━Autora Independente do Cosmos.
s.m.
Processo natural de alteração e decomposição das rochas e minerais na superfície terrestre, causado pela ação de agentes físicos, químicos e biológicos. Quando submetidas à ações como variação de temperatura, oxidação, fungos, abrasão pelo vento e entre outros, ao longo dos séculos, essas rochas ganham novas cores e formatos, se transformando em belezas vivas da natureza.
Tudo era novo. Estranho. Uma enorme caverna escura cheia de limo, mofo, umidade nojenta e escuridão que podia guardar tão ou mais dessas coisas, ou podia esconder um resort com águas cristalinas e margaritas à vontade. Nunca dava pra saber. Você só ia descobrir se respirasse fundo e se infiltrasse nesse caminho tortuoso guiado por um enorme “e se…?”
Eu não gostava de e se’s. Não curtia muito o incerto, nada que não me mostrasse o destino final. Talvez por isso tendia a assistir Friends pelo menos 4 vezes por ano (menos a 7º temporada), comprar a mesma baguete da padaria Calliope porque eles eram o único estabelecimento que cabia no meu orçamento que nunca deixavam o pão assar mais do que deveria, e amava me sentar no mesmo banquinho verde embaixo de uma magnólia de pequeno porte no parque das pedras às 16:30 da tarde porque era o único horário livre sem apresentações de break dance ou músicos performando a trilha sonora inteira de Mamma Mia enquanto tentavam chamar a atenção das gostosas correndo de top (nada contra elas, mas eu tinha um enorme apreço por sons naturais quando queria ler meus artigos e coletar minhas amostras).
Também era quando eu veria alguma criancinha cair da bicicleta ou correndo em busca da mãe. Essas coisas sempre aconteciam com uma frequência absurda, mesmo aquele parque sendo tão pequeno. Talvez fosse por isso que os pais relaxavam tanto. Ajudei uma garotinha na semana passada que chorava copiosamente agarrada a uma Barbie com vestido que virava borboleta por ter perdido o pai, e, quando o achamos, o homem barbudo com barriga de chopp estava sentado em um barzinho qualquer a muitas quadras do parque, enchendo a pança com mais chopp.
Velhos de merda.
Não sabia bem porque eu fazia essas coisas. Minha melhor amiga (que também fazia o papel de minha terapeuta) diz que tem a ver com a minha infância, porque tive uma mãe relapsa e um pai permissivo que nunca estava no presente, como se sua consciência viajasse para algum canto enquanto ele vagava pela casa em silêncio absoluto. Às vezes, eu pensava que ele era um fantasma, ou um robô muito esquisito, porque nunca falava mais do que deveria falar, ou nunca agia fora do padrão. Pelo menos era o que eu pensava. Ele e minha mãe nunca brigavam, mas isso não queria dizer que eram felizes, e quando ela finalmente se mandou (o que, por incrível que pareça, não foi muito surpreendente, já que parecia estar querendo muito fazer isso), meu pai se tornou ainda mais alguém em que não podia se esperar nada. Permaneceu no seu modo assombração, mas uma que, agora, assombrava outras ruas e outras residências, não mais a nossa. Passava tempo fora e se esquecia das paredes geladas daquela casa cheia de panelas vazias e uma criança barulhenta (eu não era exatamente comportada). Na verdade, naquela época, eu nem sabia direito o que estava acontecendo. Só sabia, de alguma forma, que mamãe não ia mais voltar, mesmo que não estivesse enterrada a sete palmos do chão.
Senti raiva dela por um tempo. Achava que ela tinha que ter morrido, que isso seria melhor do que ter permitido que sua única filha vivesse em um lugar onde largavam as portas da casa escoradas e abertas, sem o mínimo de segurança, com um homem que, não importava o tempo que passasse, não iria se responsabilizar. Eu nunca sabia quando ele ia voltar, e se ia voltar, e quando aparecia, falava pouco e estava um lixo completo. Não queria pensar que meu pai era um lixo, mas eu já estava pensando em muitas coisas que não queria.
Um dia, com muita dor, levantei e tranquei a porta. Finalmente. Parei de esperar. Cansei do “e se ele não voltar?”, “e se ele estiver tentando um emprego ou alguma forma de cuidar melhor da gente?”. Cansei. Eu sabia como acabava. Aceitei isso. E pronto, o mundo era um lugar novo.
Mas eu não sabia exatamente como acabaria o meu primeiro dia sendo professora do fundamental.
Já na recepção, andei de um lado para o outro enquanto tentava fingir que aquele quadro em preto e branco da senhora Rossellini não estava olhando pra mim. Era difícil, já que ele tinha quase um metro e meio de altura e era o único ponto que chamava a atenção naquela sala (um ponto preto e branco em uma sala extremamente colorida. Tudo era azul, amarelo e laranja, cheio de prateleiras com brinquedos, livros infantis e sapatinhos espalhados). Eu achava que as escolas fossem… menos coloridas.
— Senhorita ? — a voz feminina entrou no cômodo, desvencilhando aquela sensação horrível de estar sendo observada por um pedaço de papel. — Desculpe a demora, a reunião demorou um pouco mais que o esperado. Você sabe, pais e essas coisas. — ela repuxou os lábios para baixo, e me orgulhei por entender muito bem sobre o que ela dizia. Li o crachá: Bonnie Hahn. Era uma quase idosa simpática, até me deu vontade de falar o que realmente pensava: tudo bem, o mundo está cheio de maus pais, senhora Hahn, eu entendo. Mas era só o primeiro dia. — Quer se sentar um pouquinho?
Assenti e me acomodei na cadeira de madeira nobre em frente a outra mesa de madeira nobre, tentando não levantar o queixo mais que o necessário para topar com aqueles olhos horríveis de novo.
— Então, está animada? — Bonnie se sentou na sua cadeira presidente, puxando pastas e papeis um pouco desorganizados ali em cima. — Soube que você nunca trabalhou como professora.
— Não, senhora Hahn. A não ser que as monitorias de Fisiologia Vegetal contam como alguma coisa.
— Geralmente não contam. — ela deu um sorrisinho. — Mas suas notas no currículo são ótimas, e sua carta de recomendação do doutor McDiarmid nos impressionou muito. É só que… — ela se ajeitou na cadeira e cravou os olhos em mim. — Por que uma garota prodígio da Drexel quer ensinar crianças de 7 anos a escrever a palavra “Urso”?
— Não seria Urso. — falei automaticamente. Ela arqueou as sobrancelhas. — Quero dizer, talvez seria Pedra. Ou Fotossíntese. Se eles perguntarem o que é, eu vou ter o maior prazer de explicar. São conceitos básicos, eles estariam mais adiantados do que todos os outros alunos de 7 anos da cidade. — engoli em seco. Ela continuou com a sobrancelha levantada. Respirei fundo. — Tudo bem, é… sei que não faz muito sentido, mas preciso do emprego. E prometo que pelo menos metade da turma vai estar escrevendo Paralelepípedo até o fim do semestre.
Agora eu tentei sorrir, mas a mulher apenas suspirou forte e retirou os óculos de grau, transformando seu rosto de repente no semblante mais cansado que eu já vi. Mais cansada até do que eu fiquei no fim do mestrado.
Fiquei apavorada.
— O doutor McDiarmid comentou sobre a sua pesquisa em andamento na Drexel. Pretende terminá-la ano que vem?
Mordi o lábio. Agora sorrir não parecia tão fácil assim. Tentei ignorar o ranço me subindo pelo estômago, tomando a área de trás dos meus braços.
A pesquisa. O tempo dela. Ela até usou o mesmo tom do doutor McDiarmid, meu orientador do mestrado que continuava comigo até hoje, que me ajudou a entrar no doutorado, que olhou para o meu artigo de mapeamento geomorfológico e achou que, é, isso pode valer de alguma coisa pro planeta Terra.
Mas o diretor da Kenderton já tinha me feito essa pergunta na entrevista. “Pretende terminá-la ano que vem?” Não sei, você analisaria as amostras para mim?
— É claro que pretendo. — abri o sorriso de novo, mais largo dessa vez, mesmo que fosse falso. — Faltam alguns ajustes, eu… eu preciso, na verdade, de um geólogo pra dar uma olhada nas minhas amostras, mas eu já tenho um em mente. Sem problemas. Com certeza vou estar aqui no ano que vem. — e talvez pelos próximos anos depois desse.
A senhora Hahn expirou irregularmente e pareceu aceitar a resposta, mesmo que não tirasse aquela carranca. Os olhos dela se fixaram por tanto tempo naquele papel que pensei em bater com a perna de propósito no pé da mesa só pra fazer barulho e chamar sua atenção de volta.
Mas não precisei fazer isso. Ela levantou o queixo e juntou três folhas, passando-as para mim.
— Aqui estão os horários das suas aulas, a lista de chamada e a ementa do que eles devem aprender na sala. Pode usar seu Paralelepípedo, mas não é necessário explicar o que você quer explicar. — ela me olhou por cima do óculos. Entendi o recado. Nada de bancar a sabichona com mini cérebros prematuros. — É a sala 12, no segundo andar. Vai dar somente a primeira aula por três dias na semana até maio, depois conversamos sobre o contrato. Pode ir, eles estão esperando.
Assenti e peguei todos os documentos, quase perguntando se não era mais fácil mandar tudo aquilo por e-mail, mas para uma instituição que ainda tinha a foto da fundadora exposta como a Monalisa na parede, dava pra ver que gostavam do tradicional.
Estava quase saindo da sala quando ela me chamou:
— Ah, senhorita , quase ia me esquecendo. Temos um aluno recém colocado na sua pauta. Ele acabou de voltar da Coreia, está passando por um momento difícil e tentando se readaptar.
— Momento difícil?
— A mãe dele morreu há algum tempo, mais de um ano, e agora ele acabou de perder a avó. Era a única família que ainda tinham por lá, então ele e o pai encararam a volta para o nosso país. Provavelmente, ele vai passar mais tempo aqui do que as outras crianças, caso o pai não consiga nenhuma babá.
— Ah. — mordi o lábio. Senti um pouco de pena dele; imagina não poder ir embora quando todos vão? — O pai não consegue ficar com ele meio período?
— Ele é professor na universidade, sabe que essa gente não tem tempo nem pra respirar direito.
Era verdade. Verdade inegável. Tirando o fato de que, talvez, depois que você via o primeiro resultado randomizado que te obrigava a refazer uma página inteira do seu artigo depois de 5 horas diretas no laboratório sem dormir ou comer, você poderia conseguir dar uma meia respiração. Tempo suficiente para abrir a boca e receber uma caneca cheia de café. Daí, sim, respirava a outra metade depois.
— Entendo. Entendo… — mordi o lábio inferior, distraída. Não sabia o que dizer agora. A senhora Hahn sorriu com o canto da boca.
— O nome dele é Rizwan, ou Jihoon se preferir, e ele vai ficar bem. Agora vai, está na sua hora, elas estão esperando.
— Obrigada, senhora Hahn. — agradeci e me retirei da sala, arrastando as botas pelo corredor largo de piso liso até a escadaria igualmente larga e lisa (berrando de um amarelo brilhante).
Bom, ela não tinha dito nada sobre as minhas tatuagens. Ou sobre meu piercing cinza metálico no nariz, ou minha única mecha roxa na parte frontal do meu cabelo. Ah, e nem os coturnos. Achei que eles iriam assustar um pouco mais, mas a senhora Hahn nem olhou para eles. Será que ela notaria uma bota de salto Arezzo até o joelho?
Sem abuso, .
Estava tudo bem. Caminhei com meus papeis com uma pressa moderada até a sala 12 e me preparei pra entrar, repetindo meu mantra de sempre:
Você é legal, você é divertida, você é inteligente e não tem medo de baratas. Tudo vai acabar bem.
No fim daquela primeira aula, quando eu estava com o fundo das unhas sujas de massinha de modelar, os pulsos marcados de canetinha azul em desenhos que ninguém iria entender, um pouco sem fôlego por ter corrido mais do que todos os treinos semanais improvisados que Belle me obrigava a fazer e com o cabelo preso em um coque porque um dos monstrinhos não parava de tentar puxar a “fita roxa” do meu cabelo (que na verdade, era o meu cabelo!), pude perceber que, é, ser professora talvez não me desse base para calcular como nenhuma situação terminaria no final.
E, naquele caso, eu podia dizer que tinha sido tremendamente derrotada.
Quando o sinal tocou para o encerramento, abri o melhor sorriso que consegui enquanto os via pegar as mochilas e correr para fora. Fiquei na porta, como ordenado, contando as cabecinhas que passavam e fazendo bom uso da minha memória fotográfica para gravar seus nomes e rostos o quanto antes (principalmente para impedir que aquele garoto das bombinhas soltasse bombinhas de novo). Por um instante, fiquei realmente com medo de pirar com crianças.
Mas consegui um feito: pelo menos três deles conseguiram escrever a frase A árvore é verde. Estava tudo bem, eu não era um fracasso completo.
— Tchau, senhora ! — vários deles disseram em uníssono, marchando pra fora com tchauzinhos.
— Tchau, professora Ravena! — disse o garoto das bombinhas, viciado em usar meu nome de verdade em associação com uma personagem de desenho animado.
— Eu vou encontrar botas iguais às suas no shopping? — uma garotinha de maria chiquinha parou na minha frente, puxando a minha saia delicadamente. Inclinei as costas pra ela e abri um sorrisinho.
— Acho que essas botas ainda não vestem o seu tamanho, lindinha.
— Tá me chamando de gorda?
— Quê? Não. — arregalei um pouco os olhos, gesticulando com as mãos. — É que elas são grandes, e um pouco pesadas e…
— Ah, então está dizendo que você é gorda?
Pisquei os olhos.
— Ahm… Também não?
— Tudo bem, professora, minha mãe diz que devemos tratar todos iguais, os gordos e os magros, todos são filhos de Deus.
Ela deu um sorrisinho tão doce naquela vozinha fininha que eu nem tive coragem de refutar, ou de corrigir, ou de simplesmente elogiar. Apenas acariciei as pontinhas do seu cabelo espetado e disse:
— Você vai se dar muito bem quando crescer. Com ou sem essas botas.
Ela sorriu e praticamente correu para fora, a saia plissada do uniforme esvoaçando na altura dos seus joelhos. A sala foi esvaziando à medida que eles iam saindo, e me virei pra voltar correndo pra mesa, pegar o celular e mandar um áudio de grito para Belle, o que significava: “Preciso de quatro doses de tequila agora mesmo”, porque era o que apagava a minha memória no próximo dia. Infelizmente, eu precisava afogar as minhas mágoas urgentemente.
Mas, antes que eu andasse 3 passos, olhei para trás e vi o menininho sentado na última carteira, a cabeça abaixada sobre um pedaço de papel, rabiscando algo de um jeito rápido e muito concentrado. Quase pensei em relembrar ao garoto que o sinal havia tocado e que ele estava liberado, mas me lembrei de quem ele era. Sem precisar olhar para a fita de identificação no uniforme: Rizwan. Ou Jihoon.
O garoto que não iria embora.
Jihoon não tinha dito uma única palavra durante toda a aula, nem sequer participou da bagunça de guerrinhas de bola de papel, o pânico geral causado pelas bombinhas, a pequena corrida pra ver quem terminava de escrever a palavra primeiro ou interagiu com qualquer outro pirralho. Na verdade, as crianças pareciam passar longe de sua carteira propositalmente. Ele mal levantou a cabeça e apenas fez o que lhe era pedido: respondia “presente” e escrevia a palavra Árvore em uma linda caligrafia. Linda até demais. Um capricho que me mostrava que ele não estava exatamente na fase de aprendizado basal que as outras crianças estavam.
Eu deveria deixá-lo em paz. Ele tinha feito todas as tarefas, não tinha tentado arrancar o cabelo de ninguém e ficou sentado o tempo todo. Talvez, pra minha mente cansada depois dessa primeira experiência eletrizante, isso poderia significar um alívio.
Mas a eletricidade estava passando, e agora tudo que eu via era um garotinho triste que não me enlouqueceu como uma criança deveria me enlouquecer.
Andei até ele devagar, esticando o pescoço pra tentar ver a folha de papel em que ele estava debruçado. Aquilo era…
— Você está escrevendo uma carta?
Jihoon ergueu a cabeça por um só segundo antes de voltar a abaixá-la e resmungar um “uhum”.
Abri e fechei a boca. Olhei para os lados automaticamente, como se alguém estivesse vendo o mesmo que eu.
— Ahn… Você sabe escrever?
Franzi o cenho, em genuína dúvida. Eu tinha dado uma de Ted Mosby e dado aula na turma errada esse tempo todo?
Jihoon ficou quieto por quase um minuto inteiro antes de arrancar a folha de papel e estendê-la pra mim. Peguei, vendo uma lista de palavras aleatórias escrita naquela caligrafia perfeita demais pra um garoto de 7 anos: árvore - caneca - pé - céu - cortina - casa.
— Você tem uma letra linda. — soltei, virando a folha pra ele. — Como conhece tantas palavras? O ensino básico na Coreia tá tão avançado assim?
— Meu pai é professor. Ele me ensinou a ler e escrever. — respondeu ele. — Minha mãe também me ensinou algumas palavras.
Fiquei impressionada. Olhei pra folha de novo e depois pra ele, que mesmo falando palavras com eloquência até demais, ainda parecia uma voz meio deprê.
— Entendi… Mas você estava desenhando, não é? — apontei para o caderno de argolas. — Eu te vi pintando alguma coisa mais cedo.
Jihoon me encarou por um momento e pareceu se encolher no banco.
— Eu não estava.
— Claro que sim. Aposto que colocou na última página, como fazem os entediados. Já passei pela faculdade.
— Eles desenham na faculdade?
— Ah, eles fazem de tudo na faculdade.
Jihoon me avaliou por um instante.
— Eu não estava desenhando.
— Ah, qual é…
— Todos vocês, professores, são tão enxeridos assim?
Abri e fechei a boca. O tom dele não foi agressivo (duvidava que uma criança de 7 anos tivesse esse poder), mas tinha um certo tom arisco, um porco espinho na defensiva.
Se fosse minha professora Margo do fundamental, que tinha uma verruga nojenta no queixo e um cabelo cinza igual a ilustração da bruxa má da Branca de Neve, teria batido com a régua na mesa e o colocado de castigo, mesmo que a aula já tivesse acabado. Eu não era a velha Margo (todo mundo achava que ela guardava uma pistola na gaveta de sua mesa). Então, apenas dei de ombros e sorri fininho.
— Não sei. Esse é o meu primeiro dia.
Jihoon levantou a cabeça de novo, me encarando por um tempo. Ele não tinha mesmo problema em encarar as pessoas. Senti de repente uma urgência em conferir o relógio e começar a sair daquela sala, porque precisava levar as amostras que tinha acabado de coletar do parque de novo até o laboratório em mais uma necessidade de fazer as coisinhas ficarem vivas até eu achar um analista.
Mas antes que eu me mexesse, o garotinho suspirou e mudou o caderno de posição, abrindo a última página.
— Eu estava tentando desenhar… mas não consigo pensar em nada.
— Você desenha sempre?
— Desde que aprendi a segurar um lápis.
— E por que não consegue agora?
— Já disse, não consigo pensar em nada.
— Talvez não precise pensar. — me abaixei pra ficar na altura dele. Jihoon me encarou confuso. — Você pode só… rabiscar o que vem na sua mente. Pintar essa folha toda de roxo. Deixar toda a confusão sair primeiro pra depois você ver o que tem por trás.
Sorri, torcendo pra que ele estivesse entendendo. Eu tinha vinte minutos pra sair dali e pegar o primeiro carro amarelo que quisesse parar pra mim. Com o horário de pico daquele início da tarde, talvez eu tivesse de fazer um upgrade forçado e pedir um Uber Black, e precisaria de no mínimo um expresso duplo em um copo de tamanho médio pra aguentar a noite de catalogação de dados, mas de repente fiquei ali, sentindo uma vontade de fazer esse garotinho dar um sorriso ou pelo menos fazer algo que uma criança faria: desenhar qualquer coisa. Bonecos de palitinho.
Só que quando Jihoon abriu na última página do caderno e me mostrou o que estava ali, talvez tenha me enganado bruscamente sobre os bonecos de palitinho. E sobre o desenhar qualquer coisa.
A forma do desenho não me era explícita de cara, mas as formas retangulares e cúbicas se juntavam e fundiam, formando algo parecido com um caco de vidro, com todas as bordas espetadas e o efeito de luz e sombra longe do profissional, mas espetacular pra um garoto de 7 anos. Eu não entendia nada de artes, mas Jihoon era um garoto com um potencial incrível.
— Uau, Jihoon. — peguei a folha sem perceber, encarando os detalhes. — Isso está tão bonito. O que é…
— Jihoon!
Uma voz masculina invadiu a sala, junto com passos firmes no piso de linóleo colorido. Assim que a cabeça do homem apontou no batente, o garotinho gritou:
— Papai!
Jihoon correu pra porta, passando por mim como um furacão. Em um segundo, tinha saltitado para as pernas de um homem usando calça cáqui, jaqueta bomber verde militar e tênis escuros de plataforma que provavelmente comprariam um carro compacto.
Ele acariciou de leve o cabelo escuro de Jihoon, totalmente idênticos aos dele, com a única diferença sendo o tamanho (o do pai caía bem atrás das orelhas, descendo até o fim da nuca, bem penteado e alinhado como alguém que não pega transporte público poderia ter).
Em resumo: o cara era um gato. Não precisei nem de 3 minutos para concluir isso.
— Me disseram que você ia demorar a chegar. — Jihoon disse quando se afastou do abraço desengonçado. O homem se abaixou um pouco.
— Ainda não tenho muito trabalho, então consegui sair mais cedo. Cadê suas coisas? Vou te levar pra casa.
Jihoon saltitou de novo na direção da sua mesa, passando por mim como se eu fosse um poste qualquer na beira da estrada.
O homem finalmente olhou pra mim. Aqueles olhos miúdos e a boca entreaberta fizeram o meu cérebro berrar um sim, gostoso pra cacete! Afastei essa loucura na mesma hora enquanto vestia aquele sorrisinho de professora e me aproximava.
— Então você é o pai. — falei, meio desengonçada. A formalidade que separei a tarde inteira estava me escapando.
— E você deve ser a nova professora. , não é? — ele disse em tom neutro. Apenas assenti e vi sua mão estendendo. — Min Yoongi. Eu deixei avisado que ele talvez…
— Vá ficar por um tempinho aqui. A senhora Hahn me avisou.
Apertei sua mão e ele assentiu. Percebi uma pontada de rubor nas suas bochechas, como se repentinamente estivesse sem graça.
— É, eu ainda tô procurando uma babá. Mas você não precisa ficar esperando com ele, a senhora Hahn disse que ele pode ficar na sala dos brinquedos ou na biblioteca…
— Ah, tudo bem. Eu não tava esperando, só parei pra conversar. E pra ver isso. — virei a folha de papel ainda na minha mão para ele, mostrando o desenho quase abstrato com um sorriso orgulhoso. — O Jihoon desenhou isso hoje. Fiquei impressionada, é tão lindo e tão…
O desenho sumiu da minha mão. Dedos longos e pálidos agarraram a folha de papel com tanta força que amassou no ponto de contato, e parei na mesma posição, encarando o homem que olhava a superfície do desenho com um olhar intenso, surpreso e talvez, se eu não estivesse maluca, reprovatório.
— Ele desenhou isso? — a voz dele saiu quase inaudível. Nesse meio tempo, Jihoon tinha voltado com suas coisas, agitado do mesmo jeito, agarrando a calça do pai com as mãos firmes, sorrindo até se tocar do que ele segurava.
Acho que Jihoon começou a ficar meio pálido também.
— Hmm… sim? — falei, incerta. Senti que tinha feito algo errado. O cara, Yoongi, tirou os olhos do desenho e olhou pra mim, a expressão agora claramente aborrecida.
— Por que você faria ele desenhar uma coisa dessas? — os dedos começaram a se fechar no papel. De repente, tudo que restava era uma bola amassada, violentamente amassada. Os lábios dele estavam contorcidos, toda a feição simpática tinha ido embora.
Não que ele tivesse uma tão firme assim, mas enfim.
— É o quê? — quase perguntei se era pegadinha. Talvez eu não devesse começar a rir agora, mas gostaria muito que ele repetisse de novo o que disse. — Não entendi, senhor Min. Eu não fiz…
— Não tem graça, senhora . As coisas já andam difíceis o suficiente, não precisamos que piorem ainda mais.
— Mas do que o senhor está falando? Eu só pedi pra ver o desenho que ele estava fazendo durante a aula. Eu não sei porque você está desse jeito.
— Jihoon não desenharia isso, não depois de tudo, não depois de… — ele parou, parecendo perceber que apertava forte a bola maltrapilha em uma mão e com a outra se apoiava no ombro de Jihoon, agarrado à sua perna. De repente, a respiração ofegante do homem foi cortada pelo primórdio de um chorinho, um que estava vindo do rosto imprensado em sua coxa.
Fiquei um pouco apavorada. Esse homem grosseiro (e bonito) estava me olhando com fogo saltando das veias enquanto não se dava ao trabalho de me explicar o que estava acontecendo. E agora seu filho estava chorando. E ele me chamou de senhora!
Yoongi suspirou e se abaixou para pegar Jihoon no colo, que escondeu o rosto na sua nuca para fungar e soluçar baixinho.
— Tudo bem, tudo bem, já acabou. Não vamos mais falar disso. — ele deu batidinhas leves nas costas do garotinho e se livrou do papel amassado na primeira lixeira embaixo da lousa, com o maxilar tão trincado que quase rasgava a pele.
Então, ele estava me olhando de novo, e, sem dizer uma única palavra, saiu da sala e fechou parcialmente a porta.
Fiquei estática. Totalmente confusa com o que tinha acabado de acontecer. Esse não era o fim de primeiro dia que eu estava esperando.
Mas três coisas eram certas:
1) Agora precisava de tequila e um balde do especial da noite do Mango’s.
2) Não vou mais poder colocar no meu caderno de anotações que aquele foi um dia que acabou bem. Razoável era uma afirmação mais verdadeira.
3) Nunca mais queria ver Min Yoongi de novo.
Como se algum dos pobres alunos que menos dormiam e mais se entupiam de café e energético desse lugar tivesse tropeçado em cima daquelas dobradiças e quebrado tudo há mais de 20 anos, que é o tempo que essa coisinha estava ali.
Pois é, a Drexel não era exatamente a universidade mais rica e bem sucedida do país, mesmo sendo uma das que mais constroem equipamentos para as grandonas da Ivy League (a um custo bem irrisório). Principalmente para Harvard. A Harvard que eu gostaria muito de pisar um dia, de preferência com bolsa integral digna de pós-doutorado e morando em um apartamento com box de vidro no lugar de uma cortina no banheiro.
Com certeza, Harvard tinha recursos o suficiente para cobrir os danos financeiros e psicológicos que toda Drexel e a própria Filadélfia já me deram.
E esse grande sonho poderia se tornar realidade caso minhas amostras fossem devidamente analisadas, todos os meus dados de solo e as milhares de imagens de satélite perfeitamente catalogadas, e conseguisse a colaboração com um analista em… 3 meses. Era o prazo para a defesa da minha tese.
Eu não tinha exatamente mentido para a senhora Hahn. Caso não conseguisse a ajuda que precisava para finalizar minha pesquisa, eu realmente seria obrigada a estar ali no próximo ano, sem mais bolsa de doutorado e sem mais esperança de um futuro brilhante em uma das melhores universidades do mundo.
E, claro, sem nem ter certeza de que lidaria com mais serzinhos viciados em bombinhas ou sanduíches de repolho em troca de um salário razoável que me permitiria fazer três refeições por dia.
Positividade, .
Tinha acabado de desligar o grande “zuuuum” do aparelho quando Wonwoo entrou no laboratório, ajeitando aqueles óculos de grau escorrendo pelo nariz como sempre.
— Caramba, ! Cadê seu telefone? — ele grunhiu. Graças àquelas pernas de ganso, estava do meu lado em meio segundo. — Tô tentando te ligar há horas, cacete.
— Horas? Que horas são?
— Duas da tarde. Desde quando tá presa aqui? Não ia trabalhar hoje?
Franzi o cenho, pensativa.
— São só três dias por semana, Wonwoo. E eu acho que quando cheguei, o galo do zelador estava cantando pela segunda vez.
Wonwoo bufou e revirou os olhos.
— Caramba, você comeu pelo menos? Fiquei sabendo que teve reposição dos biscoitinhos na cozinha.
— Sério? E estão vencidos há menos de 5 meses?
— Menos de 2 meses.
— Yes! — fechei o punho com a vitória. Eu disse: faculdade pobre.
Wonwoo apertou o quanto pôde dos lábios para não rir porque ele detestava meu estilo de vida, mas me achava engraçada ao mesmo tempo, o que compensava alguma coisa. Aquela agitação tinha voltado para o seu corpo.
— Tá bom, olha só, você tem que vir comigo, consegui uma entrada pra gente no departa… Aquilo ali é soda cáustica? — ele fez uma pausa e observou através da capela de exaustão, ao lado da estufa.
— Também tá vencida, então ela desintegraria só a metade da minha epiderme. Continua o que tava falando.
— Eu me arrependo todos os dias por te conhecer. — disse ele. Dei de ombros. — Mas como isso já aconteceu, me vejo na obrigação de te avisar quando uma coisa muito foda vai rolar, tipo uma palestra com o seu novo analista.
— Hã?
— É, , se liga! Augustus D. vai fazer uma palestra no departamento de Geociências agora mesmo.
— HÃ? — agora a mensagem tinha chegado na íntegra, e quase caí quando saltei da banqueta. — Que merda você tá falando? O que o doutor D. estaria fazendo na Drexel?
— Eu não tô brincando, acha que eu brincaria sobre isso? — não. Ele não brincaria. — E eu sei lá o que ele faz aqui, parece que o departamento conseguiu arrecadar uma grana durante um semestre inteiro só pra trazer ele pra cá, e era pra ser um evento fechado no auditório central, mas eu consegui entradas. — ele ergueu dois pedaços de papel minúsculos que facilmente rasgariam no primeiro vento forte, assim como era tudo na Drexel.
Minha cabeça ainda estava bagunçada, mas puxei o papelzinho só pra ver se era real. Só pra ver se Wonwoo não tinha escrito aquilo com canetinha como uma de suas técnicas pra me tirar do laboratório (ele já tinha feito isso uma vez, usando o Toni Kroos como desculpa. E eu não dormia há 30 horas, então sim, eu acreditei que o meu jogador de futebol favorito estava comendo o cachorro quente do Willow’s no trailer ali da frente).
Mas agora eu estava bem desperta, e aquele nome impresso no papel pareceu muito real.
— Puta merda! — arfei, juntando o que dava para juntar naquela bancada minúscula cheia de coisas dos farmacêuticos e dos engenheiros químicos, puxando minha bolsa e arrancando tomadas. — Puta merda, puta merda!
— Puta merda. — repetiu Wonwoo, pegando a minha bolsa quando viu que eu estava representando um tipo de perigo para mim mesma e às outras vidrarias ao redor. — Vamos logo, não temos tempo pra isso, a palestra já vai começar.
Assenti, desnorteada, e fui seguindo ele pra fora do laboratório, coçando os olhos para espantar o sono ou tirar a remela que talvez estivesse ali.
Quando terminamos o primeiro corredor, lembrei de perguntar:
— Como você conseguiu essas entradas?
Wonwoo, segurando minha bolsa nos ombros e ajeitando os óculos, só deu de ombros em uma falsa modéstia.
— Eu ganhei.
— Você ganhou?
— Ganhei.
— Você é do programa de Literatura. Por que alguém te daria um ingresso para a palestra de um geólogo?
— Você também não é da Geologia.
— Mas a minha pesquisa tem geologia. Os biomarcadores geomorfológicos, que nada mais são do que espécies vegetais exclusivas que vou usar pra mapear…
— … Áreas suscetíveis a processos erosivos, e assim você vai dar uma de Marshall Eriksen e reflorestar uma parte inteira do planeta que sofreu um maremoto ou coisa assim. Tá, tá, tá, eu sei, já ouvi sobre a sua tese mil vezes. Agora, quando a gente entrar por aquela porta e você falar com seu tão amado ídolo sobre a sua pesquisa e convidar ele pra ser seu analista, eu finalmente vou poder parar de ouvir.
— Como tem tanta certeza que ele vai aceitar ser meu analista? — engoli em seco. O auditório central estava a menos de 60 metros.
Wonwoo olhou para mim por um segundo e desviou.
— Ele seria um idiota se não aceitasse.
Sorri com isso. Ele sabia mesmo como me confortar. Era pra isso que melhores amigos existiam.
Estávamos prestes a curvar no último corredor, e algumas pessoas estavam começando a se entulhar na entrada. Muitas garotas, para ser específica, e garotas com nenhum traço das Geociências como um todo.
— É sério, como você conseguiu esse ingresso? — semicerrei os olhos pra ele. Wonwoo soltou um som frustrado nos dentes trincados.
— Eu já disse que ganhei.
— Ganhou de alguma ruiva gostosa no Mango’s? O que ela te pediu em troca? Beijo de língua ou nude?
— Ah, vai se f-
— Wonwoo. — levei a mão ao peito, abrindo um sorrisinho admirado. — Own, você se prostituiu por mim?
— Juro que amaldiçoo o dia em que eu te conheci. — grunhiu ele, e finalmente entramos na fila, que estava andando anormalmente rápido. — Agora cala a boca e faz o que você tem que fazer. Esse velho não vai estar aqui pra sempre.
— Você acha que ele é velho? — perguntei, começando a ficar afobada à medida que a entrada ficava mais perto.
Wonwoo chegou primeiro e entregou nossos ingressos para uma estudante qualquer. Ela fez um gesto de cabeça para que seguíssemos em frente.
— Eu acho que Augustus é nome de velho. — disse ele.
— Não é nada. — na verdade, era. Um pouco. Geralmente, os autores renomados da revista Science e uma das mentes brilhantes da área de Geomorfologia não chegavam nesse patamar antes dos 50 anos.
Finalmente lá dentro, segui Wonwoo até a quarta fileira, disfarçando meu muxoxo por ver que as três primeiras já estavam totalmente ocupadas. Pedimos licença e nos esprememos entre os joelhos dos outros até conseguir sentar. O palanque ainda estava vazio, só com alguns estudantes de jaqueta do curso finalizando os detalhes técnicos de som e luz. Meu coração já estava acelerado.
— Quer saber de uma coisa? Você devia casar com essa garota. — inclinei a cabeça para falar no ouvido dele. Wonwoo se virou, a testa enrugada. — A que te deu os ingressos! Qual é, ela foi demais! Temos que marcar um café com ela.
Ele voltou a olhar para frente, o maxilar trincado naquele gesto que parecia estar com raiva.
— Por que tem tanta certeza que foi uma garota?
— Porque te conheço há 5 anos e nunca vi você sem uma garota. — arqueei as sobrancelhas. — Deve ser os óculos. Acho que míope é a nova moda entre as mulheres.
Wonwoo me ignorou. Ele sempre me ignorava quando a gente tocava no assunto garotas, mas não era algo que ele precisava dizer. Eu via (e muito melhor do que ele, já que eu não precisava de óculos). Wonwoo atraía as mulheres como um ímã, e não faço ideia de quando isso começou. Era o time de basquete? O corpo de academia? Os um metro e oitenta e tantos? Eu realmente não sabia, mas tinha muita coisa que eu precisava aprender com ele.
Finalmente, alguém subiu no palanque e deu leves batidinhas no microfone, testando o som. Perdi completamente a vontade de zoar Wonwoo. Minhas costas ficaram retas, afastadas do encosto, como se eu quisesse ter certeza de que iria olhar e absorver a cena inteira acontecendo na minha frente.
— Hum… Boa tarde a todos. Ficamos felizes com a participação da comunidade acadêmica e, em especial, aos nossos parceiros da escola de Administração, das Engenharias, ao nosso coordenador, e também do…
Pisquei os olhos. Minha ansiedade ignorava todas as palavras que aquele homem dizia, um homem que eu sabia não ser o doutor D. Não que eu já tivesse visto o doutor D (ninguém nunca o viu), mas eu sabia que ele não era o doutor Farran, especialista em Cristalografia de Nêutrons, o primeiro cara a me dizer não quando o convidei para ser meu analista.
Tudo bem, ele sempre foi minha segunda opção mesmo. Na verdade, era a terceira. A primeira estava prestes a subir naquele palquinho.
Depois de vários minutos, Farran finalmente mexeu a boca para dizer o tão esperado:
— E assim, temos a honra de ter conosco hoje o doutor Augustus D, apresentando as últimas descobertas na área de Geomorfometria.
Bati palmas junto com os outros, talvez até um pouco mais animadas, e esperei, o coração na garganta. Nada aconteceu no próximo minuto. Eu não estava vendo ninguém entrar pela abertura lateral (o auditório era literalmente um pequeno teatro), ou atravessando o corredor lá do fundo, ou descendo pela galeria com uma cordinha presa no colarinho, tipo nos filmes de ação.
Eu só vi um cara se levantar da primeira fila de poltronas e caminhar graciosamente para cima do palco de madeira. Um cara usando jaqueta bomber e botinas de couro. Um cara com cabelo escuro que descia até bem abaixo das orelhas. Um cara. Nada de velho gagá, cabelo branco, bengalas ou osteoporose. Só um cara.
Que tinha um filho de 7 anos.
E tinha me odiado no meu primeiro dia como professora.
Puta merda.
Outra longa história.
Eu não sabia direito o que queria cursar. Só sabia que gostava de ciências e até um pouco de matemática. As notas altas na escola nunca foram motivo para me gabar, porque elas não significam nada quando você não faz ideia do que fazer com elas.
Mas aquele monte de letras A+ tinham que servir para alguma coisa. No meu caso, serviram para uma bolsa de estudos integral com alojamento de graça em University City depois de acordar um dia e ver meu pai sangrando na cama, vergado em cima do próprio vômito.
Levei um tempo para esquecer. Na verdade, tenho quase certeza de que ainda não esqueci completamente, mas é que na época eu não tinha muito tempo para pensar nisso porque estava ocupada escutando de 120 pessoas que, agora, eu era uma garota órfã e que precisava decidir o que faria, enquanto escolhia o melhor combo de caixão + flores diversas para um velório que mal vi acontecer.
Quando todo o caos de roupas pretas, condolências de vizinhos, assistentes sociais e advogados informando que a hipoteca não era paga há 7 anos e que meu pai tinha um dinheiro guardado que equivalia a um McDonald’s, fui finalmente entendendo que perdi tudo e não pertencia mais — e que precisava urgentemente passar a pertencer, se quisesse ficar viva.
Eu ainda não tinha pensado em faculdades, mas tinha terminado a escola mais cedo, então podia ir embora sem drama. A professora Goldstein, uma senhora simpática que via muito potencial em mim, não parava de falar em Stanford, Princeton, Columbia e todos os nomes possíveis que só soavam como dinheiro, dinheiro, dinheiro para mim. Outro motivo de nunca ter me importado com minhas notas era porque elas nunca seriam boas o suficiente para Nova York, Palo Alto ou New Haven. E mesmo se fossem, eu nunca poderia morar lá. Nunca poderia abandonar o meu pai.
Mas ele se foi bem antes do que eu esperava, me obrigando a pensar nisso.
Me matriculei na Drexel, a universidade mais antiga da Filadélfia (o que não era sinônimo de bom), e, com a ajuda da senhora Goldstein, consegui pegar a mixaria que minha mãe tinha deixado no banco “para a minha faculdade”, que não fazia o menor sentido, já que depositou o dinheiro e, em seguida, se mandou com o pizzaiolo. Mas ainda era o bastante para não morrer de fome por uns meses, se eu não me importasse com excesso de industrializados.
Na primeira noite que deitei naquele alojamento minúsculo e olhei para o teto, eu pensei. Foi a primeira vez que realmente pensei. Minha colega de quarto só se mudaria na outra semana, então o silêncio do cômodo ajudou.
Pensei. Pensei, pensei, pensei.
E o que aconteceu naquela noite depois que pensei me fez evitar fazer isso de novo a todo custo. Pelo meu próprio bem.
Eu ia às aulas porque precisava, gravava as fórmulas matemáticas porque precisava, decorava os discursos políticos de ex-presidentes notáveis porque precisava. Porque eu não tinha para onde ir e almoçava macarrão instantâneo. Porque eu não queria ir parar em um abrigo e lembrar o tempo todo porque eu estava ali.
A Drexel foi isso para mim por um tempo: um lugar velho e sem propósito que estava sendo a minha casa, onde eu andava por aí vivendo no automático, torcendo para que a minha colega de quarto festeira, com um caranguejo tatuado na mão direita, voltasse e dormisse na própria cama, mesmo que ela fosse assistir ao reality das Kardashians no laptop em uma altura consideravelmente alta (o que não era um problema para mim; na verdade, eu preferia que fosse assim). Foi assim nos primeiros meses do ciclo básico. Até eu ler o artigo sobre Geomorfologia de áreas degradadas de Augustus D.
O site que publicou o artigo mal tinha avaliações, e as que tinham, dificilmente te convenceriam a citá-lo em qualquer roda de conversa. Aparentemente, eles eram conhecidos por ter um trabalho editorial mais do que medíocre, provando isso ao publicarem o artigo de um graduando sem co-autoria com um professor pesquisador, sem nenhum projeto ou pré-publicações em conferências. É lógico que, de início, as pessoas não deram atenção para o que Augustus dizia, não até que ele fosse aprendendo a jogar o jogo da academia e acumulando experiência o suficiente para que sua linha de pesquisa fosse considerada, e seu nome, mais tarde, endeusado pela galera tanto da Geologia quanto por todos os cursos da área de Ciências da Natureza.
No entanto, aquele primeiríssimo artigo sempre foi tratado por nada mais, nada menos que um teste e, portanto, um documento totalmente inútil perto de todo o potencial que o futuramente doutor D. demonstrou ao longo dos anos. Mas não para mim.
Alguma coisa se acendeu na minha cabeça quando fiz aquele download que custou 0,25 centavos. Alguma coisa que me deixou genuinamente curiosa, atenta, com vontade de me mexer, de consertar, vontade de pensar (não na minha vida pessoal fodida, mas pensar sobre as coisas no geral).
O estudo dele sobre modelagem de processos erosivos e a evolução de milhares de hectares de área que foram sendo formadas desde o início do mundo até começarem a mudar pelas mãos do próprio homem, foi feito com tanta paixão que respingou em mim. Nunca tinha parado para refletir sobre salvar o mundo, ou ir além de não deixar as plantas do dormitório morrerem sob minha responsabilidade e fazer coleta seletiva, mas aconteceu. Não que eu seja apaixonada pelo que ele cursou, não sou, na verdade odeio geólogos no geral, mas Augustus era diferente. Ele ia além das pedras, além do solo, além da superficialidade da paisagem; o cara queria as raízes, queria chegar ao núcleo ainda tão desconhecido da Terra.
Em menos de uma semana, tinha repentinamente decidido o que fazer da minha vida.
E agora, 6 anos depois, estavam me dizendo que aquele cara com jaqueta de motoqueiro, cabelo incrivelmente sedoso e olhos um pouco assustadores era um dos maiores geólogos do mundo?
Nem fodendo!
— Wonwoo. — chamei, sussurrando. Não conseguia parar de olhar para o palanque. — Acho que tem alguma coisa errada.
— Eu também acho. — respondeu ele, no mesmo sussurro. — Tenho 80% de certeza que a camisa dele tá ao contrário.
Apertei os olhos por um segundo.
— Não. Esse não é o doutor D.
— Ah, eu tenho certeza que é.
— Não pode ser. Ele… — não soube explicar. Não foi esse o nome que ouvi quando ele foi buscar o filho na escola, não foi aquele sorriso mínimo que estava aparecendo na frente do microfone, não era isso que eu imaginava ao pensar em Augustus. — Mas… O filho dele…
— O que você tem? — Wonwoo chegou mais perto para cochichar. Eu mal estava ouvindo o que ele estava falando.
Tem que eu caí numa pegadinha, Wonwoo. Ou você caiu. Ou todo mundo aqui dentro caiu, todo mundo da cidade, do país, do planeta!
Mas não dava para sair dizendo isso, não ali, naquela hora, onde ele se colocou de pé e abriu uma apresentação projetada na parede, com o tema Geomorfometria e Modelagem Digital de Oásis Antárticos.
Não acredito que isso está acontecendo.
— Nada. — resmunguei e me afundei na cadeira, sem força nenhuma de pegar meu bloquinho de notas para anotar absolutamente tudo que saía da boca daquele homem.
Augustus D. Min Yoongi. Não dava pra entender.
Tinha certeza de que fiquei preocupantemente imóvel durante toda a apresentação, o que reitero na parte do preocupante, porque eu devia estar com o sorriso do Coringa e saltitando igual criança, mas meus músculos quase doeram quando Wonwoo esbarrou no meu braço em algum momento e precisei mexê-lo para cima do colo, desviando o rosto e me escondendo o máximo possível toda vez que Augustus ameaçava olhar para a minha região.
Wonwoo teria perguntas mais tarde, é claro. E eu devia começar a preparar umas respostas. Mas aquele congelamento mental me atrasou. No momento, eu só conseguia pensar nas minhas amostras vegetais, que estavam por um fio de não servirem para mais nada, nos dados incompletos que eu estava tendo uma dificuldade enorme de catalogar, na goteira nova do meu apartamento com Belle, na quarta prorrogação de prazo que pedi para a entrega da minha tese, naquele quarto escuro onde li o primeiro artigo sobre Geomorfologia. Pensei, pensei, pensei.
Me obriguei a parar. Pensar nunca acabava bem, não no meu caso.
Não vi a hora que ele fez uma piada e todo mundo riu. Não vi quando a palestra acabou e ele abriu para perguntas, aquele momento que eu tanto esperava. Wonwoo me cutucou com o cotovelo, me perguntando naqueles olhos por trás de lentes redondas porque eu ainda não tinha aberto a minha boca e enchido os ouvidos de todo mundo no meu modo fangirl. Mal respondi a ele; continuei parada, congelada no meu lugar, pensando o tempo inteiro que tudo estava acabado.
Quando o fim chegou, me levantei junto com todos os outros, automaticamente pronta para ir embora. No entanto, eu ainda estava com Wonwoo.
— Ei, ei. — ele agarrou meu cotovelo antes que eu desse um passo. — O que tá fazendo? Vai falar com ele.
Abri e fechei a boca. Olhei para o palanque e vi Yoongi ser rodeado por pelo menos 10 estudantes.
— Ele tá ocupado. — falei rápido, agarrando a bolsa que tinha jogado no meu pé. — Tá vendo? Só os caras chatos da mineralogia na fila, vão tomar muito o tempo dele, vamos nessa.
— Quê? — Wonwoo contorceu o rosto, e bufei com impaciência. Ele era muito grande e já bloqueava meu caminho normalmente no laboratório amplo, imagina num corredor de poltronas apertado. — Você pirou? O bando de calvos ali só vão pedir um autógrafo do livro dele, e você sabe disso.
— A gente já conversou sobre essa coisa de estereótipos.
— Foi você que falou isso deles.
— Pois então eu desfalo. Pode me dar licença?
Wonwoo me olhou como se precisasse ligar imediatamente para a emergência.
Então ele estalou um dedo, como se tivesse resolvido uma charada.
— Você tá com vergonha. Tá com medo de ele não aceitar sua proposta.
— Não exatamente… — era exatamente isso, mas por outros motivos. — Olha, foi muito legal você ter me trazido aqui, é sério, juro que vou te pagar aquele café da manhã completo no Calliope na semana que vem, mas é que ele…
— Não, para com esse papo furado. Você vai falar com ele agora. — ele agarrou meu pulso, começando a me puxar.
— Não, Wonwoo! Merda. — trinquei os dentes, tentando tirar sua mão da minha, mas alô, um metro e oitenta e tantos e Ala do time de basquete. Meu apelido entre os amigos dele era formiguinha. Se eles queriam zoar meus 1,55, poderiam pelo menos tentar ser menos clichês.
Ainda tinha muita gente em volta, o que me impedia de gritar ou fazer qualquer tipo de escândalo, porque a galera da comunicação costumava taxar tudo como assédio (e também odiavam o time de basquete, o que significava que poderiam acabar com a reputação do meu melhor amigo em um post).
Ele estava mesmo certo: aquele monte de cabeças calvas estavam falando ao mesmo tempo, estendendo livros, pastas ou câmeras para conseguir fazer seja lá o que fosse com Yoongi. Wonwoo parou atrás de um montinho deles, e me senti tentada a pisar no seu pé, mesmo que ele não fosse sentir nada. Estava furiosa com ele, e dava pra ver isso no jeito como eu o olhava.
— Pode colocar as presas pra dentro, T-Rex. Você vai resolver isso hoje e ponto final.
Tentei me soltar de novo, sem sucesso. Uma das garotas na primeira fileira estava olhando pra gente enquanto cochichava com outra loira platinada e soltando risinhos. Aí eu entendi que não estavam olhando para a gente, e sim para ele.
— Eu odeio você. — rosnei. — Tudo isso só pra não precisar mais ouvir da minha pesquisa? Meu Deus, não sabia que tinha te deixado tão puto.
— Você sempre me deixa puto.
— Então quer se vingar de mim agora? Eu preferia que você grudasse chiclete no meu cabelo.
— Eu jamais faria isso no seu cabelo. Que tipo de monstro você acha que eu sou?
— O tipo que desenha bigode em mim quando eu cochilo no sofá e o tipo que faz uma cena ridícula de Playful Kiss contra a minha vontade. Me solta, cacete! — tentei de novo, mas o idiota nunca baixava a guarda. Seus dedos sabiam exatamente o momento de apertar com mais força e o de soltar, sem me dar chance nenhuma.
— Ah-ah! — Wonwoo me puxou pra mais perto até meu tórax bater no seu e ele passar o outro braço pelo meu ombro. — Você é muito engraçada, . Achei que tinha dito que odiava doramas.
— Eu odeio.
— Acabou de citar uma das pérolas mais famosas na Seul de 2010.
— O ano em que eles descobriram que arrastar uma garota como se ela fosse uma boneca era machista e ridículo?
— Não, e você não vai me distrair com a sua militância. Você tem que falar com ele.
— Wonwoo. — um choramingo escapou de mim, enquanto eu me virava para ele ao mesmo tempo em que tentava me afastar daqueles braços. — Jeon, eu juro, juro que se você me soltar agora eu compro uma caixa de snickers. Duas caixas! Duas e meia, porque não tenho mais limite no cartão. Você pode comer escondido do treinador, você pode…
— Doutor D! — Wonwoo disse, abrindo seu sorriso de secretário escolar e dando passos à frente, perfurando com elegância o cinturão de pessoas.
E, de repente, assim, em um piscar de olhos, fui jogada pra dentro do círculo de curiosos e colocada cara a cara com o doutor D.
Com o que diziam ser o doutor D.
— Doutor, essa é minha amiga, , e ela é super fã do seu trabalho. Por causa disso, ela tem uma coisa muito importante pra falar…
Yoongi me encarou com uma lentidão agonizante, como se precisasse de tempo para o seu cérebro se recordar de onde conhecia meu rosto. Quando se lembrou, sua boca ficou tensa na mesma hora. Ele olhou brevemente para os outros pares de olhos atrás, esperando, e fez um sinal que deu a entender que falaria com eles depois.
Senti o cotovelo de Wonwoo me dando um toque, o que significava que eu estava muito tempo parada como uma estátua viva.
— Ah… Eu… Bom…
— Senhora . — disse Yoongi, cruzando os braços com um suspiro fraco. A tensão tinha desaparecido por um momento. E ele me chamou de senhora de novo! — Como vai?
— Eu… vou bem. Ótima. Radiante.
Patética, também.
Aquele silêncio constrangedor que eu não queria que existisse, estava ali agora, se arrastando pelos segundos como se fossem horas. O olhar de Yoongi em cima de mim tornava tudo pior.
Por fim, ele puxou os lábios e expirou.
— Olha, se veio aqui me pedir desculpas, não precisa. Eu te devo primeiro. Quando chegamos em casa, Jihoon me contou o que aconteceu e eu percebi… Bom, não devia ter falado com você daquele jeito. Eu sinto muito.
O modo estátua tinha voltado.
Não esperei esse tipo de resposta. E ele nem parecia estar debochando, zoando ou qualquer coisa. Parecia mesmo estar me pedindo desculpas.
— Você, ah… tá tudo bem. Tudo bem. — gaguejei, levantando os ombros duas vezes. — Espero que o Jiho… quer dizer, seu filho esteja bem.
— Ele está. — Yoongi respondeu simplesmente, e seus olhos cravaram em mim mais do que antes. — Mas não era necessário ter cruzado a cidade pra isso. Sei que o Jihoon tem aula com você amanhã, então eu ia aproveitar a oportunidade.
Eu podia sentir os olhos atentos e totalmente confusos de Wonwoo vagando por mim e por Yoongi, e eu deveria ter contado aquela última fofoca da minha vida durante a palestra para não passar por aquilo que estava passando agora, mas infelizmente ele teria que esperar. Por outro lado, desde que Yoongi me viu e me identificou, não olhou mais para o meu amigo quatro olhos que chegou nele com tanta pressa.
— Quem é Jihoon? — Wonwoo de repente perguntou, e dei uma batidinha no seu esterno.
— Depois eu te explico. Senhor Min… Doutor D. — falei, como se tivesse serragem de madeira presa nos dentes. — Eu não cruzei a cidade pra vir em busca do seu perdão ou coisa parecida. Eu estudo aqui. Programa de Doutorado da Biologia.
Ele esticou as sobrancelhas, claramente surpreso. Claramente.
— Ah… Nossa. Isso é interessante. — ele passou a mão por aquele cabelo odiosamente brilhoso que me tirou a vontade de perguntar o que exatamente era interessante. — Você está começando ou…?
— Terminando. Quase. Falta uns… ajustes finais.
— E sobre o que é o seu trabalho?
— Biomarcadores geomorfológicos. Eu coleto espécies de plantas que têm um grande poder de resistência a processos erosivos, com enfoque no reflorestamento. Só um pouco de Botânica e de Geologia andando de mãos dadas.
Até aquele momento, eu não sabia que o olho de alguém podia brilhar e “desbrilhar” na mesma hora, praticamente no mesmo segundo que aconteceu. Yoongi entendeu tudo antes que eu tomasse meus 5 segundos de coragem e soltasse:
— Preciso de um analista. Um geólogo, pra ser direta. Tenho amostras finais que estão praticamente virando um monte de lixo se eu não conseguir catalogar todos os dados até o fim do mês; são espécies com pouco estudo, não-nativas e que não estão mais aguentando morar em placas de petri. Eu poderia desistir disso e eu mesma analisar a estrutura com base nos livros, mas não seria certo e nem confiável. O olhar de um geólogo pode me levar a uma descoberta super importante, ainda mais um geólogo como o senhor. Esse é o projeto da minha vida, e o último caiu fora porque estava com o plano de aposentadoria no bolso e se recusou a trabalhar por mais um dia. Eu não o culpo, parecia mesmo que ele ia deslocar o ombro só de levantar uma caneta, mas a questão não é essa. Eu preciso de um novo analista. — prendi o ar. — Na verdade, preciso de você como meu analista… doutor D.
Ainda me sobrou um pouco de fôlego para expirar fundo no final e, de repente, todo o auditório ficou em silêncio, pelo menos foi a impressão que eu tive com aquele olhar direto e fixo de Yoongi. Já dava pra ver que ele era uma pessoa que olhava de verdade para as outras.
Não sei se gostei muito disso.
— Eu… — ele começou, e desfez um pouco da expressão séria. — Isso é por causa do pedido de desculpas? Porque você não precisa…
— Sou louca pelo seu trabalho há 6 anos. Li todos os seus artigos publicados na Nature, ou na Geophysical, nenhum deles com nível de impacto menor do que A1, li as referências que o programa de Harvard usa exclusivamente suas, digitei todos as tags possíveis no Scholar procurando trabalhos que batessem com a minha tese, e os números estavam muito ao seu favor. Sempre estiveram. Eu preciso do senhor. — cheguei pra frente sem notar. Uma ruguinha apareceu na sua testa imediatamente. — E não, eu não fazia ideia de que você era… você. Eu juro.
Porque você não tira fotos, engoli esse complemento. Mas tinha certeza que assim que me deitasse naquela noite, veria que todo mundo da comunidade de fãs do doutor D. estavam errados em suas teorias sobre o rosto do gênio. Não era porque ele não tinha uma verruga cabeluda, um abcesso na testa, era careca, albino, ou um velho com Esclerose Lateral Amiotrófica, que utilizava a mesma tecnologia do Stephen Hawking para se comunicar. Não, aquilo era um mistério e continuaria sendo porque ninguém iria entender o motivo de um cara tão gato não ter espalhado o rosto por aí, seja lá qual fosse. Ele até tinha um jeito intelectual, apesar da jaqueta e dos brincos nas orelhas. As vantagens de fundir beleza com inteligência eram incontáveis desde o início do milênio.
Ele fez sua própria demonstração de estátua viva ficando parado ali, me olhando, com uma expressão que eu não sabia ser de desconforto ou uma “ah, bem, entendi, que coisa, né?”
— Hum… fico lisonjeado, senhora , mesmo. É uma honra que goste do meu trabalho. Mas infelizmente vou ter que recusar.
Minha cabeça fez um crec, quebrando igual vidro.
— Quê? — soltei num fio de voz. Acho que ele viu o meu abalo, porque deu um minúsculo passo pra frente.
— Não é nada pessoal, é que acabei de voltar ao trabalho, e a Drexel já me passou muitas demandas do cargo, e a senhora precisaria me mandar uma versão reduzida e formalizada da sua pesquisa por escrito, e ela acabaria indo para o final da fila e isso só te prejudicaria pelo tempo. Então eu acho melhor…
— Cargo? Que cargo? — me preocupei da minha voz estar muito aguda. Yoongi parou por um momento, como se não entendesse.
— Professor-titular do departamento de Geociências.
Ah. É mesmo. Bonnie tinha dito isso na escola em nossa pequena reunião. “Ele é professor”. O próprio Jihoon disse que seu pai era professor. Só esqueceram de mencionar o “titular” nessa informação, o que tornava ela extremamente mais impactante.
E como ele seria professor da Drexel? Que merda é essa? O cara fez o doutorado em Harvard!
— Uau. — foi a única coisa que meu cérebro conseguiu ligar. — Eu não esperava… acho que ninguém esperava que o doutor D. fosse trabalhar na Drexel. Pelo menos vamos ganhar visibilidade acadêmica além das baratas que acham no laboratório de Fitopatologia. — fiz menção de gargalhar, mas percebi muito rápido que isso não o faria rir. E nem Wonwoo, que automaticamente meteu o cotovelo no meu braço. — Desculpa, é brincadeira. É mesmo uma honra enorme ter o senhor por aqui.
— E é um prazer estar aqui também. A Drexel pode ser um lugar mais notório do que a comunidade acadêmica pensa. — ele me lançou um olhar efusivo e, se não estivesse louca, o canto do seu lábio tremeu, implorando pra subir e formar um sorrisinho, mas logo um telefone tocou no nosso meio, tão retumbante quanto um saxofone na potência máxima.
Yoongi se empertigou e puxou o aparelho do bolso, dando uma lida rápida na mensagem e bloqueando-o de novo.
— Eu preciso ir agora. Foi um prazer vê-la de novo, senhora . E você… — ele olhou para Wonwoo, e o jeito como aquelas sobrancelhas franziram me fizeram apostar que ele tinha esquecido da presença do meu amigo atleta.
— Jeon Wonwoo, senhor. Sua palestra foi bem… legal. Mesmo que eu não tenha entendido nada.
— Ele é do departamento de Literatura, só lê livros que te colocam na terapia, não dá bola pra ele. Yoon… Doutor D., espera. — agora dei vários passos à frente, juntando as mãos quase fechadas uma na outra. — Não quero parecer inconveniente, mas não existe uma chance? Nenhuma? Você esteve sumido nos últimos três anos, duvido que esteja cheio de orientandos. E eu nem estou pedindo pra você me orientar.
Quando falei isso, aquele rosto que tinha conseguido ficar relaxado e menos sério se fechou por completo. A boca dele ficou rígida, os ombros também, e seus dedos apertaram um pouco da bolsa-pasta marrom que carregava.
— A resposta continua sendo não. Tenha um bom dia, senhora .
E saiu, atravessando aquele auditório como se estivesse em cima de uma passarela, andando a passos elegantes e chiques, mesmo para quem estava usando botinas. Meu Deus, ele devia ser o único ser humano do mundo que ficava bem com aqueles sapatos — pareciam quase descolados.
Mas minha admiração parou aí. Eu não estava mais chocada, estava frustrada, zangada e um pouco desesperada.
— Mas que droga aconteceu aqui, ? — Wonwoo já estava do meu lado, os braços cruzados na frente do peito. — Você conhecia esse cara o tempo todo e não me disse nada?
— Merda… — trinquei os dentes, controlando a vontade de bater com a cabeça na parede. — Agora eu sei o que o gigante sentiu quando roubaram a galinha dos ovos de ouro dele.
Wonwoo deu um riso seco.
— A sua galinha dos ovos de ouro esticou as perninhas e saiu por conta própria.
— Não, o destino roubou ele de mim. Ou melhor: a Drexel! Jesus, esse lugar nunca vai parar de me tripudiar?
