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━Autora Independente do Cosmos.
Finalizada em: 14.04.2025

Mesmo estando juntos há três semanas e fazendo coisas que todo casal faz (lê-se: transar, dormir, tomar um sorvete no fim do dia, assistir a coletânea do Senhor dos Aneis, sair para jantar, discutir sobre a importância do futebol americano na construção da sociedade, brigar pela quantidade de mirtilos no café da manhã e transar mais um pouco), Yoongi ainda abominava a ideia de diversão no horário de trabalho. Isso queria dizer que, em qualquer metro quadrado dentro da Drexel, ele encarnava o exigente e dominante Augustus D. (que, nessas horas, se parecia mesmo com um velho de 70 anos, o perfil mais aceito nos Geologáticos), e agia como se eu fosse apenas uma pobre garota tentando terminar o doutorado.
E como se não bastasse isso, com 48 horas de relação oficial, Yoongi me levou um café na saída da escola (um que deve ter custado pelo menos 9 dólares, a julgar pela quantidade de chantilly) e disse que teve uma reunião muito proveitosa com o reitor para falar de seu tempo restante na Drexel, passar a lista das novas empresas que poderiam substituir a atual que fazia os reparos de equipamentos laboratoriais, e… contar do nosso relacionamento. Assim, muito simples.
— Ele perguntou porque eu não faria mais parte da sua banca de defesa, já que não era co-autor da sua pesquisa e nem nada, e daí eu contei. Ele ficou meio surpreso, mas aceitou e colocou o doutor Farran no meu lugar.
Fiquei parada de boca aberta, o gelo do café derretendo a cada segundo.
O doutor Farran. Aquele que tinha me rejeitado no início, agora faria parte da minha banca avaliadora, presenciando uma pesquisa que ele tinha chamado de “fantasiosa”, agora finalizada e analisada por Augustus D. Isso era ainda melhor do que ser escancaradamente assumida por um cara com zilhões de motivos para te esconder.
Ainda assim, nada tinha mudado. Fiz a besteira de tentar dar um selinho nele no laboratório quando vimos a amostra de número 5 dar certo depois de tirá-la da estufa e recebi bronca. “Um relacionamento formal e devidamente anunciado ainda torna isso antiético, . Se controla”. Abaixei a cabeça e assenti, acolhendo o fato: entre aquelas paredes brancas e máquinas caríssimas, só as gramíneas conheceriam a diversão.
Mesmo assim, andávamos passando mais tempo juntos do que quando eu pedi sua ajuda há alguns meses. Yoongi dava suas aulas sobre Geoprocessamento Aplicado, eu ia para a escola, e à tarde, ele já estava no laboratório antes de mim, dizendo que seus compromissos tinham sido remanejados para o dia seguinte, o que era suspeito, porque ele sempre tinha compromissos, o tempo todo.
Decidi interpretar isso como a forma dele de demonstrar afeto por mim dentro da Drexel, sem levantar uma seta gigante de “Namorados” na nossa direção.
O importante era que, fora daqueles portões enferrujados e quebradiços, eu podia ter Yoongi pelo tempo que quisesse, sem nenhuma complicação ou regra que me deixaria louca para quebrar.
A uma semana da minha apresentação, a histeria começou a tomar conta da minha cabeça. Provavelmente, ninguém contava como eram os sete dias antes de um novo título acadêmico (as pessoas se forçavam a esquecer deles ou faziam isso na terapia futura que, graças ao emprego novo, podiam pagar). Meu cabelo vivia em um coque perpétuo, as olheiras estavam maiores por causa dos meus pesadelos recorrentes de estar errando a palavra Planta para Pranta, tinha usado camisas ao contrário pelo menos duas vezes, meus olhos doíam por causa da tela azul das planilhas no computador, e também pelas vezes que eu chorei por medo de ter que refazer um experimento de última hora.
Em resumo: eu parecia um capanga do Tony Montana sem o terno caro e as armas de fogo, só com a parte do capuz e o andar arrastado. Uma das crianças da Kenderton já tinha vindo me perguntar se eu gostaria de alugar a casinha do cachorro dele já que, aparentemente, eu estava sem uma casa para morar. Seria o nosso segredinho.
Portanto, à medida que o grande dia se aproximava, as coisas começaram a, lentamente, melhorar. O artigo estava pronto, as amostras estavam devidamente averiguadas, os resultados estavam catalogados e tudo estava agora apenas em um processo longo e lento de revisão. Apesar disso, os últimos dias estressantes não tinham deixado muitos resquícios inteligentes na minha cabeça, então, quando Yoongi me mandou uma mensagem me chamando para almoçar na sua casa na quinta-feira, nem me dei ao trabalho de responder. Na realidade, daria tudo para fazer qualquer coisa que não fosse ajudar Belle a embalar os chicotes de couro sintético em papel de presente para uma grande encomenda para uma despedida de solteira.
Quando me sentei na mesa com Yoongi e Jihoon, soube que aquele cara, de quem estava me aproximando e conhecendo um pouquinho mais a cada dia, devia ter um diploma universitário extra escondido por aí em algo completamente não relacionado a rochas magmáticas e placas tectônicas. Em determinado momento, no meio da minha apreciação daquele frango teriyaki suculento, que eu jamais encontraria no refeitório da Drexel e muito menos em qualquer lugar a três quilômetros de lá, soltei um gemido involuntário e provavelmente fechei os olhos, sentindo cócegas no céu da boca.
— Mas o que é isso? — pareci indignada, e talvez estivesse um pouco. Jihoon soltou uma risadinha gostosa do outro lado da mesa.
— Esse é o único prato que o papai sabe cozinhar. É o meu favorito.
— Acho que vamos compartilhar dessa bolha agora, lindinho. — comi mais um pouco, me lembrando de colocar isso na mensagem do próximo sábado: “Fã-clube do frango do patriarca oficialmente aberto”. Yoongi sorriu da cabeceira da mesa, balançando a cabeça. — Como uma coisa pode ser tão gostosa?
— Com molho shoyu, pasta de pimenta gochujang e a fome de alguém que almoçou hambúrguer quatro vezes na semana passada. — ele respondeu, focado no seu prato, que, além do frango, tinha arroz, uma sopa pálida e aquele monte de rabanete vermelho que era o famoso kimchi. Achava lindo como ele e Jihoon costumavam comer muitas coisas de seu país natal, mas preferia cortar a língua a comer aqueles rabanetes de novo.
Tentei ignorar o leve tom crítico de sua voz.
— O hambúrguer do Mello’s é considerado o mais gostoso em uma área de três Estados. Ele tem as proteínas de uma refeição completa. O dono até escreveu um livro de relativo sucesso sobre a montagem da carne.
— Não é só fazer uma bolinha e amassar com a mão? — Jihoon enfiou uma colher na sua porção de arroz.
— Na verdade, sim. Mas ler isso detalhadamente em “A arte da carne moída em versos anglo-saxões”? Dá até vontade de chorar.
— Meu pai não me deixa almoçar hambúrguer.
— É porque você ainda não faz doutorado. Provavelmente, na sua época, vamos estar nos alimentando de pílulas nutritivas. — dei de ombros, olhando para Yoongi, que me lançou um olhar fulminante, por mais que estivesse tentando esconder o riso. — Ou não vai ser mais preciso fazer doutorado. Pilotos não precisam de diploma. — me corrigi antes que Jihoon perguntasse das pílulas, e eu tinha alguma certeza que ele ainda não tinha sido apresentado ao lance apocalíptico do aquecimento global.
Mas não menti sobre o doutorado. Yoongi sabia o que 50 leituras obrigatórias em pelo menos 17 cursos universitários de ciências país afora faziam com a cabeça de um ser humano.
Depois de comer, fui lavar as louças enquanto Yoongi ia ter seu momento pai e filho com Jihoon, que nem sempre significava brincadeiras de cavalinho ou passeios no parque na linda primavera fresca que fazia lá fora. Os dois simplesmente se sentavam na sala, com a TV desligada (a TV raramente estava ligada nessa casa), e liam um livro juntos, normalmente sobre classificações do reino animal, ou frutas falantes ensinando sobre princípios e valores morais para se dar bem na sociedade. Yoongi perguntava o que ele tinha entendido e aceitava qualquer que fosse a interpretação que Jihoon tinha das coisas, corrigindo apenas o que era necessário corrigir, como “não se pode ameaçar dar um soco em alguém”, ou: “não se deve falar do peso, da cor do cabelo, dos dentes ou qualquer coisa que você considere diferente na aparência do seu colega.” Era lindo de se ver, e se eu não estivesse atolada com preocupações de um doutorado no fim, adoraria fazer uma limonada e assistir tudo da poltrona.
Aquela estava sendo uma das melhores coisas que eu andava experimentando no relacionamento: a paternidade ativa de Yoongi nos mínimos detalhes. Já tinha ficado ciente de toda a rotina que ele tinha em relação a Jihoon, e do futuro que planejava para ele, pelo menos na parte de seu desenvolvimento como pessoa. Ele tinha um baú no próprio quarto, onde guardava cuidadosamente o maior número possível de livros que tinha garimpado em sebos dos países em que esteve, da Ásia à Europa, colecionando de Dostoiévski à Charles Darwin (e também o livro de poesias do autor desconhecido que pegou no Mango’s na primeira vez que foi comigo lá), alternando entre várias línguas para estimular a leitura em Jihoon desde cedo, e também seu pensamento crítico em relação a tudo, deixando claro que ele tinha liberdade de questionar. Era o que escrevia em todos os esboços das capas: Não se preocupe em gostar, se preocupe se faz sentido pra você.
Ele era um ótimo pai. O melhor que eu já tinha visto, na verdade.
Terminei a louça e fui até a sala de música, me jogando no sofá de couro enquanto abria o bloco de notas do celular para dar mais uma espiada nos livros aos quais peguei referências, reli essas referências, ajeitei os agradecimentos e quase pensei em colocar o nome verdadeiro de Eddie, mas ele provavelmente me mataria e nunca mais me serviria cerveja de graça. Seu pseudônimo era a sua dignidade.
Estava distraída com isso quando Yoongi entrou, sentando-se ao meu lado e puxando minhas pernas para o seu colo, sem me desconcentrar. Agora a sala vivia aberta, o mural de fotos tinha diminuído (as que tinham Skylar e Yoongi sozinhos foram guardadas, pouco a pouco, nas caixas de Jihoon e do sótão) e as guitarras não estavam mais presas na parede, desde que Yoongi fez uma mini apresentação com “Money” do Pink Floyd para Jihoon, que estava chorando depois de machucar o cotovelo enquanto corria na calçada. O garotinho parou o berreiro na mesma hora e ficou admirando aquele instrumento como se o estivesse vendo pela primeira vez. Yoongi filmou tudo para mim e, toda vez que eu precisava de um carinho para o coração, abria esse vídeo na galeria. Agora todas elas estavam em apoiadores no chão, podendo ser vistas e apreciadas sempre que os dois quisessem.
— Acho que errei a vírgula nas casas decimais do nível de saturação. — grunhi, os olhos cravados na minha planilha. — São 1, 2, 3… merda, eram eram pra ser quatro.
— Tá falando da G5?
— Da G3. Eu sabia que eu tinha olhado pouco pra ela. Foi a que terminamos mais rápido.
— A G3 são 3 casas decimais.
— Mas aqui está dizendo…
— Me dá aqui. — Yoongi pegou meu celular, vasculhando tudo com olhos rápidos. — Está escrito com 3 casas decimais, .
Peguei o celular de novo. E de repente, em um passe de mágica, as coisas se transformaram e tinham 3 casas decimais ao invés de 4.
Bufei forte, abaixando o celular.
— Diz que você acabou de mudar e eu não vi. — pedi, a voz cansada. Ele negou com a cabeça, os cantos da boca virados para baixo. — Acho que vou enlouquecer. Hoje quando fui escovar os dentes, jurei ter visto fumaça saindo dos meus ouvidos.
— É mesmo? Bem que eu achei que suas orelhas estavam diferentes hoje. — ele passou uma mão por volta da minha nuca, puxando meu pescoço para ele. — Um pouco mais bonitas. — e cravou o dente de leve no meu lóbulo.
— Sei que não parece, mas é uma péssima hora pra me distrair com sexo agora. Estou vendo coisas onde não tem, Yoongi.
— Você só errou uma vírgula, não é o fim do mundo. — ele subiu o queixo para beijar a lateral da minha cabeça. — E o sexo é pra te ajudar a relaxar. Eu acho de muito bom tom.
— Relaxamos bastante na semana passada e nem por isso deixei de parecer o filho do Drácula. — retruquei, ficando de pé. — Vou pegar uma caneta e contar cada uma dessas vírgulas, e você vai ter que conferir todas com muita seriedade. Não tô afim de precisar de um psiquiatra antes do grande dia.
Dei de ombros e andei até o escritório, que vivia aberto desde sempre, apesar de que, ultimamente, cada vez menos visitado.
O cômodo era inteiro de madeira mogno do lote mais nobre. Yoongi tinha me contado que a casa tinha sido uma aquisição conjunta de seus pais com seus sogros como presente de casamento, já que ele e Skylar não pretendiam voltar a morar em suas cidades natais, e mesmo depois da descoberta de Jihoon (e a mudança de planos que isso causou), a casa permaneceu ali, porque aparentemente gente rica se sente melhor tendo várias propriedades espalhadas pelo mundo, mesmo que estivessem vazias e pegando poeira.
Mas era incrível como aquela sala respirava a Min Yoongi, assim como a sala de instrumentos. Prateleiras enormes da mesma madeira cheias de livros acadêmicos, plaquetas de registro de patentes, prêmios estudantis, certificados de projetos de extensão e vitrines expositoras com dezenas de pedras soltas, gemas orgânicas coloridas, algumas brilhantes e lindas e outras tortas e grosseiras que, de alguma forma, também tinham sua beleza. Yoongi disse que eram suas favoritas: aquelas que passaram pelo processo de intemperismo, que foram roídas e lapidadas por milhares de anos até se tornarem o que são.
Na mesa grande e larga ficavam os artigos que ele andava lendo, o computador, pilhas de provas, mais porta-retratos de Jihoon e material de papelaria no geral. A primeira vez que entrei aqui, imaginei um Augustus sério naquela cadeira presidente, com seus óculos de grau enquanto lia absurdos em forma de e-mails de alunos pedindo para “adiarem a entrega do artigo porque seu cachorro mordeu o gato do vizinho e agora queriam colocá-lo na cadeia”, ou corrigindo respostas tolas para a simples pergunta: “quais são os processos que formam as rochas sedimentares?”, mas, depois de um tempo, descobri que ele sentava ali antes de dormir, tirava um pote de metal da gaveta ao lado, e olhava o conteúdo daquelas avaliações gargalhando e saboreando um bombom de cereja ou sete. E soube que ele quase nunca dava zero para ninguém.
Foi sobre essa mesa que me inclinei para pegar qualquer folha A4 do pacote novo e agarrar uma caneta boa e cara, de marcas que nunca vi na vida, mas acabei parando no meio antes de virar e sair. Olhei para o papel colorido que Yoongi havia deixado em cima dos outros, como se fosse a última coisa que estava vendo naquela manhã antes de ir preparar o frango.
A logo de Yale brilhou na minha cara, junto com as de Harvard e Cornell. Todas dando as mãos em cima de um título enorme com letras garrafais que se seguia com: Prezado Doutor Augustus D…
Peguei o papel. E arregalei os olhos como se estivesse lendo o roteiro do planejamento de assassinato ao presidente.
Voltei para a sala de música.
— Conferência de Geologia? — perguntei, estendendo o panfleto ao lado do meu rosto.
Yoongi levantou os olhos do celular e enrijeceu.
— Ah… não era pra você ter visto isso.
— Por que não? É muito melhor do que achar uma revista da Playboy. Ou dedos decepados de crianças em um balde de gelo.
— Porque é só um convite, que eu não pretendo aceitar. — ele levantou e andou até mim para puxar o panfleto de volta. — Conseguiu pegar a sua caneta? Eu acho que talvez aquela amostra 4…
— Você não vai aceitar? Mas estão te convidando pra ser o palestrante principal.
— Eu sei.
— E por que não vai aceitar isso? É demais! — balancei os braços para mostrar minha empolgação. No entanto, Yoongi permaneceu do mesmo jeito, até mesmo um pouco mais desanimado.
— Porque… por mais que falar sobre Geologia seja tão prazeroso pra mim quanto poesia anglo-saxônica de carne duvidosa seja pra você, eu não quero esse tipo de atenção no momento. Vai ter um monte de gente de Harvard, e até de Oxford, e as duas…
— Eles não vão sacar armas e se digladiar no meio do salão por causa da sua decisão, Yoongi. Duvido que vão falar disso por lá.
— Não duvide do que representantes da Ivy League são capazes de fazer, linda. Às vezes é exatamente pra isso que organizam esses eventos, e não pra se atualizarem sobre gestão de riscos naturais. — ele fez um carinho na minha nuca e me puxou de volta para o sofá. Bufei, sem aceitar seu argumento. — Eu não tô dizendo que o evento não vai ser incrível. Mas tive um grande tempo de ócio, abandonei projetos no meio do caminho e até os que estavam prestes a começar, e tudo isso vai gerar perguntas de cunho pessoal que não sei se quero responder. Aliás, não quero. Não pra essa gente.
Assenti devagar, vendo Yoongi suspirar e olhar para o cantinho das guitarras como uma forma de não fazer o que seu instinto mandava: olhar descontroladamente para todos os lados. Gostava dessa fascinação pelos instrumentos que morava dentro dele, por mais que soubesse que eles lhe serviam melhor como passatempo do que como carreira.
Fiz um carinho nas pontas do seu cabelo.
— Bom, independentemente das coisas que você deixou de fazer, eles parecem não estar dando a mínima pra isso agora. Querem muito que você esteja lá, eles e uma porção de geólogos calvos ao redor do país.
Yoongi riu sem humor.
— Eles querem é tentar me convencer a voltar pra… tudo isso. Querem me colocar numa posição de glória pra que eu lembre como é ser uma prioridade e volte a pensar em dinheiro, mesmo que essa nunca foi a questão pra mim. Mas pra eles é, pra todos eles. Não tô a fim. — suspirou. — Prefiro um trabalho que eu possa realizar com pragmatismo, sem a loucura espontânea da academia, onde eu possa ler e estudar quando tiver vontade, que me dê mais tempo pra ficar com você e com o Jihoon.
Sei que aquilo era o auge do romantismo que uma garota poderia ouvir de um cientista. Mas, ainda assim, alguma coisa ainda estava me incomodando.
— Yoongi, a sua pesquisa é importante. Não só pra você, mas para o mundo. Não vale a pena compartilhar isso com o máximo de pessoas?
— Ela ainda não está pronta…
— Mas ela vai ficar, e se por acaso você apresentá-la desse jeito, para as pessoas certas, ela pode ficar pronta ainda mais rápido. Os empresários cheios da grana vão estar lá. E eu sei que você também tem muita grana, mas eles têm a parte industrial da coisa. O que pode ajudar na multiplicação da sua descoberta, aplicá-la no mundo por muito menos da metade do tempo. Você deve isso à ciência como um todo. — argumentei, virando seu rosto para mim. — Por favor, não fica bravo comigo por dizer isso. Eu só estou tentando te ver como Augustus D. depois de um bom tempo, e me lembrando do quanto eu sempre admirei esse cara. E eu sei que você ficou longe da pesquisa, mas ainda assim teve que olhar seus materiais de novo pra fazer a apresentação de Geomorfometria na Drexel quando assumiu seu cargo. E eu podia estar me escondendo de você na plateia naquele dia por causa do nosso primeiro encontro na escola, mas sei que você falou com paixão e um sorriso no rosto. E cá está a prova que as pessoas querem continuar te ouvindo. — puxei a borda do papel escapando do bolso dele. Yoongi não respondeu, mas não me mandou parar de falar. — Além disso, vão ter outros chefes de outros institutos lá, né? Inclusive que estudaram em Harvard. Seus antigos amigos devem ir pra lá também.
Esperei ver um sorriso enorme no rosto dele com a ideia de se reunir com seus colegas da graduação, mas ele apenas deu de ombros.
— Talvez. Nick é o diretor do programa de doutorado em Engenharia Mecânica de Harvard, então provavelmente vai ser arrastado pelo vice-reitor. Elliot é o chefe da Obstetrícia do Hospital Geral de Massachusetts, o que torna o tempo livre dele um milagre, e Dwight estava sendo promovido a chefe de departamento de Ciência da Computação no MIT. Eles gostavam desse tipo de evento, mesmo se não tivesse nada a ver com eles. — ele abriu um sorriso distraído, com certeza voltando aos velhos tempos.
— Então. Seria uma ótima oportunidade de reencontro. Eu acho que você precisa disso.
Yoongi virou a cabeça para mim.
— Eu preciso de um monte de coisas agora… — ele levou o indicador da minha bochecha até a boca, depois ao queixo e depois para a curva do meu seio, usando seu tom de voz cafajeste e cheio de malícia que me deixava em ponto de bala, mas eu não iria permitir ser distraída agora.
Dei um tapinha no seu dedo.
— Eu tô falando sério.
Ele revirou os olhos e expirou.
— Ok. Então vai comigo.
— Com você? — franzi a testa. — Para New Haven?
— Sim. Tenho direito a um acompanhante, se você leu tudo. E vai ser só por dois dias, então posso pedir pra Belle ficar com o Jihoon, contanto que ela prometa esconder todo o estoque da BigBelly bem longe da vista dele. — Yoongi semicerrou os olhos. — Se ela estiver disponível, podemos ir. E você podia esquecer um pouco da sua apresentação e relaxar sem precisar ver um psiquiatra ou tomar um calmante. Principalmente porque eles ofereceram um quarto de hotel bem no centro.
— Aqueles que tem spa all inclusive? Nossa, isso parece mesmo muito melhor do que diazepam. — suspirei, juntando as pernas no seu colo de novo. — O convite é ótimo, mas eu… eu nunca fui num evento desses. Não um tão grande e com tanto prestígio. A única conferência que eu pisei foi o Botânica e Você da UPenn, e os palestrantes eram os próprios professores departamentais. Você já viu um botânico falando sobre botânica?
— Hum, você?
— Estou mais pra fisiologista, então não. Eram homens de 50 anos que ainda estavam discutindo sobre a filogenia de briófitas e angiospermas, apontando um para a cara do outro enquanto debatiam o que veio primeiro e o que veio depois. Isso é tão 2003.
— Que absurdo.
— Mas era engraçado, a gente podia sentar no fundo, rir um pouco dos estudantes corajosos que foram mostrar seus projetos e depois aproveitar o coffee break. A propósito, era mais por isso que eu ia.
— Os acompanhantes vão ter direito ao coffee break também em New Haven. E eu fiquei sabendo que o bufê vai muito além de cream cracker.
— Tipo pão?
— Tipo pão com presunto e queijo.
Fiz um arquejo dramático, colocando a mão no peito.
— Isso é golpe baixo.
Yoongi riu, passando um braço pelas minhas costas para me puxar para mais perto.
— Além disso, o reitor de Harvard vai estar lá, e ele é um cara mais acessível do que parece. Pelo menos depois de duas taças de vinho. — continuou ele.
— Você tá tentando dizer que eu deveria seduzi-lo?
— Acho que fazer um networking é melhor, mas se você ver que não está dando certo, vai fundo. Se usar vermelho, é uma causa ganha.
— Eu adoro quando você reconhece meu potencial de vadia. — dei um beijinho no seu queixo. — Comprou as camisinhas quando me viu usar alguma coisa vermelha, não é?
— Já disse que não vou te contar essa história.
— Droga… — revirei os olhos, e respirei fundo. — Tudo bem, eu vou com você. Vai ser bom não olhar pra esse documento um pouco enquanto fico me auto diagnosticando com algum problema ocular.
— Vai ser bom saber que você está lá quando eu estiver querendo sumir. — disse Yoongi, a boca perto do meu pescoço. Dessa vez, nem o afastei.
— Vou estar na primeira fila, tirando fotos como uma mãe orgulhosa. — ele riu abafado.
— A minha mãe não faria isso. Ela queria que eu fosse conselheiro do governador.
— Você até que combinaria com esse papel.
— Cala a boca.
— Sério, você de terno o dia inteiro? Fazendo aquilo com o cabelo, alisando a gravata, olhando para as pessoas como se elas fossem vermes de fruta? Sexy. Muito sexy. É minha nova fantasia oficial.
— Você é ridícula. — ele puxou minha cabeça e cobriu minha boca com a sua, dessa vez em um beijo de verdade, um beijo que me tirava o chão todas as vezes, como se meu hipocampo fosse incapaz de guardar a memória das sensações que a língua de Yoongi causava em mim, mesmo que se repetisse todos os dias, ou quase todos. Sei que estava com ele há pouco tempo, mas alguma intuição reptiliana maluca me dizia que eu nunca ia me acostumar quando ele me puxava e me beijava daquele jeito, sem eu estar esperando.
Me separei dele, tentando engolir o suspiro meloso de apaixonada.
— Tudo bem, posso não estar tirando fotos, mas vou estar na primeira fila. Pode contar comigo.
Ele me puxou para o peito.
— Obrigado.
Me imaginei ficando assim com ele, agarrada no sofá em dezenas de tardes lindas de primavera em Boston, cercada de Yoongi em detalhes da casa, enchendo com as minhas aos poucos, tipo meu quadro de macramê que ganhei de Belle ou minha caneca do Baby Yoda, os carrinhos de Jihoon espalhados pela sala em uma desarrumação eterna, a TV ordinariamente desligada e acordar cedo todo santo sábado e me rastejar para o quadro branco dele para escrever: “Livro de receitas do Mello’s comprado. Se vira, moleque.”
Sempre sonhei com uma vida minimamente aprazível no fim das contas, mas aquilo soava como algo além. Soava como um lar. Uma família.


Um dia feio e cinzento pairou por toda a Filadélfia um dia antes da nossa viagem para New Haven.
Todas as minhas coisas já estavam arrumadas, o que não foi nem um pouco chocante, considerando que eu não era existente com roupas e perdia a paciência fácil com essas coisas. A única peça realmente importante era o vestido para a palestra de Yoongi e os sapatos de saltinho que não estavam com as solas por um fio. Depois de bater um papo com Belle, consegui descolar sua jaqueta e as botas de cano curto maravilhosas que praticamente me transformariam em, no mínimo, uma garota classe média alta que, por algum motivo mais esquisito do que interessante, achava Geologia um negócio minimamente legal.
Infelizmente, essas novas aquisições tiveram um preço. E esse preço veio na forma de um pacote pesado de papelão, lotado de selos e fitas adesivas pairando nos meus braços quando minha melhor amiga disse:
— O pedido dessa cliente veio pra nossa casa porque ela se recusou a colocar o endereço da casa dela. Falei que podia fazer a entrega até a Drexel, e ela aceitou quando eu disse que não tinha reembolso. Ela vai estar do lado do portão B.
Revirei os olhos, deixando explícito meu desgosto.
— Sério? Delivery de plugs? Ou é aquele chicote que parece com uma cauda de dinossauro?
— Na verdade, é um vibrador, um anel peniano, KY e talvez um plug com cauda. Foi a maior venda do mês e ela nem registrou um nome direito, só quer ser chamada de J. Seja como for, foi cartão de crédito e o dinheiro já caiu, então… — Belle deu de ombros e sorriu. — Pague as suas botas e faça uma garota muito feliz em alguma pousada na saída da cidade hoje à noite.
— Isso tá um pouco pesado pra uma garota aproveitar sozinha. — sugeri, ainda tentando segurar aquela coisa que doía meu braço.
— Bom, tem os pacotes de orgia no site, então chuto que ela deve estar com mais duas ou três pessoas. Pensando bem, ela deveria ter pedido mais KY. Porque se os caras também quiserem…
— Eu já vou indo, Belle. — segurei a caixa com um braço e puxei minha bolsa do cabideiro ao lado da porta, apressando o passo. — Espera, como vou saber que é ela?
Belle puxou o celular para ler alguma coisa.
— Ela disse que vai estar de boné e óculos escuros. Por questões de sigilo.
Assenti e saí. Como se eu fosse me importar com a suruba alheia.

🌏


Era bastante tarde quando mandei uma mensagem para Belle e disse que estava prestes a pegar um Uber até a Marknet Street e comprar minha próprias botas, porque tinha cansado de esperar por mais de 1 hora pela sua cliente safada misteriosa.
O pôr do sol ainda chegava cedo demais no início da primavera, e o movimento na Drexel começava a abrandar, com professores entrando nos seus carros populares e alunos pedalando bikes ou motos barulhentas que quase sempre eram pilotadas pelos otários da Administração. Eles não pareciam se importar nem um terço com a manutenção sonora da comunidade acadêmica. Duvido que algum deles teria o mínimo de colhão para sequer tocar em um plug anal.
“Acho que ela só tá com vergonha. Aguenta aí.”, mandou Belle. Bufei, digitando:
“Na hora de usar essas coisas, ela vai cacarejar e urrar sem vergonha nenhuma, posso apostar. Manda ela me encontrar agora!”
“Eu já mandei! Ela disse que está indo aí.”
“‘Indo aí’ pode significar que ela está na próxima esquina ou saindo do Nebraska. Isso não ajudou.”
“Por mais uma hora, eu te dou o lubrificante Astroglide, é o melhor do mercado. E nem adianta se fazer de chocada porque você e Yoongi não me enganam.”
“Por quanto tempo você me daria a calça jeans da Levi’s? Sim, vou ignorar a oferta do lubrificante.”
“Nem se você ficasse aí a vida inteira, criasse raízes e desse frutas.”
Me joguei no banco, bufando. Estava prestes a perguntar se ela tinha alguma coisa que provasse que J. era ao menos uma pessoa de verdade, e não uma inteligência artificial dando início a guerra das máquinas, que começaria a atacar a humanidade enfiando pintos de borracha nos nossos orifícios e nos controlando como pangarés, quando uma sombra fez volume por cima de mim, apagando o resquício de sol do fim do dia. Levantei a cabeça e vi um cara alto, bem alto, usando moletom preto, boné preto e óculos escuros, abaixando a cabeça em uma tentativa de sussurrar:
— A encomenda.
