, a formatura da escola não podia ser considerada uma festa, e o clube de adoradores do Olimpo em que Vlad participava — ainda participa, em segredo —, onde o code dress obrigatório são roupas de torneio, que visitei uma única vez porque eles não tinham membros o suficiente para fecharem o clube, também não contava. Mas eles tinham cerveja das boas, se isso valia de alguma coisa.
A questão era que festas e nunca estavam juntas na mesma linha. Nem na mesma página. Nem no mesmo livro. Nem… enfim. Minha vida social era baseada em sentar em restaurantes com minha família e amigos, tirando a parte do plural da última palavra porque só fazia isso com Vlad e Heidi. E restaurantes novos, de preferência recém construídos, lugares onde eu tinha certeza de que ninguém havia morrido e deixado algo para trás, o que fazia Vlad sempre se virar para mim com uma expressão assassina nos olhos porque me considerava o “cara das inaugurações”, por um motivo bem autoexplicativo. Mas eu não podia explicar que o vintage trazia junto um plus que não colocavam nos banners de divulgação: possível antro de gente morta!
Foi exatamente o que senti quando estacionei na Old Broadway, na frente da propriedade datada de 1800 e alguma coisa, feita de tijolos crus e janelas tradicionalistas, idênticas a uma figura dos livros de História da Idade Média. Meus joelhos até ficaram bambos.
Eu só estava desconfiando. Desconfiando e torcendo. Mas daí Vlad abriu a boca.
— Caramba! Nem dá pra acreditar que isso aqui foi construído no século 18.
Foi quando minha cara passou de não muito animado para minha avó acabou de morrer. Não a que já estava morta, a outra.
Quase perguntei a Vlad se, por um acaso, ele já não tinha ouvido boatos sobre a Valfenda ser uma casa mal assombrada, assim, só dizendo. Mas não deu tempo porque ele já estava do lado de fora, agarrando nosso pequeno fardo de cerveja e batendo no vidro para que eu fizesse o mesmo.
O quintal da frente estava infestado de pessoas que chegavam e carros se apertando para estacionar em qualquer espaço livre que encontrassem, seja no gramado ou em cima da calçada. A gritaria e a música eram perfeitamente nítidas a uma quadra de distância, onde deixei o Jeep em segurança, torcendo para que o álcool não acionasse o vandalismo de ninguém naquele dia.
— Como eu esperava! — Disse Vlad fora do carro. — Hoje vai ser épico!
Dei uma risada, abrindo a porta de trás do carro para pegar meu casaco. Estava frio como uma geladeira do lado de fora; minhas mãos tremeram de um jeito repentino, quase deixando a chave cair.
— O que está fazendo? — perguntou Vlad.
— Pegando meu casaco? — respondi. — Estamos às portas do inverno, caso você não tenha percebido...
— Tá maluco? — Rosnou, se aproximando para devolver a peça para o mesmo lugar. — Lá dentro vai estar um forno, , eu te garanto. Vai ser QUEN-TE — ele soletrou a palavra lentamente. — Deixa alguém além do seu espelho ver um pouco mais desse corpo, tá legal? Levanta as mangas dessa camisa assim, desse jeito, deixa as garotas olharem essas tatuagens legais também e dá um sorriso que me convença. Você não vai morrer por isso. Agora vamos nessa.
Sem ter como rebater, Vlad puxou o meu braço e nos colocou para dentro da massa de gente. A grama era invisível sob tantos pés e, cada vez mais perto da enorme porta dupla de madeira na entrada, os ombros já começavam a se esbarrar como loucos, e tive que me apertar como uma sardinha para conseguir entrar. Uma garota desconhecida raspou as unhas enormes no meu rosto quando pedi licença e disse, com um forte hálito de vodka bem perto do meu nariz: “Tenho um outro lugar bem mais fácil pra você entrar, meu bem.”
Me apressei ainda mais para passar.