— Responde a pergunta, . — Wonwoo puxou meu ombro e me obrigou a olhar pra ele, coisa que eu não gostava de fazer daquele ângulo e naquela situação, porque ele era alto demais e ao mesmo tempo parecia um irmão mais velho mandão (o que ele praticamente era pra mim). — Por que o doutor D. pediu desculpas pra você? Por que te olhou como se te conhecesse? E quem é Jihoon?
A voz dele ficou mais aguda na última pergunta.
Suspirei, derrotada. O dia estava oficialmente jogado no lixo.
— A gente pode ir fazer aquela coisa das caixinhas de snickers antes de eu te contar?
— Você tá me enrolando.
— Não, eu juro, eu vou te contar tudo. Tem a ver com meu novo emprego na Kenderton, o que você já sabia que eu ia odiar. Pois é, eu odeio. Mas snickers primeiro, por favor.
Ele bateu um pé no chão, pensativo, mas logo deu de ombros.
— Tudo bem. Mas você não pode contar pro treinador.
— Jamais. Se você fosse expulso do time, ia querer comprar snickers todos os dias e começaria a roubar os meus.
— Eu nem gosto tanto de snickers.
— É, e eu nem gosto tanto de Botânica, a gente pode se dar bem.
Ele revirou os olhos de novo e bagunçou o topo do meu cabelo.
— Ridícula. Vem, vamos.
Ele saiu andando na frente, se esquecendo por 3 segundos que precisava diminuir o ritmo para andar comigo.
— E o que você vai fazer agora? — Wonwoo perguntou assim que deixamos o auditório. — Com essa… rejeição e tudo mais. — vi o maxilar dele trincando de relance. Talvez a surpresa inicial por eu já conhecer meu ídolo tenha pegado ele de surpresa mais do que o “não” indesejado, e só agora ele estava assimilando isso. E sentindo raiva.
Sorte a dele. Eu ainda queria segurar a ficha lá no alto, sem deixá-lá cair até que eu estivesse deitada na minha cama e bolasse o que eu precisava bolar.
— Eu não sei. Eu acho que só vou tentar de novo. — respondi simplesmente. Wonwoo fez uma careta confusa pra mim.
— Como tentar de novo? O cara foi bem claro…
— Eu sei o que ele disse, e até entendo os seus motivos, mas não vou desistir. Yoongi vai ser meu analista, com certeza. — Wonwoo fez outra cara de “oi?” diante do novo nome. Bufei. — Vamos, vamos pegar os snickers.
Apertei o botão e Robert Plant começou a cantar a intro icônica de Immigrant Song, afundando aquele corredor estreito do departamento de Geociências em uma cena pitoresca de um filme adolescente. Mergulhei entre eles, atravessando aquela extensão sem olhar para ninguém, e não sendo olhada também (a não ser por um ou dois calvos, que eram aquele tipo de caras que só faltam abrir uma cadeirinha de praia ao lado dos armários e olhar e contabilizar todas as garotas que passavam). E, graças à Gabby da administração, uma senhorinha de meia-idade que gostava muito de mim desde que me viu fuxicando uma lata de lixo atrás do prédio das engenharias há 6 anos (longa história), eu tinha conseguido a localização da sala que eu precisava. Reto, direita, escada, esquerda, e depois mais uma direita. Pronto. Sala de Augustus D.
Bom, não era de admirar que eles o colocariam em uma posição privilegiada. A vista da sua janela devia dar para o Drexel Park, o único ponto minimamente bonito para se admirar nos arredores daquele castelo de pedra.
Suspirei. Eles já tinham colocado a plaquinha de madeira na frente da porta, deixando claro a autoridade de quem estava por trás dela. Professor-titular. Extremamente básico. Eu teria colado estrelinhas amarelas em volta do nome.
Não tinha ninguém por perto, então fiz logo: abri minha bolsa crossbody, puxei as folhas encadernadas em plástico barato e passei tudo por baixo de sua porta. Tive que empurrar um pouquinho com a ponta do tênis, mas ele passou.
Levantei de novo e dei meia volta, aumentando o volume em Landslide só para o caso de ele sair repentinamente e tentar me chamar.
Ele não saiu. Não me chamou. Não me ligou, ou mandou e-mail, ou fez qualquer sinal de fumaça, como especifiquei na primeira página do artigo. Coloquei meu nome, minhas formações, meios de contato, todo o rascunho da minha tese. E ele não fez nada.
Por uma semana. Depois por duas semanas. E estávamos caminhando para a terceira.
Perdi as contas de quantas pastas e quantas xerox precisei tirar para ficar passando pelo buraquinho da sua porta, ou encontrando um aluno qualquer no corredor e lhe dando 5 dólares pra servir de mensageiro e levá-las a Yoongi para mim (acadêmicos se contentam com migalhas, mesmo), e até teve um dia que esperei no estacionamento ao lado do seu mega Audi A8 preto, brilhante e chique, mas uma tempestade sem precedentes me obrigou a sair correndo e tentar outro dia.
Eu até tinha descartado a ideia de esperá-lo na escola no horário que chegasse para buscar o filho, mas eu estava ficando sem opções. Não queria descer nesse nível, ainda mais agora que Jihoon, aos poucos, estava começando a se soltar, e até respondia uma questão ou outra de gramática e se sentava a uma fileira de distância do fundo. Só nunca mais tocou no assunto daquele desenho, e entendi que era um território pessoal.
Eu sei que deveria respeitar a decisão de Yoongi. Sei que, teoricamente, como diziam por aí, ele tinha dado uma pausa na carreira há alguns anos, que virou fumaça no meio acadêmico, que foi embora para alguma terra feliz onde provavelmente concebeu aquele garotinho lindo, e lembrei que Bonnie tinha dito que sua esposa havia morrido quase recentemente, e tudo deve ter sido uma merda, mas me permiti, uma vez na vida (talvez não fosse a única vez) a ser egoísta e não aceitar. Eu já sabia qual seria o futuro dele caso não me ajudasse: continuaria rico, influente e dirigindo aquele Audi ou até qualquer outro carro chique que surgisse depois. O meu? Tempo de prorrogação encerrado, fracasso acadêmico, adeus à Harvard e o resto da vida vendendo peixe em um barco no rio Delaware para donas de casa locais.
Ou eu poderia continuar como professora adjunta duas vezes por semana na Kenderton e ter que voltar a jantar banana chips vencidas.
Não. Ele tinha que me dar uma abertura. Um minuto, que seja. Por isso, em uma linda tarde de fevereiro, quando ele entrou na biblioteca para buscar Jihoon, me encontrou junto, empilhando carrinhos e usando meus braços como pista de Hot Wheels.
Aquele garoto precisava muito de um irmão.
Quando Yoongi me viu ali, reduziu o passo, fechando a cara imediatamente. Não que ela já não fosse naturalmente fechada.
— Papai! — Jihoon levantou, uma alegria imensa enchendo aquela sala quando agarrou na perna do homem de novo. — Você chegou cedo de novo. Quer dizer que veio como o Schumacher?
— Ah, você sabe que eu sou muito melhor do que o Schumacher. — Yoongi respondeu, acariciando o cabelo escorrido de Jihoon, um gesto que fazia com frequência.
— Então ultrapassou os sinais vermelhos?
— Vários. A polícia tentou vir atrás de mim, mas eu escapei. — ele olhou para mim. E não era exatamente um olhar de “ah, que surpresa boa te ver aqui.”
Jihoon riu animado, riu de um jeito que eu nunca vi porque ele não ria daquele jeito na sala, não importava quantas tentativas eu e o garoto das bombinhas fizéssemos para fazer ele se enturmar. Ele não parecia um garotinho que ficava exatamente satisfeito em se isolar, mas também não se esforçava por interação.
— Então a gente vai tomar sorvete, né?
— Claro, vamos sim. — Yoongi me olhou de novo. Jihoon comemorou e correu para pegar suas coisas, que basicamente eram os carrinhos espalhados pela mesinha da seção infantil e seu caderno de desenhos. Não falei nada, e muito menos ele. Esperava que entendesse o recado.
— Tô pronto! Quero de menta com chocolate!
Quando o filho chegou mais perto, Yoongi disfarçou o maxilar travado e se abaixou um pouco na altura dele, falando em um tom brando:
— Jihoon, é o seguinte, a gente vai fazer uma daquelas apostas agora, tudo bem? Se você conseguir correr por três voltas inteiras e depois duas em zigue-zague no corredor, aquele modelo antigo da McLaren pode ser seu. Junto com o sorvete de menta.
— O McLaren vermelho do Senna? — os olhinhos dele brilharam.
— Ou o branco. São duas cores bem bonitas.
— O vermelho tem o motor da Honda. Do campeonato de 91!
Yoongi olhou para ele por um tempo até sorrir e assentir. Sorrir.
— Tudo bem, vermelho então. Agora vai lá que eu já vou.
— Tudo bem. — o garotinho se virou pra mim, me olhando com aquela carinha rechonchuda e feliz que eu nunca via, e que de repente me derreteu por inteiro. — Tchau, senhora . Obrigado por brincar comigo.
Tive vontade de chorar.
— Tchau, Jihoon.
E ele saiu, com sua mochilinha da Hot Wheels e os tênis que piscavam.
Percebi que fiquei olhando para ele por mais tempo do que precisava, porque de repente Yoongi estava perto de mim, aquela face dura estampando o rosto de novo.
— Então… o que é isso?
Pisquei.
— O quê?
— O que você tá tentando agora? Quer fazer meu filho gostar de você, pra assim ele começar a falar o seu nome no jantar e me convencer que eu deveria te ajudar?
— Nossa, não. — um riso perplexo escapou de mim. Ele continuou sério. — Eu não pensei tão longe. Mas… olha, até que não é uma ideia ruim.
— Para com isso. — disse ele, agora em um tom que beirava ao cansaço. — Olha, eu aprecio mesmo o seu carinho pelo meu trabalho, acho que você realmente leva a sério o que faz, mas a minha resposta permanece. E eu gostaria que a senhora entendesse isso, e acabasse com todas as pastas, as cartas, os pombos-correios em formato de alunos, o recado no jornal do campus, tudo isso. Eu não posso ajudar você.
— Por que não? — perguntei, tentando manter a postura impassível, como se a resposta ou decisão dele não me afetasse, apesar de que já tinha mostrado muito como eu estava meio desesperada. — Se vai me rejeitar assim de cara, ok, mas eu mereço uma explicação melhor do que “demandas da Drexel”.
— Não foi de cara, eu já rejeitei antes.
— Uma explicação, doutor D.
Yoongi bufou, e passou a mão pelo cabelo, um gesto de irritação. Não queria ter reparado em como ele ficou sexy fazendo isso.
— O Jihoon. Preciso cuidar dele, e também preciso voltar à ativa, e essas duas coisas já estão tomando todo o meu tempo. Nós dois estamos meio que… sozinhos agora. — ele baixou a voz na última frase, como se estivesse empurrando a verdade à força. Senti o peito formigar um pouco, muito parecido com o que senti ao ver Jihoon saindo. Uma coisa estranha que me dava vontade de abrir os braços e envolver outra pessoa, coisa que eu nunca fazia. — Então, não precisa mais deixar bilhetes ou ficar até mais tarde com ele, suas sementes de gramíneas já devem tomar tempo demais.
E assim, ele estava se virando, dando passos para sair, mas em um sobressalto, falei:
— Sementes de gramíneas? — falei, dando um passo à frente. — Peraí, você leu o meu rascunho?
Yoongi parou e, pela protuberância temporária do músculo embaixo do casaco, eu sabia que ele tinha fechado os olhos com força e se praguejado por ter falado demais.
Ele se virou, o rosto resignado.
— É, eu posso ter dado uma olhada rápida. Você pregou uma foto do Babe, O Porquinho Atrapalhado na frente de uma das pastas e o Jihoon viu. Ele é um pouco curioso.
— Eu sabia que o Babe ia funcionar! — comemorei. — Puxa, então até o Jihoon leu a minha tese? Eu sabia que era acessível…
— Sem essa, . — ele cortou, e eu engoli a risada. Yoongi inspirou bastante ar. — Eu li, e ela é uma boa pesquisa. É brilhante, na verdade. O tipo de coisa que vai chamar a atenção quando for publicada, pode ter certeza. — mais um suspiro. — Mas eu ainda não posso te ajudar. Não sou a pessoa certa pra isso.
Enruguei toda a testa, como se ele tivesse acabado de me falar que era uma drag queen. Todas as respostas sempre prontas na minha língua sumiram, porque ele me desarmou com o “não sou a pessoa certa pra isso.”
Como Augustus D, o inventor da patente de sensores geotécnicos que medem a degradação do solo em tempo real, não era a pessoa certa para o meu trabalho? Ele era o mais certo!
Ele não olhou para mim por muito tempo. Provavelmente porque teve de novo um daqueles momentos em que tinha falado mais do que deveria, e logo já estava saindo novamente. Andando mais rápido dessa vez.
Entrei em pânico. Eu não tinha mais planos. Se mesmo depois de ter lido o meu rascunho ele continuava me negando, o que iria fazê-lo mudar de ideia?
Pensa, pensa, pensa, pensa, ! Sabemos que você não é boa nisso fora da Biotecnologia, mas pensa!
Finalmente, antes que ele passasse pelo batente da porta, me vi praticamente gritando:
— Eu consigo uma babá pra você!
Yoongi parou e se virou.
— Quê?
— Eu disse — aproveitei para andar até ele — que arrumo uma babá pra você.
Ele me olhou por um longo longo longo longo tempo, muito parecido com aquele olhar esquisito que me lançou no auditório, como se eu fosse uma equação estranha que ele ainda não tinha conseguido resolver.
Por fim, ele quebrou o contato visual, devolvendo o oxigênio aos meus pulmões.
— Por favor, . Você não pode ser minha babá. Isso é antiético. Já trabalhamos no mesmo lugar, e você é a professora do meu filho, e nós…
— Não eu, caramba. Se eu me enfiar em mais um trabalho, vão me sobrar só 3 horas pra dormir, e eu normalmente só tenho umas 5, 6 nos feriados de ação de graças e 4 de julho, e Wonwoo me mataria se tivesse que me levar ao hospital de novo por causa de refluxo. Não sou eu, mas tenho uma amiga que tá precisando de grana e eu garanto que o Jihoon vai gostar dela.
— Eu não conheço a sua amiga.
— Não seja por isso, marca uma entrevista na sua sala que ela vai estar lá. Ela é a mais velha de 5 irmãos, eu te garanto, ela é muito boa com crianças. E daí você pode ficar mais relaxado e… ter um tempo.
Yoongi não respondeu imediatamente, mas também não se virou e saiu, o que era uma vitória. Ele coçou o cabelo de novo, umedeceu os lábios, olhou para mim e depois desolhou, até colocar uma mão no bolso e dizer:
— Eu ainda não posso te garantir nada.
— Duas horas. — levantei dois dedos pra ele. — Eu só tô pedindo duas horas do seu dia pra você ficar no laboratório e me deixar te mostrar a minha pesquisa. Depois disso, se você ainda não quiser me ajudar, tudo bem, eu encerro minhas tentativas e ligo pra outro geólogo, que vai ser no máximo mediano, mas é o que vai ter. Só duas horas, senhor Min.
Ele ficou parado, sem mover nada além dos olhos através dos meus de novo, todos os músculos faciais saltados, a cara de alguém que foi apunhalado.
O barulho de sola deslizando em piso liso foi se aproximando da porta, e as risadinhas de Jihoon faziam eco nas paredes da escola quase vazia.
E então, tudo relaxou, e Yoongi respirou fundo.
— Tá bom, marca a entrevista. Depois a gente vê o resto.
Na mesma hora que eu sorri, Jihoon apareceu ofegante, sorrindo muito mais.
— Papai, eu fiz… você tinha que ver… aquela volta…
Yoongi voltou sua total atenção para o filho, murmurando um “parabéns, garoto, agora seu sorvete pode ter duas bolas”, e agarrou a mãozinha dele.
Antes de sair, ele olhou para mim por sobre o ombro.
— Tchau, senhora .
Revirei os olhos e Belle lhe deu uma cotovelada na costela.
— Na boa, quem quer que seja a pessoa que te ensinou a beber com Ciroc ou Jack Daniels, deve estar orgulhosa pra cacete agora, porque você virou a porra de um chato.
— Não brinca. — arregalei os olhos, apoiando os dois cotovelos na mesa. — Você já bebeu Jack Daniels? Por que não me contou isso?
— Ela tá exagerando. — Wonwoo resmungou, se virando para Belle. — Você está exagerando. Por que está exagerando?
— Ele vive indo nas festas do Jeffrey, o “comedor” dos Drexel Dragons. Você já ouviu falar nele, né? — Belle o ignorou.
Dei de ombros.
— Se ele não almoça biscoitinho na cozinha do departamento ou não frequenta uma área de pelo menos três quilômetros ao redor dali, eu acho difícil conhecê-lo.
— Você esqueceu de um lugar: a sua cama. — Belle soltou com um sorriso de malícia, e quase chutei a canela dela por baixo da mesa, o que acabaria sendo engraçado porque eu já tinha bebido uns três copos de rum barato; aquela coisa ia começar a bater mais cedo ou mais tarde.
— Ele não conhece a cama dela. — Wonwoo resmungou de novo, agora um pouco irritado. Ele estava resmungando muito naquela noite, mais do que normalmente resmungava, e não dava para entender porquê. Aquela noite era uma comemoração!
— Vários caras conhecem a cama dela. E se um dia foi a vez do Jeff e você não sabe? — Belle sorriu para ele, provocando. Fiz um pfff com os lábios.
— Você tá me fazendo parecer uma vadia.
— Você não liga.
— É verdade, não ligo. Mas eu realmente não lembro do Jeffrey. — suguei mais bebida pelo canudinho. Belle fez uma cara pensativa.
— Se você não lembra, então ele devia ser tamanho extra kids.
Durou três segundos. Três segundos até o meu cérebro absorver a informação de Belle e nós duas explodirmos de risadas extremamente altas e escandalosas, fazendo as pessoas das mesas vizinhas olharem por sobre o ombro e exibirem caretas de irritação, tipo a que Wonwoo estava fazendo naquele momento (de novo!).
Se fosse em qualquer outro lugar, talvez existisse uma remota chance de sermos mandadas embora, já que aquela não era exatamente a primeira risada espalhafatosa que estávamos dando. Mas era sexta-feira, e eu tinha passado a tarde inteira olhando para uma tela azul de computador enquanto reescrevia a introdução da tese pela quinquagésima vez em uma aba e montava um vídeo onde as letras do alfabeto eram animais de um sáfari que dançavam até formar palavras em outra, Belle passou o dia atendendo ligações do trabalho enquanto andava pela casa (ela era dona de uma sex shop online, o que significava que podia ficar em casa o tempo todo, mas não tinha funcionários, então também era responsável por ouvir as queixas de clientes que aumentaram até o nível 10 do Demolidor de uma vez e foram parar no hospital, ou do cara que, acidentalmente, tinha perdido o plug anal… onde ele era colocado), e Wonwoo fez o que fazia todos os dias: malhou, jogou, bateu a meta de proteínas e ficou na biblioteca lendo ou escrevendo mais um conto para sua aula de escrita criativa. Ele não era um cara que fazia grandes coisas fora da rotina, mas quem quer que fosse a pessoa que pisou no seu pé ou derrubou seus óculos naquele dia, tinha conseguido deixá-lo bastante irritado.
E era para essa galera cansada, frustrada e até zangada com o dia e a vida no geral que existia o Mango’s, o único bar-barra-restaurante-barra-karaokê que ficava aberto até as 3 da manhã nos arredores da Drexel. E aqui eles nos deixavam gritar, já que era o único jeito de conversar quando as pessoas estavam extravasando no pequeno palanque mais à frente, explodindo o clássico Carry On Wayward Son, com as cenas de abertura de Supernatural no projetor.
— Nossa, como vocês são hilárias. Criando classificações pro pênis dos caras, realmente, muito éticas. — ele estava resmungando de novo. Olhei para Belle, enrugando meus lábios o quanto podia para não voltar a rir daquele jeito.
— Tira essa bata de coroinha agora mesmo, Wonwoo. Todo mundo sabe o que você, Jeffrey e o resto dos integrantes do Mojo Dojo Casa House do basquete fazem nessas festas, ou até no vestiário caso estejam sem tempo. — Belle puxou sua bebida pelo canudo. O dela era daquele modelo em espiral.
Wonwoo franziu o cenho para ela.
— Do que tá falando?
— Da Lista. É, a Lista! — ela apontou para ele, acusatória. — Aquele aplicativo mequetrefe de celular onde vocês jogam os perfis das garotas e dão notas na frente na forma de emoji, e eu nem preciso explicar o que o do dragão significa.
Levei as mãos à boca, chocada e ao mesmo tempo tentando desesperadamente não rir. Tinha um formigamento descendo pela minha nuca, tomando a garganta, tudo provando como eu era ridiculamente fraquinha para álcool vagabundo.
Não sei se foi isso que me fez ver Wonwoo de repente pálido e sem palavras, ou se ele estava mesmo pálido e sem palavras.
— Como você sabe do aplicativo? — ele arfou, tão chocado quanto eu. — Aliás, não existe aplicativo.
— Existe sim, e sei que tem meu nome nele, mesmo eu tendo largado isso tudo há mais de dois anos. — ela apontou para o entorno do lugar, se referindo à Drexel no geral. — Também sei que tentaram colocar o nome da nossa aqui, mas você, como um bom amigo e gostosão dos oprimidos, não deixou.
Arregalei os olhos. Wonwoo pareceu encolher e crescer, encolher e crescer milhares de vezes até resmungar baixinho algo que parecia com “isso é mentira” e ceder para o seu copo de rum que detestava. Virou tudo quase num gole só.
— Wonwoo. Isso foi ridículo! — chiei, batendo uma palma na mesa. Ele engoliu em seco. — Como você não me deixou participar? Eu queria saber a minha nota! — fiquei indignada. Belle soltou uma gargalhada e, por algum motivo, aquilo deixou a expressão tensa do nosso amigo ainda mais fechada. — Fala sério, você é um desgraçado. Qual foi a sua nota, Belle?
— Um foguinho. Mas eu não sei se isso é porque sou gostosa ou porque sabem que vendo algemas e pintos de silicone.
— Eles sabem. — Wonwoo deixou sair através dos dentes trincados. Belle estalou os dedos.
— É isso. Interesse no meu ramo de negócio. Agora em qual dos meus negócios eles querem entrar, aí eu já não s…
— Não! — eu e Wonwoo dissemos praticamente ao mesmo tempo, fazendo Belle se calar com risadinha.
Todo mundo sabia que Belle era bem ativa sexualmente, mas as coisas não eram bem como as pessoas pensavam. Além de vender uma quantidade obscena de vibradores por mês e dar uma de terapeuta para aquela garota que fez uma compra e não teve o melhor encontro do mundo usando o óleo essencial de massagem tântrica (leve 2, pague 1), ela ainda tinha um trabalho extra, um que não precisava mostrar seu rosto nem seu corpo, apenas a sua voz metodicamente abafada em sessões particulares e muito caras de sex call.
Sim, minha melhor amiga fazia sexo por telefone por 150 dólares a hora.
Hoje em dia, nada disso me importava; o quarto dela ficava a metros agradáveis longe do meu, conseguimos comer vegetais de verdade 3 vezes por semana e ela sempre trocava o leite quando eu largava a garrafa vazia dentro da geladeira.
Mas quando dividíamos um quarto minúsculo no alojamento da Drexel na tentativa número 23 de Belle de fazer uma graduação, eu particularmente odiava esse trabalho. Não só porque escutava as sacanagens grotescas que ela dizia de perto, mas porque tinha que aguentar o som alto do telefone tocando e tocando de madrugada, mesmo que Belle cobrasse um adicional de 50 dólares se quisessem atendimento depois das 2 da manhã.
Por incrível que pareça, as pessoas pagavam. E a maioria era cliente fixo.
Portanto, a maior parte das experiências que ela queria contar vinham do tele-sexo, o que não deixava de ser menos invasivo e constrangedor.
— Você sabe que eu só aceito sua putaria por telefone porque é graças a ela que conseguimos aumentar a internet. — isso era verdade. — E agora você vai cuidar de uma criança, devia se controlar ou vai acabar fazendo a voz da Bellyssima sem querer.
— Eu não tenho uma voz pra Bellyssima!
— Tem sim! — eu e Wonwoo dissemos ao mesmo tempo.
Ela apenas deu de ombros e bebeu mais. Wonwoo balançou a cabeça.
— Você vai mesmo cuidar do filho daquele cara?
Belle se ajeitou para perto dele, passando uma mão por trás do encosto de sua cadeira.
— Lindinho, deixa eu te falar: quando a sua amiga te liga 10 vezes e te deixa umas 25 mil mensagens no correio de voz dizendo que você pode salvar a vida dela fazendo uma coisa X, então você vai lá e faz a coisa X. Entendeu?
— E você faz alguma ideia de como ser babá? — Wonwoo arqueou as sobrancelhas.
— Troquei a fralda de pelo menos dois irmãos mais novos e sei todas as falas de Patrulha Canina, isso tem algum valor.
— Hum… talvez eu possa ter dito que não eram dois, mas cinco irmãos. — falei, fazendo uma careta pensativa. Aquela coisa estava embaralhando minha cabeça.
— Meu Deus. — Wonwoo revirou os olhos.
— Tanto faz, de dois pra cinco não deve mudar muita coisa. — ela deu de ombros.
— E eu também disse que você precisava de grana. Tipo muito. — continuei. Belle apoiou os cotovelos na mesa, a jaqueta de couro com as bordas meio molhadas de todas as garrafas geladas derretendo no tampo.
— Então foi por isso que ele ofereceu tanta grana? Caramba, você é foda. — e ela esticou um braço para batermos um hi-five. — Você merece uma recompensa. Uma bolsa da Chanel ou biscoitos cream cracker novinhos?
— Awn. — coloquei a mão em cima da dela. — Você sabe o que eu quero.
— Sei. Viva aos biscoitos cream cracker! — ela levantou o copo, e todos nós brindamos de novo no meio de uma nova gritaria. Quer dizer, Belle teve que puxar o braço de Wonwoo para que ele levantasse seu copo por livre e espontânea pressão.
Virei mais um monte daquela bebida até acabar. Fechei os olhos e suspirei, ficando zonza por um instante. Não fazia ideia de que horas eram, mas se estava tocando Kansas ao fundo, a meia noite já tinha ido faz tempo.
— Existe alguma verdade nesse plano ridículo de vocês? — Wonwoo resmungou, agora até tentando controlar que estava irritado. Enruguei a testa.
— Plano? Isso não é um plano.
— É, a gente não vai sugerir um trisal, prender o cara na barra da cama e pedir pra ele transferir todo o dinheiro pra nossa conta. Se bem que… — Belle semicerrou os olhos na minha direção, o sorriso aberto e perfeito se vestindo daquela astúcia que já fazia parte dela. — Ele é bem bonito.
— Eu sei. — falei, e notei que estava sorrindo. Notei que nem parei de sorrir depois. Notei que minha bochecha ficou quente.
— Ele? Bonito? As referências de vocês tá decaindo. — Wonwoo resmungou sem olhar pra gente.
— É claro que ele é bonito! E acima disso, ele é um gênio! E eu gostaria muito de tirar uma foto dele só pra divulgar no fórum dos Geologáticos, eles têm um canal só de pessoas que tentam adivinhar a aparência do doutor D. Alguém já disse que ele devia ser a cara do Alan Turing.
— Uh. Ele está mais pra cara de cantor famoso. Um gostoso que teria uma multidão de groupies nos anos 80.
— Ele não deve ter nem 1,75. — Wonwoo reclamou, os dentes trincados de novo.
— E daí? O cérebro dele deve ter o dobro disso. — respondi, com uma risada. Belle me deu uma piscadinha. — Ele é literalmente tudo e nada do que eu imaginei. Do que qualquer um imaginou. Se a apresentação que vou fazer pra ele amanhã der certo, eu juro que vou emoldurar uma foto dele. Vou criar um altar, vou oferecer comida e fazer cerimônia e todas essas coisas, vou sonhar com ele todas as noites até o meu cérebro entender que nunca deve esquecer aquele rosto.
Belle gritou um enorme “é isso aí” e brindou no meu copo quase vazio, enquanto Wonwoo… permanecia do mesmo jeito, mas agora jurei que o seu lábio superior tremeu um pouco.
— Nossa, que poético, . Quem diria que você iria se apaixonar por um velho que, além de ter recusado o seu trabalho, ainda quer te testar pra ver se você é boa o suficiente.
— Ele não é velho, ele tem 35 anos.
— Isso é 11 anos a mais do que você, parece bem velho pra mim.
Outro daqueles pequenos segundos arrastados que antecediam a explosão de gargalhadas entre eu e Belle, deixando Wonwoo de braços cruzados e aquela cara de “em que maldito lugar eu fui me meter essa noite?”
— Vocês são ridículas. — disse ele.
— Tá bom, tá bom, cheguem aqui. — coloquei meu copo na mesa e puxei os outros dois, organizando tudo no centro do tampo e pegando nossa segunda garrafa de rum de 10 dólares. — É o seguinte: eu quero ir pra Harvard. Meu grande sonho é poder passar o dia inteiro em um laboratório testando sementes que podem refazer uma paisagem destruída, escrevendo coisas que descobri no meu caderninho e poder almoçar comida de verdade ao invés de biscoitinhos murchos. Acho que já fui exposta a todos os tipos de doenças no estômago por causa disso e posso ter problemas no futuro, mas o lance é que: Augustus é minha grande chance de chegar lá. E eu sei que ele me rejeitou não uma, não duas e nem três vezes, mas eu sinto que ele vai acabar cedendo. E sinceramente, quando isso acontecer, e eu terminar a minha tese e ter que falar com vocês somente pelo telefone nos próximos 3 anos, vou lembrar que consegui por causa de vocês. Você, Wonwoo, por ter me levado para a palestra e você, Belle, por ter aceitado mais um emprego quando já tem tantos. Vocês são parte disso, e vão ter quartos próprios na minha cobertura em Toscana quando eu lançar a patente da minha muda geneticamente modificada e indestrutível, e vender por bilhões de dólares pra algum sheik da Arábia Saudita.
— Acha que vai ganhar bilhões de dólares sendo cientista? — Wonwoo falou, com a voz mais branda.
— É verdade, no máximo vou poder morar sozinha no subúrbio e ter um carro usado, mas ei, já é muito importante pra mim. Já é muito, e vocês sabem disso! Como ninguém! — terminei de encher os copos e distribuí para eles de novo. Levantei o meu. — Então, eu convoco um brinde a toda positividade que o meu destino pode se tornar. E pelo bem da minha tese. Saúde!
Belle disse “saúde” e Wonwoo não disse nada, mas brindou com a gente sem precisar ser arrastado por isso. Eu sorri, olhando para eles em meio à semi escuridão engordurada do Mango’s, o cheiro perpétuo de urina seca e as conversas ao redor em meio aos gritos do palco do karaokê, sabendo que eles eram mais do que meus amigos, eram os ruídos de uma família que eu nunca mais poderia ter.
— E seja gentil com o Jihoon, ele é um garotinho fofo e gosta de carrinhos.
Belle torceu os cantos da boca para baixo, assentindo.
— Posso lidar com carrinhos. Só não sei se quero lidar com fotos de gente morta espalhada pela casa.
— Fotos de.. quê? — franzi toda a testa. Meu copo parou na metade do caminho.
— É, ele tem a foto de uma mulher em cima da mesa dele. A esposa falecida, eu aposto.
Continuei sem beber. De repente, senti uma onda de alguma coisa que não fez o menor sentido, mas que me faria ser capaz de me encolher debaixo da mesa daquele bar e agarrar meus joelhos, mesmo que nenhum ser humano com os neurônios no lugar se atreveria a encostar no chão do Mango’s. A ciência encontraria pelo menos 50 espécies novas de germes apenas caminhando em volta do banheiro.
Mas imaginei a cena que Belle contou, e podia estar bêbada aquela altura, mas só de pensar naquele homem bonito, inteligente e descolado (três características básicas que vou me perguntar pra sempre como ele não foi encontrado nas últimas décadas) encarando as fotos de uma mulher que não estava mais aqui, mantendo as roupas dela no armário, ainda usando aliança em algumas ocasiões e tudo isso, me dava uma dor fodida no peito.
— Uau… — murmurei, e tinha certeza que minha voz escapou meio mole. — Ele ainda deve amar ela.
Encarei o próprio líquido claro do meu copo. Quando levantei a cabeça de novo, Wonwoo estava me encarando fixamente, não daquele jeito resmungão, mas me encarando da forma como fazia normalmente (como alguém que gostava muito de mim).
— Tem muitos nomes pra isso, . Não sei se amor é o caso. Ele só deve sentir falta dela. — disse ele, dando de ombros. Aquilo não me convenceu. — Mas é, não dá pra competir com um fantasma.
Parei e pensei. Eu devia perguntar um “do que você está falando?” Ou “não é nada disso que você está pensando”, mas sinceramente? O álcool me tornava uma pessoa menos hipócrita, então sim, eu poderia admitir, nem que fosse só pra mim mesma, que pensei em Min Yoongi. Pensei do jeito que toda mulher já pensou no Henry Cavill pelo menos uma vez na vida.
Mas não era meu objetivo. Ele estava voltando à ativa depois do sumiço, estava se restabelecendo na Drexel, estava criando um filho sozinho. Eu jamais estragaria ou atrapalharia isso; eu era boa em deixar para lá. Em não pensar. Belle tinha inveja dessa minha parte.
Falando nela, seu suspiro alto foi o que tirou a mesa daquele repentino silêncio:
— Bom, eu não ligo pra competição. Mas adoraria animar a noite de um viúvo super gato às duas da manhã, e nem estou falando do telefone.
Agarrei um guardanapo perdido e joguei nela, rindo, agradecida por ela ser essa torre de beleza e entusiasmo que sempre me faria rir a qualquer hora.
Quando olhei para Wonwoo de novo, ele ainda estava me encarando daquele jeito estranho e fixo, mas agora não parecia irritado. Parecia só… triste.
Alguém deve ter pisado no seu pé com muita, muita força.
A maior parte do corpo docente era formado por professores em fim de carreira, aquela gente que conseguiu ser publicada na Science em 1988 e nunca mais recuperou seus 5 minutos de fama, pessoas frustradas que adorariam largar tudo e ir velejar ou fazer cerâmica, mas tinham hipotecas, empréstimos, filhos adolescentes e tudo que a vida adulta trazia. No departamento de Biologia, era normal ver um ou outro assalariado andando meio torto, com a cabeça baixa e bolsas enormes de olheiras que vinham das circunstâncias de sua triste realidade: “muito trabalho, pouco lucro.” No caso, era bem pouco lucro mesmo.
É, a ciência tinha dessas. Melhor embarcar quando estivesse realmente convicto da ideia de uma qualidade de vida extremamente mediana.
Mas em geral, as pessoas eram legais, mesmo que fossem deprimidas e mal pagas. O cara mais descolado que conheci no campus foi um professor chamado Kylo que só vinha trabalhar de terno e dirigia um Camaro antigo furiosamente laranja-avermelhado. Ele o dirigia às vezes em zigue-zague na saída, estacionava em vagas que não era sua, e aparecia de óculos escuros pelo menos três dias por semana. Ninguém ficou surpreso quando ele foi demitido por porte de drogas, mas ainda assim, ele era irado!
Desde então, a Drexel tinha retornado ao seu coeficiente de mesmice de sempre de professores cansados e irritados. Até a chegada de Augustus D.
Teoricamente, o doutor D. só era famoso entre os alunos do departamento de Geociências e para qualquer pessoa que se interessasse por rochas sedimentares, mas assim que estacionou em sua nova vaga na frente da entrada com seu Audi A8 preto e desceu dele usando uma jaqueta de couro e sapatos Oxford de bico fino reluzentes… Bom, ele tinha virado a nova atração do campus.
De alguma forma, se reparasse bem, o doutor D. era igualmente cansado como os outros professores, mas, diferentemente do resto, não parecia ser algo exclusivamente do trabalho. E, conforme seu nome ia se disseminando pelos corredores, as pessoas ficavam mais confusas ainda de como um cara daqueles, com seus títulos e artigos riquíssimos ainda em alta, viria trabalhar nesse lugar que todos lutavam para sair. Não era pela grana, óbvio. Ele com certeza já tinha bastante dinheiro, mas o misterioso motivo tinha se tornado até assunto de debate nas mesas de almoço e na pequena academia do alojamento: “ora pois, ele deve estar envolvido em algum escândalo pra ter sumido daquele jeito e voltado agora.”
“Soube que ele tem um filho. Nem sabia que ele era casado.”
“Já viram o carro dele? Não dá pra comprar aquilo com salário da Drexel.”
“Eu olhei para os sapatos dele, isso sim. Parece no mínimo um Berluti, ou Salvatore Ferragamo. Será que ele é casado ainda?”
“Ele tem cara de divorciado.”
“Por que alguém se divorciaria desse homem?”
“Vai saber. Ele pode ter preferências sexuais bizarras.”
“Eu estaria disposta a todas as bizarrices com ele.”
Era nessa hora que eu desistia de ouvir e apertava o play do meu walkman, saindo do planeta Terra por alguns instantes. De alguma forma, as discussões sobre Yoongi estavam me irritando, porque elas não paravam. Quando se era novidade, eu entendia o assunto durar, mas já tinha se passado 3 semanas e as pessoas ainda estavam falando.
Quando foi a vez do Camaro vermelho e do professor traficante, a fofoca não durou nem 3 dias.
Naquele dia específico, passei quase o tempo inteiro de fones, lendo e relendo toda a minha apresentação, ajeitando o laboratório pela milésima vez enquanto me dirigia a todos os cantos, todos os pontos e qualquer coisa que pudesse estar fora do lugar. Era a minha oportunidade.
Yoongi tinha dito que iria ao laboratório às 14:00 e sairia às 16:00, tendo eu terminado ou não. Duas horas, você disse. Só duas horas, ele falou com aquela voz grave e séria ao me passar o recado, quando entrei na sua sala pela primeira vez. Fiquei sentada naquela cadeira desconfortável olhando fixamente para ele, tentando prestar atenção no que ele falava (a conversa era sobre como havia sido o primeiro dia de Belle com Jihoon e o garotinho tinha se amarrado nela, portanto, o negócio estava fechado), fazendo todo o possível para não virar a cabeça e procurar a foto. A esposa. Qualquer vestígio nela que pudesse me dizer que ainda amava uma mulher que não estava mais aqui.
Mas consegui me controlar muito bem e saí bem rápido de lá, com raiva e vergonha de mim mesma, porque eu não podia deixar minha curiosidade, ou atração, ou fascinação por esse homem roubarem meu juízo.
Às 14:00 em ponto, ele bateu na porta branca, e corri para abri-la e deixá-lo entrar.
— Oi, Yoon… doutor D. — me corrigi na mesma hora. Ele caminhou para dentro, revestido de preto das botas à jaqueta. — Posso te chamar de Yoongi? Ou prefere Augustus? Senhor Min? Eu andei pensando nessa coisa de nomes, mas talvez você…
— Só doutor D. enquanto estivermos aqui, senhora . — ele respondeu em sua voz baixa e firme, escaneando o espaço com seus olhos de águia. — Esse é o meu nome.
— Min Yoongi também não é o seu nome? — perguntei, e ele virou a cabeça para mim na mesma hora. — Quer dizer, quando você está na escola, a Bonnie só te chama assim. E você não tem cara de ter um alter ego.
Vi seu pomo de adão subir e descer disfarçadamente enquanto ele repuxava os lábios e enfiava uma mão no bolso.
— Yoongi é meu nome de nascença. Da Coreia. Quando me mudei pra cá, precisei de um novo.
— Precisou?
— É uma boa ideia quando você consegue uma cidadania tão longe de casa e a maior parte das pessoas não sabe pronunciar o seu nome. Foi mais fácil assim. E eu gosto de Augustus.
— Eu também gosto. — declarei, com um sorriso simpático. Ele pareceu ficar ainda mais sério do que antes, se é que era possível. Falei algo errado? — Quer dizer, eu também gosto de Yoongi, e já tive aqueles adesivos de Doutor D é D+! que imprimi da comunidade dos Geologáticos, e os dois nomes soam muito bem. Eles combinam com você, e também ficam ótimos em adesivos. Quase ninguém no mundo pode dizer isso do próprio nome.
Ele inspirou uma tonelada de ar pelo nariz, e percebi que, inconscientemente, juntava as mãos na frente da barriga e raspava um dedo no anelar esquerdo, desfazendo o movimento logo depois.
Não tinha aliança. Mas alguma coisa me dizia que tinha, há pouquíssimo tempo, tipo antes que ele pousasse na Filadélfia.
— Tudo bem, senhora . Pode usar o nome que quiser. Agora podemos começar?
— Por falar em nomes, a gente podia aproveitar e esclarecer aqui que senhora não combina nada com isso. — apontei para o meu rosto, descendo pelo torso. Ele franziu o cenho. — Se quer ser educado e formal, tudo bem, mas é senhorita , funciona muito melhor. — e levantei o meu próprio anelar esquerdo, mostrando que estava vazio.
Yoongi parou, encarando meu dedo sem anel por um tempo até longo demais, como se quanto mais olhasse, mais chance tinha de o meu feitiço de invisibilidade acabar e o anel aparecer. Foi um minuto arrastado até ele mover a cabeça de novo e limpar a garganta, levantando as mãos para tocar o próprio dedo, mas desistindo da ideia no meio do caminho e enfiando as duas nos bolsos.
— Ah, bem… Desculpa, estou acostumado com professoras do fundamental sendo casadas.
— Conhece tantas professoras assim?
— Mais do que eu gostaria. — ele respondeu em voz grave, e me senti tentada a perguntar, mas puxei a minha língua de volta para dentro. — Jihoon teve que mudar de escola algumas vezes nos últimos anos. — e ali estava a resposta que eu e minha língua estávamos prestes a falar.
— Ah, é, claro. — ri pelo nariz, tentando soar como alguém que nem estivesse louca por qualquer pontinha de informação dele. — Acho que existem muitas professoras do ensino infantil de 24 anos em uma cidade com um milhão de habitantes que não esteja casada com o namoradinho do colégio e, quem sabe, com 2 filhos. Eu não diria a mesma coisa de Adamstown, lá é tipo o maior exemplo vivo do efeito de gargalo genético.
— Nem namorado? — ele perguntou, e pela forma como a pergunta saiu rápida e quase quebrada, deu para ver que soltou sem querer. — Quero dizer… 24 anos. Você é bem jovem.
— Obrigada. Quem disse que cream crackers vencidos não fazem efeito? — ri. Ele não correspondeu. — Piada interna. Não, eu não tenho namorado, senhor Min. Quando eu saio com um cara, a conversa quase sempre é sobre que horário vago dos 3/4 do meu dia que eu passo nesse lugar é o melhor pra trep… — parei, mostrando minha própria cara de assustada. Percebi que ele desviou os olhos rápido, e uma pontinha vermelha de rubor atravessou bem em cima dos ossos saltados daquela mandíbula irritada. — N-não importa. Eu namoro com a Drexel e provavelmente só vou pensar em casamento quando não tiver que abrir um livro de Sistemática de Plantas nunca mais, o que não é um plano de curto prazo. Vamos começar?
Andei até o outro lado, xingando a mim mesma por falar demais. Geralmente eu soltava aquele tipo de coisa quando me sentia confortável com alguém, o que era muito difícil fora da minha bolha chamada Belle e Wonwoo, então fiquei ainda mais confusa e irritada comigo mesma. Por que me sentiria confortável com Yoongi? Ele era uma muralha de gelo vivendo na escuridão perpétua, um homem centrado nos seus próprios interesses, não é sensato compartilhar histórias de transas de uma noite no banco traseiro de um carro com pessoas assim.
Abri a estufa, revelando minhas amostras em placas de petri e potes com solos arenosos e argilosos, ouvindo seus passos atrás das minhas costas enquanto ele chegava ao meu lado, mas ainda afastado por vários centímetros de distância.
— Essas são as minhas gramíneas. Deram um trabalhão para serem coletadas, mas consegui ajuda de uns veteranos, o que é um feito quase inédito na academia, oferecendo meus serviços na raspagem de biópsias de pele de cachorro e assim todo mundo saiu feliz. Eles foram coletados no parque das pedras perto da escola, e mantidos a 30 graus…
Fiz o que fazia de melhor: falar pelos cotovelos sobre plantas que ninguém liga, mas que guardavam um enorme potencial para o planeta. Eu tinha pouquíssima oportunidade de fazer aquilo. As únicas pessoas que realmente me ouviam quando o assunto biomarcadores vinha à tona era meu orientador, Kalil McDiarmid (que vivia me mandando resumir tudo porque já sabia do meu rascunho de cabo a rabo), e Wonwoo, que sempre me “ouvia” enquanto estava com a cabeça inclinada para trás no sofá ou no banco da biblioteca, dando igual atenção ao meu monólogo e à sua fadiga. Tenho certeza de que ele não se lembrava de uma única vírgula do que eu disse, mas sempre me deixava falar quando eu quisesse. Ele era o meu patinho de borracha.
Depois de uns 20 minutos, eu já estava me movendo, indo para o meio do laboratório agora para mostrar o que eu tinha visto no microscópio, aquela gramínea que era sim uma espécie pouco conhecida, mas que eu não conseguia compreender totalmente sua aplicação no tipo de solo alvo do meu objetivo, porque ia além da minha área e além de um senso comum acadêmico. Yoongi se inclinou para frente para ver melhor, ajeitando os olhos nas oculares do aparelho e ficando um tempo ali, o que foi uma das melhores cenas que eu presenciei no ano: o cérebro do grande Augustus D. trabalhando. Eu quase podia ver as engrenagens girando ao lado do seu ouvido.
Ele fez um som quando se endireitou novamente. “Hum”. Esperei dois segundos e entendi que era para continuar, então já estava falando de novo quando ele abriu a boca, ainda com os olhos na placa de petri da mesa do microscópio:
— Parecem sementes de capim-mombaça. — murmurou, olhando para as duas amostras consecutivamente: sementes e solo. — Algumas delas se formam ao redor de formações rochosas e secas, como no cerrado brasileiro e outros países tropicais. São dispersadas no ambiente pelo vento, pela chuva, pelos insetos, até por animais maiores fazendo migração. Mas desse jeito… — ele parou, franzindo o cenho para o que via, e só depois me olhando de soslaio. — As condições de solo que você criou ali dentro deveria ter feito uma planta dessas apresentar um sistema radicular perto do profundo, mas elas passaram desse ponto, se espalharam completamente, cresceram além do normal sem mudar a estrutura do caule. Dá pra ver novos nós, onde ela provavelmente vai crescer mais. Provavelmente significa que ela pode absorver mais recursos da água e suportar os períodos de seca mais do que qualquer outra. Isso… É mesmo uma descoberta.
Ele me olhou, genuinamente impressionado. Não sabia se devia, mas abri um enorme sorriso. Quis dar um pulinho no meu lugar, quis estar usando minha legging de crochê e chamar Belle para ir ao Mango’s sem ter hora de ir embora. Wonwoo estava do outro lado da cidade nesse momento em alguma roda de poesia em um pub subterrâneo, mas eu iria exigir sua presença de qualquer jeito.
Acho que Yoongi notou meu espasmo de felicidade, porque deixou o canto da boca se erguer um pouquinho, só um pouquinho, relaxando toda a sua expressão sempre tensa ou avoada.
— E então? — perguntei com ansiedade. Ele se virou de novo para mim. — Já consegui te convencer?
Ele abriu aquele sorrisinho de novo, um pouco maior dessa vez, me deixando hipnotizada por um momento. O cara nem chegou a mostrar os dentes, mas já parecia dezenas de vezes mais corpóreo, mais humano, embora você nunca pudesse dizer quanto tempo ele ficaria assim.
Daquela vez, durou quase um minuto inteiro. Uau.
— , só na semana passada, passei pelo menos 27 horas do meu expediente com a minha sala lotada de professores e doutorandos, todos eles enchendo a minha mesa e a minha caixa de entrada de propostas de colaboração, análises e tudo que você possa imaginar para conseguirem meu nome no trabalho deles. Todas pesquisas inovadoras, chocantes, que parariam o meio acadêmico por pelo menos 6 horas pra discutirem sobre aquilo. O que não falta nesse campus e em qualquer outro do mundo são descobertas. Não é uma espécie nova que vai me fazer abrir mão do meu tempo escasso pra ceder algumas horas para a sua, principalmente por sementes de grama. — a voz dele percorreu aquela sala inteira até de fato chegar em mim, congelada no próprio lugar, sentindo a garganta apertar, e tudo ficava mais apertado naquele calor atípico de aquecimento global no início da primavera.
Tentei engolir em seco enquanto assentia. Ele não ia ganhar isso tão fácil assim.
— Você está certo, eu sou só mais uma na fila de pobres coitados que querem fazer alguma coisa de útil na vida, mostrar que é inteligente e, quem sabe, ganhar algum respeito por isso, como toda essa gente que você acabou de falar. Com certeza seria uma das pessoas entulhando a sua sala, caso você a abrisse pra mim. — suspirei, e não desviei os olhos. — Mas você leu o meu trabalho, doutor D. E aceitou vir até aqui. Então não me venha com essa de que nada é capaz de te fazer doar um pouco do seu precioso tempo quando as minhas sementes de grama o fizeram.
Yoongi ficou estático, olhando para mim de um jeito que ia além daquele outro olhar “que raios de fórmula matemática é você que não lembro de ter visto na vida e não consigo resolver?”; esse novo de agora era como se eu fosse o gato de botas mostrando a espada para ele, chamando-o para um embate, o que, convenhamos, não era motivo para medo e sim de deboche.
Mas ele não estava debochando de mim. Só estava… olhando. E odiei aquele calor desproporcional voltando de novo, mesmo com o ar-condicionado no máximo, mas parecia que todo o ar frio estava escapando pelas rachaduras das paredes.
— Estou certa, né? A minha insistência deu certo, você leu o meu trabalho, e tenho certeza que Jihoon e Babe, o Porquinho Atrapalhado não tiveram nada a ver com isso. — falei, recuperando a postura. — Por que fez isso? Com tantas propostas interessantes e com certeza bem mais compatíveis com a sua linha de pesquisa.
Yoongi levou uma palma na nuca, vasculhando o laboratório novamente, talvez até mesmo notando as rachaduras que estavam aqui desde a era mesozoica.
Por fim, parou de ver tudo e voltou a me ver.
— Porque fiquei curioso, senhorita . Curioso pra saber até onde pretende ir com essa ideia. — disse. Agora eu quem franzi as sobrancelhas. — A sua pesquisa é boa. Não boa, ela é brilhante. Me deixou curioso, me fez ver uma luz no fim do túnel das ciências ambientais, que não descobre nada significativo há anos, mas… — ele girou os olhos de novo. — Acho que sua pesquisa é boa demais pra isso aqui.
Levei um tempo para entender.
— Aqui? O laboratório de Biologia?
— A Drexel, . Todo esse lugar sempre serviu para o básico. Você se virou bem com os recursos que tinha, economizou na água destilada, no álcool em gel, pode até ter economizado no produto de limpeza que usa na bancada, e não sei o que você pretende fazer depois de apresentar sua tese, mas tem uma enorme chance da sua pesquisa ser refutada em algum momento porque não foi testada nas melhores condições, o que torna seus resultados questionáveis. Infelizmente, é assim que as coisas funcionam.
Sofri algo muito parecido com um tapa na cara.
— O… quê?
— A ciência é assim. Como eu disse, existem pilhas de descobertas chegando a todo minuto de todos os dias. Tenho certeza que só não divulgaram a cura do câncer ainda porque não chegaram nesse arquivo na fila imensa de outros trilhões de demandas. Existe política e empresários nessas coisas, e uma máfia das indústrias farmacêuticas e ambientais que vão escolher o que vai dar mais grana pra eles, não o que vai mudar o mundo. É a realidade feia e patética da nossa sociedade. Então, se você não quer…
— Eu quero ir pra Harvard. — interrompi, antes que eu sufocasse. — É isso que eu quero. Quero ir procurar plantas novas na América Latina e depois passar o dia inteiro dissecando cada uma delas, colocando em baldes de solo que eu mesma criei e pensando em jeitos lunáticos e talvez impossíveis de transformá-las em um milagre pra um lugar sem esperança, enquanto ganho uma bolsa que me permita tomar um sorvete de vez em quando e não procurar versões mais baratas de um jeans mediano. Onde eu possa ter uma sala em que os ar-condicionados funcionem em vários comandos, e não só em ligado ou quebrado. Que eu possa comprar um telefone novo que não me deixa na mão toda vez que preciso voltar a pé pra casa, que eu possa dizer para os meus amigos que tudo bem eles passarem o Natal comigo porque dessa vez vou fazer uma ceia com eles e ficar bem com isso, já que é a única coisa que uma garota órfã pode fazer. Aliás, adoraria comprar o vinil que meu pai tanto gostava e nunca podia porque ninguém mais vende essas coisas por menos de 70 dólares, e seria ótimo não precisar me deslocar para o outro lado da cidade pra um emprego de meio período que não é meu favorito, mas não importa, todas essas coisas não importam se elas vão me levar para o caminho de Harvard. É isso que eu quero, doutor D. E… — o constrangimento fez minha voz sair num sussurro. — Eu só quero saber se o senhor acha que eu consigo.
Meu pulmão estava tão comprimido na caixa torácica que eu devia tentar fazer natação de novo. O ar começou a esquentar como antes, mas dessa vez eu sabia que aquilo estava vindo de dentro de mim, com todo aquele sangue correndo rápido pelo meu corpo inteiro enquanto forçava a cabeça e os olhos a permanecerem colados com os de Min Yoongi.
Eu não sabia traduzir sua expressão. Ele não parecia estar pensando em nada, ao mesmo tempo que parecia estar me julgando de todas as formas desconfortáveis que existiam. Mas seja o que for… estava me olhando de um jeito que ninguém nunca olhou.
Daí, de repente, ele se mexeu e refez o caminho para a estufa, indo para a parte dos botões de regulagem, puxando o indicador para muito longe do que estava. Arfei na mesma hora, mas não consegui dizer nada. Por que ele estava mexendo na estufa desse jeito? Ela já era péssima, pelo amor de Deus!
Então, ele se virou para mim e apontou para a parte de dentro.
— A temperatura tá errada. Se você continuar colocando em 30 graus, vai levar meses até conseguir ver alguma coisa, e se tivesse reparado antes já poderia estar com todos os dados prontos. E também… — ele deu um soco na parte de cima. Quase dei um pulo de susto. A máquina fez um barulho de gorgolejo. — Isso aqui é uma porcaria. Não tem a potência certa, e vai acabar danificando as amostras, e você vai precisar de muito mais tempo para os testes. Você tem esse tempo?
Engoli em seco. Yoongi viu a resposta na minha cara.
Ele foi até o microscópio, regulando a platina para baixo.
— Essa amostra é boa, mas podia ser excelente se fosse vista por um microscópio confocal ou estereoscópico, te daria a dimensão exata do tamanho da raiz. Aquela soda cáustica está vencida, não se pendura jalecos um em cima do outro do lado de um erlenmeyer cheio de ácido sulfúrico, aquela geladeira tá chiando de um jeito que deixa na cara que ela vai parar a qualquer momento e detonar todas as culturas que existem ali dentro, e não se remenda lamparinas com faixas de couro. — ele foi apontando para todas as direções, os dentes trincados um no outro, os olhos indignados. — A sua pesquisa não cabe aqui, senhorita . Não nesse laboratório. Se fosse sensata, mudaria de ideia agora mesmo e pegava algo mais fácil.
Abri e fechei a boca, ainda tentando voltar à realidade depois de todo aquele discurso.
— O quê… Eu não vou mudar de ideia!
— Não vai? — ele se aproximou um pouco de mim, recostando a mão na bancada ao lado, agora com a expressão mais suavizada. — E por que não vai? Acha que Harvard não vai testar sua tese? Acha que eles aceitam um projeto que deu certo no papel, mas que na realidade faltaram aqueles 0,5% de saturação que aquela estufa não vai te dar?
— Mas… os cálculos que eu fiz até agora, eles estão…
— Você é uma cientista, senhorita , e ainda só se importa com o que está vendo agora? Não com o que pode ver? — ele ergueu uma sobrancelha. Não soube responder. — Sei que é difícil desistir de uma tese tão em cima da hora, mas se você estender…
— Eu não vou desistir. — minha voz aumentou algumas oitavas. Estava prestes a mastigar as próprias bochechas para não soltar um palavrão para ele.
— E repito: por que não vai desistir?
— Porque esse é o trabalho da minha vida, seu babaca. — as palavras escaparam da minha boca sem mais nem menos, e minha língua parecia ter gosto de gasolina. — Porque estou desde os 16 anos nesse lugar, só esperando uma oportunidade de sair sem olhar pra trás, sair do lugar em que meu pai morreu, e onde eu perdi tudo, que a vida foi uma completa filha da puta comigo. As gramíneas literalmente me deram um motivo pra levantar da cama naquele alojamento, de fazer alguma coisa proveitosa com o meu cérebro minimamente funcional que não fosse pensar nas minhas merdas, então não, eu não vou desistir da minha pesquisa, eu não sou mais um pedaço de papel na sua mesa abarrotada, e vou levar essa descoberta pra Harvard, quer você acredite ou não.
E foi bem ali, no meio do laboratório de Biologia da Drexel cheio de defeitos e caindo aos pedaços, que eu joguei fora a chance da minha vida.
Teria que preparar meu psicológico para quando chegasse em casa e chorasse pelas próximas 3 horas, até Belle voltar de seu novo emprego de babá, ver meus olhos vermelhos, acionar o SOS do Mango’s e me pagar uma margarita. Situações desesperadas = medidas desesperadas. E eu precisaria de mais do que uma margarita depois que Wonwoo chegasse e dissesse o clássico: eu te avisei.
Mas naquele momento, parada na frente dele, só consegui firmar os ombros e parecer tão confiante quanto eu me sentia. Porque eu acreditava na minha pesquisa, sabia que ela daria certo, e nem o enorme Augustus D. me faria duvidar disso.
Esperei que ele fechasse a cara e nem se desse ao trabalho de responder. Esperei que ele saísse e, de bônus, dissesse na primeira esquina do departamento o quanto eu era louca e mal educada. Os professores remanescentes que se importavam com alguma coisa talvez passariam a me evitar e dar toda razão à voz suprema do novo ídolo.
Mas então, os ombros dele de repente relaxaram e sua boca foi se abrindo lentamente em um sorriso. Um sorriso de verdade. Com os dentes aparecendo, mesmo que só uma pontinha da arcada superior. Como se eu tivesse dito exatamente o que ele queria ouvir.
A raiva queimando no meu sangue foi substituída por gelo, causando um embrulho estranho no meu estômago. Yoongi umedeceu os lábios e olhou para trás dos meus ombros, ajeitando a jaqueta.
— Mantenha a temperatura em 50 até amanhã às 10:00. Depois, abaixa pra 30 por mais 3 horas e aí desliga. Empilha todas em uma caixa térmica e me encontra na minha sala. — ele olhou para o relógio de pulso, e levantou o queixo de novo. — Tenho que ir, Jihoon tá me esperando.
E ele já estava dando as costas e indo para a porta de saída.
Levei um tempo de segundos eternos até me mexer de novo.
— Ei! — falei alto quando ele encostou na maçaneta. — Mas… o quê? Como? — praticamente sussurrei.
Yoongi quase sorriu de novo, mas não chegou nem perto do anterior.
— Você vai pra um novo laboratório, um onde a estufa funciona e o ar-condicionado também. — ele puxou a maçaneta, deu um passo para fora e parou no batente. — E joga essa placa do microscópio fora, ela já desintegrou os componentes importantes há muito tempo, você estava olhando um cadáver de semente semi desenvolvida. E também… — agora ele pareceu puxar uma quantidade massiva de ar pelo nariz, ruborizando um pouco, bem pouquinho. — Vê se usa uma blusa que não mostra seu umbigo, pode ser? Aquela soda cáustica pode estar vencida, mas ela ainda te daria uma queimadura de segundo grau, e não vamos esquecer do ácido sulfúrico. Seguir as regras básicas de segurança do laboratório é o primeiro passo pra trabalharmos juntos, senhorita . Nos vemos amanhã.
Eu não conseguia definir o que aquilo era. Tinha um sabor que era meio sexy, e lembrava o verão, a época em que as frutas amarelas estavam em alta: laranjas, toranjas, lichia, abacaxi, melão… aquilo podia ser a mistura de todas elas.
Joguei a garrafa na lixeira do laboratório, que era daquelas enormes, com fechamento automático, e ainda com tecnologia anti-odor. Não apenas isso, mas, se por acaso estivesse entediada e quisesse triturar aquela garrafa por puro entretenimento, bastava colocá-la no triturador criogênico e ver a mágica acontecendo. O pedaço de plástico viraria um bloco de gelo e depois seria cortado em pedacinhos, ou se tornaria uma tampa bem pequena no equipamento de compressão, ou uma trilha de franja de plástico no modo moedor. Em qualquer uma das formas, dava para ver aquela coisa se transformando em farelinhos no final.
Já tinha feito isso uma vez com um copo de café, e Yoongi me flagrou bem na hora. Para ele, diversão e trabalho não eram coisas que se combinavam.