Ele olhou para todos os lados, como um agente do governo exilado que não podia ser visto. Abri e fechei a boca, segurando a caixa no meu colo.
— Hum… J? — precisava confirmar. Principalmente porque aquilo ali não era uma mulher.
— Isso, isso, passa o pacote.
Me senti sofrendo um assalto. O cara não levantava a cabeça por nada, e balançava a perna com ansiedade, estendendo a mão para mim de forma firme e clara. Por alguns segundos lentos, não soube o que fazer. Belle me mataria se eu perdesse uma mercadoria daquelas para um assaltante que com certeza estava achando que eu estava carregando um aparelho celular novo ou um fone de ouvido.
— Foi mal, eu estou esperando uma mulher, eu não posso…
O cara bufou e meteu as mãos na calça igualmente preta, e por um segundo louco de pânico achei que puxaria uma arma ou um canivete, mas o que saiu de lá foi uma folha dobrada com a logo da BigBelly Sex Shop.
— Fui eu que comprei. Eu sou J, caramba!
Fiquei sem saber o que dizer. E não apenas por causa da nota fiscal escancarada e da sua voz esganiçada com pressa. Foi porque finalmente ele olhou para mim e vi seu rosto.
E eu o reconheci.
— Jeff?
Por um momento, achei que eu estivesse delirando. Nunca compartilhei uma única xícara de café com o pivô dos Drexel Dragons, um cara de mais de 1,90cm com braços e pernas largos como um mamute, que tinha uma tatuagem na panturrilha com a foto de um galo mal desenhado que ninguém nunca entendeu o significado.
Mas eu sabia quem era Jeffrey Kline, um dos amigos mais próximos de Wonwoo, conhecido por dar festas de arromba na sua fraternidade e por comer umas sete garotas por semana (e tenho 97% de certeza que eu não estava incluída nessa lista).
Eu até poderia estar enganada no meio daquele tanto de preto e óculos escuros, mas ao ouvir o nome, a montanha na minha frente enrijeceu todos os músculos, os ossos saltando na mandíbula, a cor vermelha pintando seu rosto inteiro igual uma árvore de natal.
— Fala baixo, por favor. — ele pediu em súplica, a cabeça girando de novo para todo o redor. Tenho certeza absoluta de que falei o mais baixo possível. — Por favor, só me dá o pacote, já tá pago, eu juro.
— A-ah, claro. — fiquei de pé e estendi o pacote, olhando para as próprias mãos, desconcertada. — Foi pago no cartão, então é só levar.
— É, é. Você… você sabe… — a voz diminuiu ainda mais. Levantei a cabeça e tive certeza que os olhos dele estavam esbugalhados por trás das lentes escuras. Seu lábio inferior estava tremendo.
Minha nossa, isso aqui estava parecendo cena de crime! Ele estava me deixando assustada.
— Não, eu não sei o que tem aí. Só tô fazendo um favor. — expliquei rápido, agora eu mesma começando a ficar louca para ir embora. — Pode levar.
Jeff abriu a boca para falar algo, talvez para me dizer um: “não conta pra ninguém que eu comprei um kit de pênis de borracha, por favor, é que isso é estranho pra quem aparentemente só faz sexo com mulheres”, mas eu definitivamente estaria muito ocupada ficando em choque quietinha no meu canto para ter capacidade mental de contar isso para outra pessoa.
Por fim, ele desistiu e estendeu a mão para o pacote. Foi nessa hora que tudo aconteceu.
— Solta ela, seu desgraçado!
Um grito rasgou das costas de Jeff, e de repente, ele estava sendo puxado para trás pelo pescoço, um tronco de braço imenso sendo travado na sua garganta enquanto tentava derrubar aquela montanha de músculos.
— Seu merda! Corre, , corre!
Correr?
Uma verdade sobre mim: sou péssima para reações rápidas. Eu seria a pessoa facilmente atropelada no meio da rua porque não pensou em se jogar para a calçada quando viu o carro criminoso ultrapassando o sinal vermelho. Meus sentidos simplesmente param e espero a coisa me atingir.
Daquela vez, demorei o tempo suficiente assistindo a luta entre os dois grandalhões até que o momento em que o segundo maluco montou nas costas de Jeff enquanto berrava um: “Devolve! Devolve pra ela!”
Puta merda.
— Wonwoo, não! — gritei, acordando para a vida. Corri até eles, puxando sua camisa. — Solta ele, Wonwoo!
— Me larga, porra! — Jeff gritou, e mesmo no meio do embate, ainda tentava manter a cabeça abaixada a todo custo.
, corre! Agora!
— Larga ele! Não é nada disso que você tá pensando! — gritei mais uma vez, e a esse ponto, as pessoas ao redor já começavam a olhar. Alguém chamaria a segurança logo mais.
— Ladrão de merda! Devolve o que você pegou!
— Eu não roubei nada! Me solta!
— Me dá isso! — Wonwoo meteu a mão na caixa que Jeff segurava. O cara começou a verdadeiramente ficar assustado e se esquivar, protegendo aquilo como a vida, a cabeça abaixada na direção da barriga. — Me dá, seu desgraçado.
— Wonwoo, SOLTA ELE!! — fechei as duas mãos em punho e dei soquinhos nas costas dele. Com ódio, precisei levantar os pés para fazer isso. Ele nem parecia me escutar. — Você tá confundindo tudo! WONWOO!
— Me solt-
— Seu desgraçado! Eu vou chamar a políc-
— Wonwoo, seu idiota!
”Larga! Solta! Seu infeliz! Corre, ! !”
Não sei quem falou o quê. Não faço a mínima ideia se eu estava estapeando Wonwoo ou Jeff, se eu mesma acabei pulando nas costas do meu amigo, ou se aquele chute que dei atingiu a canela certa, só sei que tudo parou quando um estrondo atingiu o chão e barulhos de algo se quebrando funcionaram como a trombeta do apocalipse.
Parei na hora, olhando a caixa de papelão se espatifar, abrindo o lacre e deixando sair a ponta de um pênis laranja dentro de um pacote escrito “tamanho especial: 24 centímetros”.
Silêncio.
Silêncio.
Rostos vermelhos e ardendo, desejando mais do que tudo que o próximo meteoro colossal da época jurássica caísse bem na nossa área, acabando com as nossas existências patéticas.
Ofegante, olhei para Wonwoo, esperando que ele visse minhas narinas dilatadas e o quanto eu gostaria muito de enfiar aquele pinto na goela dele. Jeff parecia ter diminuído mais da metade dos seus 2 metros de altura, ficando quase do meu tamanho. Seus joelhos estavam tremendo, e eu podia sentir o suor escorrendo pelas suas costas, apavorado com a ideia de ser reconhecido. Wonwoo abria e fechava a boca, os óculos tortos na cara e a mochila jogada no chão de pedra.
Grunhi, abaixando para jogar tudo dentro da caixa de novo, fechando da melhor forma que consegui e enfiando na barriga de Jeff.
— Obrigada pela preferência. Volte sempre. — dei um sorriso amarelo, e ele não ficou para ver se entendia: simplesmente agarrou o pacote e saiu correndo, como se realmente fosse um ladrão roubando minha bagagem no aeroporto e fugindo pelo hall.
Sobrou eu e Wonwoo, que estava com a maior cara de palerma, preso na imagem do pênis do Caveira Vermelha.
— M-mas o que foi isso…
— O que foi isso?! — dei um soco no seu braço por impulso, o que significa que doeu mais em mim do que nele. — Você acabou de dar uma de macaco-aranha e quase arrancou o pescoço da maior venda do mês da BigBelly. Tem noção disso?
— Mas… Olha pra esse cara, ! Ele parecia um marginal.
— Você podia ter perguntado antes de ir pra cima dele!
— Perguntar se alguém é um marginal? Tá falando sério?
— Eu estaria gritando e deixando claro se fosse um marginal, você não acha?
— Não se ele estivesse apontando uma arma pra você.
— Eu ainda podia chutá-lo. — trinquei os dentes.
— É, porque um lulu da pomerânia derrubaria um hipopótamo. Pode me passar o número do centro militar onde você fez o seu treinamento?
Argh! Seu idiota! — bufei, agarrando minha bolsa que deixei no banco enquanto tentava impedir um assassinato, ou pior: a revelação da identidade possivelmente bissexual de Jeff. — Ele era só um cliente que não passou o endereço certo pra Belle. E aceitei botas muito lindas como pagamento pra carregar esse pacote com todo o sigilo do mundo, então obrigada por estragar tudo.
— Me desculpa se parecia que ele estava tentando enfiar você naquele pacote, . — ele pisou fundo até a sua própria mochila, batendo nela para tirar a poeira.
— Isso ficou mais obsceno do que assustador, considerando as coisas que tinham lá dentro!
— Se fantasiar de meliante pra buscar um vibrador não é nada menos que assustador, . Se fosse um cara qualquer carregando uma maleta de capa dura e com o cabelo à mostra, eu até poderia pensar que ele estivesse te chamando pra um jantar na cobertura.
— Eu tenho medo de altura, Wonwoo!
— Eu sei!
— Então por que falou isso, droga?
— Não sei!
Bufamos. Ficamos parados um na frente do outro, as veias saltando nas têmporas, os peitos descendo e subindo e a raiva finalmente se dissipando. Uma raiva que eu nem fazia ideia do que era.
Wonwoo ajeitou os óculos e a camisa de botões, engolindo em seco. Achei que ele imediatamente se viraria para sair dali, já que, teoricamente, tinha nos feito passar a maior vergonha já passada por trás dos portões da Drexel, ultrapassando o concurso de novo mascote das atléticas, quando um cara achou de bom tom se fantasiar de Fofão.
Mas eu também não saí imediatamente. Para começar, ainda estava preocupada de alguém ter me visto jogando um pênis de silicone dentro de um pacote que estive segurando o tempo todo na última hora, e também porque eu não via Wonwoo desde aquela noite no Mango’s, que faziam bem mais de duas semanas.
Nunca fiquei sem vê-lo por muito tempo, e aquela constatação caiu por cima de mim como uma tonelada de concreto.
— Por que você está aqui? — perguntei.
— Eu estudo aqui. — ele respondeu em um resmungo, coçando a garganta.
— O seu departamento fica pra lá.
— O seu também.
— Eu estava fazendo uma entrega. — trinquei os dentes de novo. Caramba, isso não ia para lugar nenhum. — E você veio correndo achando que eu estava sendo assaltada.
— Bom, ele também não parecia estar te cantando, então de nada, .
Dei uma risada sem humor.
— É, porque os caras daqui costumam flertar ao ar livre, sem a confiança da cerveja ou do LSD no sangue.
— Primeiro: você não conhece todos os caras do campus, e segundo: a maioria deles são minimamente sensatos de não darem em cima de garotas que tem namorado. Então qual a outra opção plausível? Isso mesmo, assaltante. E mais uma vez: de nada!
As orelhas dele estavam vermelhas. Parei de repente, toda a eletricidade da irritação escapulindo pelo ar. Até as sobrancelhas voltaram ao estado normal, junto com o corpo todo.
Wonwoo entendeu minha pergunta antes que eu a fizesse, e o vinco no seu queixo voltou a aparecer.
— É, eu já tô sabendo.
— Mas como… — parei, e me senti uma idiota. — Claro. A Belle.
— Não, , ninguém me contou. É só olhar pra você e pra ele. Nem precisam estar juntos pra saber.
A voz dele saiu pincelada com mágoa vivida. Quinze dias sem sua companhia diária e eu já era capaz de captar traços que antes não existiam, ou que eu nunca notaria por causa da convivência. Wonwoo usava aquele tom de voz quando, em uma maneira desesperada de ficarmos acordados na época de provas finais, comprávamos café no Mango’s. E o Mango’s não fazia café. Aquilo que Eddie preparava para ele mesmo bem nos fundos do balcão era incrivelmente ruim e potencialmente explosivo, que o departamento bélico do governo nunca soubesse disso.
Então, sim, Wonwoo falou do meu namorado como se estivesse engolindo o café do Mango’s.
Isso fez com que um rombo quase esquecido no meu peito voltasse a se abrir.
— Eu não queria te magoar, Wonwoo. — falei, mesmo sabendo que provavelmente não adiantava nada. — Eu nunca quis. Eu….
— Relaxa, . — ele estalou a língua e suspirou. Em seguida, deu dois passos para se sentar no banquinho em que eu estava antes. — Eu não sou mais criança, sei que nem tudo é como a gente quer. Eu tô legal.
Ele não olhava para mim, mas para as próprias mãos. Mesmo assim, assenti, dando passos minúsculos até me sentar ao lado dele, separada por alguns vários centímetros de distância.
Não sabia direito a finalidade disso, até ele falar:
— Então ele não vai mais embora?
Neguei com a cabeça, os olhos no chão.
— Ele não pretende. Por enquanto.
— E quando você for pra Harvard?
— Por isso a parte do por enquanto.
A sombra difusa do sol me possibilitou ver sua cabeça balançando, e não sei o que poderíamos dizer em seguida. Talvez tudo, talvez nada. Só sei que nenhum dos dois se levantou.
Era impossível saber o tempo que se passou até ele falar, com a voz infinitas vezes mais branda:
— Sua apresentação é na semana que vem, né? — perguntou. Concordei com um murmúrio. Ele se empertigou no seu lugar. — Ainda posso ir assistir?
Uma onda de alívio me tomou numa bolha gigante, como se meu pulmão estivesse esse tempo todo dentro de uma cápsula e alguém finalmente a tivesse estourado.
— Claro que pode, Wonwoo! Caramba… — o ar escapou abafado da minha garganta, e fiquei com vontade de tirar a jaqueta cinza que estava vestindo, repentinamente sufocada, mesmo que isso fosse revelar minha camiseta cinza escura com gola V por baixo, um terror estético de quem já tinha colocado todas as roupas legais que tinha na mala. — Olha, tudo isso entre a gente… isso não tá certo, não é o que eu imaginei, mas algumas coisas aconteceram e eu não pude evitar. — percebi que estava me aproximando dele no banco, mantendo agora uma distância mais perto do normal do que sempre tinha sido entre a gente. — Eu sinto muito mesmo por ter agido da forma como eu agi quando você teve coragem de ser sincero comigo, e isso abriu um buraco entre a gente, e é óbvio que não vou conseguir passar pela minha defesa sem a pessoa que me ouviu falar repetidas vezes sobre ela.
— Bota repetidas nisso.
— E que também assistiu Friends comigo pra me animar quando tinha que jogar alguma amostra errada no lixo de novo.
— Elas já estavam fedendo, .
— E que sempre me avisava dos biscoitinhos não vencidos da cozinha antes que alguém pegasse e escondesse.
— Só tava tentando evitar um quadro de escorbuto.
— Você sempre cuidou de mim, Wonwoo. — declarei, e agora tinha me virado completamente para ele. Contemplei seus ombros e seu peito repentinamente travados, fazendo força para não demonstrarem o quanto estavam agitados. — Sempre me levou pra casa quando eu ficava até tarde no laboratório, não me deixava ficar chapada demais nas festas, não me apavorou quando fiquei com um pedaço de vidro no braço depois que quebrei um tubo de ensaio, sempre opinou com seriedade nas poucas vezes que fui comprar roupa no shopping. Você sempre esteve lá por mim, e eu não desvalorizo isso, nem por um segundo, é que eu… eu juro, se eu pudesse escolher, se eu pudesse…
— Ai, , me poupe. Isso tá pior que Os Sofrimentos do Jovem Werther. — Wonwoo rolou os olhos, mas não de uma forma estressada ou escarniciosa. Ele olhou para mim, e ficou ali por um tempo, ficou e ficou e ficou, me dizendo alguma coisa que eu e meu senso inútil de ler as pessoas não conseguiam decifrar.
Por fim, ele se empertigou de novo e colocou a mochila no colo para abri-la, tirando de lá uma pasta e arrancando uma folha de papel com amassados nas laterais, como se tivesse sido dobrada e desdobrada várias vezes.
— Toma.
Ele passou a folha para mim. Desfiz as dobras e li desde o início, desde a logo da Penguin Random House até o início do texto: “Prezado Senhor Jeon…”
Meus dedos ficaram tensos em volta do papel. Até a cartilagem da minha orelha reagiu, passando a vibração para o meu corpo inteiro, fazendo minhas costas se arquearem como nunca estiveram.
— Puta merda. — o bordão escapou de mim, automático. — Isso é… meu Deus, Wonwoo, eles querem te publicar? A porra da editora Penguin quer um livro seu?
Não parecia que eu estava perguntando, e sim apenas emendando palavras na outra, gorgolejando, tremendo e ofegando. Wonwoo abriu um sorriso pela primeira vez, e foi o suficiente para que o meu nível de adrenalina disparasse.
— Querem. E querem especificamente a história de Daniella e Rick.
Mal senti o peito afundar, ou qualquer outra reação física e emocional que estivesse acontecendo fora da minha felicidade por Wonwoo. Meu tórax estava se expandindo, abarcando algo muito forte e verdadeiro naquele momento.
— Meu Deus, Wonwoo. Isso é demais, cacete! Isso é incrível! Você vai virar best-seller! — coloquei as mãos nos ombros dele, pulando no próprio banco, amassando um pouco mais a folha na empolgação desvairada.
— Ei, ei, calma, já tá adiantando as coisas. — ele segurou minhas mãos para acalmar meu corpo de pinscher pulando igual pipoca. — Mas é incrível mesmo. — com uma risadinha, ele deu um leve toque no meu ombro. — Eu ainda não contei pra ninguém. Os editores gostaram muito da personagem, acharam ela original e autêntica. Querem um livro completo e, dependendo de como forem as vendas, já querem fechar mais dois.
— Não brinca. — arfei, embasbacada. Wonwoo assentiu.
— Me deram um adiantamento de 30 mil dólares. Só pra eu sentar e escrever.
Não conseguia controlar o choque no meu rosto. Minha cabeça acostumada com biscoitos murchos não conseguia nem computar 30 mil dólares de uma só vez.
— Estou com vontade de tirar três coronas da geladeira secreta do Eddie agora mesmo. — comentei, um sorriso do gato da Alice congelado na minha cara. Wonwoo riu, mas ainda parecia um sorriso contido. Um sorriso não digno de alguém que estava rico e que ficaria ainda mais.
Daí, acho que fui entendendo aos poucos.
— A-ah, você… quando você diz sentar e escrever… — comecei, os músculos da face sendo os primeiros a murchar. Aquele olhar dele para cima de mim cintilou um pouco menos.
— É. Quero dizer que vou sentar e escrever em um lugar que não seja na Filadélfia.
Gelei um pouco por dentro, me obrigando a engolir em seco.
— Deixa eu adivinhar. Nova York?
— A cidade mais linda do mundo.
Era a cidade mais linda do mundo, sim, pelo menos na visão do meu melhor amigo. Wonwoo comentava pouco sobre o que faria depois que seu programa de doutorado em Literatura acabasse, mas, de alguma forma, eu achava que ele ficaria ali, na nossa pacata cidade não tão pequena, não tão cheia de arte, não tão cheia de vida colorida e melancólica como sua alma precisava. E, naquele momento, acho que eu amei a alma de Wonwoo mais do que nunca amei na vida.
— Ela é tão a sua cara. — funguei. Percebi que estava chorando um pouco, um hábito péssimo que tinha adquirido e que explodia do nada, mas estava tão bêbada de felicidade por ele que não senti necessidade de secar tudo rápido como se cometesse um crime.
E juro que os olhos dele estavam um pouco mais brilhantes também. Ou eram só as luzes dos postes batendo nas lentes de seus óculos conforme a noite ia caindo.
Sem dizer nada, Wonwoo abriu a mochila de novo e ficou segurando um envelope por um tempo, raspando o dedo no papel rugoso até estendê-lo para mim.
— Eu ia dar isso pra Belle antes de ir, caso você ainda não estivesse querendo falar comigo, mas… Por favor, pega.
Peguei o envelope de cor verde limão, fechado de um jeito meio tosco, como se tivesse sido feito com pressa. Abri a parte de cima e estava prestes a fazer uma piada sobre “não me diga que um dos bônus do contrato é poder tomar gelato de limão pelo resto da vida na Baccio”, mas não seria capaz de proferir uma única palavra quando li o que estava escrito ali.
Eu podia concordar se qualquer pessoa no mundo dissesse que falo demais. Que sempre pareço ter uma resposta na ponta da língua, ou que dificilmente engoliria um desaforo. Mas naquela hora, Wonwoo tinha me jogado em um rio congelado de um jeito tão violento que tudo ao meu redor ficou cinza, tão cinza quanto minha blusa horrorosa de 7 dólares.
— Isso não tem a menor graça. — me vi murmurando, vidrada no pedaço de papel.
— Não é uma piada.
— Com certeza, é.
— Não é, .
— Que porra é essa? — larguei o papel retangular e o envelope no colo dele, como se de repente estivesse segurando um ninho de vespas. — O que você fez?
— São parte dos meus ganhos.
— Isso não é uma parte dos seus ganhos. Isso são 10 mil dólares, Wonwoo.
— Eu pensei em transferir mais, mas achei que você pudesse ficar ofendida…
Mais?! — quase fiquei de pé. Todo o gelo tinha se transformado em fogo. — Você ficou maluco? Não pode me dar 10 mil dólares do dinheiro que você ganhou! O que eu tenho a ver com isso?
— O que você tem a ver com isso, ? — ele arqueou as sobrancelhas, ironizando. — Como pode perguntar o que você tem a ver com isso?
Tinha certeza que minhas pálpebras estavam tremendo. Meus ouvidos pararam de captar ruídos urbanos, trânsito, a vida no geral, e só ouviam Wonwoo.
— Você tá fazendo uma pergunta idiota. — continuou ele, coçando o nariz. — E eu até gosto de contar histórias, mas essa eu não tô afim de contar de novo.
Tentei engolir, mas meu corpo tinha baixado seu percentual para 40% de água no momento. Seu olhar intenso para cima de mim me obrigava a piscar para não chorar, mesmo que ele não estivesse sendo acusatório, como provavelmente poderia ser.
— Não importa como ela nasceu, Wonwoo. — minha voz era um pouco mais que um sussurro, lembrando o tempo todo da conversa que tivemos no Mango’s. — A Daniella continua sendo sua. Ela nasceu da sua interpretação, de toda essa poesia que você tem. E depois de tudo que eu falei…
— Eu tô bem ciente do que você falou, e honestamente, não importa mais. Eu vou superar, . Aliás, já estou superando. — Wonwoo expirou, agora recostando no encosto do banco de madeira com uma pintura branca descascada, como se o pior momento já tivesse passado. — Eu sei que você não me ama ou não sente o que eu queria que sentisse, mas foi graças àquela noite no Mango’s que passei três dias direto em um rascunho que quase foi pro lixo e tive coragem de enviar pra editora. Nunca escrevi tão bem em toda minha vida. Aparentemente, um coração partido é uma coisa extremamente produtiva. — ele riu, levantando o canto dos lábios. Os meus ainda estavam congelados demais para retribuir. — Então, por favor, aceita o dinheiro. Se não for pelo motivo óbvio de ser a inspiração da Daniella, que seja por esse impulso que você me deu. Você sempre me impulsionou pra tudo, se pensar bem. Sem você, eu ainda seria um garotinho que entraria nas portas erradas.
Ele voltou a guardar o comprovante de transferência no envelope, alisando o papel com todo cuidado do mundo, tratando-o com mais carinho do que sua carta de trabalho na melhor editora da porra dos Estados Unidos.
Ignorei isso.
— Eu literalmente tranquei você em uma porta errada. — falei, a voz não firme o suficiente, tentando não desabar.
— É, mas eu meio que queria ficar preso com você. — ele deu de ombros, exibindo seu sorrisinho inocente. Quando Eddie nos via no Mango’s normalmente, olhava para aqueles três adultos aproveitando mutuamente de uma bebida alcoólica barata após um longo dia e sempre dizia que eu e Belle ficaríamos bem se estivéssemos com o “atleta bonzinho”. Talvez tenha sido a mesma coisa que senti quando o conheci, mesmo sem saber.
Ele estendeu o envelope de novo, e dessa vez fui obrigada a olhar.
— Aceita, por favor. Por todos os nossos anos de amizade. Você vai precisar se estabelecer em Harvard quando chegar e sei que prefere amputar a perna a pedir ajuda ao seu namorado. Então, pelo menos, aceita a minha.
Senti uma lágrima grossa e gorducha descendo pela minha bochecha, um acúmulo de uma choradeira em uma linha aguada, e segurei o impulso de secá-la. Queria dizer que estava chorando de emoção por ganhar 10 mil dólares, uma quantia absolutamente luxuosa para cientistas recém formados, uma quantia que eu provavelmente só ganharia depois dos 34 anos na academia, e olhe lá. As pessoas na minha posição chorariam e se ajoelhariam para o bom samaritano míope que estava estendendo aquilo para mim como se estivesse me oferecendo balinha de iogurte.
Mas o motivo do choro era mais profundo e vergonhoso. Era porque aquilo parecia uma despedida. Porque eu tinha errado com Wonwoo, e ele errou comigo também, quando nós dois precisávamos um do outro, como sempre precisamos. Porque eu não ia mais vê-lo tropeçando nos próprios pés enormes por aí e nem beber uma cerveja com ele como foram os últimos cinco anos, desde a primeira vez que nos encontramos no Mango’s e não dissemos nada, absolutamente nada, só brindamos e olhamos para as próprias unhas, mas sem ter vontade de levantar e ir embora dali. Foi o incrível momento, inexplicável, onde ficamos em silêncio pelo arrastar das horas, mas emergimos do outro lado dele definitivamente amigos.
E agora as duas últimas semanas pareceram uma completa perda de tempo, já que eu não o veria por bem mais do que isso.
— Eu ainda nem fiz a minha entrevista. — solucei, me vendo obrigada a ceder ao instinto de secar a lágrima. — Não sei se eu vou…
— Qual é, . Estamos falando de você. Acorda.
Tive vontade de chorar mais ainda. Meu Deus, isso estava ficando ridículo.
— Eu vou sentir sua falta. E dos seus óculos. E até dessa colônia horrível que você não para de usar agora.
— É que eu tô numa missão de afastar as mulheres recentemente. Preciso sofrer por você o máximo que eu puder até terminar esse livro, ele vai ter um fim trágico.
Rimos juntos, e o calor abundante voltou a tomar meu peito e expulsar toda aquela agonia e congelamento. Wonwoo não perguntou mais, e eu bufei antes de puxar o envelope e jogá-lo na minha bolsa, sem abri-lo mais, e sem intenção de abrir em qualquer outro momento. Acho que eu sabia exatamente o que faria com ele.
E, aproveitando que minhas mãos já estavam ali, senti o contorno de plástico de algo que me fez sorrir.
— Tá afim de um último snicker? — puxei a embalagem para fora. Wonwoo suspirou, e seu sorriso me pareceu muito com alívio.
— Já não era sem tempo.
Então rasguei o pacote e quebrei o snicker no meio, dando a outra metade para o meu melhor amigo para sempre.


Eu estava absolutamente fascinada pela maneira como quatro paredes simples podiam guardar um cômodo tão espetacular.
A suíte presidencial do Omni Hotel tinha vista direta para o campus principal da Yale e os seus zilhões de prédios históricos, cheios de pináculos e gárgulas iluminados por postes amarelados, transformando tudo em uma paisagem gótica mesmo à luz do dia. Vi a Harkness Tower perfurando um cinturão de árvores e se erguendo maravilhosa para cima com seus 216 pés, sendo apenas um de tantos outros pontos turísticos que eu só via em postagens do Instagram e dos panfletos que Wonwoo guardava no baú da cama quando voltava de suas viagens com o time para jogar em outras universidades.
Não era do meu feitio ficar sonhando acordada, mas fiquei tempo demais olhando por aquela janela do chão ao teto, visualizando aquela cidade surpreendentemente tranquila de um ponto que achei que jamais veria qualquer outra.
Por outro lado, Yoongi já entrou ajeitando as malas no canto do quarto, fazendo uma ligação de vídeo com Jihoon para avisar que chegamos, verificando os banheiros e suas possíveis falhas, e fitando o relógio sem parar para monitorar seu cronograma, tudo em uma sequência assustadora de 20 minutos.
A premissa mais básica para se reconhecer uma pessoa rica a vida toda é reparar se ela não dá a mínima para um espumante de 700 dólares enfiado em um balde de gelo em cima da cômoda perto da TV, com um bilhete escrito à mão em uma caligrafia tão refinada quanto o resto do quarto: estamos felizes em recebê-lo, doutor D.
Yoongi passou no teste.
— Preciso ir para a primeira reunião. — disse ele, ajeitando o blazer na frente do espelho de corpo inteiro. — E depois pra primeira rodada de apresentações, duas mesas redondas e o painel dos chefões de Yale. Provavelmente, não vou conseguir almoçar com você.
Ele baixou os ombros através do espelho para mim, que ainda estava agarrada na parte de escolher uma blusa da mala aberta enquanto ele já estava pronto para sair.
Balancei a cabeça na sua direção.
— Não se preocupa comigo. Eu sei pronunciar umas cinco vogais em sotaque britânico, vou fazer amizade com alguém rapidinho.
Ele avançou para me dar um beijo na testa, um sorrisinho satisfeito no rosto, aliviado por eu ser tão esquisitinha e meramente independente.
— Ah, antes que eu esqueça. — Yoongi caminhou até a bolsa pasta em cima da poltrona ergonômica de couro no canto do quarto e puxou um crachá e um papel dobrado, deixando em cima da cômoda. — Essas são suas credenciais e um roteiro completo do evento, junto com um mapa. Você pode andar à vontade por aí e assistir todas as palestras que achar interessante. Não tenho certeza de quanto tempo vai durar as orientações, mas prometo que jantamos juntos.
— Ainda bem, eu não sei manter um sotaque por tanto tempo, as pessoas vão perceber. — dei de ombros. Ele voltou a se aproximar e me pegar em um beijo mais duradouro, um pouco mais intenso, o beijo que me dava quando estava se despedindo.