Finalmente lá dentro, percebi que Vlad estava certo quando frisou que estaria quente. O vento gélido lá de fora não conseguia penetrar e ganhar força com tanta gente se esbarrando e literalmente se esfregando. A música era uma mistura de Eminem com pop atual, duas batidas que não se combinavam nem no Coachella, mas as pessoas literalmente se balançavam sem qualquer ritmo e voavam umas para cima das outras com zero preocupação sobre isso — e em cima de mesas e sofás também, como bem reparei em um grupo de garotas sacudindo a cabeça em roupas íntimas como se escutassem Janis Joplin.
Minha comunicação com Vlad era feita através de gritos quase inaudíveis. Tentei perguntar o que faríamos agora mas, em menos de cinco minutos que estávamos dentro, colocaram um copo de plástico vermelho na minha mão e de Vlad, com um líquido estranho e borbulhante dentro.
— Manda ver, ! — Vlad gritou em meio ao som e, em seguida, fez uma contagem com os dedos até três. Entendi o recado. O líquido desceu rasgando a garganta, quente e forte, percorrendo o meu corpo de uma só vez. Minha intuição dizia que era melhor não saber o que acabei de tomar.
Em seguida, Vlad disse que precisávamos de mais bebidas e exigiu que fôssemos à cozinha, que estava apinhada de pessoas que pensaram o mesmo que nós. Havia vasos e recipientes térmicos espalhados por toda parte, contendo vários tipos de cervejas e vodkas, e algumas garrafas daquela coisa tenebrosa de antes. Vlad descarregou o fardo em cima de uma delas e pegou duas Budweiser em vidro, entregando uma pra mim, junto a um cigarro igualmente pintado de vermelho dentro de uma caixinha de Pall Mall.
Olhei para ele com o cenho franzido. Ele deu de ombros e sorriu.
— Tabacaria personalizada. Exclusivo da área de Valinor — e apontou com a cabeça para trás, onde uma grande faixa branca estava escrita com a letra garranchada “Valinor, só para mortais.”
Os caras queriam mesmo transformar todos os cômodos da casa em pedaços variados da Terra Média.
Olhei novamente para o cigarro, agora com mais espanto do que dúvida. Em que lugar do mundo se personaliza Pall Malls para serem distribuídos como balas? Que tipo de gente tinha desconto num malote desses?
No entanto, fiz a única coisa que me ocorreu naturalmente: aceitei. Porque ainda era a porra de um Pall Mall.
Voltamos para a sala, ou o que parecia ser o enorme hall de entrada, enfurnado de gente. O espaço devia parecer enorme se não estivesse lotado, e as paredes tomadas de tapeçaria marrom escura eram com certeza a inimiga número um do Sol e da luz do dia. Tomei a cerveja, mais gelada que o normal, enquanto me desviava de um cara maluco que apareceu correndo por aí com o rosto pintado da cor azul dos Lions e o cabelo raspado apenas de um lado da cabeça. Reparei em seu rosto porque era a primeira parte do meu plano ainda não muito estabelecido: me atentar a pessoas que potencialmente poderiam ser Ash.
Não que eu imaginasse que ele fosse um cara que deixaria alguém tocar no seu cabelo daquele jeito.
E quem me garantia que Ash tinha cabelo?
Bem, Marta tinha dito que sim. Mas ter um cabelo sedoso, da cor de um tronco de árvore e que caía pacificamente atrás das orelhas era generalista demais para que eu selecionasse.
Ela não tinha fotos com ele. Vi no seu perfil do Instagram. Verifiquei as contas de cada pessoa que apareceu em qualquer mísera foto com Marta como um perfeito stalker e nenhum deles fazia parte do departamento de Direito, nem do de Jornalismo, nem das Artes Plásticas, nada. E isso não foi tão estranho quanto pensei; ela nem precisava me avisar que um cara que mexia com negócios ilícitos até o pescoço repensava muito bem na hora de sair mostrando o rosto por aí na internet.
Então é isso. Minha única fonte de informação sobre Ash era uma garota morta que perdia as memórias gradativamente e universitários drasticamente bêbados que podiam ter arrumado aquele LSD em qualquer lugar do Central Park, não necessariamente do contrabando do campus. Talvez eu devia ter pedido pra testar os novos jogos de Vlad quando tive a chance.