Já fazia 2 semanas que eu tinha me mudado do muquifo de laboratório da Biologia e vindo parar em um complexo escondido bem atrás do departamento de Geociências, um montante de tijolos vermelhos com vidro e metal que tinha sido recém construído e era simplesmente iradíssimo. Fiquei sem dizer uma única palavra durante todo o tour que ele fez comigo, me mostrando equipamentos novinhos e que custavam milhares de dólares, bancadas impecáveis, acessórios que ainda nem foram usados, e sem nenhum cheiro de coisa morta ou de látex como era no outro.
— Nessa estufa, você pode programar as temperaturas. Vamos começar com 30 graus, e pôr pra aumentar em 10 daqui a 3 horas. — ele explicou enquanto colocava minhas amostras com muito cuidado naquela coisa enorme e brilhante de aço inoxidável que eu só sabia que laboratórios particulares tinham.
Onde a Drexel tinha conseguido tanto dinheiro assim? O reitor só se interessava às vezes pelas reclamações de insalubridade que lotavam a ouvidoria, e no máximo ordenava alguns reparos nos aparelhos estragados, não os substituía por um novo. Nada nunca era novo.
Mas todo aquele lugar que eu estava pisando era uma prova do impossível: esse campus velho, com esquinas e mais esquinas de prédios ainda mais velhos, poderia estar começando a sacudir a poeira acumulada dos séculos e retomar a rota para se tornar novamente parte da Ivy League. Com sorte e otimismo, isso poderia ser possível em uns 20 anos.
Eu estava boba demais para acompanhar o que Yoongi falava direito, e achei o máximo ele ter visto isso e me deixado sozinha naquela imensidão, onde eu podia tocar e testar o que eu quisesse pelo tempo que quisesse.
Demorou um pouco para que o meu cérebro processasse aquilo: Min Yoongi. Doutor D. Meu ídolo acadêmico estava trabalhando comigo na pesquisa da minha vida. Foi o maior SOS Mango’s que já mandei para Wonwoo e Belle: O impossível existe! RODADA DUPLA POR MINHA CONTA (limitado a 20 dólares)!
E depois de duas semanas, eu ainda estava aprendendo a mexer no quê e como, mas já tinha captado a maior parte das coisas e aceitado que, é, ele estava certo: seria praticamente impossível entrar em Harvard com a qualidade do material que eu usava; grandes tubos de álcool velho e misturado, húmus de minhocas não muito vivas e ágar que não gelificava há meses. Agora, ali naquele paraíso, o rumo das minhas amostras tinha avançado em questão de dias.
— O que você comeu? — a voz dele soou retumbante lá da porta, me dando um leve susto, quase me fazendo manchar uma ficha inteira de anotações com meu marca-texto lilás.
— Hum… o quê? — franzi o cenho. Ele contorceu um pouco o nariz.
— Que cheiro é esse de… Laranja?
Ai, fala sério. Lixeira anti-odor, o primeiro equipamento a ser consertado por aqui.
— Ganhei uma bebida de graça na análise sensorial da Engenharia de Alimentos. Essa gente é tão gentil.
— Você ganhou? — ele ergueu uma sobrancelha enquanto se aproximava da bancada onde eu estava sentada.
— Sim? — pisquei. — Eu tive que pedir um pouco de metanol emprestado pra fazer o teste de pesticida e saí de lá com essa coisa que é meio laranja e tem gosto de laranja, mas vai saber o que é de verdade. O cara que fez disse que era refrescante.
Yoongi fez um som que eu já tinha ouvido antes, mas que não fazia ideia do que era: um grunhido, risada, tosse, alguma coisa que surgia no fundo de sua garganta e nunca vinha acompanhada de um sorriso.
Ele desviou os olhos e apoiou a bolsa pasta na outra cadeira enquanto puxava seus inseparáveis papéis presos em clipes.
— Você e os seus presentes de corredor… — murmurou, passando páginas, como se estivesse lendo algum enunciado. Era o que ele fazia na maior parte do tempo: lendo algo e comentando sobre ele.
Mas aquilo tinha sido para mim.
— Como assim meus presentes de corredor?
— Aqueles chocolates da semana passada. O suco de uva há 3 dias. O capuccino de ontem. — ele ergueu os olhos rapidinho do papel. — Os seus presentes de corredor.
Senti que, no fundo, ele estava zombando de mim, mas não parecia exatamente isso.
— Ah… São só umas pessoas legais que eu por acaso conheço.
— Do bar.
— Ou da biblioteca.
— Da biblioteca do bar.
— Como sabe que o Mango’s tem uma biblioteca? — arqueei as sobrancelhas. Ele finalmente tirou os olhos das folhas e as colocou na bancada de epóxi.
— Eu não sabia, mas foi um bom chute. E a informação é interessante. — ele apontou o dedo para algo no texto. — Tão interessante quanto vai ser ver você responder por que o tempo de saturação da amostra 3 está tão diferente assim da 2?
Puxei a folha para mim e semicerrei os olhos. Expliquei para ele que tinha programado a estufa de forma errada (de novo) e que deu uma quebra no resultado, mas que não tinha sido nada demais, já que era um experimento inicial, e não o definitivo. Ele negou na mesma hora e me mandou fazer de novo. Eu quis abrir a boca para contestar, mas seria perda de tempo.
Descobri essa verdade sobre Augustus D: ele era exigente. Tipo demais. Meu orientador me convocava uma vez por semana e quase nunca pisava no laboratório, e daí minha vida acadêmica muda da água pro vinho e passo a ser acompanhada por um cara que enxerga defeitos e um monte de erros em uma pesquisa que eu achava sucinta e linda. Não perfeita, claro, mas bem amarradinha.
Franzi os lábios e levantei, pronta para abrir o armário e puxar uma nova placa de petri, enchê-la com o solo pronto da estufa, inserir um filamento vegetal e esperar outras longas horas desse vidro queimando ali dentro a pelo menos 40 graus. Ouvi Yoongi puxando uma cadeira e se acomodando do outro lado da bancada, agora com certeza pronto para pegar minha nova versão do manuscrito e reler tudo pela milésima vez.
Ele era cuidadoso, extremamente dedicado e, aos poucos, estava ficando mais curioso também. Era um traço pouco visto nos docentes daquele lugar deprimente: a euforia da ciência. Yoongi queria encontrar respostas dessa nova espécie (que estava crescendo linda e viva no canto do laboratório dentro de um recipiente de vidro de 30cm em um sistema vertical, com raízes lindas e fortes, se espalhando por todos os lados como fios de cabelo, boiando na água que eu trocava meticulosamente a cada 30 horas), só porque eu queria encontrar respostas da nova espécie, e isso, estranhamente, pareceu deixá-lo uns cinco anos mais jovem.
Mais jovem, mais animado, mais propenso a abrir aquele sorrisinho limitado de novo. Trocamos números de telefone e passei a receber vários links de artigos e vídeos do YouTube — mais links e vídeos do que palavras ou cumprimentos —, passei a poder bater na porta da sala dele e entrar e, uma vez, uma única vez, ele me ofereceu uma carona para a Drexel depois que me viu saindo da escola quando foi buscar Jihoon mais cedo.
Ele era demais. Era o sonho de analista e pseudo orientador que todo pobre acadêmico desse país sonha em ter. Todos os conselhos, as milhares de correções, e até aqueles olhares efusivos que me lançava quando eu aparecia com comida no laboratório, tudo era para me ensinar alguma coisa.
Só tinha um problema. Um problema que começou pequenininho, mas que agora estava crescendo e se multiplicando desordenadamente como células cancerígenas:
Eu queria beijá-lo.
Sim, isso era horrível, errado e super antiético, mas era a verdade: estava totalmente atraída por ele. Queria beijar esse homem até ficar sem ar, queria saber se aquele cheiro gostoso de canela vinha do seu cabelo, ou da sua roupa, ou do seu pescoço, o que era, sim, uma enorme desculpa para vasculhar todas as partes dele.
Mas isso nunca ia acontecer, porque eu afogava essa coisa estranha no porão mais fundo da minha mente, deixando para pensar abertamente sobre isso quando estivesse no chuveiro. Ou na cama, de madrugada. Só nessas vezes eu deixava a pesquisa de lado e pensava sobre o que aconteceria caso eu o deixasse saber da minha pequena queda (ou pequeno abismo) pela sua pessoa. E a resposta que ele me daria sempre fazia parte de uma fantasia maluca onde Yoongi passava o braço pela bancada, derrubando pranchetas, papéis, béqueres, líquidos verdes e vermelhos e me jogava ali em cima, se enfiava entre as minhas pernas e começava a me beijar desde o meio do meu tórax até meu pescoço, meu queixo, minha boca…
— O que tá olhando, ? — a voz dele rasgou o encanto. — Tá tudo bem?
Fiquei confusa no primeiro instante até perceber que eu estava parada, ereta, olhando para ele como uma psicopata.
Me recuperei com as bochechas queimando.
— Ah… N-nada. Eu tive um… espasmo cerebral ou coisa assim. — balbuciei coisas sem sentido, voltando a olhar o microscópio, tentando esquecer que Yoongi estava ali. Meu Deus, o que estava acontecendo comigo? Eu não era assim. Ter vontade de beijar um cara? Tudo bem, mas isso nunca me transformou numa idiota. E Yoongi tinha alguns atributos nessa parte que me faziam ter certeza de que ele não fazia a menor ideia do quanto era atraente, tipo quando colocava os seus óculos de grau e ficava concentrado em dezenas de folhas de papel por 20 minutos direto, me fazendo pensar o que eu faria se ele se concentrasse em mim assim.
Talvez eu não faria nada, porque sentia que poderia morrer com essa atenção. Morrer de qualquer uma das coisas: vergonha ou tesão. A mulher dele tinha sorte, que Deus a tenha.
Mas já estava mais do que na cara que, daquela parede gelificada da Patrulha da Noite, eu teria apenas o melhor da Geomorfologia e provavelmente meu passe para Harvard, o que era bom de todo jeito.
Depois de 15 minutos em completo silêncio, apenas com o barulho das máquinas girando e esquentando ao nosso redor, senti o celular vibrando uma notificação da linha de transmissão do Mango’s, avisando da rodada dupla de sidra hoje à noite. Não levou nem dois minutos para Belle e Wonwoo encaminharem a mensagem para mim, dizendo: Aquele Dia do Mês.
Olhei a hora. Quase seis.
Yoongi continuava na mesma posição, com a única diferença sendo a frente do cabelo um pouco bagunçada.
— Hum… senhor Min? — chamei, fazendo-o levantar a cabeça dos meus gráficos de linha. — Placa nova no forno, saturação a 10% e eu espero que você não faça cara feia pra nova referência que adicionei no fim da página. Foi mais forte do que eu. — dei de ombros com inocência, e comecei a desabotoar o jaleco. — De qualquer forma, pode me dar bronca por ela amanhã. Vou sair com o pessoal, rodada dupla no Mango’s. É literalmente nosso super evento de fim do mês, dá pra encher a cara por menos de 15 dólares.
Tirei o jaleco e o enrolei no braço, enquanto Yoongi olhava para mim de um jeito… bom, de um jeito que eu não fazia ideia do que era, porque eu era péssima em captar qualquer resposta não-verbal dele. Mas, baseado naqueles olhos pequenos descendo rápidos pela minha roupa (saia fendada de rayon e uma blusa curta que já estava aceitável de usar no fim do fim do inverno), e seus ombros enrijecendo de repente, com o adicional do rosto virando para qualquer direção que não fosse eu, deu para pescar a questão. Se estivesse diante de qualquer outro cara, diria que ele estava me admirando ou tentando não fazer isso, mas como era Min Yoongi, eu sabia exatamente o que estava acontecendo.
— Ah! Foi mal, eu estava de saída. — coloquei as duas mãos na frente do umbigo exposto, junto com a grande faixa de barriga pra fora. — Só passei aqui pra monitorar os resultados, e fiquei de jaleco fechado o tempo todo, eu juro. Nenhuma soda cáustica perfeitamente na validade chegou perto dessa coisinha. — brinquei, apontando para o meu torso, e quis que ele risse para mostrar que estava tudo bem, mas ele continuou sério, a boca entreaberta, a caneta ainda parada no ar em cima do papel.
Bufei.
— Desculpa. Sem mais blusa curta no laboratório, já entendi.
Acordando do transe, Yoongi limpou a garganta umas três vezes até puxar o ar pelo nariz e tirar os óculos, coçando os olhos uma vez e engolindo em seco.
— Hum… É, tudo bem. O trabalho de hoje tá concluído.
Abri um sorriso enquanto juntava o restante das minhas coisas, metendo o jaleco dobrado dentro da bolsa esporte que me tornava uma versão ambulante da Hermione Granger enquanto Yoongi ficava de pé e amontoava os materiais impressos, ainda com aquela coisa de olhar para mim e desviar na mesma hora.
— Você, hum… Vocês vão no lugar da biblioteca? — ele pareceu precisar de uma centelha de coragem para perguntar aquilo. Parei e virei para ele.
— O Mango’s, é. Da última vez que chequei, eles estavam cheios de livros do Percy Jackson e do Nietzsche, mas, de vez em quando, dá para achar um guia de Kamasutra bem do lado da seção de romances. — brinquei, e, como esperado, Yoongi me fitou daquele jeito sério, totalmente blindado contra piadas. — É brincadeira. Quer dizer, a gente achou mesmo um guia do Kamasutra, mas ele sumiu no dia seguinte. Alguém anda se divertindo muito pelo campus.
Levei as mãos para trás do cabelo enquanto soltava o coque muito apertado que era obrigada a fazer todas as vezes que pisava ali. Uma das muitas questões básicas de segurança que Yoongi me obrigava, mas aquilo deixava meu rosto muito em evidência e eu não era exatamente apaixonada pelo meu nariz.
Peguei ele olhando fixamente para mim de novo. Ok, sem piadinhas de Kamasutra.
— Bom, então… — comecei, gesticulando para avisar que eu estava saindo. Ele assentiu devagar, agora trocando o peso de uma perna para outra.
— É… Será que lá eles têm, não sei… Alguns artigos antigos? Livros do Harry Hess?
Quis pensar sobre a sua pergunta, mas fiquei muito mais interessada naquela postura e na possibilidade de que Yoongi estivesse com vontade de ir ao Mango’s.
Isso era impossível. Com certeza, ele estava perguntando aquilo porque pediria para eu pegar o livro para ele. Ou para pegar para mim mesma, porque Harry Hess, seja lá quem for, podia ser de grande valia para minha tese. Me pediria para fazer um resumo disso e que tentasse aplicar as análises por conta própria. Diria a sua frase de sempre: você consegue, é uma garota inteligente.
Mas, de repente, parecia que eu já estava sentindo aquela sidra de má qualidade do Mango’s passeando pelo meu organismo, porque o que eu disse foi:
— Não sei. Você gostaria de ir ver?
Yoongi paralisou um pouco.
— No Mango’s?
— É, todo mundo se reúne lá nessa noite de quinta. A bebida pode ser barata, mas eles servem um ótimo frango frito, eu garanto.
Yoongi pensou um pouco. Isso já era mais do que eu esperava. Achei que ele poderia fazer algo que nunca mais fez: abrir um sorriso, rir da minha cara, e dizer naquela voz rouca e baixa: “ótima piada, ”. Mas não foi isso que veio pelo menos por um minuto inteiro.
Sempre fui uma pessoa super intolerante em relação a milagres, mas naquela hora, pedi com toda fé que restava em mim: diga sim. Vamos, diga sim.
E por um fiapo de momento, eu tive certeza absoluta de que ele aceitaria. Mas, por fim, balançou a cabeça e respondeu:
— Não posso, tenho que ficar com o Jihoon.
— Ah… — murchei os ombros. — A Belle pode fazer umas horinhas extras e levar ele pra lá depois. Digo, pro nosso apartamento, não para o bar, ele fica tipo a menos de um quilômetro dali. Aposto que os dois estão se divertindo muito agora.
Não foi uma enorme mentira: eu sabia que Jihoon amava Belle, e que minha amiga estava gostando daquele trabalho fake mais do que se permitia admitir, mas tive medo de Yoongi entender a proposta de forma errada. Entender como: vamos lá que eu quero encher a cara com você e, quem sabe, fazer algo que nós dois vamos com certeza nos arrepender.
Eu duvidava muito que iria me arrepender de qualquer coisa com esse homem, mas estava tentando respeitá-lo.
Yoongi ficou com aquela expressão pensativa de novo.
— É, ele gosta mesmo muito dela. — ele assentiu, e então firmou a postura. — Tudo bem, vou mandar uma mensagem pra ela. Podemos ir no meu carro.
Escondi o sorriso e a euforia de um fogo de artifício estourando dentro do meu estômago. Yoongi puxou sua pasta e passou por mim, e eu o segui, ficando surda por alguns instante, aquele “shhhhhh” do fogo chiando e crepitando em todas as partes do meu corpo. Parecia até que eles poderiam me matar (o que não teria o menor problema, porque eu consideraria esse momento da minha morte um puro prazer rapsódico: eu ia sair com o doutor D.).
Agora só precisava manter a compostura pelas próximas duas horas.
Eu sabia que isso dizia respeito ao meu pai e seu passado obscuro com tequila, conhaque e opioides, mas ele estava com a medalhinha de sobriedade do AA já faziam 5 anos quando eu nasci. Ela nunca contava muitas coisas sobre essa fase inicial dos dois, muito menos o meu pai e, de qualquer forma, a mulher se mandou não muito tempo depois, deixando só esse singelo conselho para trás: no momento da sua morte, quando mirar nos olhos de Deus na frente dos portões perolados do paraíso, tenha a certeza de poder dizer que você não se envolveu com um cara que bebe whiskey.
Lembrei disso na hora em que parei com Yoongi na frente do balcão úmido e de madeira solta do Mango’s, pronta para pedir a rodada dupla do que quer que fosse a bebida quase vencendo do estoque, e ele pediu uma dose de bourbon Wild Turkey.
Eddie, o barman grandão (grandão, não gorducho) e proprietário do bar, encarou meu companheiro com o cenho franzido, o que deixava seu rosto redondo com uma tatuagem imensa no pescoço um pouco mais assustador do que já era.
— A gente não tem isso aqui, cara. — respondeu ele, com a voz grossa e direta. — No máximo um Old Crow. Sem gelo.
Yoongi correu os olhos rapidamente para as prateleiras decaídas por trás de Eddie, contendo um milhão de garrafas diferentes com nomes que você com certeza nunca ouviu falar. Muito menos alguém como o doutor D.
— Hum… — ele não parecia estar achando nada. Segurei um riso, me inclinando para o balcão.
— Traz o especial da noite com uma rodelinha de limão e o guarda-chuvinha que você me prometeu.
— De baunilha ou de açúcar?
— Os dois.
Eddie assentiu, puxando o pano branco inseparável que vivia no seu ombro para secar o suor da nuca e passando-o nas mãos oleosas. Bem naturalmente assim. Em seguida, olhou para Yoongi.
— Tem certeza que o seu amigo aí quer encarar o especial?
Yoongi abriu a boca, mas falei na frente:
— Ele quer sim, Eddie. Inclusive, ele vai querer com limão caprichado e uma pitada do vermute que você esconde aqui embaixo. Ele é o meu analista, então é sua obrigação fazer um bom trabalho e deixá-lo à vontade.
De repente, Eddie estava abrindo um sorriso grande, cheio de dentes tortos e dois caninos de ouro.
— Então você conseguiu, gata? Bem que eu estranhei que você tinha sumido daqui. Poxa, cara, que maneiro. — ele meteu aquela mão com cinco dedos enormes no ombro de Yoongi para balançá-lo com animação. Yoongi se encolheu por reflexo. — Vou preparar a bebida de vocês. Só um momento.
Eddie se foi para o outro lado, puxando canecas de vidro e colocando-as debaixo da fila de torneiras de chopp, que guardavam todo tipo de bebida que o ser humano era capaz de misturar.
Yoongi ainda estava esticando um pouco o ombro, olhando em volta por todo canto para captar tudo que seus olhos podiam captar.
— Bem… Interessante. O lugar. — gesticulou, com as mãos vagas. — Eu meio que sabia que não devia ter bourbon.
— Não sabia, não. — balancei a cabeça.
— É, talvez eu devesse ter esperado o Old Crow, mas… Aquilo ali é um macaco?
Sabia para onde ele estava olhando sem nem mesmo virar a cabeça: as vigas de madeira entrelaçadas no teto, onde Lucas, o macaquinho teoricamente legalizado de Eddie vivia passeando, com o look daquela noite sendo uma calça bufante estilo Elvis Presley e chapeuzinho com babados de uma fantasia de camponesa.
— É sim, e eu te aconselho a não olhar muito pra ele. Ele curte brincos. — apontei para as duas argolas que Yoongi tinha na mesma orelha, um detalhe que eu nunca, jamais iria me acostumar (o que eu deveria fazer, porque ele ficava um milhão de vezes mais gato quando as usava).
Dois copos quadrados foram colocados na nossa frente quando Eddie surgiu: o copo de Yoongi contendo um líquido roxo escuro com o fundo transparente, e o meu com um roxo mais claro e dois guarda-chuvas.
— Tá na mão, senhores. Aproveitem a noite! Aqui é o lugar certo pra colecionar arrependimentos.
Eddie sorriu como se dissesse “Deus abençoe” e se virou para atender os outros clientes.
Peguei meu copo e virei para Yoongi.
— Vem, tá na hora da abertura. Quando a gente virar isso, tem que fazer devagar e aproveitar o momento, mesmo que vá doer. É a hora em que todas as perguntas que você teve na vida vão ser respondidas.
Yoongi agarrou o seu copo, franzindo o cenho levemente para ele.
— O que tem aqui? Um oráculo? Diário de bordo do Big Bang?
— Tudo isso e mais um pouco. — dei uma piscadinha.
Uma lasca de sorrisinho escapou do rosto dele.
— Tudo bem, eu tenho mesmo um monte de perguntas.
Nós brindamos e viramos juntos. O dia da dose dupla nunca era uma bebida específica — isso tirava toda a graça da dinâmica. A coisa era você ir com seus pobres 10 dólares e embarcar no desconhecido. Qualquer que fosse a mistura do dia, quase sempre chamada de “sidra”, despertaria alguma coisa dentro de você que transformaria um dia comum em uma bela história para contar.
Yoongi e eu fizemos a mesma careta diante daquilo que desceu rasgando, mas, por algum motivo, senti que a minha estava pior que a dele.
— Nossa… — ele apoiou o copo agora vazio na bancada, piscando os olhos sem parar. — Esse lugar não precisa mesmo de Wild Turkey.
— Ou da vigilância sanitária. Por causa do laboratório ilegal que tem ali atrás e tudo mais.
— E o macaco.
— E a jiboia de estimação que de vez em quando vive escapando da gaiola. — Yoongi arregalou um pouco os olhos. — É mentira! Todo mundo sabe que as jiboias gostam muito de árvores, e isso infelizmente o Eddie não consegue colocar aqui.
Outro lampejo de sorriso iluminou aquele rosto, e agora Yoongi parecia menos propenso a dar a volta e sair do meu bar favorito. Ele esperou Eddie voltar e pediu duas cervejas, duas Coors Light para ser específica, e entregou uma para mim enquanto saíamos da frente do balcão e dávamos espaço para os outros estudantes logo atrás, loucos para beber a iguaria do dia e voltar para casa com um número muito menor de glicose no sangue.
Levei ele para o outro lado, mais ao canto, onde as mesinhas duplas ficavam quase encostadas umas nas outras e separadas do restante do espaço por uma pequena grade igualmente de madeira velha e molhada, que tremia um pouco de acordo com a potência do som do lugar (naquela noite, estava rolando uma mistura de Britney, Queen e Eagles, todas tocando seus maiores sucessos em um looping infinito na voz desafinada dos primeiros bêbados do recinto).
Yoongi apoiou sua cerveja e se sentou em uma das cadeiras desconfortáveis, e fiz a mesma coisa na cadeira da frente. Ele bebeu um gole grande e longo, dessa vez nem fazendo careta.
— Nossa. Faz muito tempo que não bebo fora de casa.
— Tipo quanto tempo? — perguntei, falando um pouco alto por causa de Don’t Stop Me Now ao fundo.
— Tipo anos.
— Anos? Então o seu período sabático não estava acontecendo dentro de todas as edições possíveis da Tomorrowland ao redor do mundo? — brinquei. Yoongi alisou o rótulo suado da cerveja e balançou a cabeça.
— Eu não estava tirando um período sabático, mas não, não teve nada a ver com nenhuma festa.
Segurei a língua pra não perguntar. Ele não me responderia mesmo.
— E o que tá achando desse retorno?
Ele olhou em volta de novo, avaliando seja lá o que estava avaliando desde que chegou, e deu de ombros levemente.
— Como eu falei, é um lugar interessante. Você quer comer alguma coisa? — ele perguntou quando ergueu os olhos para mim. Fui pega um pouco de surpresa.
— Ah, eu… Não sei se tem algo que você gostaria de comer aqui.
— Comeu alguma coisa antes da sua bebida de laranja? — perguntou. Balancei a cabeça em negação. — Escolhe alguma coisa pra comer. Eu pago.
Ele disse e depois verteu mais um monte de cerveja, e Deus que me perdoe, mas tive imagens vívidas de uma fantasia absurda só com aquela cena de milissegundos, atrasando totalmente meu raciocínio e me fazendo esquecer que eu estava no meio do Mango’s com o doutor D.
O doutor D, que até o mês passado eu achava que era um senhor de 72 anos com suéter que cheira a naftalina e talvez com um sotaque galês mais pronunciado. Chegava a ser sacanagem uma das grandes mentes da ciência ser um cara de 35 anos que usa jaquetas de couro descoladas, um cabelo lindo que cheirava a alguma coisa perigosamente afrodisíaca, e que ainda por cima era solteiro. Um pouco menos de julgamento e você não estaria nessa situação de merda, .
Depois que consegui falar com Gomez — um tipo de serviçal aleatório com nanismo que Eddie jurava ser seu sobrinho, mesmo sendo um cara com não menos de 25 anos com pele de caramelo e cabelos cor de areia muito diferentes do homem negro e robusto por trás do balcão —, um prato grande com batatas fritas e molho ranch caseiro estava sendo depositado no meio da mesa, com mais duas cervejas que Yoongi pediu. Gomez dizia: “Sim, obrigado, é pra já, doutor” toda vez que meu analista abria a boca, o que era uma novidade, porque aquele carinha não abria a boca nunca, a não ser que fosse para mandar Lucas soltar o cabelo das pessoas.
Por um lado, eu entendia. Yoongi tinha alguma coisa que te fazia ter o impulso de simplesmente respondê-lo com “sim, senhor”. Das maneiras mais formais às mais eróticas (essa última parte somente na minha cabeça).
Depois de comer umas cinco batatinhas, ele quis ver a biblioteca.
A “biblioteca” do Mango’s não passava de uma enorme estante larga grudada com outra estante larga, cheias de uma grande bagunça de livros para doação. Ficava em uma parte afastada da pista e um pouco mais apertada, o que significava que a luz era um artefato mínimo e a música chegava com menos intensidade, porque Eddie realmente acreditava que as pessoas parariam ali para LER (o que já aconteceu algumas vezes, claro, mas era um espaço muito mais usado para uma pegação esporádica escondida dos olhos alheios).
Yoongi examinou as lombadas, segurando sua terceira cerveja pela metade, o que já me dizia o quanto ele tinha uma tolerância acima dos demais, porque eu nesse ponto não estaria nem conseguindo compreender o que as palavras escritas ali diziam.
— Eles aceitam livros aqui? — Yoongi perguntou, ainda concentrado.
— Uhum. É só trazer que o Eddie coloca aí.
Yoongi esboçou outro daqueles sorrisinhos de canto, e tenho certeza que ele amou a ideia, como se Eddie merecesse tanto mérito quanto o dono de uma ONG para animais abandonados ou coisa assim.
Um lado muito grande do meu peito esquentou. Devia ser a cerveja.
— Tem um monte de histórias sobre essas prateleiras, sabia? Não só as que estão dentro dos livros, mas como eles chegaram aqui. — falei, me aproximando um pouco dele para apontar para uma lombada em verde e vermelho. — Esse daqui veio de um cara que estava indo embora pra França. O doutorado dele acabou e levou dois anos até ele conseguir uma pós em Paris. Acabou que quando chegou lá, ele se envolveu com uma duquesa do campo e se tornou um nobre. E disseram que há testemunhas. — contei. Yoongi olhou para mim com um pouco de deboche, escondido no sorriso por trás da garrafa marrom. — Esse outro aqui foi deixado por um trapezista que queria fazer Direito a todo custo, porque queria adotar o leão da sede dele. Era engraçado porque uma hora ele estava falando como um trapezista e depois usava sua voz profissional de senhor advogado quando perguntavam porque diabos ele queria adotar um leão. Quer dizer, eu já quis ter uma iguana, mas depois que disseram que ela poderia arrancar o meu olho enquanto eu dormia, eu desisti rapidinho da ideia. Imagina o que um leão poderia fazer.
— É verdade, ele deveria ter escolhido o elefante.
— É muito mais difícil adestrar um elefante. Não existe espaço para elefantes em lugar nenhum.
— As pessoas domesticam até plantas e inteligências artificiais hoje em dia, . Você não deveria subestimar tanto o cérebro humano.
— O planeta literalmente pedindo arrego e você vem me dizer pra não subestimar o cérebro humano? Tenho um pouco de dificuldade em concordar com você, Yoongi. — eu ri e beberiquei minha cerveja, até notar, depois de um tempo vergonhosamente longo, que eu tinha falado seu primeiro nome.
Ele também pareceu notar depois, e desfez um pouco do sorriso frouxo, virando a cabeça de volta para a prateleira, enquanto eu quis que Lucas me enforcasse com o seu rabo.
Pensei em pedir desculpas, mas não faria sentido. Não estávamos dentro da Drexel e muito menos na escola; estávamos simplesmente bebendo e rindo no Mango’s como dois… amigos? Pelo bem da minha saúde mental, iria considerar aquilo como saída casual de amigos.
E é claro que Yoongi diria que estava tudo bem, com aquela voz que transmitia certeza absoluta sobre os fatos (uma voz que poderia comandar ratos e crianças), ou não diria nada e nunca mais iria repetir aquela nossa saída para qualquer lugar fora dos portões do campus.
Que beleza. Logo agora que eu tinha conseguido fazê-lo parar de me chamar de senhora.
Yoongi puxou um dos livros. A capa velha tinha desmanchado o título há muito tempo, mas a estrutura do texto em estrofes deixou claro que era um livro de poesias.
O título do primeiro poema era “Vamos, vamos, sigam-me os bons”, e pelo jeito como ele sorriu um pouquinho enquanto acompanhava cada verso com concentração, percebi que ele conhecia.
E desde quando ver um cara lendo poesia se tornou algo tão atraente para mim? Isso já estava beirando ao ridículo.
Engoli mais um monte de cerveja e fui para o outro lado, na ponta final da estante, encarando lombadas novas e velhas e fingindo estar interessada por um exemplar de Orgulho e Preconceito enquanto torcia para que ele, sei lá, tropeçasse nos próprios cadarços até o fim da noite. Ou engasgasse com uma batatinha a ponto de Eddie precisar agarrá-lo pelas costas e pressionar suas escápulas até ele cuspir tudo. Ou para que ele ficasse muito bêbado e revelasse seu lado secreto: fã de Britney anos 2000 e um excelente intérprete da coreografia de Toxic, mostrando seus talentos no meio da pista, rebolando os quadris ou dando uma de As Branquelas na cena do break dance.
Ou ele podia simplesmente dizer que odiava balas de alcaçuz. Era tiro e queda. Tinha funcionado com Finn, meu ex da primavera passada. Todo mundo sabia o futuro de uma relação onde um dos componentes não gostava de bala de alcaçuz.
Mas Yoongi estava irritantemente andando na linha, mesmo que eu não soubesse o que isso significava exatamente. Ele não era a pessoa que eu ficava esperando fazer algo errado, pelo contrário; ficava me perguntando se eu não estava idiota demais, se eu não ia vacilar. Era muito mais plausível que eu me engasgasse com uma batata e precisasse da ajuda de Eddie simplesmente porque não conseguia parar de olhar para o meu analista.
Antes de passar para a próxima lombada, olhei para ele de novo. E dessa vez, Yoongi não estava mais sozinho.
Uma garota tinha parado ao lado dele, recostada na estante de uma maneira totalmente confortável. A saia dela por pouco não conduzia uma denúncia de atentado ao pudor, e a blusa era um milhão de vezes mais curta que a minha. Ela estava falando com ele enquanto segurava duas cervejas, e contive a vontade de andar até lá, porque não conseguia escutar a conversa dos dois daqui e não dava para ler os lábios de alguém de costas.
Me forcei a olhar de novo para os livros. Eles só estavam conversando, pelo amor de Deus. E daí que ela tinha um cabelo lindo e esvoaçante até a cintura, parecido com o da Jessica Chastain? E tinha aquelas pernas exuberantes que, sim, nasceram para mini-saias como aquela e deixariam qualquer homem rastejando? Que seja.
E daí se Yoongi estava abrindo um sorriso para ela, balançando a cabeça enquanto dizia algo que eu não fazia ideia do que era? Ele tinha que se divertir, não é? Esse era um dos objetivos.
De qualquer forma, assim que ela saiu (depois de tortuosos 6 minutos em que fui obrigada a reler o título Jane Eyre umas quatro vezes para fingir que estava entendendo), pulei para o lado dele, que tinha acabado de colocar o livro de poesias no lugar.
— Não me diga que você despistou uma gata daquelas. — provoquei, torcendo desesperadamente que minha voz e meu sorriso estivessem felizes e convincentes.
Yoongi franziu a testa por um segundo.
— O quê? Ah, tá falando da Lois?
— Lois. — o nome desceu igual a bebida do especial da noite, mas com o adicional de um quilo de areia. — Isso, a Lois, nossa Lois. Já estão bem próximos, isso é bom.
— Ela não me deu outro nome.
— Já supôs que você não precisasse. — dei outra daquelas risadinhas que pareciam que alguém estava me sufocando, e levando em conta o quanto isso era esquisito, limpei a garganta e tentei parar. — É… desculpa, só quis dizer que ela era bonita. E nem é sua aluna, então duvido que tenha vindo aqui te perguntar sobre qual o período cambriano das rochas entre 1412 e 1420.
— Nem os meus alunos são tão curiosos assim. — Yoongi fechou o livro novo das mãos, um que não consegui ler o título. — Ela é só uma garota que veio conversar e oferecer uma bebida, mas não vim aqui pra isso, . Se essa era a sua intenção.
Não era de jeito nenhum, gritei dentro de mim mesma. Eu nem tinha intenção! Ou nenhuma que eu me deixasse pensar.
— Ah… — foi a única coisa que consegui falar antes de beber mais um gole da cerveja e fixar o olhar em um livro sobre tumbas abandonadas na Indonésia.
— E também não aceito esses presentes cheios de segundas intenções. — murmurou ele, agora puxando um livro todo amarronzado, com o título “Acúmulo de Solos Naturais”, colocando-o embaixo do outro que já estava segurando.
Pensei em rir. Pensei em dispersar aquele assunto, me inclinar sobre aquela página amarelada e perguntar a ele sobre o que aquele tal de Hutton estava dizendo, pensei em esquecer a ruiva gostosa e terminar a noite da forma mais legal e saudável possível entre uma doutoranda e seu analista genial, mas isso só seria possível se Yoongi não tivesse espichado um olhar categórico para mim quando falou em “presentes com segundas intenções”.
Levei um tempo para entender, mas eu entendi.
— Por que… Espera, isso foi uma indireta? Falou isso por causa das coisas que eu ganho?
Ele me olhou com inocência.
— Eu falei?
Ri, perplexa. Ele desviou o rosto de novo, direto para os artigos velhos de formações rochosas. Não negou ou nem riu da mesma forma que eu.
Mas que porra?!
— Espera aí, eles me oferecem. Sou uma pessoa legal e as pessoas sentem vontade de fazer uma gentileza, qual é o problema? Não é todo dia que alguém está disposto a te pagar um café de mais de 7 dólares.
— Com você, parece que é todo dia sim. — ele levantou os olhos, e eu sei que provavelmente estava se esforçando muito para não parecer irritado ou minimamente debochado, mas Yoongi devia ter pouquíssima prática nisso. — Fester Lazar do laboratório de Mineralogia, Jerry Teller do de Geofísica, Stephen da Petrologia…
— Quem diria que você conhecia tanta gente do departamento.
— Digo o mesmo de você. Tá trabalhando na sua pesquisa há duas semanas e já dividiu um pretzel com o doutor Hollingsworth, que com certeza não tem a mínima ideia do que você está fazendo ali, mesmo que você tenha contado espontaneamente para ele.
— Como você pode saber disso?
— Porque de todas as perguntas que ele me fez sobre você, nenhuma delas eram relacionadas à ciência.
Yoongi bufou um pouco mais alto e percebi, finalmente, que ele estava um pouco irritado. Um pouco demais. E eu estava confusa.
Por fim, ele umedeceu os lábios e passou um polegar distraidamente na testa, como se estivesse bravo também consigo mesmo.
— É muito importante pra você ganhar cafés de 7 dólares? — perguntou, olhando diretamente para mim.
Considerando o fato de que eu ainda não estava entendendo aquele papo e muito menos a sua expressão áspera do nada, respondi:
— Café de verdade sem ser solúvel com expresso duplo que é mais amargo do que antisséptico, sim, são um pouco importantes pra mim. Não gosto de desperdiçar essas oportunidades.
Vi ele travar o maxilar de novo, puxando a bebida escorada na prateleira e terminando a terceira garrafa num gole só. O que eu tinha dito? Mandei mal em mais uma piada?
— E quanto às outras coisas? São tão importantes também?
Estreitei os olhos, sem saber onde ele queria chegar.
— Que outras… Ah, você tá dizendo isso por causa dos farelos de bolo da semana passada? Porque eu limpei grãozinho por grãozinho antes de sair, e estava numa parte muito longe da estufa, e ele era de limão. — argumentei como se estivesse em um tribunal, e que limão era motivo mais do que suficiente para que o réu fosse inocentado.
Yoongi abriu a boca para responder, mas voltou atrás. Desejei muito que ele visse que, seja lá o que estava sendo aquela discussão, ela não fazia o menor sentido. Pelo menos para mim não estava fazendo.
Ele balançou a garrafa vazia na mão, e vi na sua cara a vontade massiva de entornar mais umas três daquelas de uma vez, já que ainda tinha aborrecimento naquele rosto fechado (só não entendia se era de mim, dos cafés caros, dos bolos, das camadas medievais de ocupação de terra no planeta ou dele mesmo).
— Você gosta de limão? — ele perguntou de repente, com a voz mais suave, como se aquela informação fosse subitamente muito importante.
— Sim, eu gosto de limão. — respondi, com talvez umas oitavas a mais na voz. — É amargo, mais amargo do que ácido, e esse é o meu sabor favorito das coisas.
Yoongi assentiu, agora parecendo exclusivamente curioso.
— Algum motivo pra isso?
— Não sei. — dei de ombros. — Não gosto de surpresas. O que começa amargo vai terminar amargo de qualquer jeito, não é como o ácido que adoça no final. O amargo não te dá esperança nenhuma, é perfeito.
Eu não fazia ideia se aquela filosofia de vida fazia algum sentido para alguém fora da minha cabeça, mas esperei que sim. Estranhamente, eu gostaria que Yoongi me entendesse, mesmo que isso não fosse mudar absolutamente nada entre nós.
E a expressão que ele fez me deixou acreditar que, se ele não tinha assimilado naquela hora que aquela parada na sua frente era só a superfície de um acúmulo de sedimentos de uns cinco metros, iria assimilar assim que refletisse um pouco mais sobre o assunto.
Não sei dizer o que senti só com a ideia de Yoongi pensando um pouquinho mais em mim fora dos aspectos acadêmicos.
E nem sei bem quanto tempo se passou em que ele ficou me analisando daquele jeito concentrado e metódico de sempre até que ouvíssemos o estrondoso:
— Ei, REVA!
Virei em um susto, reconhecendo Wonwoo e seus 200 metros de altura abrindo caminho entre as pessoas, ajeitando os óculos de grau no rosto enquanto segurava uma caneca cheia de sidra roxa do especial da noite.
— Ei, tô te mandando mensagem há um tempão. Achei que a gente ia combinar na porta. — ele parou na minha frente, os olhos um tanto agitados demais como sempre ficavam depois de ele já ter misturado toda aquela bebida com uma ervinha escondida do treinador. — Cadê a Belle? Ela deu uma sumida também. E o…
— Eu não vim com a Belle. Eu tô acompanhada. — gesticulei para Yoongi porque, aparentemente, meu amigo bêbado não tinha visto o cara de jaqueta preta bem atrás dele ainda.
Wonwoo finalmente se virou.
— Ah. O professor. — disse ele, com um certo tom que não era o de sempre. — E aí.
— Como vai? — Yoongi estendeu a mão para Wonwoo, que escolheu aquele momento em particular para segurar sua garrafa com todos os dez dedos e beber um enorme gole.
Olhei para ele com aquela cara de “que merda você acha que está fazendo?” Yoongi puxou a mão de volta, sem se abalar.
— Então… Veio acompanhada do seu professor? Isso é permitido? — Wonwoo riu pelo nariz, mas eu sabia, pela sua cara que eu via todos os dias, que ele não queria rir.
— Ele não é meu professor, Wonwoo. — respondi antes que Yoongi tivesse chance. Semicerrei os olhos para o meu amigo. — E quantas dessa você bebeu? Pelo visto, já chegou há um bom tempo também.
— Vim de um esquenta da casa do Nolan, ele e a Mickey terminaram e a galera achou legal fazer uma festa.
— Nossa, todo mundo odiava a Mickey assim?
— Ela queimou todos os uniformes dele e pintou o Porsche da família do cara de rosa.
— Depois que ele traiu ela com a garota de Princeton.
— Ela não era de Princeton, ela era da Columbia. Columbia, . A filha de um conglomerado de Wall Street. — Wonwoo argumentou naquela voz arrastada, o que me deu vontade de chutar a sua canela; não pela voz, mas pelo lado que ele assumia naquela fofoca aberta e disseminada pelo campus. A porra do amigo babaca dele era um idiota, e mesmo assim Wonwoo estava ali, sempre pronto para defendê-lo.
Abri a boca para retrucar o que poderia virar uma discussão que duraria uma noite inteira, mas de repente, olhei para Yoongi de canto de olho. Ele estava olhando de mim para a estante, e de repente me senti uma idiota.
As noites no Mango’s eram sim para fazer a gente esquecer um pouco da competitividade acadêmica tóxica e de todas as coisas ruins que a Drexel nos fazia passar para conseguir um lugar na sociedade, e uma das coisas que se encontrava por ali para ajudar nisso era: fofoca da vida alheia. Se seu nome estivesse em alta por qualquer motivo que seja, esse sucesso começou no Mango’s, até que alguém voltasse e tomasse o seu trono com uma fofoca melhor.
Já espalharam por aí que eu e Belle éramos lésbicas e que Wonwoo tinha gonorreia depois de ter largado uma garota de manhã em um dos alojamentos de University City, mas isso era, de certa forma, bom. Ter o nome mencionado e disseminado pelo Mango’s já significava que você era alguém; considere-se sortudo por estar na boca da Gossip Girl versão Filadélfia.
Só que aquilo ali, naquela noite, na frente de Yoongi… pareceu a coisa mais idiota e fútil da face da Terra. Ainda mais depois de passar uma semana inteira escorada em uma bancada de laboratório conversando com meu crush acadêmico sobre planícies aluviais e perceber como a gente podia viajar para vários lugares através da voz de outra pessoa. É como eu me sentia quando Yoongi contava sobre as viagens de estudo de campo que já fez em todo canto ao redor do planeta: como se ele estivesse me levando junto.
Enquanto isso, eu era proibida de falar da minha pesquisa no Mango’s, ou até fora dele quando estava com meus amigos. E sempre achei que estivesse tudo bem porque “hora de beber era hora de beber”, mas acho que, no fundo, eu tinha medo de entediar alguém. Mas Yoongi não achava minha pesquisa entediante. Na verdade, não achava nada sobre mim entediante.
— … E aí ela já apareceu com outro, ele precisava dessa festa. — Wonwoo concluiu parte do que eu não ouvi.
— É, isso é… eu entendi. Wonwoo, eu acho que…
— Hein, vocês estão bebendo cerveja? Cadê a sua caneca? Tem um barril inteiro de líquido suspeito ali, você já devia estar dançando em cima do balcão essa hora. — Wonwoo riu. Senti minha bochecha ferver por um segundo.
— Eu não estaria, não. — trinquei os dentes. — E a gente já bebeu. Na verdade, a gente tava…
— Bebeu pouco então, . Vem cá, eu vou te levar de novo pra onde você mais curte ficar na quinta-feira, como em todas as vezes…
— Wonwoo. — mal pude impedir que ele pegasse na minha mão. Na verdade, eu nunca podia fazer isso, já que ele estava sempre lá em cima e eu lá embaixo, e já estava bêbado como ficava em dias de rodada dupla, o que resultou em, de repente, eu ser arrastada como no dia do auditório em direção à bancada lotada do bar, cheio de gente maluca para entornar o glorioso e questionável especial da noite.
Eu estava me irritando com Wonwoo, me irritando de um jeito que eu raramente me irritava, mas tudo isso evaporou quando ele parou do nada, me fazendo bater o nariz nas suas costas.
— Calma aí. Wonwoo, não é? — a voz de Yoongi soou calma e branda ao nosso lado, ao mesmo tempo em que era firme e afiada como uma katana. — Você ouviu a , ela tá comigo. Inclusive, a gente já tava de saída. Já peguei todos os livros que eu queria. — ele balançou a coleção de três livros na mão, o do topo sendo o do Hutton e suas hipóteses sobre o centro da Terra.
Wonwoo afrouxou a mão o suficiente para que eu me soltasse.
— Certo, é, sim. — falei meio desengonçada, indo para o lado de Yoongi e encarando Wonwoo. O olhar do meu amigo estava cravado e feio sobre ele. — Eu não vim aqui para o de sempre, Wonwoo. A Belle tá cuidando do filho do Yoongi e a gente precisa ir lá em casa pra buscar ele. Talvez na semana que vem…
— Na semana que vem é você que vai estar cuidando do filho dele? — Wonwoo disparou, olhando para mim. — Semana passada você também estava ocupada com ele. Vai ter um dia em que eu vou te ver de novo?
— Wonwoo… — franzi o cenho, sem entender que merda ele estava falando. — Você me vê praticamente todo dia…
— Eu te via todos os dias. Quando a sua pesquisa era só uma parte da sua vida, e não toda a sua vida, e agora que ele chegou…
— Ela sempre foi toda a minha vida, Wonwoo. De que merda você tá falando?
— Foi o que você ouviu.
— Parece que ouvi você dizendo que não deu a mínima pra nada do que eu disse nos últimos cinco anos, isso sim. A minha pesquisa nunca ia pra frente, eu nunca ia conseguir os materiais necessários pra Harvard, nunca ia alcançar os créditos de seleção que eles exigem porque estava praticamente sozinha, fadada ao fracasso. Agora eu tenho um bom laboratório, boas amostras que dão certo, e um ótimo analista pra me ajudar, ajudar no meu sonho! Que porra, você sabe de tudo isso, você sempre soube, e se tivesse escutado alguma das malditas vezes em que quis explicar sobre o GPR, saberia ainda mais, e tenho certeza que me apoiari…
— .
Yoongi tocou no meu cotovelo, derramando uma onda imensa de calma sobre o meu corpo inteiro, fervilhando de uma raiva súbita. Não fazia ideia do que deu em mim, mas aquela cara de panaca de Wonwoo estava me deixando com vontade de chutá-lo no meio das pernas.
— Não é hora de você discutir isso. A gente tem que ir, o Jihoon tá esperando a gente.
Assenti no automático, olhando para ele de canto de olho. Yoongi tirou a garrafa quase vazia de cerveja da minha mão e a colocou ao lado da sua na prateleira, agarrando os livros e abrindo uma palma nas minhas costas para começar a me guiar para a saída.
Só quando chegamos do lado de fora que percebi algumas coisas, como os muitos olhos curiosos encarando a mim e Yoongi enquanto ele me escoltava daquele jeito, as narinas bufantes e super estranhas de Wonwoo e o fato inebriante de Min Yoongi ter dito meu primeiro nome.
Falei pela terceira vez enquanto saíamos do elevador trêmulo do prédio onde eu morava com Belle, o melhor que o subúrbio de Spruce Hill podia oferecer dentro do nosso sempre limitado orçamento.
Yoongi balançou a cabeça de novo, como veio fazendo desde que entrei no seu carro e vomitei uma série de explicações aos seus pés, fazendo-o murmurar a mesma coisa:
— Eu não tenho que te desculpar por nada, . Você está pedindo desculpas por outra pessoa.
— É. Acho que eu tô. — suspirei, cruzando os braços na frente do peito, ainda sem jeito. — Wonwoo foi um idiota. E eu juro que ele não é sempre assim, mas não vou tentar defender a atitude dele. Acho que o lance com o Nolan e o término com a líder de torcida tomou proporções épicas de Hollywood e daí ele acabou abusando, mas geralmente ele não bebe desse jeito. Por causa do time e tudo mais. — usei um tom óbvio e pouco urgente. “Ele é atleta, essa gente mal tem o prazer de ingerir carboidrato decentemente! Pode dar um desconto?”
Yoongi deu de ombros, inabalável.
— Tudo bem, é noite de dose dupla. O treinador deve fazer vista grossa pra esse tipo de coisa. Pelo visto, é uma confraternização geral bem popular.
Ri, puxando as chaves da bolsa.
— Popular pra cota estudantil da Drexel, que contam as moedinhas durante a semana pra conseguir almoçar um Subway. Beber à vontade pelo valor de dois expressos é simplesmente deslumbrante pra gente.
— Eu tenho certeza que vi o doutor Jackman da Bio-termodinâmica do outro lado do balcão hoje.
— E para os professores da Drexel sem bolsa de pesquisa há mais de 2 anos, aparentemente. — complementei, me aproximando da porta de número 404. A madeira era escura e úmida no estilo do balcão do Mango’s, e não tínhamos tapete de boas-vindas porque o vizinho deixava o cachorro solto pelo corredor de vez em quando e ele gostava muito de plástico emborrachado no café da manhã.
Yoongi enfiou as mãos nos bolsos frontais da calça enquanto eu procurava a chave certa do meu enorme molho de metal.
— Há quanto tempo você mora aqui? — vi ele olhar em volta da mesma forma que fez no bar.
— Uns três anos. Quando conheci a Belle na Drexel na época em que ela achou que queria um diploma de Administração. Antes daqui, a gente dividiu um quarto no dormitório sul junto com um monte de baratinhas filhotes. — achei a chave e a enfiei no trinco. Yoongi soltou uma risadinha pelo nariz.
— E nesse dormitório vocês conversavam sobre GPR e a sua pesquisa?
— Estava mais pra falar sobre “qual membro da família Baratal vai nos fazer uma visita hoje à noite” ou julgando os penteados antigos do *NSYNC do que algo relacionado à minha pesquisa. Iria precisar que eu traduzisse muitas vezes. — empurrei a porta, que se abriu com um rangido trêmulo. Yoongi veio logo atrás de mim.
— É, falar de radar de penetração do solo pode ser um pouco chato para os meros mortais. O que houve com as baratas? Conseguiram ir pra faculdade?
— Bem pensado. Mesmo estando no campus da Drexel, elas não…
Parei assim que acendi a luz. O riso que eu estava prestes a dar morreu no meio do caminho.
Do outro lado da sala, onde ficava a cozinha conjugada com a única mesa quadrada que tínhamos no apartamento, estava o que se podia chamar do maior estoque de pênis realísticos de silicone já visto no estado da Pensilvânia.
Todos os meus músculos paralisaram em uma onda gelada. Cada gota de sangue disparou para o meu rosto. Senti Yoongi esbarrando nas minhas costas de leve quando parei abruptamente e vetei seus passos, ainda no batente da porta. E tentei muito, muito pensar o mais rápido possível.
Fechei o punho no interruptor de novo, virando para ele na velocidade da luz, esquecendo que ele estava praticamente grudado nas minhas costas e, agora, passando a ficar grudado na minha barriga, no meu nariz, em toda a parte dianteira do meu corpo já bambo.
— Mas o quê… — Yoongi parou de falar quando sentiu minha respiração no seu rosto. Quase arrisco a dizer que ele parou de pensar por um segundo, igual a mim, a maluca agindo unicamente por instinto. Com a luz da casa de novo apagada, a única coisa que nos iluminava ali era a luz fraca do corredor, que era de um verde hospitalar doentio, com lâmpadas formidavelmente velhas que estavam ali desde que o País de Gales era a Inglaterra. E mesmo nessa fraqueza de distinção, vi quando Yoongi pressionou a mandíbula tão forte que o osso quase mudou de lugar. — O que você tá fazendo, ?
Abri a boca para responder alguma coisa, me explicar, mas não sabia o que dizer. Meu corpo agiu primeiro que o meu cérebro, os dois se trombando do nada, sem combinar um plano decente. Yoongi foi se recuperando do choque e tentou se afastar, mas de novo, vítima de uma nova onda de desespero gelado, cravei as unhas no seu braço e o puxei para mim, puxei seus olhos para mim, puxei seu corpo inteiro para mim, torcendo para que ele não levantasse a cabeça e olhasse para a mesa na outra extremidade, ou eu e Belle estaríamos ferradas.
— Espera… — falei, e quase senti a superfície do queixo dele na minha boca. Meu Deus, o que eu estava fazendo? — É só que… — pensa, pensa, pensa, ! — Tem uma coisa muito constrangedora em cima da mesa agora, e seria ótimo se você saísse por um minutinho pra eu poder me livrar dela. Pode ser?
Não sei como as palavras saíram tão firmes e não tão emboladas como estava meu coração naquele momento. Só fui perceber o quanto eu estava desnorteada quando Yoongi resmungou uma concordância, a silhueta de seu pomo de adão descendo e subindo duas vezes, e saiu da minha frente, devolvendo todo o ar em volta que a proximidade dele tinha roubado. Ouvi sua voz soprar um “vou mandar uma mensagem pra Belle avisando que chegamos” e seus passos voltando para o corredor, sem nem virar a cabeça para a mesa ou para mim.
Mesmo assim, ainda levei um tempo incalculavelmente longo até me tocar do quanto estive perto dele e do quanto fiquei perto de beijá-lo. Uma coisa assustadora de milímetros. Milímetros da boca de Min Yoongi.
Quase dei um tapa na minha cara e corri para a cozinha, juntando os vibradores em uma única sacola de papelão, vários pênis de textura macia em todas as cores, tamanhos e envergaduras imagináveis, prensando-os o máximo que consegui e, daí, esticando os pés para jogá-los no armário em cima da pia, do mesmíssimo material da porta e que rangia igual, mas com espaço suficiente para aguentar as infinidades de panelas espalhadas que Belle comprava e nunca usava (e, agora, uma sacola cheia de pintos). Com a mente a milhão, não consegui pensar em um lugar melhor. Mandar uma mensagem levava um minuto e eu tinha menos tempo que isso.
Empurrei a porta do armário com força para garantir, larguei a minha bolsa em cima da mesa e corri de volta para a porta, no exato instante em que Yoongi curvava para dentro.
— Eu já ia te chamar. Vem, entra. — dei um sorriso ofegante, acendendo as luzes agora sem medo. — Quer um café? A gente só tem solúvel, e talvez ele esteja guardado há muito tempo, mas juro que nem dá pra sentir.
Yoongi levou um tempinho para negar com a cabeça, enquanto encarava de forma muito sutil cada ponto do apartamento, como tinha feito no corredor.
E no Mango’s.
E no laboratório.
— Não, estou bem, obrigado. — respondeu, andando devagar até a sala. Ele fazia muito isso: olhava para todo canto, de todos os lugares, guardando a opinião sobre o que estava vendo para si mesmo. Era um cara que tinha estudado as linhas milenares das principais formações rochosas da Terra em detalhes clínicos por anos, então devia ser só força do hábito.
Diferentemente de mim, que levei um ano inteiro para perceber uma infiltração enorme no banheiro (o que poderia acabar atraindo a próxima geração das baratas do dormitório).
— Conseguiu fazer… o que você tinha que fazer? — perguntou ele, gesticulando na direção da cozinha, claramente evitando meu olhar. Dava para entender completamente a atitude: chegamos muito, muito perto de nos beijar há menos de 3 minutos, e ainda nem tive tempo de ponderar se isso seria uma boa ideia ou não.
Para do doutorado, que foi agraciada pela colaboração de um dos maiores geólogos do mundo, e estava usando e abusando de seu conhecimento surreal como meio de alcançar seu sonho de Harvard, seria uma péssima ideia, a pior que já teve em todos os seus 24 anos de vida.
Já a da Filadélfia, uma mulher muito simples e até que bonita de 24 anos, com o sangue meio quente do especial do Mango’s e duas cervejas amargas, voltando para casa com um cara ferrenhamente atraente e que a chamou pelo primeiro nome, a ideia era maravilhosa. Pateticamente desejada.
Mas a primeira tinha que vencer.
— Consegui. Desculpa por… aquilo. — limpei a garganta. — Sempre esqueço que eu e Belle recebemos poucas visitas em casa, então nossa arrumação nunca está na lista de prioridades.
— Ah… tudo bem. — ele balançou a cabeça, olhando os próprios pés por um segundo. — Eu achei tudo bem… agradável.
Dei um sorriso amarelo. Decidi pensar que ele estava apenas sendo educado, e só falei:
— Pode sentar aí. Eu vou buscar uma água pra você.
Não esperei ele protestar. Entrei na cozinha e abri a geladeira.
Vi pelo canto do olho o momento em que ele sentou no sofá velho de couro marrom, que foi a única coisa que eu e Belle aceitamos de Wonwoo no chá de casa nova. O resto das coisas que ele queria nos doar se tratava de pôsteres de bandas, times de basquete europeus e a Playboy da Kate Moss, edição janeiro de 2014. Tudo que fariam ele se sentir em casa, bem mais do que nós duas.
Notei que Yoongi continuou olhando serenamente em volta, sem pegar o celular e mexer em qualquer coisa, como todo mundo faria se estivesse se sentindo constrangido na casa de outra pessoa. Em vez disso, ele se remexeu no sofá, como se estivesse procurando uma posição mais confortável, franzindo o cenho rapidamente e se remexendo de novo. Voltei para a sala com água em um copo curvilíneo e o estendi para ele, me sentando do outro lado da mesinha de centro, em um puff empoeirado que um dos caras do time fez a gentileza de nos presentear (e aceitamos de bom grado, depois de uma limpeza pesada com muito alvejante e luvas de proteção).
— Então, o que a Belle disse? — perguntei, buscando não ficar no silêncio.
— Eles já estão vindo. É sexta-feira, então o trânsito na Center City fica bem maluco.
— E é o dia das crianças no playground do Franklin Square, o trânsito é todo delas. — dei de ombros, bebendo a água. Torci para que ela congelasse todos os meus nervos ainda pegando fogo.
Yoongi também fez o mesmo, se recostando no encosto do sofá. Fez aquela careta estranha de novo e voltou para a frente.
— Então… o que você achou do Mango’s? De verdade agora. — preenchi o silêncio outra vez. Precisava esconder todas as brechas de tempo em que o cérebro dele pudesse retornar para a cena da porta.
Yoongi tirou os olhos dos pontos aleatórios da casa e os voltou para mim.
— Sinceramente? Tem estilo. — ele deu de ombros, a melhor explicação que poderia dar. — Parece o cenário de várias sitcoms de comédia em um lugar só, e talvez poderia ser um bom espaço pra uma aula de campo do departamento de Arquitetura por causa de toda aquela madeira centenária.
— Ah, não dá, eles entregariam o Lucas. Os biólogos ficariam putos porque eles vão lá estudá-lo tipo como uma diversão de fim de semana, mas também se apegaram ao bichinho, e daí começaria um combate violento e sanguinário, a anarquia se espalharia pela Drexel, incêndios e protestos parariam tudo e adeus à universidade mais antiga da cidade.
Dei de ombros, bebendo mais um gole de água. Yoongi apoiou os cotovelos nos joelhos, me encarando por um tempo até deixar a pontinha de sorriso escapar, como se eu fosse um entretenimento melhor que o desfile de 4 de julho.
— É o seu tipo de lugar, não é? — disse ele.
— É que eu ainda não conheço outro. Quem sabe em Harvard tenha um Mango’s 2.0.
— Lá tem um universo de Mango’s, com especiais do dia em todos os dias da semana, e caras que tiram pombas de um chapéu de mágico.
Meus olhos brilharam.
— Tá falando sério?
— Bom, há 8 anos era assim, hoje eles já devem ter trocado pra serpentes que dançam com Ariana Grande ou camundongos que consertam o seu jaleco por 1 dólar.
Coloquei a mão na boca quando ri alto. Yoongi abriu um sorriso um pouco maior.
— Nossa, doutor D, até que você lembra de muita coisa. Agora preciso ir conferir o que tem de novo.
— Eu faço questão que você vá pra me trazer um relatório completo.
Senti de novo aquela sensação de ter um pano quente engolfando todo o meu estômago. Min Yoongi estava se mostrando um dos caras mais incríveis que já conheci na jornada acadêmica. Enquanto meu orientador oficial, doutor McDiarmid, um idoso que me deixava ansiosa na maior parte das vezes, me dizia com todas as letras que “não é crime tentar entrar em Harvard, mas pode virar um caso você não esteja preparada para um não”, o que, na minha interpretação, significava que ele achava que eu devia desistir da ideia, porque só de querer entrar já era fantasioso o bastante para alguém da Drexel, Augustus D. fazia questão de quebrar cada partícula de crença de incapacidade que ousasse vazar dos meus poros e deixar bem claro que sim, eu podia — ele fazia questão disso.