— Se quiser, pode tentar usar as palavras em coreano que eu te ensinei. Tem todo tipo de gente lá embaixo. — ele raspou a boca na minha. Atitude perigosa, ainda mais se ele estava vestindo aquele blazer, e não tínhamos tempo para isso.
— Acho que eu vou parecer mais uma maluca do que alguém querendo me enturmar assim, mas obrigada pela dica. — beijei ele de novo. Yoongi cedeu por alguns segundos para morder meu lábio e colocar a palma na minha barriga por baixo da minha blusa curta totalmente proibida em todos os laboratórios do mundo.
Ele tinha me contado recentemente que aquela era a parte do meu corpo que ele mais gostava. Seja lá o que tivesse nela para ter chamado sua atenção. Eu tinha pavor de colocar um piercing no umbigo e não pisava numa academia desde… sempre.
— Tá bom, você tem que ir. — empurrei ele quando aquela falta de ar e a pressão quente no meu ventre começaram a se agrupar para o evento canônico “tesão”, que só estava programado para acontecer quando a noite chegasse e as luzes da cidade estivessem devidamente acesas embaixo de nós. Talvez foi mais uma razão do porque olhei tanto para a janela: estava vendo qual a melhor posição minha bunda ficaria no vidro.
Yoongi assentiu várias vezes, uma coisa que fazia quando estava desnorteado.
— Tudo bem. Te vejo às seis.
E saiu, com sua bolsa pasta ao lado e o celular na mão, pronto para responder a todas as mensagens que ignorou até que chegasse aqui.
Olhei para as roupas na mala. Uma mistura aleatória de coisas que, agora que eu cheguei, não pareciam fazer tanto sentido quanto pareciam lá na Filadélfia. Suspirei, passando uns bons minutos entre um vestido tubinho preto que me fazia parecer uma assassina de aluguel e um conjunto vermelho que potencialmente atrairiam perguntas do tipo: “você errou a porta? Aqui não é um festival de tango”.
O look de assassina me faria parecer culta e meramente interessada em assuntos como cones vulcânicos ou bacias hidrográficas, o que provavelmente faria o reitor de Harvard olhar para mim nem que fosse por um minuto, me dando a oportunidade de falar com ele: “é que anda difícil encontrar trabalho formal nos Estados Unidos ultimamente”, mas não conseguia prever sua reação com essa piadinha, então: olá, festival de tango.
Independentemente dos cenários que minha mente montou, seria impossível alguém olhar para aquele vestido vermelho e não querer, pelo menos, sorrir para mim.
Complementei o visual com meia calça preta e a bota de Belle, arrumei o cabelo já meio arrumado em ondas simples com chapinha, fiz o que sabia de maquiagem (o mínimo possível, mas nada a se desprezar), e agarrei meu crachá e o mapa, saindo para me aventurar no grande Desfile da Ivy League.
O evento aconteceria no campus da Yale, a alguns metros do hotel, com a entrada sendo no edifício da Escola de Negócios, uma enorme estrutura de vidro, lotada de carros estacionados em volta, pessoas em terninhos e crachás passando de um lado para outro, várias línguas de vários países se embolando e barulhos indistintos ao longe, como microfones e som acústico. Quando entrei no hall, já fui metodicamente atacada por cores e banners de todos os tamanhos, títulos de artigos e pesquisas inovadoras acima de setas e traços indicadores: “vá por ali para assistir ao doutor Chris Gosling falando sobre Paleoclima”, “por aqui para ouvir a doutora Judy Novak em Transição Energética”, atravessando o piso nada menos do que granito puro, com cores difusas serpenteantes, que parecia estar brilhando mesmo com tantos sapatos vindo do lado de fora, o pé direito do teto tinha formato de abóbada e com certeza foi produzido a partir de algum material de pedras ainda mais sofisticado, e, por fim, em um grande banner exposto no teto: Palestra oficial de Augustus D. sobre Geomorfometria e Modelagem Digital. 18h00 no auditório principal.
Bom, não dava para dizer que os geólogos não sabiam fazer uma chamada, não é?
Passei a tarde fazendo coisas que nunca achei que faria: fazer volume em palestras aleatórias, sem nem estar pensando no coffee break. Além dos auditórios, tinham apresentações individuais nos corredores ou salas menores, alunos de graduação que estavam trabalhando para os leigos e mostrando suas primeiras montagens de imagens de satélite, contando sobre suas últimas aulas de campo e em como tudo foi um desastre porque o dia estava cinzento e um deles quase perdeu a majestosa visão de um trilobita. Respondi que não parecia tão ruim assim, porque desse jeito ele não suava tanto ao subir a trilha. Todos os outros na rodinha me olharam como se eu fosse um alienígena.
Geólogos realmente não curtiam muito a falta de luz.
No fim de outra palestra, conheci uma garota de 19 anos que tinha acabado de entrar na faculdade de contabilidade, mas que seu sonho era ser geóloga porque simplesmente amava a história do planeta Terra. “Não dá pra saber essas coisas fazendo as contas de outras pessoas. Algumas profissões não passam de baboseira”. Pensei em retrucar, mas ela parecia já estar passando por muitas dificuldades na troca de carreira pausada, então deixei apenas que ela falasse.
Assisti outra palestra que falava sobre o sistema solar, onde a doutora até mesmo distribuiu mini globinhos de mapa múndi para a plateia total de treze pessoas no final, e até nos deu chocolatinhos. Eu realmente gostei dessa.
Também teve uma que, na verdade, era de um biólogo com pesquisa ativa em Paleontologia que colaborava com ninguém mais, ninguém menos que o próprio marido, um geólogo renomado que o conquistou quando fez biscoitinhos caseiros no formato do Pterodáctilo. Ele nos contou a receita dessa iguaria e riu muito durante todas as vezes que relacionava um tópico da apresentação a algo de sua vida pessoal. Foi o tipo de coisa mais improdutiva do que realmente necessária, mas eu tirei foto da receita dos biscoitos. Jihoon ia adorar.
Assisti a mais duas palestras de Geologia Forense até, finalmente, aceitar que precisava me aventurar pela comida antes que desse o horário da palestra de Yoongi. No foyer perto da entrada do prédio, várias pessoas já estavam amontoadas em volta das mesas enormes guardando todo tipo de bolo, mini hambúrgueres e sanduíches de presunto, e fiquei com medo dos meus olhos estarem muito intensos em volta do que eu passaria a chamar de coffee break nível ouro.
As coisas na Ivy League eram realmente de outro patamar. Um humanamente mais decente.
Provavelmente, devo ter herdado a habilidade de enfiar duas ou mais coisas de tamanho médio na boca e mastigá-las sem parecer um esquilo com uma noz da minha mãe, ou dos meus anos de Drexel, que me obrigavam a engolir um almoço mixuruca em cinco minutos antes de precisar voltar ao laboratório, porque consegui provar uma unidade de cada coisa em tempo recorde, enquanto bebia um café que estava longe da data de vencimento. Logo, mirei um pedaço brilhante de tortinha de limão que estava praticamente gritando o meu nome, iluminado pela luz pálida da enorme janela de vidro do ambiente.
Engoli tudo que estava comendo e atravessei o salão, olhando as outras mesas, ouvindo de relance as conversas dos grupinhos, que ou estavam falando de algo relacionado a rochas ou falavam mal de algum palestrante que gaguejou ou colocou a referência errada no fim do slide, não importava se todo o resto tinha sido bom. “Deixar aquele tipo de erro de digitação no encerramento? Escrever obregado ao invés de obrigado? Onde ele acha que está?”
Eu mentiria se dissesse que esse era o maior absurdo que estavam comentando.
Quando cheguei às amadas tortinhas de limão, parei e olhei para a frente. Alguns metros adiante, tinha um frigobar em cima de outro, ambos exibindo cervejas engarrafadas e praticamente intocadas, e não qualquer cerveja: eram Coronas. Deliciosos líquidos amarelados de trigo mexicano que não eram vendidos por menos de 7 dólares em qualquer barzinho do mundo.
Olhei para as pessoas. Ninguém estava bebendo, ninguém prestava atenção a nada que não fossem os pãezinhos de cebola e o café forte servido em copinhos de papel.
E talvez eu estivesse errada. Talvez a única coisa que herdei da minha mãe foi a minha incapacidade de dar meia-volta.
Fui até o frigobar e notei que ele estava aberto. Agarrei uma cerveja e voltei a fechá-lo, sentindo a tentação de mandar uma foto para Belle e receber sua resposta: “Bebendo Corona de graça? Que mulher de sorte. Ou melhor: mulher com sugar daddy.”
— Eu tenho quase certeza que você não pode tocar nisso. — alguém disse do meu lado, me fazendo virar para trás num pulo.
Um cara barbudo usando blusa xadrez e jeans largos, parecendo um lenhador das montanhas, estava parado atrás de mim, segurando um copinho de café, que parecia minúsculo dentro daquelas mãos grandes.
Olhei para ele e para minha garrafa de Corona, apertando ela no peito como se fosse um filhotinho.
— Hum… e eu tenho quase certeza que você não viu nada disso. — semicerrei os olhos, sugestiva. Ninguém estava mesmo me vendo. Mas não parei para pensar o que aconteceria caso vissem.
Por isso, do jeito que o cara me olhou, esperei problemas. Esperei que ele gritasse: “LADRA, LADRA”, e seguranças de preto entrassem em bando, me agarrassem com algemas e correntes, e me levassem a interrogatório no departamento de polícia. Não sabia muito sobre New Haven, mas acredito que a penitenciária da cidade não recebia um hóspede com diploma de ensino superior há várias semanas, julgando a surpreendente falta de pichação nas paredes do campus.
No entanto, o lenhador fez um pfff e começou a rir da minha cara, rir de verdade. Fiz uma careta confusa e tentei rir também, mas honestamente, não sabia se ele estava me zombando ou se estava rindo da iminente situação em que eu seria considerada uma criminosa.
Me deixei ser o foco da sua recepção intensa por aproximadamente dois minutos até coçar a garganta e perguntar nos meus olhos: o que foi que eu falei?
Ele finalmente parou de rir e andou até o frigobar, pegando sua própria Corona. Abriu o gargalo com os próprios dedos, sem abridor, simples assim.
Lenhador.
— Quer ajuda com a sua? — perguntou, gesticulando para o “meu precioso” em formato de cerveja.
Levei um tempo para assentir e deixei que ele a abrisse para mim.
De alguma forma, senti uma enorme simpatia por ele.
— Obrigada. — bebi um gole gelado. O sabor dançou no meu estômago junto com todas as coisinhas deliciosas feitas de presunto e amendoim que comi.
Estava pronta para me despedir quando ele falou na frente:
— Então, sem doutora na frente do seu crachá, vemos que é só uma pessoa normal. Aleluia. — disse, seguindo as letras gravadas no papel com os olhos. — O que uma cidadã de bem estaria fazendo num lugar desses? Por que não está em algum lugar mais feliz e confortável, como um parque de diversões ou um lar de idosos?
— Se eu disser que me sinto num parque de diversões aqui, eu deixo de ser normal?
— Definitivamente.
Ri pelo nariz. Foi minha vez de olhar seu crachá: Doutor Nicholas Elizondo. Harvard.
Acho que meus olhos brilharam um pouco sem querer.
— Vou parecer uma tiete maluca se perguntar se por acaso passei por uma palestra sua hoje?
Ele baixou os olhos para o próprio crachá e franziu os lábios.
— Se está perguntando isso por causa de Harvard, então sim, vai. Mas eu não dei palestras.
— Ah, o senhor é a primeira pessoa de Harvard que encontro hoje. — Yoongi não contava. Nicholas fez um sinal irrelevante com as mãos.
— Por favor, senhorita , eu tenho menos de 40 anos e com um recorde de dois cabelos brancos, senhor é um título desconfortável. — ele fez uma careta e bebeu um gole de cerveja. Segurei um riso e me desculpei. — Tudo bem, meu colega de trabalho tem 28 anos e ama ser chamado de senhor, mesmo tendo a pele de bunda de neném. As pessoas de Harvard são meio babacas.
— Ele está dando uma palestra? Posso ser a primeira a causar um trauma nele e chamá-lo de você.
— Você se voluntaria pra esse tributo?
I volunteer! — levei as mãos até o meio do queixo, tentando dar meu máximo em uma imitação zoada de Katniss Everdeen. Agora os olhos do Elizondo lenhador brilharam.
— Nunca vi uma figura do Tordo tão literal no meio desse circo. No melhor sentido da palavra. — ele disse, e ri de novo. Caramba, Nicholas era muito legal (e entendia referências pop). — Mas não, o bostinha não dá palestras. Somos pessoas que trabalham na surdina, por trás de uma porta fechada, tentando entender porque o Titanic não viu aquele iceberg sendo que tinha 700 metros de altura.
— Devia ser o desejo do monstro do Lago Ness. Ele precisava se alimentar.
— Ah, é, investigamos ele também. Quando o expediente acaba, eu e o senhor bundinha de neném viramos o quadro negro ao contrário e começamos a ligar barbantes vermelhos e desenhar X na cara de pessoas que desapareceram misteriosamente nos mares.
Ri atrás do gargalo da cerveja antes de dar um gole. E ri um pouco mais depois disso, quase deixando que aquele vergonhoso ronco escapasse do meu nariz.
Nicholas também riu, mas era controlado. Alguém que se divertia mais em fazer piadinhas do que achar graça delas.
— E o que faz realmente aqui, senhorita ? Não me diga que é uma apoiadora convicta da amostra de fósseis.
— Tem uma amostra de fósseis aqui? — segurei a vontade de tirar o roteiro da bolsa e olhar de novo. Como eu não tinha visto isso?
— Está mais pra uma apresentação de cinco minutos pra um público com no máximo doze anos lá na saída. Seria interessante se não fossem todos de plástico. Acho que a galera do projeto não conseguiu autorização pra pegar peças reais emprestadas do museu. Uma pena, mas as crianças estão se amarrando. — ele abriu um sorriso mais largo, e notei que eram todos perfeitos, alinhados e brancos. — Infelizmente, aqui tem muitas pessoas com muitos problemas do mundo pra falar que não veem sentido em incluir a geração futura.
— Que manés. — deixei escapar, e depois fiz cara de assustada. Não imaginei que Nicholas fosse me repreender, mas ainda assim, cocei a garganta para me corrigir. — Digo, são pessoas infelizes. Eu adoraria tocar em fósseis de verdade, mesmo tendo minhas dúvidas sobre os dinossauros.
Ele assentiu devagar, semicerrando os olhos na minha direção para me avaliar. Devia estar pensando de qual buraco da parede eu consegui entrar.
— Deixa eu adivinhar: ceticismo religioso?
— O quê?
— Ou filosófico? Você tem mesmo cara de gostar de problemas que não poderiam ser resolvidos meramente pela decência humana, e por isso deve ser mais feliz.
Finalmente entendi o que ele estava dizendo.
— Ah, não. Não, eu não sou hater da ciência, e também não faço Geologia. Sou bióloga, no fim do doutorado. Vim aqui acompanhar meu namorado, ele vai dar uma palestra.
Os olhos se esmiuçaram mais um pouco, como se eu tivesse dito, de repente, que morava com ratinhos brancos, lebres e um detento no porão de uma mansão, fazendo experimentos para um novo Frankenstein (o que deixaria qualquer um minimamente apreensivo).
— É mesmo? Quem é seu namorado? — Nicholas disfarçou rápido aquele tique na pálpebra.
Abri a boca para responder, mas de repente um outro cara chegou até nós, tocando no ombro de Nicholas e murmurando alguma coisa sobre: “Temos que ir, tá na hora”, sem nem olhar para mim. Nicholas apenas assentiu com a cabeça e voltou a me olhar enquanto seu amigo refazia o caminho para a porta.
— Vou ter que ir, senhorita . Mas foi um prazer te conhecer. Não se esqueça do seu juramento com o meu colega.
— Eu jamais esqueceria. — lhe dei um tchauzinho e o vi se afastar. Provavelmente, poderia dizer no fim da noite que fiz um amigo.
Olhei no relógio. Faltavam trinta minutos para a palestra de Yoongi, o que significava que eu ainda tinha tempo de passear mais um pouco. E agora sabia exatamente para onde iria.
Saí do salão e atravessei o corredor de vigas expostas até as placas espalhadas que me indicavam os fundos, onde as apresentações de menor orçamento e menor público também estavam. Quando cheguei, espiei por cada porta aberta até achar: Visualização lúdica de ossos de dinossauro do T-Rex. O espaço estava tomado de colchas e berços antigos, funcionando como apoio para superfícies de madeira onde os ossos foram espalhados com plaquinhas de identificação na frente, onde crianças precisavam ser pegadas no colo para ver e ter as mãozinhas puxadas para não tocar. Nas paredes, retratos obscurecidos de cientistas da área na era vitoriana já falecidos. Ali dentro, cheirava a duzentos anos de presunto defumado, mas as pessoas nem pareciam se importar. Graduandos, provavelmente, estavam fazendo o tour para adolescentes com fones de ouvido e outros que gostavam apenas de sentir o passado, não ouvi-lo. Me coloquei ali dentro, olhando tudo por cima mostrando total atenção à garota de cabelos cacheados que estava dizendo que o osso esfenoide do Archaeopteryx na verdade ficava no nariz, no mesmo lugar que os galos têm. Soltei um arquejo surpreso, enquanto ninguém se importou.
No fim, perguntei se ela não tinha um daqueles de plástico sobrando ou até defeituoso para me arrumar, porque era professora e achei que meus alunos iriam gostar. Ela hesitou, mas olhou para uma caixa atrás de um dos berços e puxou uma estrutura que parecia um osso gigante que um cachorro de desenho animado comeria.
— Esse daqui saiu errado na hora da modelagem. As laterais estão arredondadas demais.
— Não tem problema. Você pode me explicar o que ele seria?
Ela começou a falar, e, à medida que eu não desviava os olhos e nem os revirava como a população de 14 anos do lugar, ela se empolgou. Se empolgou tanto que quase me fez perder a hora para a palestra.
Às 17:56, entrei no auditório no último andar, separado exclusivamente para palestrantes principais, um andar inteiro tenebrosamente diferente dos demais (o Monte Olimpo acima dos pobres mortais). Aqui as pessoas estavam mesmo de terno, alisavam mesmo as gravatas e olhavam para os outros como os vermes dos vermes de fruta. Ou, no mínimo, como cupins se acumulando na calha do vizinho.
Ajeitei meu vestido sem perceber, mesmo que ele estivesse no lugar, assim como o cabelo, que também estava no lugar, mas a coisa toda de repente me pressionou. Espero que não percebam que eu estava carregando um mini globo, bolinhas de queijo, pedrinhas coloridas e um osso de plástico na minha bolsa.
Olhei o roteiro de Yoongi. Minha cadeira estava marcada lá na frente, bem onde eu disse que estaria. Andei pelo corredor com carpete de veludo enquanto procurava o número A7 marcado na poltrona, igualmente de veludo roxo, espalhadas categoricamente na frente de um palco de madeira imenso, com elementos de som e áudio tão sofisticados que os cabos nem apareciam. Finalmente, vi a fileira A e fui entrando até o número 7, encontrando um papel escrito “ ” em letras grandes e pautadas, bem na frente da onde seria aberto o projetor.
Tive vontade mesmo de estar com a câmera e fazer tudo que a mãe de Yoongi não fez.
Quando me sentei, comecei a preparar meu celular. E então, ouvi:
— Futura doutora ?
Olhei para cima, vendo o lenhador.
— Doutor Elizondo? — abri um sorrisinho. — Que surpresa, o que faz aqui?
— Vim sentar na poltrona A8 e ouvir o que seja lá que vão falar hoje. — ele disse com divertimento, se acomodando na poltrona vizinha. O mesmo carinha que o tinha chamado antes estava cruzando o corredor para fazer o mesmo. — E você? Já assistiu à palestra do seu namorado?
— Na verdade…
Um zumbido ensurdecedor que durou dois milissegundos encheu o auditório quando um homem velho, de rosto sério e carnudo, subiu ao palco e encostou no microfone.
— Boa noite a toda a comunidade acadêmica. Vamos seguir com as apresentações de hoje. Pedimos o silêncio e a total atenção de todos os nossos participantes, e estejam à vontade para fazerem perguntas no final. Para esse turno, convidamos então nosso palestrante principal do dia, uma grande figura na nossa área e grande colaborador com instituições ambientais de renome que também se reúnem aqui. Aplausos para o doutor Augustus D.
Esqueci do resto. Na mesma hora, bati palmas junto com os outros, talvez até mais altas, me lembrando de repente da primeira vez que o vi na Drexel e não consegui manter toda a postura animada que queria porque estava chocada demais ao descobrir que ele não precisava de andador. Ou que tinha todos os dentes na boca.
E por ser um cara gato que eu jurei que me odiava.
Ali, naquele auditório lotado de gente, me controlei apenas para não gritar quando ele surgiu na lateral do palco, com seu blazer perfeitamente passado depois de um dia inteiro, seus sapatos lindos, seu cabelo lindo, seu sorriso lindo e mãos lindas segurando o passador de slides.
As palmas duraram por um tempo, e alguns gritinhos aconteceram sim, bem nos fundos, com certeza vindos de graduandos e mestrandos. De repente, fiquei imaginando se existiam colegas do Geologáticos aqui, e se a identidade de Yoongi finalmente seria revelada. No entanto, parei de pensar rápido quando vi seus olhos esquadrinhando as poltronas da esquerda e seus olhos parando nos meus.
Minha nossa, eu poderia explodir e virar do avesso só com aquele sorriso que ele abriu. Não vi a hora de voltar para o quarto, de mandá-lo fazer uma palestra só para mim. Pelado.
Ele desviou rápido os olhos e começou a falar. “Boa noite a todos, sou o doutor Augustus D, e preparei uns novos modelos de satélite sobre…”
Tentei parar de sorrir para não parecer que eu era um boneco de ventríloquo, e voltei a puxar minha bolsa para pegar o celular disfarçadamente e tirar uma foto, quando olhei para o lado de relance. Nicholas estava ali, olhando para mim, o rosto indecifrável.
Me lembrei da sua pergunta inicial.
— Ah. É ele. — movi os lábios sem emitir som, apontando com empolgação para o palco. — Meu namorado.
Nicholas continuou sem sorrir, agora com o adicional de parecer fechar a cara. Que estranho.
Voltei a prestar atenção em Yoongi, atenta ao menor momento em que ele sorrisse demais para pegar na câmera. Eu não era muito boa naquilo, mas uma foto embaçada do seu pai discursando para milhares de pessoas enquanto usava camisa de botões e rolex importado, já era alguma coisa. Duvido que Jihoon se importaria.
O tempo passou mais rápido do que pensei; talvez porque era Yoongi falando ou talvez porque, coincidentemente, o assunto que ele tinha escolhido se dedicar era bem legal mesmo. Augustus D. era especialista em Geomorfometria, uma sub-área da Geomorfologia que lidava diretamente com as tecnologias criadas e aplicadas em áreas degradadas e também para vasculhar a história de como essas áreas foram criadas, e especificamente quando. As pessoas costumavam achar que geólogos só se importavam com pedras, trilhas e uma montanha ou outra, mas os caras queriam mesmo entender a história da Terra, tocar, sentir, saber, vasculhar as inúmeras possibilidades que estavam conosco, mas escondidas por um véu de tempo indefinido.
A maioria dos slides eram imagens de projeção de satélite que ele mesmo tinha feito e captado para explicar pontos de mapeamento do terreno e os padrões de fluxo de geleiras, apresentando principalmente os softwares que andava trabalhando e os que estava melhorando, embarcando em um pouco de Geotecnologia Computacional, uma área que andava sendo cada vez mais essencial para sua pesquisa e, provavelmente, sua próxima especialização. Nem precisei virar a cabeça para saber que a maioria estava boquiaberta, principalmente porque o cara não usava texto, nem parecia ter feito colinha na mão ou estar lendo um script em algum televisor escondido. Estava tudo ali dentro daquele cérebro, ensinamentos nascidos de uma mente ainda tão empolgada pela história do planeta quanto era desde que era um adolescente.
É claro que ele foi aplaudido de pé quando acabou. Uma vastidão de pessoas tirando fotos, cochichando animadas, fazendo anotações em pranchetas e correndo para a saída do palco em busca de um um minutinho de atenção do palestrante principal foi apenas uma palhinha de caos que captei do meu lugar.
A Drexel realmente guardava um tesouro nacional.
Agarrei minha bolsa e segui para a saída do palco, vendo que o auditório inteiro já estava começando a ser substituído por outras pessoas, umas que agora gostariam muito de ouvir sobre Geologia Planetária, com um engenheiro diretamente da Nasa. Mandei as fotos para Belle, impressionada com a minha habilidade nada tão horrível de enquadramento, e esperei até que Yoongi respondesse todas as perguntas e emergisse do mar de gente, finalmente vindo me encontrar, bem na parte interna da estrutura em que minha credencial era bem-vinda e não barrada. Deus abençoe Yoongi e seus privilégios.
Quando o vi se aproximar, Yoongi andou mais rápido, todo sorrisos e arquejos, me tomando em um abraço que quase tirou meus pés do chão.
— Nossa, como é bom ter você aqui.
— Você foi ótimo! Ei, você fez isso, doutor D. — suspirei quando ele me soltou.
— Foi tão fácil, como sempre foi antes. Não acredito que eu não queria fazer isso. — Yoongi balançou a cabeça várias vezes, as mãos ao meu redor.
— Uh, que inveja. Eu precisaria respirar várias vezes dentro de uma sacola de papelão antes de subir naquele palco.
— Não posso dizer que não pensei em fazer isso. Separei até calças novas.
Ri pelo nariz, impressionada e um pouco extasiada pela felicidade absurda de Yoongi que até o levava a fazer piadas sobre dejetos humanos.
Cheguei mais perto dele, agarrando seu colarinho para ajeitar algo que já estava ajeitado.
— Mudei de ideia, minha nova fantasia virou unicamente e puramente Augustus D. — sussurrei a uma proximidade aceitável em um auditório de respeito.
— Achei que sempre tinha sido.
— É que agora envolve cabos de microfone e blazers de 500 dólares.
Ele puxou aquela ruguinha no canto da boca para fazer uma versão reduzida do sorriso cafajeste.
— Parece sexy.
— Espera só a gente chegar no quarto. — dei uma piscadinha e roubei um selinho dele, mais rápido do que um piscar de olhos. Me preparei para o seu olhar de bronca, ou para qualquer sussurro de repreensão, mas o homem devia estar mesmo no pico da felicidade, porque se inclinou ligeiramente na minha direção para me dar um beijo de verdade.
Um que não chegou a acontecer, já que o grito veio primeiro:
— Ora, ora, se não é o nosso Gus!
Virei para o lado. Um homem grande de cabeça raspada estava se aproximando de braços enormes abertos, com sorrisos brancos e cheiro suave de quem pegava os melhores produtos de higiene da farmácia. O outro, logo atrás dele, tinha um cabelo grande enrolado em um coque charmoso no topo da cabeça e as laterais raspadas, usando aneis e colares de madeira escura, como se fossem artefatos roubados de um cenário de filme do Indiana Jones. A calça jeans estava tão abaixada que dava pra ver o equivalente não apropriado de uma cueca.
E, por fim, com os lábios prensados e os olhos mirando mais a mim do que Yoongi, vinha Nicholas. O lenhador engraçadinho.
Que… não parecia muito engraçadinho.
— Meu Deus. — Yoongi me soltou, virando-se para os caras com uma surpresa estonteante nos olhos, sem acreditar no que via. Ele foi engolido pelo abraço do primeiro, depois do segundo, e depois Nicholas se meteu entre os três até a coisa toda parecer um abraço grupal desajeitado, com cumprimentos e vozes se misturando, e todos eles falando ao mesmo tempo sem parar.
Ah. Entendi. Tarde demais, mas entendi.
Gus. Existia um Gus.
Nem Augustus, nem Yoongi. Meu namorado da faculdade era simplesmente Gus.
Melhor dia da minha vida.
. — ele finalmente se virou para mim, o sorriso de orelha à outra. — Esses são Nick, Elliot e Dwight, meus amigos de Harvard. E essa é , doutora em Biotecnologia. — seu braço envolveu minha cintura. — E minha namorada.
Soltei um som de escárnio pela garganta.
— Isso só na semana que vem. A parte do doutora, eu digo. — acrescentei rápido para os três caras me olhando. — São os caras do rock na fogueira? Será que podem me dar um autógrafo?
Talvez eu tenha falado animada demais, ou talvez não precisaria começar fazendo uma piadinha com gente que não me conhecia. Eles olharam para os braços em volta de mim como se estivessem tentando detectar um “te peguei”, ou se tinham falado com o Gus certo, e isso gelou o meu estômago. Mas então, em questão de segundos, eles começaram a rir, abrindo sorrisos imensos como quando viram Yoongi, principalmente Elliot e Dwight, que se avolumaram para cima de mim, tão grandes quanto Wonwoo e seus companheiros do basquete.
, é um prazer te conhecer. — disse Dwight, super educado.
— Quem diria que o Gus ia se amarrar nas fêmeas da academia. Elas assustavam ele mais do que tudo. Com todo respeito, . — Elliot levantou as duas mãos, e fiquei mais surpresa pelo fato de que dizer o primeiro nome era tão natural para eles do que a informação privilegiada que estavam me passando sobre Yoongi.
— Isso é mentira. — Yoongi resmungou, mas sem seriedade.
— É, ele achava que elas iam aparecer naquela janelinha alta do lado da cama dele no dormitório bem na hora que ele estivesse jogando pra cobrar o relatório da próxima aula. Acho que as malucas tinham uma queda por ele. — Dwight continuou. Elliot gargalhou alto.
— Você disse Yoongi jogando? — arqueei as sobrancelhas. Virei para o lado na mesma hora. — Jogando?
— Não. — Yoongi balançou a cabeça em negação várias vezes, olhando os amigos. — Não, deixa ela fora disso.
— Você não contou pra ela do seu Call of Duty 2? — Dwight franziu a testa.
— Não contou que virava a noite jogando Call of Duty 2?