Falando nele, estava mais animado do que nunca. Cheguei a desconfiar se ele também não tinha enfiado aquela porcaria colorida na língua quando desviei o olhar. Mas não se tratava disso — desde o primeiro ano aqui, eu já havia visto todos os seus lados possíveis, e sabia qual deles estava separado para ser usado numa festa como essa: o do cara que tenta se enturmar, mas nem sempre consegue. Vlad não podia ser considerado nem perto de um cara popular, mesmo que desejasse isso, e não alcançaria essa posição nunca se continuasse dançando feito um boneco de posto.
E tudo piorava quando seus jeans claros e a camiseta branca acompanhavam uma jaqueta bomber ridiculamente estampada, com lâminas artificiais de metal saindo dos bolsos da frente que atingiam os ombros das pessoas que passavam, gerando muitas reclamações abafadas pela música. Bom, a bebida não deixava ele se importar muito com isso. Cada garota que passava era mais um alvo de seus olhares minuciosos e suas tentativas de puxar algum assunto, sem muito sucesso.
Enquanto isso, eu continuava observando rostos.
Depois de uma hora naquele lugar, decidi que só fazer isso não me levaria a lugar nenhum. E se ninguém me conhecia, como eu bem tinha esperanças que sim, podia começar indo buscar mais uma cerveja e, quem sabe, falar com alguém.
Antes que eu desse um passo, Vlad saiu do meu lado para se enfiar em uma roda de garotas a alguns metros de nós. Ele já havia bebido o bastante para começar a passar vergonha, como tirar a camiseta e gritar “zaz!”, seja lá o que fosse isso, mas eu não ia julgá-lo — era ótimo que ele estivesse distraído. Precisava pensar em conseguir alguma informação e me mandar daqui o mais rápido possível.
Aproveitei a deixa e segui para onde me lembrava ser a cozinha.
Só que ou a casa havia encolhido, ou o número de pessoas triplicou desde o momento em que cheguei. Precisei parar algumas vezes para me esquivar de gente jogada ao chão, ou móveis que não tiveram a sorte de permanecer intactos até o fim da noite, coisas absurdas, porém esperadas. Quando entrei em um cômodo onde as pessoas estavam organizadas em círculo, quase tive o segundo Pall Mall apagado por causa de respingos de água com sabão que voaram para todos os lados, enquanto a galera gritava incansavelmente: “Marci! Marci! Marci!
Eu não sabia quem era Marci, mas devia ser a morena bonita com peitos de fora que estava ganhando da ruiva tatuada na banheira de sabão. As bolhas pareciam um castelo de areia debaixo de um ventilador, tomando todo o ambiente.
Ali também não havia ninguém aparentemente sóbrio para conversar.
Por fim, me embrenhei em um corredor estreito na lateral da casa, ladeado por um muro grande de trepadeiras que dividia a residência dos vizinhos. A aglomeração de verde deixava aquela parte bem mais escura, o que não servia como um convite para ficar parado ali por muito tempo. Andei olhando para a frente, onde o corredor se abria nos fundos da propriedade, em que os gritos e a música ficavam tão altos quanto a largura da piscina. Eu não sei de onde estavam saltando para que a água fumegante atingisse tantos metros quadrados do gramado.
Decidi curvar na primeira porta de vidro que encontrei, buscando um atalho por dentro da casa onde eu não precisasse ter o terceiro Pall Mall apagado por outro mergulho alheio. Na hora em que entrei nas luzes coloridas novamente, uma explosão em amarelo me cegou por uns instantes, empurrando-me um pouco para trás. Ela se materializou em cabelos loiros e mechas escuras. O vestido curto era mais amarelo ainda.
— Ah, cara! Que merda — a garota não parecia zangada. Não comigo, pelo menos. Seu comentário foi direcionado para o pequeno recipiente redondo espalhado no chão, uma embalagem de pó compacto que se reduziu a… literalmente, pó. — Merda, merda…
Me abaixei ao seu lado, prendendo o cigarro entre os dentes.