E essas coisas não estavam me ajudando a manter aquela imagem de Yoongi como o meu apenas analista e nada mais. Digo, oficialmente, não deveríamos fantasiar com colegas de trabalho em nenhum grau, mas Min Yoongi com aquele olhar inteligente, postura inteligente e uma enorme inteligência geral que era misteriosa e cativante não estava me dando escolha.
Estava prestes a abrir a boca e dizer alguma coisa, qualquer coisa mesmo, tipo falar sobre gradiometria de fluxo, quando ele se mexeu de novo em cima do sofá e fez aquela careta como se algo o estivesse incomodando.
— Desculpa, eu… eu acho que… — ele tateou a superfície de couro amarfanhada, procurando algo. E, quando raspou a mão dentro da divisória do sofá e puxou de lá uma coisa cilíndrica e enorme de cor vermelho vivo, tive vontade de me matar.
O vibrador exuberante surgiu na nossa panorâmica, cheio de suas veias artificiais e a glande com a parte rugosa e detalhista que sugeria uma imagem totalmente fiel do membro de verdade.
Tudo aconteceu muito rápido: Yoongi gritou de susto, largando aquela coisa na mesma hora, e eu gritei pelo grito dele, ambos levantando de onde estavam sentados e observando a coisa despencar na mesinha de centro, pulando uma e duas vezes por causa da mola na extremidade, parecendo quase vivo por um segundo.
— Porra! — Yoongi trincou os dentes, respirando fundo, finalmente se acalmando e olhando melhor. — Mas que merda…
— Que merda! — reclamei na frente, um cubo enorme de gelo deslizando pela minha espinha e fazendo uma poça no meu estômago.
Yoongi olhou de mim para a coisa, de mim para a coisa de novo, até se abaixar na mesa e puxar o que parecia ser a etiqueta pendurada ao redor da glande. Uma etiqueta escrita BigBelly Sex Shop.
Ah, merda. Merda, merda, merda…
— BigBelly Sex Shop? — ele leu, franzindo o cenho. — Mas… Belle? Isso é dela? Existe uma loja com o nome dela ou…
Paralisei. Meu cérebro estava girando como um pião. Me matava saber que, daquela vez, eu não podia simplesmente pedir para ele sair rapidinho enquanto eu me livrava de um inconveniente na sala.
Yoongi estava esperando uma resposta, a face inteira marcada por resquícios do choque inicial.
— É… isso… não é bem o que você tá pensando. — respondi o que provavelmente seria a melhor opção no momento.
— Ah, não é? — ele arqueou as sobrancelhas, nada convencido. Senti que eu poderia passar o restante das horas da noite tentando inventar uma desculpa, mas nenhuma delas adiantaria de nada.
Que mentira eu poderia inventar depois de ele ter literalmente sentado em cima do vibrador de última geração do estoque de Belle?
Puxei bastante ar para os pulmões.
— Tá bom, isso é mesmo da Belle, ela tem uma pequena lojinha na internet que vende artigos sexuais, e daí? As pessoas têm direito a um momento feliz de intimidade consigo mesmas.
Coloquei as duas mãos na cintura, convicta. Yoongi contorceu a boca por um momento, semicerrando os olhos.
— Espera, uma pequena lojinha? Tá dizendo que a sua amiga tem uma empresa?
— Ela ganha pouco. Muito pouco. Quase nada. Mal dá pra comprar um pacote de jujuba. — expliquei rápido, gesticulando mais do que o necessário.
Ainda com a mesma careta desconfiada, Yoongi se abaixou para o negócio, agora com menos medo de que ele decolasse e o atacasse, e puxou a etiqueta para ler de novo.
— “A maior sex shop online do estado da Pensilvânia, e com mais de 50 mil clientes em todo o nordeste…”
— Isso é um exagero, é jogo de marketing, as pessoas fazem isso pra aumentarem as vendas, dando a impressão que elas têm muito mais…
— .
Calei a boca. Nunca tinha parado para refletir muito se eu era boa mentindo ou não, porque normalmente não via motivos para mentir, pelo menos não de um jeito sério. Ser sarcástica sempre era melhor do que ser mentirosa, mas naquela hora, com aquele olhar firme de Yoongi, eu me senti apenas o ser humano mais patético da face da Terra insultando a inteligência de alguém, tentando convencê-lo de que não viu algo que claramente viu.
E quer fosse aquele olhar ou ele por inteiro, não tive vontade nem de ser a sarcástica ou a mentirosa para Yoongi. Eu só queria contar a verdade.
— Tá legal, ela ganha bem. Talvez não seja mesmo a maior loja online do estado, e não chegue a 50 mil clientes, mas dá um rendimento líquido duas vezes maior que a bolsa da Drexel, o bastante para sempre termos um aquecedor funcionando no inverno. Não fica chateado, por favor…
Yoongi balançou a cabeça várias vezes, agarrando o topo do cabelo por um momento.
— Não estou chateado, . Eu estou… Ela mentiu pra mim. A mulher que está cuidando do meu filho nesse exato momento mentiu pra mim, e eu não sei o que pensar sobre isso.
— Fui eu que pedi. — falei, dando um passo para mais perto dele. — Yoongi, eu pedi pra ela mentir pra você, porque sei que ela tem negócios não muito populares pra se contar nas família tradicionais e isso talvez despertasse um julgamento errado da sua parte, mas eu tinha certeza absoluta que ela cuidaria bem do Jihoon. Eu nunca teria indicado ela se pensasse minimamente o contrário. E você vê que tá tudo bem, a Belle faz um bom trabalho.
Yoongi não disse nada, o rosto temeroso e mortalmente sério. Ele umedeceu os lábios enquanto respirava fundo, os ombros se abrandando aos poucos.
— É só isso? — perguntou em voz mais baixa. — Vocês mentiram sobre mais alguma coisa ou os pênis de silicone, os chicotes e a corda de bondage são tudo?
— Ela não tem cinco irmãos. — a frase escapou de mim como o tiro de uma espingarda. Nem vi quando meu cérebro tinha unido as palavras. Yoongi já estava começando a fazer outra cara feia. — Mas ela tem dois, e honestamente, eu acho que conta, de dois pra cinco não é muito…
— Um terremoto escala 2 e um de escala 5 são muito diferentes, . — ele grunhiu, agora começando a dar mini voltas na frente do sofá, bagunçando ainda mais o cabelo já meio bagunçado. Tive certeza de que o “vocês mentiram sobre mais alguma coisa?” era um jeito de falar, e não uma necessidade real de resposta verdadeira.
Mas tinha algum mecanismo estranho dentro do meu cérebro que andava achando inaceitável mentir para esse cara.
Ele balançou a cabeça várias vezes, a careta de desgosto estampada em todas as linhas duras do rosto.
— Eu não acredito. Não acredito como me deixei cair nessa.
— Yoongi…
— Por que você fez isso? Por que mentiu pra mim? Por que fez ela mentir pra mim? Tinha a ver com meu filho, , eu confiei em você, confiei na Belle!
— Desculpa! Não foi por mal! Eu precisava que você me desse uma chance, uma mínima chance de mostrar minha pesquisa, e pedi ajuda, foi só isso…
— Ah, é, lógico. — ele soltou uma risada esparsa e perplexa, as mãos agora na cintura enquanto me olhava de uma forma que me fazia crer que eu estava caindo no conceito dele a cada segundo que passava. — Tudo pela pesquisa da sua vida.
Eu sei que aquele não era o momento certo de eu virar as condições a meu favor ou dizer algo que soasse como vitimismo, mas o tom frustrante de desprezo que escapou da boca dele na última frase me fez sentir um incômodo que não deveria.
— É a pesquisa da minha vida, sim! E eu sinto muito por ter mentido ou alterado alguns fatos pra conseguir a sua atenção, mas você iria demorar até achar uma babá confiável no meio dessa cidade, e o Jihoon merecia se divertir…
— Eu tinha todo o direito de demorar o tempo que fosse preciso, ! Estamos falando do meu filho aqui, e de alguém pra ficar com ele enquanto eu não estou presente, tem noção disso? Aliás, se mentiu desse jeito, você não tem a mínima noção de nada, talvez não tenha a menor ideia do que é ser mãe ou responsável por alguém, e se ver de repente tendo que tocar isso sozinho, com a cabeça cheia de preocupação, se perguntando toda hora se você tá conseguindo ou não suprir tudo que ele precisa, e isso vai muito além de casa ou comida, cacete. Isso não é brincadeira, . — ele se mexeu ansiosamente até se aproximar de mim. — Eu confiei em você, mesmo com uma pontada de dúvida, porque você parecia confiável, pensei até que você parecia um milagre, mas você não pode fazer isso, ! Não pode brincar com os sentimentos de outras pessoas em detrimento das suas vontades.
— Não brinquei com seus sentimentos! Eu não sabia…
— Não se trata de saber! Pelo amor de Deus, , você acha mesmo que eu queria deixar meu filho até mais tarde na escola? Acha que eu queria voltar pra esse país, voltar pra tudo isso, se não fosse extremamente necessário, se não fosse a melhor coisa tanto pra mim quanto pro Jihoon? Nenhum pai quer ficar longe do filho, independentemente das circunstâncias, isso não é algo que eu deveria te contar, é só o básico. Você ignorou isso!
Senti o olho arder, e pisquei várias vezes para espantar a sensação. Todo aquele gelo tinha derretido no meu sangue queimando, e meu cérebro maluco queria olhar para a fúria de Yoongi e caracterizar aquilo como um exagero, uma demonstração bem-sucedida e desnecessária de pai do ano, mas…
Como eu explicaria para ele que eu realmente não pensei nisso? Que não achei que tinha nada demais? Que o meu pai não veria isso como um problema?
— Yoongi… eu… Eu realmente não pensei…
— É claro que você não pensou. Se te traz algum benefício, mesmo que mínimo, você não pensa em mais nada ao seu redor. Não se preocupa em burlar sistemas, bajular as pessoas ou enganá-las pra conseguir o que você quer.
Abri e fechei a boca várias vezes, vendo ele soltar fogo pelas narinas abertas e me senti revestida por um estado hiperalerta.
— Espera aí, isso é por causa dos presentes de corredor? Você ainda tá falando disso?
Ele deu mais uma daquelas risadas secas e feias.
— Entenda como você quiser.
— Aquilo é uma gentileza, caramba! Eu não vou batendo de porta em porta pedindo um café ou minutos extras na estufa vizinha, por que você não consegue aceitar que as pessoas gostam de mim?
— Gostam de você? Ah, eles gostam mesmo de você. — cuspiu ele. — Te pagar um café de 7 dólares uma vez é uma gentileza, . Quatro dias por semana é praticamente um pedido pra usar essas coisas com você. — apontou para o vibrador ainda jogado na mesinha.
Uma raiva imensurável tomou conta de mim. Principalmente uma raiva meio sem direção, uma que eu não sabia se era de Yoongi, do vibrador, de Belle, ou de mim mesma e todos os três cientistas do departamento que me descolavam cafezinhos gostosos.
Senti ainda mais raiva por Yoongi estar me vendo e me analisando daquela maneira, uma raiva de querer incendiar alguma coisa.
— Vai à merda, doutor D! Quem você pensa que é pra me julgar assim? Eu não sou como você que vive de cabeça baixa, repelindo as pessoas e existindo pelo campus porque acha que a vida dos outros são coisas desinteressantes que não valem o seu precioso tempo. Não é porque eu odeio esse lugar que vou mostrar isso pra todo mundo o tempo inteiro, não vou deixar pra ser feliz e sorrir só quando alcançar a linha de chegada em Boston. E cafés me fazem feliz, cacete! Se você não é capaz de fazer uma gentileza de 2 dólares pra sua colega, por que não deixa que os outros…
O trinco da porta fez barulho quando uma chave foi girada e ela foi aberta, trazendo Belle e seus cabelos loiros e cheios pra dentro, murmurando palavras animadas para o garotinho que pegava na sua mão e ria espontaneamente do que quer que fosse.
Jihoon entrou aos pulinhos, um mini querido usando bonezinho com as cores de sorvete napolitano, e balançando um pirulito em formato de anel, preso no seu dedo indicador direito. E, claro, estava com aqueles tênis que piscam e com um carrinho qualquer de Fórmula 1 nas mãos.
As palavras deram meia volta na minha garganta na mesma hora e me afastei do que devia ser a longa segunda vez em que eu ficava tão perto de Yoongi, dessa vez por motivos diferentes, mas ainda assim me dando aquela sensação surreal de querer pressionar meu corpo inteiro diretamente sobre a ventilação de um ar condicionado para não morrer de calor.
O silêncio foi tão pesado e tenso que Belle também engoliu o sorriso que estava dando e franziu a testa inteira.
— Que cara é essa, gente? — perguntou enquanto fechava a porta com o pé, com uma mão segurando Jihoon e a outra cheia de sacolas com ursinhos e algodão doce no saquinho.
Eu não sabia se poderia existir uma explicação para aquilo. Não sabia se eu teria respondido alguma coisa ou se Yoongi continuaria seu discurso e demitiria Belle bem ali no meio da sala, na frente de Jihoon, pegando na mão do filho e tirando ele de perto de nós, pronto para dirigir pela cidade com seu belo Audi fazendo planos de largar a minha pesquisa de mão e nunca mais me ver.
Mas em uma coisa que ele disse hoje estava certa: minha vida parecia mesmo um pouco com o cenário de uma boa e velha sitcom.
Porque assim que Belle bateu a porta da frente daquele jeito desengonçado sem as mãos, a força aplicada foi além da que nossas paredes velhas e concreto velho estavam acostumados. A vibração do batente reverberou pela casa inteira como o chute de um gigante, e aquela porta do armário em cima da pia, já muito frágil e nada confiável sem uma tonelada de produtos do lado de dentro, simplesmente se soltou e abriu, derrubando o saco de papelão e fazendo jorrar uma infinidade de pênis coloridos até o chão, caindo um após o outro.
Daquela vez, o silêncio tinha ganhado o peso colossal de todos os monumentos geológicos que eu conhecia juntos. Ninguém ousou nem respirar. Até mesmo Jihoon tinha paralisado as mãos e a boquinha aberta vendo aquela cascata de coisinhas estranhas sendo vomitada pela porta do armário.
Para nossa sorte, Yoongi agiu bem rápido. Ele pulou para o lado de Jihoon e pegou o filho no colo, formando uma barreira na frente da cena e gesticulando para as sacolas de Belle sem exatamente olhar para ela. Em um segundo, estava saindo pela porta, murmurando coisas baixinhas sobre os dois estarem atrasados e precisarem ir para casa.
— Mas a tia Belle disse que ia me dar iogurte de banana. — o garotinho resmungou.
— Eu compro quantos iogurtes de banana você quiser no caminho. Agora vamos.
— Yoongi, espera… — acordei no último segundo, mas ele já estava indo.
E tanto as vozes quanto os passos deles desapareceram no corredor em menos de um minuto.
Fiquei parada por um tempo incalculavelmente longo, assistindo aquilo como se tivesse acontecido literalmente dentro de uma TV e não ali, na minha sala.
Belle parou na minha frente, os olhos arregalados e a boca abrindo e fechando enquanto encarava o caos de pintos espalhados pelo chão.
— Mas que porra aconteceu aqui?
Suspirei em derrota, balançando as mãos em um sinal universal de “não quero falar sobre isso” e fui direto para o quarto.
E “realmente importantes” era um jeito tosco de me referir às notícias que nunca sairiam em outros veículos de informação da universidade, como o fato de que já fazia dois dias que o grande e reluzente Audi A8 do galã do momento, doutor Augustus D., não cruzava a autoestrada 2 que levava em direção ao campus, e usufruía de sua linda vaga confortável em frente à entrada.
Fui obrigada a ouvir teorias sobre isso no horário de almoço, que ultimamente estava sendo no pequeno refeitório do departamento de Geociências, em que quatro garotas estavam dizendo que ele tinha, finalmente, entendido que a Drexel até que estava querendo se atualizar nas suas abordagens, mas não tanto a ponto de pular centenas de etapas e ir direto para a parte de Geomorfometria Digital, a principal linha de pesquisa de Augustus. Considerando que a maioria dos professores ainda usavam computadores com o Windows 7, Yoongi poderia estar pedindo demais.
“Talvez Harvard faça melhor uso dele. Quem que sai de uma Ivy League e quer retornar às origens aqui se não for pra se mostrar?”
“Ele sempre foi gentil, fora que é um gato e cheio da grana. Deveria estar curtindo a vida, e comprar uma casa na praia pra viver até morrer, sendo servido por garotas havaianas ou coisa assim.”
“Uma dessas garotas poderia ser eu.”
“Você só tem 27 anos, Illeana, acorda. O doutor D. prefere mulheres mais maduras, e centradas, com o desejo de reviver a ciência.”
“Se eu me casasse com ele, largaria tudo isso sem piscar. Quem precisa de estatísticas espaciais? Só queria ser proprietária de uma Gucci pelo menos uma vez na vida.”
“Até aguentaria o filho dele se estivesse calçando um Jimmy Choo.”
Bati com a bandeja na mesa com força e arrastei a cadeira mais do que o necessário quando me coloquei de pé e deixei o refeitório. As quatro vacas pararam de falar e levantaram a cabeça para me observar passar, e contive a vontade de levantar o dedo do meio para elas.
Queria estar dirigindo o Camaro laranja do professor traficante naquele exato momento e atropelar todas elas de uma vez. Ou arranhar suas caras com o molho de chaves extravagante que eu tinha guardado nos bolsos. Juro que cheguei a sonhar com isso enquanto jogava fora os plásticos do almoço, almejando essa realidade ao mesmo tempo em que trotava pelo corredor de volta para o laboratório. Se eu quisesse ferrar com todos os meus planos de vida e os acadêmicos, eu poderia fazer isso, claro. Mas, por uma questão civil e tudo mais, era melhor ficar longe e me deliciar com as possibilidades de violência universitária se desenrolando lentamente pela minha cabeça.
Pelo menos até eu trombar com um cara enorme usando jaleco encardido.
— Senhorita . Caramba, almoçou tarde. Já passou das 14:00. — o doutor Hollingsworth conferiu o telefone, ajeitando os óculos de grau quadrados no meio do nariz e me lançando aquele sorriso largo e enorme.
Tentei o meu melhor para retribuir com educação no meio daquele mau humor.
— É, hoje eu não quis respeitar o horário comercial e fui direto para o turno que dizem ter os melhores sanduíches de atum na cantina. Aqueles sem água de alface. — dei de ombros. — Então, agora eu preciso…
— Água de alface. — o doutor soltou uma risada imensa e retumbante, daquelas que quase te davam um empurrão. — Você é tão engraçada, senhorita . Tá com um tempinho agora? Fiquei sabendo que o Orion lançou um novo sabor de capuccino, e que ele vai equilibrar o melhor que a canela e o limão siciliano tem pra oferecer.
Na mesma hora, exibi aquela cara de “meu Deus, não brinca!” e quis sorrir e bater minhas palminhas, a confirmação voando para a ponta da minha língua, mas aquela sombra em formato de voz de Yoongi veio novamente na minha cabeça: “Te pagar um café de 7 dólares uma vez é uma gentileza, . Quatro dias por semana é praticamente um pedido pra usar essas coisas com você.”
Meus ombros cederam um pouco. Limpei a garganta para dispersar a frustração e um pouco de raiva dessa lembrança.
— É… eu adoraria, doutor Hollingsworth, mas tenho muita coisa pra fazer no laboratório, e não posso…
— Ah, que isso, não precisa jogar esse charme. A gente sabe que você pode resolver depois. É o café do Orion, lindinha. — ele me deu uma piscadinha. Soltei uma risada meio desnorteada.
— Eu sei que é o café do Orion, e eu mataria por um balde de limão siciliano misturado com qualquer coisa de cafeína agora, mas as minhas amostras precisam de supervisão e o doutor D. não está…
— Ah, é. — Poe soltou mais uma gargalhada alta e forte, me interrompendo. — Tudo bem se não quiser ir, querida, eu posso trazer pra você e tomamos na minha sala, o que você acha? Peço até com chantilly extra. — mais uma piscadinha.
Franzi o cenho para ele.
— Hum… Não, senhor Hollingsworth. Como eu disse, estou ocupada no laboratório, e o doutor D. espera ver minhas amostras prontas até amanhã, então eu preciso terminá-las para o relatório…
Mais um riso estrondoso. Estava começando a me irritar.
— Ah, querida, sabemos bem o que o Augustus anda fazendo naquele laboratório com a sua… pesquisa, seja o que for. Ainda mais quando ele mesmo quem comprou todos os equipamentos novos e colocou uma pessoa de outro departamento ali. Não precisa tentar explicar. — ele abriu aquele esgar imenso como um tubarão, olhando para mim como se eu não passasse de uma garotinha muito engraçadinha. — Ele é um homem brilhante tentando voltar aos eixos que rejeita catorze ligações perdidas de Harvard por dia, e todos nós respeitamos isso. Ninguém está julgando ninguém. Agora, eu acho que você deveria saber que o Orion tem um combo especial com esse novo sabor, parece um cupcake com frutinhas e cobertura de…
— Mas do que o senhor está falando? — agora eu o interrompi, sentindo uma coisa muito quente e muito parecida com o que tinha sentido no refeitório. — A minha pesquisa existe e ela é minha, o doutor D. é o analista das minhas amostras e ajuda no meu texto, nada mais! E como assim ele pagou pelos equipamentos? Lá dentro tem um microscópio STED novinho! Ninguém compraria isso do próprio bolso.
— Bom, também não saiu do bolso da Drexel, que por acaso, anda bem vazio. E duvido que tenha saído de algum órgão do governo, já que ele ainda não tinha preenchido nenhum formulário de pedidos de bolsas quando as coisas foram descarregadas no laboratório. — Poe deu de ombros, tirando um palito de dente do bolso da frente. — Não sei porque está tão surpresa, senhorita . Um milhão dólares não fariam nem cócegas na conta bancária do Augustus, considerando o patrimônio gigantesco da família dele na China, ou no Japão, seja lá de onde ele veio, e honestamente, nem me importo com a procedência dessas coisas. Se ele quiser dar uma de bom moço e tirar a pressão dos nossos ombros de ter que lutar por melhorias de condição de trabalho, ele pode reformar a universidade inteira e trazer quantas estudantes bonitas quiser pra passar o tempo enquanto tenta voltar ao mercado. Se elas forem simpáticas e doces como você, então…
Mais uma piscadinha. E dessa vez, tive que reunir todas as fagulhas de sensatez que nem sabia que era capaz de ter para não fechar o punho naquele olho e impedir que aquela pálpebra desse mais uma piscada pelo resto da vida.
— Tenho uma ideia melhor: Speedy’s Coffee. Eles não têm o xarope de limão tão bom, mas se você quiser um limão inteiro, eles até podem…
— Com licença, doutor Hollingsworth.
Nem me importei de bater no ombro dele quando continuei seguindo pelo corredor, puxando e soltando o ar com força à medida que marchava de volta para o laboratório, indo direto para a bancada e escondendo o rosto entre as mãos.
Meu Deus, que merda era aquela? Que merda era tudo aquilo? Como assim todos os equipamentos que estavam ali, salvando a minha vida e a minha pesquisa, vieram do bolso aparentemente muito lotado de Min Yoongi? E só eu os usava? E de que forma o doutor Poe Hollingsworth não sabia de nada sobre a minha pesquisa? Tenho certeza de que já cheguei a comentar uma ou duas vezes com ele. Durante um café de caramelo delicioso.
Tive vontade de me socar.
“Porque de todas as perguntas que ele me fez sobre você, nenhuma delas era relacionada à ciência.” É claro.
Tateei o bolso do jaleco, puxando de lá meu celular e encarando as trocentas mensagens não respondidas por Yoongi, e até aquelas em que ele respondia em monossílaba. Sem pedido de desculpas de nenhuma das partes, sem nada de concreto que eu pudesse usar para saber se ele estava de bem e perfeitamente tranquilo com o que tinha acontecido entre nós.
Não aparecer no laboratório por dois dias já era uma resposta e tanto.
Desabotoei o jaleco, tomando uma decisão. Isso não podia ficar assim. Se ele ia me abandonar e desistir de tudo, que seja, mas ele tinha que dizer isso na minha cara e não dando sinais como um casinho que vai embora da sua cama no domingo de manhã. Ou, se só quisesse gritar um pouco mais comigo mostrando como eu era egoísta e mimada, tudo bem também, talvez eu merecesse um pouco depois de ter mentido. De qualquer forma, ele precisava me dar respostas decentes que contenham mais de uma palavra.
Juntei minhas coisas enquanto mandava uma mensagem para Belle pedindo o endereço dele. Passei a bolsa em transversal pelo ombro e abri a porta do laboratório, que fez barulho quando a sacola presa na maçaneta de fora bateu na superfície de madeira laminada.
Franzi o cenho. Aquela coisa não estava ali quando entrei. Puxei o plástico e olhei dentro: um enorme copo de café com a logo do Orion estava ali, junto com um bilhetinho em post-it escrito: “Amanhã teremos mais sorte de ir? Chantilly extra, docinho. -H.”
Quase gritei de ódio e quis jogar aquela coisa no chão como uma maluca, mas respirei fundo e só o larguei de volta na sacola, batendo a porta ao sair.
Provavelmente, se o doutor Hollingsworth não tivesse feito o favor de me informar carinhosamente sobre o status financeiro de Augustus D., a casa do sujeito me diria tudo que eu precisava saber.
A fachada gigantesca localizada na região de Villanova, uma das mais nobres da soberba Filadélfia, era de um azul escuro com branco que se parecia muito com algo onde o governador moraria. Pensei em dar meia volta assim que o Uber me largou ali, e ir gritar com Belle em casa, que não me avisou em nenhum momento que Yoongi morava em um lugar tão chique que não era compatível com meus jeans de segunda mão e a camiseta larga de mangas longas que devia ser, com certeza, de algum dos ex-namorados de 19 anos dela que esqueceram na lavanderia do prédio e que passou a ser propriedade nossa.
Mesmo assim, fiz um esforço e caminhei até a entrada, tocando a campainha na frente da porta de madeira escura antes que meu cérebro ousasse desistir. Para minha enorme surpresa, não demorei a ser atendida.
Yoongi abriu a porta, e paralisou por alguns instantes quando notou que era eu ali, e eu paralisei quando olhei para o seu rosto.
Tinha alguma coisa diferente nele. Não era cansaço ou um corte de cabelo novo, mas sim os traços embaixo daquele cabelo um pouco mais desarrumado, as roupas casuais fora do conjunto jaqueta + jeans ou camisa de botão + calça de alfaiataria, ou uma mistura disso tudo junto, sendo substituídas por calça cargo larga e camiseta branca enormes nos seus braços, tudo isso com os pés descalços.
Odiei o modo como achei os pés dele lindos. Precisava urgentemente de internação.
Ele deu uma olhada de canto para o relógio de pulso inseparável.
— Acho que você devia estar no laboratório.
— E você devia estar lá comigo. — retruquei.
Yoongi passou uma mão na nuca, levantando um tufo de cabelos já bem bagunçados.
— Eu tive um imprevisto, mas eu deixei as anál-
— Ah, pode ir parando. Sei que tá bravo com toda a história da Belle, e os pintos de borracha, e a sua desconfiança sobre ela ser uma maluca tarada, ou eu ser uma maluca egoísta, mas quer saber? Você poderia falar isso diretamente. Nós temos histórias de vida diferentes, beleza? Sei que eu menti pra você, mas eu não achei que fosse tão grave assim e você deixou bem claro o quanto fui uma idiota por isso, e na verdade, também estava certo quanto aos cafés de corredor, eu também fui estúpida nessa questão, porque aqueles queridos senhores do departamento são uns babacas que não fazem ideia do que eu estou fazendo ali, então espero que você esteja feliz com isso, mesmo que ainda esteja bravo com o pênis vermelho de 25 centímetros que você pegou…
— . — ele trincou os dentes, olhando para algum ponto atrás das minhas costas. — Tenho uma vizinha de 75 anos que passeia com o cachorro de 3 em 3 horas que acharia muito estranho ouvir o que você está dizendo agora.
Limpei a garganta, jogando a metade do cabelo para trás e tentando parecer confiante quando disse:
— Então vai ter que me convidar pra entrar.
Yoongi me encarou fixamente, pensando sobre o assunto, e quando soltou o ar com força pelo nariz, revirou os olhos quase disfarçadamente.
— Entra.
Ele soltou a porta e voltou para dentro, me deixando segui-lo. Tentei muito manter a minha pose de “garota-determinada-em-busca-de-respostas”, mas isso deu uma enorme murchada quando pisei lá dentro e encarei toda a decoração da casa.
Não sabia bem o que eu esperaria ver da residência de Min Yoongi, mas não imaginei que seria rústico.
Uma escada de ébano estava ao lado do que deveria ser a maior sala que já vi em toda a minha vida. O pé direito do teto era imenso, ostentando lâmpadas industriais e um lustre no centro, e um sofá enorme descansava em formato de L por cima de um tapete azul de frente para uma TV de tela plana desligada. Do outro lado, uma mesa estilo escrivaninha do mesmo material que a escada apoiava um laptop e alguns muitos livros espalhados pelo tampo, um deles sobre magnetômetro de prótons, e diversas folhas de anotações empilhadas em cima da capa. Também tinha um mural retangular na parede, lotado de desenhos pregados por pins, exibindo traços bagunçados de giz de cera e alguns mais elaborados com lápis 3B, dando vida a pedras, praia, cachorros e muitas outras coisas.
Reconheci Jihoon de imediato, brincando animado em cima do tapete com seus carrinhos e caminhões e bonequinhos para dirigi-los. Ele levantou a cabecinha quando me viu, ficando de pé em um pulinho.
— Senhora ! — ele correu até mim, com um sorriso enorme que sempre derretia meu coração de alguma forma. Quando pegou na minha mão, eu a apertei. — Que surpresa! O que faz aqui?
— Ah, eu… Só vim perguntar uma coisa ao seu pai. — respondi no melhor tom convincente que consegui reunir. Yoongi estava rondando nós dois de forma sutil, inclinando a cabeça para mim quase em desafio para ver o que eu responderia ao seu filho. — Já, já eu tô indo embora.
— Verdade? Então não vai querer ver a minha coleção de Hot Wheels? Tem muitos modelos que não consigo levar pra escola, tipo os caminhões de bombeiro junto com a torre de água, e também…
— A senhora infelizmente está com o tempo curto, Jihoon. Ela precisa voltar pro campus daqui a pouco. — Yoongi interrompeu o garotinho enquanto colocava uma mão no seu ombro, chamando sua atenção. — Mas eu tenho certeza que os funcionários da torre de água vão precisar de você agora que o Monstro de Lava está atacando a cidade.
— É verdade! Papai, quer ver como eu derroto ele? Daquele jeito que você me ensinou, com os próprios recursos da terra.
— Claro, quero ver sim. — Yoongi sorriu e Jihoon soltou minha mão, voltando a correr rumo ao seu paraíso de brinquedos. Em seguida, levantou o queixo, falando baixo na minha direção: — Segue por esse corredor e vai pro escritório que eu já te encontro lá. Preciso derrotar um monstro vulcânico primeiro.
Eu não tinha o intuito de sorrir, mas acho que fiz isso por um milésimo de segundo antes de limpar a garganta e seguir na direção que ele me indicou, andando mais devagar que o normal, louca para ficar parada e assistir ao que quer que fosse daquela brincadeira, ainda mais depois que ouvi Yoongi mudar a própria voz e dizer: Você até pode tentar usar a detecção por água, mas isso não vai me derrotar!
Meu Deus, estava achando sexy um homem adulto fazendo voz de vilão segurando um bonequinho de 2 centímetros.
Internação para já.
Andei mais rápido, entrando em um corredor com portas espaçadas dos dois lados da parede, algumas abertas e outras fechadas. Eu não tinha perguntado em qual delas exatamente eu deveria entrar, e não iria interromper o Homem de Lava fugindo da técnica de detecção debaixo d’água para perguntar isso, então continuei andando até uma delas no fim do corredor que estava aberta, com mais um dos enormes tapetes parecidos com o que tinha visto na sala e uma mesa grande, ao lado de outra ainda maior que apoiava uma enorme maquete em 3D com um modelo realista de um relevo terrestre com todas as camadas geológicas: crosta, manto e núcleo.
Mas não cheguei a entrar nessa sala. Porque antes dela, com a porta entreaberta, tinha outra que me fez parar no meio do caminho e colocar a cabeça para dentro pelo vislumbre de algo que achei tão impossível de estar ali que me tirou um arquejo automático: um piano.
Um piano de cauda. O tipo de coisa que só vi nos filmes da Nora Ephron.
Meus pés simplesmente foram entrando, os olhos grudados na estrutura preta e lustrosa, com a tampa fechada sobre as teclas e um banco largo de veludo logo embaixo. Apenas isso já seria o suficiente para me surpreender, mas quando estava totalmente dentro da sala, olhei ao redor e tenho certeza que meu rosto fez uma imitação perfeita do quadro de Edvard Munch, “O Grito”.
A tapeçaria em estilo bordô do cômodo tornava tudo mais escuro que o habitual, mas dava para ver claramente os elementos da parede: duas guitarras e três violões, de cores diversas como preto, azul, vermelho, vinho, estavam pendurados por ganchos, perfeitamente enfileirados e polidos, como se fossem continuamente limpos. Um pequeno sofá de couro preto repousava no centro, meio aquém do restante musical, provavelmente sendo o espaço reservado para o ouvinte da ocasião. Na frente dele, uma lareira apagada de pedra e, em cima dela, porta-retratos se enfileiravam tanto horizontalmente quanto verticalmente, formando quase uma torre de rostos e sorrisos.
Me aproximei dessa parte, fixando o olhar na maior foto e também na mais bonita, sem necessidade de olhar as outras: Yoongi em seu smoking preto, de braços dados com uma mulher da sua altura, de pele clara como a dele e os cabelos pretos e escorridos até a cintura, usando o vestido de noiva mais lindo que já vi, de seda brilhante e marfim, com caimento torto no peito e de mangas justas nos braços, exibindo uma expressão solene de uma supermodelo — o tipo de gente que não precisa mostrar os dentes e arquitetar milhares de expressões para que a população perceba que é bonita; ela só tinha que olhar para a câmera e pronto, foto perfeita.
Yoongi, por outro lado, estava com um enorme sorriso no rosto, um que tenho a certeza absoluta que nunca vi, nem quando ele dava um indício de achar graça das minhas piadas, ou de quando elogiou minhas amostras, ou de qualquer situação em que ele parecia minimamente satisfeito. Aquele sorriso da foto foi quase como um receber um tapa na cara, o lembrete do Yoongi do passado deixando claro para mim que eu nunca o conheceria; que teria de me contentar com essa versão viúva e pouco divertida dele para sempre.
As demais fotos eram diversas: Yoongi com Jihoon na maternidade; ele a esposa se beijando embaixo da Torre Eiffel; os dois com trajes formais em algum evento chique da ciência; Yoongi de cabelo curto usando um moletom de Harvard com outros caras em um abraço grupal; ele e Jihoon com mais ou menos 3 anos de idade em uma paisagem impressionante do que parecia ser o Grand Canyon, o paraíso de qualquer geólogo; Yoongi e a esposa sorrindo um para o outro em um restaurante com paredes de vidro e brindando com vinho; os dois ao lado de uma mulher com traços asiáticos e roupas tradicionais segurando um bebê no colo; Yoongi anos mais novo com um sorriso bobo de menino, olhando para a câmera enquanto segurava dezenas de pedras nas mãos em concha: quartzos lilás, ônix, lápis-lazúli, ametistas, e muitas outras.
Fiquei muito tempo parada olhando essa foto específica, sentindo uma coisa que nem Wonwoo, com seu vocabulário bonito e trabalhado, conseguiria me ajudar a traduzir.
— Achei que tinha dito pra você ir ao escritório.
A voz dele me chacoalhou por completo, me tirando dos cenários e histórias que mergulhei na minha cabeça, uma tentativa de captar detalhes dele através de fotos antigas.
Yoongi não parecia bravo, parado ali no batente e me encarando com os olhos semicerrados, mas também não parecia exatamente contente por ter me pegado fuxicando.
— Err, eu… errei a porta, desculpa.
Eu sabia que ele perceberia a mentira, mas acabou não dizendo nada. Na verdade, se eu não estivesse maluca, diria até que ele encarou todo o entorno do lugar, como se, de alguma forma, ali fosse um cômodo um pouco estranho para ele também.
Ele entrou muito devagar, cerrando um pouco os próprios punhos antes de enterrá-los no bolso da frente da calça, seguindo o olhar até a fileira de fotos em cima da lareira, olhando para elas por três segundos exatos até desviar.
— Eu não sabia que essa sala estava aberta. Achei que Helen tinha trancado quando encerrou o serviço de hoje.
Assenti devagar. Por isso tudo estava tão limpo e com o aroma fresco que enganava, dando a impressão de que era sempre frequentado.
Mesmo assim, não consegui segurar minha língua.
— Eu não sabia que você gostava de música. — gesticulei para os instrumentos espalhados, tendo certeza que não conseguia esconder o brilho impressionado nos olhos. — E essas guitarras, caramba. São iradas.
— Eu gostava. Quer dizer, não toco nada disso há muito tempo. — ele balançou a cabeça, dando uma rápida olhada para os objetos pendurados até desviar de novo. — Estão aí como uma lembrança, só isso.
Esse cômodo inteiro é de lembranças, pensei. Talvez por isso ele estava mais pálido que o normal e com uma imensa vontade de sair correndo dali.
E eu deveria respeitar isso. É claro que sim. Devia lembrar que tinha ido ali para esclarecer as coisas com ele e que o próximo passo que Yoongi daria na nossa relação seria o de estabelecer limites entre o que sabíamos ou não um do outro para conseguirmos ser profissionais até o fim.
Mas eu já estava aqui, a oeste da cidade, em uma linda casa com uma floresta de informações de Min Yoongi, e meu corpo inteiro se recusava a ficar apenas na margem.
— Que tipo de música você gostava de tocar? — perguntei, o mais despojadamente que consegui. Se ele me cortasse, eu aceitaria. Sairia daquela sala e falaria só o que deveria falar.
Mas, dessa vez, ele saiu do próprio lugar e se aproximou do instrumento mais próximo, a guitarra Fender Stratocaster vermelha com design clássico.
— Depende do dia. Foi uma coisa de universidade e festas de irmandade, com muita cerveja em barril e baseado ruim que a gente carregava no bolso. — ele deslizou um dedo pela base e me olhou rapidinho. Pensei que ele desistiria de continuar, mas seguiu no instante seguinte: — Um dia, quiseram fazer uma fogueira bem na divisa de Cambridge com Boston, embaixo da ponte, e quebraram o aparelho de som no caminho. Era época que o pop estava em alta, mas eu e os caras do meu alojamento achamos que era a oportunidade perfeita de mostrar um pouco de Black Sabbath para as pessoas.
— Tocaram Black Sabbath em uma festa de fogueira?
— Tava todo mundo muito chapado, eu duvido que alguém tenha um único registro daquele desastre.
Minha garganta disparou uma risada engraçada, daquelas que simplesmente saltam de você sem aviso, e Yoongi suavizou todos os seus traços que ainda estavam sérios.
— Caramba. Vocês eram muito autoconfiantes ou estavam tão chapados quanto os outros.
— As duas coisas. — ele deu de ombros — Eu tinha esse amigo, Nick. Ele era bom em cantar, tinha uma voz muito parecida com a do Glenn Frey e insistiu pra gente emendar o heavy metal com Eagles, e daí, quando vimos, todo mundo estava gritando ou rindo ou uma mistura dessas duas coisas, mas ninguém jogou nada na gente.
— Considero uma boa avaliação.
— Nick também. Por isso, ele insistiu pra gente tocar em todas as outras festas. — Yoongi contou, olhando para a outra guitarra. Suas mãos não estavam mais fechadas em punho. — Foi um pouco desesperador. Não fazia nem três meses que eu tocava, e ainda ficava treinando cifras de Take It Easy, mas Nick achava que, por eu já saber tocar outro instrumento, aprender um novo seria muito mais fácil. E ele não estava errado.
Franzi o cenho com a nova informação. Yoongi suspirou.
— O piano. Está na minha família há tipo, três gerações. — ele inclinou o queixo na direção do instrumento, mas não necessariamente olhou para ele. — No início, aprendi por obrigação, e quando fui embora de casa, aceitei que não era muito a minha praia e passei a me concentrar no que eu realmente gostava, que era me aventurar em dispositivos voltados para o solo que procuravam limites eletromagnéticos e essas coisas chatas de Geologia. — ele deu uma risada sem humor, com certeza relembrando algo que já escutou. — Nunca achei que ele combinasse muito comigo.
— Eu acho que combina. — comentei, olhando a estrutura preta cintilante, descansando em um estado quase etéreo ali no canto da sala. Yoongi me encarou. — Digo, combina com tudo isso. Como se ele fosse só mais uma versão de você.
Ele umedeceu os lábios, virando a cabeça devagar para olhar o piano, permanecendo nele por mais tempo.
— Talvez faça sentido. De qualquer forma, cheguei a gostar um pouco mais dele depois.
Automaticamente, olhei para a foto de novo. Aquela grande e em destaque, com um casal apaixonado em trajes matrimoniais.
— Por causa dela, né?
Minha voz saiu quase como um sussurro, e por muito tempo não ouvi ou percebi resposta sua. Não quis me virar para verificar porque alguma coisa me dizia que, se olhasse Yoongi agora, meu coração ia rachar um pedacinho. E ele merecia a semi privacidade de poder encarar a foto da esposa falecida sem plateia averiguando sua reação.
Mal ouvi seus passos, mas, quando ele falou, estava vindo agora do meu lado:
— É. Ela era fã mesmo do piano. As guitarras são coisa minha.
— Mas aposto que ela já teve um show particular do melhor cover do Aerosmith bem no meio da sala. — brinquei, dando de ombros. — Eu gravaria isso no meu celular e juntaria tudo numa playlist pra fazer minhas caminhadas de várias horas em paz.
Igual meu pai fez comigo, pensei. Não era uma informação que eu daria agora para Yoongi, muito menos da minha fixação por correr ao redor do parque das pedras até chegar no lago na outra extremidade enquanto ouvia o repeat da playlist na fita cassete toda de novo, ao ponto de sentir que ela tinha drenado toda a minha energia.
Talvez fosse isso que ele sentia com a guitarra.
Ele girou o corpo mais para o meu lado, os braços cruzados frouxamente.
— Na verdade, ela nunca me viu tocar nada além do piano. Não do jeito como as pessoas ouviram, pelo menos. Eu tava terminando o doutorado quando a gente se conheceu, os dias da banda de fogueira tinham ficado no passado.
— Não brinca. — ergui um par de sobrancelhas frustradas. — Como alguém pode olhar pra todas essas guitarras iradas e não ter curiosidade de vê-las em ação?
— Já tinha muita ação naquela época. Trabalho, filho, viagens… É natural que algumas coisas fiquem esquecidas, ou simplesmente parem subitamente. — ele soltou um longo suspiro, olhando para o arsenal de fotos e depois voltando para mim. — Por que você está aqui, ?
. Ainda usando meu primeiro nome. Talvez nem tudo esteja tão perdido.
— Eu… Vim te pedir desculpas. De novo. Eu não devia ter falado com você do jeito que eu falei. — comecei, apertando a alça da bolsa distraidamente. — E quero dizer que não é culpa da Belle. Ela aceitou seguir o meu plano, sim, mas isso não anula o fato de que ela gosta muito do Jihoon e que amaria continuar cuidando dele, e faria isso por muito menos do valor, se quer saber. Toda essa mentira foi minha, eu estava desesperada com o tempo restante da minha defesa e queria muito mesmo trabalhar com você, mas isso não justifica o que eu fiz. Você tava muito empenhado em achar alguém pra cuidar bem do seu filho e eu negligenciei isso, coloquei minha necessidade na frente da sua, não pensei a fundo. Então… me desculpa. — suspirei. Yoongi continuava parado no mesmo lugar, sem esboçar uma única centelha de surpresa ou alívio, gratidão, nada. — E eu vou entender se você quiser pular fora, eu posso conseguir uma forma de analisar as últimas amostras sozinha, consegui aprender muita coisa nas técnicas que você…
Ele me interrompeu com uma risada. Uma que nem parecia tão enojada ou com um pingo da irritação que demonstrou na minha sala.
— . Eu não vou deixar de trabalhar com você. — afirmou, descruzando os braços. — Sim, eu fiquei zangado, fiquei chateado, realmente não achei certo o que você e Belle fizeram, mas me comprometi com você e costumo ser um cara de palavra. O motivo de eu não ir ao laboratório não teve nada a ver com esse assunto.
— Ah… não teve? — franzi a testa. Yoongi balançou a cabeça em negação. — Então por que estava me respondendo daquele jeito?
— Que jeito?
— Monossilábico.
— Eu sempre te respondo assim. — Yoongi trocou o peso de uma perna para outra. Sua testa estava enrugada de confusão, tentando acompanhar meu raciocínio. — E eu não sabia exatamente o que dizer…
— Um “estou chateado com você” ajudaria. Talvez com um complemento: “mas isso não quer dizer que vou deixar suas amostras órfãs” seria definitivamente melhor. Mas responder com “sim” e “não” em um momento de tensão entre a gente, não faz eu me sentir mais tranquila.
Não sabia bem porque estava dizendo aquilo naquela hora, e Yoongi mudou a expressão de um pouquinho confuso para muito confuso em questão de um segundo até passar o polegar pela testa e assentir devagar.
— Hum… eu não sabia que isso era tão importante pra você, não queria te deixar chateada. Me desculpa. Da próxima vez, vou usar uma das figurinhas que você me manda sempre.
Mandei as borboletas no meu estômago pararem de dançar agora mesmo.
— É, seria ótimo. — limpei a garganta duas vezes. — Mas então, por que você não iria ao laboratório se não era por ranço da minha cara?
Yoongi estava prestes a me responder quando ouvimos batidinhas sutis na porta e, no momento seguinte, uma mulher baixinha vestida com um macacão florido e um avental branco amarrado na cintura apareceu no batente, olhando diretamente para Yoongi:
— Senhor Augustus, o jantar está pronto e vai ser servido em cinco minutos.
Yoongi apenas assentiu para ela, agradeceu educadamente e ela logo se retirou.
Olhei para o espaço vazio deixado pela estranha de avental, pensei nos dois dias ausentes de Yoongi sem explicações e no quanto ele estava furioso no meu apartamento.
— Então já era pra Belle? — perguntei em voz baixa, o entendimento me atravessando como um golpe. Yoongi me olhou encabulado, mas logo entendeu ao que eu me referia.
— Ah, não. Não, a Embeth não é babá do Jihoon, ela só está aqui hoje. Só veio fazer o jantar.
— Ah. — arqueei as sobrancelhas, assentindo rápido. — Tá legal, tudo bem, então… Acho que é melhor eu ir. — comecei a ir em direção a porta. — Eu já tô muito feliz de conseguir falar com você. E já que Embeth não é a nova babá, pensa direitinho sobre o negócio da Belle, ou… sobre mim também. Ninguém quis te magoar em hora nenhuma, eu garanto.
Fiquei parada por um tempo, as mãos suando por nenhum motivo aparentemente lógico, até eu me tocar da impossibilidade de não estar parecendo uma esquisita e apressar os passos para sair.
— , espera. — Yoongi chamou e eu parei, me virando de novo. Ele estava balançando os joelhos até parar. — Quer jantar com a gente?
Tentei não parecer tão surpreendida, mas acho que não funcionou muito bem.
— Hum… Eu não quero incomodar.
Ele balançou a cabeça.
— Você não vai. Temos muita comida, e hoje geralmente é um dia meio… solitário pra eu e o Jihoon. Então, se puder ficar, a gente vai adorar.
— Que dia é hoje? — perguntei, curiosa.
Yoongi não me respondeu. Apenas disse um “vem comigo” e saiu na minha frente, retornando pelo corredor enorme que tinha me levado até ali.
Antes de chegar na sala, ele fez uma curva para entrar em outro cômodo grande, um que me apanhou imediatamente pelo cheiro de comida delicioso antes de me fazer abrir a boca como uma idiota por causa dos detalhes ricos das paredes e do piso por pelo menos três segundos.
A sala de jantar devia cobrir alguns acres a mais do que o próprio departamento de Geociências da Drexel, com uma grande mesa de nogueira polida rodeada por cadeiras escuras com estofado confortável, um banquete sofisticado com comidas que eu nunca vi na vida e… um bolo no centro. Um bolo redondo escrito “Feliz Aniversário” no topo.
— Senhora ! — Jihoon abriu um enorme sorriso de seu lugar, sentado em uma das cadeiras que era grande demais para ele. — Você vai jantar com a gente?
— Vou sim, querido. — afaguei o topo do seu cabelo lisinho, um pouco acuada por não saber exatamente se deveria parabenizá-lo. — E você pode me chamar de fora da escola, tudo bem? E principalmente na sua fest-
— Eu sei. O meu pai te chama de . Eu acho um nome muito bonito. — Jihoon respondeu, e virei a cabeça automaticamente para Yoongi, que arregalou um pouco os olhos antes de desviar o rosto. — Você viu o bolo? Fui eu que escolhi. Meu pai gosta quando eu escolho os bolos de aniversário dele.
Parei de acariciar Jihoon. Yoongi não esboçou reação alguma enquanto se sentava na cabeceira da mesa e indicava a outra cadeira ao lado com o queixo.
— Vem, senta com a gente.
Engoli em seco e assenti, me sentando na frente de um prato vazio recém colocado. Jihoon não parava de sorrir do outro lado e Yoongi me encarava de soslaio, uma expressão solene e igualmente feliz, mesmo que do jeito dele.
A mesma mulher de antes se aproximou de nós, juntando as duas mãos na frente do avental.
— O senhor prefere o vinho branco Domaine Leflaive ou o tinto Château Margaux?
Yoongi pareceu pensar por um instante até olhar para mim.
— Quer fazer as honras?
— O quê? Escolher o vinho? O seu vinho? — falei, agitada. Yoongi assentiu.
— Não tenho certeza do que tem na adega, mas é meio que essas duas coisas. A propósito, essa é , Embeth. — ele falou com a mulher, com um sorrisinho simpático. — Nossa convidada de última hora. Desculpe não ter avisado.
— Não tem problema, senhor Augustus. Sempre preparo o bastante pra esses maravilhosos acasos. — ela sorriu para mim pela primeira vez, e percebi que só estava esperando essa apresentação formal para fazer isso. Agora, toda a sua felicidade pela minha presença estava sendo entornada sobre mim, me causando um quentinho estranho no peito.
Os dois estavam esperando uma resposta minha.
— Hum… Talvez o tinto combine melhor com o bolo. — dei de ombros, sem fazer ideia se o que estava dizendo tinha algum embasamento, mas só para dizer alguma coisa.
— Perfeito. Pode trazer, Embeth. — Yoongi murmurou e Embeth pediu licença antes de sair. Eu era uma porta para entender sobre vinhos (o máximo que eu chegava perto eram os consolos de 25 dólares do mercado que eu e Belle nos dávamos ao luxo de adquirir em comemorações especiais), mas tantos nomes franceses complicados e a palavra adega já me adiantavam todo o esplendor que desceria pela minha garganta mais tarde. Pelo amor de Deus, quem tinha uma adega em casa e não estava nesse exato momento sentado em uma cadeira do congresso?
Logo Embeth estava de volta, trazendo a garrafa de vinho cara e a depositando na mesa, organizando as taças uma de cada vez e avisando que serviria o jantar. Yoongi assentiu e puxou o saca-rolhas, começando a abrir a garrafa com uma destreza impressionante, sem apresentar perigo nenhum, como seria se outras pessoas comuns tentassem fazer isso (eu).
Com a comida e a bebida servida (vinho para os adultos e suco de maçã para as crianças), Jihoon bateu uma palminha na mesa e disse:
— Papai, temos que fazer a oração primeiro.
Yoongi assentiu com a cabeça.
— É verdade. Quer começar?
— Aham. — Jihoon e Yoongi juntaram as mãos com os cotovelos apoiados na mesa, fechando os olhos ao mesmo tempo. Demorei um pouco até imitá-los. — Querido Papai do Céu, muito obrigado por ter criado o céu, o Sol, as estrelas e nosso planeta Terra, que deu mais uma volta completa e possibilitou que meu pai completasse hoje seus 36 anos de vida. Ele continua forte, inteligente e saudável, e aprende coisas novas todos os dias sobre o nosso planeta. O senhor nos deu a Terra como casa e ele me deu uma casa aqui também, muito além dos meus carrinhos de Fórmula 1 e o Homem de Lava. Ah, Deus, não entenda errado, eu gosto muito dos meus carrinhos, e da minha cama de Ferrari, mas a minha casa de verdade é o meu papai. Ele é a pessoa mais importante viva no meu planeta Terra. Cuida dele aqui e cuida da minha mamãe no seu jardim de estrelas. Amém.
Jihoon abriu os olhos e fez menção para começarmos a comer. Mantive a minha cabeça abaixada por mais um tempinho, lutando contra a queimação no nariz e algumas lágrimas que queriam desesperadamente jorrar.
Depois, comecei a comer.
Nunca entendi o enorme auê em cima de vinhos sofisticados, mas aquela coisa vermelho sangue que encheu minha taça três vezes seguidas tinha realmente um gosto diferente das iguarias de supermercado que eu e Belle consumíamos de vez em nunca. Eu sabia que já estava impactada com toda a beleza daquela casa, mas a bebida pareceu intensificar essa percepção, guiando meus pés até o ponto onde meus olhos mais se agradariam de se fixar:
O piano. Coisa grande, preta, tão chique quanto o vinho, e que parecia conversar comigo.
Na realidade, era eu quem estava querendo conversar com ele, por mais esquisito que isso soasse (tudo culpa da porcentagem de álcool no meu sangue).
Em se tratando de pianos, eu entendia tanto quanto entendia de valsa, o que era um número bem próximo de zero. Quando me vi indo até aquela sala, eu não estava pensando em nada específico. Só cheguei perto dele, sendo consumida por uma vontade irritante de tocá-lo. Não uma música, mas raspar meus dedos na sua superfície lisa, brilhante e, de certa forma, cheirosa. Tinha um aroma de madeira fresca, nada como as madeiras comuns, com odor forte e bastante sem graça. Aquele piano cheirava a mais do que um desinfetante que Helen, a faxineira de Yoongi, tinha passado. Ele tinha cheiro de coisas, de pessoas, de histórias.
Levantei a tampa, passando os dedos de uma mão pelas teclas brancas, fazendo um barulho aleatório e abafado, sorrindo comigo mesma com a imaginação brotando da minha mente fértil: um pequeno Yoongi de 7 anos, a primeira versão de Jihoon, esticando os próprios dedos pálidos sobre aquela tábua artificialmente quadrada tocando Chopin enquanto pensava o tempo todo em reservatórios de magma e camadas de terra em campos alagados, lugares perfeitos para serem explorados por um cara corajoso e apaixonado o bastante pela ciência, que encarasse com prazer galochas de couro e roupas térmicas em um calor de 35 graus ao invés de compor um próximo soneto de sucesso, como bem se espera do filho de uma família rica tradicional.
O que Yoongi estaria fazendo da vida se não seguisse o rumo acadêmico? Qual era o negócio da família dele? Estaria criando gado e ovelhas em uma enorme propriedade no campo, ainda casado com a mulher perfeita da fotografia e ensinando Jihoon a andar a cavalo? Observaria seus porcos de estimação brincando na lama e colheria vagalumes num potinho de vidro? Esperaria o filho dormir e faria mais irmãozinhos para ele em cima de uma rede ao ar livre?
Fiz várias voltinhas tortas ao redor da borda de uma tecla. Devia parar de imaginar Yoongi fazendo sexo agora mesmo antes que ficasse maluca.
— Deixa eu adivinhar: Chopin? — a voz dele me fez girar para a porta rápido demais, quase me deixando tonta. — Ou Beethoven? Do jeito como você ficou fissurada no Fá, eu aposto em Chopin.
Semicerrei os olhos, engolindo uma risada.
— Ou eu poderia estar criando um original. Você pode estar na frente da nova Clara Schumann.
— Estou mais impressionado por você conhecer esse nome do que pela sua brilhante composição.
— Eu conheço um monte de coisas. Meu cérebro é um depósito infinito de baboseira, só perguntar e esperar.
Ele riu e se aproximou do piano ao meu lado. Seus dedos deslizaram ali, fazendo o mesmo caminho que os meus. A taça de vinho que segurava já estava vazia.
Mesmo um pouco alegre pela bebida, ainda deu para notar uma sombra estranha e difusa tomando seus olhos quando encarou aquele enorme instrumento.
E mesmo tendo percebido isso, não sei como ainda fui capaz de abrir a boca e dizer:
— Você devia tocar um pouco.
Yoongi ergueu o queixo para mim, mas não o encarei por muito tempo. Sem ter 100% de noção dos meus movimentos, levantei a perna e passei para o outro lado do banquinho, sentando na frente do piano e puxando minha taça de volta. Esperando.
Não tinha ideia do que poderia acontecer em seguida. Ele poderia estalar a língua, me chamar de maluca e finalmente me colocar para fora da sua casa. Ou poderia apenas me chamar de enxerida e trocar o assunto muito naturalmente. Ou poderia emendar o enxerida com outros palavrões que fizessem eu mesma ter vontade de ir embora e chorar no meu travesseiro por ter perturbado a paz mental de um pobre homem.
Ou ele faria exatamente o que fez: levantaria a perna como eu e sentaria do meu lado, encarando as teclas brancas com os dedos pairando acima delas.
Mesmo tendo demorado quase dois minutos para decidir isso, ainda consegui ver as veias mais proeminentes nos seus antebraços, a ponta dos dedos mais pálidas, os músculos enrijecidos no pulso. Era como se o piano fosse um cãozinho de rua rangendo os dentes, pronto para o ataque, e Yoongi estivesse tentando acalmá-lo.
— Eu não faço isso há um tempo. — ele sussurrou, e tenho certeza que não foi exatamente para mim, mas para ele mesmo. Ou para ninguém específico. Pode ter sido até para o próprio piano, se justificando para o objeto antes de usá-lo.
Arrastei o corpo para mais perto dele no banquinho.
— Ufa, então não precisamos ser perfeitos. — falei. Yoongi riu fraco pelo nariz e afundou um dedo em uma tecla. Até que, pouco a pouco, foi colocando os outros em sequência, devagar, sentindo o terreno, manejando o som até que a mágica daquela arte tomasse forma: combinações de barulhos aleatórios que se encaixavam como quebra-cabeça, como números se somando, palavras se juntando, elementos químicos se misturando e formando coisas reais, sólidas, palpáveis e importantes. Como se cada tecla do piano fosse uma pérola, e elas estivessem sendo colocadas em uma linha de nylon, uma a uma, formando um grande e lindo colar.
Em algum momento, olhei para o rosto dele enquanto tocava. A expressão concentrada que morava nas minhas fantasias de banheiro estava de novo ali, mas de uma forma muito mais impactante. Yoongi não estava apenas se concentrando, ele estava viajando. Indo para dezenas de lembranças na própria mente, sem sair do lugar, se deliciando com o presente. Não sabia por quanto tempo fiquei parada ali, só olhando, mas ele pareceu ter se esquecido da minha presença, e não achei isso nada ruim.
Queria muito ter a habilidade de desenho de Jihoon naquele exato momento, para registrar seu pai naquela bolha de paz. Sufocantemente em paz. Até as olheiras praticamente tatuadas naquele rosto tinham sumido por um instante.
Talvez eu estivesse mesmo com uma alta dose de vinho francês extremamente encorpado no organismo, porque senti a cabeça girar. E talvez por isso pressionei um dos dedos no teclado, me intrometendo na música, rindo sozinha. Esperei que ele me expulsasse do seu solo, mas Yoongi colocou uma mão por cima da minha, deslizou seus dedos nos meus e me guiou pelas notas, pressionando indicador e mindinho, depois dedão e anelar, e às vezes dois dedos juntos, me deixando participar do seu momento Beethoven.
— Que música é essa? — perguntei depois de um tempo embalada.
— É Rachmaninoff. Ópera 21. Uma das primeiras músicas que eu aprendi.
— Quando tocou ela pela última vez?
— No dia do meu casamento.
Resisti a vontade de encará-lo como estava fazendo antes. A resposta dele foi só aquela, sem extensão ou explicação de nada. Infelizmente, ainda senti aquela fervura irritante de curiosidade, a língua queimando como sempre fazia quando eu estava com ele e percebia como sabia bem pouco além dos seus dois nomes, os do filho e o conhecimento científico que guardava dentro daquele cérebro, todos explanados em dezenas de artigos brilhantes em revistas renomadas.
O que sempre me fazia não dar nem mais um passo em relação a Min Yoongi era o fato óbvio de que ele era extremamente profissional e parecia querer manter as coisas assim. Mas esse dia, e esse momento, e esse piano…
— Fala um pouco sobre ela. — pedi.