— Não contou nem do Squirt?
— Não, não, não, não… — Yoongi implorou.
— Squirt é um nome bem sugestivo. — comentei, falando devagar. Os dois balançaram a cabeça.
— Não é esse tipo de Squirt. O nosso Gus inventou um jogo… — Elliot se aproximou.
Nãooo! — Yoongi colocou as duas mãos no rosto.
— … de caça fantasmas. Ele montou sozinho um detector de frequência eletromagnética e fez a gente ir para os piores buracos de Boston só pra tentar sentir os espíritos e fazer perguntas pra eles. Adivinha o que ele queria saber?
— Os números da loteria? — chutei.
— Genial, mas não. Ele queria saber a idade dos pobres coitados pra conseguir informações privilegiadas da história local.
— História local. — Dwight fez um pfff com a boca. — Porra nenhuma, ele só queria saber se aquelas pedras sempre tinham sido pra esquerda e se eles se lembravam de algum terremoto nos últimos cem anos. Era tudo pela Geologia, tudo pela astenosfera.
Os dois explodiram em risadas. Eu acompanhei, porque jamais, em nenhum bloco de todas as minhas deduções e pensamentos sobre o passado de Yoongi, conseguiria conceber uma imagem dele com um rádio velho e um geofone, talvez desembrulhando um sismógrafo e acreditando em algo tão relapso quanto fantasmas.
Foi melhor do que imaginei.
— A gente vivia chapado naquela época. Vocês sabem disso. — Yoongi tentou se defender, mas sua voz era baixa em comparação com as risadas. E ri mais ainda quando contaram do receptor de mensuração.
Por um segundo, cruzei o olhar com Nick, e finalmente notei que ele era o único que não estava falando, exibindo um sorriso um pouco mais contido que os outros.
— Vamos jantar juntos hoje à noite. — Yoongi propôs. — Tem um restaurante lá na Chapel Street. Eles fazem burrito com pimenta de verdade e não implementaram aquela coisa chata de fazer pedido por QR Code. Vamos lá, por minha conta.
— Para de se achar, D., a gente também já começou a ganhar dinheiro. O Elliot aqui fornece a maior ninhada de bebês do condado de Middlesex toda semana. — Dwight deu um tapinha no ombro do amigo. — Nick é um bambambam de Harvard e eu tenho uma sala imensa e perpétua no MIT. Talvez juntando tudo ainda não chegue perto da mina de ouro do professor-titular, mas a gente vai te pagar um vinho mesmo assim. Comemorar seu comeback. — ele deu um soquinho no ombro de Yoongi.
— Só não liga se ele não for um Château qualquer coisa na casa dos milhares de dólares. — Elliot fez uma careta. Yoongi riu pelo nariz.
— É, ele vivia trazendo essas coisas na mala sempre que voltava da Coreia. — Dwight olhou para mim, todo sorrisos brancos que tinham o poder de te deixar à vontade instantaneamente. — Dizia que sobrava da adega da família dele. Riquinho de merda.
— Espero que não esteja criando seu moleque assim. Como ele está, inclusive? — Elliot ficou com os olhos brilhando. A mesma coisa aconteceu com Yoongi, em uma intensidade que cegaria alguém.
— O Rizwan tá enorme. Acho que ele vai me passar um dia, o que não seria difícil, e ele é inteligente, esperto, gentil, ama desenhar, ama muito carros de corrida. Ele fez esse desenho aqui esses dias, olha. — Yoongi tirou o celular do bolso, abrindo sua galeria, que era tomada por, principalmente, fotos de Jihoon e de mapas geológicos desenhados em folhas ou em programas de computador. A maioria eram em folhas. Por incrível que pareça, Augustus D. curtia ferramentas de esboço primitivas, mesmo que sua habilidade de desenho estivesse há anos luz do filho de 7 anos.
Ver seu sorriso orgulhoso falando do próprio filho derretia meu coração, quase me fazia deslizar pela parede. Os dois amigos inclinaram a cabeça para o telefone, ouvindo Yoongi agora fazer um discurso sobre a primeira vez que tinha levado Jihoon numa trilha curta, sobre quando ele ralou o joelho numa pedra e nem chorou, porque aquele milímetro de sangue serviria como história para a pobre rocha, quando Jihoon teve febre e Yoongi passou a noite no hospital e teve um torcicolo tão grande que ele também precisou de ajuda médica, quando ele tentou subir numa árvore baixa para tentar pegar uma manga que não caía de jeito nenhum, várias histórias que, no momento, me mantinham entretida como os outros, querendo saber mais. Até mesmo Nick, mais afastado, se aproximou do círculo para ver as fotos que Yoongi mostrava.
— Não dá mesmo pra brincar com esse garoto. — comentei, a cabeça em cima do ombro de Yoongi justo quando mostrou Jihoon com a fantasia de Fórmula 1. — Ele vai ser nosso próximo Senna. Ou vai desenhar carros igualzinho.
— Um carinha que vai gostar de adrenalina e alta velocidade, e da iminência de bater num poste? Não acredito que ele é seu filho. — Elliot cruzou os braços. Dwight riu.
— Ele mal passava do limite de velocidade. Quando o indicador do painel subia um pouco, já começava a dar tique nervoso.
— Minha nossa, ele faz isso mesmo. — arfei para os outros.
— Eu sou responsável. — Yoongi se defendeu. — As leituras dos radares de trânsito variam muito, mas elas funcionam. E a segurança…
— Podemos esperar o Rizwan começar a dirigir. — interrompi, e os outros dois riram. Yoongi revirou os olhos.
— Ah, cara, a gente tem que conhecer ele, Gus. Meu filho mais velho pode até ensinar ele a jogar beisebol. E podemos ir fazer churrasco na garagem do Elliot quando você for pra Boston, ele tá divorciado e com uma casa inteira só pra ele.
— Isso é menos deprimente do que parece. — Elliot murmurou. — Mas sim, Dwight e o marido dele vão pra lá toda vez que acham que estou com uma “anormalidade de energia” e levam as crianças.
— Crianças? — Yoongi franziu o cenho. Dwight reluziu em um sorriso.
— Solomon e eu tivemos a Wiktoria há dois anos. Ela é uma garotinha simplesmente incrível.
— Sério? Parabéns! — agora Yoongi avançou para um abraço, e eu nunca tinha visto ele abraçar ninguém. Aquele momento me deu quase vontade de tirar uma foto. Tinha uma enorme vibe de amizade e companheirismo e felicidade genuína por conquistas alheias ali no meio que quase senti vontade de sentar e apenas assistir.
— Rizwan? — a voz de Nick, que não tinha sido pronunciada até aquele momento, rasgou todas as outras, mesmo que não passasse de um ruído. — Quer dizer que o filho da Skylar conheceu você primeiro do que a gente?
Silêncio repentino. Todos os rostos se viraram para Nick e suas mãos enormes nos bolsos da calça jeans. Levou um tempo até eu perceber que ele estava olhando para mim.
Fiquei parada, sem entender. Reiniciei meus mecanismos mentais que tinham botões para reiniciar e limpei a garganta.
— Ah… — foi a única coisa que consegui pronunciar, já que não estava entendendo a questão. Olhei de relance para o rosto dos outros, cravados em Nick, rostos sorridentes que tiveram esse atributo de repente arrancado como band-aid. A expressão de Yoongi não fazia sentido.
De repente Nick, notando toda a atenção em cima de si, soltou uma risada gorgolejada, seca. Uma pessoa que queria fazer qualquer coisa, menos rir.
— Desculpa, gente, era pra ter sido uma brincadeira. A gente devia esquecer o vinho e ir tomar uma cerveja, que tal?
Elliot e Dwight concordaram rápido, dispersando o que pareceu ser o clima estranho mais estranho que já vi.
E isso poderia ter parado aí. Mas então, olhei para Yoongi, e vi que ele era o que estava forçando um sorriso agora, concordando com a cabeça, mas mudando algo no olhar assim que cruzava com o de Nick.
E torcia para estar errada, mas aparentemente, os dias de lenhador legal do doutor Elizondo acabaram assim que soube da minha existência.


— Sabe, eu amei os seus amigos e o seu passado sombrio como jovem Ghostbusters e tal — comecei, passando o vestido, agora preto, pela cabeça. —, mas acho que o Nick não gosta de mim.
Yoongi estava colocando a gravata na frente do espelho quando me ouviu, e suas mãos pararam no ato na mesma hora, me encarando através do reflexo.
— É só impressão sua. — disse exatamente o que eu sabia que ele diria. Mas os vincos na sua testa e a hesitação na sua boca antes de soltar aquilo não me passaram despercebidos.
— Eu não costumo errar nas minhas impressões, meu bem. — puxei o zíper traseiro do vestido, mas iria precisar de ajuda para completar. Virei as costas para ele e Yoongi rapidamente já estava com os dedos ágeis para terminar de puxá-lo. — O cara não disse uma palavra desde que nos viu juntos e quando fala, é pra, carinhosamente, sugerir que eu tô sobrando. Deve estar agora mesmo fazendo um desenho do meu rosto com chifre e bigode, usando batom vermelho e com a legenda “madrasta má”.
— O Nick nunca gosta de ninguém de cara. — Yoongi resmungou, fazendo um carinho no meu ombro antes de voltar para o espelho. Abri a boca, com vontade de falar: que mentirada! Ou ele se apaixonou pela minha aura na sala de coffee break, ou é um ótimo ator. Do nível dos estúdios Universal. Ou, possivelmente, um ou dois tragos em erva boa escondido no banheiro. A última opção era possível — a própria cidade exalava esse ar de “se você está me vendo sorrir, saiba que o motivo passou pela minha língua.”
Mas não defendi meu ponto sobre o desafeto repentino de um dos melhores amigos do meu namorado porque isso poderia deixar o clima carregado, mais do que já estava. Era possível que, mesmo entre tantos sorrisos fáceis e historinhas fofas e grotescas de vidas antigas e novas dos seus colegas universitários, Yoongi ainda estivesse se sentindo estranho com alguma coisa. Ou talvez escondendo algo, mas não iria pensar nisso com espanto agora. Tínhamos uma noite inteira pela frente.
O restaurante na Chapel Street tinha uma enorme saudação na entrada, repetindo o nome “Guia Michelin” tantas vezes que estava me obrigando a fingir um sorriso simpático ao invés de dar um de verdade. O lugar tinha luzes baixas e ambiente escurecido, mas com pontos de outras luzes espalhadas em cima das mesas e em cima da enorme escultura de gelo no centro, um urso gigante brilhando em rosa, vermelho, laranja, deixando sua expressão sombreada, quase me fazendo levantar do meu lugar e ir perguntar se ele queria alguma ajuda.
É claro, o nome do lugar era Ice Bee(ar). Que temáticos.
Ao redor de tudo isso, existia uma cozinha aberta, um bar com bebidas que pegavam fogo (fogo de mentira, não o fogo perigoso mas verdadeiro que Eddie servia no Mango’s para alguns corajosos que não passaram na seleção do doutorado), e um piano em cima de um tablado pequeno, rodeado de saxofones, violinos e pandeiros, iluminados por um pequeno holofote de luz negra que tornava o ambiente um pouco melancólico, e não um potencial refúgio do jazz alegre dos anos 20, fazendo as pessoas pularem de suas mesas e dançarem animadamente com seus braços e pernas.
Bom, se fosse assim, seria mais proveitoso colocá-los no lugar daquele urso macabro. Ali, os instrumentos só estavam se mostrando inúteis.
Os rapazes já estavam na mesa quando chegamos, e usei meu melhor sorriso com todos eles, até com Nick, que levantou o canto dos lábios mas não me deleitou com seu sorriso pequeno sob a barba de lenhador. Falando nisso, estava com seu (supus) inseparável casaco xadrez, dessa vez de tons de azul escuro, que combinavam com a calça social e o cabelo penteado para trás. Quer dizer, não sabia se ele tinha mesmo penteado ou só molhado as pontas de cima e batido todo o resto da cabeça para trás.
Os outros dois estavam de trajes formais como Yoongi, com Elliot um pouco mais reluzente que o resto.
— Eu tenho muito tempo pra me arrumar desde que fiquei solteiro. — respondeu ele quando perguntei se estava usando manteiga de cacau. Ele nem se acuou. — Mas quero mudar isso esse ano. A parte do solteiro, quero dizer.
— Ótimo. De quantas das suas quatro horas livres totais você está disposto a abrir mão? — Dwight perguntou, começando a distribuir a cerveja para todos.
— Não são só quatro horas.
— Verdade, às vezes são três.
— É o suficiente pra um encontro do Tinder. — puxei a minha cerveja. Westvleteren 12. Uma iguaria bélgica que não devia custar menos de 50 dólares por garrafa. Eles não estavam mesmo de brincadeira.
— Uma transa do Tinder, você quer dizer. — disse Dwight. — E nada contra transas do Tinder, mas Elliot já teve sua cota de rapidinhas o suficiente pra um mestrado. E eu nem sei como ele teria coragem de lamber alguém e depois ver aquilo… parindo…
Dwight estremeceu.
— O parto normal é a coisa mais linda que a natureza já criou. É sim, não importa o que você diga. — Elliot apontou para Yoongi antes que ele abrisse a boca para refutar. — No entanto, meu amigo Dwight está certo. Tinder é uma furada, casamentos também são, e eu ainda não sei o que se acha no meio do caminho. Sugestões?
— Eu tenho argumentos contra a sua ideia de casamento…
— Eu me refiro a casamentos com mulheres, Dwight. Você não tem lugar de fala.
— E daí? Eu ainda sou casado.
— As duas modalidades não devem ter a mesma dinâmica. Eu duvido que o Solomon queira que você adivinhe o que ele está pensando ou querendo ou odiando com base em um singelo nada.
— Como é esse singelo nada? — Yoongi projetou os ombros um pouco para a frente, apoiando seus cotovelos. — O nada de uma mulher é como a Teoria da Relatividade de Einstein, tudo depende da época, da forma, do…
De repente, os três entraram em uma discussão que, por mais que eu fosse uma mulher, não me sentia capaz de participar ou de furar suas bolhas masculinas confusas. Tinha me inteirado o suficiente de homens nos últimos anos para saber que, não importa o que pensem, ou o tamanho de seus cérebros, ou a quantidade de sinapses rápidas e geniais que são capazes de fazer, no fundo, eles nunca estão pensando.
Segurei meu riso, estendendo a mão para pegar um pãozinho australiano de uma cestinha quando ergui os olhos e vi Nick me encarando.
Ele estava sentado bem perto de mim, na cabeceira da mesa. Quieto. Sem se dar ao trabalho de participar da conversa com mais do que uns risinhos.
Já estava cansada disso.
— Sabe uma coisa que soa impossível? — falei, direcionada a ele. — Algum deles ter levado alguma garota pra cama na faculdade.
Nick ficou calado por um tempo, os olhos imóveis em cima de mim. Quase pensei que aquela era sua resposta definitiva: A não ser que você vá ao banheiro passar um batom roxo e colocar chifres de Malévola, não fale comigo.
Mas então, uma pincelada de esperança aconteceu: Nick tentou sorrir.
— Eles perderam o BV na primeira festa da fraternidade. A partir daí, tudo fica mais fácil. — ele olhou para os outros de soslaio, ainda falando e gesticulando em pautas agora absurdas como: “criar uma relíquia tecnológica que permita a leitura de expressões faciais da mulher”.
Malditos nerds esquisitos.
— Caramba, se foi fácil pra eles, podemos criar uma comunidade e começar a dar palestras nas turmas de ensino médio. Eles vão ser os heróis dos adolescentes acneicos.
Brinquei, e ri da minha própria piada. Bebi um gole da cerveja, pegando mais um pãozinho. Nick tinha aberto mais um pouco do sorriso.
— Eles vão adorar, ainda mais se puderem mostrar as aquisições que conseguiram. — Nick parou de mexer nas bordas de um pão e finalmente o colocou na boca. — Elliot foi casado com a Miss Universo de 2020, e é claro que não deu certo porque ele não tem uma vida realmente fora do hospital, mas ela estampava os outdoors de marcas de biquini por todo o estado e deve estar na parede de todos os adolescentes latinos do mundo. Dwight é casado com um jogador de hóquei da segunda divisão que queria muito ser pai, forçando nosso amigo a pensar nisso pela primeira vez. Ele tentou acreditar que não seria capaz, mas os dois estão aí há cinco anos fazendo isso durar. E eu morei com uma garota por três anos que achava que tudo precisava ter magia e intriga a todo momento, que café da manhã na cama e buquê de rosas eram uma obrigação semanal e que nós dois tínhamos que agir como o casal principal de uma saga de livros de romance. Era uma chata, mas era a influencer principal da Puma e fazia pilates sete dias por semana, sem exceção, e dona dos peitos mais bonitos que alguém já viu. E Augustus… — nessa hora, Nick desistiu do pãozinho e mirou em mim. — Augustus tinha Skylar. E acho que não preciso explicar Skylar pra você.
A garrafa de cerveja na minha mão nem completou o trajeto até a minha boca, ficando ali parada no ar, enquanto meu líquido estomacal tinha se transformado em uma banheira de ácido.
No tempo decorrido desde o meu primeiro encontro com Nick, eu sempre tinha achado que, seja lá da onde esse lenhador nerd tinha vindo, não teve a mesma trajetória amorosa frustrante de seus amigos, seja lá quais fossem. Sempre foi o mais bonito, o mais forte, o que teria tudo que quisesse. Quando o vi com os outros, tive ainda mais certeza disso.
Mas, por algum motivo, notei que algum acontecimento estava ali, implícito no meio do jantar, escondido pelo papo furado e pelas distrações de três caras que acabei de conhecer. Nick parecia estar de frente com alguma coisa que, enfim, sua beleza e confiança estonteante não conseguiram. E esse algo parecia direta ou indiretamente ligado a mim, mesmo que eu tivesse certeza de que eu não era alvo de sua atração.
Ainda que eu estivesse muito gata mesmo naquele vestido preto.
Disfarçando meu desconforto, apenas lhe dei um sorrisinho simpático, murmurando “é, pois é”, e olhando rapidamente para a estátua medonha, torcendo para que os garçons chegassem com os pedidos e a falação dos homens cessassem um pouco. Nick não pareceu perceber nada errado. Além de ter um repertório surpreendentemente sólido para me meter em conversas aleatórias sobre Teoria das Cordas, eu tinha adquirido outros artefatos sociais que não deveriam existir em uma garota que vivia trancada em um laboratório maltrapilho por boa parte dos anos. Um repertório que eu não estava conseguindo usar agora.
— Você é bem nova, né? — ele voltou a perguntar, puxando a cerveja e estirando as costas no encosto da cadeira. — Deve ter o quê? 26, 27 anos?
— Tenho 24.
Nick arqueou as duas sobrancelhas, como se eu tivesse levantado o vestido e mostrado meias rosa pink com estampa da Barbie.
— 24 anos no fim de um doutorado. Ou você é uma sabichona ou foi abandonada na porta da universidade.
Ele riu. E não sei porque, de repente, eu quis dar um chute na canela dele.
— É, as freiras me tiraram de uma sacola e me deram uma caminha nos fundos.
— E pelo visto, acabaram te dando um folheto de um programa de graduação ao invés de uma Bíblia de boas maneiras para moças. — ele continuou bebendo, e tentei controlar minha vontade de fechar a cara e perguntar de que merda ele estava falando.
Olhei para Yoongi, mas ele ainda estava distraído. E eu preferia abraçar uma ratazana do que tirar o sorriso no rosto dele. Eu podia lidar com babacas.
— Qual é a sua pesquisa, senhorita ? — perguntou ele, os olhos azuis brilhando de forma quase medieval debaixo daquela luz forte em cima de nós.
Limpei a garganta, relembrando a parte 1 das lições de Belle sobre desconforto: nunca deixem saber que está sentindo.
— Eu trabalho com Biomarcadores geomorfológicos. São espécies novas de gramíneas não-nativas que podem ajudar no reflorestamento de áreas em processos de erosão. Estou trabalhando nela desde a graduação, e soube que Harvard tem um programa de pós-doutorado nessa área. Desde que eu li o artigo sobre Geomorfologia de áreas degradadas…
— O artigo do Gus?
Assenti. De repente, o barulho ao lado diminuiu e Dwight apoiou as duas mãos na mesa.
— Você conhece esse artigo do Gus?
— Sobre o lance das queimadas, as merdas ambientais e tudo?
— Hum… sim? Foi o primeiro artigo que eu li, foi o motivo de eu ter decidido a… por que estão me olhando assim? — encarei todos os olhos na mesa, inclusive o de Yoongi, que já estava perto desde que sentamos, com o braço esticado atrás da minha cadeira, mas agora tinha um brilho nas pupilas que parecia me engolir.
— A-ah, eu… eu não sabia,
— Claro que você sabia. Eu te contei daquela vez. — franzi o cenho.
— É que… — ele fez uma coisa engraçada com a boca, um sorriso quebrando e se formando, quebra e volta quebra e volta sem parar, enquanto ele olhava para os amigos e para mim continuamente. — Esse artigo foi o meu primeiro. O primeiro que eu publiquei, na faculdade. Eu achei que ninguém sabia da existência dele.
— Ele escreveu tudo em uma única noite, comendo batatinhas e de fone de ouvido. — disse Dwight.
— Publicou na pior revista do mercado e o número de downloads ficou em zero por anos. Ninguém queria ler um artigo de um graduando.
— Eu não ia querer ler. — Dwight acrescentou.
— Aí recebi um e-mail um dia dizendo que alguém tinha feito o primeiro download dele. — Yoongi voltou a falar, e eu quis que ele parasse. Quis isso porque eu estava começando a sair do chão. — Era um negócio tão imaturo e tão cheio de erros. E como Dwight disse, a revista era uma porcaria, aceitaram me publicar com 19 anos. Não me perguntaram nada, mas aparentemente gostaram da pesquisa. Não recebi um único comentário da sociedade científica, nenhum contato, ou nenhuma punição. Foi esquecido debaixo de todos os outros que eu publiquei depois, mas então, quando eu estava em Harvard um dia e recebi o e-mail… — ele engoliu em seco, os olhos parando na minha boca, no meu nariz, em todo o meu rosto. — Quando eu te vi na palestra, achei que você podia estar falando de qualquer outro. Mas foi você…
— Sua primeira fã. É, parece que sim.
Parei. Desejei mais do que tudo que eu estivesse com meu velho walkman ali, para eu poder programar um set de canções dos The Doobie Brothers, para puxar Yoongi e dançar uma valsa ridícula e romântica na frente daquele monumento horroroso de toneladas de gelo, só para mostrar o quanto estava genuinamente feliz.
Awn. — a voz melosa de Elliot cortou a minha bolha cor-de-rosa, e o vi juntando a mão no coração. — A trope de vocês é fã x ídolo?
Dwight riu ao lado dele. Nick ainda estava me encarando como estava há cinco minutos, com o adicional de lábios cerrados e irritados. Fiz cara de confusa.
— Como?
Elliot, ainda rindo, espalmou o ar.
— Desculpem, minha sobrinha de 15 anos acabou de abrir um perfil literário no TikTok e me faz ver todos os vídeos. Ela já tem tipo uns 80 mil seguidores.
— Então, a sua pesquisa é baseada na dele? — Nick fez a pergunta de repente, sem mover um músculo.
— Não totalmente. — respondi, dando de ombros. — Mas eu li o artigo dele e isso me ajudou a descobrir o que eu queria fazer. Elliot, me passa o perfil da sua sobrinha? — puxei o telefone da minha bolsa. — Tenho um amigo que vai lançar um livro em breve e adoraria indicar pra ela.
— Eu te passo agora…
— Mas a sua pesquisa continua sendo parecida com a dele. — Nick continuou, agora se inclinando para mais perto da mesa quando percebeu que estava tentando ignorá-lo. — E ele tá sendo seu colaborador, não é? Lá no fim de mundo da Drexel. É como se nada tivesse vindo realmente de você. — ele sorriu, pela primeira vez em horas. — Isso me parece um pouco coisa de perseguidora.
O arroubo da minha alegria se encerrou ali mesmo. Senti o braço de Yoongi se contrair inteiro atrás de mim.
— É por isso que você decidiu descer o nível desse jeito, Augustus? Ignorou as ligações e os e-mails de Boston por anos, nos fez de palhaços, cagou para os seus números na academia só pra terminar fazendo caridade com uma garota e uma pesquisa que não passa de nostálgica pra você? Aliás, você e a Drexel de novo, bota nostalgia nisso.
— Nick, pega leve. — a voz de Elliot tinha baixado a um tom firme, os dentes trincados em repreensão.
— Não venham com essa, parem de fingir que estavam em um piquenique com ele ontem quando ele também ignorou o número de vocês piscando na tela nos últimos três anos.
O barulho seguinte vinha apenas do tilintar de talheres alheios nas mesas ao lado da nossa, conversas baixinhas e animadas que não faziam ideia da bolha de tensão sufocante que tinha se formado ali.
Queria dizer que eu não estava entendendo nada, e, portanto, fazer uma piada e tentar seguir com o jantar civilizadamente, mas o braço atrás de mim se soltou, e o corpo de Yoongi se projetou para a frente, os ossos saltando do maxilar enquanto olhava para Nick.
— Sei que nem vale a pena te explicar nada, porque você não vai em busca da verdade nunca, só se preocupa com a sua versão das coisas, mas os fatos são amplos. A pesquisa da não tem nada a ver com a minha, e tenho plena convicção quando eu digo que ela vai ser muito melhor do que eu. Vai ser maior em números, critério, e reputação, porque vai ajudar muito mais pessoas do que já pensei em ajudar.
Nick riu, os dedos apertando ao redor da cerveja.
— Isso se a reputação de oportunista não vier primeiro.
Arfei de susto quando o corpo de Yoongi inteiro se colocou de pé, levantando tão rápido que fez pratos e talheres balançarem, e a cerveja quase vazia de Dwight cair e derramar na toalha de mesa. Imediatamente, Nick se colocou de pé também, os dois se mirando como duas metralhadoras engatilhadas, prontas para atirar.
— Ei, ei, ei, não! — Elliot ficou de pé junto com Dwight, levando uma das mãos no peito de Nick, que subia e descia tanto quanto o de Yoongi. — Volta pro seu lugar agora e fecha a boca, aqui não é lugar…
— Não vem dar uma irmão mais velho pra cima de mim. — Nick cuspiu rispidamente para Elliot. O olhar que me lançou foi de puro nojo. — Devia ter feito isso antes que ele aparecesse com essa daí.
Yoongi saiu do meu lado, feroz, irreconhecível. Dessa vez, jogando meu choque na puta que pariu e ignorando totalmente que eu era o centro da conversa, puxei sua mão para fazê-lo parar.
— Não. Não, Yoongi. — tive que ficar de pé, me colocar na frente dele. As pessoas no restaurante estavam olhando. Os garçons ao lado da cozinha estavam começando a notar algo errado. Seria minimamente ridículo atender a uma ordem de expulsão naquele momento, quando só teve uma rodada de cerveja e os dois estavam bufando como touros (não que ir embora para longe daquele urso estilo Stephen King fosse uma má ideia). — Ignora ele, por favor. Estamos tendo uma boa noite, e não vamos…
— Isso, faz o que ela te diz, já é muito se comparado ao que você fez no seu casamento, quando ditou suas próprias regras de merda.
Dessa vez, quase não consegui segurá-lo. Yoongi avançou junto com Nick, e tinham conseguido se aproximar terrivelmente, com Yoongi chegando tão rápido que esbarrou na cadeira, mudando-a de lugar, enquanto Elliot e Dwight agora gritavam para pararem, suas respirações altas ultrapassando a sonoridade do restaurante inteiro, agora parado nos olhando, as faces chocadas e imóveis.
Eu queria estar mais empenhada em evitar um escândalo, mas, depois das últimas palavras de Nick, só consegui sentir raiva dele, meus dedos se fechando com força na bolsinha carteiro que eu carregava, um sentimento que me inundava ao mesmo tempo que o choque tenebroso ao ver Yoongi.
Nunca vi ele daquele jeito. Imagino que nenhum dos amigos tenha visto.
— Qual é o seu problema, cacete? — Yoongi rosnou para Nick, os dedos agarrando o colarinho da camisa xadrez.
— Qual o seu problema, seu merda? — se fosse possível: Nick rosnou ainda mais alto. — Você sumiu, seu idiota! Já não bastou ter levado Skylar embora do país, mas fez ela virar fumaça e ainda não avisou a nenhum de nós que estava de volta na Drexel, assim, como se aquele fosse um lugar comum. O que você tava pensando? Se quisesse simplesmente ser professorzinho naquele muquifo pra ficar mais perto da memória dela eu iria aceitar, mas fez tudo isso pra conseguir uma substituta? Ou melhor, uma garotinha? Ainda mais quando tem um filho, o que é, já tá ensinando o moleque a chamar ela de mamãe?
Nick mal terminou de dizer a última letra quando Yoongi desferiu um soco no seu nariz.
As coisas aconteceram em uma sequência extremamente rápida. Yoongi avançou, enfiou o punho no nariz de Nick com a força de uma bola de boliche e, antes que completasse uma próxima respiração, já estava sendo afastado pelos braços de Dwight, enquanto Elliot fazia o mesmo com Nick, o que era inteligente, já que Elliot era bem maior e Nick estava tremendo de raiva, assim como Yoongi, que tinha o rosto contorcido e vermelho, mais do que pronto a jogar o doutor Elizondo no chão se não tivesse sido impedido.
— Você não sabe de nada, seu bosta. — Yoongi cuspiu, ofegante. — Nunca soube, e por isso vai ficar travado desse jeito pra sempre. Não avança na vida, na sua pesquisa, coloca a culpa no mundo só porque não teve uma coisa, uma única coisa que queria, porque acha que roubei de você. Você é um mimado do caralho e não tá merecendo minha atenção.
— É, porque você era o bom moço que merecia tudo do bom e do melhor, o pobre Augustus que conquista as pessoas com toda a sua gentileza. — Nick grunhiu, com seus olhos assustadores sobre o nariz sangrando. — Acha que se isolar por três anos, voltar pra cá e deixar uma garotinha montar nas suas costas é sinônimo de redenção? O seu orgulho foi pro ralo, Augustus. Te respeitaria mais se estivesse fodido e tendo que viver de aluguel, mas talvez devesse ter lembrado de como você supera fácil as coisas.