— Foi mal, não te vi — puxei uma das metades destruídas, a que tinha o espelho, agora rachado ao meio.
Ela finalmente olhou para mim, e se queria gritar comigo antes, já não queria mais.
— Tá… tudo bem — murmurou, agarrando a parte danificada que eu oferecia, colocando-se de pé logo depois. A forma como disse “tudo bem” foi arranhada, típico de sotaque estrangeiro. Seus olhos vagaram rapidamente para o espelho grande em cima da cômoda ao lado. — Ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Essa porcaria barata tem cheiro de enxofre, mas dava uma cor legal na sombra.
Assenti, sem saber como me desculpar mais. A parte de cima de suas pálpebras estavam manchadas com o amarelado intenso, que combinava até um pouco com o castanho dos seus olhos. Sei disso porque ela estava olhando diretamente pra mim. Olhando demais.
E não parecia muito bêbada.
Abri a boca para falar, mas ela soltou uma risadinha pouco natural na frente.
— Então, você vem sempre aqui? — Perguntou enquanto tentava limpar o desastre nos olhos.
— Definitivamente não — traguei mais uma vez. Ela estendeu o dedo para mim, pedindo um pouco.
Passei a metade do Pall Mall para ela.
— Dá pra notar — a garota deu de ombros, tragando tão forte que enxugou quase 2 centímetros da guimba. — Você tá usando jaqueta de couro numa festa na piscina. É de algum moto clube, por acaso?
Fiz uma careta com o comentário.
— Acho que só desinformado mesmo.
A risada dela foi um pouco estridente, e observei seus passos se aproximarem de mim com confiança.
— Já que não sabe, vou avisar: tem erva nos Pall Mall. Das boas, pelo menos.
Ela estendeu o cigarro para mim de novo. Franzi o cenho, rindo pelo nariz.
— Misturado?
— Aham.
— Muito ou pouco?
— Isso é sorteado.
— Legal.
Dei de ombros. Voltei a tragar, indiferente, porque conhecia meu organismo irritantemente tolerante à maconha. Parece ter vindo de nascença, assim como no álcool. Era como se as drogas lícitas — ou drogas no geral — não pegassem direito no meu corpo, não importava o quanto eu tentasse me autodestruir.
Quando desci o cotovelo mais uma vez, ela parecia estar ainda mais perto. Senti um calafrio de repente, um calafrio de maldade no ar. Maldade da parte dela, é claro.
— Você estuda na Columbia? É calouro?
— Bem longe disso.
— Nunca te vi por lá.
— Talvez esteja olhando nos lugares errados.
Tentei dar um sorriso galanteador, do jeito que Heidi dissera que eu fazia às vezes sem perceber. Talvez tenha saído mais ridículo do que pensei, porque a garota começou a rir ainda mais, mesmo que não parasse de se aproximar e aqueles olhos vermelhos incandescentes ainda estivessem me olhando como um pedaço de carne. Era isso, ela não estava bêbada, só estava chapada.
— Ah, eu estava mesmo no lugar errado esse tempo todo — sorriu, descendo os olhos para… as minhas pernas? — Como é o seu nome?
— Primeiro as damas — rebati com um sacudir de ombros. Eu estava sozinho, então não estava afim de ceder tantos limites assim. Fugia dos meus objetivos.
Ela sorriu e abriu a boca para responder.
— Dora!
A voz que conseguiu ultrapassar a música veio um pouco do meu lado, caminhando desde a cozinha de inox — lá estava a maldita cozinha — até chegar a mim e a garota desconhecida com sotaque de fora, um cômodo mediano que se encontrava a caminho do jardim de trás.
E antes que ela chegasse a 10 passos de nós, eu já havia reconhecido-a.
Desta vez, ela não usava roupa branca e eu estava longe demais para tropeçar em cima dela — ou ela em cima de mim. Mesmo assim, quando me identificou, seu rosto beirou a um aborrecimento imediato. Parecia pronta para me atacar com uma caneta esferográfica, caso tivesse uma.