Sua mão hesitou por cima da minha, e aproveitei para ir retirando aos poucos. Se eu estivesse passando do limite, eu aceitaria sua recusa. Já estava tarde, não tinha avisado nada para Belle e teria que lidar com o fato de ter jantado com Yoongi no dia do aniversário dele, então ir para casa era uma ótima ideia, uma muito pertinente. Precisava me controlar antes que levasse as coisas a acabarem mal com o maior colaborador da minha pesquisa.
Yoongi parou de tocar e ajeitou a postura, olhando diretamente para mim desde que se sentou naquele banco. Não consegui pescar nada em específico daquele olhar, mas não parecia o de alguém que queria me mandar embora.
— Eu conheci a Skylar na Drexel. — começou, agora dedilhando notas aleatórias, sem ritmo. — Eu já estava em Boston há seis anos, e um dos meus amigos desde a graduação foi convidado para dar uma palestra aqui sobre Computação Quântica. Eles iam pagar pouco e, como ainda era um assunto muito emergente na comunidade, não seria nada glamouroso pro currículo da Ivy League, mas ele tinha acabado de entrar no MIT e estava empolgado com a pesquisa, e eu e os outros andávamos tendo umas frustrações no laboratório, então viemos todos juntos. Sentamos na última fileira, com um bloquinho de perguntas prontas pra fazer no final da apresentação e engajar o auditório, mas uma garota lá na frente roubou toda a nossa cena. Ela quis saber desde os softwares em bits até a possível quebra de criptografia dos sistemas existentes, e tivemos que rasgar tudo. Era Skylar fazendo o que fazia de melhor: chamar atenção.
Ele tombou um pouco a cabeça para o lado, quase como se estivesse vendo a cena em alguma pontinha de tecla.
— Ela estava se formando em Química na Drexel, mas o sonho dela era fazer música. Quando fomos comemorar naquela noite em um daqueles restaurantes no Porto Internacional, lá estava aquela garota de novo, comandando o piano em cima do tablado. Ele era uma carcaça velha e caindo aos pedaços, mas ela conseguia fazer ele obedecer ao que ela queria, e colocar um Franz Liszt pra funcionar como se fosse uma profissional. Só descobriram depois, no fim da noite, que ela não era funcionária, e sim só uma garota qualquer que tinha sentado no piano e dado uma de Chopin.
— Uau. Ela seria meu modelo de diva descolada.
— Ela tinha mesmo alguns fãs. Principalmente eu e os caras, depois que a ajudamos a escapar do gerente do restaurante que queria chamar a polícia. — Yoongi riu um pouco mais alto, e eu acompanhei, mais surpresa pela risada dele do que pela história. — Acho que já estava apaixonado por ela antes de chegar na primeira esquina. E passar mais um tempinho na cidade de repente não pareceu uma ideia tão ruim assim.
Ele ficou em silêncio por mais um tempinho, talvez selecionando as partes específicas da história que gostaria de colocar para fora, ou talvez só vivenciando mais uma vez. Meu peito apertou um pouquinho com isso.
— É um alívio saber que você não gostou da Filadélfia por causa do cachorro-quente de carne. O boato de que eles são nosso ingresso de entrada é a maior balela. — dei de ombros, tentando deixar claro que, seja qual fosse o grau de tristeza que a sua história tivesse, não acabaria comigo ou com a imagem que eu tinha dele.
— Talvez porque você não provou aquele do Moshulu. Acho que todas as propagandas que fazem da cidade são só sobre ele. E as pessoas não fazem ideia da procedência daquela carne. — Yoongi esticou um dedo, fazendo um sinal avulso que mostrava que estava um tanto empolgado com o assunto. — Fui com os caras primeiro e realmente pareceu não ser nada demais, mas quando fui com Skylar, as coisas ganharam um novo formato. Uma nova cor, sei lá. Muita coisa mudou depois desse dia. Tudo aconteceu tão… rápido. — ele baixou os ombros, me encarando de novo. — Às vezes, eu tento pensar nessa época como um sumário, tento organizar em tópicos, fazer uma cronologia: quando a conheci, qual palavra eu disse primeiro, quando reparei no seu sorriso, quando me apaixonei, quando ela se apaixonou, tudo isso… e eu vejo que não dá. Tudo aconteceu de uma vez. Quando eu pisquei, estava pedindo ela em casamento no Harvard Yard e 3 meses depois, estávamos no banheiro do apartamento esperando aquele teste de gravidez apontar o resultado, e aí descobrimos o Jihoon e ficamos perdidos e felizes ao mesmo tempo, e acho que por isso não consigo pontuar nada.
Yoongi suspirou, e por um momento pareceu que estava triste, a voz saindo melancólica, mas tinha uma ponta de sorriso intrometido vazando pelo canto da boca.
Acho que eu estava abrindo o mesmo sorrisinho, por diversos motivos, ou por nenhum, ou simplesmente por ele estar sorrindo.
— Quando a gente sente um monte de coisas de uma vez, não dá pra saber quando uma coisa começa e a outra termina. — complementei. Yoongi estalou dois dedos.
— É isso. Exatamente isso. Sempre me senti estranho quando me perguntavam como tinha sido descobrir que ia ser pai, porque eu não me lembrava. Fui um cara prático a vida toda, e de repente eu era só emoção, emoção e mais emoção, escolhendo berço, nomes e pensando que músicas ele iria gostar de ouvir. A primeira vez que eu segurei um sapatinho de crochê de bebê, chorei até engasgar. — Yoongi riu alto, balançando a cabeça. — Sabe, foi a experiência mais maluca da minha vida. Tudo ficava intenso, estressante, preocupante e maravilhoso no decorrer de 30 minutos. Acompanhei Skylar nessas extremidades de humor sendo o melhor suporte que consegui, fazendo de tudo pra que ela soubesse que eu estava ali, ainda mais que a gente ia se casar quando a barriga dela começaria a aparecer, e precisei passar uma noite inteira garantindo que o vestido de noiva estava bom e que as pessoas não reparariam. Foi uma longa, longa noite.
— Ela estava grávida? — virei a cabeça sobre o ombro para olhar a foto em cima da lareira. — Nossa, nem parece.
Yoongi assentiu.
— Quatro meses. Só a gente sabia. A minha família sempre foi muito tradicional, e a família dela era cheia de pessoas complicadas que procuram uma brecha de oportunidade em qualquer coisa. Nós dois éramos filhos únicos, nossos pais já eram idosos, então tinha muita pressão dos dois lados sobre casamento e herdeiros, mas a gente queria fazer as coisas do nosso jeito. Quando decidimos adiantar a cerimônia, a possibilidade de que alguma coisa estivesse acontecendo ocorreu aos nossos pais, mas ninguém disse nada. E depois, todo mundo se uniu em felicidade plena com a notícia do Jihoon. — mais um suspiro, e Yoongi voltou a, inconscientemente, dedilhar o piano devagar. — Nunca fui de concordar com a minha mãe em relação às coisas que ela achava melhor pra mim, mas quando ela disse pra nos mudarmos pra Coreia, eu aceitei. Eu tinha acabado o pHD, tinha conseguido registrar a patente dos sensores geotécnicos e feito reuniões com grandes institutos, recusei ofertas de trabalho milionárias e decidi continuar minha pesquisa em um lugar chamado Yangpyeong, a uns 60 quilômetros de Seul, com muito verde, muitas montanhas, um jardim enorme e tempo de sobra pra Skylar e seu piano. Achei que seria mais estranho no início, já que estávamos tão acostumados com a vida agitada americana, mas foi muito melhor. Muito melhor do que eu um dia imaginaria. Foi maravilhoso ver meu filho aprender a andar em cima de um jardim alagado de chuva, ver ele perguntando o nome das árvores e tropeçando nas pedras. Foi um sonho. Pelo menos até…
Aquela mesma sombra de antes voltou, estacando em cima dos seus olhos, roubando o sorriso que ele estava dando há pouco. Pensei em soltar algo engraçado, ou minimamente leve que o distraísse, mas não tinha nada assim que combinasse com aquele momento. Na verdade, nunca teria.
— Eu sinto muito, Yoongi. — falei, e se fosse em outro momento, ficaria surpresa em como aquela palavra saiu imprensada, carregando um peso imenso para fora de mim.
Ele não se mexeu. Apenas continuou concentrado nas teclas, vendo de novo as imagens na mente, mas agora imagens mais difíceis de lidar.
— É, foi… bem ruim. Foi uma merda, na verdade. Principalmente porque tudo se arrastou. É uma contradição da mais filha da puta: os momentos mais felizes da minha vida passaram em um piscar de olhos, e quando essa bolha explodiu, o tempo parou. Desde que eu soube da notícia do acidente, consigo pontuar dias, horas, anos, tudo que aconteceu, como se, não importa o quanto os momentos bons sejam intensos, eles nunca vão te marcar tanto quanto as tragédias. E isso me fez mal por um tempão, porque é no mínimo injusto que a última lembrança da sua esposa seja o rosto dela pálido em cima da mesa de um necrotério, 4 horas depois de ter ouvido a risada dela num telefone.
A partir daí, Yoongi começou a falar, e eu tive certeza de que era a primeira vez que estava falando sobre aquilo em anos.
Ele estava voltando de uma viagem de campo do Monte Fuji com alguns pesquisadores de Stanford, que já estavam no seu pé há meses. Skylar iria buscá-lo no aeroporto com Jihoon, no meio de um janeiro gelado e sem previsão de neve pesada. Por alguma razão, Skylar errou o caminho no GPS e entrou em uma estrada mais longa. Ela não dirigia muito, então não era impossível considerar que poderia se perder. Foi então que a maior nevasca do século começou, uma nevasca que nenhum homem vivo da época já tinha visto. Um desastre da natureza caindo sobre o norte da Coreia do Sul com centenas de anos de fúria acumulada.
Com o tempo, Skylar não conseguia mais enxergar. O aquecedor estava pifando. O celular não tinha sinal. Ela pensou em parar ali, mas seria pior. Pensou em dar meia volta e fazer o retorno, mas não sabia qual a direção. Tentou acalmar Jihoon, com 4 anos na época, sentado na cadeirinha no banco de trás, e tomou a atitude de virar em uma curva. No que parecia ser uma curva.
Skylar não viu os farois do caminhão. Ou viu tarde demais e girou o volante por impulso. O carro perdeu o controle quando desceu ladeira abaixo ao lado da autoestrada, deslizando com velocidade até bater num salgueiro na base do morro, com o impacto de quase 80km por hora. Os airbags não funcionaram, os galhos destruíram todo o pára-brisa e o cenário que os bombeiros encontraram foi a de uma mulher contorcida fora do banco, o rosto virado para trás, os braços abertos no encosto na frente do garotinho que chorava.
Ela havia tirado o cinto de segurança. Se estivesse usando, provavelmente poderia ter sobrevivido. Se estivesse, os airbags teriam funcionado. Mas Skylar soltou o cinto para proteger Jihoon, que foi o único a sair ileso. Sua mãe salvou sua vida. Era quase impossível acreditar que ela tivesse realizado esse feito debaixo de toneladas de neve, pensando rápido e além da sua própria segurança.
Yoongi ficou um tempo parado me encarando, e tenho certeza que era por causa do vento gelado que eu estava sentindo nas bochechas. Lágrimas que já queriam cair desde cedo, coisas molhadas que não saíam de mim há anos, nem quando eu via gatinhos abandonados.
Ele agarrou minha mão por cima do piano de novo, sem chorar. Provavelmente porque já tinha chorado sobre tudo isso há muito tempo.
— Então foi isso… por isso você sumiu. O Augustus D. — tentei declarar alguma coisa sem soluçar tanto, e limpei as lágrimas no ombro.
Yoongi concordou.
— As coisas meio que tinham… perdido o sentido. Sabe? É como se tirassem o seu cérebro do lugar e colocassem de novo, sem deixar nenhuma cicatriz, nada que prove que alguma mudança radical aconteceu, e mesmo que as coisas fossem voltando ao normal aos poucos… não era normal. Não era apropriado. O campo não era mais um sonho, a pesquisa não era mais um sonho, ver o meu filho crescendo e se desenvolvendo sem a mãe não era certo. Eu estava me afundando, e afundando, e não sabia como pedir ajuda, explicar isso… pela primeira vez, não consegui segurar as pontas e isso fez eu me sentir um ser humano horrível. Foi quando eu decidi juntar tudo e voltar pra casa dos meus pais. Rebobinar e enfrentar. Estava sendo difícil pra todo mundo. Muito mais pro Jihoon, que estava lá naquele dia, que por mais que não entendesse as coisas 100%, sabia que Skylar não iria voltar, sabia que não tinha mais jeito. Porque ele viu… — a voz dele falhou, e apertei sua mão com mais força. — Quando os paramédicos chegaram, ele estava tremendo no banco, sem chorar ou gritar, só sentindo frio e medo. Não disse uma palavra até estar comigo, e mesmo depois, ele só chorou. Porque ele viu ela daquele jeito. Na hora que o carro bateu, o para-brisa se espatifou em pedaços grandes, não pequenos. Isso é muito raro, considerando o vidro laminado do carro, mas a colisão foi muito forte, e daí… A cinética fez seu próprio fenômeno, e tudo foi pra cima dela. Provavelmente, a batida não a teria matado imediatamente, mas um pedaço do vidro, uma parcela dele do canto, voou pra dentro e perfurou o lado esquerdo do peito dela. Direto no coração. Dizem que ela morreu em menos de três minutos.
Senti ainda mais vontade de chorar, uma onda esmagadora de dor e empatia que nunca senti na vida. Quis largar a mão de Yoongi, deixar aquela sala e correr para o andar de cima e ir direto ao quarto de Jihoon, agarrar aquele garotinho e abraçá-lo com toda a força que eu tinha. Dizer para ele que estava tudo bem, que ele estava indo bem, que eu o entendia, entendia muito, mais do que ele imaginava.
Mas me lembrei de algo importante antes.
— Então era sobre isso? O desenho que ele fez no meu primeiro dia de aula. — lembrei daqueles traços grosseiros e amadores no papel, mas que passavam um recado muito claro da intenção do que seria. — O vidro, ele…
Yoongi balançou a cabeça que sim algumas vezes, voltando a me olhar.
— Jihoon sempre desenhou, e ficou fazendo esse mesmo desenho por semanas depois da morte de Skylar, até um dia parar de vez. Eu tentava achar um jeito de olhar pra ele, pra dentro dele, ver se tinha mesmo superado ou se só estava ignorando, mas ele parecia bem. Mas então, naquele dia… não sei, acho que mudar de país, de escola, a morte da minha mãe, tudo que aconteceu mexeu um pouco com ele. Pode ter trazido o luto de volta.
— Você já pensou em colocá-lo na terapia?
Yoongi repuxou a boca para baixo, semicerrando os olhos.
— Ele anda bem agora. Só foi aquele dia na escola, fora isso ele parece…
— Como você pode saber? Uma criança sorridente não quer dizer uma criança feliz. Eles funcionam igual a nós. — respondi, vendo Yoongi franzir o cenho. Pela primeira vez, senti que eu tinha alguma coisa inteligente para falar. — Olha, eu na idade do Jihoon era a criança mais alegre de todas, e a minha vida era uma merda. Até fazia todo o possível pra fazer as pessoas sorrirem porque sentia que isso me fazia existir de alguma forma, me lembrava que eu ainda estava aqui e a minha opinião importava de algum jeito. Principalmente depois que a minha mãe se mandou e o meu pai virou um zumbi. Às vezes, acho que se ela tivesse morrido, ele teria sido um pai melhor. O abandono pode ser muito pior do que a morte, e tenho certeza que foi por causa disso que ele tomou todos aqueles remédios e acabou com tudo também. — automaticamente, dei uma risada. Não era como nenhuma outra risada que eu já tinha dado na vida. Pareceu um gorgolejo, um “Ah, é, meu pai se matou, é verdade, lembrei agora. Ele preferia morrer do que ficar vivo e cuidar de mim, como você fez com seu filho.” Yoongi pareceu entender isso, porque virou o corpo um pouco mais na minha direção. — Eu encontrei ele no quarto. Já fazia um dia e meio que ele tinha se trancado lá e eu achei que só estava passando por aqueles momentos de deprê de novo. Ele sempre fazia isso, até levantar e sair de casa, sumindo por dias. Só bati lá porque precisava pedir que ele assinasse uma autorização da escola pra uma visita ao observatório. Era tudo que eu pensava, tudo que eu queria naquela hora: ir ao Fels Planetarium. Ver as estrelas. Ver o Blair Jones talvez, eu era bem afim dele naquela época. E comprar um esmalte de 1,99 no caminho porque o Blair gostava de garotas que pintavam as unhas. E eu juro que assim que abri a porta e vi meu pai ali, com todo o sangue, o vômito e a boca rachada e seca, eu só consegui pensar: fala sério, quem vai assinar a minha autorização agora?
Mais um gorgolejo, mais uma coisa muito parecida com uma risada, mas que tinha aspecto, gosto e aparência feia. Era a feiura de dor, a feiura daquela imagem na minha cabeça, uma imagem que afoguei, apaguei, determinei que sumisse para todo sempre porque ela transformava coisas em mim. Bagunçava o que eu tinha arrumado. Era como soltar um pardal dentro de uma caixa de vidro: ele ia voar e se estabacar em todas as paredes, quebrando tudo, completamente desorientado, destruindo o que ver pela frente.
As chances de eu abrir as portas para essa coisa de novo eram sempre nulas, porque sabia o que aconteceria: meus ombros iriam tremer, meu olho ia queimar a 300 graus celsius, meu nariz ia escorrer e eu nunca mais ia querer me olhar no espelho. Senti o braço dele passar em volta de mim quando comecei todo esse espetáculo, e pensei se ele provavelmente estivesse me vendo como vê Jihoon, pensando: “tudo bem, , se solta, vamos ver o que tem debaixo de você, dentro de você, tudo daí”, e isso, de alguma forma, não me deixou com vontade de chutá-lo e sair correndo.
— Eu não falo dessas coisas. Eu não gosto de pensar nessas coisas. Cacete, eu odeio pensar. — levantei a cabeça e a afastei dele, passando as costas da mão pelo nariz, fungando rápido para voltar ao normal. — Eu odeio muito, muito…
— Tá tudo bem pensar. — Yoongi passou um polegar embaixo do meu olho molhado, seu hálito envolvendo meu nariz. — Você não está mais lá, você fez o que podia fazer, e tá tudo bem. Tá tudo bem, .
Respirei fundo. O choro estava cessando. Precisaria de muitas sessões particulares com o alter ego terapeuta de Belle para conseguir superar esse momento um tanto constrangedor, por mais que tenha sido estranhamente bom. Eu odiava chorar, por qualquer coisa que fosse. As pessoas sempre esperavam que eu chorasse, dado a minha história triste e deprimente de garota órfã sem casa e obrigada a morar na universidade. Elas até torciam para me ver chorando. Mas para mim, chorar sempre se parecia com saltar no mar aberto e me afogar em agonia. Totalmente fora de cogitação.
Só que ali, com Yoongi, eu tinha caído na água e flutuado. Estava boiando, sem o desespero de afundar.
— Eu sei, é que… algumas coisas fogem do meu alcance. — continuei, a voz mais normal. — Quando me mudei pra Dexler e passei a primeira noite sozinha, eu tentei pensar nisso. Pensar em tudo isso. Pensar em que merda de rumo a minha vida tomaria dali pra frente, já que eu estava completamente sozinha e sem nada. E quando fiz isso, eu meio que enlouqueci. Não tenho palavra melhor pra descrever aquilo. Senti como se tudo dentro de mim estivesse derretendo, que alguém estava roubando meus órgãos, e não conseguia respirar. Vomitei duas vezes, e fiquei deitada no chão do banheiro tremendo sem sentir frio, puxando todo ar que eu conseguia, tendo uma certeza assustadora que iria literalmente morrer.
— Você teve um ataque de pânico. — Yoongi não tinha tirado completamente sua mão do meu rosto. — Eu sei como é isso, . É horrível sentir isso e é horrível fazer o trajeto de volta dele.
— Tenho medo disso, Yoongi. — sussurrei, engolindo outra careta. — Fiquei apavorada comigo mesma e prometi que jamais tentaria pensar nessas coisas de novo. Não quis pensar em merda nenhuma que não fosse botânica, a Terra, e os problemas dos outros. Desculpa se soar muito fútil. — falei rápido e ele apenas negou com a cabeça. — Eu disse que o meu cérebro é um depósito de baboseira, mas achei melhor ser assim porque era o único jeito de fingir que não existe uma vastidão de merda na camada mais profunda da minha cabeça. Coisas que eu não quero enfrentar, eu nunca quis. E agora, com você falando do Jihoon, talvez… eu pensei… — puxei o ar. — Talvez a minha vida tivesse sido mais fácil, ou eu não tivesse tanto medo dos meus próprios pensamentos se tivesse ligado para a orientadora da escola quando ela me deu aquele cartão. Ou, de algum jeito, se tivesse sido honesta comigo e aceitado que precisava de ajuda, talvez fosse uma pessoa melhor. Ou…
Os braços dele voltaram a me envolver, um pouco mais fortes do que antes, e dessa vez eu não estava com pressa de soltá-lo.
— Obrigado por ter me contado isso. Eu nunca tinha parado pra pensar por esse lado em relação ao Jihoon. Vou fazer alguma coisa sobre isso. — ele desceu as mãos pelas minhas costas, dando tapinhas reconfortantes enquanto olhava dentro dos meus olhos molhados. — E se quer saber, não importa quantas coisas ruins você tenha passado, você nunca seria capaz de ser uma pessoa menos do que boa, . Não são as merdas que acontecem que definem isso, é só você. E você tá indo muito bem. Cresceu e se tornou uma mulher incrível e brilhante, que vai deixar uma marca inesquecível no mundo.
Dessa vez, eu o abracei, e todos os pingos de tristeza do meu corpo foram evaporando aos poucos, indo embora e abrindo um espaço generoso em mim onde antes eram crenças horríveis sobre a minha pessoa. Porque era bom, era divino escutar que você não era tão ruim assim. Que meros pensamentos não te definiam por inteiro, que havia algo mais fundo, algo bom e que valia a pena.
Não sei por quanto tempo fiquei assim com ele, sem sentir que alguma coisa era estranha ou errada. Muito pelo contrário. E, talvez, foi no meio disso que percebi a coisa avassaladora que vinha crescendo dentro de mim como semente de feijão no algodão.
— E a guitarra? Quando vou ouvir? — murmurei na curva de seu pescoço. Yoongi tremeu em uma risada, o peito batendo no meu.
— Um dia de cada vez, . Um dia de cada vez.
Eu não precisava de mais um dia. Eu já sabia:
Estava apaixonada por ele.
Eu costumava ter conhecimento dos seus horários de treino ou grupo de estudos sobre Shakespeare, Dickens ou seja lá qual autor morto há milhões de anos ele estava fissurado no momento, mas ultimamente andava falhando nessa parte, admito. Quando mandei mensagem para ele pedindo o que pedi, cheguei a pensar que ele fingiria que não leu e me ignoraria porque ainda estava bravo com aquele nosso último encontro no Mango’s.
Mas ele tinha respondido. E prometeu aparecer.
Estava terminando de beber o último gole da cerveja por conta da casa que Eddie me ofereceu depois de me ver com o cabelo preso em um coque e algumas pastas debaixo do braço (o look de cansaço oficial) quando meu amigo apareceu na entrada do bar, ajeitando seus óculos de grau como sempre e me vendo na mesma mesa.
— Até que enfim. — suspirei enquanto ele se sentava do outro lado, o rosto sério e fechado. — E então? Cadê?
Wonwoo revirou os olhos antes de apoiar a mochila em cima da nossa mesa engordurada de costume do Mango’s, abrindo o bolso da frente e me entregando dois pedaços de papel retangulares, escritos “BILGE RATS CONCERT” em letras com design derretido.
Dei um gritinho animado.
— Você é demais, Wonwoo! Quanto eu te devo? — vasculhei a bolsa em busca da carteira. Wonwoo ficou quieto. — Anda logo, ainda tenho que fechar o laboratório.
Ele grunhiu alguma coisa que não entendi.
— Os dois custaram 20 dólares. — respondeu, e contei quatro notas de 5, entregando para ele.
— Valeu. Você acha que eles aceitam uma garota vestida de verde fluorescente? Eu não uso muito preto, e Belle disse que se eu for de rosa, vou parecer uma sem noção, e vermelho vou parecer uma prostituta. Então talvez um verde…
— Você fica ridícula de verde. Por que não usa roxo, como sempre?
Provavelmente, Wonwoo estava tentando me ajudar. Mesmo que, daquela vez, sua voz tenha se projetado de um jeito tão rígido e ácido que roubou todas as minhas próximas frases.
— Hum… é, eu gosto de roxo, mas talvez eu queria tentar alguma coisa diferente…
— Diferente. Tá. — ele riu sem um pingo de humor. — Você tá bem diferente mesmo, . Colocar uma roupa de outra cor é a cereja do bolo pra isso se tornar oficial.
Franzi o cenho. Repeti na minha mente que Wonwoo era assim, que Wonwoo fazia piadas depreciativas sobre mim, e que elas serviam para me fazer rir no final ou devolver a zombaria na mesma moeda.
Mas tinha algo naqueles traços duros e totalmente anormais no rosto dele que não me deixaram rir.
— Wonwoo, é só uma roupa. Você sempre me ajuda nesse lance.
— Eu estou te ajudando. Acabei de dar a minha opinião.
— Suas opiniões geralmente vem acompanhadas de soluções.
— Você não quer ouvir minha solução.
— Então uma sugestão? Se acha que eu vou parecer um duende de jardim usando verde, qual a outra opção? Biquíni e botas de cowboy? Fantasia de mulher maravilha?
Outra risada de escárnio no fundo da garganta. Mas que merda era essa?
— Como se um velho enferrujado que veio de cinco mil quilômetros daqui fosse ter alguma noção do que fica bem em você ou não.
— É o quê? — arqueei as sobrancelhas. Wonwoo apoiou os antebraços na mesa.
— Não acha que tá se esforçando muito, ? Quais as outras coisas mirabolantes que você tá disposta a fazer por esse cara? Porra, até em show de heavy metal você tá querendo ir. Você odeia heavy metal.
— Eu nunca disse que odeio heavy metal. — rebati, um pouco indignada.
— Também nunca disse que gostava, ou nunca demonstrou que gostava. Tenho certeza que você não conhece um trecho de uma única música de metal. O que você vai fazer nesse lugar?
— Eu não preciso fazer nada, Wonwoo. Já ouviu falar em presente? — semicerrei os olhos, tentando manter as mãos nervosas paradas. — Você presenteia alguém com algo que esse alguém gosta, não você.
— E a porra de um granfino milionário vai achar bacana receber um presente de 10 dólares? Já pensou nisso? Se liga, .
Agora não escondi minha careta de irritação. Era exatamente como eu estava: irritada.
— Qual é o seu problema? Por que tá agindo como um babaca?
Wonwoo inflou as narinas, abrindo e fechando a boca algumas vezes enquanto mantinha aquele queixo arqueado e resoluto, fazendo toda a sua expressão normalmente simpática e até fofa se transformar completamente. Se eu estivesse vendo aquilo de longe, não o reconheceria.
— O meu problema é que você anda desligada demais, . Nunca mais atendeu o telefone direito, nunca mais te vejo no laboratório com seus biscoitos e nunca mais pediu uma carona de volta pra casa. Agora você só sabe passar o tempo com esse professor, não fica mais no Mango’s como sempre, e quando vem, fica rodeando aqueles livros velhos como se eles fossem interessantes. Porra, nem eu acho isso deles. Então, eu que te pergunto: qual é o seu problema? Tá apaixonada por esse velhote?
Por um momento, fiquei em choque, paralisada com o tom de voz duro e maldoso que Wonwoo foi capaz de fazer. Parecia que eu estava falando com outra pessoa, da mesma forma como ele estava pensando de mim.
Meu estômago embrulhou inteiro.
— Dá pra você parar de chamar ele de velhote? Ele acabou de fazer 36 anos, cacete! Nem o LeBron James tem essa idade mais. E eu não acredito que você tá dando uma de carente pra cima de mim. Porque se estiver, eu exijo que pare de fazer esse tom de Joey Tribbiani agora mesmo, isso tá me impedindo de rir de você. — bufei, começando a juntar as minhas coisas, guardando os ingressos com mais cuidado na pasta.
Wonwoo rangeu os dentes alto.
— Carente? Ah, vai se fod-
— Ou você tá carente ou você só tá sendo um idiota de merda. Por que tá reclamando do fato de eu estar finalmente avançando na minha pesquisa? Por eu não precisar adiar mais uma vez a minha defesa? Por eu estar chegando perto do meu objetivo? Você conhece meu sonho mais do que ninguém, porra! Tagarelei sobre ele com você por várias vezes nos últimos cinco anos! O mínimo que você poderia fazer nesse momento era aguentar um pouco a minha ausência até a minha aprovação.
— Eu aceitaria, . Aceitaria todos os poréns se eu estivesse mesmo te perdendo só pra sua pesquisa. Mas não é isso que tá acontecendo e você sabe.
— Mas é claro que…
— Você não respondeu minha pergunta: tá apaixonada por esse cara ou não?
Prensei os lábios. O olhar de Wonwoo estava fazendo aquilo de me prender numa parede de espadas e me sugar completamente, exigindo a verdade ou a minha vida. Era um jogo divertido na maioria dos dias, quando suas perguntas eram apenas sobre: “Rachel ou Monica? Jane Austen ou Victor Hugo? Sorvete de baunilha ou chocolate? Ficar até 2 ou até as 4 da manhã no Mango’s? Fale agora ou cale-se para sempre”, mas a daquela vez tinha um peso mais sério, um peso de não-brincadeira.
Eu sabia o que sentia, sabia perfeitamente. Já fazia mais de três dias que eu tinha saído da casa de Yoongi como se estivesse saindo de um túnel do tempo, de uma câmara aquática do livro Recursão. Existia a de antes e a de depois daquele jantar, e daquela sala de instrumentos. E eu meio que gostava dela.
— Eu… Talvez… — comecei, apertando o couro falso da minha bolsa em cima do colo distraidamente. — Eu posso gostar dele um pouquinho. Nada demais. Isso não quer dizer que eu vá fazer alguma coisa.
Wonwoo cruzou com o meu olhar por cima daquela mesa e provavelmente viu as camadas de mentira no que eu disse. Mas eu não sabia como dizer: “sim, estou completamente apaixonada pelo meu analista, por um professor da Drexel, pelo pai de um dos meus alunos, por um cara que está, de boa vontade, me ajudando a ir para Harvard”, era insanidade demais para os meus ouvidos e os ouvidos dos outros. Queria manter essa verdade quietinha dentro de mim por enquanto, não ousando revelar nem para o meu próprio espelho.
Como se fosse possível, o rosto de Wonwoo se contorceu ainda mais, e se eu não estivesse exagerando, ele parecia ser perfeitamente capaz de virar aquela mesa ao contrário com um braço só.
Depois, deu mais uma daquelas risadas debochadas, cheias de chacota.
— Nossa, isso é muito mais ridículo do que você usando verde. — resmungou, no meio de um suspiro ou tentativa de não triturar os próprios dentes de novo. — Vem cá, que chance você tem com um cara que tem um filho? Hum? É bagagem demais, , bagagem pra caralho. Você sempre foi alguém que pensou apenas em você, e no seu sucesso profissional, querer ser madrasta a essa altura do campeonato é no mínimo um retrocesso do mais imbecil.
Pisquei os olhos com força, impactada de novo pelas suas palavras. Provavelmente, seria muito mais fácil e inteligente dar a volta e sair do Mango’s, aproveitar o horário de baixa para pedir um Uber barato e ir para casa pedir a opinião de Belle sobre a roupa. É, seria ótimo, certamente salvaria minha amizade com Wonwoo, impedindo que eu afogasse sua cabeça gigante no lago mais próximo.
Mas eu não esperava ficar com tanta raiva do que ele tinha dito.
— Madrasta? Porra, Wonwoo. Não sabia que eu era a protagonista da sua próxima fanfic. Pode queimar esse documento inteiro que o seu enredo tá uma merda. — controlei a vontade de chutar sua canela por baixo da mesa. — Eu super abraçaria a sua TPM se ela tivesse um motivo lógico, mas o seu ciúme tá começando a me tirar do sério. Já não bastou aquela cena ridícula na frente do Yoongi, e agora você quer vir cheio de julgamento por uma pessoa que você nem conhece? E daí se ele tem um filho? Ele é um ótimo pai, um que faria qualquer mulher mergulhar de cabeça e procriar umas dezenas deles, encher um campo de futebol inteiro, se você quer saber. E por que isso seria preocupante? Ele é um homem de verdade, Wonwoo. Tenho certeza que você já deve ter visto exemplos parecidos nos seus romances.
Foi a vez dele de parar com a boca entreaberta, os óculos escorregadios até a ponte do nariz, a respiração descompassada. Tenho quase certeza de que Eddie devia estar nos observando do balcão, apertando os olhos enquanto secava um copo, se perguntando que diabos estava acontecendo ali para que e Jeon Wonwoo estivessem fazendo qualquer outra coisa que não fosse rir, sorrir ou gargalhar um do outro. Caramba, até o Lucas devia estar parado vendo aquilo, comendo o resto de cabelo que roubou de algum dos clientes.
Mas a necessidade de desfazer aquela distorção sobre Yoongi do discurso de Wonwoo era mais forte do que eu. E eu ainda não sabia bem como controlar esses novos impulsos malucos.
Por fim, ele abriu um sorriso azedo, que parecia tudo, menos um sorriso.
— Yoongi? Agora você até usa o nome verdadeiro dele? — ele balançou a cabeça, recostando-se para trás. — Isso não tá certo, …
— Que merda não tá certa, Wonwoo?
— Isso! Você! Olha pra você, caramba. Eu nunca te vi assim…
— Assim como?
— Apaixonada. — a palavra saiu dele como se tivesse vomitado uma bola de pêlo nojenta. — Ou… toda encantadinha com esse cara. Ele é um professor, cacete.
— Ele não é o meu professor.
— Que se foda, ele trabalha com você e isso vai dar merda. Honestamente, eu quero muito que dê. Assim você pode se tocar do quanto tá esquisita e voltar a ser a que a gente gosta. Que eu gosto.
Agora toda a minha testa tinha se contorcido, vergado, praticamente mudado de lugar.
— Wonwoo, o que… meu Deus, cala a sua boca! Isso foi uma coisa ridícula e horrível de se falar.
— Nada é mais ridículo do que você e ele num show de metal fodido enquanto você usa verde.
— Vai se foder.
— Eu só acho que existem pessoas bem mais capazes de gostar de você sem te mudar completamente.
Joguei a bolsa no ombro com uma força que não sabia que tinha e me coloquei de pé tão rápido que bati na ponta da mesa até meu copo vazio vibrar no tampo. Wonwoo arregalou os olhos de surpresa, e meti as duas mãos na madeira para abaixar na direção dele.
— Eu não mudei porra nenhuma, seu idiota. Só tô tentando, pela primeira vez na vida, não usar meu passado de merda como desculpa pra não me importar com mais ninguém. E se quer saber, eu vou ficar uma gostosa de verde e ainda parecer a madrasta mais foda do mundo no meio dos metaleiros. Agora me dá licença.
Marchei para fora do bar, sentindo o corpo inteiro fervendo de uma raiva que, caso eu tivesse pelo menos 1,60 como as pessoas normais, me faria ter coragem de derrubar aquele atleta idiota, obrigar Lucas a comer todo o seu cabelo e enterrar metade dele na floresta ancestral de Uma Noite Alucinante, que fortuitamente ficava bem ali depois do centro da cidade. Provavelmente não aconteceria nada e Wonwoo viraria apenas mais uma versão de atleta-sexy-de-cabeça-raspada, mas aquela floresta dava a impressão de ser o local mais provável de ter uma fábrica de bonecos de vodu loucos por uma nova aquisição.
Caminhei desnorteada pela calçada, abrindo o celular em busca do aplicativo do Uber, mas em vez disso, levada pela minha necessidade de fugir da fúria de Wonwoo, selecionei o número de Yoongi e escrevi:
“Você ganhou um presente de aniversário atrasado e tem que ir nele. Não aceitam recusas ou devoluções. Sujeito a guincho humano.
PS: vai precisar da Belle.”
No dia seguinte, percebi que a volatilidade vibrante da minha recém-descoberta paixonite me tornou um pouco imprevisível.
A começar pela mistura de verde e preto que estava espalhada naquele visual que passei as últimas 3 horas montando com Belle (o máximo de tempo que já passei para escolher uma roupa). No fim, me decidi pelo vestido verde maçã tomara que caia, jaqueta preta de couro falso que Belle tinha guardada no armário, e as mesmas botas de sempre, porque elas eram realmente boas para qualquer ocasião. Mesmo um primeiro dia de aula ou um primeiro show de metal.
— Você sabe que os Bilge Rats são mais uma banda de covers do que uma banda de verdade, não sabe? — Belle disse enquanto terminava de cachear meu cabelo.
— Bandas de covers não são bandas de verdade? — semicerrei os olhos através do espelho.
— Se todas as bandas de verdade tem baterias, guitarras e um carinha de garganta potente, então é, eles são.
— Acho que Yoongi não vai se importar com isso. — dei de ombros.
— Também acho que não, considerando que vai ser a primeira vez em anos que ele vai estar tirando aquele invólucro mortal de seca. Quem se importa se tocarem Iron Maiden ou Dua Lipa?
— É o quê? — virei o corpo na cadeira, franzindo o cenho. Belle afastou o baby liss, me olhando sem entender. — Que negócio é esse de invólucro?
— Tipo um casulo, ou seja lá onde aquele gato estava se escondendo esses anos todos desde que ficou viúvo. Também é uma alusão a “a camisinha finalmente vai sair do pacote”. — ela deu um sorriso malicioso. Provavelmente, minha pele ficou pálida e gelada. — Fala sério, . Acorda. Hoje é o dia.
— Dia… d-dia de quê? Que dia?
— De vocês se pegarem! — Belle largou o baby liss e colocou as duas mãos nos meus ombros encolhidos. — Qual é, minha amiga, tá na cara, você tá louca pra tirar as teias de aranha daquela boca, e sabe-se lá da onde mais, e posso garantir que ele não te olha e só enxerga uma garotinha que quer ir pra Harvard. Vocês tem conexão, e uma puta química, e vão sair juntos sozinhos por várias horas durante a noite, o que já se configura como encontro. E você sabe o que acontece no fim de um encontro…
— Não! — levantei depressa, quase esbarrando na superfície quente do baby liss, começando a sentir o coração saltar. — Não, isso… isso não é um encontro, Belle.
— É claro que é. E por que não seria? Achei que era por isso que tinha comprado o ingresso.
— Eu comprei pelo aniversário dele. Porque vi as guitarras, e imaginei que talvez fosse legal, pra ele se divertir, pra ele…
— Aham, aham, eu acredito, mas se fosse só por isso, você poderia simplesmente ter entregado os dois ingressos e dito que ele podia levar quem quiser e relembrar os tempos da juventude. Mas não, você tá ficando gostosa e quer que ele note isso. — Belle estalou a língua e me sentou de volta na cadeira, ajeitando os cachos que eu quase estraguei. — Não tem problema nenhum admitir que quer subir no colo do doutor D, . Sinceramente, acho que você e ele merecem isso.
Fiquei sem me mexer por vários minutos. Aquela conversa com Wonwoo voltou na minha mente, as palavras maldosas se agarrando como vinhas no meu pescoço. “Isso vai dar merda. Honestamente, eu quero muito que dê. Assim você pode se tocar do quanto tá esquisita e voltar a ser a que a gente gosta. Que eu gosto.”
— Você acha que… eu mudei, Belle? Acha que eu mudei muito?
Ouvi a respiração baixa dela nas minhas costas.
— Acho que você está diferente sim. Mais feliz. Mais confiante do seu trabalho. Menos pão dura, já que me deixou tomar seu iogurte sem ter que devolver um pote inteiro depois. — ela deu de ombros e eu ri. — Você mudou sim. E daí? Por acaso tava planejando ser a mesma pessoa pra sempre?
Suspirei devagar. O resto de riso ainda estava na minha boca, experimentando de novo aquela sensação boa de quando alguém dizia que é, você não era o desastre que pensava. Ou o desastre que alguém tentou fazer você acreditar que era. Porque eu me sentia exatamente daquele jeito observado por Belle, e ela era a pessoa que mais me conhecia no mundo.
— Belle… eu e o Yoongi, acha que nós dois podemos dar certo? — perguntei para o meu reflexo no espelho. Belle alisou as pontas do meu cabelo.
— Eu acho que vocês dois precisam um do outro. E quando entenderem isso, vão fazer dar certo e formar o casal de comercial de margarina mais lindo de todos.
Ela apoiou o queixo no topo da minha cabeça, e seus olhos cintilaram no espelho.
— Agora que tal usar aquele gloss de 3 dólares que é o mais fácil de sair?
O concerto dos Bilge Rats iria acontecer dentro de um pub subterrâneo nos confins de Manayunk, um bairro afastado no nordeste da cidade. O lugar, por fora, se parecia muito com uma igreja abandonada, que deve ter sido abandonada exatamente por causa da localização.
Apesar disso, o distanciamento da sociedade tinha uma vantagem: mais espaço para estacionar. Yoongi parou o Audi em um espaço bem amplo logo nos fundos do lugar, rodeado de vegetação densa e molhada da Filadélfia às portas da primavera, e tão assustadora quanto todo o cenário era.
Tinha que elogiar o dono daquela ideia. Montar um pub de rock em um lugar que parecia, no mínimo, ter sido um antigo cemitério indígena? Genial.
— Tenho uma dúvida muito séria antes da gente entrar. — Yoongi disse enquanto soltava o cinto de segurança. — Por que esse lugar se chama Porco Morto?
— Ahn… — olhei para a fachada de pedra da instalação, com aquela placa decaída de madeira escrita em letras já muito gastas: Porco Morto. — Acho que a gente devia só ignorar o cardápio de comida deles.
— Obrigado. Era o que eu queria ouvir.
Saímos do carro e fomos andando até a entrada, com Yoongi dando passadas cada vez mais rápidas e eu, por alguma necessidade bizarra, deixei ele ir um pouco mais à frente. Não era porque estivesse cansada ou que aquelas botas que troquei de última hora estivessem incomodando meus pés; se tratava apenas de poder olhar para ele de forma segura, sem que ele percebesse.
Estava tentando me controlar desde que ele estacionou na frente do prédio, todo de preto, couro e joias. Por um momento, quando ele demorou a me dar uma resposta sobre o convite, achei que foi muito precipitado supor que ele não se importaria de se enfiar em um lugar apertado e fedido, com a perspectiva de ser pisoteado por feras e rodinhas de punk, mas agora, tive a impressão de que ela só demorou a falar porque tinha ficado empolgado demais para responder na hora.
E a ideia de ser uma banda de covers pareceu genial quando entendi que Yoongi seria sugado por um loop temporal de quarenta anos ou mais, revivendo suas músicas favoritas como as que escutava na época da faculdade.
Mas toda essa confiança só seria depositada em mim com o decorrer das horas, já que, por culpa de Wonwoo e seu discurso de merda, eu ainda estava pensando que Yoongi poderia estar ali por mera educação enquanto seguimos o caminho das outras pessoas para dentro da fortaleza de pedra e descíamos por uma rampa iluminada apenas por tochas presas em arandelas (uau!), que ficavam mais espaçadas a cada metro percorrido, até acabarmos no porão parecido com uma cripta, equipado com uma bancada na lateral, um pequeno corredor escuro e apertado de banheiros e sem nenhuma mesa ao redor. Pelo visto, era proibido ficar sentado.
Já tinha uma banda tocando no palco quando chegamos, e bastante gente para se espremer. Não era tão fedorento quanto pensei: o cheiro era muito, muito parecido com o Mango’s em noite de rodada dupla. Nada que passasse muito do álcool e urina nos cantinhos. Fora isso, me surpreendi com o restante: a luz amarela fraca, a fumaça que de jeito nenhum vinha de gelo seco e o mar de pessoas de preto, com tatuagens aparentes e piercings em várias partes do rosto.
Me encolhi um pouco nessa última parte.
— Acho que eu vim com a roupa errada. — arrisquei a dizer mais perto do ouvido dele, porque o som estava começando a ficar alto, mesmo que a banda em questão estivesse arranhando um melancólico “Comfortably Numb”, do Pink Floyd.
Yoongi virou a cabeça para mim. E foi nessa hora que a voz ridícula de Wonwoo e todas as minhas inseguranças foram por água abaixo.
Tirando o sorriso de gato da Alice estampado no seu rosto, os olhos foram os que mais me chamaram a atenção. Estavam abertos, brilhantes, iluminando tudo que aquela porcaria de luz amarela não conseguia iluminar. Me lembrei na mesma hora daquele sorriso da foto de seu casamento, o retrato empalhado em cima da lareira, e tive certeza absoluta que esse de agora estava maior e mais bonito.
— O quê? Ah não, de jeito nenhum. — ele balançou a cabeça em negação, descendo os olhos por mim como tinha feito quando entrei no carro, mas dessa vez de forma mais demorada, já que antes desviou o rosto rápido como se fosse pego olhando uma revista da Playboy. Bom, se ele quisesse pensar que eu era tão gostosa quanto uma coelhinha, fique à vontade, meu senhor. — Você tá linda, . Vem, vamos pegar uma bebida.
E pegou na minha mão, me arrastando até o único bar do recinto.
Aquele toque foi a primeira coisa da noite que me fez despertar o máximo de senso racional para lembrar de me segurar no lugar. A palavra “encontro” que Belle tinha insistido em dizer estava martelando na minha cabeça desde que saí, o que não era minha intenção, porque não queria criar expectativas a esse ponto (preferia muito mais fingir que aquela saída de agora tinha sido uma decisão mútua, um sugestão: preciso te mostrar uma coisa, tudo bem? Você quer? Ótimo, então vamos). Mas quando olhei para ele no carro, e depois para ele ali dentro com aquele sorriso de felicidade, e depois ele ter pegado na minha mão como se deixasse claro que sim, estamos juntos nessa, e vamos fazer tudo juntos, cacete, ficou muito difícil segurar um suspiro de apaixonada.
Eu fui de Budweiser enquanto Yoongi pediu uma caneca de 600ml de chopp, o especial da casa. Depois, nós dois nos esgueiramos por entre as pessoas até ficarmos à uma distância maneira de visualização do palco, onde os caras dali estavam encerrando seus trabalhos sem grande balbúrdia e dando lugar à banda da noite, os Bilge Rats.
Fiquei absolutamente quieta quando eles entraram, diferentemente do restante da população gritando ensandecida. Não porque eles tinham instrumentos modernos ou tatuagens na testa, mas porque eram muito bonitos.
— Eu achei que eles seriam… diferentes. — me inclinei novamente para o seu ouvido. Yoongi soltou uma risada alta.
— Achou que eles estariam usando crucifixo ao contrário ou tivessem caras pintadas tipo o Kiss?
— Basicamente.
Ele riu de novo e se aproximou mais de mim quando alguém passou do seu lado.
— Mas esses são bem mais boa pinta do que o restante, vou concordar com você. — disse ele.
— Acha que rolou um pacto pra isso? Não pra eles ficarem famosos pelo talento, mas sim pela beleza, tipo a lenda do boto cor-de-rosa?
Yoongi me encarou na hora que o vocalista cumprimentava a plateia.
— Esse foi o pacto mais idiota que eu já ouvi.
Depois disso, ficou praticamente impossível conversar. O som explodiu em todas as paredes possíveis, e notei que o lugar inteiro devia guardar amplificadores escondidos para te dar uma experiência imersiva. A primeira música foi alguma do Ozzy Osbourne, que eu não conhecia, mas Yoongi cantou do início ao fim. Na verdade, todas as músicas cantadas em cima daquele palco eram do seu conhecimento, das mais populares às mais desconhecidas, e ele sorria de orelha a outra o tempo todo.
Aquele sorriso estava sendo o meu verdadeiro show particular. Qualquer que tenha sido o pacto feito por aqueles caras lindos que os trouxeram a tocar naquela sexta-feira em um bar chamado Porco Morto ao noroeste da Filadélfia, eu já considerava o melhor pacto de todos.
Tenho poucas palavras para descrever com clareza o que foi aquela experiência. Desisti de tomar mais uma cerveja porque todo mundo pulava e esbarrava os ombros no seu o tempo todo, o que derramava várias coisas em cima da sua roupa e das suas botas, os agudos e graves da voz do vocalista penetravam muito fundo no seu tímpano a ponto de você sentir que era a corda da guitarra que estava sendo tocada ali em cima, o suor acumulando na nuca grudava no seu cabelo, a temperatura geral subia em questão de segundos e, mesmo que você fosse como eu, que não fazia ideia de nenhum acorde ou verso de música nenhuma, ainda dava para curtir porque a coisa primordial ali era a galera — dezenas de pessoas suadas e pulando, gastando energia, sentindo a vibe da nostalgia sem exatamente estarem cantando a música.
Fui pega por isso. Yoongi cutucava meu ombro o tempo todo, gritando coisas como “OLHA ESSA PARTE, ESSA PARTE”, e depois “SLAYER, PORRA! OLHA ESSE SOLO”, e ainda: “EU TOQUEI ESSA! TOQUEI NA FRATERNIDADE”, e tentava me contextualizar das suas histórias no meio de gritos e pulos, e tinha entornado mais três canecas daquela de 600ml, o que significava que ele podia ser considerado oficialmente bêbado (mesmo que estivesse muito melhor do que todos os bêbados que já conheci na vida).
Com o andamento do show, eu e ele conseguimos chegar mais para frente e ficar mais próximos do palco. Já tinha me livrado da minha jaqueta e amarrado na cintura, enquanto Yoongi tinha puxado suas mangas até o cotovelo e jogado todo o cabelo escuro para trás, com pequenas pocinhas de suor na lateral da testa, o peito ofegante e o sorriso tatuado. Ele estava sempre perto de mim, extremamente perto, até quando estávamos com mais espaço para abrir os braços ao redor. Por um lado, eu entendia: um evento daqueles poderia se tornar imprevisível, e se alguém por acaso estivesse com algo um pouco mais pesado no sangue além daquela cerveja barata, a confusão estava garantida.
E eu, como uma pecadora das regras morais e fiscais de universidade que desejava o próprio analista, me mantinha ainda mais perto, desejando que ele passasse aquele braço por mim e descontasse toda aquela euforia na minha pessoa.
Péssima hora para ficar fantasiando suas transgressões, .
Para não fazer isso, me concentrei na banda e na voz potente do vocalista gato, que finalizou mais uma música e arrancou aplausos e gritos diversos, a maioria pedindo por mais. Foi então que ele, igualmente pingando de suor e com tatuagens tomando os dois braços e o peito, riu abafado pelo microfone:
— A gente quer fazer uma coisa nova, Porco Morto. Quem tá comigo? — mais gritaria enlouquecida. — Ouvi dizer que vocês andam insistindo pela internet pra gente cantar Master of Puppets. Colaram os cartazes na nossa van e pediram a porra do Metallica sem parar. Pois então! Chegou o dia de vocês! E eu digo literalmente de vocês. — ele fez um gesto para o cara ao seu lado no palco minúsculo, que tirou a guitarra e a colocou no apoiador, puxando uma garrafa de água e levantando um dedo do meio para a plateia com um sorriso de dentes amarelados. — O Aaron aqui tem uma puta aversão por Metallica, e por ele não existe o “a voz do povo é a voz de Deus”, então vocês vão ter que se virar! Quem vem, hein?
A plateia vibrou, mas não houve nenhuma movimentação. Acho que a maioria das pessoas não tinha entendido direito o que o carinha gato estava dizendo. Nem eu estava entendendo direito.
Ouvi Yoongi rir do meu lado, murmurando um “cacete, não acredito” enquanto olhava o palco, a guitarra, como se estivesse vendo um super lance de beisebol que deu certo. Pelo visto, ele era a única pessoa da plateia que tinha entendido o pedido do vocalista.
— Nós não temos a noite toda, Filadélfia! Vamos lá, quem vai balançar essa porra com a gente?!
Mais gritaria, nenhuma movimentação. Yoongi olhou para os lados, distraído, ainda sorrindo. E não sei exatamente quanto tinha bebido para ser capaz de fazer o que eu fiz.
O palco era baixo, e eu era mais ainda, mas mesmo assim consegui levantar o braço, apontar com o indicador e gritar:
— Ele! Ele sabe tocar!
Uma legião de cabeças e coletes pretos se virou na minha direção, incluindo o vocalista gato e o próprio Yoongi ao meu lado, que paralisou completamente ao ver o meu dedo apontado para o seu rosto.
— O que tá fazendo? — agora ele praticamente sussurrou, já que o som não existia mais e o próprio ar pareceu ter parado. Abri e fechei a boca, sem explicação para dar.
— Ei! Você aí! — o vocalista disse pelo microfone, apontando com o queixo para Yoongi. — A gata apontou pra você. Vem, estamos esperando.
Yoongi olhou do cara para mim, várias vezes, sem saída. A plateia ao lado começou os gritos de incentivo.
— Mas… Faz um tempão que eu não…
— Ah, pelo amor de Deus, até quando vai fingir que é um santo e esconder o astro do rock que vive dentro de você? — dei um empurrãozinho nele com meu ombro, semicerrando os olhos e agarrando a ponta do seu cabelo. — Sobe lá em cima e mostra o que você mostrou pra galera da fogueira. Revive os seus melhores dias.
Yoongi me encarou de um jeito tão intenso como fogo marcando minha pele. Por um momento, toda aquela gritaria e suor e música alta desapareceram e só restou aquilo: fogo, fogo e mais fogo.
Até que o sorriso de antes foi nascendo de novo, devagar, e vi algo em Yoongi tão enorme, brilhante e magnético que precisei segurar a apaixonada com cordas de aço e forquilhas de madeira.
Ele, então, estendeu o seu terceiro copo de chopp para que eu segurasse e seguiu para o palco, recebendo uma ovação barulhenta até da própria banda.
Quando ele chegou lá em cima e cumprimentou todos os caras, tomando posse da guitarra e se reunindo em uma mini rodinha com todos para um bate-papo rápido sobre a música e o ritmo, comecei a sentir o coração batendo ansioso na garganta.
E quando eles pararam de conversar e Yoongi foi para o lado do vocalista e olhou diretamente para mim, me senti oficialmente quente, incendiada, um corpo vivo dentro de uma fornalha de 300 graus, assando em absolutamente todas as partes e avenidas de um organismo humano poderia assar sem morrer.
E precisava ignorar aquele nó no meu ventre, jorrando um desejo doloroso de mim que me fez ter que me esforçar a ficar de pé.
Quando Yoongi começou a tocar, tive certeza absoluta de que ele não era mesmo um mentiroso. E também odiava contar vantagem de qualquer coisa, porque desde que deslizou os dedos no primeiro acorde abrindo a música, ficou bem claro que ele roubaria toda a cena dos próximos 10 minutos.
A música se espalhou como um manto sobre toda a plateia, que gritou mais do que antes, se é que isso era possível. Por muito tempo, fiquei parada, segurando aquele copo de vidro, com medo de que se eu me mexesse como os outros, perderia aquela imagem, ou balançaria ela demais e meu cérebro não se lembraria dela com nitidez. E tudo que eu mais queria naquele momento era me lembrar de Min Yoongi tocando Master of Puppets em um palco minúsculo, brilhando em brincos prateados e júbilo pleno, parecendo pelo menos 10 anos mais jovem.
Com a imagem devidamente catalogada, vibrei com os outros, levantando os braços e gritando coisas que não fossem a música que eu não conhecia, vendo seus olhos em cima dos meus a todo instante, como se ele precisasse de um apoio enquanto servia de apoio para o resto da banda. Me lembrei exatamente do que Belle disse: Eu acho que vocês precisam um do outro. E a inverdade também não caía muito bem nela, pelo menos não em relação a mim.
Quando tudo acabou, dei um grito que minou o que restava da minha voz e me senti em uma passeata de elefantes, ouvindo os gritos agudos de mulheres da idade de Yoongi se sobressaindo mesmo quando ele estava tirando a guitarra dos ombros e trocando toques de mãos com os outros caras da banda.
— Cacete, alguém tem dúvida de que a Filadélfia esconde uns talentos desse? O Aaron vai precisar ficar ligado daqui em diante. Senhoras e senhores, esse foi o Augustus! — o vocalista brincou pelo microfone, e trocou um último tapinha nas costas de Yoongi antes que ele chamasse o guitarrista sem camisa de volta e Yoongi deixasse o palco.
Por algum motivo, meu coração deu um trinado maluco ao vê-lo descer a escada e caminhar até mim. Toda a cena ficou meio em câmera lenta, distante. Até chegar na minha frente, Yoongi foi cumprimentado por uma multidão de pessoas, todas com elogios na ponta da língua e garotas de batom vermelho sorrindo e fazendo o sinal de telefone. Não deu atenção para nenhuma delas; ele só tinha olhos para mim.
E quando chegou, com aquele sorriso de holofote e um acúmulo de energia contagioso, eu sabia o que ele faria. Sabia e fiquei paralisada, esperando, esperando…
Quando os braços dele passaram ao meu redor, tive o corpo inteiro erguido para cima, e girei, girei, girei, deixando uma respiração alta misturada com risada escapar de mim, ao mesmo tempo que Yoongi também ria, sendo levado por toda aquela euforia.
— Cacete, ! Você viu aquilo? Viu o que eu fiz? — sua voz quente e abafada foi direto no meu ouvido.
— Você conseguiu! Eu sabia que ia conseguir! Quem você pensa que é? — dei um empurrãozinho no seu ombro. Ele não me soltou.
— Eu não sei, eu achei…
— Você achou errado.
— Achei que eu ia errar…
— Você achou errado, porra.
— Foi foda demais…
— Foi incrível…
— O solo saiu tão certo, e na minha guitarra eu nunca conseguia…
— Agora você conseguiu…
— Você é maluca.
— Não fui eu que acabei de tocar pra toda essa gente.
— Eu sou maluco.
— Todos os guitarristas são um pouco.
— Ah, , você é… incrível. Você é tão…
Yoongi afastou o rosto da curva do meu pescoço e encostou a testa suada na minha, aproximando o nariz do meu, fazendo toda essa sequência de movimentos inconscientemente, sendo puxado por algo invisível.
Fiquei imóvel. Ele ainda estava sorrindo, ainda que seu sorriso tenha se transformado em algo menor e mais solene.
Não tive coragem de afastá-lo. Não tive coragem de abrir a boca. Esperei que ele fizesse, mas ele não fez. Esperei que ele me soltasse, que tirasse as mãos do meu rosto e deixasse a mensagem clara: foi legal, mas nunca mais me mete numa dessas, beleza? Também não fez. Esperei que ele notasse o quanto estávamos perto, ainda mais perto do que aquele dia no meu apartamento, tanto que eu conseguia sentir a respiração pesada escapando da sua boca bem ali no meu nariz, nos meus lábios, nas minhas bochechas, em tudo, e que não conseguia parar de mirar os seus olhos, enquanto ele se concentrava em algum ponto do meu queixo.
Esperei, esperei, esperei…
Por incrível que pareça, esperei tudo, menos ter minha fantasia atendida e ser beijada com uma força absoluta.
Minha ansiedade nunca me deixou acreditar que era possível imergir tanto em alguma coisa a ponto das outras ao redor desaparecerem, mas quando a boca de Yoongi se chocou contra a minha, foi como se estivéssemos naquele filme Click e tudo ao redor parasse.
O vocalista estacou de boca aberta no meio de Sweet Emotion, do Aerosmith.
O cara de dois metros e moicano ao nosso lado fazendo o sinal de dois dedos com a mão parou no meio de um pulo.
Uma mulher sem blusa e com fitas adesivas na frente dos mamilos congelou no meio de uma golada de Budweiser.
E mesmo que, em algum lugar no fundo da imaginação, eu estivesse sentindo ombros batendo nas minhas costas, eles se pareciam com penas me acariciando enquanto a minha alma estava saindo de dentro do corpo e se perdendo no meio daquele beijo.
Deslizei os dedos pelo cabelo dele, puxando-o com uma força desproporcional mais para me impedir de cair do que um ato sexy, enquanto Yoongi apertava minha boca e minha cintura como se eu fosse fugir, ou alguma coisa poderia cair ali no meio e interromper esse momento, e ele não poderia permitir isso porque seria uma tragédia.
Yoongi achava uma tragédia a gente parar de se beijar. Não dava mais para segurar a apaixonada.
E essa abriu a boca, estendeu a língua e sugou, provou e despencou naquele momento barulhento, quente, confuso, agarrando o cabelo de Yoongi com voracidade como se não estivéssemos no meio de toda aquela gente, que até podiam não estar dando a mínima para nós, mas limitavam bastante coisa do que eu queria fazer, do que eu repentinamente precisava fazer.
E Yoongi entendeu parte da coisa, porque resmungou algo que não entendi, mas não parou de me beijar, não deixou de puxar meu lábio inferior com os dentes, não tirou as mãos de mim nem por um segundo. Uma delas estava perdida, parada em um canto e logo depois indo para outro, querendo explorar, mas sem jeito para isso, sem direção, sem nenhum plano, enfrentando vários instintos de uma vez.
— Merda… — ele soltou uma exclamação abafada quando eu cheguei mais perto, tocando nossos quadris, e sua mão automaticamente desceu para a primeira metade da minha bunda. Eu sentia seu peito batendo rápido no meu. Sentia um monte de coisas que nunca seria capaz de explicar para alguém que não fosse um médico.