— Pode achar a merda que você quiser, Elizondo. No fim, conquistei mais do que você e também perdi mais do que você, e de qualquer forma, tudo ainda é mais do que você. E é isso que deve tá doendo pra caralho aí dentro.
Ninguém viu o momento em que Nick, com uma força monstruosa de um homem das neves, se soltou dos braços bizarros de Elliot e avançou em Yoongi, devolvendo aquele soco de antes, direto na boca. Yoongi saiu dos braços de Dwight e se defendeu, mas Nick estava se aproveitando do seu tamanho e desferindo socos sem direção, com os punhos cerrados acertando com ódio qualquer coisa que se mexesse.
Tive um daqueles momentos malucos que a gente lê nos livros quando seu corpo age aquém do seu cérebro. Eu tinha total consciência dos olhares das pessoas, dos gritos dos garçons e o som de seus passos agora se aproximando correndo quando a briga entrou na modalidade física da coisa, e sabia que aquela expulsão não era mais uma possibilidade e sim uma certeza, e eu, como um ser humano racional, devia estar gritando, subindo na mesa e exigindo para quem quer que fosse uma pessoa do sexo masculino com capacidade muscular o bastante para parar uma briga, que por favor se manifestasse agora ou vivesse com esse peso na consciência para sempre.
Mas a partir do momento em que Nick socou Yoongi, alguma coisa se revirou no âmago de uma parte que nem sabia que existia em mim, e larguei a bolsa em qualquer lugar, correndo e mergulhando para o meio daquilo sem pensar em consequências.
— Solta ele! Tira as mãos dele agora! — gritei, histérica, estapeando Nick e o empurrando para longe de Yoongi. Eu jamais teria força para fazer isso sozinha, mas minha presença repentina o surpreendeu a ponto de ele se distrair e Elliot conseguir agarrá-lo de volta. — Seu babaca! Idiota! Tá pensando o quê, porra? Você estragou a noite de todo mundo!
Bufei. Nick era bem alto, tanto quanto Wonwoo, o que significava que fazia meu pescoço torcer para trás para encará-lo, mas nunca tive medo de girafas daquele tipo. Wonwoo tinha me ensinado que meu tamanho podia ser uma vantagem, e eu estava louca para pular nas costas daquele idiota e arrancar a sua orelha com meus dentes.
… — dessa vez, a voz de Yoongi veio pelas minhas costas, seus dedos tomando meu cotovelo de leve. Parecia infinitas vezes mais calmo do que antes.
Mas eu não estava mais calma.
Nick soltou uma risada, primeiro pequena e depois alta e debochada, me olhando de cima com seu desprezo.
— Você tá meio perdida sobre o seu lugar, futura doutora. — grunhiu ele, com olhos intensos de uma raposa. — Você até pode ser bonita e gostosinha, mas Augustus costumava traçar coisa melhor antigamente. E eu discordo dele sobre o lance de você ser tão inteligente, porque se fosse, saberia que nunca conseguiria ultrapassar porra nenhuma, que o seu destino na academia é um só: dar volume. E se fosse geniosa mesmo, perceberia isso e agiria rápido, porque era só cortar a camisinha que você já estaria…
Nem vi quando aconteceu. Tinham gritos por toda parte, a voz de Yoongi no meu ouvido, os seguranças, gerente, clientes, e o único homem a quem eu já quis ser um morcego só para passá-lo raiva. Tudo isso não passou de um lapso quando ergui meu punho e soquei o seu olho direito.
! — Yoongi e Dwight gritaram ao mesmo tempo.
Facilitaria minha vida se eu tivesse planejado isso antes, desde o primeiro surto de ódio perto da mesa. Mas a coisa foi tão repentina que simplesmente aconteceu, e eu poderia contar a vitória da mira perfeita, se fazer aquilo não tivesse doído tanto a minha mão.
E doeu nele também, considerando o gemido alto rasgando o ar.
— Merda, merda! Seu estúpido, o que você é, uma torre de telefone com escadinha? Que droga! — grunhi, balançando os dedos, a dor irradiando até o meu pulso.
— Ah, sua… — num impulso, Nick veio para cima de mim, se avolumando como um urso selvagem, mas fui afastada para o lado quando Yoongi tomou meu lugar e meteu mais um soco no nariz de Nick.
Ótimo. Daquela vez eu comemoraria o surto de violência.
Os seguranças já estavam ali, a gritaria e confusão oficialmente armada, mas ainda assim, Yoongi agarrou o colarinho mole de um Nick com muita dor e ameaçou:
— Se chegar perto da minha mulher desse jeito a menos de um quilômetro de novo, eu quebro a porra do seu nariz. Já fiz isso uma vez e não ligaria de fazer de novo.
E pegou na minha mão, me levando para longe dali.


— Eu sabia que vir aqui seria um erro… Ah. — Yoongi chiou de novo quando passei a clorexidina no canto da sua boca com um algodão. Tinha sido a primeira coisa que ele falava depois de uns trinta minutos, logo após um trajeto perturbador de carro, depois por todo o saguão do hotel até chegarmos ao quarto.
Ele tinha insistido inicialmente a fazer seus próprios curativos, mas eu não me via propensa a aceitar que ele se fechasse desse jeito. E também, o rosto dele nem estava tão ruim assim, por incrível que pareça. Nick estava bem pior.
“Eu tô bem”, ele garantiu umas trezentas vezes, mesmo sem eu ter perguntado. “Eu tô bem, eu tô ótimo”.
Mas ele estava a quilômetros de “bem”, e nada tinha a ver com o canto da boca sangrando.
— Não foi um erro. — falei, afastando seu cabelo da testa, vendo o arranhão mínimo que provavelmente foi causado pelo anel enorme de lenhador de Nick. — A sua palestra foi um sucesso e você conseguiu muitos contatos. Mas se eu tivesse reconhecido o nome dele desde o coffee break…
— Não. Não tinha como você saber, , e mesmo se tivesse, a coisa não foi a palestra. Foi… esse jantar. Essa tentativa, ou seja lá o que eu estava tentando fazer. A partir do momento em que vi Nick, sabia que não seria tão simples assim, mas ainda quis… — ele soltou um suspiro forte, dessa vez nada em relacionado à dor. — Eu devia saber que isso aconteceria.
— Mas o que aconteceu de fato, Yoongi? — parei um pouco com meu trabalho de enfermeira. Agora que ele tinha, oficialmente, começado a falar, me vi tendo a liberdade de fazer o mesmo. — Eu… tinha tanta coisa sendo dita e não dita que até agora não entendo como acabamos aqui. Nick parecia um cara tão legal quando você me contou sobre ele naquele dia, como se ele fosse tipo a Madonna das festinhas de fraternidade. E aí, quando conheço, o cara se parece com um valentão do ensino médio. As coisas não batem.
Yoongi balançou a cabeça e apoiou os cotovelos nos joelhos. A gravata estava jogada em algum canto do carpete, e as mangas da camisa estavam dobradas no cotovelo, enquanto, lentamente, a cor dele ia voltando ao normal, junto com a respiração.
— Eu não menti sobre o Nick daquela época. Ele era tudo aquilo e um pouco mais, era o meu melhor amigo, o cara pra quem eu podia contar qualquer coisa, mas… quando a Skylar apareceu, as coisas meio que mudaram entre nós. — ele puxou bastante ar pelo nariz, como se precisasse disso para que pudesse contar o resto. — Ele era apaixonado por ela, talvez começou na mesma época que eu, talvez foi bem antes, eu não sei. Só sei que ele demonstrava isso da pior maneira possível: tentando falar mal dela pra mim. Insinuando que ela era uma interesseira e só queria o dinheiro da minha família, e que por isso eu deveria esperar pra cair de cabeça em uma relação com ela.
— Tipo o que ele fez comigo?
— É, mas com Skylar eram comentários sutis, atrás de piadas. Ele nunca soube falar diretamente sobre nada se não estivesse com muita raiva, como hoje. — ele mirou o abajur na mesinha de cabeceira, ficando em silêncio por um tempo. — Ele queria Skylar, e disse isso pra ela, mas a gente já tava junto e ele sabia. Skylar me contou, eu e ele brigamos, tudo ficou um caos, ele disse coisas horríveis sobre mim e da minha família, como se eu estando ali, bem longe de Seul, já não fosse uma prova suficiente da discordância dos ideais dos meus pais. — Yoongi riu sem humor. Não consegui responder. — Achei que nossa amizade tinha acabado. Mas mandei o convite do meu casamento e ele apareceu lá, me dando um presente escondido de todo mundo. Um macacão de bebê dos ZZ Top. O primeiro presente do Jihoon.
Ele olhou na minha direção. A informação foi repassada na minha cabeça algumas vezes, e continuei sem entender.
— Achei que ninguém soubesse que ela estava grávida.
Yoongi raspou o dedinho dele no meu, distraído.
— É, eu também achei. Pensei que Skylar tinha contado pra ele, mas não. Eu não contei. Só a gente sabia mesmo. E foi ali que eu vi que Nick era mesmo apaixonado por ela, e não queria só me irritar. Ele percebeu as mudanças dela, coisas que ninguém além de mim teria visto. — ele prendeu o ar de novo. — Meio que viramos amigos de novo. Eu não o via desde o velório.
Assenti devagar, ainda segurando aquele frasco de plástico que fedia a cloro. Não curtia muito a sensação de estar inocentando alguém que tinha claramente uma personalidade de assassino de coelhinhos fofos a sangue frio, mas tentei entrar na cabeça de Nick e enxergar aquele brutamontes como alguém que passara cinco anos ou mais da sua vida amando uma garota que não o amava de volta. Que nunca chamaria o seu nome quando estivesse tendo um pesadelo, ou para trocar votos de casamento. Imaginei esse mesmo cara preso com correntes de ferro à esse fato deprimente, podendo passar mais cinco anos, ou décadas, completamente ligado nisso, sem aceitar seu duro destino, mesmo que, eventualmente, se envolvesse com outras pessoas (que nunca o encantariam ou o fariam pensar que a vida era maravilhosa e colorida quanto Skylar seria capaz de fazer).
— Deve ter sido muito difícil pra ele. — me vi falando, a imagem de Nick se abrandando na minha cabeça, por mais que seu olhar de desprezo por mim ainda estivesse ali.
Yoongi assentiu, e alguma coisa me dizia que ele devia estar pensando o mesmo do cara que lhe deu um soco.
— Eu sei que foi. Mas não fiquei pra saber mais, porque não falei com mais ninguém e nem queria. Tudo que ele disse hoje me deixou… puto, porque ele sabia, sabia que foi difícil pra mim também, mas fiquei puto comigo mesmo por não ter conseguido dizer isso pra nenhum deles. — bufou, e suas costas se arquearam, as mãos apoiadas no colchão. — Todo mundo gostava da Skylar, ela era nossa amiga antes de virar qualquer coisa depois, e a gente merecia ter passado por esse processo junto. Mas eu, sei lá… só fui seguindo o fluxo. Deixando o luto me levar, mesmo que ele estivesse me levando pra um lugar distante. Quando decidi voltar, não fazia mais sentido falar alguma coisa. Eu devia ter feito isso antes.
— E aí você aparece com outra mulher do nada, cheio de sorrisos e purpurina. — tentei resistir a deixar alguma coisa perto de mágoa surgir no meu rosto, mas não deu. Mesmo que o assunto não tivesse nada a ver comigo, de alguma forma, conseguia entender o que os rapazes tinham sentido. — Talvez não era o que eles esperavam.
Yoongi olhou para mim, dessa vez por tempo suficiente desde que saímos do restaurante. Talvez porque estivesse envergonhado da sua postura, porque com certeza não combinava com alguém que se deixava levar pela raiva, como se esquecesse o próprio nome e virasse outra pessoa.
… — tinha dor na sua voz, ou algo muito próximo disso. Balancei a cabeça rápido.
— Não é uma crítica. Sei que você nunca fez uma promessa em cima de uma Bíblia dizendo que iria entrar em regime celibatário depois de perder a esposa daquele jeito horrível, mas talvez é o que fez eles pensarem. Caramba, até eu pensei isso uma vez ou outra de você. Então, é como se você não os tivesse incluído na sua felicidade, principalmente depois de uma tristeza tão violenta. Talvez Nick esteja com dificuldade em entender isso, porque ele mesmo ainda não superou a Skylar.
— Não foi fácil pra mim também superar…
— Sei que não foi, mas você tinha o Jihoon, então isso naturalmente ajudou no seu processo. As pessoas se enganam muito quando pensam que é mais difícil superar quando tem uma parte física da pessoa ainda com a gente. É o contrário. Sentimos ainda mais falta dos que se foram quando eles não deixaram nada pra gente se agarrar. — larguei o vidro na mesinha de cabeceira, virando o corpo todo para ele. — Skylar sempre vai estar com você na forma do seu filho, Yoongi. Mas Nick não teve essa mesma sorte, então ele é mais digno de pena do que da nossa raiva.
Já tinha encontrado pessoas como Nick antes, o maior destaque deles sendo meu próprio pai, que não tinha sequer forças de perguntar para a vida se ela teria algo melhor para ele depois da minha mãe. Ele tinha simplesmente decidido que não teria, e passou a apenas existir no mundo, zanzar sem propósito, deixando sua marca de carbono unicamente para servir de dado estatístico no censo populacional.
Meu pai virou uma sombra. E por mais que soubesse que eu precisava dele, que eu ainda estava ali, que ainda tinha lugares para chegar e alcançar, seu cérebro não computava isso. Seus movimentos eram limitados, seu amor também tinha se tornado limitado. Ele não conseguia se lembrar que sua vida não tinha acabado, que o sol ainda brilhava e que, mesmo com a depressão severa e a bebida excessiva de seus últimos anos, ele ainda era o pai de alguém, e que isso devia ser motivo mais que suficiente para continuar a viver.
Era o que Yoongi tinha me ensinado, de certa forma. Que mesmo no período mais cinza da vida, podemos encontrar um pontinho colorido, um que pode ser minúsculo, mas que vai se expandindo e expandindo cada vez mais à medida que a gente levanta da cama todos os dias.
O pontinho colorido de Yoongi era Jihoon. E isso respondia a todas as perguntas dele sobre Nick e sua prisão.
Com os olhos brilhando um pouco mais, ele se aproximou de mim na cama, tomando minha mão bem na área vermelha da ponta dos meus dedos que tinham atingido Nick no olho. Não estava mais doendo, mas a sensação do carinho dele ali me fez perceber que ainda estavam um pouco trêmulos.
Ele se abaixou para beijar cada nó, e depois beijou a minha boca com cautela.
— Sinto muito por você ter que ouvir aquelas coisas. Sinto muito por tudo isso.
Dei de ombros.
— Eu até podia dizer não ao jantar, mas aí eu não ficaria sabendo da sobrinha tiktoker do Elliot e nem que fui a sortuda que baixou sua primeira publicação.
Ele riu pelo nariz, e aproximou nossas testas por um instante, inspirando a minha pele.
— E também, tudo que ele disse não é nada que outras pessoas já não devem ter cochichado por aí quando me viram apaixonada por um velho ricaço. — comentei, tentando soar indiferente.
Devo ter soado apenas como 50% indiferente, porque Yoongi ergueu o queixo e me olhou com certa urgência.
, eu não… eu não penso, eu nunca me importei com tudo isso, eu jamais acharia que você…
Shiu. Eu sei. Você não precisa se explicar pra mim. Eu já sou bem crescidinha pra saber lidar com fofoca maldosa. Eu sou órfã, esqueceu? Eu devia mesmo largar tudo isso e garantir uma pensão alimentícia recheada de um cara rico agora mesmo. — debochei, e vi as ruguinhas de seus olhos incharem com um sorriso. — E também, eles não sabem da verdade, de qualquer jeito. Que tem uma coisa muito mais preciosa em Augustus D. do que o seu cérebro, mesmo que não seja tão maior assim.
Abaixei a voz para chegar perto dele, me contorcendo por cima de sua boca até alcançá-la com a minha em um beijo suave, um pouco diferente dos outros, porque estava com medo de que doesse por causa do machucado dele. Mas Yoongi não se importou e abriu a boca para mim, levando uma palma da mão para trás da minha cabeça enquanto eu automaticamente raspava as unhas pelo seu colo, no local já muito alto e evidente embaixo do seu cinto, endurecendo como água no freezer.
Ele era tão, tão facinho.
— Espero que isso não signifique que seja pequeno. — Yoongi disse em cima da minha boca, aquela voz rouca e abafada sempre que ele estava nesse processo de ser atingido pelo tesão. Automaticamente, desceu a própria mão para o meu peito, fazendo carinho em cima do mamilo. Eu ri, raspando o joelho entre suas pernas.
— Eu acho extremamente compatível.
, eu sou homem. Ou você diz que é grande ou é melhor não dizer nada.
— Tudo bem, grandão. — revirei os olhos. Yoongi abaixou meu zíper. Abri o restante dos botões da sua camisa. — Mas achei que o fato de você me fazer gozar três vezes em uma noite fosse testemunho o suficiente da sua eficácia.
— Desculpa, tamanho ainda continua sendo melhor pro meu ego masculino primitivo do que eficácia.
— Então vou enfiar a sua enorme eficácia pela minha boca agora, tudo bem?
Beijei ele com um pouco mais de força, e se ele sentiu dor, não demonstrou. Só abriu a camisa, e adiantou o cinto, enquanto eu descia o vestido pelo corpo, mostrando a lingerie nova (uma bem simples, de cor verde bordô, mas que o deixou severamente em silêncio por vários minutos) e a meia calça, que fiz questão de tirar devagar, perna por perna, até embolá-la e jogar para o lado.
Yoongi tirou o cinto e ficou de pé, me beijando esfomeado, a respiração enchendo e entrecortando, o coração batendo forte junto ao meu. Ele era pelo menos uma cabeça a mais do que eu, e me engolfava sob ele com uma certa proteção, uma necessidade de garantir que nenhuma parte minha ficasse a trinta milímetros afastada dele.
Naquela noite, por algum motivo, senti que ele precisava de mim mais do que nunca.
— Espero que isso faça parte de uma das suas fantasias. — Yoongi trincou os dentes quando abri o botão da sua calça, as mãos agitadas percorrendo a minha lombar.
— Ah, faz sim. Se chama Augustus, o Bad Boy.
— Eu sabia que me ver brigando ia deixar você com tesão. — ele achou espaço para rir pelo nariz, abaixando a calça.
— Humm, por isso deu o primeiro soco?
— Em parte, sim. Preciso garantir a manutenção do seu interesse por mim. — Yoongi apertou minha bunda exposta, dedilhando o contorno da minha calcinha indecente, se forçando a não mudar de ideia sobre se deixar ser servido primeiro.
— Isso é bem romântico. Se você fosse pra cadeia, eu estaria como uma cadela no cio. — enfiei a mão dentro da sua boxer, fazendo-o estremecer e me apertar.
— Bom saber. Preciso de uma moto e um par de coturnos?
— Não, só precisa ficar parado. E, talvez, quando eu pedir, bater na minha cara.
Senti seu sorriso em cima da minha boca, uma risada gostosa que reverberou por todo o meu sangue. Em questão de dois minutos, ele estaria novo em folha.
— Combinado. — respondeu ele, e me ajoelhei.


A maior prova drástica da primavera, mesmo nas maiores cidades, era o trinar de grilos no pôr do sol, transformando o clima inteiro em uma panela úmida e abafada mesmo sem ser verão.
Os pequenos insetos se cumprimentando na janelinha do Poppy Peanut tornavam nosso último dia em New Haven uma experiência minimamente verde. Tinha sido um trabalhão achar aquele restaurante na internet com todas as especificações que pedi, mas, por fim, alguns quilômetros além do campus de Yale e voilá, vinho branco de qualidade harmonizado com peixe grelhado por um valor que universitário nenhum poderia pagar.
Yoongi não questionou meu pedido em momento nenhum. Dei a desculpa de que estava louca para comer uma tilápia assada e queria atualizar meu feed do Instagram com fotos de comidas bonitas para combinar com o restante da população. Esperei que ele fizesse aquela cara confusa e perguntasse um: “por que vai tirar foto da comida antes de comer?”, mas ele apenas disse: tudo bem. Se você quer comer tilápia, então vamos comer tilápia.
Seria fofo se ele não estivesse caindo no meu plano maquiavélico.
E começou com uma mesa redonda grande ocupada por Elliot e Dwight bem no meio do lugar, sem estátuas de gelo bizarras dessa vez.
— Mas… — Yoongi diminuiu os passos assim que os viu, vincando toda a testa. — Vocês por aqui?
Elliot e Dwight se olharam por um momento antes de limparem a garganta e se colocarem de pé, vestidos com menos formalidade do que ontem, mas ainda com calças cáqui e camisas de botão.
— A chamou a gente, Gus. — Elliot falou, com ombros e braços travados, sem o potencial sorriso brilhante de sempre. — Achamos que te devíamos, bem… uma refeição completa, pelo menos.
— Uma que termine. — Dwight completou, um sorrisinho meigo. — E pra que a gente possa se despedir direito.
— É, vai saber quando a gente vai se ver de novo. Sentimos sua falta.
— E devíamos ter deixado isso claro ontem.
Os dois balançaram a cabeça ao mesmo tempo, os lábios cerrados e ombros baixos, realmente aparentando um arrependimento e culpa que não era deles. Yoongi sabia bem disso, por isso foi logo se aproximando para dar um abraço nos dois e se sentando à mesa. Eu o acompanhei.
— Por favor, peçam o que quiserem. Eu disse que ia ser por minha conta.
— Cara, eles vendem sanduíche de presunto aqui. — Dwight se aproximou do meio da mesa, sussurrando animado. — Você sabe o que isso significa.
Yoongi sorriu, pronto para chamar o garçom, mas agi mais rápido daquela vez:
— Espera. — puxei sua mão para baixo, e vi as horas no meu celular. — Vamos esperar só mais um pouquinho.
Yoongi franziu o cenho.
— Estamos esperando mais alguém?
— Mais ou menos. — dei de ombros, olhando para a porta do restaurante. — Eu só preciso de alguns… minutos. Não vai demorar.
— É alguma amiga gata que você encontrou por aqui? — Elliot abriu um sorriso sugestivo, e um tanto inocente.
— Acho que a minha única amiga preferia decepar o pé a pisar em New Haven. Ela tem uma discriminação enorme com cidades medianas sem redes de Sam’s Club suficientes.
— Ah, eu também odeio cidades medianas. E Sam’s Club. E qualquer lugar que neve a níveis escrotos acima da minha canela.
— Amigo, você nem vê essas coisas do seu cativeiro de vidro. Hospitais são todos iguais por dentro. — Dwight resmungou, indignado.
— Eu já te falei que eu tenho janelas, Dwight. Janelas grandes. Onde eu olho por elas por um bom, bom tempo. — Elliot se defendeu, com o dedo indicador erguido. — E você pode me deixar fantasiar um pouco que seja? Sem jogar a realidade de que nunca mais vou ter uma namorada de verdade na minha cara?
— Isso é muito exagerado. Você tá rodeado de enfermeiras e mães solteiras. — disse Yoongi, e assenti para concordar.
— E outras médicas sem vida social que só precisam de uma ou duas rapidinhas por dia no banheiro ou no apartamento às duas da manhã. É perfeito. — tentei, mas Elliot contorceu o lábio.
— Não, não é. Isso ainda não me parece o meio termo perfeito.
— Ah, é claro que não. — Dwight estalou a língua, cruzando os braços. Seus ombros magros se recostaram com folga na poltrona atrás. — Eu sei bem o que é o seu meio termo, e já te falei que isso é pura fanfic. Você tá caçando uma coisa que não pode ser encontrada na vida real.
— Olha, isso sim é exagero. — Elliot apontou para ele.
— O quê? Ele quer uma sugar mommy? — olhei para o cardápio de relance e depois para as horas no meu celular de novo.
— Achei que você tivesse dito que seu corpo não podia ser comprado. — Yoongi semicerrou os olhos.
— Não é o corpo que ele tá vendendo, mas chega bem perto. — Dwight soltou. Elliot deu um tapa no seu braço, arregalando os olhos. Até as horas de repente pareceram desinteressantes para mim.
— Ah, meu Deus, você virou diretor de filme pornô? — arfei. — Dentro do hospital?
— O quê?
Yoongi e Dwight riram alto.
— Meu Deus, eu consigo pensar em tantos títulos agora. Já tem o catálogo na internet?
— Você ainda precisa adquirir licença? Quantas enfermeiras fakes você mantém por lá para o horário de trabalho? Eu e Yoongi podemos fazer uma pontinha especial? — brinquei, e Yoongi virou a cabeça muito rápido. — Brincadeira, meu bem, eu nunca faria um pornô sem ter colocado silicone.
— Não é pornô nenhum! Porra, Dwight. — Elliot rosnou para o amigo, que estava rindo mais do que todos nós. — É só… uma coisa que eu faço… aliás, que eu participo, com uma garota, a gente… Não é nada demais…
— Elliot faz sexo por telefone com uma garota que nunca viu, e que se chama Bellyssima.
Travei. Agora mesmo que a hora deixou de importar completamente.
Eu estava prestes a beber um pouco da água com gás e limão que os rapazes já tinham pedido, mas agradeci por ter esperado aqueles míseros segundos. Porque eu engasgaria como uma idiota e cuspiria tudo em cima do cardápio de couro.
Mas um nó na minha garganta me fez tossir do mesmo jeito, enquanto Yoongi e Dwight gargalharam alto, quase perdendo o fôlego.
— Elliot Riggi. Não me diga… — Yoongi tentou, mas ainda estava rindo. Seus olhos ficaram tão pequenos que praticamente sumiram.
— Isso não tem graça… — Elliot tentou se explicar, olhando para todos nós. — Não é desse jeito que vocês estão pensando, porra. Não é só sexo, a gente conversa, tá bom? Conversamos pra valer, de coisas profundas, e eu sei que ela é uma garota especial…
— É claro que é. — soltei no automático, a voz um pouco aguda demais. Dwight riu.
— Claro que sim, considerando que ele faz ela gozar mais de três vezes em uma chamada. — Dwight zombou.
— Caramba, ela é tão convincente assim? Por favor, nunca conheça essa mulher. — Yoongi se virou para mim, ainda rindo, enquanto eu soltava aqueles arquejos de uma pessoa que parecia estar apanhando a chicotadas. — Nenhuma mulher devia mentir pra um homem desse jeito.
— Ela não está mentindo. Ah, que merda vocês, vão pro inferno. — Elliot bufou e revirou os olhos. — Vocês não acreditam em mim, tudo bem, mas eu e a Bellyssima temos uma coisa especial, tá bom? Meus instintos dizem que ela não é uma coisa fácil de encontrar, e eu gosto sim da pessoa que ela é.
— Já pensou se for um cara? — Yoongi provocou, e foi a minha vez de segurar o riso. — Um cara que pode estar tirando dinheiro de idosos e idiotas carentes fazendo uma outra voz pelo computador. Já pensou nisso? A tecnologia é capaz de tudo.
— Ela não é um homem. — Elliot trincou os dentes.
— Pode ser uma mulher trans. As cirurgias têm sido super bem feitas hoje em dia. — Dwight se pronunciou, e Elliot já estava com as narinas dilatadas.
A discussão entre eles continuou rendendo, e senti honestamente que, se ninguém os cutucasse ou se um meteoro não baixasse pela janela de vidro naquele momento, eles poderiam passar os próximos cinco anos bem ali, sentados naquela cadeira, procurando argumentos sobre qualquer assunto eternamente, sendo alimentados e defecando por sondas.
Não estava me aguentando: peguei meu celular, agora abaixando-o por baixo da mesa e mandando uma mensagem para Belle.
“Eu sei que nunca pergunto nada sobre o seu segundo emprego notívago e agora estou horrendamente arrependida por isso porque ele realmente parece ser bem importante.”
“Ou pelo menos não tão irrelevante quanto eu pensava.”
“Você devia ser mais valorizada, você e as outras 27 pessoas do restante do país que fazem um serviço tão digno e importante para uma sociedade tão carente e depressiva.”
“Falando nele, você tem algum cliente favorito? Alguém que você já chegou a pensar como seria o rosto, o corpo, ou a altura? Tipo de uns 1,93?”
“Não tenha pressa pra responder.”
“É sério, vocês deviam ter direitos trabalhistas. Existem muitas pessoas procurando por trabalhos minimamente confortáveis hoje em dia.”
— O que ele tá fazendo aqui?
A voz de Elliot veio misturada em um rosnado, e se ele não tivesse mexido a cadeira para trás, eu não teria notado. Ergui a cabeça devagar, e vi que todos eles olhavam para a porta. Olhavam para Nick.
Ele estava do mesmo jeito: camisas xadrez, jeans, botinas, barba feita e cabelo revolto, mas agora acompanhado de um lindo acessório roxo no olho direito, quase da circunferência certinha do meu punho.
Aquilo foi estranhamente satisfatório.
Nick olhou em volta de tudo, olhando para o celular enquanto procurava… algo. A nós, na verdade. Ele só não sabia disso.
Quando chegou perto o suficiente para erguer a cabeça e reconhecer os presentes na mesa, seu rosto se fechou na hora. A mesma raiva estampada no dia anterior estava ainda mais intensa naqueles olhos azuis severos.
Vi Yoongi contrair todo o corpo e, automaticamente, colocando uma mão inteira no meu joelho, como se estivesse pronto para, a qualquer momento, pular na minha frente e me manter atrás de suas costas.
Porém, Nick não fez nada a não ser resmungar um palavrão e dar as costas para ir embora de novo. Coisa que ele não podia fazer.
— Ei! — levantei, afastando a mão de Yoongi. Ele me lançou um olhar confuso. — Volta aqui.
Nick parou abruptamente, virando-se para mim.
— Senta.