— O que está fazendo? — Perguntou ela, tirando os olhos duros de cima de mim para olhar a garota loira. — Não ia ao banheiro?
— Estava lotado, você sabe. Mal consegui subir essas escadas sem tropeçar em um bando de pervertidos sem um quarto — Dora apontou para o lado direito, onde a escada que levava ao segundo andar estava entulhada de beijos alheios e casais que tentavam completar o trajeto até lá em cima. Era uma parte que eu não tinha visto antes, já que o pé direito era gigantesco e as lâmpadas de led giratórias, despejando feixes coloridos por toda parte, permitiam apenas alguns palmos de visão clara. De repente, me lembrei do desenho caótico de Marta e me senti um idiota por não ter começado lá em cima. Ash poderia estar lá. Mas, ao mesmo tempo, não parecia possível.
O dono da casa deveria estar na festa, certo?
— agora me lembrava perfeitamente de seu nome — revirou os olhos e puxou Dora para perto, olhando suas mãos para ver o estrago do pó amarelo. Mais risadas escaparam dela.
— Ah, isso! Tentei fazer aquela coisa que Marci me ensinou naquele espelho, mas esse cavalheiro não me permitiu… — Ela se virou pra mim, com um sorriso um tanto perverso. estreitou os olhos. — Mas não estou brava. Não estou! Isso iria acontecer de qualquer jeito, essa porcaria podia ter estourado no meu olho. Ele me ajudou a juntar depois. Ei, bonitinho. Essa é minha amiga, . E ele é…
Seu dedo apontou para mim, esperando uma resposta. Esperando meu nome. Apenas continuei encarando , que não precisava de nenhum nome.
— Oi — disse ela, à contragosto.
— Oi — respondi, sem saber como ela queria que eu agisse.
Ela desviou os olhos dos meus antes que eu tivesse a chance de dizer qualquer outra coisa.
— Vamos lá, as garotas estão esperando. Achei que tinha se perdido — e começou a arrastar Dora para longe.
Pff. Fala sério, aqui é a Valfenda, ninguém se perde aqui! E espera, você ainda não me disse seu nome…
Dora se voltou pra mim, esperançosa. me fitou, apressando-me naquele olhar, como se estivesse louca para tirar a amiga dali e, de quebra, mantê-la longe de mim. Pensei muito, pensei mais um pouco, até dar de ombros e concluir que estava tudo bem fazer o que eu estava prestes a fazer.
— Sou o Morris — respondi com um sorriso de convicção, como se não existisse mais ninguém além de mim com esse nome. — Morris… Clift.
O queixo de quase foi ao chão, mas ela logo se recuperou, com o rosto chocado de desagrado enquanto Dora abria um sorriso do tamanho de Júpiter.
— Morris! Eu adorei! Tem um apelido? Posso pesquisá-lo no CJ? Eu trabalho no CJ…
— Vamos, Dora.
agarrou as mãos da amiga com mais afinco, e me lançou um último olhar de desprezo antes de desaparecer com uma loira dizendo palavras emboladas e me deixar sozinho de novo.
Quando ela decidisse contar a verdade para a amiga, eu já estaria muito longe, tanto da festa quanto da mente dela. Estava tudo bem. Não é como se não fosse me olhar como se eu fosse um lanche contaminado com cogumelos mágicos ou coisa assim toda vez que eu cruzasse seu caminho.
Mesmo assim, encarei as costas dela se afastando como se esperasse que ela desse uma última virada, ou que Dora dissesse algo tão engraçado que ela acabaria rindo. Só um pequeno sorriso, eu imagino. Qualquer coisa que me fizesse pensar que ela era humana.
Humana eu não sei, mas sóbria com certeza. Tinha certeza que era a única garota com quem cruzei nesta festa que não estava embolando palavras, coçando o nariz violentamente ou com olhos marejados e escarlate. Podia supor que ela nem mesmo queria estar aqui.
Me virei para voltar ao lado de fora, mas fui abordado por um Vlad risonho, acompanhado de mais 3 garotas.