Quando senti mais um ombro batendo e mais um empurrão, grunhi no fundo da garganta e fiz o que a apaixonada, bêbada, maluca e com tesão em um show de metal faria: peguei a mão de Yoongi e comecei a puxá-lo para longe da multidão, abrindo caminho entre os corpos até o corredor apertado e escuro do banheiro, brilhando de uma luz vermelha grudenta e abruptamente melancólica, mas ostentando um espaço vazio.
Não fazia ideia do que estava fazendo. Eu não estava pensando em nada, absolutamente nada. Só puxei Yoongi até ali, soltei sua mão, e o resto foram movimentos que, se fossem ensaiados, não sairiam tão perfeitos e sincronizados: ele agarrando minha cintura com tudo, pressionando minhas costas na parede gelada de pedra e sua boca me invadindo com uma liberdade violenta, quase animalesca.
Uau… uau.
Nenhum (repito: nenhum!) livro erótico já escrito na vida saberia descrever o que aquele homem fez com a língua na minha.
Tufos elétricos estavam queimando em linha por todas as rotas do meu corpo, mais especificamente em todos os metros quadrados que Yoongi tocou ou estava tocando. O barulho ali no beco estava mais para um ruído distante de muita bateria e solos de guitarra, mas nenhuma vibração do ambiente foi maior do que a que senti quando reclinei a cabeça para trás e recebi sua boca no meu pescoço, me engolfando em uma onda quente e desvairada.
Yoongi raspou os dentes no meu maxilar, minha clavícula, meu queixo, descendo até o meu colo, abaixando a mão de antes para onde realmente queria chegar: minha bunda, bem servida por baixo do vestido verde, cravando os dedos nela inteira, ao mesmo tempo que soltava um gemido quente contra a minha pele.
— Porra, … — ele se empertigou, colando mais nossos corpos, me fazendo automaticamente me esfregar como uma pervertida na sua ereção. — Porra, como eu queria te tocar. Queria te tocar inteira.
— E eu quero… que você me toque… desde a primeira vez que te vi. — soltei no meio de gemidos, fricções, mãos apertando seu cabelo e a boca procurando a dele. Yoongi enrijeceu completamente, falando uma série de palavrões escabrosos enquanto lutava para não levantar as mãos e agarrar meu seio quase pulando do decote. Agarrei sua mão e cortei o caminho, ouvindo mais uma de suas expirações cortantes, retas, quentes. Sua mão apertou meu peito deliciosamente por cima do tecido, e levantei uma perna para passar por sua cintura. Ele jogou a cautela de lado e enfiou a mão por dentro, puxando meu mamilo, me causando uma convulsão deliciosa e quase fatal.
Queria que ele me tocasse assim em todos os lugares. Precisava desesperadamente tocá-lo também.
Seguindo o pensamento, voltei a beijá-lo, puxando seu lábio com os dentes, roubando toda a sua vida útil com a língua dançando furiosa, do mesmo jeito que ele fez comigo na frente do palco, sentindo que ele ficava perdido e mais duro ainda. Levei minha mão à sua cintura, contornando o cinto de sua calça, abaixando até o ponto de contato de seu volume, arrancando um arrepio perceptível de Yoongi, um que o fez xingar de novo dentro da minha boca, e foi uma das coisas mais deliciosas que já provei.
— Não faz isso… — ele disse em uma voz fraca quase inexistente quando passeei com os dedos de novo por cima do tecido. Os olhos se fecharam com força, a mão no meu mamilo me apertou de novo e eu o apertei de volta, um simples movimento de ação e reação. Deus, eu ia enlouquecer. Todos os meus neurônios estavam sendo queimados vivos bem ali. — Tá me deixando louco, …
— Você também… me deixa louca. — gemi no seu ouvido quando ele saiu da minha bunda e foi arrastando lentamente, muito lentamente para a minha coxa, trilhando um caminho perigoso e tentador, um que não dava para continuar ali, de pé, debaixo da luz vermelha de um banheiro. — Eu tô louca por você.
— Para… — ele travou o maxilar, quase em súplica, mordendo meu lábio.
— Há quanto tempo você não faz isso? — perguntei, ofegante. Ele tinha chegado na parte interna da minha coxa, os dedos se segurando pra se manterem agarrados na minha pele da virilha.
— Três anos. — Yoongi respondeu imediatamente, o tempo exato marcado na ponta da língua.
— Três anos sem…
— Nada. Nada… disso. — ele fechou os olhos de novo e tomou minha boca, como se dez segundos longe dela fosse tempo demais. Não vi mais razão para falar. A partir daí, a coisa ficou imoralmente intensa, cheia de mãos, suor, línguas decadentes e eu fazendo uma representação perfeita de uma cadela no cio, me esfregando no seu pau e sendo invadida por todas as fantasias mais lascivas que já tive com as mãos e a boca de Min Yoongi, e tudo que elas poderiam fazer comigo.
A gente ia perder o controle. Íamos perder o controle de um jeito inimaginável ali mesmo, e eu não estava nem um pouco preocupada com isso. Yoongi me queria, me queria para caramba, da mesma forma como eu o queria.
E então, de repente, quando eu estava prestes a deixar que um único dedo se esgueirasse para dentro de sua calça, Yoongi se afastou de mim, com o corpo inteiro, ofegando tenebrosamente, os ombros baixos e projetados, olhando para mim daquele jeito como olhava para as minhas amostras, para a minha tese, ou, do meu novo jeito favorito: a forma como olhou para o piano.
Olhou para mim como se eu fosse linda demais para ser verdade.
E isso o causou uma palidez absurda e uma necessidade de dar passos para trás.
— E-eu… isso…
Não tinha o que falar. Eu não conseguia me mexer, mesmo sabendo que deveria ajeitar o cabelo bagunçado, o vestido desordenado, as pernas bambeando. Yoongi repassava o olhar em cada centímetro do que via, como fazia em todos os lugares que frequentava, percebendo só agora onde tínhamos ido parar. Ele gesticulou para a direita (ou esquerda?), engolindo várias vezes.
— Eu vou… vou ao banheiro. Espera aqui.
E seguiu pelo beco, um pouco cambaleante, talvez pelos dois litros de chopp no corpo, talvez porque precisava esconder que estava de pau duro, talvez porque tinha reunido toda a força existente no mundo para não enfiar o dedo em mim e sentir meu gosto. Qualquer coisa que fosse, eu com certeza diria: pode pegar. Eu queria que ele pegasse. Todas as partes de mim eram dele se quisesse, e essa realidade me assustou para cacete mais do que imaginei.
As coisas foram voltando ao foco aos poucos agora com Yoongi fora de vista, e com a cabeça desanuviando, consegui limpar a garganta seca, pentear o cabelo com os dedos e ajeitar o vestido torto, a barra levantada, o decote me deixando quase como uma atração de topless. O som voltou a ficar alto, os pratos de bateria sendo violentamente atingidos por um cover de Painkiller e as risadas das pessoas ficando mais próximas quando, gradativamente, seguiam para o banheiro. Fiquei imaginando por um segundo se elas estavam passando por ali o tempo todo, vendo aquela cena minha e de Yoongi, apavorada por um instante por não ter me ligado disso, mas só durou um instante mesmo. Ver alguém dando um amasso daqueles em público devia ser mais comum do que alguém vomitando na lata de lixo na esquina. Nada de novo.
E, naquele momento, em que eu não sabia se me sentia extremamente eufórica ou extremamente preocupada ou extremamente ansiosa por ter beijado Yoongi, estava desprezando a opinião daqueles metaleiros mais do que quase todas as outras opiniões do mundo.
Então fiquei ali com minhas pupilas dilatadas e meu coração se acalmando na caixa torácica, esperando.
Por fim, Yoongi apareceu de novo, com as barras do casaco abaixadas e o cabelo menos revolto, parando ao meu lado por um segundo até dizer:
— Acho melhor a gente ir.
E seguiu na frente, sem virar a cabeça para mim, ou para o palco, ou para qualquer pedaço do espaço que tanto olhou quando chegou. Estava mirando somente a rampa, depois o hall da igreja, e depois o estacionamento, se esticando para dentro do banco do motorista enquanto pegava uma garrafa de água do câmbio, puxando o cinto de segurança e me dando uma olhada de soslaio só para ver se eu estava fazendo o mesmo.
Fui murchando mais a cada passo, percebendo que, aparentemente, toda aquela expressão de prazer e desejo tinham sido enterradas de volta para algum lugar dentro dele. E agora eu estava lendo a mensagem bem alta na sua atitude:
Isso foi um erro.
Dirigir até a saída da cidade no início da noite pareceu ter sido uma estranha, porém boa ideia. Mas naquela volta para casa, desejei rebobinar aos últimos três dias e nunca, jamais, ter considerado aquela programação.
O silêncio pesado de todos aqueles 20km quase podia ser mastigado. Yoongi tinha até mesmo colocado seu sistema de som em jogo, aumentando o volume mais do que o costume, olhando mecanicamente para a frente, o rosto sóbrio e sério de repente, como se nunca, jamais, tivesse ponderado a possibilidade de entrar em um lugar chamado Porco Morto e abominava guitarras da mesma forma que abominava o desmatamento.
Quando ele finalmente estacionou na frente do edifício, fui dominada pela terceira onda de decepção da noite. A confirmação de que tudo tinha mesmo desandado (porque, se não tivesse, eu estaria nesse exato momento bagunçando minha maquiagem e meu vestido no banco de trás daquele carro lindo. A maior utilidade que ele teria nesse fim de semana).
Não desci imediatamente. Parecia incômodo demais mover minhas mãos para soltar o cinto, puxar a maçaneta e sair daquele jeito, quando todo o carro estava entulhado de areia movediça.
— Desculpa ter te trazido pra cá dirigindo. Eu… bebi um pouco demais. Não fui responsável. Devia ter chamado um táxi ou um Uber pra você. — começou ele, rasgando um pouco daquela bolha de ácido que se espalhava entre nós. — Eu não costumo fazer isso. Foi só…
— Tá tudo bem, Yoongi. — agarrei o cinto transpassado pelo meu tórax com os dedos tensos. — Sexta à noite em Manayunk, provavelmente o próprio Uber estaria bêbado.
— Eu não costumo fazer isso.
— Tudo bem, ainda te dou 5 estrelas.
— Não, . Isso tudo… hoje… — finalmente, ele soltou o ar com força e virou o rosto para mim. Todos aqueles vincos na sua testa e queixo eram a imagem clara de um homem atormentado. — Eu não aceitei seu convite pensando nisso, não te busquei aqui imaginando que a gente ia… que aquilo ia acontecer.
— Nem eu. Quer dizer… — e nessa hora, aquela mesma onda de antes queria vir com tudo para cima de mim, um maremoto de gelo pinicando no meu estômago, uma vozinha na minha cabeça recitando a verdade: “não dá pra desconsiderar tudo que você disse e fez hoje, . Tenha compromisso com a sua realidade.” — Eu… gosto de você, Yoongi. Gosto mesmo. Então, o que aconteceu hoje não foi, nem de perto, algo que eu não queria.
Ele me olhou fixamente por três segundos até voltar a encarar a rua escura, fazendo aquilo de novo de respirar e soltar, apertando os olhos e abrindo, trincando a mandíbula com força como fazia nas primeiras vezes que conversamos, passando uma mão pelo rosto com irritação, tudo isso acontecendo em sequência, sem nenhum sorriso ou brilho nos olhos, nada do que eu imaginei que aquele Yoongi com a língua dentro da minha faria.
Na verdade, parecia que ele estava recebendo uma notícia ruim. Como se eu tivesse dito: então, parece que você vai ter que concorrer ao Congresso graças às suas geniosas pesquisas. Quer ajuda pra escolher a gravata?
— , isso… se eu soubesse disso, eu nunca teria… Isso foi um deslize, um erro, só isso. — ele voltou a me olhar, mas logo desviou, como se o que tivesse para dizer fosse difícil demais para fazer em contato visual. — Eu te acho uma garota incrível, você é genial e com certeza vai entrar em Harvard, e estou mesmo disposto a te ajudar com isso, mas a gente, nós dois, nós não vamos dar certo. Não desse jeito. Eu não tô pronto pra isso ainda, pra abrir esse espaço. Eu tenho o Jihoon, e ele é a única coisa que importa, e talvez sempre seja, por isso eu não quero dar esperanças que nunca vão se concretizar. E peço desculpas se eu fiz isso em algum momento com você.
Outra bomba de gelo deslizando para o meu estômago, dessa vez deixando um tipo de veneno quente e azedo que seria capaz de perfurar os meus ossos. Quis perguntar à Belle, ou ao próprio universo, se essa era a sensação de um coração se partindo.
Ele conseguiu olhar para mim de novo, e o tormento ainda estava ali, com outra coisa indecifrável.
— Eu não quero te magoar, . Nunca quis. Beijei você porque… porque você me atrai, e porque é linda e divertida, e gosto de passar meu tempo com você, mas não quero brincar com seus sentimentos. Isso entre nós não pode acontecer de novo, por inúmeras razões.
Me vi balançando a cabeça, mesmo se fosse um movimento robótico, involuntário, a quilômetros de distância da minha consciência.
— Por causa da minha tese. — complementei. O som da palavra “tese” fez com que Yoongi suspirasse pesadamente.
— Sim, por causa da sua tese.
Minha cabeça continuava balançando, parando com uma lentidão mortífera, e quem não conseguia olhá-lo mais era eu. Lembrei do que eu tinha dito antes, sobre como era difícil definir quando uma coisa começava e outra terminava quando se estava no centro de um furacão de sensações. Era eu naquele momento: sentindo tantas coisas diferentes que, no fim, parecia não estar sentindo nada.
Só uma dor aguda e pontual no peito que, imaginei com horror, iria permanecer ali por um bom tempo, abrindo e infeccionando.
Ergui a mão para soltar o cinto, e depois puxei a maçaneta, tendo certeza que todo aquele carro estava lotado de gás verde tóxico, muito parecido com a cor do meu vestido (que ironia. Obrigada pela praga, Wonwoo. Desejo, de todo coração, que você seja o engomadinho a ir para o Congresso).
Mas talvez, por ter pensado no meu melhor amigo naquela hora, um pouco da névoa que nublava meus pensamentos tenha se dissipado um pouco e um outro sentimento tenha dado às caras: a frustração. Uma que me irritou profundamente, mais do que eu poderia descrever.
Desci do carro, disposta a andar de cabeça erguida e deixar a queimação no meu nariz ganhar força só quando estivesse embaixo do cobertor, mas então, a marioneta que estava me controlando me fez virar o corpo pela última vez para ele, que encarava fixamente o volante e apertava a marcha com a outra mão.
— Eu entendo tudo que você disse e até respeito. Deve ser bem difícil me dar um chega pra lá depois de me beijar daquele jeito, mas quer saber, Yoongi? Você devia parar de usar o Jihoon como casulo em todas as situações em que você só tá com medo. Abrir uma brecha pra outras pessoas não significa rever as posições das suas prioridades. Tenho plena certeza de que ele, mais do que ninguém, quer que você seja feliz.
E não fiquei para ver que outra expressão aborrecida ele faria em seguida. Agarrei meus próprios ombros e corri para casa.
História linda, mas transar numa padaria não parece nem de longe toda aquela doçura e romantismo. Imagina aquele monte de farinha entrando na sua bunda? Fermento no seu cabelo? Outro tipo de leite molhando as suas partes?
Já fazia um tempo que meu segundo pote de sorvete tinha acabado, e a protagonista do filme estava em plenitude absoluta depois do seu ápice, vestindo seu terninho na saída do estabelecimento, ainda carregando um pacotinho de donuts.
— Acho que assim teria dado certo. — comentei enquanto limpava um pouco do sorvete de creme do canto da boca.
— Assim o quê? — Belle puxou o pote da minha mão, e estalou a língua quando viu que não tinha mais nada. — Fala sério, acabou com mais um.
— Se eu tivesse fingindo ser outra pessoa. Se eu não fosse da Drexel ou não precisasse dele pra minha pesquisa. Poderia ter fingido um desmaio na frente do carro dele na avenida e pronto, estaríamos transando sem parar já nos primeiros dias.
Belle me olhou da outra ponta do sofá, se segurando para não revirar os olhos, como andava fazendo desde que me mudei para nossa sala embaixo de um cobertor.
— Você sabe que não tá chateada por não estar transando com ele.
— É um enorme motivo de chateação.
— Eu sei, mas não é o maior. Você está passando por essa fase deprê porque já estava sonhando com o registro dos filhos de vocês. Claro que o amasso no pub nojento influenciou diretamente seu chororô no banheiro…
— Aquilo não era um choro.
— A não ser que você estivesse usando um dos Demolidores do BigBelly de uma forma muito errada, você estava chorando sim, e não era nem pelo lugar certo, .
Bufei, me afundando ainda mais no sofá. Não quis concordar com Belle diretamente, porque só de estar ali há mais de três dias, usando as mesmas roupas, e sendo engolida por filmes clichês na TV enquanto me empanturrava de sorvete já era confirmação o suficiente do meu fundo do poço.
— Nunca achei que eu passaria por isso. — resmunguei, coçando o olho para tirar uma remela. — Agora entendo totalmente o que você sentiu depois que aquele Thomas terminou com você. Mesmo que tenha sido porque ele foi preso.
— Ele era herdeiro da maior rede de cassinos da Pensilvânia, era uma questão de tempo até que alguém lá dentro do xadrez mencionasse o nome dele. Mas confesso que se ele me chamasse pra uma visita conjugal….
— Ah não, Belle.
— Por aquele oral, eu juro que valeria a pena. Você sabe como isso é raridade no mercado.
— Faz sentido. — concordei com a cabeça, me embrulhando ainda mais. Não me lembrava da última vez que tinha recebido um oral inesquecível. Na verdade, não me lembrava de quase nada da parte sexual da minha vida desde que bati os olhos em Min Yoongi e nas suas botinas bregas de geólogo, como se elas me provocassem, me desafiassem: “não julga um livro pela capa, gata. As melhores coisas vão além do se vê”. E, se fosse julgar alguma coisa baseada no movimento daquela língua, minha perna automaticamente tremia, e meu ventre se enchia de uma torrente de água, meu corpo queimava a 70 graus…
— Tá imaginando o oral dele, né? — Belle cortou meus pensamentos, e levei um susto tão grande que quase pulei. Ela gargalhou alto.
— Vaca.
— Humm, como deve ser transar com o belo e íntegro Augustus D? Intrépido explorador de montanhas, ótimo cientista e ótimo professor, pai de família, uma conta bancária do Tio Patinhas e tem lindas mãos. É uma carta que nenhuma vadia promissora pode deixar de jogar.
Joguei uma almofada nela, bufando, ou praticamente quase chorando. Estava humilhante ser eu desde que saí daquele carro naquela noite. Nada na minha vida tinha me forçado a chorar quando deveria, e agora, porque um cara me deu um fora, andava acontecendo até mesmo quando ia escovar os dentes (o que eu confesso, não estava fazendo muito ultimamente).
— Eu queria ser uma vadia. — disse, o rosto começando a se contorcer. — Uma vadia de verdade, uma que não se apaixonasse nunca. Essa é a pior coisa que já inventaram, como alguém pode influenciar tanto no nosso sono, fome e higiene? Eu só quero mais um sorvete!
E de repente, fácil assim, eu estava chorando de novo.
Belle emitiu mais um dos “awn, querida” e se aproximou de mim, apoiando minha cabeça no seu ombro e dando leves batidinhas no meu couro cabeludo oleoso.
— Tá tudo bem, tudo bem, você não precisa tomar banho, se não quiser. — ela me confortou. — Mas se passar mais de uma semana assim, vou passar a te consolar usando traje de proteção nuclear.
Soltei uma risada no meio do soluço, que saiu gorgolejado.
— Amigas de verdade abraçariam as outras amigas independentemente se escamas começassem a aparecer nas pernas.
— Ah, querida, vamos começar a rever os nossos conceitos de amizade.
— Escamas nas pernas me transformariam em uma sereia!
— Com o tempo que você não raspa isso, acho que um peixe-gato seria uma aposta melhor. — desdenhou.
Eu provavelmente choraria por isso de novo, mas meu celular gritou e vibrou desesperadamente em algum ponto embaixo das almofadas, e não senti a menor vontade de pegá-lo. Foi Belle, bufando e revirando os olhos, que tateou por todo o sofá até puxá-lo e ler o nome do alarme:
— “Reunião semanal, amostras G4”.
— Não! — fiquei branca, me encolhendo ainda mais na coberta. — Não, não, não.
— É sua reunião com ele?
— É! — gemi em sofrimento. Não conseguia nem imaginar isso. Todo o tempo, estava evitando o próximo momento que precisaria vê-lo. — Eu não quero ir.
— Você não sai de casa há 3 dias, .
— Eu sei, e ainda não quero ir.
— Você não tem ido ao laboratório.
— Estou de folga essa semana.
— Mas sua reunião semanal é referente à semana passada. E semana passada você foi.
— Eu sei… — grunhi, arrependida de eu mesma não ter pegado aquele telefone. Eu tinha noção que precisava ir, precisava engolir os caquinhos do meu coração e pensar na minha tese, mas não me preparei para ter essa maturidade quando finalmente chegasse a hora. — Eu precisaria ir…
— Sim, você precisa ir. — Belle puxou meu cobertor, me arrancando um palavrão. — Anda, tá na hora. Quando você defender sua tese e conseguir seu passaporte para Harvard, vai estar muito ocupada recebendo ótimos orais de filhinhos da mamãe de Boston para se lembrar de algum dia Min Yoongi ter existido. Vamos, de pé.
Resmunguei enquanto ela puxava meu braço. Tentei fazer força para ficar, mas Belle, uma pessoa de 1,70, com musculação e boa alimentação em dia, conseguiu me vencer em segundos.
— Ai, tá bom, tá bom! Levantei. — soltei meu braço, ajeitando minha camisa que entortou na luta para ficar no sofá. Olhei para ela de cara feia. — Pode pegar minha bolsa ali na mesa, por favor? Só vou pegar os tênis…
— Quê? ! — ela agarrou os meus ombros, chegando perto do meu rosto. — Você tá ciente do seu estado de agora? Do seu cabelo?
Pisquei os olhos.
— E daí? É só uma reunião, depois eu vou voltar pra esse sofá…
— De jeito nenhum. Você vai tomar banho agora. Vou separar uma roupa pra você.
— Não, espera, Belle… — ela estava me arrastando até o banheiro. — Belle, é só uma reunião rápida, e hoje eu espero que seja ainda mais rápida, porque eu não quero…
— Você não sabe a regra da fossa? Nunca deixe o seu ex te ver na fossa. Ou o cara que quebrou seu coração, que seja. — fui jogada para dentro do banheiro, e Belle tacou uma toalha branca e fofinha no meu rosto. — Agora entra nesse chuveiro, lava o cabelo e, se conseguir achar forças, raspa essa perna. Hoje você vai passar 30 minutos fazendo Min Yoongi pelo menos questionar se estava com as faculdades mentais em dia quando te dispensou. E eu te garanto que ele vai fazer isso.
Encarei a tão temida plaquinha Professor-titular Augustus D. pregada naquela porta de madeira por mais tempo que o necessário. Não conseguia evitar dos meus pés baterem no chão, das minhas mãos suarem e da enorme bola de pêlo travada na minha garganta de ficar girando em volta de si mesma, me fazendo pensar se seria capaz de dizer alguma palavra hoje.
Eu daria tudo para adiar esse momento. De repente, a minha tese, a pesquisa da minha vida, minha enorme vontade de ajudar o mundo se tornaram elementos que facilmente poderiam ser deixados para depois.
Mas agora eu já estava ali, com aquele vestido bege de verão, sandálias abertas e até usando perfume que Belle achou ser uma excelente solução para elevar minha auto estima. Se eu tivesse que ir ao laboratório, jamais poderia me vestir assim, então ela teve uma mentalidade estrategista, minimamente maquiavélica.
Estava na hora. Puxei o ar com toda força, inflando os pulmões com brutalidade, e soltei tudo devagar, até ter coragem de fechar o punho e bater na porta.
A voz lá de dentro soou quase imediatamente:
— Entra.
Nem é preciso dizer o quanto uma simples palavra fez um carnaval na minha espinha.
Empurrei a porta devagar até abri-la pela metade, e Yoongi levantou o queixo para verificar quem entrava, logo depois voltando a descer os olhos para o papel que estava lendo.
Até que seu cérebro pareceu acordar de vez e ele baixar a folha para me olhar por inteiro.
Por um momento, acreditei 100% na teoria de Belle. E graças a Deus por eu ter arrancado forças das profundezas da minha bad para raspar as pernas, porque aquele homem atrás daquela mesa estava com a maior cara de bobo que já vi na vida.
— . — disse ele, achando a voz enquanto me vasculhava de uma forma muito parecida com a que fez no pub, mas dessa vez, conseguiu voltar ao normal mais rápido. — Hum… Oi.
Pelo menos não tínhamos voltado à era Senhora. A natureza realmente te deu colhões, Min Yoongi.
— Doutor D. — cumprimentei com a cabeça, usando a dica de Belle: a formalidade é a forma mais elegante de demonstrar indiferença. — Como vai?
Yoongi me olhou daquele jeito fixo que não me deixava adivinhar o que estava pensando, um olhar carregado que quase me fazia parar de respirar, até que engoliu em seco duas vezes e limpou a garganta.
— Eu vou bem… Bem. — respondeu distraído, olhando para a sua mesa e passando a folha que lia para debaixo de uma pasta em uma velocidade impressionante. — E… você?
Forcei um sorrisinho simpático a sair enquanto mordia o lado interno das bochechas e me sentava na cadeira de couro à sua frente, cruzando as pernas. E vi ele olhar para elas no exato momento em que fiz isso.
— Eu vou bem também. — dei de ombros, sem pensar muito sobre essa resposta. Porque bem não era nem perto da verdade. — Vamos começar? Trouxe os relatórios com os resultados da semana passada. — passei a folha perfeitamente organizada pela mesa em sua direção, mantendo o rosto impassível. O título escrito “Amostras G4” saltou para mim, e lembrei que só faltavam mais duas para que tudo aquilo acabasse. Poderia adiantar e colher os resultados das duas juntas e matar dois coelhos com uma cajadada só, mas pensaria nisso depois.
Yoongi olhou para mim por cima da mesa por um segundo até se concentrar no relatório, e vestir sua melhor voz de professor para dizer:
— Sobre o procedimento de cromatografia, eu acho que você deve aumentar a temperatura da autoclave antes de colocar a próxima amostra…
Deixei com que ele falasse, fazendo as anotações de sempre na minha cópia e ignorando suas mãos se mexendo sobre o tampo (elas eram mesmo lindas, Belle estava certa), retornando aos meus gloriosos dias em que tudo era mais fácil, quando Augustus D. era somente um nome impresso em um artigo com quem eu queria muito aprender, e não beijá-lo loucamente como uma maníaca.
Para me dar um pouco de crédito, acho que eu estava me saindo bem nessa encenação, ou Belle estava se mostrando ainda mais certa de sua teoria, já que ele também se mostrou afetado: esqueceu o nome do procedimento duas vezes, trocou os valores mais umas três e demorou a responder minhas perguntas por um décimo de segundo a mais do que o normal porque, se ousasse levantar a cabeça para me encarar, seus olhos iam automaticamente para minha boca, cravando a atenção ali como se eu fosse um quadro de linhas espirais e o estivesse hipnotizando.
Pois bem, Min Yoongi. Foda-se o seu fora, eu espero de verdade que meu beijo te atormente por muito, muito tempo.
Quando tudo acabou, comecei a juntar as minhas coisas de novo, olhando exclusivamente para o colo.
— Sobre as duas últimas amostras, a espectroscopia no infravermelho pode levar até 36 horas, então talvez a gente possa…
— Vou adiantar as duas últimas pra semana que vem. — respondi direta. Yoongi parou com a boca entreaberta, o dedo ficando frouxo na caneta.
— Ahn… mas ainda faltam algumas semanas pra apresentação…
— É, mas são duas amostras com medidas bem parecidas e eu já aprendi as técnicas. Posso fazer no laboratório e só te mostrar depois.
Enfiei minha pilha de anotações na pasta. O rosto de Yoongi permaneceu duro e impassível, e ele ainda não largou a caneta ou se mexeu. Mais um vinco se formou na testa, um que parecia com… o que era aquilo? Decepção?
Bom, como meu analista, ele deveria estar orgulhoso por não precisar estar do meu lado em cada etapa como antes. Significava que eu tinha aprendido, tinha dado mais um passo na seleção de Harvard.
— Tudo bem… — ouvi sua voz soar quase como um sussurro, e não respondi, puxando os outros gráficos e modelos computacionais que criei por conta própria (e por isso precisaria corrigi-los), e o silêncio que ficou depois deve ter me deixado agitada porque acabei puxando uma pasta aleatória que já estava em cima da mesa e vi aquele papel.
Uma folha de papel estirada embaixo de tudo, com a logo de Harvard no topo e linhas e mais linhas de texto, com uma assinatura elegante e formal no final.
Yoongi puxou a folha da minha vista antes que eu identificasse qualquer palavra nela. Ele a escondeu dentro de uma gaveta, e percebi que era a mesma que estava lendo quando entrei.
— Desculpa, não queria bisbilhotar. — falei baixo, agora juntando meus materiais com mais calma. Ele se empertigou, um pouco agitado.
— Não, não. Isso é só… é um convite. Me convidaram pra um evento em Boston. Coisa de velhos amigos, só isso. — a resposta saiu rápida demais para o padrão Yoongi, mas eu já estava puxando o zíper da bolsa e ficando louca demais para sair daquela sala para me importar com isso.
— Tudo bem, eu já vou indo. Com licença. — fiquei de pé, me abstendo de dizer mais do que isso e começando a caminhar para a porta.
— , espera… — a voz dele veio naquele tom quase de súplica, um tom que me lembrou muito da sua voz no meu ouvido na pista do palco do Porco Morto, então talvez por isso eu tenha me assegurado de respirar bem fundo antes de me virar.
— Sim? — Yoongi estava de pé, ainda segurando aquela caneta, como se fosse um apoio físico para não ficar trocando a posição das pernas o tempo todo.
E aquele olhar carregado estava de volta, sugando coisas de mim, me obrigando a lutar para permanecer minimamente normal. Era difícil para cacete.
— Eu queria… Quero, na verdade, te pedir desculpas. Por… tudo isso, eu acho. Eu não queria que as coisas acabassem assim, e não queria que nada ficasse estranho entre a gente. Sinto muito por isso.
Pelas regras de Belle, eu deveria me fazer de desentendida. “Oi? Desculpas pelo quê? Que coisas? Do que você está falando?”, mas acredito que não consegui disfarçar o impacto daquela lembrança na minha cara naquela hora, então essa primeira estratégia estava fora de cogitação.
Era difícil não deixar sair para fora quando você se sentia alguém que queria loucamente encostar num poste e pedir para um carro passar por cima de você por dentro.
Mas consegui fazer uma das coisas que Belle faria: dei uma risadinha. Uma até bem convincente.
— Ah, isso. Não precisa se preocupar. Eu sempre supero uma paixãozinha, não tem nada demais nisso. — balancei a mão no ar, mostrando como tudo era irrelevante. Yoongi não sorriu de volta, mas vi as linhas de sua expressão se tornando mais duras. — Tá tudo bem, doutor D. Estamos bem.
A bola de pêlo na minha garganta se transformou em uma bomba de canhão. Eu teria um choque anafilático se não saísse daquela sala nos próximos 10 segundos.
— É… Que bom. — ele assentiu com a cabeça várias vezes seguidas, confirmando o fato para si mesmo. — Que bom.
— Que bom. — repeti, a mão na maçaneta. — Até mais.
Deixei a sala, fechando a porta com um pouco mais de força involuntária antes que ele visse a primeira lágrima patética já rolando pela minha bochecha.
— 0856, vermelho.
Prendi a etiqueta e o joguei para o outro lado, na cesta de crochê com outros tantos pênis vermelhos.
Ouvi Belle bufando de novo na minha frente, largando a prancheta que segurava.
— Olha pra mim. — disse, puxando uma embalagem com um porquinho rosa de 8 centímetros de comprimento. — Esse garotinho aqui é um velho conhecedor das batalhas de ruas, muito apreciado por senhoras viúvas e mal casadas, e mulheres fortes e independentes que já aceitaram que ninguém é bom o suficiente. Podem pensar isso de todos, menos dele. Talvez você queira conhecê-lo.
Ela jogou o pacote no meu colo com uma piscadinha. Vi o nome em cima: Pig Licking. Um estimulador de clitóris recarregável com uma linguinha de silicone super macia com até seis movimentos diferentes, simulando um poderoso sexo oral que te prometia levar até o céu em menos de cinco minutos.
— Eu acho que teria vergonha de mim mesma se admitisse que tive um orgasmo tão rápido por causa de uma máquina. — joguei aquela coisa de volta para ela. Belle pegou antes que caísse.
— Se você acha que um homem de carne e osso é capaz de fazer isso, vou dizer pra você notar direito a nuca dele. É ali que geralmente fica a parte das engrenagens dos robôs.
Ri, e durou pouco. Continuei a etiquetagem, separando agora um pênis verde de 20 centímetros no mar colorido de pirocas que estava tomando o nosso tapete.
A tarefa era mecânica e, por isso, maravilhosa para não me deixar pensar. Primeiro porque eu odiava, e segundo porque, mais do que nunca, estava com pensamentos que me afundariam numa vala de bad que jamais passei.
Já fazia três dias desde a minha reunião com Yoongi, e eu tinha conseguido, finalmente, passar da fase do sofá, agora a fase do chororô e do sorvete estava mais difícil superar.
Pelo menos, tinha voltado a ir ao laboratório, trabalhando sem parar com certa pressa para juntar as amostras e tremendo na base toda vez que via um lampejo de preto entrando pela porta, planejando muito fingir um colapso nervoso para precisar deixar a sala e voltar só quando ele saísse.
Mas Yoongi não andava indo até lá. Também não me disse porquê e nem eu perguntei. Não falava com ele há dias. Talvez ele tenha entendido o recado no “vou adiantar o trabalho logo para não precisar mais te ver”.
Uma mão com unhas pintadas de vermelho se estendeu na minha frente, estalando dedos para chamar minha atenção.
— Ei! É sério. — Belle baixou os ombros, suspirando com cansaço. — Assim não dá. Você está estragando esse momento divertido com a sua cara deprimida.
— Momento divertido? Atualizar o seu estoque?
— O meu estoque de vibradores de qualidade, ! Era pra ser um programa legal de amigas. Devíamos estar rindo dessas cores horríveis que me arrependo de ter pedido, porque como alguém vai esconder um pinto verde fluorescente? E também esses plugs tão pequenos que algum dia vão ser sugados pelo buraco errado ou vão ser perdidos pela janela do carro, ou contar as nossas próprias experiências com os prendedores de mamilo. Era pra ser um momento engraçado, que não combina com a sua cara de enterro.
— Mas… — abri e fechei a boca, pensando rápido em alguma história cômica e sexual o bastante para animar Belle. Nada veio. — Eu não… Desculpa, eu achei que fosse óbvio que as pessoas escondiam os vibradores em caixas embaixo do assoalho…
— Argh! Chega. — Belle puxou o celular debaixo do pé, começando a digitar com rapidez. — Você precisa sair. Precisa voltar pro mercado, colocar de novo aquela calça apertada e andar com camisinha na bolsa, só assim você vai esquecer o Yoongi e voltar a colocar a porra de um sorriso no rosto.
— Mas eu estou saindo! — me defendi.
— Eu digo sair de verdade, . Sair pro abate, passar uma noite no Mango’s, conhecer um cara gato e ter a bunda exposta no banco do carro dele, quicar em cima de um pau de verdade e bater a cabeça no teto, essas coisas. Você tem que se animar! Vou te arrumar um encontro.
Belle voltou a digitar. Fiquei sem reação por quase um minuto inteiro. Infelizmente, levar um pé na bunda transformava o nosso cérebro em gelatina.
Mas, quando a informação finalmente me alcançou, arfei e puxei o celular dela.
— Não, Belle. Eu não quero sair com um completo estranho.
Ela puxou o celular de volta.
— Talvez é exatamente disso que você está precisando. Um cara lindo que você nunca viu, que seja disparadamente mais alto que o Yoongi e que possa te dar uma noite quente sem ligar pra um 2º round. É isso que mães solteiras fazem, você pode fazer o mesmo.
— Eu não… — tentei, mas ela já estava digitando de novo, fazendo contatos para conseguir outros contatos. — Belle, eu não tô com cabeça pra isso. Qualquer homem vai me achar um porre agora.
— Se fizerem a coisa toda da conversa inicial em menos de 40 minutos, eu garanto que ninguém vai te achar um porre. 1,96 tá bom pra você?
— Belle!
— Verdade, você é muito pequena, é tipo uma berinjela tentando entrar pelo buraquinho da agulha.
Grunhi de novo, pegando o próximo pênis, que ironicamente tinha um tamanho muito próximo ao que o gorila de 1,96 teria, se ele fosse inteiramente proporcional.
Larguei aquele para o lado e peguei outro. Belle continuava resmungando sobre “hum, esse tem uma barba bonita. Ah, olá ombros fortes. Só 20 anos? Eu mal alcançaria o tórax dele. Posso pegar esse pra mim?”
Quando ela soltou um: “esse daqui também é geólogo, acabou de se formar na universidade da Pensilvânia, tem a sua idade, mora a menos de 80km…”, meu instinto de negação reapareceu.
— Não vai rolar. — cortei, prendendo uma etiqueta em um agora de cor roxo púrpura. — Belle, sei que você quer me ajudar e tá preocupada que eu possa, sei lá, ter um colapso e disparar de novo pro sofá, mas eu estou bem. Vi você superar todas as fossas do mundo e tenho certeza que também vou conseguir. E agora preciso me concentrar na minha pesquisa mais do que nunca, a apresentação tá chegando.
Ela semicerrou os olhos.
— Você nunca vai fazer uma boa apresentação com essa cara, . Harvard odeia gente triste.
— Eu tô falando da defesa da minha tese.
— Que seja, vai mesmo conseguir demonstrar toda a sua paixão pelas suas descobertas que vão mudar o mundo se ficar pensando o tempo todo que você não se sente realizada? Preciso te lembrar que você precisa ser excelente pra conseguir ir pra sua bolsa de pós e pro seu novo banheiro sem falha de rejunte? Não dá pra fingir uma coisa dessas. Ou você sente ou você não sente.
Belle suspirou ao mesmo tempo que eu, como se as palavras pesassem nela e em mim simultaneamente, mas, se ela achava que eu fosse ficar menos deprimida, errou feio. Na verdade, senti uma pressão nos ombros que significava que eu estava muito fodida, mas muito fodida mesmo, e que precisava resolver isso o quanto antes.
Etiquetar os pênis de borracha de repente tinha perdido toda a graça, e então, pareceu uma ótima ideia levantar, inventar uma dor de cabeça e ir me enfiar embaixo da coberta até o dia seguinte, mesmo que ainda fosse 13:00. Estava mesmo prestes a fazer isso quando o “trim-trim” do toque de mensagens de Belle apitou e, seja lá o que tivesse lido ali, a fez esboçar todas as expressões possíveis: confusão, receio, indignação e, por fim, um sorriso de pura malícia.
— Parece que você tem um encontro hoje à noite, gata. — disse ela, e eu não tinha mais forças para fazer cara feia. — E algo me diz que você pode gostar muito.
— Você disse isso daquele cara que usava sandálias de Jesus também.
— Ei, eu não sabia desse detalhe. As pessoas não sabem mais preencher bios de aplicativos! — exclamou ela, levantando as duas mãos em rendição. — Mas esse carinha quer sair com você hoje, e vai estar lá às 20:00 no Mango’s.
— No Mango’s? É o pior lugar pra um encontro.
— É um lugar genial pra você. Não é desconhecido, é perto de casa, então você pode sair a hora que quiser caso esteja ruim, tem o Lucas que pode puxar o cabelo dele caso ele diga que gosta do Ezra Miller, ou que faça piadas pornográficas e você já tenha decidido que não vai transar com ele, e tem o Eddie que… bom, é o Eddie, ele fica fazendo palhaçada pelas costas do seu date ruim e te ajuda a rir pra disfarçar.
— É, realmente parece o lugar perfeito.
— É claro que é. E mais uma vez: você pode se surpreender. — Belle deu uma piscadinha e, dramaticamente, apertou o Enter no telefone, fazendo um sinal da vitória e largando-o de lado para puxar uma caixa de papelão fechada. — Agora, que tal você me ajudar a embalar um pedido de 120 calcinhas comestíveis pro meu cliente das 2 horas?
— 120? O que ele vai fazer? Alimentar moradores de rua?
— É um fetiche. Ele só aceita se consultar se eu estiver usando uma dessas, mesmo que ele não possa confirmar porque ainda não trabalho com envio de fotos no serviço. Daí, ele disse que quer usar também. — Belle pegou um estilete para abrir a caixa. E de repente comecei a rir. A rir muito. — O quê? É verdade, ele disse que é muito confortável pra ir à academia.
— Aham, imagino que seja. Qual posição vocês mais gostam de fazer? — puxei uma parte da caixa, pegando cinco pacotes de calcinha de uma vez.
— Papai e mamãe. Ele curte essa coisa de estar no controle, então sobe em cima de mim e me faz delirar, e demora uma eternidade pra gozar. Teve uma vez que eu coloquei um áudio pronto do YouTube de uma mulher terminando uma maratona de corrida em loop, e eu te juro que tive que voltar o vídeo duas vezes, e ele tinha uns 10 minutos. Até eu ouvir o rosnado dele de “Porraaa! É isso aí, cara!”, fiquei me perguntando se ele estava mesmo pensando em mim…
Gargalhei mais alto, e a sensação de rir daquele jeito depois de tantos dias me fez pedir coisas que eu nunca, jamais pediria:
Deixei Belle me contar mais histórias do seu segundo emprego da madrugada.
E ri em todas elas até a barriga doer.
Às 8 em ponto, entrei no Mango’s, olhando para todos os lados devagar em busca de um possível falsário amador, assassino em série ou, quem sabe, do maior dançarino de trance conhecido da Filadélfia.
Foram várias as apostas que tentei fazer com Belle sobre a identidade do meu encontro às cegas, mas ela não me respondeu nada. Disse que seria melhor se eu me surpreendesse.
Eu não estava com a menor vontade de ser surpreendida em nenhuma instância da vida, mas bem, estava aqui. Se tudo fosse ruim, pelo menos sabia que a cerveja do Eddie salvaria a noite.
Cumprimentei duas ou três cabeças à medida que caminhava pelo corredor engordurado e com cheiro de óleo do hall, abraçando meus próprios braços sem perceber, olhando para todos os blocos de tijolos sujos e velhos que via praticamente todos os dias da semana. O infame Mango’s sempre teve uma beleza pueril para mim, o tipo de coisa que tem mais significado emocional do que qualquer coisa que possa ter significado, e era isso que eu gostava. As pessoas eram quase sempre as mesmas, o que tornava o episódio do encontro com algum desconhecido bem fácil, porque eu certamente saberia se visse um rostinho novo no pedaço.
Entrei no salão, dando um tchauzinho para Eddie, para o seu sobrinho, que hoje usava uma camisa social muito maior do que ele, branca como a lua, com o colarinho levantado, e calças ao invés de bermudas, e avistei Lucas sentado em uma das vigas desfrutando de pedaços cortados de maçã. Olhei para além da grade frontal da biblioteca, para uma das poucas mesas redondas e o vi: Wonwoo.
Ele já estava olhando para mim, sozinho, sem os óculos e sem a jaqueta do time quase inseparável. Senti um mísero desconforto descendo pela minha nuca quando me lembrei de nossa última conversa, de suas palavras vorazes e o quanto eu queria socar a sua boca.
Mas, bem, já fazia um tempo disso. E ele ainda era o meu melhor amigo.
E, dando mais uma olhada em volta, não vi mais nenhum carinha desconhecido que pudesse ser meu par da noite, o que significava que ainda não tinha chegado. Eu tinha um tempinho.
Andei até ele, dando um aceno padrão para Eddie me trazer o de sempre.
— Oi. — cumprimentei, me sentando do outro lado. Wonwoo se empertigou na cadeira, apertando a alça da caneca de chopp com um pouco de força.
— Oi. — disse em uma voz rouca, umedecendo os lábios.
— O que tá fazendo aqui sozinho? Não tem nenhuma festinha particular rolando em alguma mansão dos seus caras?
— Não, eles devem estar treinando. Ou jogando Monopoly. Vai saber. — ele tomou um gole da bebida, distraído. Arqueei as sobrancelhas.
— Isso ainda é mais bizarro do que não ter uma festa do Jeff. — dei de ombros, e ele balançou a cabeça. Olhei para sua camiseta: era preta, com os dois lados do peito trazendo a estampa imensa e extravagante de uma faca. O cabelo dele parecia levemente penteado para o lado, o que não chegava perto da bizarrice que era Wonwoo ter simplesmente penteado o cabelo. O jeans escuro e preto caía lindamente nele, junto com os tênis da Adidas que ele só usava quando ia à missa a cada dois meses. Eu não sabia se ele parecia um garotinho arrumado pela mãe ou um cara que tinha sido recém-liberado de uma temporada de um mês inteiro no pátio da polícia. — Fala aí, onde você estava?
— Como assim?
— Isso. — fiz um gesto para apontar ele inteiro. — E… tá usando perfume?
— Não é perfume. — ele retrucou rápido, os lábios dando uma leve tremida. — Quer dizer, é só uma colônia. Daquelas azuis que tem cheiro de praia e essas coisas. Eu só passei um pouco. E você também tá usando perfume.
— Ah, é. Culpa da Belle. Ela quis me arrumar um encontro hoje. — dei de ombros, tentando não deixar que a minha expressão mudasse um centímetro ao me lembrar porquê eu precisava de um encontro. — Agora eu tô aqui esperando… Seja lá quem for.
Abri um sorrisinho irônico. Wonwoo não sorriu de volta, mas tinha um monte de perguntas naqueles olhos de lente de contato, e eu não tava afim de explicar nada. Não mesmo. Mas enquanto eu ficasse nessa mesa, teria que falar alguma coisa.
— Wonwoo, eu queria…
— Quero te pedir desculpas.
Falamos os dois ao mesmo tempo. Abri um sorriso para ele, e dessa vez fui retribuída, já que era sempre engraçado quando aquilo acontecia.
— Me desculpa por aquele dia. — disse ele, recostando-se para trás. — Eu tava num dia ruim. Em uma semana ruim, na verdade. O juiz da assembleia das atléticas deu a notícia sobre o corte de pessoal, o treinador corre risco, todos nós estamos na corda bamba na temporada. E o meu conto não foi aceito de novo pela Tin House. Foi uma semana muito cheia.
— Meu Deus, Wonwoo. Eu não fazia ideia, por que não me contou nada disso?
Ele me encarou por muito tempo antes de responder.
— Eu não queria atrapalhar você.
— Você nunca me atrapalha, sabe disso. Eu já fiquei presa no laboratório por muitas vezes, e isso nunca te impediu de ir lá, abrir uma cestinha de piquenique e me levar sanduíche de presunto quando queria conversar. E eu até te levaria uma caixa de snickers no vestiário se o seu treinador não me olhasse tão feio e os seus amigos não fizessem piadinhas me chamando de pinscher.
— Você sabe que isso não é por causa do seu tamanho.
— Tanto faz, mas se eu ver aquele Barton correndo na rua de novo, vou pular na frente dele, fazer ele gritar de susto e cair igual uma melancia, e dizer “ah desculpa aí, camarada, é coisa de pinscher.”
Ele riu, e roubei sua cerveja para um gole.
— É, já tivemos a revolta dos macacos e das máquinas, podemos ter a das formigas também.
— Já disse que não sirvo pra liderar revoluções. Mas eu posso dar acesso a todas elas, vê-las pegar os caras anormalmente grandes como você e usá-los de transporte público antes de esmagarem todos até virarem tampa de lixeira. E eu faria o Barton ver tudo isso antes da vez dele.
— Achei que odiasse terror psicológico.
— Não com o Barton.
Wonwoo estava rindo alto mais uma vez quando Gomez se aproximou da nossa mesa, trazendo com ele uma garrafa de vinho e duas taças. O garoto olhava para a gente, mas desviei o olhar, sabendo que ele devia estar indo para a mesa de trás ou a do lado (ou de quem quer que tenha pedido vinho em um lugar como o Mango’s).
Mas aí, Gomez colocou a garrafa em cima da nossa mesa, estendendo uma taça na minha frente e outra na frente de Wonwoo, deixando também o abridor de garrafa e saindo sem dizer nada.
— Ah… — abri e fechei a boca, o nome de Gomez na ponta da língua, pronta para chamá-lo. — Eu acho que ele errou a mesa. Ei, Eddie! O Go-
— Senta aí, . — Wonwoo murmurou, e começou a abrir a garrafa. Franzi o cenho.
— Tá maluco? Esse vinho não é nosso. E Deus que me perdoe, mas ele nem parece custar 20 dólares. Parece custar no mínimo 80. — arregalei os olhos com urgência. Tinha alguma coisa de mais de 16 dólares em cima da mesa torta e sebosa do Mango’s. Alguma coisa estava errada! Errada no nível Armageddon!
Wonwoo nem me deu atenção. Simplesmente terminou de abrir a garrafa e serviu o vinho nas duas taças.
— Podemos voltar na parte onde eu te pedia desculpas e dizia que minha semana tinha sido uma merda? — ele levantou a taça do seu lado, esticando-a para mim. — E então? Tô perdoado? Por ter sido um idiota naquele dia?
Eu ainda estava um pouco perturbada pelo vinho, mas engoli em seco e levantei a minha, assenti com a cabeça e brindei com Wonwoo, bebendo um gole grande como eu sabia que não era a forma certa de experimentar um vinho.
— Nossa. Retiro o que eu disse, isso não custa menos de 100 dólares. — abri um sorriso de adrenalina. — Cacete, a gente tá roubando um vinho! No Mango’s! Acho que daqui a pouco, um desses pilotos de racha punks ricos lá da Califórnia vão entrar por ali e se perguntar pra onde foi a bebida que pagaram.
— Então temos que estar longe daqui antes disso.
— É verdade. Anda, serve mais, temos que acabar com as provas.
Nós dois rimos enquanto ele servia mais vinho nas nossas taças, e Wonwoo fez um sinal para Gomez trazer pãezinhos.
Pãezinhos? No Mango’s? Eddie mudou o cardápio da lanchonete de novo e esqueceu de me mandar pelo Facebook?
Antes que eu achasse graça disso e questionasse Wonwoo se ele sabia onde estava, ele apoiou os antebraços na mesa e disse:
— Eu não sabia se ia conseguir te fazer rir hoje, . Sinceramente, devia ter tido menos medo.
— Como assim? — ri pelo nariz.
— É, parece que você tava meio… — ele hesitou, tamborilando alguns dedos no tampo. — Eu não te vi por dias, achei que tinha ficado triste por minha causa.
Fui perdendo o sorriso. Tentei evitar, mas foi mais forte do que eu. Automaticamente, já estava me lembrando de tudo: Porco Morto, tesão avassalador, banho de água fria e sofá. Edredom. Omelete de café da manhã misturada com lágrimas.
Queria muito dizer que tudo aquilo tinha sido apenas eu sendo pega por uma virose violenta, mas não ia conseguir mentir tanto assim para Wonwoo.
— Não foi por sua causa. Foi… — engoli o nome, o rosto, o embrulho no estômago, o nariz queimando, engoli tudo. Wonwoo entendeu de cara. — Não importa. Você estava certo o tempo todo, aquilo não ia funcionar. Devia ter te ouvido.
E provavelmente não seria a primeira vez que eu diria aquilo tanto para ele quanto para mim mesma. “Eu devia ter te ouvido. Porque somos amigos, e eu devia considerar pelo menos as partes não idiotas de todas as idiotices que você fala.”
Wonwoo balançou a cabeça devagar, um vinco se formando no queixo quando puxou o lábio para baixo, sem parecer vitorioso, mas também sem um pingo de modéstia.
— Eu sinto muito, . — disse, mas, por um segundo, parecia não sentir nada disso. — Vocês ainda estão trabalhando juntos? — assenti. — E você… você ainda gosta dele?
Mordi o lábio inferior e precisei tomar mais um longo gole de vinho para dar essa resposta.
— Acho que gostar nem chega perto do que eu sinto por ele.
Senti mais necessidade de vinho. Wonwoo moveu o queixo em uma expressão dura, como se estivesse engolindo um ouriço vivo.
— Mas isso não importa, ele não sente o mesmo por mim, então acabou. Ele estava com os pés na margem enquanto eu fui a idiota a querer a água até o queixo. E você sabe que eu odeio nadar. — tentei rir, mas o som não foi promissor. Preferi mais álcool e imaginei a próxima coisa que Wonwoo diria: “Um brinde à sua caída na real, um brinde à racionalidade de volta, um brinde à de volta ao mercado.”
Mas ele permaneceu parado do outro lado, o olhar escaneando meu rosto, os dedos distraídos no apoio fino da taça, como se estivesse pensando em um discurso inteiro antes de falar.
— É, acabou… — ele disse cada palavra devagar, sem tirar os olhos de mim. — Então, acho que tá na hora de você achar alguém que esteja disposto a sair da margem por você. Alguém pra mergulhar por você, sem deixar nenhuma parte de fora.
Wonwoo nem piscou. De repente, todos os músculos de seus ombros, tão aparentes, ficaram rígidos. O rosto perfeitamente simétrico estava endurecido. Apertei os olhos para ele.
— Hmm… o que se diz pela cidade e alguns livros de ciências é que ficar embaixo d’água por muito tempo, se você não for de qualquer espécie com brânquias ou super resistente à hipóxia, significa morte na certa. Então essa sua analogia…
— . — ele interrompeu, com um suspiro cansado. — Por favor, entende o que eu tô falando. Uma vez na vida, sem fazer piada. Olha pra mim, .
E eu pensei mesmo em fazer piada, algo do tipo: “impossível não ver alguém do seu tamanho, bobão”, mas a cara que ele estava fazendo me impediu. Me impediu até mesmo de continuar sorrindo, porque alguma coisa muito séria parecia estar acontecendo naquele exato instante.
Wonwoo inclinou o peito para o meio da mesa, a cabeça se aproximando da minha.
— Aquela minha semana ruim… ela foi ruim por outro motivo também, além de tudo que eu disse. Ela foi ruim porque não te vi nenhum dia, não ouvi a sua voz, mal recebi suas mensagens e toda vez que ia ao laboratório, me lembrava que você não estava mais lá, que agora você não entrava mais pelas mesmas ruas ou pelos mesmos prédios, que agora era sempre ele, as coisas dele e com ele. Foi uma merda, . Principalmente porque ele não parecia um cara qualquer que você se interessava e depois enjoava, como sempre foi. E eu nunca, jamais, me arrependi de nada na vida que tenha sido pra você, mas quis me dar um soco toda vez que me lembrava que você só estava assim por minha causa. Porque eu te dei aquele ingresso, porque eu te levei pra falar com ele. — ele soltou uma respiração pesada, barulhenta, tirando o peso de um trem de carga das costas. Continuei parada, quase sem respirar. — Então, se as coisas dessem certo entre vocês, eu ia me martirizar pro resto da vida. Mas sinceramente, não posso dizer que tô triste por ter dado errado. Nem todas as coisas idiotas que falei naquele dia foram mentira: eu queria que dessem errado. Justamente porque eu ia te perder pra sempre, e eu… eu… — Wonwoo olhou para baixo e segurou na minha mão pendida por cima da mesa. Ele a apertou com força. — Eu nunca pensei em te contar isso, na verdade, queria esperar até a sua defesa passar, esperar que você tivesse menos preocupações ou coisas pra estudar, ou até esperar que você percebesse sozinha. Eu deixei tantos sinais, . Cacete, às vezes eu me achava um idiota, mas todos aqueles contos, e todas as minhas cestas, eu…
Parece muito ridículo o que eu vou falar agora, mas: eu ainda não estava entendendo nada. Tive mais certeza do que nunca de que a teoria do cérebro de tartaruga era real; levar um pé na bunda te deixava mais burra que uma porta! Porque mesmo com Wonwoo ali, com as mãos suadas em cima da minha, e os olhos com um brilho clemente que nunca vi enquanto chegava mais perto, o meu cérebro não conseguia processar mais do que via.
— Wonwoo, eu não…
— Os contos eram sobre você. Todos eles. A minha personagem Daniella, aquela garota que é filha do chefe de polícia da cidade que você sempre disse que era maravilhosa e que você gostaria de ser ela… , você já é ela. Toda a coragem, determinação, beleza… Foi tudo baseado em você. Em como eu vejo você.
Engoli em seco. Wonwoo era um escritor nato, com uma enorme capacidade de contar histórias que te faziam pedir por mais, e era por isso que era um dos melhores alunos do programa de doutorado em Literatura, andando por aí com exemplares muito velhos de Leo Tolstoy e um rastro de mulheres que o achavam sensível e romântico, mesmo que fosse um atleta e xingasse como um caminhoneiro em todos os jogos. Eu acreditava mais no lado caminhoneiro do que no outro.
Até o dia que li o conto de Daniella, que ele escreveu 7 meses depois de me conhecer, quando ele errou o caminho para o departamento, e eu, por uma necessidade absurda de zoar de um cara com óculos do Harry Potter, disse que ele estava no certo e que, a partir de hoje, estudantes de Literatura teriam que, obrigatoriamente, saber fazer uma titulação de bases. Ele ficou lá por 3 horas até descobrir a verdade e ficar uma fera, mas depois viramos amigos.
No conto de Daniella, a cidadezinha fictícia inteira estava celebrando a liberação da verba da prefeitura para fazer uma estátua do antigo fundador da comunidade. O artesão responsável por moldar a estátua seria o forasteiro Rick, e quando ele vê Daniella no centro da praça, com seu vestido amarelo e seus cabelos roxos, se apaixona à primeira vista. Mas não foi apenas isso. Foram parágrafos e mais parágrafos, três camadas de texto em que Rick nota e descreve cada pedaço de Daniella, como se o seu trabalho fosse, na verdade, sentar e olhar para ela o dia inteiro.
E isso…
Significava…
— Wonwoo. — de repente, me senti extremamente sufocada.
— No primeiro campeonato que a gente ganhou, quando eu fiz a cesta da vitória, foi o dia que você tinha saído cedo do laboratório e sentado na primeira fileira. Quando eu olhei, você tinha feito maquiagem com as cores do time e ficado em pé na cadeira da arquibancada. Todo mundo atrás tava te xingando, mas você nem ligava, estava lá torcendo e gritando meu nome. Isso foi foda demais, , foi muito foda pra mim, por isso fiz aquele sinal no final…
— Wonwoo…
— … Esse que parece com a inicial do seu nome. Eu fiz esse sinal todas as vezes depois disso, e eu faço até hoje, e muita gente já percebeu, já me perguntaram, e eu tenho vontade de falar a verdade, mas antes eu precisava dizer a verdade pra você…
— Para… — soltei minha mão, um pouco trêmula. Agora os olhos dele pareciam tão grandes e tão perto, como se fossem um par de farois.
— Eu gosto de você, . Eu sempre gostei de você, e te ter tão perto durante todos esses anos foi uma tortura ao mesmo tempo que uma dádiva, porque você sempre me tratou como amigo, e nunca entendia as indiretas que eu dizia, e vivia saindo com uns idiotas que nunca foram bons pra você, igual aquele cara que andava por aí com um detector de radares…
— Wonwoo, por favor…
— E o outro que queria passar antilaser na sua janela. Todos eles eram uns babacas, todos eles não te mereciam. Mas eu posso te fazer feliz, , eu tenho plena certeza e consciência de que sou o cara certo pra você. A gente se dá bem junto, a gente se diverte, gostamos das mesmas coisas, nos apoiamos em tu-
— WONWOO!
Tenho certeza de que todo o Mango’s olhou para mim; até Lucas deve ter largado sua maçã e pulado de susto.
A respiração que saía de mim era rápida e assustada, alguém que tinha acabado de fugir de dois caras numa moto. Os olhos de Wonwoo ainda estavam perto, ainda arregalados, olhos que não eram familiares, olhos que me eram estranhos.
Tudo aquilo era estranho. Como se tivessem me colocado numa cadeira de choque e dito: surpresa! Você não é uma mulher! Sua vida foi uma mentira!
— Por favor… Por favor, para de falar. Eu não posso fazer isso agora… — automaticamente, virei a cabeça para a entrada, me tocando depois de muito tempo que ainda estava naquela mesa com alguém que encontrei por acaso e que, aparentemente, meu encontro às cegas tinha me dado um bolo (ou estava hediondamente atrasado). — Você não pode. Não hoje, não aqui, não quando eu estou esperando…
Foi aí que aquela lâmpada acendeu na minha cabeça e eu entendi. Tudo se tornou claro como o dia. Aquela camiseta, os tênis, o cabelo de playboy, as roupas de Gomez, a comida e o vinho, a porra do vinho!
Deviam espalhar pela cidade que levar um pé na bunda não te deixava lenta, te deixava vazia. Com nenhuma célula inteligente funcionando.
— Isso tudo… Você… — arfei, a cabeça entrando em parafuso. — A Belle! O que você falou com a Belle?
— Nada. — Wonwoo falou rápido demais.
— Mentiroso. O que vocês dois conversaram? Que merda toda é essa? — levantei os braços, balançando-os para todos os cantos, desconfiada até mesmo dos outros clientes do bar. Seriam eles atores também? — Responde, Wonwoo!