Cruzei os braços. Olhei para ele como eu olhava para o garoto das bombinhas da escola, ou para a garota levada que tentou grudar unhas postiças de 20cm no cabelo da colega, ou para o pestinha que estava tentando subir na própria mesa para jogar um avião de papel direto no quadro negro. Um olhar que fazia uma criança parar na hora, olhar para si mesma e sentir vergonha, de alguma forma, por alguma coisa, e fazer o que eu mando.
Nick pode até ter se sentido assim, mas não se mexeu. Em vez disso, exibiu aquele sorriso de tubarão com pontas assassinas.
— Agora tá usando sua namoradinha pra mandar recados, Augustus? Bem maduro.
Eu que te mandei a mensagem, Elizondo. E perdi dez dólares por isso, porque aparentemente, camareiras não podem fazer um simples favor de graça nessa cidade, então por isso você vai sentar nessa mesa e calar a boca. Só pra eu não ter que maquiar seu olho de novo.
Abri um sorrisinho de canto. Ele não estava mais sorrindo.
— Até parece que você…
— Até parece que eu vou perder a chance de fazer isso depois de todas as merdas que você disse ontem. Agora senta. Doutor Elizondo. — fingi um sorriso, olhando de soslaio para todos os cantos, vendo se mais um escândalo poderia ser evitado. Tudo dependia de Nick se sentar naquela mesa e escutar, e eu não estava ansiosa para deixar que ele arruinasse todo o meu plano nada genial.
Por fim, ele pareceu concordar comigo na questão do escândalo e também, talvez, com o preço absurdo do táxi no horário de pico e se sentou, em uma cadeira bem longe de todos.
Nenhum deles estava se olhando de verdade. Yoongi ainda estava me encarando intensamente, fazendo perguntas irritadas com os olhos, todas elas não soando menos do que um: “que merda você tá fazendo? O que tá acontecendo?”, mas lancei um único olhar que dizia: confia em mim.
O restante devia estar dizendo coisas que eu também já sabia por telepatia: que merda é essa, ? Você é tão encrenqueira assim?
— Tá legal, vou ignorar as expressões horrorosas de vocês e dizer pra respirarem fundo e me ouvirem. — usei a minha voz de professora , alguma coisa que misturava chantagem com doçura. — Sabem o que eu vi na internet? Esse restaurante tem uma estrela Michelin e adora música ao vivo. E sabe o que mais? Eles têm uma lareira. — apontei para a enorme escultura de pedra do outro lado do lugar, se erguendo em tijolos brancos lascados até o teto, exibindo um fogo falso por causa da primavera quente lá fora. — E infelizmente não tem LSD, mas se pedir maconha pro garoto da cozinha, tenho certeza que ele arruma depressa. Estamos em New Haven, afinal.
Balancei as mãos com um sorriso. Todos os quatro pares de olhos estavam em mim, com todas as versões de olhares intrigados e confusos que existiam.
— Ah, e aquela bateria já foi tocada pelo Ringo Starr. Sempre existiram alguns famosos que passaram por aqui e acharam interessante tocar ao invés de pagar o jantar. E eles conseguiam. É bem melhor do que lavar pratos.
Mais olhares confusos.
— Mas o quê… — Yoongi começou, mas daí o fenômeno aconteceu.
Um a um, as sobrancelhas foram levantando, arqueando, as bocas se entreabrindo conforme eles finalmente tiravam os olhos de mim e encaravam ao redor, como se aqueles instrumentos no palanque, a lareira, o chão de madeira escura e o céu pontudo em formato de abóbada nem sempre estiveram ali, e eles se vissem sendo teletransportados para outro lugar.
Nenhum deles falou nada por um tempo, mas eu sabia que tinham entendido.
Elliot foi o primeiro a falar, emitindo algo que era para ser um riso, mas foi mais uma série de tosse de fumante.
— Estamos um pouco velhos pra isso, .
— É, nossos dias de loucura ficaram pra trás. Incluindo as drogas. — Dwight falou comigo como se eu fosse uma criancinha pedindo um algodão doce feito de nuvens. Yoongi ainda parecia estar se situando, olhando de mim para o palco e o resto do lugar, se perguntando em que momento ele não se tocou das minhas intenções. Pobrezinho.
Até mesmo Nick estava prestando atenção, com seus olhos azuis me taxando de louca, com certeza.
Trinquei os dentes, bufando. Que idiotas.
— Acordem, nada entre vocês ficou pra trás. Se fosse assim, não ficariam tão travados ao ouvirem o nome da Skylar ou eu não seria chamada de vadia interesseira nas entrelinhas. — olhei para Nick. — Ah, não se preocupe, querido, isso não é uma ofensa pra mim. Mas você querer atingir o Yoongi por causa da sua dor de cotovelo, isso me atinge. Que mania que as pessoas têm de só pensarem em si mesmas e foda-se o sentimento do resto, graças a Deus eu melhorei. — me empertiguei na poltrona. Toda a atenção plena deles estava em mim. — Eu não quero substituir ninguém pra vocês, nem na vida do Yoongi e nem na vida do Jihoon. Sou perfeitamente capaz de ser eu mesma e deixar minhas próprias marcas, e respeito totalmente a forma com que cada um lidou com a perda. Mas agora o tempo passou e eu adoraria que vocês sacudissem a poeira desses suéteres horríveis e se concentrassem na vida que estão tendo aqui e agora, e olhassem pra cada um até verem que vocês continuam aqui, então estão carregando um pouco de todo mundo que amaram. Sei que amavam a Skylar, alguns mais do que outros, mas se ela já esteve com vocês um dia, então vai estar com vocês pra sempre. Então que tal incluí-la no espaço de vocês uma última vez?
Abri as mãos sobre a mesa, como se estivesse oferecendo a solução dos problemas do mundo. Todos eles permaneceram congelados no lugar por um tempo, olhando para mim, ou olhando para o chão, ou olhando para o teto, como se ainda estivesse travados no meu primeiro discurso, tentando ver se eu estava mesmo falando sério ou só fazendo uma brincadeira.
Meu Deus, homens!
— Andem logo, não temos o dia todo! — falei mais alto, e todos eles tremeram os ombros de susto, abrindo e fechando a boca. Dwight foi o primeiro a se colocar de pé, mesmo que não tenha entendido direito porque fez isso.
— A gente nem sabe… Não temos autorização… — Yoongi tentou dizer.
— Não pego em uma baqueta há oito anos. — Elliot murmurou.
— Meu baixo ainda tá dentro de uma caixa na garagem. — Dwight estava sorrindo, apesar do tom melancólico na voz. Ele olhou para os outros amigos. — Ah, gente… qual é, vamos.
— A de oito anos precisa disso. — juntei as duas mãos em súplica para Yoongi. Ele olhou bem nos meus olhos, vasculhou dentro de mim e se levantou, com a testa cheia de vincos e maxilar cerrado, mas foi o primeiro a caminhar diretamente para o palanque. Em seguida, Dwight riu e puxou o braço de Elliot, que saiu cambaleante em direção aos instrumentos.
O único que não se levantou foi Nick.
Ele estava me encarando. Um olhar que, mais tarde naquela noite, provavelmente me daria pesadelos sobre serial killers, mas sustentei com ainda mais intensidade.
Vendo que Nick não falou ou se mexeu, cocei a garganta exageradamente, como se tivesse acabado de sair de uma indústria de querosene.
— Como você pode ver, eu até cantaria, mas tô um pouco indisposta. E fiquei sabendo que você manda bem.
O deboche o acordou. Nick sorriu, ainda aquele sorriso de tubarão, mas agora parecia menos… afiado. Seja lá como tubarões faziam isso.
— Não acredito que me chamou aqui pra isso.
— Não acredito que você sai aceitando convites misteriosos entregues por camareiras. Como não foi sequestrado até hoje?
— Você disse que eles estavam me chamando. — ele gesticulou para os outros com o queixo.
— E aí você veio, não importava a procedência da mensagem. — suspirei dramaticamente. Nick pareceu corar na pontinha mínima da bochecha. — Para de tentar fingir que não passou a noite toda rolando na cama pensando no que você fez ontem, porque acredite, se não tivesse, não teria qualquer esperança de consertar alguma coisa. E por mais que eu deseje enviar um Jumanji na sua caixa de correio, pra que você acorde um dia como um marinheiro e afunde no primeiro navio, aqueles caras ali gostam muito de você. Então tenta não ser mais um idiota pelas próximas horas e me fazer acreditar neles.
Nick estava mordendo as próprias bochechas, e ainda assim eu tinha vontade de pegar sua cabeça enorme e arremetê-lo contra todas as rochas que Yoongi já estudou na vida, mas mantive a postura e, finalmente, ele se levantou.
— Você é uma pirralha bem astuta. — disse, sem nenhuma cautela, talvez porque eu deixei claro que vadia não era um insulto.
— Ah, mais uma coisa. — levantei um dedo, antes que ele se mandasse. — A não ser que eu morra engasgada com uma uva passa ou asfixiada por BDSM com meu namorado, vou ser uma doutora na semana que vem. E sim, vou pra Harvard, porque minha pesquisa é excelente e foi inspirada em uma base excelente. Então, é, sou super interesseira em me tornar brilhante, doutor Elizondo. Lembre-se disso quando esbarrar comigo em Boston no ano que vem.
Nick me olhou por um tempo muito longo até rir, e algo me dizia que não estava exatamente zombando de mim.
— Preciso te pagar um café também?
— Se não for pra me implorar por uma colaboração ou dizer o quanto fico linda de vermelho, é melhor não. — respondi.
— E por um pedido de desculpas?
Dei de ombros. Ele definitivamente não estava me zombando.
— Pode ser. Mas só se ele custar mais do que 7 dólares.
Tão rápido quanto o rosto dele e toda sua postura tinham mudado ontem quando me viu no auditório, agora tinham mudado de novo, para alguma coisa muito próxima do Nick engraçadinho que conheci no coffee break.
Bom, só podia ver isso como um bom sinal.
Ele não disse nada e se virou para subir ao palco. Lembrei de algo no último minuto.
— Ah, Nick! — chamei. Ele parou. — É melhor sorrir pro meu vídeo porque vou mostrar ao Jihoon e já vou precisar inventar uma desculpa para esse olho roxo terrível. Não piore as coisas.
Ele puxou o canto do lábio.
— Só diz pra ele que você me maquiou.
Agora eu quem sorri. E ele terminou o trajeto até o apoiador de microfone.
Isso seria divertido.
Peguei o celular. Passei reto pelas mensagens respondidas de Belle, mas juro que li algo como: “você comeu brownie batizado?”, e preparei a câmera, apontando para eles, que estavam em um rodinha enquanto discutiam o que deveria ser o ritmo, as velhas músicas, velha dinâmica e o fato de Nick talvez não conseguir acertar notas muito longas por causa de toda a coisa dos cigarros e dos dez quilos a mais.
Mesmo assim, eles conversaram e se dispersaram, cada um na sua posição. Yoongi olhou para mim e senti vontade de pintar seu nome na minha testa, ou usar cinta liga e uma camiseta com o seu rosto, só para subir naquela mesa e gritar. As demais pessoas começaram a reparar no bando de homens aleatórios no palanque, agarrando aqueles instrumentos espalhados como se fossem amigos deles há anos.
Então, Nick segurou o microfone com as duas mãos e fez sinal para eles com uma mexida de ombro. Ele olhou para o público e esperou que Elliot desse três batidas na baqueta, antes de enterrá-las nos pratos e no bumbo, vibrando um som estrondoso por todo o lugar, seguido da guitarra de Yoongi e do baixo de Dwight.
Então Nick, com uma voz aguda e surpreendentemente potente ao estilo Jimi Hendrix, emitiu no microfone: WELCOME TO THE JUNGLE.
Ninguém estava preparado para o impacto da voz de Nick, e nem do que ela combinada com os outros instrumentos eram capazes de fazer. Todos os rostos presentes largaram a comida e se voltaram para eles, com sorrisos de animação e outros ainda tentando entender quando tinham agendado uma banda e não colocaram no cronograma, seja lá de qual for. Para alguns, isso não tinha a menor importância. A partir do momento em que eles estavam tocando Guns ‘n Roses ao vivo, a noite tinha ficado dezenas de vezes mais interessante.
Esperei que meu vídeo estivesse fazendo um bom trabalho, porque estava tão empolgada que poderia muito bem ter tremido tudo como um paciente de Parkinson.
Todos eles estavam sorrindo, em especial Yoongi, com os lábios tão esticados de uma forma que nunca vi. Tive certeza de que ele dirigiria para casa com aquele mesmo sorriso no rosto, e eu seria obrigada a escutar a discografia inteira do Judas Priest no aparelho de som do carro, mas não me importava. Entendi completamente seu carinho pelas lembranças compartilhadas com aqueles caras, entendi porque Nick, por mais babaca que fosse, engoliria o orgulho sem pensar duas vezes para se acertar com eles, entendi porque Elliot abraçou Yoongi tão forte naquele auditório. Esses caras se pertenciam, de alguma forma, e talvez por esse exato motivo, ninguém tenha interrompido a apresentação imediatamente, deixando Welcome to the Jungle ir até o final, com seus solos de guitarra e baixo.
Mas quando um homem baixinho e careca apareceu correndo dos fundos do lugar, tropeçando nos próprios sapatos enquanto apertava os olhos por trás de óculos de grau quadrados e os arregalava na direção do palco, eu sabia que, finalmente, tinham chamado o gerente.
E sabia que ia dar ruim.
— Mas que balbúrdia é essa acontecendo aqui? — ele gritou, horrorizado, a voz sendo engolida pela música. Bufei, guardando o celular de volta e fazendo o que eu devia fazer:
Subi na cadeira e fiz uma concha com as mãos, colocando-as na boca e gritando:
— ABANDONAR O NAVIO! ABANDONAR O NAVIO!
Eles demoraram ainda um minuto a mais para me notar balançando os braços e finalmente repararem no homem de blazer com o rosto vermelho em fúria, apontando para fora por onde outros homens de blazer começavam a entrar.
Na mesma hora, todos eles largaram tudo, se empertigando para correr. Yoongi soltou a guitarra da melhor forma que conseguiu no apoiador, Elliot apenas largou as baquetas no chão, Dwight soltou o baixo e gritou um “Desculpa” e Nick já estava correndo, todos eles seguindo para a saída.
Corri ao mesmo tempo, tirando aqueles saltinhos que com certeza me fariam tropeçar e estragar toda a nossa fuga cinematográfica.
Me esgueirei rápido entre as mesas redondas espalhadas, distribuindo desculpas a pessoas que tinham as costas atingidas pela minha bolsa ou pelos meus braços. Vi um segurança no meu encalço e desviei por outro caminho, quase tropeçando na perna grossa de um homem que estava escondendo o rosto para não rir. Vi Yoongi e os outros na retaguarda, indo para o único caminho que levava à saída, que era tão sinuoso quanto o filamento de uma lâmpada, mas pelo menos não tinha seguranças. Yoongi me viu, os olhos brilhando mais que o sorriso reluzente. Eu gargalhei, correndo mais rápido, me aproximando até estender a mão e ele pegar, e fui puxada para atrás de Nick, para o corredor estreito e, enfim, para a noite fresca e úmida da Whitney Avenue, rindo tão alto que quase me esquecia de respirar direito.
Viramos na primeira rua que vimos, ainda ouvindo os gritos de “vou chamar a polícia” vindas do homem baixinho, que logo se perdeu conforme ele ficava ainda mais pequeno e sumia por uma curva. Não fazia ideia de para onde estávamos indo, e duvido que eles também. Essa era a menor das preocupações. Yoongi entrelaçou seus dedos nos meus, me puxou para mais perto e correu comigo, e isso sim importava.
Quando paramos, o lugar ao redor era repleto de elevações íngremes e curvas fechadas através de um terreno irregular lotado de verde. A única coisa que eu sabia de New Haven era a Yale e o East Rock Park, mas sem a presença de uma placa informativa, todo parque parecia o mesmo parque de todos os lugares.
Os passos foram diminuindo, assim como as risadas, que finalmente estavam saindo em arquejos gorgolejantes e como um ataque de asma no caso de Nick.
— Viu a cara deles? Nossa, eu ainda arrebento na bateria! — Elliot deu um soquinho no ombro de Dwight.
— Foi muito bom! Caralho, foi muito bom! — ele vibrou em resposta, agarrando o ombro de Yoongi e Elliot enquanto pulava no mesmo lugar. — Você andou treinando, Gus! VOCÊ ANDOU TREINANDO! VOCÊ FEZ A INTRO CERTINH…
— Se você não tivesse acertado a sua parte, eu teria errado no Lá. Eu não lembrava que essa cifra era tão difícil…
— Eu comandei tudo! Os Fireboys ainda comandam TUDOO! — Elliot berrou, e as pequenas colinas e contrafortes cultivadas por New Haven tornaram aquele momento só nosso.
Ou só deles. Eu não me importava nem um pouco de ter participado como mediadora. Yoongi estava radiante, então automaticamente aquela era uma noite linda, estrelada de um mundo lindo e sem problemas.
Até o próprio ar estava mais limpo, fresco, o prenúncio de chuva que logo logo cairia.
— Espero que esteja orgulhosa. — a voz de Nick me tirou da hipnose dos amigos. Ele estava do meu lado, com as mãos nos bolsos, andando no mesmo ritmo lento que eu, mesmo que suas pernas fossem o dobro das minhas.
Dei de ombros.
— Não fui eu que subi lá em cima e botei pra quebrar de um jeito ilegal. Foi coisa dos bad boys da fogueira.
— Eu não sabia que a gente tinha ganhado uma mascote, mas foi uma ótima aquisição. Onde você estava quando éramos calouros? — ele logo arqueou as sobrancelhas, um sorrisinho sacana nos lábios. — Ah, é. Provavelmente aprendendo a andar.
— E arrancando os olhos de bonecas e jogando pela janela, talvez eu não seria contratada por vocês. E se fosse, você não estaria aqui pra me agradecer pelo último show.
Ele riu alto. Era muito agradável ver Nick rir, como se, por algum momento, deixasse pesos enormes saírem dos ombros e se tornasse apenas um cara normal.
— Sabe de uma coisa, ? Talvez você seja mesmo uma vadia.
Dei de ombros.
— Obrigada.
— Não me agradeça ainda. — ele chegou um pouco mais perto, e mirou as costas animadas de Yoongi, andando lado a lado com os outros, o sorriso mais incandescente do que todos os postes da cidade. — É muito mais difícil superar mulheres assim.

🌏


Passava das dez da noite quando, finalmente, estávamos fazendo o caminho de volta para o hotel, com a ideia maluca vinda de um Yoongi ainda no pico da euforia de rockstar: a pé.
O movimento ainda era grande na rua, mas só eu estava descalça, com os saltos pendurados nos dedos e um blazer por cima dos ombros por causa da repentina brisa fria que sacudia as árvores ainda naquele anúncio de chuva. As colinas a leste do que agora eu sabia ser o New Haven Green, eram bolsões de mata fechada, tornando tudo verde e escurecido do lado direito da calçada, deixando aquela cidade de pedra com menos cara de antro poluído e sufocante que eu, no fundo, sempre achei que fosse.
Naquele momento, não conseguia pensar em absolutamente nada de ruim sobre New Haven ou, sua vizinha mais conhecida: Nova York. Eu estava aconchegada sob o braço confortável de Yoongi, os dedos entrelaçados nos dele e sentindo pontadas agudas de felicidade nas entranhas por motivos que não conseguia explicar.
— Foi muito legal o que você fez lá dentro. — ele disse finalmente, aquele sorriso ainda tatuado no rosto. Me perguntei se algum dia ele pararia (e desejei que esse dia nunca chegasse). — Acho que a gente precisava disso.
Soltei um “humpf.”
— Vocês precisavam mesmo era de terapia e alguns socos, mas só fizeram uma dessas coisas. Me vi no direito de interferir.
Ele riu, acariciando meus dedos de leve dentro dos seus.
— Obrigado. Vou resolver a outra parte assim que possível.
— Eu sei que vai. Inclusive, devia perguntar ao seu futuro terapeuta se é saudável ser um sex appeal obsceno mesmo quando respira, e se deveria sentir algum remorso por isso.
— A guitarra te deu tesão de novo, né? — ele semicerrou os olhos. Eu nem precisei responder. — Mas a gente só tocou Guns ‘n Roses, você nem gosta deles.
— Você tá iludido se acha que a guitarra faz alguma coisa. É o jeito como você toca nela, meu bem. Sabe aquilo que faz com os dedos? Uma senhora na plateia estava cruzando as pernas embaixo da mesa e hiperventilando. Tomara que ela nunca te veja tocando piano.
Sua gargalhada foi uma elevação súbita e gostosa no ar, um precipício delicioso rasgando todas aquelas florestas rochosas em volta de nós.
— Acho que a faixa etária inteira do lugar não era menor que 60. — Yoongi pontuou.
— Exatamente, e suas mãos fizeram todas aquelas senhoras lembrarem que ainda estão vivas. Acho que se você tirar uma foto, a gente descola muita grana vendendo pra algum sheik na deep web. Pack de mãozinha.
— Eu me prostituir te deixaria feliz?
— Acho que a grana pra gente ir passar férias na Itália na época do GP de Roma com o Jihoon é o que me faria feliz.
— Hum. — ele pareceu pensativo. — Isso pode ser considerado dinheiro sujo?
Levantei os ombros quando chegamos na frente da faixa de pedestres.
— Eu acho uma forma bem honesta de ganhar dinheiro. Talvez teria que ser uma grana lavada e sem taxação de imposto, já que o governo não saber-
— REVA!
Mal vi o que aconteceu. Meus olhos pareceram ter sido cobertos de cerração, uma neblina grossa caída sobre as minhas pálpebras e que me deixou cega, confusa, perdida. A luz intensa dos faróis estavam perto demais quando o grito de Yoongi rasgou os meus ouvidos, e tudo isso passou em um instante delirante quando tive os braços puxados para trás com força, e cambaleei, caindo em cima dos braços dele.
Respirei fundo. Pisquei os olhos, voltando a mim. O carro passou como uma bala, levantando vento, fazendo meu cabelo quase decolar para cima com eletricidade estática. Fiquei em pé de novo, ajeitando meu vestido e pegando o blazer e os sapatos que caíram no chão.
— Mas que merda? Caramba, esqueci completamente que eu tô na cidade dos malucos que acham isso aqui um cenário de Velozes e Furiosos. Você viu aquele carro, acho que tinha até nitro nos motores, e… Yoongi?
Parei quando olhei para Yoongi. Ele estava tremendo, pálido, os pés firmes no mesmo ponto onde tinha parado na borda da calçada, os olhos cravados no meu rosto de um jeito amedrontador, brilhando excessivamente de choque e medo.
E seus dedos apertavam meu pulso de um jeito mais forte que o normal.
Franzi o cenho, me aproximando dele.
— Ei, tá tudo bem. Por que você…
A voz quebrou quando Yoongi me puxou para um abraço, o mais apertado que alguém na vida já me deu, e ali eu consegui sentir claramente os seus músculos tremelicantes, toda a pele por baixo da camisa se eriçando e sua respiração apressada e sufocada exalando quente em todo o seu peito. Fiquei parada, espantada por um segundo pela reação, até entender completamente o motivo dela.
Entendi dolorosamente.
— Yoongi… — tentei dizer, fechando meus braços em torno dele também.
— Porra… — ele exalou, a voz mal chegando a uma oitava. — Porra, desculpa. Desculpa, , eu achei… por um momento, eu achei…
— Ei. Tá tudo bem. — lancei os braços pelo seu pescoço, acariciando seu cabelo. — Eu tô bem, não aconteceu nada comigo, eu juro. Tá tudo bem. Olha pra mim. — me afastei o suficiente para que ele tirasse o rosto do meu ombro e me olhasse.
Quando fez isso, o rosto atormentado de Yoongi quase me partiu o coração.

— Ele nem chegou perto dos meus sapatos. Tá vendo? — balancei os saltinhos pendurados em um dedo, ansiosa para que ele tirasse qualquer angústia do peito. — Eles estão inteiros. E ainda bem, porque se aquele cara os sujasse nem que fosse um pouquinho, Belle ia fazer um escând-
, eu te amo.
Yoongi interrompeu. Esqueci o que eu ia falar.
— Eu amo você… , eu amo tanto você que… Cacete, não posso te perder. — ele bufou, a voz saindo abafada e enclausurada. Sua mão foi automaticamente para a parte da frente do cabelo, como se aquelas palavras fossem uma pedra tirada a guincho do fundo de seu ser. — Não posso nem imaginar isso acontecendo, e percebi isso agora, depois de você quase… Meu Deus, que merda…
Ele passou as duas mãos no rosto, se afastando para andar pela rua, para sentir que ainda existia espaço no asfalto e ar oxigênio ao redor para se respirar. Continuei estática no meu lugar, na borda do meio fio, processando as palavras mais lentamente do que já processei qualquer coisa.
Ninguém nunca tinha dito que me amava. Não nessa vida, e não que eu ficasse sabendo. Talvez minha mãe tenha dito uma vez, quando eu era pequena demais para caber no coração dela e meu pai, quando via minha mãe fazer o mesmo. Mas daquele jeito espontâneo, com uma sinceridade tão visceral que chega doía, não tinha acontecido comigo.
Não achei que aconteceria algum dia.
E tudo que eu conseguia pensar era em Yoongi e fazê-lo ver e acreditar que eu estava bem, que estava viva, que ficaria viva, que ele já podia parar de sentir medo e dor.
Dei exatos três passos até ele, fazendo-o parar de andar em círculos e puxando seu rosto para mim.
— Você não vai me perder, Yoongi. Você não… — meu peito apertou. Uma fisgada descomunal de uma outra verdade sendo arrancada de dentro, doendo tudo ao mesmo tempo que aliviando. — Eu também te amo. Não que você já não saiba disso, pelo amor de Deus, tenho certeza que já falei dormindo umas 100 vezes, mas… eu prometo, você não vai me perder.
Larguei os saltos no chão e alcancei os dois lados de seu rosto, necessitando tocar nele, que ele acreditasse em mim. Yoongi me encarou por um longo, longo tempo, deixando seu cérebro agitado constatar que eu estava mesmo ali, que eu não era um corpo jogado no asfalto como o que ele já tinha visto no passado.
— Meu Deus, . — ele soltou o ar com força, os olhos voltando ao foco. — Eu não gosto de ser controlador. Eu nunca fui, mas acho que se eu pudesse controlar essas coisas, se pudesse prever com 100% de eficácia qualquer tragédia, não pensaria duas vezes em te levar pra longe. Em proteger você. — foi a vez dele de pegar meu rosto, a voz saindo em clamor: — Eu te amo, . Todo o resto da minha vida já está fadado à uma necessidade absurda de você. Não vou conseguir mais achar sentido nas coisas da vida que você me devolveu o sentido. E não sei porque não disse isso antes, talvez eu estava… com medo, com receio…
— Você não tem que ter medo. Yoongi… — balancei a cabeça depressa, o coração batendo na garganta. — Eu sei que o que aconteceu com a Skylar te marcou e vai te marcar pra sempre, mas eu tô aqui. E eu não vou a lugar nenhum. Só se for com você. — me aproximei para beijar seu queixo, depois seu nariz, depois sua boca. Podia sentir os batimentos dele nos meus. Senti que ele estava me apertando para perto dele mais do que nunca, enviando a confirmação para todo o corpo. — E também não gosto de dirigir, caso esteja pensando em fazer pack do pé pra me comprar um carro.
Foi o que bastou para que Yoongi colocasse um sorriso no rosto de novo e me puxasse para um beijo. Um beijo forte, extasiante, que me tirou mais coisas do que devolveu, me tirou da atmosfera conhecida e me jogou para um novo nível. Não mais o intermediário. Já estávamos despencando no avançado.
Se Yoongi não tivesse dito que me amava naquela noite, eu já saberia apenas por aquele beijo. Saberia que eu o estava tirando, lentamente, daquela noite escura que ditou seus últimos três anos, trazendo ele de volta para a luz, para mim.
Ele se afastou sem fôlego, mas disfarçando bem melhor do que eu, que demorei para abrir os olhos e me soltar dessa fantasia maravilhosa.
— Você é uma força da natureza, . — sua boca roçou na minha, agora com o sorriso maior. — Sinceramente, posso ainda ter um medo irracional de perder você pra algum evento canônico do destino, mas alguma coisa me diz que nenhuma tragédia que aconteça daqui pra frente vai ser capaz de me marcar mais do que você. Com você, as coisas boas se sobressaem e consigo forçar o tempo a parar. Ainda tenho medo, mas pela primeira vez tenho certeza que é ainda. Não tenho mais um monte deles; de me entregar pra você, de amar você, de falar, de dançar, merda, não tenho nem mais medo de começar uma família com você. Na verdade, eu quero muito, muito isso um dia, se você quiser também.
Eu estava no meio de uma bolha linda e inebriante que o beijo de Yoongi tinha me dando, e talvez por isso, demorei tanto para entender o que ele dizia.
E quando entendi, não sei bem o que senti. Entrei naquele vórtice espirulento que diziam, quando você sente tantas coisas ao mesmo tempo que não consegue pontuar nada.
Mas as borboletas foram ativadas, fazendo o mesmo trajeto que sempre faziam desde que beijei Yoongi pela primeira vez. Borboletas amigas que espalhavam serotonina por todo o meu corpo à menor menção do nome dele, borboletas que sonhavam com o toque dele, borboletas que também não imaginavam os próximos dias, anos e décadas sem olhar para aquele rosto de manhã, dividir as contas, as preocupações, os cuidados com Jihoon, os medos e os conhecimentos. Notei naquela hora que tinha pensado em mais futuros com Yoongi do que do meu próprio, fadada a uma vida realmente brilhante, porém sozinha e dirigida a propósitos passáveis.
O sorriso foi natural e intenso no meu rosto, satisfeito com a minha própria existência no planeta Terra.
— Esse foi o pedido de casamento mais estranhamente fofo que já ouvi.
— Não quero te assustar, . — ele engoliu em seco, trocando o peso das pernas. — Você é brilhante e tem uma carreira inteira pela frente. Mas quando quiser… quando estiver disposta a isso… Eu vou adorar.