— Caramba, , te procurei por todo canto! Onde você se meteu? — Recebi um tapinha preguiçoso no ombro. Típico de quem já não se aguentava muito em pé.
— Onde você se meteu? — Rebati. Ele balançou as mãos no ar, ignorando.
— Adivinha só: encontrei essas gatas, que tiveram a audácia de duvidar do meu post sobre meu melhor amigo, . Disseram que eu estava mentindo — ele frisou a palavra, passando o braço sobre o ombro de uma delas. A garota tinha os olhos cravados em mim, um pouco arregalados. — Eu disse que ia te mostrar. É ele, pessoal! Acho que vai começar a chover…
A garota o calou com um pequeno empurrão para o lado, dando vários passos adiante para parar na minha frente. Ela era bonita, com um cabelo longo e escorrido em um loiro sépia, batom vermelho e uma tatuagem no braço esquerdo de um mapa mundi em forma de tenda.
— Oi, . — cumprimentou. Tinha um grande e sedutor sorriso no rosto, e vi as demais se amontoarem um pouco para perto de mim, trocando um cochicho ou outro. — Eu e minhas amigas estamos no segundo ano de Psicologia na Columbia. Pegamos uma aula com Rose Winslet pra preparação do exame para o programa de Medicina, ela fala bastante de você — mais uma olhada em panorâmica completa. Vlad ainda estava lá, sorrindo para mim por trás delas, como se tivesse vindo me entregar um prêmio. — Você é o cara dos exemplos, parece. Tem umas dicas pra me dar?
Não entendi que tipo de dicas ela queria. Talvez um “não estude mais, estude melhor” funcionaria? Faria ela parar de me olhar como se eu fosse uma ceia de Natal? Ou melhor, faria Vlad parar de fazer leitura labial dizendo “não vê que ela está encharcada? Manda ver!
Jesus Cristo, era só o que me faltava.
Olhei na direção das escadas de novo, mas Vlad me mataria se eu simplesmente não desse chance a 5 minutos de conversa com companhias que ele se esforçara tanto para conseguir. Minhas palavras seguintes, porém, foram parcialmente ouvidas graças ao aumento súbito do som, que já estava absurdo. Tentei dialogar por alguns minutos, mas, vendo que era uma missão quase impossível, a loira resmungou algo para as amigas não tão bonitas — não eram exatamente feias, mas eram um alvo fácil para o ego da principal — e de repente estava me puxando para um local mais afastado daquele limbo de cômodos, me levando diretamente para o jardim, onde o número de pessoas diminuía drasticamente, e o frio aumentava.
Olhei para Vlad por sobre o ombro para buscar alguma ajuda, mas acho que ele não conseguiria falar com duas línguas entrando na sua boca simultaneamente.
Ah. O plano de ir embora mais cedo ficaria pra depois.



Continua...


Nota da autora: Olá! Você aterrissou no meu tesouro!
Essa reescrita de Ghost Feelings tá rolando faz um tempão, mais do que vocês podem imaginar, e mesmo assim, a coragem de jogar ela pro mundo nunca vinha. Eu sempre achava que seria melhor tomar essa decisão quando o ponto final do final do final fosse dado, mas honestamente, pra quê a gente precisa perder tanto tempo assim? rsrsrrs. GF fez parte da minha história; como Laís, como escritora, como jovem adulta, como ser humano. Abriu os meus olhos pra uma capacidade incrível que eu tinha de conceber um mundo inteiro de dentro da minha própria cabeça. Foi especial cada minuto que passei digitando e pensando nessa fanfic, lá nos primórdios de 2020, e agora isso tá se mostrando ainda mais gratificante pra Sial de 2024, vendo o quanto evoluiu e o quanto ainda quer que cada vez mais pessoas se acheguem nesses personagens e nesse universo.
Eu desejo que no final dessa história, você sinta o mesmo que eu e dezenas de outras pessoas sentiram: ainda bem que eu parei aqui.
Obrigada pela sua leitura e pelo tempo precioso dedicado nessa página. Prometo que você vai sair impactada!

Um beijo <3 sial.


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