Ele expirou forte.
— Eu disse a verdade, . Ela me mandou uma mensagem dizendo que você precisava de um encontro porque tava na fossa por causa daquele imbecil e eu falei que tinha um cara aqui que tava disposto a te fazer esquecer o professor e acordar pra vida.
— E esse cara é você? Pelo amor de Deus. — ri com perplexidade, com uma raiva nascendo no fundo do meu âmago. Puta merda, eu odiava ser enganada.
— E por que não seria eu, ? Eu te conheço há cinco anos! Eu tava lá em todas as merdas que você passou, eu te vi nos piores momentos, eu te ajudei estando sempre do seu lado, te dei força quando mais precisou, sempre pensei no seu bem-estar, sempre te coloquei acima…
— E quem disse que eu quero isso, Wonwoo? — minha voz saiu alta mais uma vez, agora praticamente histérica, em resposta a toda aquela queimação dentro de mim. Wonwoo parou com a boca entreaberta, e eu mal conseguia respirar decentemente. — Isso é uma loucura, porra! Tudo isso é maluquice. Quando foi que você pensou que eu queria um cara pra saltar na frente de um trem por mim? Um cara que esquece da própria vida pra fazer minha vontades, que eu nem sei quais são, caramba. Tudo isso que você tá me cornando é demais, eu não consigo processar agora, não consigo nem pensar nisso, e também… não posso dizer o que você quer ouvir. — respirei, e parecia ter uma chaleira no meu nariz, indicando aquilo que eu não faria ali, no meio do Mango’s, nem sob tortura. — Preciso ir.
Puxei a bolsa da cadeira, me colocando de pé depressa, pensando em quantas formas, trejeitos e línguas eu xingaria Belle quando chegasse em casa.
— , não! Calma aí. — Wonwoo me impediu, segurando meu pulso enquanto se levantava também. — Sei que você tá confusa, sei que é muita informação, mas é a verdade, é a maior verdade que eu já te disse. E aquele cara nunca te daria isso, , ele nunca te colocaria em primeiro lugar, você sempre vai ser a que veio depois, enquanto pra mim você é…
— Meu Deus, cala a boca. Não vamos falar disso agora, e não quero ouvir você julgando ele desse jeito de novo.
— Você ainda tá defendendo ele? O cara te deu um fora, ! Porra, se toca. Vocês dois nunca dariam certo, mesmo se ele quisesse muito te comer, não adiantaria nada, porque ele já tá indo embora daqui, e nunca perderia tempo com você. Por que não tá odiando ele agora, cacete?
Parecia que Lucas tinha pulado e fechado todas as janelas existentes do Mango’s, junto com todas as passagens de gás oxigênio, ou meu pulmão tinha sido colocado dentro de um saco de papelão e estava gritando por socorro.
Não consegui mais sentir as mãos duras de Wonwoo em volta do meu pulso. Um zumbido irritante estava acontecendo no meu ouvido.
— O que foi que você disse? — foi a frase mais baixa que consegui pronunciar desde que Wonwoo abriu a boca para se declarar para mim.
Ele inspirou, revelando narinas dilatadas e mandíbula travada quando deu uma risada seca, sem humor nenhum.
— Ah, é claro que você não tá sabendo. Ele liga tão pouco pra você que nem se deu ao trabalho de te contar. — seus olhos se espremeram, e ele largou meu pulso. — Tem uns grandões de Boston e de Londres brigando pelo seu analista. Harvard versus Oxford. Duas das maiores do mundo entulhando a reitoria e todo o departamento de Geociências com propostas de triplo de salário, moradia, carro do ano, escolinha pro filho dele e quantas bolsas de pesquisa ele quiser pra criarem seja lá qual projeto tecnológico que ele anda estudando agora. Ele pode ter todo o prazo que quiser, com a tranquilidade que todo mundo aqui mataria pra ter. O treinador disse que ficou sabendo pelo próprio coordenador do departamento, porque ele já estava procurando substitutos para o cargo dele bem ali, do banco do motorista. O cara vai se mandar, . — ele grunhiu, e sua voz pareceu muito mais alta do que estava. — Ele mesmo disse ao senhor Dunbar que estava pensando em aceitar. E das duas, Oxford é a que está jogando mais pesado. É só uma questão de tempo.
Eu não saberia como descrever o que senti nem se tivesse um chip no cérebro auto pensante. Nunca, jamais, acreditei tanto que eu pudesse ser capaz de desabar no chão, que uma parte do meu mundo estivesse se desintegrando, mesmo que eu nem soubesse o que era esse mundo exatamente. Os olhos de Wonwoo eram ferozes e assustadores, dois elementos que me deram vontade de dar dez passos para trás, para longe dele, como se ele próprio fosse a notícia que estava estalando nos meus ouvidos naquele momento: Yoongi vai para Londres. Yoongi vai para Londres. Yoongi com certeza iria para Londres.
Ele não perderia tempo com você.
Ele liga tão pouco para você que nem se incomodou em te contar.
Chega. Eu preferia, mil vezes, os olhos do meu amigo que ficavam escondidos por trás de óculos bifocais com aro transparente do que aqueles livres de lentes.
— Eu… eu preciso ir… — comecei a me virar.
— , espera, a gente não acabou…
— A gente acabou sim. Repito: a gente acabou. — trinquei os dentes, puxando o braço antes que ele pegasse de novo. — Não quero falar com você. E por favor, não fale comigo também.
Não esperei sua resposta. Virei e praticamente corri até a porta, passando por Gomez segurando uma bandeja com espaguete, levando-a na direção da nossa mesa, o que me embrulhou tanto o estômago que andei mais rápido, esbarrando no cabideiro da saída, o corpo inteiro tremendo assim que saí na calçada da rua.
Mal me lembro de como cheguei em casa. Só sabia que o único lugar seguro que eu poderia estar naquela noite era embaixo do meu cobertor.
Queria muito acreditar que minhas glândulas lacrimais tinham tomado juízo, mas no fundo, sabia que não era isso. Sabia que a falta do meu chororô e toda a humilhação de meleca escorrendo pelo nariz foi principalmente porque eu estava muito brava. E mesmo depois de refletir olhando para o céu escuro da minha janela sobre toda aquela situação bizarra do Mango’s, consegui ficar ainda mais puta. Com tudo. Com Yoongi, Wonwoo, com Belle, com Harvard, minha pesquisa, Londres, a Europa inteira, eu mesma.
Como as coisas podiam descarrilar tão rápido? Como os elos dourados do destino e do universo eram tão frágeis? A Física estava mesmo certa, como sempre: a porra do universo tendia ao caos e a entropia. Coisas boas eram só vislumbres de ilusões antes da vida te pegar pelo pescoço e te asfixiar enquanto reluzia em um largo sorriso.
Era como eu me sentia: asfixiada dentro de um saco plástico, só que agora por muitas e muitas horas consecutivas.
Levantei naquela manhã desejando a soda cáustica vencida do antigo laboratório ao invés de café. A luz do sol me irritou profundamente enquanto jorrava pela sala, batendo nas almofadas que tanto abracei na semana passada. A imagem geralmente me dava um certo tipo de paz de rotina, mas naquela manhã, em que eu tinha dormido por exatas uma hora e meia na noite passada, só me fez ficar com mais raiva por elas estarem, aparentemente, precisando ir conhecer a máquina de lavar. A gente já tinha lavado aquilo alguma vez na vida?
Era mais uma responsabilidade de Belle que não foi cumprida? Tipo levar o lixo esburrando, colocar gelo nas forminhas e repor a porra do iogurte que ela tomava tudo de uma vez?
Bufei, irritada. Se a telecinese realmente existisse, aquela jarra de café na máquina já teria se espatifado inteira sob o meu olhar mordaz.
— Nossa, isso é mesmo sol? — a voz dela invadiu o cômodo, e não me virei. — Cacete, é sol! , está fazendo sol! Finalmente essa porra de primavera chegou! — ela bateu palminhas, indo até a janela.
Engoli qualquer coisa que eu poderia pensar em dizer e continuei olhando para o café, sem fazer ruídos ou movimentos bruscos.
— Ei, aquilo ali é um passarinho! Um passarinho colorido! Sem mais pardais da mesma cor. Meu Deus, a primavera! Que tal a gente ir tomar café da manhã fora?
Ela estava caminhando até a cozinha. Tirei a jarra da máquina antes que ela apitasse.
— Já estou tomando café. — resmunguei, a cabeça baixa. Belle estalou a língua.
— Ah, pára com isso, a gente quase nunca toma café aqui. E de qual pote você pegou esse pó? Tem o da direita que deve estar vencido há 3 meses, mas o da esquerda venceu na semana pass-
— Eu vou ficar com esse café, Belle! — falei alto assim que vi as unhas dela se aproximando do armário em cima da minha cabeça. Belle parou com tudo, arregalando os olhos para mim. Não sei se foi pelo meu grito ou pela minha cara matinal de refugiada.
Talvez fosse mais pela segunda opção.
— Você tá legal? — perguntou, com aquele rosto inocente de olhos fundos.
Fiquei com vontade de jogar aquele café que com certeza estava ruim no vestido florido dela.
— O quê? Querer economizar tomando café da própria casa é estar mal? Querer colocar um blackout nessas janelas é estar mal? Lavar as capas das almofadas de vez em quando é um atestado de loucura agora?
Mexi as mãos muito rápido. Tenho absoluta certeza de que estava parecendo uma paciente perdida do hospital psiquiátrico Bellevue.
Belle me olhou de cima a baixo, encarando minha camiseta enorme de flanela, meus shorts largos quase sumindo por baixo dela e minhas meias listradas multicoloridas que subiam até o meio da panturrilha. Nada combinando com nada.
E aí, exibiu um sorriso preguiçoso.
— O que aconteceu ontem? O cara foi tão ruim assim?
— O quê? — franzi o cenho. Demais. Como se ela estivesse debochando de mim a essa altura do campeonato.
— É, o seu encontro. Que foi, ele tem pau pequeno? Cheirava mal? Dizia coisas idiotas que terminam sempre em “gatinha”?
— Que merda é essa, Belle? Você sabe muito bem com quem eu saí ontem, porra! — bati o recipiente de vidro na pia com uma força perigosa. O sorriso confiante dela deu uma quebrada.
— Como assim? Eu não…
— Wonwoo! A porra do Wonwoo estava lá, de cabelo penteado, sem fedor de basquete e com a merda de um vinho. Um vinho, Belle! No Mango’s.
— Meu Deus. — Belle parou de sorrir definitivamente. Seus braços caíram para o lado do corpo, o choque tomando tudo.
Ah, para.
— Não me diga que você não sabia disso. — espremi os olhos, agora deixando a raiva sair. — Ele disse que falou com você!
— Não, calma, ele falou comigo que conhecia alguém. Que o cara estaria lá. E é o Wonwoo, ! Como eu não confiaria nele? — Belle gesticulou com as mãos, ficando daquela forma agitada que sempre ficava quando a informação bombástica ia chegando aos poucos no seu organismo. — Mas que m… Calma, tá me dizendo que o cara era ele?
— É!
— E ele preparou um jantar?
— É! — quase vomitei.
— O Wonwoo gosta de você?
— É! — rosnei mais alto, metendo as mãos nas têmporas, começando a andar em semi círculos. Minha cabeça começou a doer de novo, aquela pulsão insuportável toda vez que eu me lembrava desse fato e o quanto eu queria que ele nunca tivesse existido.
Não havia nada a respeito de ser o amor secreto de alguém que você não sente o mesmo que não fosse desprezível.
Belle estava estática no mesmo lugar, abrindo e fechando a boca, completamente muda. Mesmo sem estar lá dentro, sabia que seus neurônios estavam dançando a cirandinha agora.
Depois de algumas respirações mais pesadas, me vi finalmente ficando mais calma. Agora, olhando para o rosto dela, e repassando a situação e a falta de comunicação entre as duas partes, cheguei a conclusão que Wonwoo foi esperto, Belle foi ingênua e eu fui a vítima surtada.
— Acho que tô um pouco chocada… — começou ela, umedecendo os lábios. — … por não estar tão chocada.
— Ah, não, Belle. — gemi, bagunçando meu cabelo já caótico. — Não, não me fala…
— Sempre foi meio óbvio, . Qual é, olha o sinal de comemoração dele sempre que faz uma cesta. Tava na cara que era pra você.
Na cara de quem? Eu quis berrar isso. Não tinha nada na minha cara a não ser a maquiagem de torcedora dos Drexel Dragons!
Escondi o rosto entre as mãos. Isso era grave, era uma merda, era um assunto que eu teria que pensar por muito tempo, mas não era por isso que eu tinha cambaleado para fora do Mango’s ontem. Não era por isso que não tinha conseguido pregar o olho e dormir por um tempo decente.
— Não quero falar sobre isso, Belle. Não quero pensar nisso. Ontem foi… aquele cretino do Wonwoo me contou uma coisa…
Não consegui terminar. O pensamento rodou tantas vezes no meu cérebro ontem, que tudo tinha se misturado. A verdade jorrava uma onda gelada pelo meu corpo todo, me inebriando, me deixando com frio.
— O quê? Que ele tem um mural de fotos suas no quarto dele? Que já comprou as alianças do casamento?
— Não! Ele falou sobre… — respirei fundo, e olhei para ela. — Pra onde você vai? Preciso de tempo.
— O quê?
— O seu vestido. São 8 da manhã. Pra onde você vai toda arrumada?
— Ah… — Belle abriu mais um sorriso, ajeitando o cabelo. — Vou ir dar uma olhada no novo estoque de lingeries da minha fornecedora e depois passar no Yoongi. Parece que ele tem uma reunião importante hoje à tarde e vai demorar um pouco. E prometi ao Jihoon que assistiria a corrida com ele.
Meu estômago caiu de novo. Despencou em algum canto, me deixando vazia, vazia, vazia.
— Reunião? Q-que reunião? — nem sei como minha voz saiu. Belle balançou a cabeça.
— Não faço ideia, . Alguma coisa científica? Ele disse que tinha a ver com o departamento. Eu não puxo papo quando não entendo o assunto. — ela arqueou as sobrancelhas, porque aquilo era óbvio. Belle não fazia o tipo diplomata e muito menos o tipo de papo furado. — Mas isso é só mais tarde, e a liquidação da Thalassa ainda vai me ver antes do almoço. Vai, me fala, o que o Wonwoo te disse além de dar uma de Romeu?
No mesmo instante, a campainha soou, fazendo meu coração disparar. Não entendi bem porque ele disparou, sendo que nem me mexi. Belle, por outro lado, me olhou com um vinco na testa, perguntando se era para mim, e eu logo neguei com a cabeça rápido, daí ela também negou, e ficamos um tempo paradas sem saber o que fazer.
A campainha soou de novo, e Belle se mexeu.
— Não é possível. Disseram que os plugs anais só chegariam na semana que vem. Isso só pode ser um monte de tijolo, e não dá pra enfiar tijolos no… Senhor Min!
A boca de Belle parou aberta assim que abriu a porta, dando de cara com Yoongi. E Jihoon.
Yoongi olhou para trás de Belle antes de, convenientemente, olhar para ela. Olhou para mim.
Agora entendia totalmente o motivo do meu coração estar disparando. Pura memória muscular.
— Tia Belle. — Jihoon entrou saltitante na casa, cortando aquele silêncio de segundos entre todas as paredes. Ele agarrou na perna exposta de Belle, e logo me viu ali, no meio da sala. — !
Quando ele correu até mim, esqueci por um segundo que seu pai, o detentor do título de quebrador do meu coração (e que vai ganhar o mesmo prêmio de novo em breve) estava ali e me abaixei para abraçá-lo, de repente sentindo os batimentos darem uma acalmada à medida que notei o tempo que eu não o via.
Eu não podia abraçar Jihoon na escola, ou demonstrar favoritismo, mesmo que ele fosse um garoto maravilhoso e genial. E também era filho de Yoongi, o que, por algum motivo maluco, me fazia querer colocá-lo no meu bolso e protegê-lo de todo mal.
— Como você está, nosso futuro Senna? — sorri, apontando para a sua camiseta vermelha da fórmula 1.
— Bem! Seu cabelo tá engraçado. — ele mexeu no meu cabelo, e de repente passei a mão por ele, tentando diminuir o estrago de fios esparsos.
— Ah, isso… é que não tem muito tempo que a acordou. Longa história. — fiz um sinal irrelevante. A nem tinha dormido. — Mas então, você… vocês, o que vocês estão fazendo aqui tão cedo? — olhei de relance para Yoongi. Ele acabava de falar algo com Belle em voz baixa, quase sem mexer a boca e voltou a me olhar.
— O papai vai me levar no médico perto daqui. E ele disse que a tia Belle iria me levar pra andar de bicicleta no parque antes.
— Ah, é? — sorri, com aquela cara que mais dizia um “como é que é?” Belle não tinha me dito nada. Ela disse que iria ver lingeries!
Olhei para ela automaticamente, usando aquela nossa linguagem telepática: você mentiu pra mim? Por que não disse que ia sair com o Jihoon?
Com aquele tique nervoso das pálpebras dela, ou ela estava dizendo um “porque você não precisava saber” ou “porque eu também não sabia”, estava difícil interpretar.
— Vem, Jihoon. Daqui a pouco temos que ir. — Yoongi chamou, e Jihoon me deu mais um sorriso aberto antes de correr até o pai, como sempre com suas papetes piscando e sua mochilinha.
Yoongi desviou os olhos de mim só para acariciar o cabelo impecável de Jihoon, que sempre me instigava a fazer carinho também.
Eu continuava sem entender nada.
— Tá na hora da gente pegar nossa auto estrada, garoto. — Belle disse, repentinamente animada, batendo uma palma alta que fez Jihoon soltar uma gargalhada. Ela puxou a chave do suporte, olhando para mim e Yoongi. — A gente vai estar ali. Bem ali. Tudo bem?
Tudo… bem?
Tudo…
Ai, porra, entendi tudo. Eu entendi a merda toda! Belle estava me deixando sozinha com Yoongi!
BELLE ESTAVA ME DEIXANDO SOZINHA COM YOONGI!
E ele estava assentindo com a cabeça, concordando com ela!
— Belle… — comecei a falar, o desespero me tomando numa avalanche.
— Vou estar de volta em 30 minutos. 30 minutos. — ela repetiu, olhando mais para Yoongi do que para mim, e agarrou na mãozinha de Jihoon, que começou a falar sem parar sobre motores e rodas e Mercedes, sendo a única peça realmente feliz e inocente daquela sala.
— Belle… — falei entre dentes, mas ela saiu no instante seguinte, batendo à porta e me jogando aos leões.
Fiquei ali, parada, me sentindo cinzenta e tostada pelo sol de repente, sob o olhar quase incandescente de Yoongi do outro lado.
Ele também estava muito parado, olhando para mim como se já estivesse me dizendo alguma coisa, como se, de alguma forma, estivesse aliviado por estar sozinho comigo, e não em pânico como eu.
O silêncio persistiu por um tempo torturante até ele engolir em seco e dizer um simples:
— .
Foi como se eu tivesse ouvido meu nome sair da boca dele pela primeira vez, mas com o adicional de, agora, perceber a forma como ele pronunciava. Parecia uma cortina de flores que ele estendia à frente só para admirar. Meu nome. Yoongi gostava do meu nome. E o pronunciava como se precisasse dizê-lo.
Isso não me ajudou nem um pouco a parecer normal.
— É muito bom ver você. — falou de novo, e dessa vez foi se aproximando, saindo da porta. Yoongi me olhou por inteiro, como se estivesse se segurando para não fazer isso até agora, e de repente quis engasgar e sair correndo porque lembrei do comentário de Jihoon sobre o meu cabelo.
E me lembrei que não estava usando sutiã por baixo do camisão largo.
E me lembrei das meias ridículas listradas tomando toda a minha canela, me fazendo parecer uma atração de circo.
E que tudo isso estava de frente a um cara cheiroso, bem penteado, com jaqueta preta e jeans claros muito bem passados.
Queria que aquele sol invadindo a sala me inflamasse e pulverizasse naquela hora.
— Ah… é, é bom te ver… — falei, tentando parecer menos nervosa, ou minimamente normal. — Você quer uma água? Um suco de caixinha? Café?
Ele deu uma olhada para a cozinha, e talvez tenha visto a jarra de vidro ao lado da máquina ainda ligada. De longe, dava para ver a textura questionável do líquido.
— Quer saber, esquece o café. O Jihoon disse que você vai levá-lo ao médico, ele está bem?
— Sim. Tá sim. Não é nada demais, eu… na verdade, ele vai ao psicólogo.
Parei de me remexer. Olhei para Yoongi com a boca entreaberta.
— Ah… jura?
— É. Eu falei com você aquele dia que ia pensar e ia fazer algo a respeito. Passei a semana passada inteira ligando pra alguns números, fiz algumas visitas e achei um psicólogo infantil muito bom aqui perto. Hoje vai ser a primeira consulta dele.
Eu não deveria sorrir, ou sentir o coração inchar como um balão ao ouvir aquilo, mas foi exatamente o que aconteceu. Yoongi levantou o canto da boca em um sorrisinho sutil e meigo, como se minha reação fosse exatamente a que ele queria ver, os ombros relaxando imediatamente depois.
Quis abraçá-lo. Quis me jogar para cima dele, envolver sua cintura com minhas pernas dentro daquelas meias horríveis laranja-avermelhadas, quis dançar em cima do capô de um carro.
E aí, o fusível da minha razão acendeu, me trazendo de volta para a realidade. Ou melhor: trazendo minha raiva de volta.
Bom, ele já estava ali, já tinha visto a bagunça vergonhosa que era eu naquela manhã de cabeça para baixo, e tinha aparecido justo depois da pior noite da minha vida, quando tirou meu sono e minha paz. Não tinha como ficar de sorrisinho o tempo todo.
— É… que bom. É uma boa notícia. Pena que vai durar pouco. — soltei, o tom maciçamente envenenado. Yoongi franziu a testa.
— O quê?
— É, o ideal é que as crianças conheçam o terapeuta e fiquem com ele por um tempo, porque talvez o Jihoon não consiga se abrir completamente na primeira consulta, ou talvez fique várias consultas sem falar nada, e daí talvez ele nem fale, já que saiba que vai ter que ir embora de novo.
Aquele frio estava ali de novo, me fazendo tremer, me fazendo querer gritar, me levando para a noite passada e para todo aquele caos que quase me fez socar uma parede.
Yoongi me olhava sem entender nada.
— De que merda você tá falando, ? Não tô entendendo…
— É que é ruim, Yoongi. Ele acabou de chegar, e já vai ter que ir embora outra vez. Isso pode decepcionar o terapeuta dele, pode fazer ele ficar pensando que não fez um bom trabalho com o Jihoon, pode fazer ele se sentir até mesmo subutilizado. Isso é um pouco trágico, seria até melhor ele nem conhecer o Jihoon.
— ! Que papo é esse?
— Você devia ter me contado de Londres! — trovejei, as palavras saindo de mim em um estilingue. — Eu já tô sabendo, Yoongi. A briga de galo de Oxford e Harvard por você, e a sua escolha óbvia! Devia ter me contado que tava se mandando, que a Drexel realmente não era lugar pra você! Caso você não saiba, eu fui a primeira a falar isso, então você devia ter me contado!
Yoongi ficou branco. Por um momento, um mísero, microscópico momento, tive esperança que ele negasse tudo. Que dissesse que nunca ouviu falar daquela história, que Wonwoo estava mentindo, e que ficaria na Filadélfia até morrer e ser enterrado em um jazigo no cemitério Laurel Hill. Tive essa esperança reluzente e verdinha batendo as asas dentro de mim tão forte que quase relaxei. Quase.
Mas então, ele não disse nada. Não fez qualquer menção de negar. Só ficou com a boca aberta, temerosa, as linhas do canto da boca tensas de choque.
— Como… , como você ficou sabendo disso?
O mundo fez crec, crec, crec ao meu redor. Todo o choro que não veio ontem, quis explodir e jorrar de mim como um chafariz. Então era verdade.
Mas permaneci firme. Ainda não me sentia totalmente alheia à minha imagem para desabar na frente de Yoongi.
Por enquanto.
— Não importa como eu soube. O negócio é que é verdade, né? — tentei rir, mas fracassei. — Inclusive, era sobre isso aquela folha que vi na sua sala com a logo de Harvard. Era um dos seus “convites” e você estava tentando decidir para qual “festa” queria participar.
Tentei rir de novo, mas foi um desastre. Nada no mundo tinha graça agora. Yoongi me olhou com padecimento, a garganta engolindo forte, as mãos indo ao cabelo de novo.
Nem perdi meu tempo suspirando ou achando aquilo lindo como realmente era. Tudo a respeito daquela situação tinha a força do pé de alguém atolando direto no meu estômago.
— , eu posso explicar. As coisas não são bem assim…
— Não, você não precisa me explicar nada. Não agora. — cortei, repentinamente maluca para que aquilo acabasse, tudo aquilo. — A gente não é nada um do outro, você não me deve explicações. Se você vai no próximo semestre, já vou ter feito minha apresentação, e mesmo se for amanhã, eu consigo terminar tudo sozinha. Você me ensinou bem, doutor D. Espero que esteja orgulhoso de mim.
A boca dele se contorceu inteira, e honestamente, eu queria mesmo irritá-lo de alguma forma, queria que ele visse que não merecia querer se explicar agora, porque só ia fazer isso porque foi desmascarado. Na prática, eu acordaria um dia, talvez amanhã, talvez no fim de semana, e ficaria sabendo por alguma fofoca de corredor que ele estava curtindo seu visto europeu.
Estava com tanta raiva dele e ao mesmo tempo com tanta vontade de agarrá-lo que não sabia nem para onde olhar.
— Você não sabe o que tá falando. As coisas não são do jeito que você tá pensando, ou do jeito que você ouviu…
— Agora tá duvidando da minha capacidade de audição?
— Não! Mas se está se referindo às propostas, você sabe bem que ainda não aceitei nenhuma, e sabe que eu jamais te abandonaria com a pesquisa em andamento.
— Ela está quase no fim, doutor D. Acredite, no fundo, bem no fundo, estou te dando os parabéns por inspirar um racha de peixes grandes pela sua pessoa, eu não estou triste com isso. Não precisa fingir que se preocupa comigo agora.
— É claro que eu me preocupo com você! Porra, , por que tá falando isso? Você sabe que…
— Eu sei que você escondeu essa porra quando eu disse que estava apaixonada por você! É isso que eu sei! — não sei da onde surgiu a força sombria que me fez avançar e empurrar um dedo indicador no peito de Yoongi, com uma força que logicamente não moveu um músculo dele, mas extraiu bastante coisa de mim. — Se você não queria ficar comigo, Yoongi, tudo bem, eu ia entender, eu estava no processo de entender, e tava doendo pra caralho esse processo, mas eu ia conseguir. Mas daí fiquei sabendo sobre Boston e sobre Londres, e todo o seu discurso no carro, e nada disso bateu! Se existia uma remota, ou mínima chance, de você ir embora, era só ter falado! Assim eu não me sentiria tão merda porque entenderia os seus motivos, e todo o meu tempo de fossa seria cortado pela metade! Idiota!
Respirei fundo. Não, não, não, o choro estava voltando, a onda estava se formando lá na frente, uma onda sóbria e vergonhosa. Falei com ele as coisas que só tinha dito na minha mente, depois de repassar o episódio do carro 200 vezes em loop. Falei porque achava que ia explodir e aquilo me faria melhor.
Mas ele estava ali, com o maxilar todo travado, os lábios apertados, os olhos cravados em mim e os dentes trincando um no outro como se estivesse amarrado por uma corda e zangado com alguma coisa, talvez comigo, e não, isso não fez eu me sentir melhor.
Porque nada disso mudava a realidade da coisa: Yoongi ia embora. Eu nunca mais o veria. Nunca mais veria Jihoon. E, mesmo se visse, as coisas continuariam na mesma, porque eu não estava no seu coração e nunca estaria.
Isso tudo doía demais. Tinha certeza que meus olhos estavam brilhando excessivamente de lágrimas, e funguei uma vez, piscando para afastá-las.
— Você acha que isso seria um bom motivo? — ele finalmente falou, a voz arranhando impiedosamente, como se tivesse engolido um trilhão de palavras até conseguir soltar aquelas. — Acha que Londres é tão ótima assim pra largar tudo? Acha que sua tão sonhada Harvard vale acima de todas as outras coisas que foram cultivadas antes dela?
— Não tenta pagar de sabichão comigo. Você entendeu muito bem o que eu quis dizer.
— E dá pra não entender, ? — ele deu um passo enorme para a frente, parando a centímetros de mim. — Você não deixou dúvidas sobre achar genuinamente que uma lista de promessas de algum lugar seja mais importante do que o que você disse pra mim, ou o que você tá fazendo comigo!
— Não são só promessas, é um futuro, Yoongi! Um futuro brilhante e de verdade! Por que eu acharia que você não aceitaria? Aliás, por que qualquer um acreditaria nisso?
— Você não tá me ouvindo…
— Eu tô ouvindo você tentar justificar o injustificável. A porra da Drexel pode ter sido palco do seu primeiro grande amor, e talvez pra um amasso aleatório que você já esqueceu, mas ela não precisa ser o resto da sua vida. Eu duvido que você queira isso!
— Para de falar…
— Não precisa tentar amenizar a situação pra não me machucar, Yoongi. Sei que você tem uma reunião muito importante hoje, e eu tenho certeza que é sobre isso, e tenho certeza que todo o departamento de Geociências vai entender se você abandonar a cadeira. Londres vai ficar muito feliz em te receber.
Ele deu uma risada rouca, controlada, a têmpora pulsando. Eu estava no modo metralhadora, sem fazer ideia das coisas que saíam da minha boca; elas só precisavam sair, para que eu não chorasse.
— Meu Deus, você tá falando muita merda… — ele fez um barulho parecido com um grunhido, algo alto que devia ser para que não aumentasse a voz mais do que já estava alta. — Pelo amor de Deus, eu não decidi nada sobre Londres. Nada sobre Boston, nada sobre porra nenhuma. Você tá ouvindo alguma coisa do que eu tô falando?
— E isso é algo que tem se pensar? É Oxford, pelo amor de Deus! O que poderia fazer você querer ficar na Filadélfia?
Foi quando Yoongi cruzou o olhar com o meu e parou. Parou parou parou parou.
Vi algo que, provavelmente, nunca vi em ninguém. Um algo que Belle costumava chamar de “ódio por tesão”. Um caminhão soterrado de raiva, querendo desesperadamente ser descarregado. Ela dizia que era isso que os personagens sentiam em qualquer comédia de inimigos para amantes, onde o carinha perde o controle e beija a garota em um momento de fúria impulsiva.
E foi exatamente o que Yoongi fez comigo.
Todo o meu corpo foi imprensado junto ao seu, toda a minha boca foi devorada arduamente pela sua, num desespero de quem esteve debaixo d’água pelo último mês inteiro e minha boca fosse a superfície cheia de oxigênio. Perdi a força nos braços, permanecendo parada por um minuto inteiro até forçar meu cérebro a não desligar e registrar aquilo, mesmo se fosse um sonho (eu poderia ter mesmo desmaiado na frente dele, vai saber). Abri a boca para receber a sua, enrosquei minha língua na dele e a sensação foi ainda melhor do que a que eu me lembrava, me tornando apenas uma passageira naquele trem e deixando que ele me conduzisse.
Suas mãos tentaram dar uma de onipresentes de novo, descendo e subindo por mim, indo a lugares que já esteve e que estavam com saudade dele, como minha bunda e a curva do meu peito por baixo do blusão, que se eriçou e tremeu copiosamente apenas pelo raspar dos dedos dele ali. Yoongi soltou um gemido dentro da minha boca quando sentiu meu mamilo ficando duro, e se viu obrigado a parar de me beijar muito cedo.
— Espera… — ele bufou, ofegante, uma mão aninhando meu rosto, sem se afastar demais. — Ontem, a Belle… ela… — ele umedeceu os lábios, e depois travou o maxilar de novo, ficando tenso. — Como foi o seu encontro? Ele deu certo?
Eu sabia que estava bem próxima de ter um colapso e explodir, entrar em combustão, porque uma das mãos dele ainda estava na minha cintura, porque a boca dele estava literalmente a milímetros da minha, e porque eu tinha me esquecido de tudo, absolutamente tudo que aconteceu na noite anterior.
Mas ainda assim, tentei afastar os lábios e falar, mesmo que parecesse que a voz estivesse vindo do outro lado do país:
— O… quê?
Yoongi, pensando erroneamente que fosse me ajudar, se aproximou mais do meu rosto.
— O seu encontro da noite passada, . Eu devia… devia ter perguntado pra você primeiro, devia ter me controlado. Deu certo?
Minha cabeça estava flutuando. Desnorteada, balancei a cabeça em negação, sem ter mais força para formar uma palavra. Yoongi suspirou de alívio.
— Graças a Deus.
E imediatamente estava na minha boca de novo, e na minha bunda, e no meu peito, e em todos os lugares que podiam ser alcançados com uma mão só. Meu cérebro tinha começado a ladainha do: “, calma, vamos entender essa situação primeiro”, mas o mandei ir para o inferno na mesma hora, porque a situação era a seguinte: Yoongi estava pegando fogo e eu já estava cheia de gasolina. Se qualquer coisa nos fizesse parar agora, nunca mais seríamos os mesmos. De alguma forma, eu sabia disso.
Em pouquíssimo tempo, ele estava raspando no meu quadril com aquela coisa dura que com certeza daria de 10 a 0 em todas as versões de silicone de Belle, e fui tomada por um desejo absurdo de fazer o que queria fazer no pub: colocar a mão lá dentro, sentir, destruir minha fantasia e transformá-la em uma lembrança de verdade. Por outro lado, Yoongi parecia ainda mais desesperado do que eu. Sem o menor pudor, meteu a mão por baixo da minha blusa e agarrou meu peito inteiro, mordendo o meu lábio inferior com força, praguejando coisas ininteligíveis enquanto fazia meu corpo inteiro se inflamar, e ainda estávamos de pé no meio da sala.
Meu Deus, eu precisava dele. Precisava dele mais do que estava precisando respirar.
— Porra, … — talvez ele quisesse dizer alguma coisa, mas preferiu sentir meu mamilo e isso o impediu de continuar. — Caralho…
Gemi quando ele deu um puxão. Foi algo grotesco que saiu de mim sem meu consentimento.
— Meu Deus. — engasguei, soltando o ar inteiro na boca dele. — Eu não tô entendendo nada, mas… preciso que você continue fazendo isso.
— Você não tem ideia do que eu quero fazer com você. — ele soprou em mim, e não aguentei: puxei sua língua para a minha enquanto empurrava sua jaqueta para trás. Ele a deixou cair sem questionar e, como um movimento ensaiado por semanas, pulei no seu colo por instinto, me colando nele, fechando as pernas na sua cintura. Yoongi me agarrou perfeitamente, as mãos embaixo da minha bunda, os dedos me apertando forte.
— Onde é o seu quarto? — ele perguntou quase sem voz. Apontei para algum lado, concentrada na sua boca, sentindo em todos os detalhes o pau dele na minha pelve.
Notei seu corpo se colocando em movimento, e admirei muito sua capacidade de fazer duas coisas ao mesmo tempo, porque Yoongi saiu da sala e atravessou um pequeno corredor sem parar de me beijar, descendo pelo meu queixo até tomar meu pescoço, voraz, faminto por mim, necessitando estar perto como um elétron de um núcleo.
Não demorou nem 60 segundos para que ele entrasse pela minha porta já aberta, e desci do seu colo para fechá-la com o pé, tendo dois segundos apenas para virar de volta e ser tomada por aqueles lábios vermelhos e inchados, e o cabelo extremamente bagunçado, que parecia já ter adquirido o status de “pós-foda” antes mesmo da foda acontecer.
Foi aí que, na hora que eu menos queria e precisava, a razão irrompeu na minha cabeça como um fósforo em chamas.
— Yoongi… — tentei falar enquanto tinha o corpo preso na parede e os dedos dele desciam para o espaço entre as minhas coxas. Oficialmente eu estava enlouquecendo. — Nós temos… 20 minutos.
Aquilo não soaria como um alerta sério nem se eu quisesse; porque ele alcançou meu clítoris pulsante, porque quase rosnou no meu ouvido, porque seu corpo estava gritando por mim por baixo daquela calça e eu estava louca para sentir isso.
Mas, por incrível que pareça, ele ouviu e até me respondeu, em uma voz baixa e abafada que elevou meu tesão para acima do recomendado:
— Então tira logo essa roupa.
Parei de beijá-lo por um segundo, um micro segundo em que quis olhar nos seus olhos baixos e ver se ele não estava brincando. Foi o tempo suficiente para que ele lambesse os meus lábios e abrisse um sorrisinho cretino, um que eu tinha certeza absoluta que só era visto por quem ele fodia.
E minha nossa, nunca, nunca quis tanto ser fodida na minha vida.
Como uma maluca, enfiei as mãos por baixo da sua blusa e a puxei para cima, revelando a tão desejada imagem do seu peitoral, adornado por uma correntinha de prata que eu nunca tinha notado. Sem ter hora para isso, puxei a minha própria blusa para cima, revelando toda a minha parte superior nua e deixando Yoongi, no mínimo, afetado.
— Porra… — ele ofegou pesado, olhando para os meus peitos com adoração inimaginável antes de agarrar um deles e colocar na boca. Segurei um grito, puxando seu cabelo por instinto, apoiando a outra mão no seu ombro enquanto minha cabeça inclinava para trás, experimentando seus dentes apertarem e sugarem meu peito com força, jorrando uma corrente elétrica inexplicável pelo meu corpo inteiro, fazendo minha pernas bambearem a ponto de cair.
Meu Deus, ainda estávamos de pé.
Na mesma hora que pensei, Yoongi desceu uma mão pela minha cintura, empurrando meu shorts para baixo, resmungando algo em cima do meu mamilo, jorrando uma torrente de ar quente na minha pele. Concordei com o que quer que fosse, ajudando-o a tirar aquilo de mim, ao mesmo tempo em que eu conseguia usar as próprias mãos e desfazia seu cinto grosso, puxando-o para o lado apenas para enxergar seu botão e o zíper. Mas parei antes de conseguir descê-lo.
Yoongi finalmente tinha feito o que estava doido para fazer e eu estava doida para sentir: ele afastou minha calcinha para o lado, encontrando a área quente e encharcada entre as minhas pernas, e juro que todo o corpo dele tremeu bem embaixo das minhas mãos.
— Puta que pariu, , você vai me matar… — ele enfiou um pouco mais os dedos, subindo pelo meu clitóris, testando todas as micro regiões dos grandes lábios úmidos e abertos. — Você não pode ser real…
— Me leva pra cama. — “rápido!”, eu quis gritar, lembrando do tempo, no mesmo instante que o esquecia de novo porque ele estava movendo aquele dedo lentamente e me matando. — Agora.
Beijei ele, puxando-o para a cama um pouco bagunçada, deitando primeiro para que ele ficasse por cima de mim. Com uma força assustadora, Yoongi transportou meu corpo inteiro para o meio, e ouvi seus sapatos batendo no chão, e depois o cinto, e então sua boca estava de volta na minha e o dedo de volta no meu sexo, quente, delicioso, me fazendo automaticamente me esfregar nele de desejo.
— Merda… — ele ofegava o tempo todo, puxava e soltava ar, puxava e soltava ar, agora brincando na minha entrada, ainda se amarrando em cordas de aço para não avançar como um desvairado. — Merda, , preciso chupar você. Preciso mais do que já precisei de qualquer coisa na vida.
Se fosse possível: fiquei ainda mais molhada, derreti em ponto de bala. Só a imaginação daquilo acontecendo, da língua de Yoongi me tocando lá embaixo e fazendo os mesmos movimentos que fazia na minha boca, deixava as palavras quererem sair automáticas: “sim sim por favor, eu faço qualquer coisa por isso.”
Mas meu cérebro estúpido estava se intrometendo de novo, querendo racionalizar uma situação nada racional. “Vamos lá, , devem ter sobrado 17 minutos agora, não é hora de coisa séria, se concentra no principal”.
— Se você prometer… fazer isso em no máximo dois minutos… — disse entre os bolsões de ar que meu nariz conseguia capturar.
— Nunca. — Yoongi respondeu no mesmo segundo, antes de ir enfiando o dedo em mim aos poucos, fazendo minha perna sacudir, levando o dedão ao meu clítoris, me dando outro daqueles choques violentos. — Nunca levaria menos de duas horas pra te experimentar.
— Então, não. — engoli em seco, tentando pensar, tentando parar de me esfregar nele, mas era difícil com o dedo dele inteiro dentro de mim. Beijá-lo já estava ficando mais complicado, tudo no meu corpo queimava e explodia, como se eu pudesse gozar a qualquer momento, mesmo que ele só tivesse metido um dedo em mim. — Quinze minutos, Yoongi. Ou você me fode agora, ou podemos ir tentar aquele café…
Tive a boca atacada por ele no meio de uma risada. Yoongi abriu as minhas pernas e se enfiou dentro delas, a calça jeans ainda no corpo, o pau mais duro do que nunca. Automaticamente, coloquei minha mão ali, abaixando o tecido grosso e pesado.
— Você chama aquilo de café? — ele zombou na minha boca, me ajudando a tirar sua roupa.
— Você sempre repara em tudo? — Yoongi terminou de arrancar a calça, e agora seu volume estava muito evidente na boxer preta. Um volume que me deixou sem ar e com água na boca ao mesmo tempo.
— Reparo. — ele respondeu, sem tirar a boca da minha, e aproveitei para colocar a mão nele, ali em cima, no monte abençoado que me fez trepidar. — Menos quando eu te beijo. Nessa hora, mal consigo lembrar meu próprio nome.
Uma pontada imensa e gigantesca no meu ventre quase me fez pular. Puta que pariu, Min Yoongi sabia mesmo como usar as palavras na hora da foda.
Devo ter sorrido como uma idiota por isso, porque senti seu beijo nos meus dentes, e sua língua por toda a linha do meu maxilar.
Finalmente, repito: finalmente! não aguentei esperar e abaixei a boxer, vendo seu pau pular para fora, já completamente erguido e projetado na minha direção, todo veias pulsantes e líquido pré-gozo escapando da cabeça, me dando de novo aquela sensação de água na boca.
Tudo bem, se ele não podia me chupar agora, eu também não poderia fazer nele. Uma troca justa.
Mas o agarrei entre meus dedos como se tivesse medo que ele fugisse, tocando cada parte, levando as mãos para cima e para baixo só para que o meu corpo entendesse e sondasse o que iria entrar em mim.
— … — ele grunhiu em repreensão, e me senti levando uma bronca de um professor quando Yoongi segurou minha mão por cima do seu pau. — Isso não vai me ajudar.
— Acho que só tem mais treze…
Yoongi vibrou em uma risada enquanto puxava a carteira do bolso de trás da calça jogada do outro lado da cama.
— Melhor parar de contar o tempo porque não vai adiantar. — ele puxou um pacote prata de camisinha, abrindo com o dente. — Você vai gozar tão rápido que os minutos não importam. Se eu pudesse te chupar, seriam duas vezes, e ainda sobraria tempo.
Ele disse tudo em uma tranquilidade assustadora, com a naturalidade de quem explica a formação de um gêiser. “Então, é tudo calor de vulcão, cara, a natureza já te dá a água. Podemos ir agora?”
A promessa me deixaria ainda mais maluca e prestes a dizer para jogarmos tudo para o alto e esquecermos a proibição dos orais, porque de repente precisava mais do que nunca gozar por qualquer parte desse homem.
Mas outra coisa me chamou atenção, uma que provavelmente era a última coisa a ser reparada:
— Como assim você tem camisinha na carteira? — falei enquanto ele encapava o pau, com uma destreza surpreendente. — Isso é coisa de gente com vida sexual ativa.
— Não é, não.
— Eu não esperaria que um cara com três anos de seca tivesse camisinha na carteira.
— Eu não tinha até um tempo atrás.
— Ah, é? — ergui uma sobrancelha. — Quanto tempo?
— Um tempo. Agora fica quieta que eu quero te beijar.
Yoongi terminou tudo e se enfiou no meio das minhas pernas de novo, tomando a minha boca com um ímpeto que queimou o que antes ainda não estava queimando em mim. Esqueci o que tinha dito antes, esqueci do tempo, esqueci até mesmo da onde estava quando ele roçou o pau por cima da minha área ainda mais úmida do que antes, fazendo-o oscilar de novo.
Eu já estava apaixonada pela forma como ele reagia só de me sentir por fora.
Então, Yoongi levou as duas mãos nos meus quadris e puxou minha calcinha pelas minhas pernas, me deixando agora totalmente exposta.
E ele fez aquilo. Aquilo que eu tanto queria, que eu tanto desejei, muito mais até do que ele dentro de mim: seu olhar. A forma como reparava em todos os espaços, agora fissurado e concentrado ali, no meu corpo à luz do dia, ardendo sob o toque dele e também sob o sol da manhã.
Provavelmente perdemos um minuto inteiro nessa parte, mas eu não estava ligando nem um pouco.
— Deus abençoe a primavera. — ele murmurou, me puxando para perto assim que se posicionou na minha entrada. — Nunca mais quero ver um dia nublado na minha vida.
Meu Deus, ele precisava muito parar de falar antes que eu ligasse para Belle e para o médico de Jihoon e mandassem todos tirar férias por uma semana.
Yoongi foi entrando devagar, muito devagar, apertando a minha cintura enquanto apertava os próprios olhos, sentindo tudo em cada faceta.
Puxei seu rosto para beijá-lo, balançando a cintura, ansiosa. Por que ele estava demorando tanto?
— Tenho que te ensinar algumas coisas? — mordi seu lábio. Me esfreguei ainda mais. — Relembrar alguns passos?
Ele riu, e foi a risada mais sexy que já ouvi na vida.
— Só cala a boca, .
E então, ele deu um arremate forte para dentro de mim que me tirou todo o ar.
Gritei. Não apenas uma vez. Simplesmente saí gritando, gemendo, o corpo inteiro balançando à medida que Yoongi me estocava uma, duas, três e quatro vezes seguidas, afundando o rosto no meu pescoço, e rosnando palavrões e outras coisas pervertidas que, honestamente, na voz dele deveriam vir com aviso de gatilho. Eu sei que já estava apaixonada por ele, mas se ainda não estivesse, ficaria ali, no exato momento em que ele entrou em mim.
Ele não era o tipo de cara que ficava falando o quanto você era apertada (mesmo não sendo), ou que seu corpo era o mais perfeito (mesmo não sendo). A questão era que Yoongi não precisava falar nada; ele simplesmente mostrava. No meio daquelas investidas intensas, rápidas, fortes, suadas, com minhas unhas traçando caminhos pelas suas costas e meus gritos sendo calados apenas na sua boca, percebi que eu, involuntariamente, me contraía, o tempo todo, procurando mantê-lo ali o máximo possível, querendo sugá-lo para dentro de mim, querendo fazer parte dele. Ele abriu mais as minhas pernas, me beijou com uma língua desvairada e murmurou que eu era linda, que eu era deliciosa, que ele nunca esqueceria aquele momento e que jogaria todas as suas cortinas fora. Ao mesmo tempo, tentava dar atenção às outras partes do meu corpo, como os meus peitos pulando pelos golpes, o meu clitóris pulsando como louco e ainda conseguia repetir: “Isso é muito bom, porra, é muito bom, é maravilhoso”.
Em resumo: aquele cara era um homem de mil olhos e mil mãos, e isso era a coisa mais gostosa que eu já tinha experimentado.
Não sei quanto tempo se passou até eu explodir em mil pedaços, ondulando em cima dele, que não parou de meter em mim mesmo depois disso. Minha mente estava tão zoneada que nem mesmo sei se aquela vez que gozei foi a primeira ou uma possível segunda, nenhuma inteligência me pertencia mais. Era a sensação de quem acabara de sair de um touro mecânico, uma montanha russa, o estômago indo parar em vários lados ao mesmo tempo, tudo isso no mesmo instante de hora.
— Eu tô… Eu tô… — tentei falar, mas meu cérebro estava de cabeça para baixo. Só conseguia apertar as costas dele, que não parava de se mexer.
— Eu sei. Porra, eu sei. — ele soltou o ar com força, trincando os dentes para não falar algo que eu julgaria muito obsceno até para o momento. — Eu tô quase com você.
Fui tomada por um desejo bizarro e tenebroso de querer que ele gozasse dentro de mim, em cima de mim, em qualquer lugar que me permitisse sentir aquilo na pele. Mas, como deu para ver durante toda a minha semana anterior, meu cérebro tinha virado uma pilha de mingau. Não tive lembranças ou raciocínio suficiente para dizer a ele que tomo pílula desde que transei pela primeira vez (um pouco traumática, mas que serviu de lição), e achei de muito cuidado que ele nem sequer pensou em perguntar ou nada parecido. Afinal, ele já tinha um filho, não devia querer arriscar com mais nada.
Minha nossa, eu estava pensando em filhos enquanto Yoongi metia em mim. Se isso não era estar completamente fodida e condenada, eu não sabia mais o que era.
Percebi a perna dele tremer e o braço se apoiar com mais força ao lado da minha cabeça, e o resto da minha consciência conseguiu capturar o momento exato em que ele gemeu um pouco mais alto na curva do meu pescoço e gozou forte, intenso, como se realmente não gozasse há um bom tempo, ou não gozasse tão intensamente. Prendi as pernas em volta da sua cintura, beijando a sua boca enquanto ele ia parando de se mexer aos poucos, os arrepios se alastrando pelo interior dos braços, o desejo jorrando dele até a última gota e nossa pele quente e quase totalmente incineradas tocando uma na outra, as testas suadas e as respirações se misturando, peito ofegante com peito ofegante.
Não estava mais preocupada com o tempo. Não estava preocupada com nada, nem com o planeta Terra, a morte do Sol e a política nacional. Nada mais me importava. Queria ficar ali, com Yoongi dentro de mim para sempre.
Ele foi afastando a cabeça aos poucos, e achei que ele falaria alguma coisa, mas só ficou parado, me olhando, vasculhando meu rosto enquanto passava o polegar na minha boca, na minha bochecha, na ponta do meu nariz, me estudando como se eu fosse um monumento geológico fascinante, fissurado em cada detalhe.
— E agora… — a voz rouca quase fez um carinho no meu maxilar, um tom sonolento e sexy. — Pode me ensinar o que você queria antes…
Ri, dando um tapinha no seu ombro. Fiz uma careta de menosprezo enquanto ele me beijava de novo, muito lento, degustando a minha boca da mesma forma como se degustava um bom vinho. Me vi acesa e desperta de novo, convicta de que aquele beijo, naquele momento em específico, ficaria na minha memória até que eu morresse.
Por mais que estivesse embalada, meu cérebro anunciou: tic-tac-tic-tac.
— A gente tem que ir. — sussurrei, roçando meu nariz no dele.
— Temos. — ele sussurrou de volta, pegando na lateral do meu rosto. — Só mais uma coisa.
Fui beijada mais uma vez, dessa vez forte, intensamente, e com um quê de provocação, porque cheguei muito perto de dizer um belo foda-se e subir em cima daquele homem, mas antes que eu sequer me mexesse, Yoongi me soltou e saiu da cama, com o mesmo sorriso cretino que tive certeza absoluta que só existia em momentos de trepa.
Ah, Deus, teria que me beliscar 200 vezes depois que ele fosse embora para me lembrar constantemente que eu tinha mesmo dado uma rapidinha com Min Yoongi na minha cama às 8 e alguma coisa da manhã. Era uma coisa bem vagabunda universitária, mas uma vagabunda universitária seletiva, porque nunca tinha feito isso com qualquer outro, e depois de hoje, dificilmente faria.
Aceitei meu destino e levantei, começando a procurar minhas roupas, assim como Yoongi estava fazendo com as dele. Ele jogou a camisinha fora e pegou a boxer no pé da cama. Joguei sua calça, enquanto ele me jogava a calcinha perdida do outro lado. Calcei os shorts enquanto ele abotoava o jeans e dizia: “a propósito, belas meias”.
— Admita que só quis transar comigo por causa delas. — brinquei enquanto colocava a blusa. Ele riu com escárnio.
— Se você soubesse há quanto tempo quero transar com você, veria que as meias são só um detalhe.
— Ai. — fiz uma careta. — Não me diga que foi desde que usei aquela jardineira rosa, que inclusive já está no lixo? — ele balançou a cabeça em negação. — Quando usei os brincos com formato de melancia? — outra negação. — Já sei, quando usei a saia longa na escola que escondia minhas botas. Eu fico muito caipira com elas, qualquer cara que me quisesse naquele visual teria um problema sério de imagem.
Yoongi gargalhou, e me puxou para perto pela cintura, segurando a camiseta na mão.
— Errou em todas, inclusive por se achar menos do que linda em todos os exemplos, mas é, talvez eu tenha um problema de imagem. — ele me beijou com um selinho fraco, raso, uma coisa que não passava de provocação. Dei uma cotovelada frágil na sua costela. — Vou deixar você pensando aí. Quando tiver mais sugestões, pode me dizer.
— Eu adoraria saber a história da camisinha. — passei a mão pelo cabelo, tentando penteá-lo o máximo possível com os dedos. Yoongi passou a camiseta pela cabeça, ajeitando-a nos braços.
— Essa é outra história que vou te deixar pensando.
— Isso não é justo. — balancei a cabeça, escondendo o riso. Virei para a cama e, num impulso, comecei a juntar os edredons que chutamos para o chão, e os travesseiros que caíram no movimento frenético de vai-e-vem de Yoongi que, até o momento, fazia eu me perguntar como tinha saído viva e com sanidade daquilo.
Não fazia ideia de como sairia de uma próxima vez. Não sabia nem se teríamos uma próxima vez. A conversa da sala tinha sido interrompida, mas os fatos ainda existiam e estavam em andamento.
Foi só esse pensamento intrusivo passar pela minha cabeça que ouvi ele dizer atrás de mim:
— Janta comigo amanhã.
Parei com a minha arrumação, virando para ele, que agora estava colocando o cinto.
— Jantar com você? — franzi a testa. — Tipo um encontro?
— Exatamente um encontro.
Pisquei.
— Hum, olá? Você acabou de sair de dentro de mim depois de me dar o melhor orgasmo da minha vida em menos de quatro minutos. — passei meus braços pelo seu pescoço. — Acho que a gente pode pular essa parte e ir direto ao que interessa.
Rocei nossos lábios, tentando não ultrapassar o limite e ceder ao que eu realmente queria fazer com ele, que eram coisas que uma pessoa com uma carga de cinco tesões de vaca no corpo e com três minutos sobrando não podiam fazer. Me contentei com um beijinho suave, mas Yoongi se afastou, me olhando de um jeito sério.
— Não, . — balançou a cabeça, ainda com a mão no meu quadril. — Eu… Olha, isso aqui foi incrível, e tenho certeza que vou passar o dia todo pensando no seu gosto, e em você pelada, e provavelmente ficando duro em muitas horas constrangedoras, mas gosto de manter um certo tradicionalismo na minha vida. Quero levar você pra jantar. Depois sim, é, a gente vai continuar o que começou aqui, mas faz um esforço até lá. Você não é só uma rapidinha no banco de trás do meu carro ou uma no meio do café da manhã, dá pra entender?
Parei ali, olhando para ele e me perguntando genuinamente com toda minha força mental se aquele homem era real.
Ou me perguntando onde eu estava esse tempo todo que nunca tinha cruzado com esse tipo. Com um cara que me acha linda, sim, que me desejava, sim, que não negaria uma rapidinha comigo (mesmo que fosse uma demonstração irrisória de interesse de acordo com as regras sociais), sim, mas que deixava claro (de novo, sem exatamente falar) que aquilo não contava, perto de tudo que queria fazer comigo.
Não consegui responder. As borboletas no meu estômago estavam me sufocando. Então, também tentei demonstrar quando levantei o pé e o beijei, sem a suavidade da vez anterior, mas um beijo forte, recheado, com um sorriso no meio que não consegui conter.
— Então tá bom, senhor Min. — dei vários selinhos seguidos. — Você pode me levar pra jantar.
Yoongi suspirou, fazendo carinho na curva do meu quadril.
— Obrigado.
E agora ele estava me agradecendo por aceitar jantar com ele.
Simplesmente não existe.
Quando estava prestes a me beijar de novo, ouvimos o som abafado por trás da porta:
— Ei, chegamos!
Recuei num pulo automaticamente, como se Belle estivesse entrando no meu quarto. Yoongi terminou de vestir o cinto e colocar carteira e celular nos bolsos de volta, dando uma olhada rápida ao redor do meu quarto. Típico.
— Eu saio primeiro e aí você…
— Aham. — concordei.
Ele assentiu e se virou para sair, mas logo parou, voltou e me deu mais um beijo estalado.
— Não vejo a hora de te ver de quatro, .
Então, ele praticamente correu para a sala, me deixando ali, com pontadas no ventre e uma imaginação já muito fértil imergindo naquela nova imagem que ainda não tive a oportunidade de me colocar.
Saboreei um arrepio colossal, um tremor que balançou meu corpo inteiro e pigarrei, ajeitando o cabelo de um jeito aceitável e voltei para a sala.
Jihoon já estava no colo de Yoongi, e o garotinho abriu o maior sorriso do mundo para mim. Comecei a andar até eles quando passei pelo meio do cômodo e olhei para o chão. Direto para o casaco de Yoongi.
Os três estavam muito perto da porta. Belle mal tinha entrado em casa. Belle não tinha visto isso ali?!
— ? — a voz dela me trouxe de volta. Imediatamente, chutei a jaqueta para debaixo do sofá e sorri.
— E aíííí, gente? Como que foi o passeio?
Sorri como uma caveira, de um jeito que tava na cara que eu tinha aprontado. Bom, eu de fato tinha, e, quando olhei para Yoongi com Jihoon no colo, soube que aquele cara estaria mentindo se dissesse que sua vida universitária foi morta e sem graça, porque tinha voltado ao exato modo de como estava quando chegou, tirando o fato de que, inegavelmente, estava sorrindo um pouco mais.
Anotação mental de pedir para ele me ensinar isso depois. Era um traço quase de psicopatia.
— Tá na hora, Jihoon. Vamos lá. — ele murmurou para o filho, e Jihoon assentiu.
— Tchau, tia Belle. Tchau, ! — ele acenou com as mãozinhas no ar, e eu tive de novo aquela vontade de pegá-lo e sair correndo para debaixo do meu cobertor e viver com ele para sempre ali, nunca deixando-o saber o que era uma fatura de cartão de crédito.
— Tchau, querido. Nos vemos semana que vem.
— A gente se vê na corrida. — Belle jogou um beijinho no ar. Yoongi foi saindo, carregando Jihoon como se não pesasse nada, e quando chegou ao batente, virou para mim uma última vez, e ali, ali estava: o sorriso cafajeste de foda. A única prova em público do que aconteceu.
— Tchau, .
Mal consegui abrir a boca. Só sei que sacudi a cabeça e minhas pupilas dilataram como uma usuária de heroína, e continuaram aumentando mesmo depois de ele fechar a porta.
E talvez ainda estivessem assim quando Belle chegou perto de mim com as duas mãos na cintura, me olhando de cima a baixo, desde o cabelo arrumado às pressas até a ponta dos dedos dos meus pés contorcidos dentro das meias.
— Você tem alguma coisa pra me contar. — não foi uma pergunta.
Me fiz de desentendida.
— … O quê?
Belle semicerrou os olhos e andou para trás de mim, até abaixar e puxar a jaqueta de Yoongi que eu tinha chutado.
— Sua safada, você tem alguma coisa pra me contar! — ela balançou o tecido. Não controlei minha risada. Acho que o brilho nos meus olhos não ia embora nunca mais. — E eu espero que o motivo disso estar aqui não seja porque vocês dois fizeram alguma coisa nesse sofá.
— Se tivéssemos mais tempo... — dei de ombros, e Belle jogou o casaco em cima de mim, abrindo seu sorriso comemorativo.
— Caramba, até que enfim! Senta aí que você vai me contar tudo agora!
— E você vai me contar por que o doutor Augustus D. curiosamente sabia que eu tive um encontro ontem à noite. — arqueei uma sobrancelha enquanto me jogava no sofá.
Belle piscou as pálpebras algumas vezes antes de estalar os dedos.
— Parece que vamos precisar de muito café.
Yoongi não tinha dado nenhuma dica, nenhuma única frase que me me fizesse adivinhar minimamente para onde estaria me levando, e isso fez com que Belle “me preparasse para tudo”, achando um vestido vermelho que devo ter comprado para minha primeira entrevista do mestrado e sapatos de saltinho que estavam descascando um pouco nas solas dos meus pés, mas que me que serviria tanto para um lugar que servisse filé mignon, quanto para um que servisse carne de hambúrguer ultraprocessada.
Eu só não esperava que, qualquer que fosse o lugar, ele teria um aquário gigante com crustáceos vivos, debaixo de um letreiro escrito “Zona do Evo”.
E ao redor da zona do Evo, muitas pérolas, rubis e diamantes brilhavam e piscavam mais do que todas as luzes do lugar, exibidas em pescoços, dedos e cabelos de várias mulheres e homens. E aquilo que estava no prato de um dos clientes engravatados provavelmente era o Evo.
Me senti automaticamente travada. A mão de Yoongi pousou atrás das minhas costas quando percebeu que eu parei.
— Tá tudo bem? — perguntou ele, inclinando-se sobre mim para falar no meu ouvido.