O nariz ardeu imediatamente, a garganta inchou e barrou o caminho para o que quer que eu pudesse responder. Minha mente era uma escuridão absoluta, como se a cada minuto, as coisas iam se tornando mais entendíveis e, exatamente por isso, tudo ganhava peso e força, saindo do controle, me fazendo chorar.
Eu realmente ficava extremamente ridícula chorando, então beijei ele, dispersando a sensação para voltar a sorrir.
— Isso é tipo um pseudo noivado?
Yoongi deu de ombros.
— Pode chamar do que você quiser.
— Acho que podemos combinar pra quando o Jihoon ficar adolescente. Talvez um irmãozinho ajude ele a não entrar em gangues ou usar drogas antes do tempo.
— Antes do tempo?
— Ele vai ser piloto de Fórmula 1, meu bem. Só a água com gelo deve estar cheia de esteroides.
Yoongi riu profusamente, me pegando de surpresa. Eu o acompanhei, enfiando a cabeça na base do seu pescoço.
Quando parou, seu silêncio se arrastou por um segundo até dizer:
— Obrigado, .
— Pelo quê?
— Por ter empurrado aquelas folhas pela minha porta no início do semestre.
Levantei a cabeça.
— Da primeira vez? Você estava vendo?
— Eu estava do outro lado. No bebedouro. Você não prestou atenção com os fones de ouvido.
— Seu sacana. — dei um tapinha nele, os olhos arregalados de surpresa. — Então, foi dessa vez que você comprou as camisinhas? — Yoongi negou com a cabeça, o sorriso contido. — Mas que inferno. Algum dia você vai me contar?
— Quando o Jihoon for um adolescente das gangues e começar a fazer sexo com filhas de socialites. Expressamente nessa ordem.
Revirei os olhos, fazendo a única coisa que seria capaz de fazer no momento:
— Tudo bem. Eu aceito.


“Eu sei que é impossível de acreditar, mas lá parece uma fazenda.”
“Não o prédio, mas ao redor. Parece que o dono era um ricaço que achava impossível os médicos se concentrarem em salvar vidas enquanto olhavam o trânsito pela janela, seja lá o que uma coisa tenha a ver com outra, e meteu um prédio imenso no meio do nada.”
“Vão para o terceiro piso, a administração já tá sabendo de vocês. Chego em quinze minutos.”
Reli a mensagem pela terceira vez, com uma vontade arrasadora de tirar foto de cada canto daquelas paredes verdes doentias e dizer para Yoongi que minha amiga podia estar correndo risco de vida ali, porque eu jurava ter visto a maior galinha do mundo ciscando no pátio principal daquele hospital. E que a única luz que funcionava no banheiro estava infestada de traças.
Ele teria que me pedir desculpas eternas. E à Belle. E também à Yves, quando ele crescesse o suficiente.
— Que cheiro é esse? — Jihoon perguntou assim que curvamos em um corredor largo e afunilado, com algumas portas emplacadas com Somente Funcionários, e outras que provavelmente eram quartos com mulheres recém tornadas mães, o que devia deixar seus cérebros totalmente calados por um tempo indeterminado.
Arrepiei só de pensar.
— Provavelmente cheiro de hospital. Porque, aparentemente, estamos em um. — funguei para saber. Não sentia nada além do cheiro padrão de álcool e talvez um pouco de mato.
Jihoon balançou a cabeça duas vezes.
— É o hospital mais esquisito que eu já vi.
— Mas eles têm a arquitetura certa. E enfermeiras.
— As mulheres de uniforme rosa? Uma delas estava pintando a unha embaixo do balcão.
— É o meu sonho fazer as unhas no trabalho. — passamos por uma placa em cima de um apoiador de metal: Obstetrícia em 20 metros.
Jihoon estalou a língua e remexeu a mão que estava dentro da minha.
— Você nem sabe fazer as unhas, .
Suspirei. Era verdade. Até um garoto de dez anos via isso.
— Por isso eu faço aquela visita quinzenal na tia Angela, pra ela poder me salvar de mim mesma.
— Papai diz que você vai pra lá pra ter o seu momento de mulher com a tia Belle, mas eu sei que vocês só bebem aquela coisa de limão e falam mal dos outros.
Jihoon. — apertei sua mão e olhei para ele, um tanto estarrecida. — A gente não fala mal de ninguém.
— Nem da nossa vizinha, a senhora Fröling? Ela foi no seu trabalho dizer que nossa caixa de correio estava torta.
— Ok, talvez dela a gente fale um pouquinho, mas ela meio que mereceu.
— Mês passado você demorou tanto a chegar em casa que o papai quase chamou a polícia.
— Seria uma vergonha.
— Seria.
Começamos a ouvir o chorinho esganiçado e pequenos murmúrios de criaturinhas conhecendo o mundo, assim como ver algumas enfermeiras correndo de lá para cá, sem notar nossa presença.
Reli a mensagem de doze horas atrás de Elliot, e procurei o número indicado na frente da porta dupla onde eu não poderia entrar. Vi uma fileira de cadeiras na frente e me sentei, como já estava desesperada para fazer. Jihoon sentou ao meu lado.
— Você sabe porque eu atrasei naquela semana. — falei, avisando a todos de uma vez que eu já estava ali.
Meu querido enteado abriu aquele sorrisinho fofo, com os dentes agora devidamente no lugar, balançando as perninhas magricelas que agora já tocavam no chão.
— Aham. Doeu muito? — ele olhou para minha barriga. Não entendi.
— Doeu o quê?
— Vomitar daquele jeito. Foi por causa da semente que você engoliu?
Pisquei os olhos com força. Quis desesperadamente escorregar daquela cadeira e me encolher com todas as minhas capacidades articulares e virar um tatu. Eu ia matar Yoongi. Já teria matado, se não tivesse a semana mais caótica do mundo e acabasse tendo que estar ali agora para algo bem mais importante.
— Não, não doeu nada, lindinho. Você quer o seu livro? — procurei a edição em capa dura do Pequeno Príncipe na minha bolsa, que a cada ano que passava ficava maior. Jihoon assentiu e eu passei o livro para ele, ajeitando seu cabelo um pouco arrepiado da viagem apressada de táxi.
”Por favor, me lembre de arrancar 1/3 dos seus testículos antes do final de semana. Vão ser 2/3 se Jihoon falar da semente comigo de novo”, escrevi para Yoongi enquanto Jihoon abria sua primeira página. Não fazia ideia como ele iria ler com todos aqueles gritinhos abafados, mas o garoto era bom nessa coisa de foco.
Yoongi me respondeu:
“O que você queria que eu dissesse? Ele não chegou nessa fase ainda.”
“Cegonhas, meu bem! O básico ainda funciona nesses casos. É muito melhor do que deixar ele pensando que eu engoli uma pinha com dois braços e duas pernas.”
“Mas… Você meio que engoliu…”
“Ah, cala a boca.”
Mudei de tela quando recebi outra mensagem.
“Eu cheguei também. Quer dizer, eu acho. Que raio de lugar é esse?”, escreveu Wonwoo.
“Eu sei, por que não trazem de volta o modelo padrão de hospitais que ficam em civilizações? Estamos no 3º andar, você vai ouvir o barulho.”
“Ela tá gritando tanto assim?”
“Provavelmente. Ou eles estão gritando.”
Jihoon puxou as perninhas para cima do banco e apoiou a cabeça no meu ombro, sem tirar os olhos do livro. Me vi obrigada a digitar com uma mão só, porque eu era incapaz de lembrar a ele que eu não era sua cama.
Não demorou muito para que passos firmes se sobressaíssem ao barulhinho de novas certidões de nascimento do outro lado da parede. Wonwoo apareceu logo, visualizando meu braço esticado e andando mais rápido.
Eles?! — suas sobrancelhas bonitas e com certeza feitas se arquearam para cima. — Eu perdi o bolão?
— Não sei, acho que o bebê Hamilton ainda tá bem seguro dentro da vagina dela. — falei a última frase sussurrando, mesmo que Jihoon com certeza conhecesse a palavra. — Você veio de carro?
— Você sabe que eu não ando de carro. E aí, moleque. — Wonwoo cumprimentou Jihoon, que levantou o punho para bater no dele em um toque de soquinhos. — O que você tá lendo que não seja instruções de um vídeo game?
— Alguma coisa muito melhor do que o seu livro. — resmungou Jihoon, levantando apenas a superfície das pálpebras. — E que deveria vender mais do que ele também.
Wonwoo abriu aquele sorrisinho de canto que tinha aprendido a dar nos últimos anos, uma coisa tão diferente quanto suas lentes de contato perpétuas, o cabelo mais longo e penteado para cima com gel e as roupas descoladas e caras que o deixavam parecido com um galã de cinema.
— Você ainda não me perdoou pelo final do segundo livro, não é?
— Claro que não. A Daniella não ficou com artesão no final, mesmo ele tendo lutado por ela o livro inteiro. E ela largou tudo isso por causa do professor que só mexeu o cabelo? — Jihoon fez um “humpf”. — Patético. Talvez no próximo você consiga.
— Jihoon. — tentei soar, de novo, menos estarrecida. Ele ainda nem era um pré-adolescente. — O final nem foi tão ruim. Quer dizer, ele vai pra Netflix, esqueceu?
— Papai sempre diz que o cinema é melhor.
— O seu pai é um doce mesmo, moleque. — Wonwoo arranhou a palavra, passando uma mão na nuca. — Falando nele, onde está? Preciso pegar meus 50 dólares do bolão, já que vou falir muito em breve com meu fracasso de bilheteria em Pávido Platão.
Ele deu uma olhada de soslaio para Jihoon, que permaneceu com aquela expressão meio tediosa de quem acabou de acordar.
Repito: ele ainda nem era pré-adolescente, mas já estava com todas as características de um.
— As pessoas vão amar a sua adaptação, você sabe disso. Como vai a Melanie?
— Bem. Vou terminar com ela no fim de semana.
— O quê? Por que? — de novo?, quase perguntei. Não de novo com a Melanie, mas de novo programando um término de namoro. — Você parecia tão feliz…
— Sempre pareço feliz, . Sou uma pessoa pública.
— Bem, então parecia muito feliz. — dei de ombros.
— Eu sei, mas já consegui o que eu queria. Mandei o manuscrito novo para o editor e agora tô livre por uns meses. E esse o pequeno Aristóteles aí não vai poder ler.
— Por que não? — perguntei.
— Por causa do tema do livro.
— Qual o tema do livro?
Jihoon não deu atenção. Wonwoo olhou de mim para ele, procurando a melhor resposta.
— Eu tava saindo com uma modelo da Victoria Secrets nos últimos seis meses, . Sobre o que você acha que é o livro?
— Ah. — soltei, sentindo a bochecha quente por motivo nenhum, rindo em seguida. Wonwoo já tinha dito que estava disposto a testar sua capacidade em plots que as pessoas não esperavam que ele fosse escrever depois do sucesso mundial de Pávido Platão, um que ele nem sonhava conquistar, mas que depois, passou a sonhar com outras coisas, tendo outras metas. E a próxima era: escrever um romance erótico onde um casal sente que seus corpos não pertencem a ninguém, ao mesmo tempo que descobrem sua compatibilidade além da cama e isso os confronta a encarar outras questões do assunto.
Ele nem precisava me contar o final. Eu já sabia. Todos os fãs do autor J. Wonwoo, de alguma forma, sabiam: seria triste, injusto e desolador. Sua marca registrada.
— O que é Victoria Secrets? — Jihoon levantou o rosto do livro, nos olhando com curiosidade. Tossi repentinamente.
— É uma… loja de vestidos. — respondi. — Vestidos longos e bem comportados.
— Tipo da era colonial?
— Isso mesmo. — afaguei seu cabelo. Wonwoo virou o rosto para esconder a risada. — Não aguento mais esperar. — murmurei, recostando na cadeira. Minhas costas estavam doloridas.
Wonwoo olhou para mim de cima e finalmente se sentou na outra cadeira do meu lado.
— E como vai você? — ele apontou para o meu corpo inteiro, fazendo voltinhas com os dedos quando chegou na barriga. — Você e a…
Revirei os olhos.
— Ela não vai se chamar Daniella, Wonwoo.
— Por que não? — ele arquejou, indignado. — Você quer tirar meu único direito como padrinho? Essa garota nem existiria se eu não tivesse aparecido com aqueles ingressos da palestra.
— Os que eu fiquei sabendo que você comprou com a grana da sua inscrição do workshop do Haruki Murakami?
— E daí? Almocei com o Haruki Murakami na semana passada, . E o George R. R. Martin praticamente me convidou pro funeral dele. Aquele velho é muito esquisito. — ele torceu a boca. — Qual é, você não pode tirar esse mísero prazer da minha vida.
Eu quis dizer que Jeon Wonwoo, o escritor best-seller mais jovem do New York Times, tendo vendido mais de 10 milhões de cópias pelo mundo com o seu romance de estreia, seguido por mais dois livros e um monte de contratos de editoras empilhados na mesa da sua cobertura em Nova York, onde ele vivia fazendo festas de arromba, conhecendo celebridades, transando com garotas inalcançáveis e se jogando na vida para usar de base para as suas histórias, estar me dizendo que seu único feito na vida seria nomear a minha filha com o nome da sua personagem que, na verdade, era eu, uma coisa bem lisonjeira. E fofa.
— Ainda não decidimos o nome, mas vou pensar com carinho. — dei um peteleco no seu nariz. Era mentira, claro que escolhi o nome. E é claro que seria Daniella.
Wonwoo sacudiu a cabeça, os dentes no lábio inferior, fazendo aquela expressão típica de “você me paga.”
— Seja o que for, tomara que ela saia com a sua cara. Seria muito melhor do que o…
— Eu penso a mesma coisa, senhor Jeon.
A voz de Yoongi foi chegando pelo corredor, silenciosa como os seus passos. Nunca conseguiria entender como alguém que usa sapatos elegantes como aqueles conseguia não emitir nenhum ruído.
Ele primeiro foi até Jihoon, dando um beijo no topo da sua cabeça e dando uma verificada rápida na capa do seu livro, guardando a informação para comentar com ele depois ou para jogar na mensagem de sábado. Depois, se abaixou para me beijar e colocar a mão na minha barriga, como se ali fosse o meu rosto, ou minha mão, ou meu joelho; tanto faz, ele não me tocava em nenhum outro lugar sem antes tocar na barriga. Um hiperfoco extremamente paternal.
Daí, olhou para o cara de jaqueta Burberry do meu lado.
Wonwoo se empertigou, porque, de novo, sem perceber, tinha se inclinado dois centímetros além do aceitável para perto de mim. Logo, logo, estava de pé na frente de Yoongi.
— Professor. Que prazer. — ele estendeu a mão, assumindo um tom formal. Yoongi olhou para a mão dele com um olhar duro.
— Uma pergunta: se Daniella nascer com a minha cara, você estaria disposto a pelo menos fazer o professor Bosé não ser calvo?
Wonwoo fez uma cara pensativa. Suspirei fundo no meu lugar.
— Hum… não, desculpa, os geólogos são calvos. Eu não mexo com a genética milenar.
— Mas ele é professor de matemática.
— Que seja, eles lidam com números e roubam a garota do artesão. Gente assim merece perder o cabelo antes dos 25 anos.
Yoongi pressionou os lábios. Wonwoo levantou as sobrancelhas. E eu, de novo, suspirei fundo. Revirei os olhos.
3, 2…
Pronto, os dois explodiram em risadas e Yoongi não apenas apertou a mão de Wonwoo, como o pegou em um abraço apertado, parabenizando meu amigo pelos números recordes das últimas vendas enquanto Wonwoo o parabenizava pelo contrato com a Hexagon, a empresa multimilionária de Geotecnologia que adoraria trabalhar com o professor-titular de Harvard para criar um software poderoso que forneceria mapas detalhados de relevo terrestre e faria modelos de desenvolvimento para áreas degradadas. E também o parabenizou pelo novo registro no cartório que tinha colocado dentro da minha barriga antes do tempo previsto.
O plano era esperar o Jihoon adolescente, quando seu mau humor matinal se tornasse constante, e sua expressão fechada, assustadoramente idêntica a de Yoongi, não mostrasse de verdade como ele se sentia por dentro, mas o ajudaria a começar a fazer amigos (talvez gangues, talvez apenas de garotos que gostavam dos mesmos assuntos que ele, como tintas aquarela, livros e carros tunados. Ele tinha descoberto na escola que existia design automotivo como profissão, e disse que pensaria no assunto). Aí, sim, eu cortaria a pílula e começaríamos a tentar, com aviso prévio para Jihoon e tudo (sem os detalhes, é claro).
Mas então, desde que voltei do Chile há um ano, depois de passar duas semanas coletando espécies nativas que seriam inseridas no meu solo orgânico inovador, que estava no processo para virar uma patente, e fui visitar Belle na boa e velha Filadélfia, minha amiga não era mais a mesma. Quero dizer, tinha um acúmulo de coisas diferentes nela, que reparei assim que vi seu rosto, mas que só entendi completamente quando achei o panfleto da clínica de inseminação embaixo do vaso de flores falsas da cozinha.
Foi quando ela gritou, chorou, esperneou e quase me cortou com a linha afiada da sua boca cruel, soltando tantas palavras de uma vez que quase precisei me defender com uma almofada. Mas o resumo parecia com: “Você foi embora e me deixou pensando em coisas… Eu sinto falta do Jihoon… Que droga, sinto falta de ouvir Patrulha Canina, porra!… Eu comprei uma pelúcia do Marty, aluguei os filmes do Carros no Prime Video, pelo amor de Deus…. Eu quero ter um bebê!
Foi isso. Não um namorado, não um marido, nem mesmo um ficante fixo: um bebê. Belle só queria um bebê.
Achei que fosse uma TPM severa, mas no mês seguinte, ela realmente entrou na clínica e começou a fazer todos os exames para o procedimento, agarrando aquela ideia com suas garras impiedosas.
Fiquei tão preocupada com ela que peguei folga no laboratório por uma semana e a acompanhei nas primeiras consultas. Exigi que, se ela estava tão convicta daquilo mesmo, então que fosse morar em Boston para que eu pudesse ajudar de perto. Daí, fizemos sua mudança, trabalhei, levei Jihoon de um lado para o outro quando Belle queria vê-lo, comprei fraldas, leite, chocalhos, mais fraldas, viajei para mais dois países, acalmei Belle quando ela chegou ao ponto de não conseguir enxergar os próprios pés por causa da barriga, passei vários dias encontrando Yoongi apenas na cama à noite, e esqueci completamente da reinjeção do meu Depo-Provera.
E assim acabamos aqui.
— E então? Eu ganhei o bolão? — Yoongi perguntou quando se afastou de Wonwoo. — É um menino?
— A gente não sabe. Ele ainda não…
Na mesma hora, as portas duplas automáticas finalmente se abriram, e Elliot passou por ela, em seus trajes hospitalares com pequenos resquícios de sangue e suor empapando a touca cirúrgica, parecendo eufórico e cansado, com umas 80 horas de insônia acumuladas embaixo da pele.
Mas estava com o maior sorriso do mundo. Fiquei de pé em um pulo.
— Pronto. Foi um sucesso! — ele expirou, com alívio. — É forte, saudável, com aquele cabelinho loiro da Belle, e eu acho que ele acabou se afogando no primeiro chorinho, mas tinham que ver o olhinho dele quando abriu…
— Espera, ele? — Yoongi interrompeu, gesticulando. — Ele? É menino? É isso?
— Ou você disse ele de um modo geral, sem especificar sexo, já que recém-nascidos são todos iguais? E as garotas têm mais chance de vir com o cabelo da mãe… — tentou Wonwoo, olhando com súplica para Elliot.
— O doador também pode ter a mesma cor de cabelo.
— Não tinha. Você não viu os dados da ficha que ela mandou?
— Ele pode ter nascido loiro…
— Calados! — falei alto, me metendo no meio dos dois, olhando para Elliot com ansiedade. — E então, como a Belle está? E o meu sobrinho?
Elliot voltou a sorrir radiante. Não sabia se era por causa do bebê, de Belle ou as toneladas indecentes de café no cérebro.
— Ela tá ótima, aguentou tudo melhor do que eu esperava. Quase quebrou a minha mão uma vez, mas valeu a pena. Só de pegar aquele bebezinho lindo… — ele olhou para os rostos lívidos dos dois idiotas que tinham se aproximado repentinamente dele, querendo saber de apenas uma coisa. Elliot bufou. — É um menino, cacete.
O som foi claro: grito de comemoração de Yoongi, grito de lamúria para Wonwoo. Até mesmo Jihoon parou de ler o livro, indo para o colo de Yoongi enquanto ele repetia: “um primo, Jihoon. Eu sabia que você ia ter um primo”. Depois, estendeu a mão para Wonwoo: “Bora, escritor. 50 dólares. E nem faz essa cara, eu te falei das chances.”
Ele tinha mesmo. Desde que descobrimos que Belle queria imitar os índios e descobrir o sexo do bebê só no dia (porque não queria ser influenciada pelo capitalismo de gênero, ou algo assim), Yoongi e Wonwoo fizeram uma aposta com suas escolhas. Achei que Belle ficaria ofendida, mas ela mesma entrou no bolão. Agora estava me devendo 50 dólares também.
— Posso vê-la? Ela sentiu muita dor? O quanto isso dói? — falei para Elliot, tentando não demonstrar tanta ansiedade. Ele desceu o olho para a minha barriga e segurou o riso.
, o parto natural não é…
— Só me dá uma escala de dor, doutor Riggi.
— Hã… eu diria que 10, caso o limite desse índice seja 10. Se não for, talvez uns mil… — ele abriu um sorriso sem graça e confuso. É claro que devia estar pensando que eu era uma cientista e que provavelmente já tinha lido que a dor do parto estava numa escala maior do que um tiro na costela, mas às vezes eu me forçava a esquecer dessa informação. Principalmente porque não conseguia me preparar para ela além de me matricular no pilates e na fisioterapia pélvica.
E se ela ficasse presa dentro de mim? E se eu não conseguisse forçar? E se, mesmo quando saísse, meu cordão umbilical quisesse ficar e daí a pequena Dani ficaria flutuando pendurada do lado de fora do meu corpo, chorando pela primeira dor que eu estava causando nela?
— Ah, mas ela disse uma coisa antes de desmaiar de exaustão. — Elliot falou, projetando o lábio para a frente, pensando. — Ela disse: tá fodida.
Grunhi tão alto que foi quase um grito.
— Vaca! Eu só tô de 12 semanas!
E de repente, as coisas estavam explodindo e explodindo dentro de mim, os hormônios ferozes e demoníacos da gravidez despertando de uma vez só, queimando meus olhos como se eu tivesse colocado o rosto em uma câmara cheia de cebolas frescas.
Aparentemente, eu estava oficialmente condenada a não poder ir a lugar nenhum sem chorar por qualquer motivo pelos próximos seis meses.
— Tá tudo bem, tá tudo bem. — Yoongi imediatamente surgiu nas minhas costas, passando os braços pelo meu ombro enquanto beijava a lateral da minha cabeça. — Você falou alguma coisa do parto com ela? — ele olhou para Elliot, que deu de ombros.
— Ela que perguntou. Mas eu já te disse mil vezes, , você não vai morr-
— Quem te garante que não? — chiei, a voz aguda, o primeiro soluço vindo. — Olha o meu tamanho! Eu mal aguento comer uma melancia inteira, como vou fazer uma delas passar pela minha boceta?! É 1/4 do meu peso!
Minha cabeça estava embaralhando. Eu sabia que estava soando como uma louca, mas de repente não consegui me controlar. Senti Yoongi apertar mais os meus ombros e tombar minha cabeça, como se esse fosse seu jeito de dizer: “calminha, calminha, pitbull. Prometo não deixar ninguém ser morto pelos seus dentes feitos de hormônios hoje.” E realmente, graças a ele, ninguém sofreu nenhum dano nas minhas mãos por enquanto, mesmo quando eu quis muito.
— O que é boceta?
A vozinha de Jihoon rasgou meu choro, a risada presa de Elliot, e a face atenta de Wonwoo.
— Papai, você disse que a ia cuspir a minha irmã. Esse é outro lugar de cuspir?
Olhei para Yoongi. Talvez ele fosse ser a minha primeira vítima. Uma que eu teria prazer de matar.
Ele olhou para todos os lados, perdido, a boca abrindo e fechando como um idiota encurralado. Talvez ele morreria de vergonha antes de morrer por mim.
— É, isso… Wonwoo, você pode levar o Jihoon lá pra baixo? Soube que tem uma piscina de bolinhas irada na área kids. Vou levar a pra tomar um suco.
— Beleza. Me avisa se ela te espancar até a morte com uma chave de roda? Sempre achei que meu sobrenome combinasse melhor com a Daniella do que o seu.
Yoongi levantou e abaixou a mão no mesmo instante, repensando na mesma hora sobre aquele dedo do meio que levantaria para Wonwoo. Em vez disso, ele foi bem educado e apenas soltou uma risada seca.
— Não abusa, tá bom? Eu ainda derrubo você.
— Então vai ter que me achar na piscina de bolinhas. Bora, moleque. Vamos dar um mergulho. — Wonwoo chamou Jihoon, que levantou do banco em um salto, fechando seu livro no marca página e agarrando a mão estendida do meu amigo.
— Vai deixar eu ver sua moto hoje? — Jihoon perguntou enquanto se afastavam. Wonwoo estalou a língua.
— Você nem gosta de motos.
— Se não me deixar ver, vai ter que fazer o tubarão de novo.
— Eu já disse que não caibo naquela coisa.
— É só você dobrar o joelho.
— Você tem alguma noção de espaço?
— Você tem alguma noção de construção de personagem?
Wonwoo bufou alto.
— Ainda bem que você vai ter uma irmã.
E os dois sumiram, assim que meus soluços malucos finalmente iam parando. Elliot sacou um lenço da calça cirúrgica, estendendo-o para mim.
— Aqui. Como seu obstetra, doutora , posso te garantir com certeza absoluta que, mesmo que você tenha a anatomia de uma joaninha, o seu bebê vai, sem dúvidas, sair de você e te deixar com vida, mesmo que seja coberta com sangue, placenta e líquido amniótico em alguma parte do seu rosto.
— Um rosto que vai estar lindo e vivo, e uma hora depois, já vai estar bem melhor. — Yoongi reforçou, repetindo aquilo como um mantra há dois meses. A última vez tinha sido duas horas antes, quando chorei no estacionamento da escola antes de buscar Jihoon.
Aceitei o lenço, secando as lágrimas e assoando o nariz. Nem sentia mais vergonha de parecer assim; não valia a pena, se tudo ia se repetir uma hora ou outra.
Quando abaixei a mão, olhei para o meu dedo e arfei:
— Quanto mais eu vou engordar?
Elliot suspirou, cansado.
— É difícil dizer, . Em média, de 7 a 10 quilos…
— Minhas mãos vão engordar? — apontei para o meu anelar direito, reluzindo em um anel branco com uma pedra brilhante que podia se ver a metros dali. — Preciso me livrar disso? E se ele prender a minha circulação?
— O quê? , seu anel de noivado não vai prender nada. — Elliot disse pacientemente, mas eu via, tinha certeza, que ele estava louco por uma noite inteira de sono. — Yoongi disse que ele é regulável.
— Eu falo isso pra ela todo dia. E não, a regulagem não vai estragar de um dia pra noite. — Yoongi murmurou, ainda com os braços em volta de mim.
Bufei, desistindo. Aquilo, seja lá o que for, que tomou as rédeas da minha sanidade, estava começando a passar, acalmando os diabinhos dentro de mim antes de repetirem o feito em algum outro momento imprevisível e aleatório.
— Tudo bem, tudo bem. Então, enquanto a Belle não acorda, vamos ir tomar aquele suco. Com talvez uns cinco sanduíches. — joguei o cabelo para trás, soltando o ar. — Liga pra gente quando o Yves estiver pronto.
— Aviso sim, eu mesmo vou escrever o nome dele na ficha do berçário. Por favor, vai comer os seus sanduíches. — ele abriu um sorriso amarelo, dando um tchauzinho. Com certeza achava que aquilo era a fome dragônica que tomava conta de mim sem mais nem menos. E talvez fosse mesmo.
Antes que andássemos dois passos, Elliot chamou:
— Ei, espera aí. , é sério… — ele trocou o peso das pernas, buscando as palavras certas. — Sei que eu já perguntei isso, mas… A Belle, você tem certeza que a gente não se conhece? Sabe, a voz dela é muito… familiar. Bonita por sinal, mas principalmente familiar. E lá dentro, quando ela gritou e gemeu, pareceu muito com… — as bochechas dele enrubesceram. — Enfim, tem certeza mesmo que ela só é, como você diz, “empresária com muito prazer”?
Yoongi prendeu o quanto pode dos lábios para não rir. Eu até faria isso, se não estivesse repentinamente faminta e repentinamente com uma dor odiosa nas pernas.
— Por que não espera ela acordar e pergunta isso pra ela, doutor Riggi? Eu prometo que ela vai te responder.
Dei um sorrisinho e puxei Yoongi na direção onde eu achava que era o caminho para sair daquela imensidão de paredes verdes contra mais verde do lado de fora.
— Ela ainda não contou pra ele? — Yoongi perguntou quando já estávamos longe.
— Ela ia ter um bebê, não tava afim de se envolver com um cara que provavelmente ia dizer que ela estava gorda, ou que fosse jogar o discurso barato de “pensão socioafetiva”. Ou pior: se o cara fosse ignorar totalmente o estado dela e todo esse inferno hormonal que vem junto. Mesmo que Elliot tenha se mostrado totalmente contrário disso, ele ainda é o obstetra dela. Vai que só estava sendo legal porque ela estava grávida? — suspirei. Yoongi entrelaçou seus dedos nos meus. — De qualquer forma, Belle disse que ia contar. E ver no que ia dar.
— Acho que o sonho dele é passar pelo puerpério.
— Ainda mais o puerpério da Bellyssima. Tenho até medo de ela quebrar o resguardo.
— Ele não vai deixar, os obstetras têm um lance moral com essas coisas. Mas com certeza vai beijar ela.