Balancei a cabeça que sim e continuei seguindo o garçom, que nos levou até uma mesa circular bem longe do aquário (graças a Deus) e talvez, por puro instinto e inconsciência, andei um pouco mais rápido para me sentar e não dar a chance de Yoongi inventar de puxar a cadeira para mim.
Não que eu achasse esse tipo de coisa errada ou brega, mas eu não estava com a roupa certa para isso. Para tudo isso, aparentemente.
Ele, por outro lado, estava fazendo tão parte do cenário quanto Evo e seus amigos. Não dava para fazer piadinha de engravatados quando Yoongi usava um blazer preto com uma gravata azul escura, o cabelo penteado para trás e a própria postura dos ombros como de alguém que frequentava aquele tipo de recinto toda semana. Até o jeito com que pegou o cardápio foi casual, como se nenhum zero a mais exibido ali fosse assustá-lo.
De alguma forma, eu esperava que isso fosse acontecer. Esperava que ele fosse aquele tipo de cara, daquele tipo de lugar, e, mesmo que nunca tenha me envolvido com alguém com tanto dinheiro, não era nisso que eu estava pensando quando aceitei seu convite, ou quando entrei no seu carro e o vi naquela roupa, ou quando o vi naquela posição do outro lado da mesa, me dando um sorriso de canto e falando com o garçom sobre um vinho muito específico com total dominação do assunto.
Eu só estava pensando no dia anterior, no meu quarto, quando Yoongi me fez de café da manhã e que poderia muito bem fazer a mesma coisa no jantar.
Mas ele era um cara de processos, então tudo bem. Eram só algumas horinhas de comida e bebida boa até que eu pudesse beijá-lo de novo.
— Você gosta de vermelho? — Yoongi perguntou de repente, logo depois de fazer nossos pedidos ao garçom.
— Às vezes. — dei de ombros, bebendo um gole do vinho. Sem cheirar antes ou balançar para ver a textura. — Belle diz que eu fico parecendo uma vadia. No bom sentido, claro.
— Vadia no bom sentido, tipo Velma Kelly de Chicago?
— Eu prefiro a Roxie, mas sim, uma vadia nesse sentido.
Yoongi abriu mais o sorriso, como se chamar a mim mesma de vadia fosse fascinante.
— Seja o que for, você fica espetacular. Combina com seus olhos.
E pronto, meu peito foi de zero a cem em questão de segundos, e todas aquelas pontadas humilhantes no meu ventre o fizeram jorrar de novo, me fazendo instintivamente apertar uma perna na outra e trincar os dentes.
Nunca achei que tinha alguma coisa particularmente legal nos meus olhos, ou qualquer coisa que o caracterizasse além do que era: apenas olhos. Talvez com uma corzinha de chocolate ao leite depois de um processo muito longo de torrefação, mas só. Nada que fizesse alguém criar poesias e músicas românticas sobre eles.
Mas se fosse falar sobre glóbulos oculares, os de Yoongi pareciam ter sofrido uma farra de cocaína e heroína a duas esquinas atrás enquanto estavam apontados para os meus.
E isso era excitante para cacete.
Tenho quase certeza que ele percebeu minha condição, porque sorriu como um cafajeste do outro lado da taça erguida e girou os olhos para a parte nua da minha perna, reparando em qualquer ondulação do músculo.
— Ainda é muito cedo pra pedir a conta? — perguntei, inclinando a cabeça com provocação. Ele franziu os lábios.
— Sim, é um pouco cedo.
— E daqui a cinco minutos?
— Ainda vai ser cedo.
— Seis?
— Cedo, . Estamos aqui há doze minutos, é só fazer as contas.
Voltei para o meu vinho, resignada. Aquilo era tão bom quanto o que provei na casa dele, mas tinha a impressão de que o do restaurante ainda era mais barato.
Yoongi trocou a posição do antebraço apoiado, se aproximando um pouco mais da mesa.
— Olha, se você estiver desconfortável com o lugar…
— Não é o lugar. — falei imediatamente, balançando a cabeça. — Eu já ganhei vales pra jantar em um lugar desses, e comida é tudo comida. Fica tranquilo. — parcialmente verdade. A parte do “não era o lugar” era real, a parte dos vales nem tanto, e o “comida é tudo comida” definitivamente a maior mentira do século.
Mas Yoongi continuava me encarando daquela forma extremamente fixa que perfurava qualquer armadura que eu pudesse erguer e me esconder.
— Então, por que eu sinto que você tá desconfortável?
Engoli em seco. Olhei para os pães australianos, o vinho, e tudo que me lembrasse do seguinte fato: ainda era cedo para ir embora. O que significava que eu não tinha mais distrações.
Foi muito fácil passar o dia anterior inteiro e o resto daquele dia atual somente pensando em Yoongi, no seu beijo, na nossa pegação e no melhor sexo da minha vida que durou menos de vinte minutos. Fiquei lembrando de cada detalhe das suas mãos em mim, da sensação da voz dele no meu ouvido, nos sorrisos que me deu, e tudo isso foi ótimo para me fazer esquecer de tudo. Absolutamente tudo. Até mesmo da conversa que estávamos tendo na sala um minuto antes de explodirmos em fogo e tesão.
Mas agora, com um jantar inteiro ainda a se desenrolar pela frente, em um lugar público onde eu não poderia calar a sua boca com a minha e subir no seu colo para nos jogar na máquina do esquecimento de novo, eu não sabia como proceder. Sentia como se tivesse um buraco imenso entre nós, e a minha perna não era larga o suficiente para passar por cima dele como se não existisse.
— É que… — limpei a garganta, automaticamente pensando em uma piadinha, mesmo que fosse uma hora horrível para isso. — Eu pensei… bom, eu tava pensando…
— Pode falar, .
— O que eu preciso saber sobre Londres? — disparei, e devo ter gaguejado um pouco, mas a palavra principal saiu inteira e intacta. Yoongi parou com o movimento na taça e me encarou, sem muita surpresa, mas também sem empolgação.
Talvez ele também estivesse tentando pular por cima daquele buraco, pelo menos por hoje.
Ele ajeitou a postura na cadeira e afrouxou um pouco a gravata. Havia algo de pavoroso no modo como ele fez isso, como se estivesse se preparando para dar uma notícia ruim, tipo que seu cachorrinho tinha morrido ou que sua amostra mais importante tinha se dissolvido na estufa graças à 0,5 graus errado.
— Eu não sei como falar isso, . — começou, e todo meu corpo se contraiu bem ali. — Mas já recusei a proposta de Oxford. E vou recusar as que vierem depois, de qualquer parte do mundo.
Pisquei algumas vezes. Tinha um balde de adrenalina percorrendo todas as células do meu corpo em uma corrida alucinante. Yoongi estava olhando para mim e meu cérebro ainda não tinha parado de apitar “perigo! Perigo!”
— Hum… Eu não entendi… — confessei, tendo vontade de virar a garrafa inteira de vinho, mas me lembrando no segundo seguinte que aqui, isso não seria muito bem visto. — Você recusou a melhor universidade da Europa?
— Sim, recusei.
Estendi as palmas das mãos sobre a toalha de linho, olhando as unhas pintadas de preto de um jeito nada profissional enquanto tentava pensar, um monte de perguntas me invadindo.
Eu nem entendia porquê tinha perguntas.
— Isso não… Nossa. — ri daquele jeito que parecia uma tosse seca, ou alguém tentando se livrar de uma bola de pêlo. — Por que? Por que você faria isso? Eles estão perto da Floresta Negra, e da Baía de Fundy na Cornuália. Te dariam passe livre pra explorar o lugar inteiro, construiriam até uma casinha pra você lá se pedisse. É uma oportunidade única. E eu sentiria tanto a sua falta que passaria um mês sem ouvir as músicas do meu walkman porque a coletânea do Paul Simon é bad demais pro uma situação dessas, mas eu entenderia. As pessoas daqui, a Drexel… ninguém espera conseguir isso um dia. Talvez você pudesse ir, se refazer, conhecer novas pessoas…
— , o que você tá fazendo? — Yoongi me interrompeu, semicerrando os olhos. Abri e fechei a boca.
— Nada.
— Por que tá tentando me empurrar para uma coisa que eu não quero? Que eu já decidi. Ainda mais depois de ontem… — ele puxou os lábios, contendo a frustração. — Você tá arrependida, é isso?
— O quê? — pareceu que alguém tinha me pinicado bem embaixo do banco. — Claro que não.
— Tem certeza? Porque tenho uma enorme impressão que deixei minhas intenções bem claras com você. — ele inclinou a cabeça. — Não ficou claro? Precisa que eu diga?
Não respondi. Meu corpo inteiro travado era a coisa mais inútil do mundo naquele momento para responder qualquer coisa. Tinha uma agitação desproporcional dentro de mim, uma antecipação esquisita, algo esperando para acontecer.
Por um segundo irracional, tive vontade de dizer para Yoongi: “não sei do que você está falando”, mesmo que meu corpo, minhas células, minhas organelas e o mais profundo e vazio da minha alma soubessem, todas essas coisas que estavam voltadas para o seu toque e os resquícios que ele deixou em mim depois de sair.
Mas aquilo foi a realidade física da coisa, e agora eu parecia estar enfrentando a emocional, que se mostrava dolorosamente mais difícil porque ainda tinha muita coisa que eu não sabia como enfrentar. Tipo o fato de não querer, de jeito nenhum, ficar longe de Yoongi, mas não querer muito mais que ele perca uma oportunidade incrível que eu nunca teria… por minha causa.
Parecia egoísta, e eu estava tentando parar de ser egoísta.
— Não. Olha… — umedeci meus lábios secos, logo ficando sem palavras de novo. Eu precisava muito que ele não falasse aquilo que queria falar em voz alta, que não tornasse realidade ainda. — Desculpa, eu não quero ser insensível ou dar a entender que ontem foi algo menos do que perfeito, mas… eu tenho medo, Yoongi. Não quero que você se frustre por recusar algo tão importante, que convenhamos, é dezenas de vezes mais do seu nível do que a Drexel. E tudo bem que você veio pra cá em busca de paz e sossego, e talvez pra ajudar também, já que pagou o novo laboratório praticamente inteiro e se compadeceu com uma pobre garotinha que quer muito ser uma cientista respeitada, mas alguma hora você veria a verdade. Você veria que eu… — minha voz quebrou antes que eu completasse: você veria que eu não valho tudo isso. Veria bem rápido.
Olhei para os meus pés. Cada centímetro de pele formigava com uma espera inútil, e odiei ainda mais aquela coisa de jantar. Se já estivéssemos na minha cama, nada disso estaria acontecendo. Ou até mesmo naquele carro.
Ouvi o suspiro dele alto e grave, e me forcei a levantar a cabeça.
— Eu sinto muito, . — disse ele, com a voz solene. — Sinto muito que você se veja dessa forma.
— Que forma?
— Tão facilmente abandonável.
Engoli em seco. Não tinha qualquer expressão em Yoongi no momento, nenhuma alteração de sua voz sempre baixa e firme, mas senti como se uma BMW tivesse me jogado para longe de repente.
Ele se empertigou na cadeira quando não consegui responder.
— Sabe, ontem quando você tava falando aquelas coisas, você nem perguntou o que eu queria. Você estava brava porque eu não tinha te contado que estava indo para Londres, mesmo eu tendo repetido milhares de vezes que não tinha dado resposta. Você não estava zangada pelo fato de eu ir, e todo o lance de ficar longe de você. Pra você, já era uma decisão inquestionável: eu ir embora, abandonar tudo, porque é isso que se deve fazer quando aparece algo que você, , julga melhor do que a sua pessoa. Porque você jamais poderia ser o melhor.
Vi quando ele levantou o braço para bagunçar a frente do cabelo longo e tentar disfarçar os músculos que saltaram da mandíbula, sua expressão clara de desconforto com a própria raiva. Mas eu sabia que ele não estava com raiva.
E eu sabia que ainda não estava sentindo nada. O congelamento estava criando ramificações no meu cérebro.
— Eu entendo o que você diz da Drexel. Entendo o que diz de Londres. Realmente, é uma ótima proposta, e não tô questionando isso em momento nenhum, mas cheguei num ponto da minha vida que tenho coisas mais importantes a levar em conta antes de tomar uma decisão dessas além de dinheiro e prestígio. Sei que a ciência exige muita dedicação mental e física, e eu já fui essa pessoa que diria sim sem pensar duas vezes para qualquer oferta dessas que me pagariam muito bem pra que eu usasse meu cérebro como uma formiga operária. Mas a vida, … A vida de verdade, aquela que a gente só percebe quando para e olha em volta, ela é mais do que isso, muito mais. — ele suspirou, e seus olhos debaixo daquela luz amarelada ficaram bem maiores. — Eu estava perdido quando cheguei aqui. Não vim pra Drexel porque amo esse lugar de alguma forma, porque quero transformá-lo por inteiro, renovar o corpo docente, fazer uma revolução de paus e pedras pra pedir por melhores condições de trabalho, não. Já te disse uma vez e permaneço com a minha opinião de que lá serve para o básico, e acho que foi por isso que, quando eu decidi voltar, quis voltar para isso: um ponto básico. Voltar pra onde eu comecei a enxergar a vida com um pouco mais de cor, com mais lerdeza, que eu comecei a apreciar as simples coisas que existiam. E honestamente, , sei que aqui foi onde conheci Skylar e toda uma história começou pra mim, mas quando conheci você, entendi que esse lugar é capaz de dar flores nos contextos mais inusitados.
Uma pontada pequena e estreita de alguma coisa afundou bem no meu nariz. Cocei a garganta baixinho e Yoongi continuou:
— Eu só precisava recomeçar, precisava me mexer em alguma coisa absurdamente normal como ensinar para alguns alunos da pós o que é uma rocha sedimentar. Precisava voltar para a estaca zero, ir ligando o meu cérebro aos poucos porque tinha que olhar através da minha névoa e lembrar que a vida estava passando, que eu tenho alguém que precisa de mim e é exatamente por isso que preciso ficar bem, mas principalmente, exatamente por isso que preciso pensar duas vezes em tudo, absolutamente tudo, porque não sou mais o único afetado. Talvez por isso fiquei daquele jeito depois que te beijei no pub, por isso falei aquelas coisas, porque pela primeira vez em muito tempo eu agi sem pensar. E esse tipo de coisa não combina mais comigo, ou eu achei que não porque agora eu tenho um filho e não posso aspirar apenas no que eu quero. Isso pode parecer deprimente pra maioria das pessoas da sua idade, ou até pra pessoas mais velhas do que eu que estão mais preocupados em conseguir carros do ano ou promoções em laboratório, mas eu… ter uma família foi muito mais importante pra mim do que todos os títulos que já arrecadei na vida, .
Contorci o nariz para afastar a queimação. Também controlei a vontade de me levantar e abraçá-lo, nem que fosse por três segundos. Tinha uma agulha muito fininha descendo pela minha garganta, dificultando minha comunicação verbal.
— Eu… — cocei de novo para afastá-la. Parecia que os olhos tão atentos de Yoongi eram holofotes sobre mim, e tive a impressão maluca de que todos no restaurante estavam me olhando. — Esse tipo de coisa é um pouco difícil de entrar na minha cabeça. Você está certo, não pensei nem por um momento que você fosse recusar Oxford se não por outra coisa que te garantisse uma banheira de ouro e um BMW novinho. Isso é tudo que eu tenho, Yoongi. Tudo que você viu ontem, tudo que tá vendo agora, é tudo que eu conheço. Não consigo me imaginar desistindo de algo assim por… alguma coisa. Alguém.
Porque, no fim de tudo, você continua sendo egoísta e não vai mudar, vamos ser sinceras aqui! Minha mente acusou, causando uma pontada na minha costela. Queria ter algo para contrapôr a afirmação, mas existia uma crença absoluta em alguma parte de mim que estava batendo um martelo e dizendo que eu era assim e que não tinha escolha ou liberdade de ser outra coisa. Porque tudo estava no meu inconsciente, ou seja lá qual nome dão para o mais fundo da gente, aquela parte que não se alcança sem alguns perrengues de dor ou lágrimas.
— Eu sei. Eu sei muito bem disso, , acredite, prestei mais atenção em você nos últimos meses do que em todas paisagens que já estudei. — disse ele, esticando a mão para tocar um único dedo meu devagar por cima da mesa, e meu coração deu um salto violento dentro do peito. — E acho maravilhoso a forma como você sempre entende e respeita as prioridades das pessoas, porque também tem as suas próprias. Nem todo mundo é assim, eu te garanto. Por um momento, depois do pub, fiquei com medo do que poderia rolar entre a gente porque tinha medo de você se tornar muito importante pra mim. Importante ao ponto de ocupar um lugar abaixo do meu filho, ou ficar tão pareada com ele, e percebi que não me preparei pra isso. Que eu nem queria, na verdade. Achei que meu destino era ficar preso à memória de Skylar pra sempre, como se… como se eu ter pensado em continuar fazendo meu trabalho naquela época, viajar mais uma vez para o Japão, e ter pedido pra que ela fosse me buscar, tudo que aconteceu tinha sido culpa minha. Achei de verdade que nunca mais iria gostar de ninguém, e realmente não gostei, . Depois que eu já estava aqui, lentamente já comecei a voltar a pensar nela sem dor, sem aquela culpa, sem toda essa coisa ruim. Daí, lembrei que tinha prometido a ela que um dia faria uma coisa boa pra esse lugar porque foi nele que a vi pela primeira vez, mesmo que não tenha sido onde me apaixonei por ela, mas Skylar amava uma parte daquele lugar pelos próprios motivos. Foi quando decidi reformar o laboratório, mesmo sem saber o que faria com ele, já que eu tinha me contentado com a vida fora da pesquisa. Logo, você apareceu. — ele soltou um suspiro que logo veio acompanhado de um sorriso pequeno, como se Yoongi tivesse pontuado aquilo tudo no papel e gostado do resultado final. — O básico. Sempre funciona.
Tentei fazer com que a minha lógica parasse de espiralar e me deixasse absorver a coisa enorme e incrivelmente linda que Yoongi estava dizendo, de preferência que eu conseguisse lhe dirigir um sorriso e dizer o que meu coração estava explodindo para dizer, mas meu cérebro insistia em firmar raízes no polo norte.
— Você… Yoongi… — tentei, implorando para mim mesma: por favor, acredita nisso, você pode acreditar, não é uma falácia que um atleta idiota está te dizendo depois de uma rodada de sidra no Mango’s em plena quinta-feira. O que esse homem sente não é irrelevante, ! Nada de ruim vai acontecer! Ele é diferente pra você, então por que é tão difícil acreditar que você possa ser diferente pra ele também? Yoongi acariciou agora dois dedos meus.
— Desculpa estar jogando tudo isso de uma vez. Eu não quero te assustar, . Meu Deus, me sentiria um bosta se assustasse você. Só quero deixar as coisas claras, porque quero que você esqueça Londres. Honestamente, mesmo se eu não tivesse te conhecido, provavelmente não aceitaria a proposta. Eu pretendia ficar aqui, . Queria ficar na Filadélfia, ter um emprego comum que me desse mais tempo com meu filho, com horários fixos de saída e de entrada, e nenhum aborrecimento com política acadêmica. Não tinha planos de pegar orientandos, participar de reuniões de bolsas, traçar novos projetos, nada disso. Essa euforia tinha ficado no passado pra mim. Quando fui ao seu laboratório, minha intenção era te rejeitar. Eu queria de verdade, desesperadamente, que você abandonasse a imagem que tinha de mim na sua cabeça, desse Augustus de um pedaço de papel que não parecia mais eu, parecia apenas uma farsa. Entrei no laboratório e de cara já percebi toda a inocência que você carregava, seus propósitos que podiam ser lindos, mas que provavelmente seriam sucateados pela academia. Eu não sabia se você podia lidar com isso. Mas… — ele deixou sair uma risada rouca, tridimensional. — De repente, percebi que me enganei. Eu não queria te rejeitar de verdade. Desde a primeira vez que li sua pesquisa, fiquei animado, quis ver mais de perto, senti o que eu não sentia há muito tempo, e isso era apavorante. Uma pista de que eu ainda era eu, que ainda amava Geologia, amava cada centímetro natural e impressionante da Terra e amava observar as coisas. Quando te provoquei, eu só queria ver mais fundo, olhar pra dentro de você. E você me surpreendeu em tantos níveis que nunca vou saber explicar. Senti que era você. Que você era alguma coisa. Mas a cada dia que passa tenho mais certeza que já saí daquela sala pateticamente apaixonado por você.
Em algum momento entre aquilo que saiu da boca de Yoongi e meus olhos ficando embaçados como um paciente de catarata, o garçom chegou com o cheiro pungente de frutos do mar e outras iguarias, tudo sendo colocado no centro da mesa e palavras sendo proferidas, agradecimentos feitos, outros cochichos e perguntas, tudo isso passando na minha frente através de um vidro fosco de chuva, enquanto eu só conseguia olhar para o cara de terno na minha frente, que tinha acabado de dizer que estava apaixonado por mim. O “Perigo!” que meu cérebro estava avisando que estava chegando.
É vergonhoso como a ansiedade funciona. Você é tomada por uma sensação muito próxima da morte, seu coração quase sendo capaz de pular para fora da caixa torácica, medo e terror passeando pelo seu corpo como blocos de gelo da Antártica, toda essa loucura acontecendo antes do Fato. E daí, quando o tal Fato tenebroso acontece, você não sente nada. Toda a energia acumulada simplesmente explode da sua carne.
Percebi, pela reação constrangedora que tive, que morria de medo de ouvir aquilo de Yoongi. Morria de medo de ser real. Porque me tornava responsável de alguma forma e, diferentemente de quando Wonwoo disse isso para mim, com Yoongi eu só tinha medo de não saber arcar com essa responsabilidade, e não que eu não queria arcar.
— Yoongi… — tentei, mas se mostrou inútil. Eu já estava em um mini surto silencioso ali mesmo.
Provavelmente, não estava tão horrível assim de ver, já que Yoongi não olhou para os lados e nem fez sinal para que eu parasse, perdendo a paciência. Ele apenas se inclinou para mais perto, agora pegando toda a minha mão.
— É por isso que, sim, eu rejeitei Londres. E sim, você teve grande impacto nessa decisão, assim como anda tendo em várias outras antes disso, e juro que não pretendia te fazer chorar quando contasse, sinto muito. — ele tinha uma voz tremendamente arrependida. Balancei a cabeça, secando uma lágrima que desceu tão rápido antes mesmo que chegasse ao queixo. — Mas preciso dizer isso agora, : é melhor mesmo se dedicar para ser a melhor cientista que esse país já viu, porque preciso que você entre em Harvard no ano que vem. Porque eu vou estar lá, e quero você comigo. Porque tá na hora da gente sair do básico e ir pro intermediário, nós dois. Sei que você tem suas dúvidas e medos, eu também tenho, mas estamos prontos pra isso, eu sei que estamos. Então, por favor, não pensa nunca mais que você vai ganhar meu coração e não ter um lugar de importância na minha vida e nas minhas ações. Comigo não, . Demorei muito pra sentir uma coisa dessas de novo, e quero muito continuar pra ver quais outras coisas você vai me fazer sentir.
Funguei violentamente. Por incrível que pareça, meu batimento foi acelerando aos poucos, lentamente, até todo o controle das minhas células cardíacas ir embora.
— Eu posso… te fazer sentir muitas coisas, senhor Min. Sabe, eu deixo muito cabelo no ralo do banheiro. Isso irrita as pessoas.
— Eu já esperava. Você tem um cabelo lindo.
— Eu falo dormindo. — sequei mais uma lágrima. Yoongi deu de ombros.
— Tenho o sono pesado.
— Demoro semanas pra lavar os meus tênis porque tenho preguiça de esfregar as solas.
— Eu tenho uma ótima máquina de lavar. — ele puxou meus dedos para beijá-los. Quis chorar de novo, mas me controlei.
— Eu gosto muito de iogurte. Tipo muito. E não gosto que mexam neles.
— Existe o carro do iogurte em Boston que tá sempre de passagem, é muito melhor que o de sorvete. Posso comprar ele inteiro se você quiser.
Eu ri, e o som foi áspero e pegajoso, mas não me importei.
— Eu nunca cuidei de ninguém. — admiti em um sussurro muito rouco e tristonho, uma pontada de medo saindo exclamada do meu tom. Não precisei explicar o que aquilo queria dizer. Ele sabia muito bem.
Yoongi me olhou por um longo tempo, absurdamente longo, como se eu fosse a formação rochosa mais bem trabalhada do Grand Canyon.
— Tá tudo bem. A gente pode cuidar de você. — ele entrelaçou os dedos no meu. Meu coração cravou naquela palavra: a gente. — E aí, quando você estiver se sentindo 100% merecedora disso, como você de fato é, aceitamos o que você conseguir nos dar. E , você já nos dá muito.
Não conseguia imaginar o que exatamente eu estava dando ou fazendo para que ele falasse aquilo, mas apenas balancei a cabeça e funguei de novo.
— Você acha que o Jihoon… Acha que ele vai ficar com raiva de mim? Ou talvez…
— Não precisa se preocupar com o Jihoon. — Yoongi estava tranquilo. Ainda procurei uma bordinha de hesitação, mas não encontrei. — Ele já sabe de tudo.
— Como assim já sabe?
— Lembra que eu disse que não faço mais nada sem pensar nele? — deu de ombros. — Ele foi o primeiro a saber. Era a única opinião que eu precisava.
Tentei imaginar aquela cena. Tentei imaginar tudo que ele estava contando, e senti uma onda avassaladora de amor por Yoongi, um amor poderoso ativado pela sua simples postura de certeza em relação a mim. Ele já tinha me incluído em tudo, só estava ali para me avisar isso.
E de novo: isso era tão, mas tão excitante.
— Você é um miserável. — grunhi depois de processar tudo. Ele vincou a testa. — Como quer me dizer tudo isso, falar que tá apaixonado por mim, que vai pra Harvard por mim e ainda querer esperar o jantar?
— É que eu achei… Eu pedi uma sobremesa de limão…
— Min Yoongi.
— Com licença! — ele fez sinal para o primeiro carinha de smoking que passou. — Traz a conta, por favor.
Tentar explicar exatamente o que aconteceu na saída do restaurante, no caminho para o carro, depois o caminho até a casa de Yoongi e depois para o quarto dele seria mais difícil do que explicar o princípio de Heisenberg. Pouquíssimas pessoas tinham coragem de elucidar isso, então, com toda honestidade do mundo, só me toquei de algo do plano terrestre quando já estava literalmente lá dentro, naquele cômodo escuro e moderno, sendo devorada pela boca dele enquanto tirávamos as roupas complicadas que um jantar chique pedia.
Digo, roupa complicada para ele, todo cheio de amarrações e botões, enquanto eu, na maior simplicidade, puxei o vestido para cima e joguei os sapatos para o lado, revelando o meu único preparo consciente para aquele encontro: minha única lingerie combinando que Belle e eu achamos numa liquidação há dois anos e ficava guardada em um porta casaco, dentro do plástico ainda, somente aguardando o momento certo de uso.
No meu caso, era minha primeira vez exibindo aquele tecido branco com linhas vermelhas para alguém que não fosse Belle e meu espelho de corpo inteiro. A reação foi melhor do que eu esperava: Yoongi parou de se despir, tentou elogiar, falar, cacarejar, mugir, qualquer coisa, e nada escapava. Se não for para transformar um homem são em uma mula patética ao te ver tão gostosa, nem se dê ao trabalho.
A única coisa que ele poderia fazer era avançar sobre mim e me beijar como se eu fosse uma miragem prestes a desaparecer. Desci minhas mãos sobre seu peito, puxando os botões que ele tinha deixado para lá e terminei de tirar, passando logo para baixo e desfazendo seu cinto com uma enorme satisfação. Tinha algo de júbilo nisso ou era um fetiche particularmente meu.
— Você é a coisa mais linda que eu já vi. — ele murmurou no nosso aperto mútuo, enquanto descia os olhos para avaliar o que já tinha avaliado sob a luz do sol, e agora iluminado pelas suas lâmpadas amareladas em cantos estratégicos do quarto, não no teto. Algum dia, vou sugerir que a gente transe debaixo de várias potências de luz, só para dar a desculpa para ser olhada daquele jeito sempre. — Quero muito chupar você.
Eu sabia disso, porque mesmo que eu estivesse lutando contra o seu zíper e puxando a calça para baixo, Yoongi já estava com os dedos entre as minhas pernas, pressionando o ponto quente e molhado que já estava quente e molhado desde que entrei no carro dele no início da noite. A calcinha já estava arruinada.
Mas rebolei em cima de sua mão e murmurei na sua boca:
— Hoje eu sou a primeira.
Ele tentou rir enquanto se livrava do resto da calça. A ereção saltou para fora, totalmente dura e de pé, quase chegando ao umbigo dele.
— De jeito nenhum.
— Vai tentar me impedir? — agarrei seu pau, com pulsações e veias e tudo, já meio úmido e muito cálido, e Yoongi soltou um arquejo na minha frente. — Você tá meio sem força, soldado.
— Isso foi baixo, . — ele trincou os dentes, e comecei os movimentos de vai e vem. Ele apertou o dedo mais ainda em cima do meu clitóris e tentei controlar meu pulo. — Você parece estar precisando muito.
— E você está há três anos na seca. A não ser que tenha recebido um boquete em algum banheiro público de festival em Seul.
Ele riu grosso no meu ouvido. Arrepiou o meu corpo inteiro.
— Só recebi o seu, direto da minha imaginação, me perturbando por dias desde que te conheci.
— Então bateu punheta pensando em mim?
— Acho que bati mais punheta na semana passada do que em toda a minha adolescência.
Gargalhei. Não sabia como isso tinha o poder de me deixar ainda excitada.
— Isso foi um dado interessante ou preocupante.
— Nunca fui um cara muito imaginativo, então é só interessante.
— Tudo bem, vou ficar feliz em materializar isso pra você. — lambi seu lábio e comecei a me abaixar para ficar de joelhos, mas ele travou meus braços.
— Não, não abaixa. — Yoongi ofegou, e nos puxou para a cama. — Aqui, eu… eu quero ver. Empinada. Quero tocar em você também. Por favor.
Não era hora de derreter apaixonada, e nem o contexto, mas de repente suspirei e assenti, porque alguma coisa em mim liquefazia quando ele dizia “por favor” e “obrigado”, como um príncipe medieval de cachinhos dourados. Não me dava vontade de dizer não, mesmo se ele dissesse: “Posso amarrar você em um tronco de madeira, te vendar com fita isolante e colocar uma maçã na sua boca enquanto faço o anal mais eletrizante da história, que vai com certeza prejudicar sua capacidade de sentar nas próximas duas semanas? Por favor?”
Meu Deus, era mais afrodisíaco do que bizarro.
Sendo assim, empurrei Yoongi para que ele se deitasse e andei de quatro até a sua lateral, empinando para cima e agarrando seu pau com as duas mãos antes de colocá-lo na minha boca.
Como uma mulher na casa dos vinte anos que sempre soube curtir a vida, já tive minha cota de apreciar pênis o bastante para me fazer chegar à conclusão de que esse ato era um tanto subestimado, já que a vontade de fazer isso dependia muito mais do cara. Nesse caso, seguindo por essa lógica, posso afirmar com toda certeza que teria prazer em chupar o doutor Augustus D. pelo resto da minha vida.
Enquanto eu movia a cabeça, tentei olhar para ele e colocar tudo para dentro, fazer a famosa garganta profunda que já tinha dado ruim com um cara que saí há um ano e que foi um completo bosta depois, dizendo que eu nunca conseguiria por ter um corpinho petit, mas que ele adoraria desbravar os meus limites mais vezes. Nunca tive tanto prazer em chutar o pau de um babaca. O que eu queria mesmo era jogar uma enorme porção de hidróxido de potássio ali e sumir com todas as provas de que já botei a boca naquele órgão genital, mas o chute já me deixou bem melhor.
Eu não sabia explicar o de Yoongi. As reações dele me faziam sempre querer fazer mais e mais e mais, coisas que nunca fiz mas adoraria tentar. Seus dedos entraram fundo no meu cabelo enquanto ele erguia as costas, fissurado no movimento de vai e vem da minha boca, ao passo que eu estava fissurada em, parafraseando o antigo babaca, testar os meus limites. Queria engoli-lo inteiro se pudesse. Amei o seu gosto. Amei suas mãos desesperadas pelo meu quadril, meu clítoris quente, meu cabelo quando o agarrou com uma força quase bruta, sua respiração entrecortada, sua dificuldade em se manter parado e não meter dentro da minha boca como um desvairado pervertido. Gostava disso, gostava de ver que ele também tinha que se controlar para não parecer um alfa reprodutor no mundo animal.
— , não quero gozar agora. — ele disse em uma lufada de ar, e por um momento, eu quis aumentar os movimentos só para sentir seu gozo. — Isso tá… porra, tá muito bom. Você tá molhada pra cacete.
Ele disse em súplica, sofrimento, um homem algemado no corredor da morte. Imaginei o que ele devia estar sentindo por ainda estar me vendo de lingerie, e ergui a cabeça, limpando a umidade devagar ao redor da minha boca, sorrindo para ele. Yoongi respirava com uma dificuldade escrota; tinha polos de suor no seu peito, as pupilas ainda mais dilatadas do que no restaurante.
O fogo que já estava queimando em mim aumentou as labaredas por toda a parte.
— É o seguinte… — comecei, desabotoando o sutiã e o jogando para o lado. — Tive quase 48 horas pra pensar em uma questão e preciso que você diga o que acha. A propósito, a questão era o seu pau. — coloquei os dedos no elástico na calcinha. Yoongi automaticamente ergueu a mão para agarrá-la, em um movimento involuntário. — E também o quanto quero gozar de novo quantas vezes eu puder, e o quanto você meteu gostoso em mim como um ator pornô. E eu queria…
— … — ele soltou o ar audivelmente, agora colocando uma palma inteira na parte frontal, puxando o tecido inteiro para baixo, visualizando seu paraíso. — Tô tão duro que tá doendo. Diz logo o que você quer porque eu duvido que eu diga não.
Por um instante, fiquei em silêncio, morrendo de calor e tesão, engolindo em seco várias vezes.
— Eu tomo pílula há três anos.
— Eu imaginei. — ele olhou para mim por um instante antes de afundar a mão inteira dentro da minha calcinha. Inteira. — Ou tinha esperança…
— Tinha esperança? — desci mais o tecido, ficando exposta. Yoongi estava me sentindo contrair. Era torturante até para mim. Ele assentiu com esforço.
— De sentir você com tudo. Cada parte. Quero muito isso.
— Tô louca pra sentar em você agora. — tirei o resto da calcinha. Andei um pouco por cima dele. — Mas quero que você tenha certeza.
— Certeza?
— De que confia em mim.
Yoongi riu. Foi a única vez que se deixou sair um pouco da névoa de depravação.
— Disse que tô apaixonado por você, não sei como dar mais certeza que isso. Se tiver outro jeito, pode me falar agora.
Meu peito retumbou. Não dava mais.
— Já basta.
Pulei por cima dele, me encaixando mais rápido do que nunca e, quando senti ele dentro de mim, me surpreendi com meu gemido de puro alívio. Ergui o tronco inteiro na sua direção e apoiei uma mão na cabeceira da cama, de algum modelo acolchoado e de couro, subindo por vários metros até a metade da parede. Deixei todo o meu instinto e todas as fantasias e tudo que pensei dele nos últimos dois dias virem à tona, mexendo a cintura enquanto o ouvia gemer debaixo de mim, as mãos abraçando minha bunda, a língua e os dentes raspando pela minha costela, o meu esterno, meus seios pulando, enquanto eu forçava meu fôlego a continuar, forçava o ar a permanecer nos meus pulmões enquanto alternava entre quicadas, reboladas e momentos em que simplesmente ficava parada e deixava ele meter por baixo de mim.
E quando ele fez isso, foi quando gritei e todos os meus neurônios inteligentes congelaram e ficaram em silêncio enquanto eu explodia sem pudor, sendo lançada para fora de qualquer bolha de dignidade em que já estive algum dia. Ele era muito mais rápido do que eu e muito mais resistente, porque continuou mesmo depois que gritei e gozei como uma desesperada.
O líquido desceu por mim, umedecendo ele inteiro, as contrações em volta do seu pau acontecendo por vontade própria, a coisa mais deliciosa que já provei. Yoongi disse uma série de palavrões, o pau a ponto de jorrar, me deixando genuinamente chocada em como ele não tinha gozado ainda. Mas eu estava prestes a entender.
— Fica de quatro. — ele disse, com uma voz tão autoritária e séria que me fez tremer mais do que eu já estava tremendo. — . Agora.
Nunca vou saber explicar também porque obedeci tão rápido. A voz dele dita daquele jeito me excitou até mais do que sua educação pomposa na cama. Ele não parecia estar nem tendo noção disso. Só me viu ajoelhar e me empinar, deslizou as mãos lentamente desde a minha nuca até minha bunda, resmungando coisas diversas sobre eu ser uma gostosa, a coisa mais perfeita já nascida no continente americano e contemplando uma imaginação particular de que eu ficaria ótima em uma escultura de cera, exatamente naquela posição.
Outra coisa bizarra que me excitou, qual era o meu problema?
Yoongi entrou em mim, muito lentamente.
— Porra… — engasgou. Os dedos apertaram tanto minha pele que doeu. — Tem certeza, ? Posso mesmo gozar em você?
— Por favor. — nem acredito que a palavra saiu tão simples e rápida da minha boca. Nunca tinha dito aquilo para homem nenhum. — Por favor, Yoongi…
O fogo do tesão tinha incinerado meus neurônios. É oficial.
Não que eles estivessem errados. Talvez só estavam trazendo à tona o que eu guardava lá dentro: queria loucamente, compulsivamente, perigosamente que ele gozasse em mim. Dentro, fora, onde fosse.
Meus joelhos tremeram quando ele estocou com força, depois de novo, e de novo. Aquele colchão de preço com certeza elevado estava afundando sob as minhas mãos, mas Yoongi puxou minha cintura para cima de volta, me mantendo empinada enquanto fazia o trabalho que balançava meu corpo inteiro. Não vi saída a não ser gritar, e agradeci por Belle estar passando a noite com Jihoon, porque aquele garotinho não merecia escutar aquilo. Os dedos de Yoongi continuavam apertando minha pele com tanta força, me deixando tão afobada, que comecei a me mexer, balançando, rebolando, querendo desesperadamente algo que não sabia o que era, só que estava me matando, esmigalhando por dentro. Porra, eu precisava de outra volta na montanha-russa, precisa de algo que rasgasse aquela expectativa dolorosa…
— Yoongi! — a voz saiu temerosamente com força da minha garganta. — Cacete! Me bate!
Ele me bateu antes que eu chegasse na última palavra. Me bateu com tanta força que quase pulei como um gato, e se os gritos de antes estavam chegando até o final do corredor, aquele de agora tinha ido até a vizinhança.
— Porra, finalmente você pediu. — ele arfou em um enorme alívio, puxando meu cabelo para trás e passando a língua pelo meu pescoço, minha orelha, enquanto não parava de meter em mim. Fazer duas coisas ao mesmo tempo, sua especialidade. — Me diz o que você precisa pra gozar agora.
— Cala a boca. — levei uma mão até o seu cabelo, a cabeça virada para a frente, as noções de tempo e espaço me escapando. — Cala a boca e goza em mim, pelo amor de Deus.
— A sua bunda é incrível. Ficaria admirando ela a noite inteira. — de novo aqueles dedos prejudicando minha circulação sanguínea. Da onde ele tinha tanta força? — Deixa eu te comer nessa posição pra sempre.
— Deixo. — outra coisa absurda que simplesmente estava escapulindo. — O que você quiser, eu deixo.
Yoongi rosnou um impropério não identificável e recebi mais um tapa logo antes de ele aumentar significativamente os movimentos e explodir para dentro de mim, ao mesmo tempo em que a surpresa de eu explodir junto aconteceu, gerando uma sensação que nunca, jamais senti na vida. Se fosse algo físico, eu guardaria num embrulho no fundo da gaveta e seria enterrada com ele. Até emolduraria em um quadro, que não seria exposto em nenhum lugar livre da casa, é claro. Porque com certeza seria algo bem obsceno, mesmo que de alguma forma muito lindo.
Quando voltei a vida, meu corpo inteiro estava estirado no colchão de bruços, a respiração saindo em lufadas longas e espaçadas, Yoongi em cima de mim ainda com as mãos em volta da minha cintura e jogando seu hálito quente e exausto pela minha nuca suada.
— É por isso que nunca vi sentido na punheta. — ele gorgolejou no meio do meu cabelo, espalhando beijos em alguma parte de mim. — Nada é melhor do que isso aqui. Nunca vai ser.
Eu provavelmente deveria ter respondido com alguma coisa séria e filosófica, ou rido arrogantemente e concordado, ou simplesmente continuado parada recuperando o fôlego, mas meu organismo estava tão lotado de libido, e o cérebro tão bêbado do orgasmo que acabei dizendo:
— Obrigada por ter me batido. Eu amei.
Eu tinha errado feio quando pensei que Min Yoongi, o grande Augustus D, célebre geólogo com a cabeça sempre cheia de rochas e solos, pai solteiro e músico nas horas vagas levaria seu vale night a um limite bem estabelecido de horas. Só o fato de ser pai já me trazia a imagem de um homem com horários certinhos de dormir, que mesmo assim não dormia porque ele tinha uma criança para cuidar e crianças tinham questões particulares com sono todos os dias, e depois tinha que trabalhar raciocinando, o que também o deixava com mais sono, e ele seria eternamente alguém que precisava dormir.
Mas quando eu estava caindo naquele colchão depois de sei lá, talvez umas três horas, pelada e embolada no que um dia já foi um jogo de lençol macio, puxando todo o ar que conseguia depois de gritar e espernear como uma maníaca por causa de uma língua furiosa fazendo sei lá o quê no meu clitóris, percebi que tudo que aquele homem menos queria fazer, era dormir.
Bufei. Eu era a tira fina e remendada de um trapo. Meu cabelo estava um desastre, as pernas não paravam de tremer há trinta minutos, meus lábios estavam inchados, o suor grudava em volta do meu pescoço e nas costas, e todas as partes em que ele me tocou estavam vermelhas para roxas.
E ele estava deitado do meu lado, rindo, sonhador, na mesma condição física do que eu, mas parecendo infinitas vezes mais descolado, como se estivesse flutuando na nuvem voadora do Goku.
— É sério… — falei, a voz parecendo a de um fumante. — Onde você aprendeu a fazer isso?
Yoongi riu mais um pouco, dando de ombros levemente.
— Em lugar nenhum. Eu só gosto de fazer.
— Quando percebeu que gostava de chupar uma garota como se chupasse uma laranja? — arfei. — Ai, meu Deus, você aprendeu com a laranja, não foi?
Agora ele gargalhou. Virei a cabeça para observá-lo, o suor brilhando sob a luz.
— Isso é muito esquisito, linda. Acho que eu nunca mais vou chupar laranja de novo depois dessa.
— Eu nunca te vi com uma laranja. — semicerrei os olhos.
— Não foi com uma laranja, sinto te decepcionar.
— Então quando você começou?
— Sei lá. Na faculdade?
— Você não fez sexo no ensino médio? — arqueei as sobrancelhas — Nerd.
— Eu tive uma namorada no ensino médio, e ela não curtia que eu fizesse a boceta dela de laranja.
— Ela tinha algum problema mental? De autoestima? Era psicopata?
— Provavelmente, era porque eu nunca vou fazer um oral tão bom quanto o que uma mulher faria nela.
Apoiei o corpo pelo cotovelo, começando a rir.
— Ai meu Deus, nunca imaginei que Augustus D. tivesse namorado uma lésbica.
— Ela não sabia que era lésbica, e quando descobriu foi ótimo, porque me fez parar de pensar que eu tava fazendo tudo errado.
— Eu duvido que você já tenha feito algo errado. — beijei seu ombro.
— Provavelmente já, mas as garotas da faculdade não sentiam necessidade de ficar falando.
— Acho que eu queria ter te conhecido na faculdade. — apoiei meu queixo no seu peito para olhar seus olhos. Yoongi desceu as mãos pelas minhas costas.
— Não seria muito legal, considerando que você tinha uns oito anos.
— Enquanto você estava fazendo sexo com um monte de universitárias. Que linda história de amor.
— Eu estava sendo babaca com um monte de universitárias, isso sim. — ele balançou a cabeça e me deu um beijo levinho, com gosto de suor e gosto de mim mesma. — É sério, eu era um idiota na graduação. Você não ia querer me conhecer.
— Que tipo de idiota? Ir pra uma festa de fraternidade, beber e acordar com uma estranha? Fugir da cama dela de manhã? Tomar cerveja com antibiótico? Os caras ainda fazem isso.
— Eu não tenho orgulho da parte do ir embora de manhã. Mas as minhas aulas eram sempre bem, bem cedo.
— E elas apareciam no seu dormitório depois, brandindo facas e dizendo: “eu ou a Geomorfologia, qual dos dois?”
— Não tinham as facas.
Ri mais uma vez, jogando o corpo um pouco mais para cima dele.
— É isso? Acha que foi um babaca porque priorizou a sua carreira?
— Não exatamente. É que eu demorei pra entender algumas regras sociais. — seus dedos fizeram carinho na minha costela, enquanto ele colocava um braço embaixo da cabeça. — Quando eu estava com Nick, Elliot e Dwight, a gente curtia umas festas, ficava chapado, conhecia algumas garotas. No caso do Dwight, alguns garotos também. Talvez ia mais fundo, se a coisa fluísse bem. Provavelmente, se a primeira noite tivesse sido boa, a gente se encontrava mais vezes pra repetir, mas tudo perdia o sentido muito rápido pra mim. E eu ficava um tempão tentando entender porque a mesma coisa não acontecia com elas. Talvez eu tenha sido um estúpido aí. — ele deu de ombros. Franzi o cenho, sem entender. Ainda não estava vendo o grande motivo para ele falar de si mesmo daquele jeito. — O lance é que eu fui criado pra ser, digamos… respeitoso. Educado com as mulheres, provedor…
— Um cavalheiro de armadura que tira a capa pra eu não molhar os saltos? — completei com provocação. Yoongi assentiu.
— É, exatamente isso. E não vou dizer que discordo desse discurso, de jeito nenhum, algumas coisas arcaicas devem ser melhoradas, mas respeito e educação continuam sendo respeito e educação em todos os tempos. A coisa é que pra mim sempre foi básico pagar o jantar, deixar a garota em casa, perguntar sobre a sua vida, mesmo que essa última parte fosse mais porque eu nunca estava afim de falar da minha. Era chato ter que explicar que eu não era japonês, não estava cursando Matemática ou Engenharia e que o dinheiro da minha família não vinha de uma firma de petróleo. Eu evitava tudo isso fazendo perguntas pra que elas continuassem a falar, e fazia o que elas estavam afim na cama. Sempre me pareceu mais interessante servir uma garota do que o contrário. Mas mesmo assim, eu nunca quis namorar sério. Não achava que uma coisa dessas cabia no meu tempo, nos meus objetivos. Tratava uma garota com atenção porque era o básico, até entender como algumas não estavam preparadas psicologicamente pra isso, porque interpretavam certas coisas de uma forma errada. Essa é a parte do babaca.
Pisquei, abrindo a boca.
— Ah, Deus, você iludia as pobres coitadas.
— Não, não. — ele balançou o dedo em negação. — Eu sempre deixava claro minhas intenções no início. Eu não tinha problemas com isso, e elas concordavam, mas eu continuava sendo… eu. E por isso, algumas delas surgiam na porta do meu quarto pedindo explicações porque me viram conversando com outra na fraternidade e esse tipo de coisa.
— Conversando?
— Talvez tivesse uma língua envolvida.
Dei um tapa no seu peito, rindo.
— Eu sabia que o seu sorriso cafajeste tinha nascido de algum lugar.
— Eu não tenho sorriso cafajeste.
— Nenhum cara tem sorriso cafajeste sem ter sido cafajeste algum dia. — pontuei, raspando as unhas na pequena ruguinha ao lado de sua boca. — E você tem razão, eu iria odiar você na faculdade. Graças a Deus estava muito feliz brincando de chá da tarde com as minhas bonecas sem olhos.
— Eu mudei depois, . Não comecei a virar um completo idiota com mulheres, mas só me envolvi com garotas que eu realmente gostava. O que tornou minha vida amorosa um escandaloso tédio.
— Interessante. Parece que é mais fácil entrar na Casa Branca do que no seu gelado coraçãozinho.
— Ele não é gelado, só era meio… esquisito.
— Esquisitinho do tipo vale sombrio do Sauron?
— Sauron? — sua testa enrugou.
— É, Sauron. Monstro do mal, roubou o anel do poder, fez um bando de Hobbits passar o inferno para buscá-lo…
— Ah, tá falando daqueles anões?
— Eles não são anões! — guinchei, revirando os olhos. Yoongi riu e segurou meu rosto. — Existem os anões e existem os Hobbits. Uns usam sapatos e os outros não.
— Por que alguém não usaria sapatos?
— Porque eles não precisam. E os pés deles são enormes.
— Como podem ter pés enormes se são anões?
Bufei. Como uma grande fã de Senhor dos Aneis, deveria me sentir ofendida com o fato de o cara que eu tinha acabado de pedir para me bater não saber o que era um Hobbit. Mas, acabei rindo e beijando seu nariz de levinho, porque estava vendo o grande Augustus D. com dúvidas em alguma coisa, e isso era muito melhor do que bancar a sabichona.
— Parece que eu, finalmente, tenho alguma coisa pra te ensinar.
Se alguém dissesse para a de três meses atrás que ela teria uma noite de sexo perto do selvagem com Augustus D. e depois acordaria de conchinha com ele, ela provavelmente morreria de rir, depois vomitaria nos sapatos do mensageiro e aí sairia correndo sem olhar para trás.
A maior parte dos fãs do doutor D. não fazia piadinhas de cunho sexual sobre ele. Para eles, esse nome reluzia em ouro e merecia ser eternizado em uma estátua de bronze bem ao lado do obelisco de Washington, porque uma mente tão brilhante com certeza devia vir de um vovôzinho que morava no alto de alguma montanha no Nepal, observando a paisagem através de óculos escuros e registrando tudo no seu caderninho de Geomorfologia, pronto para soltar mais afirmações geniais sobre rochas do período Carbonífero enquanto bebia suco detox.
Era uma imagem muito legal de se ter do seu ídolo, mas não é nada que te cause tesão ou pensamentos pervertidos por ele. Se existia alguém assim no Geologáticos, essa pessoa sabia bem guardar suas fantasias no mais fundo da mente, covardes demais para deixar isso escapar no meio do fórum (e se deixassem, seriam banidos da comunidade ou taxados de gerontológicos, o que era tão pesado quanto uma ficha criminal).
Aparentemente, virei uma dessas pessoas. Não alguém com fetiche em idosos, claro, mas aquela com um repertório de adjetivos sobre Augustus que poderia ser usado facilmente no script de qualquer filme pornô.
Porque, sim, ele era mesmo gato. E era gostoso. E, de fato, tinha transado com ele (por muitas e muitas horas).
E, na manhã seguinte, estava mesmo acordando com os braços dele em volta de mim, enquanto um montante de luz do dia entrava pela janela.
Por um momento, estava grogue demais para me dar conta do que estava acontecendo. E, quando dei, meu instinto primitivo forjado em alguma fase perturbada da minha vida me fez arfar de susto e chegar para o lado, sentando na cama com as costas rígidas enquanto olhava ao redor.
O quarto não era meu, a casa não era minha, a cama muito macia e confortável definitivamente não era minha, as cortinas até o chão (lindas, por sinal) não eram minhas. Já o corpo nu e com alguns chupões na coxa e na barriga era meu, bem próximo de um outro tronco pelado com arranhões vermelhos e intensos nos braços e na região dos ombros…
Minha adrenalina foi passando. O rosto de Yoongi estava afundado no travesseiro, a respiração lenta e serena, o braço que estava em cima de mim agora pendendo mole no colchão, como se ele nem tivesse notado que eu levantei daquele jeito.
Gritei para o meu cérebro: é o Yoongi, pelo amor de Deus. Para de surtar! Sei que você nunca dormiu com um cara, e nunca passa a noite fora da sua cama, mas está tudo bem!
Tirei o peso totalmente imaginário dos meus ombros. Voltei a deitar ao lado dele, me aninhando perto, passando a mão pela sua costela e abraçando aquele torso quente e confortável, fungando seu cheiro do pescoço e a base do queixo.
Yoongi começou a acordar. Ele murmurou, um pouco zonzo, e depois, com mãos impacientes, deslizou por toda a minha pele fora do lençol.
— ? Tá tudo bem? — perguntou, ainda embriagado de sono. Assenti, a cabeça no seu peito.
— Aham. Eu acho que tive um pesadelo.
— Que pesadelo?
— Sei lá. Acho que a cidade estava sendo dominada por um Mitsubishi branco.
— Mitsubishi… o carro?
— Isso.
— Um carro falante?
— Não me chama de louca, você sabe que os Transformers existem.
Ouvi sua risada rouca em cima da minha cabeça e aspirei mais o seu cheiro, sentindo uma coisa muito parecida com estar em casa. Esperava que meu coração acelerando forte não fosse tão perceptível assim.
— Ah, caramba, falando em carro… que horas são? — ele girou o corpo para a mesinha de cabeceira, onde um despertador digital moderno apontava 7:00 da manhã. — Nossa, dormi demais.
Yoongi me deu um beijo rápido no alto da cabeça e começou a sair da cama.
— Achei que íamos pegar o Jihoon às 8:30. — me sentei de novo. Ele andou pelo quarto até puxar uma calça de moletom dobrada em cima de uma poltrona, escondendo seu estado “meia bomba” para longe da minha vista.
— Eu sei, não é isso, só preciso deixar a mensagem antes que ele volte.
— Que mensagem?
Yoongi jogou o cabelo para trás, olhando para mim sob aqueles olhos que ainda estavam com uma enorme nuvem de sono.
Então, deu aquele tique no canto da boca, indicando um sorrisinho que, graças a Deus e às minhas gramíneas, eu recebia sempre.
— Vem comigo.
Ele estendeu a mão e eu aceitei, vestindo sua camisa social do jantar e fechando os botões enquanto saíamos do quarto e cruzávamos o corredor grande até a outra porta lá no fim, perto da escada. Estava impressionada com minha pressa para ser comida no dia anterior, porque não me lembro de nenhuma parte desse segundo andar quando passei por ele ontem à noite. As coisas ficavam meio indistintas com uma língua na sua boca.
Quando chegamos na outra porta, Yoongi a empurrou e eu me vi no quartinho mais fofo e adorável que já vi na vida.
— Por que não estou surpresa com a cama de carrinho?
Yoongi riu. A Ferrari no centro do quarto era mais larga que uma cama de criança normalmente seria, e o colchão parecia do mesmo material que a king size do pai no fim do corredor. Eu facilmente dormiria ali.
O resto era uma mistura de cores primárias, principalmente vermelho e azul, com um armário planejado, cômodas com fotos, prateleiras com livros infantis e uma caixa de madeira semi aberta abarrotada com brinquedos, da mesma forma que eram os espalhados pela sala.
Yoongi andou até a cômoda, onde um pequeno quadro de lousa branca estava preso na parede bem ao lado das fotos em porta-retrato. Jihoon na Disney com o Mickey; Jihoon usando hanbok em algum evento tradicional coreano; Jihoon vestido com macacão de Fórmula 1, com um corte tigelinha que achei muito fofo; Jihoon no colo da mãe em um piquenique; Jihoon dormindo no colo de Yoongi enquanto o pai estava dirigindo, com sua jaqueta e óculos escuros; Jihoon segurando pedras lindas e coloridas, como a foto do Yoongi universitário.
Jihoon atualmente, sozinho, exibindo um desenho que fez de um carro com aerofólios verdes.
— ? — a voz de Yoongi rasgou minha hipnose, e limpei a garganta várias vezes para afastar a queimação do meu nariz de novo. — Vem, é sua vez.
Eu tinha perdido o que tinha acontecido ali, então Yoongi apontou para o quadro e vi as palavras escritas em piloto preto: “não tem sinal de chuva pelas próximas duas semanas. Foi só porque você disse que queria fazer aquela trilha. Robôs são legais, mas podem não ser confiáveis. Quiabo é bom se comer de olho fechado. O universo te ama e eu também.”, e uma assinatura em coreano que eu acredito ser o nome dele.
Olhei para Yoongi. Não havia sinal no meu rosto que eu tivesse entendido o que ele queria.
— O que é isso? — perguntei.
— É só uma coisa que eu comecei a fazer depois que o Jihoon aprendeu a ler. Todo sábado de manhã, eu relembro algumas coisas que ele comentou ou descobriu durante a semana e dou minha resposta, só pra mostrar que eu presto atenção nas coisas que ele diz, e que eu me importo com elas. Uma trilha, uma corrida na TV, ou até o que ele aprendeu na escola recentemente. Como a palavra Fotossíntese. — ele me deu uma piscadinha. De um modo muito estranho, corei absurdamente.
— Ele é um garoto muito esperto.
— Eu sei que é. Pode dizer isso pra ele, se quiser.
Agora o pincel estava na minha mão, mas não consegui dar um único passo. Olhei para as palavras lindas de Yoongi na tela branca, depois olhei para a cama de carrinho e as fotos de um garotinho feliz com sua família e me senti uma peça de dama em um tabuleiro de xadrez.
— E-eu… Eu não sei, Yoongi. O Jihoon não vai se importar em ver meu nome aí? Me parece uma coisa bem importante.
Ele balançou a cabeça em negação, com um sorriso sugestivo.
— Ele sabe disso. Na verdade, acho que ele está esperando.
Girei na direção dele, arregalando um pouco os olhos.
— Então vai contar pra ele que a gente transou? Que galanteador.
— É, vou contar ao meu filho de sete anos que chupei a professora dele. — ele semicerrou os olhos pela ironia.
— Os pais devem ser sinceros acima de tudo, não? — dei de ombros, e Yoongi riu mais, se aproximando até me dar um selinho. Voltei a olhar o quadro. — Disse que faz isso todo sábado, né?
— Religiosamente. — respondeu. — Só teve um que eu esqueci. Daí eu fiz churrasco e comprei donuts de caramelo pra compensar.
— Uau. Não me diga que os telefonemas de Londres mexeram tanto com a sua cabeça assim.
— Não foi isso. — ele esticou os dedos pela minha cintura, fazendo uma porção de calor ondular sobre a minha pele. — Foi depois que beijei uma certa garota em um show de metal e perdi a cabeça por uma semana direto. Achei até que precisava ir ao médico.
Outro daquele calor. A miragem daquela memória do beijo cintilou no meu cérebro, guardada numa caixa de vidro e iluminada por holofotes de todos os ângulos.
— Então fiz você perder seu compromisso com o Jihoon? Devia me sentir mal.
— Não, você não devia sentir nada. E os donuts de caramelo já pagaram pelos meus pecados. — Yoongi colocou uma mecha bagunçada do meu cabelo atrás da orelha. — Posso viver com o fato de que esqueci uma mensagem de sábado para o Jihoon. Mas não poderia viver como se aquele dia nunca tivesse acontecido.
Meu estômago afundou de novo, e quis jogar aquele cara em um banco e fazer o que os principais médicos recomendam que um casal faça de manhã se quiserem ser mais saudáveis. Mas daí, olhei para o quadro branco e a caneta, todo o medo e receio sendo sugados do meu corpo.
— Então já sei o que vou escrever.
“Fotossíntese é o jeito como as plantas se alimentam. Rola um pouco de física, química e biologia. Química é minha palavra favorita. Faz cosquinhas na língua, tem nas frutas, na tinta de cabelo, no motor de um carro e tem entre eu e o seu papai.
Obrigada, Jihoon.
Te vejo no próximo sábado?”
Obrigada, Jihoon.
Te vejo no próximo sábado?”
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NOTA DA AUTORA › Oi, gente! EU VOLTEI!
Tecnicamente nunca fui, mas quem me acompanha de perto sabe a tribulação que esse 2024 foi em tudo, e principalmente como acabou afetando essa parte da minha escrita no âmbito de criar coisas novas. Nada desse tipo tava saindo da minha mente, até que glorioso dezembro e uma oportunidade de homenagear uma das minhas melhores amigas surgiu, e uma explosão de dinamite aconteceu na minha cabeça. Pois bem, cara Maria Carolina, vulgo May, vulgo M-Hobi, essa fic é INTEIRAMENTE pra você!
Acompanhem de perto essa minha tentativa séria de fazer as pessoas se divertirem. Se eu alcancei o objetivo, me deixa saber nos comentários.
beijos,
Sial ఌ︎
Tecnicamente nunca fui, mas quem me acompanha de perto sabe a tribulação que esse 2024 foi em tudo, e principalmente como acabou afetando essa parte da minha escrita no âmbito de criar coisas novas. Nada desse tipo tava saindo da minha mente, até que glorioso dezembro e uma oportunidade de homenagear uma das minhas melhores amigas surgiu, e uma explosão de dinamite aconteceu na minha cabeça. Pois bem, cara Maria Carolina, vulgo May, vulgo M-Hobi, essa fic é INTEIRAMENTE pra você!
Acompanhem de perto essa minha tentativa séria de fazer as pessoas se divertirem. Se eu alcancei o objetivo, me deixa saber nos comentários.
beijos,
Sial ఌ︎
Se você encontrou algum erro de revisão, entre em contato por aqui.
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