— E ela vai ficar mais caidinha do que já está. Nem acredito… — mais um choro. Do nada. — Nem acredito que minha amiga tá finalmente se apaixonando.
— Caramba. Ela nunca se apaixonou na vida?
— Já. Por jujubas. E o baterista do Slipknot.
— Então são perfeitos um pro outro. — Yoongi apertou o botão do elevador para entrarmos, e puxou minha mão para raspar a boca no meu anelar, dando um beijo distraído ali, logo antes de envolver minha cintura, espalmando a mão quase inteira na minha barriga.
Coloquei a palma aberta em cima da dele, me sentindo mais segura. Do que quer que fosse. Aranhas radioativas, acúmulo de tecido adiposo e partos normais.
Arquejei de repente.
— Então essa é a história da camisinha? Você comprou quando eu te contei que estava grávida?
Yoongi parou. Ficou me olhando por um bom bom bom bom tempo, até suspirar com um certo tédio.
.
Pisquei freneticamente. A porta do elevador abriu, devolvendo a sanidade. Balancei a cabeça com força.
— Desculpa, são os hormônios. Vem, acho que seis sanduíches são o suficiente. E um sorvete com brownie.
Meu noivo riu, fazendo carinho na nossa filha até bem depois de estarmos em casa.


Preparei meu testamento três meses depois da morte da minha esposa.
O advogado não questionou. Parecia uma atitude bem comum para quem perdia alguém tão bruscamente. Ele me explicou os detalhes com muita paciência, me fez algumas perguntas, e disse que eu poderia fazer qualquer exigência. Qualquer uma.
Disse para ele que, apesar da quantia obscena de dinheiro acumulado na minha conta bancária, eu ainda poderia perder tudo aquilo se saísse um pouco da linha. Só um pouco. Eu era rico, meu pai era rico, meu avô era rico, meu bisavô era rico e todas as gerações anteriores da família Min que se podia contar na grande metrópole de Seul, mas, assim como foi fácil ser rico, era muito fácil deixar de ser. Principalmente quando você se via à beira de um colapso dia após dia, olhando ao redor e se sentindo preso em um globo de neve, onde era sempre frio e sem cor nenhuma. Quando você olhava o mundo através do vidro e não sentia nada no meio de um tudo inexplicável.
Não era meu plano deixar o mundo com Skylar, não quando eu olhava para Jihoon e me tocava de que ele ainda estava ali e precisava estar ali, mas também não queria que, caso o colapso chegasse, meu filho ficasse desamparado. O dinheiro do príncipe da família Min não resolveria isso, provavelmente não resolveria nada, mas o permitiria ter o conforto necessário para tentar.
Eu esperava o colapso, daí afastava o colapso, ignorava, mas ele nunca era exilado por completo. Mesmo assim, ainda tinha um medo irracional de deixar Jihoon. Tinha medo das estradas da vida afora fazerem esse serviço. Tinha medo de eu querer deixar tudo para trás. Tinha medo de me deixar, em qualquer estado que fosse.
Quando minha mãe se foi, achei que o colapso finalmente chegaria. Não que tenha havido grande choro e sentimentalismo da minha parte; eu mal sabia o que era isso desde Skylar. E todo o passado dentro daquela casa obscenamente grande, recebendo ordens que nunca me fizeram sentido e um apoio muito raso para o que eu realmente queria viver, não me permitiram forçar a alguma coisa aparecer. Achei que ela levaria tudo por último. Todo o dinheiro era deles, e quando acordei no dia seguinte, ele se tornou meu. Montantes acumulados, nunca paravam de crescer. Vinham de várias partes, e pela primeira vez na vida, minha mãe me ofereceu algo sem colocar uma condição em cima.
Quando percebi que não restava mais nada, absolutamente nada para mim naquele país, afrouxei a gravata do terno de enterro, respirei fundo enquanto me olhava no espelho daquela casa e tomei uma decisão. A única coisa que eu podia fazer era fugir do colapso. Ir embora. Ir para onde ele não existia em primeiro lugar.
Resolvi os trâmites, coloquei metade daquele dinheiro em um plano orçamentário de equipamentos laboratoriais que mal prestei atenção, a outra metade em uma conta para Jihoon, vendi a casa e fiz as malas, prometendo para mim mesmo que jamais colocaria os pés naquela propriedade de novo. Ignoraria o colapso o máximo que eu pudesse. Voltaria a fazer alguma coisa que me lembrasse que a vida não era só isso.
Voltei para o início.
E depois de dois meses, ficava cada vez mais difícil de me lembrar em que lugar eu estava antes de pousar na Filadélfia.
Era terça-feira quando coloquei os pratos de carne ao lado da churrasqueira, os condimentos vegetais, os molhos e a caixa branca de donuts de caramelo em cima da mesa de carvalho do quintal dos fundos. A mesa que fazia parte da exigência do meu testamento. Caso eu morresse antes do meu filho completar 18 anos, essa exigência seria apresentada a ele mais tarde. Não achava que antes disso, ele teria qualquer ideia do que falar ou fazer, qualquer noção de seus gostos, ou noção do geral da vida. Ele ainda seria uma criança.
Se eu morresse na sua maioridade, Jihoon deveria decidir o que fazer com a casa e com todos os bens dentro dela. Ele estava livre para vender, quebrar, reconstruir, e recomendei, em laudas e laudas de texto, que ele se livrasse de tudo que pertenceu a mim ou a sua mãe. Não queria que ele tivesse acesso a nada que me lembrasse. Não queria que Jihoon sofresse com a sombra de um colapso, e acreditava fielmente que sua mãe também não queria isso.
— É um pedido estranho, senhor Min. Provavelmente, ele vai querer falar com o tribunal. — tinha dito o advogado. — Ele pode querer contestar esse testamento.
Eu não ligava. Tinha feito há mais de três anos, com uma certeza absoluta do que estava fazendo.
Mas agora, tantas coisas tinham mudado em menos de três meses.
O churrasco naquele meio da semana estava sendo uma dessas coisas. Disse para Jihoon que iríamos comer um pouco de carne lá fora, vendo o céu estrelado do solstício de primavera, os vagalumes nos postes e o canteiro de crisântemos da vizinha começando a despertar. Ele achou estranho, por isso expliquei:
— Eu esqueci a sua mensagem de sábado. Me perdoa por isso, Jihoon.
Ele piscou os olhinhos miúdos do outro lado da mesa, já começando a puxar as carnes assadas e colocando-as no prato.
— Eu percebi. Tá tudo bem, pai. — ele balançou a cabeça quando disse, sem um pingo de chateação. — Não aconteceram muitas coisas legais na semana passada. Fez frio e choveu, mas não tanto a ponto de ter que usar guarda-chuva, e a tia Belle disse que eu sou a única criança que ela gosta. E também aprendi a escrever Fotossíntese, mas não sei o que significa, a só disse que tem a ver com plantas. Mas a palavra é bem bonita, né?
Sorri o máximo que consegui, ignorando a dor fodida que tinha se instalado ali nos últimos dias.
— É sim, Jihoon. Muito bonito. — voltei minha atenção para o prato de comida. Quando estávamos sozinhos, nosso costume era falar em coreano, mesmo que o idioma não importasse; todas as palavras de todos os idiomas do mundo estavam emboladas na minha cabeça, descendo para formarem o nó na minha garganta.
— Papai. — Jihoon me chamou, e tinha parado de comer, apenas a parte do pescoço passava da superfície do móvel. — Por que estamos comendo churrasco na terça-feira?
— Eu respondi. Porque esqueci sua mensagem de sábado. Preciso te compensar.
— O que é compensar?
— É uma forma de corrigir um erro. Esse erro foi o meu esquecimento, e eu te prometo que nunca mais vai acontecer.
Nunca mais vai acontecer, repeti o que andava repetindo desde aquele dia. Devia ter repetido muito antes, desde que a vi pela primeira vez, desde que pensei nela pela primeira vez.
Achei que Jihoon fosse voltar a comer e esquecer. Achei que tinha sido bastante direto, e didático, como sempre fazia. Mas ele ficou ali, parado, pensando no que eu disse.
— Mas papai, você só se esqueceu.
— Sim, eu esqueci, e isso…
— A mamãe vivia esquecendo as coisas. Vivia dizendo que não era nada sem a agenda dela, e esquecia de regar as flores quase todo dia. Mesmo assim, elas nunca morreram. — ele pegou um pedaço de carne com o hashi e comeu. — As flores nunca pediram pra ela “consempar” nada. Sabiam que ela estava cuidando de mim, então tinha seus motivos.
Respirei fundo, olhando a comida sem coragem de olhar para o meu próprio filho. Jihoon de vez em quando me pegava naqueles flagrantes, me fazendo pensar mais do que o normal para responder. E tudo que eu menos queria fazer era pensar. Porque qualquer brecha, eu voltava naquilo.
A noite em que eu fui embora fugindo. A noite em que perdi o sono e uma grande parte de sanidade porque não conseguia parar de pensar em .
E no seu beijo, seu sorriso, seu cabelo, seu perfume, sua voz e em como eu precisava lutar contra tudo isso.
— Meus motivos não foram tão nobres assim. — insisti nesse discurso, como se quanto mais eu repetisse, mais real ele se tornaria. Como se fosse fazer minha mente entender.
— O que é um motivo nobre?
— Cuidar de você. Como a sua mãe fazia.
— Você cuida de mim, papai.
— Eu cuido. Só que… — respirei. — Um dia, eu… esqueci.
— Você esqueceu a mensagem.
— Sim. É um jeito de cuidar de você também.
— Você está cuidando de mim agora. — ele deu de ombros, e continuou a comer. Por um momento, desejei que ele entendesse o que eu estava falando, a gravidade que aquilo parecia na minha cabeça, e se virasse para ir embora de volta para dentro, se trancasse no quarto, fizesse um escarcéu como uma criança de 7 anos certamente faria.
Mas Jihoon entendia. Aceitava. Enquanto eu estava lutando.
— Eu quero cuidar de você também. — ele disse com um sorrisinho, sem um dos dentes de leite que já tinham caído. Assenti, o peito se apertando.
— Você vai ter muito tempo pra cuidar de mim.
— A sempre diz que eu posso cuidar de você agora. — ele engoliu a comida. Em seguida, pegou um dos seus pedaços de carne e colocou no meu prato. — Um dia ela me perguntou se eu tinha cuidado de você, e eu disse que não podia. Mas ela falou que se eu for bem na escola, te abraçar e continuar feliz, eu tô cuidando de você. Então tô cuidando de você, papai. — ele raspou a mãozinha na minha, sorrindo enquanto pedaços de molho caíam na camisa branca.
Abri um sorrisinho, mesmo que todo o resto estivesse paralisado. Mal conseguia mexer os dedos para voltar a brincar com a comida. Senti uma náusea sufocante quando ouvi a voz de tão clara na minha cabeça quanto se ela estivesse do meu lado: “Você devia parar de usar o Jihoon como casulo em todas as situações em que você só tá com medo. Abrir uma brecha pra outras pessoas não significa rever as posições das suas prioridades. Tenho plena certeza de que ele, mais do que ninguém, quer que você seja feliz.
Nunca vi Jihoon como alguém que entendesse o que sequer seria felicidade. Mesmo no meu tempo de congelamento, e mesmo depois do meu corpo ser meu novamente, eu nunca pensei na sua reação se uma mudança brusca acontecesse na nossa vida, uma mudança que se referia a mim, em nossa nova vida sem Skylar. Como ele ficaria vendo alguém comigo que não fosse a mãe? Como interpretaria esse tipo de coisa? Ele não teve motivos para pensar nisso antes, não via um único fio desse objetivo em mim, e agora…
Não sabia se estava subestimando meu filho. Àquela altura do campeonato, quando acordava, dormia, vivia e perambulava por aí pensando exclusivamente em e seu beijo, mal sabia quem eu era mais. Tudo estava nebuloso, uma espiral de desejo maluco que me parecia proibido.
— É… Você cuida de mim, Jihoon. Você é a coisa mais importante da minha vida. — senti a superfície de madeira fria da mesa sob as mãos quando larguei o hashi. — Eu… Jihoon, você sente falta da sua mãe?
Meu filho pensou enquanto mastigava, pensou com os olhos grudados nos meus, parecendo nem pensar, parecendo apenas se lembrar.
— Eu lembro dela às vezes. A mamãe era bonita.
— Era sim. Muito bonita. — assenti. — Você lembra de como eu era com ela?
— Acho que sim. Ela era a mamãe.
— Isso. E a gente adorava te levar pra um piquenique, você lembra?
— Eu lembro do piquenique. — ele sorriu um pouco mais largo. — A mamãe estava rindo muito.
— Ela sempre ria muito. Eu amava a risada dela. — amava tudo nela, mesmo que mal conseguisse pontuar isso agora. Jihoon assentiu.
— Queria que você risse mais, papai.
Fitei as pulseiras de couro sempre presentes nos meus pulsos quando eu tinha esses momentos com Jihoon, coisinhas velhas e de segunda mão que tinha ganhado de Skylar quando eu disse que a amava; ela estava pronta para dizer a mesma coisa há meses. Olhei as duas com uma culpa fulminante que pairava em cima de mim por todos e por nenhum motivo.
Eu devia sorrir mais para o meu filho. Não devia ser um pai triste. Eu sou um fracassado.
— Me desculpa, Jihoon. — falei, ainda de olhos baixos. — Eu amo rir com você. É que às vezes… — engoli em seco. Não, aquilo não. — Não importa. Quer mais arroz?
Ele assentiu intensamente com a cabeça. Enchi o bowl dele com mais arroz, e peguei um guardanapo para limpar um pouco de molho na sua bochecha.
— O que você aprendeu de legal essa semana na escola? — perguntei.
— Futebol. Sabia que quase ganhamos a Copa do Mundo em 2002?
— Sabia. Foi um período muito agitado. Quem te contou?
— A . Ela gosta de futebol. Me passou a lista dos melhores jogadores e disse que já pensou em se casar com todos eles. As pessoas podem se casar tantas vezes assim?
Mastiguei a carne por mais tempo que o necessário.
— Na verdade, elas podem sim. Mas isso não é recomendado.
— Por que não?
— Porque o casamento é uma instituição séria que tem que ser respeitada. As pessoas se casam pra ficarem juntas pra sempre. Se casar com 12 pessoas não entra nesse princípio. — provavelmente, deixei a voz sair como um resmungo. Provavelmente, estava parecendo um idiota na frente de Jihoon, e um idiota para mim mesmo. Desde quando isso é importante?
Desde quando preciso me sentir estranho com isso?
— Humm… entendi. Então, eu e Malgoscha temos que ficar juntos pra sempre. — ele fez uma cara pensativa. — Acho que vou ter que pensar.
Parei com o garfo no caminho, sentindo as arestas do metal do utensílio ficando frias.
— Malgoscha?
— Ah. Minha namorada. Ela é polonesa. O nome significa “Margarida”.
Ele respondeu simplesmente assim, como se estivesse me dizendo: “mais carne de porco, por favor”.
Abri e fechei a boca, sendo sugado totalmente para aquele momento presente.
— Hã… e desde quando você tem uma namorada?
— Há uns três dias. Ela me mandou um bilhete e disse que me achava bonito. Não acho ela tão bonita assim, mas ela é inteligente. Conhece todas as palavras que eu conheço. E vai ser bailarina.
Fixei o olhar nas letras entalhadas na caixa de donuts na mesa, praticamente ouvindo as engrenagens do meu cérebro. Ainda não tinha conseguido voltar a comer, enquanto Jihoon agora devorava uma salsicha empanada com satisfação.
Meu filho de 7 anos estava me contando que tinha uma namorada. Bem ali, sentado, enquanto vestia uma camisa branca do Ênio da Vila Sésamo, e sujava o queixo de farinha panko.
Limpei a garganta duas vezes.
— Hum, e a Malgoscha, a sua namorada… ela sabe que é sua namorada?
— Acho que sim. Edie Amis me disse que ela queria. Então, provavelmente, podemos sair daqui a 10 anos.
— 10 anos?
— Temos que terminar a escola primeiro, papai. E nós vamos pra Boston.
— Então você não se importaria? De ir para Boston?
— Não. Você disse que foi lá que eu nasci, mas eu não me lembro de nada. E onde você e mamãe se casaram também.
Senti o calor fustigante direto das reentrâncias do meu ser, jorrando o movimento voluntário de um sorriso para Jihoon, mesmo que eu, na prática, ainda estivesse desorientado na situação, sem saber se deveria sorrir quando uma criança dizia o que tinha dito há pouco.
— Espera, você disse que começou o seu… namoro, há três dias.
— Isso.
— Por que não me contou antes? Eu gostaria de saber.
— Eu ia contar. Mas você estava animado pra sair com a , então só esperei.
O sorriso deu uma leve quebrada. A decepção de mim mesmo voltou a tomar conta. Você não deu atenção às coisas do seu filho, por mais banais que pareçam. Você só quis saber da sua patética satisfação.
— Eu… Me desculpa, Jihoon…
— Pelo quê? Não foi divertido? — mais uma mordida grande na sua comida de palitinho. Agora um pouco de farinha crocante estava no seu nariz. — A também estava animada. Ela me contou no final da aula. Disse que era o seu presente de aniversário.
— É, foi… — levei a mão no cabelo. Foi muito, muito mais do que isso. Ainda estava tentando entender o que realmente foi. — Tudo foi bem divertido, mas foi só uma vez. Não vai acontecer de novo.
— Por que não?
— Porque… eu e não… — balancei a perna por baixo da mesa por dois segundos, trocando a posição dos braços algumas vezes. — Nós não… vamos. Só não vamos.
— Ah. Que pena. Ela estava animada mesmo. Muito animada. Não parou de sorrir por um minuto, e ela tá sempre sorrindo. Às vezes eu pergunto se ela tá bem. — ele continuou, mordendo mais um pedaço crocante da salsicha. — Mas ela tem um sorriso bonito. E sempre brinca comigo antes da tia Belle chegar. E sempre sorri quando fala de você.
Todo o vento, calor, frio, aromas que preenchiam a noite se agitaram dentro de mim. Quase tive vontade de abraçar a mim mesmo.
— Ela sorri?
— Uhum. Acho que ela gosta de você.
Encarei o rosto de Jihoon, sempre tão plácido e despreocupado, como só o rosto de uma criança poderia ser. Uma que dizia sempre a verdade e nada além dela, inabalável dentro de sua casca de inconsciência constante.
Tenho certeza de que ele não entenderia porque meu rosto pareceu se contorcer, e porquê eu tinha desistido de comer de vez. Puxei a cerveja no copo, só pra meter alguma coisa para dentro do corpo.
Não estava afim de pensar naquilo de novo. Não as palavras “gostar” e “” na mesma frase, me levando de volta para o dia que a vi no laboratório, o dia que fomos ao Mango’s, o dia que a abracei por trás da porta sempre trancada nessa casa enorme, na frente do piano que não encostava há anos, voltar para aquela noite do pub e as coisas que ela me disse no carro. Coisas que eu preferia distorcer e alterar as interpretações a meu favor, só para fugir da verdade.
Mas ela sempre me encontrava. Porque já estava ali, dentro de mim, me comendo por dentro.
— Talvez… não, não seja isso que você tá pensando, Jihoon…
— O quê?
— A não gosta de mim. — afirmei, recuperando o domínio dos meus pensamentos e da minha sanidade para conseguir soar sério o suficiente.
Mas daí ele perguntou:
— Por que ela não gostaria de você?
— Porque… A é jovem. Ela tem opções melhores por aí, eu não… não sou alguém que pode fazer ela se divertir. — foram as coisas que eu me disse na frente do espelho ontem. E anteontem. Motivos que eram claros para mim, e achei que seriam claros para Jihoon também.
Ele deu de ombros.
— Ela já é divertida. Consegue fazer isso sozinha.
— Sim, ela é. — engoli um pouco a seco. — Ela é uma mulher incrível, Jihoon.
— Você gosta dela, papai?
— O-o quê?
— Perguntei se você gosta da .
— Eu… eu gosto dela como amigo…
— Eu também gosto dela como amigo. Ela disse que é minha amiga, pelo menos. Você gosta igual eu?
Engoli de novo. Qualquer coisa sólida ou líquida no meu estômago estava tremendo um pouco.
— … Não, talvez não do mesmo jeito que você.
— Então gosta mais?
— Não é quantitativo, é só… diferente. De um jeito que eu não sinto há um tempo.
— Do jeito que era com a mamãe?
— Não exatamente, mas… — umedeci os lábios. — É bem parecido. Talvez um pouco mais… intenso.
— Então vocês vão namorar?
— Não, a gente não…
Respirei fundo. Não conseguia entender para onde o assunto estava indo, e nem como tinha chegado até ali, justo no ponto em que eu estava fugindo. Mas Jihoon não parecia estar incomodado nem com a ideia da coisa, não parecia querer que eu parasse ou simplesmente que o assunto não fosse minimamente interessante.
Quase senti que ele quem tinha tido a ideia daquele churrasco, ele quem estava de frente para mim e querendo me fazer perguntas sobre meu estado anormal dos últimos dias.
Eu normalmente sentia cumplicidade com Jihoon. Éramos parceiros e melhores amigos, do jeito como um pai e um filho poderiam ser com seus quase 30 anos de diferença, mas naquele momento, olhei para ele como mais do que isso. Aquele pinguinho de ser humano, com seus 20 e poucos quilos e chinelos azuis da Mercedes, era meu coração batendo fora do peito, e merecia que eu saltasse do meu trono enorme de sabe-tudo e o deixasse saber o que eu pensava, para que assim eu não julgasse suas reações baseado no discurso: ele é apenas uma criança.
Jihoon não era qualquer criança. Jihoon era o meu filho.
— Posso te fazer uma pergunta? — apoiei os antebraços no tampo. Ele assentiu. Inspirei e expirei umas três vezes. — O que você acharia se eu… conhecesse alguém, alguém que eu gostasse e… namorasse de novo?
Foi mais fácil do que pensei. Mas até Jihoon falar de novo, eu não estava respirando.
— Com a ?
— … é. É, com a .
Ele deu de ombros.
— Eu gosto da . E gosto das piadas dela. Ela podia vir sempre na nossa casa?
— Claro que sim. E também comer com a gente, assistir a corrida, ler os livros.
— Ela podia escrever no meu quadro?
Parei um pouco. Os olhos de Jihoon sempre foram pequenos e brilhantes, atentos no rosto alheio mais do que eram atentos ao redor, como os meus. Me lembrei do que Skylar havia dito assim que o pegamos a primeira vez na maternidade, ainda segurando aquele pacotinho minúsculo e frágil no quarto de hospital: olha como ele nos procura, mesmo tendo acabado de nos conhecer. Olha como ele não para de olhar pra gente. Que criaturinha incrível você é, Jihoon.
Skylar amava a palavra criatura. Amava atribuí-la à Jihoon, porque ele era a nossa criatura, nossa mistura, e sempre amei como ele a tinha puxado nas coisas que mais importavam, aquelas que sempre transbordavam de dentro. Ajudou com que eu pensasse em Skylar não com tristeza ou desespero, mas com uma gratidão visceral por ter gerado e cuidado tão bem do que já era a coisa mais importante da minha vida desde que tinha o tamanho de um mamão.
Tudo isso sempre nos conectou de forma tão transcendental que, naquele momento, fez eu sentir o peso da minha própria estupidez. Vivi isolado dentro de mim mesmo por tanto tempo que não parei para pensar em como meu filho estava me vendo, em como devia estar dando meu espaço, em como logicamente queria que eu fosse feliz. E que isso, por tabela, o deixaria feliz também, propenso a abrir os braços para quem quer que fosse que eu quisesse me relacionar.
— Claro que pode, Jihoon. — percebi, tarde demais, que a voz saiu num soluço, e que a queimação no meu nariz tinha tomado todos os cantos dos olhos. Escondi o rosto em uma mão, fungando o mínimo possível.
— Papai, você tá chorando?
— Não, eu só... — o rosto se contorceu inteiro de novo em um choro óbvio. Parecia que alguma torneira muito firme e dura tinha sido aberta, e agora não se fecharia tão cedo. Não sabia mais como fazer isso; como se chorava? Não me lembrava da última vez que isso tinha acontecido. — Eu... me preocupo tanto com você. Em fazer você bem, em não deixar você sentir falta de coisas que eu possa suprir. E agora eu tô gostando de outra pessoa, e não quero que isso quebre alguma coisa na imagem que você tem de família, ou que você sinta que eu esqueci a sua mãe, porque isso nunca vai acontecer, Jihoon. E eu não quero, em hipótese alguma, que você pense que não é a coisa mais importante da minha vida, porque você é e sempre vai ser.
Segurei sua mãozinha por cima da mesa, agora tremendo os ombros e gorgolejando ao invés de falar. Nem sabia se eu estava sendo claro, ou se toda aquela explosão estava roubando minha coerência. Não entendia o que diabos era aquilo, mas talvez o que eu estava sentindo por estivesse acordando partes de mim que eu nem tinha imaginado. Partes hibernadas desde a época antes de Skylar, antes que eu me entendesse como gente.
Jihoon acariciou minha mão, soltando o palito de sua salsicha empanada em cima do prato.
— É claro que eu sei disso, papai. Você também é a maior maior maior coisa importante pra mim. Pertinho dos meus carros. — disse ele, levantando os ombros. — E dos meus lápis de cor. E dos meus desenhos. E das corridas na TV no domingo de manhã. E eu tô pertinho das suas pedras.
Assenti devagar, minha cabeça lotada de insônia sem conseguir entender imediatamente o que ele dizia.
— Isso é verdade.
— E pertinho dos seus livros. Porque você gosta de estudar. E também de tocar violão. E de assistir National Geographic na TV. Viu? Tem um monte de coisas que você gosta além de mim.
Abaixei os olhos para as linhas de madeira, lutando contra a afirmação desesperada na ponta da língua: é claro que não, Jihoon. Essas coisas são irrisórias. É só você. Você, você, você.
Mas estava na cara que ele pescaria qualquer mentira na minha cara naquela noite.
— Isso não chateia você? — minha voz saiu como um sussurro. Jihoon balançou a cabeça em negação, um sorrisinho pequeno na boca.
— Se eu só me importasse com você, não faria mais nada. Não do jeito certo. O senhor sempre me diz pra ser esforçado, que eu tenho que ver o mundo todinho porque é lindo lá fora. — ele encarou minha mão sobre a sua. — E eu sei que sou bonito, mas o planeta é muito mais. Se ficar só se importando comigo, sua vida vai ser chata. Você não merece ter uma vida chata, papai.
Levantei sua mão, querendo beijá-la, guardá-la em uma caixa, querendo permanecer com ela sempre ali, na minha, pequena e fofa como sempre foi. Sempre tive soluções muito diferentes para lidar com esse tipo de conversa com Jihoon, soluções que jamais envolviam lágrimas e soluços da minha parte, mas alguma coisa em mim estava... cansada. Exausta. Meu organismo levantando uma bandeira branca enquanto dizia: não conseguimos mais. Tem muita coisa aqui dentro.
Não sei por quanto tempo fiquei ali, com a mão dele apoiada na minha testa enquanto eu ainda tentava, de várias formas possíveis, não parecer tão ferrado.
— Você tá certo. Eu esqueci como é… bonito lá fora. Esqueci de reparar. Mas, Jihoon… — sequei o olho. Desejei, com todas as minhas forças, que ele nunca crescesse. — Nada com você é chato. Nunca.
— Eu sei. Eu sou incrível e você me ama. — ele sorriu largo, e raspou as costas da mão na minha bochecha molhada. — Mas eu ainda sou muito pequeno. Só vou preencher metade de você. Talvez o senhor precise de alguém maior pra preencher a sua outra metade, assim como a mamãe preenchia.
— É, isso…. Isso parece uma ótima ideia, Jihoon. Obrigado. — balancei a cabeça, secando tudo, respirando fundo. Ele era o meu tudo, absolutamente tudo. — Desculpa. Não era pra você me ver assim.
— Não tem problema chorar, papai. — ele pegou seu copo de suco de plástico. — A mamãe dizia que quando a gente chora, é só como um dia de chuva qualquer. Tem gente que chove mais, e quem chove menos. Semana passada, quando a tia Belle disse que tinha acabado o iogurte de banana, eu tive vontade de chorar.
— Eu imagino.
— Foi quase como tropeçar naquela trilha de novo.
— Uau. Aquilo doeu.
— Aham. Mas aí, ela me levou em outra padaria e comprou um iogurte de tamanho grande pra mim. Eu nem consegui terminar. — ele sorriu por trás do copo. Tive vontade de comprar todos os iogurtes de banana da cidade inteira pra ele. — Lembra quando me disse que as pedras mais bonitas são aquelas que foram colocadas nos lugares mais altos e perigosos? Elas resistiram à chuva, às ondas, ao sol, às nevascas, e continuaram ali, firmes e fortes, até ficarem coloridas e bonitas, tipo aquelas que você tem no escritório. Se elas pudessem chorar, também chorariam, me parece doloroso. Mas no fim vale a pena. — ele inclinou a cabeça para o lado. — Por isso, você é a pedra mais bonita de todas do universo, papai. Assim como a .
Respirei fundo, sorri de novo, beijei a mão dele e voltei a comer, aceitando.
Aceitei que eu era uma pedra bonita.
Aceitei que tinha chegado ao fim das eras de intemperismo.
E agora podia começar a brilhar.


Eu não sabia que existiam mais de cinco marcas diferentes de creme dental sabor… Girafa.
Ou sabor Radical, com um enorme tigre laranja com dentes perfeitamente alinhados e brancos ao invés de presas mortais. E escovas no formato de raio, de tridente, de Sol, tubarão. Nenhuma com a logo da Ferrari ou da McLaren.
Mas achei um creme dental com o desenho do Relâmpago McQueen, então peguei três dessas.
Meu filho não era exatamente exigente com seus apetrechos de higiene, mas também não escondia o sorriso quando ganhava coisas temáticas. E tinha poucas coisas no mundo que eu não faria por um sorriso de Jihoon.
Continuei andando, prateleira a prateleira. Fio dental, shampoo hipoalergênico colorido, algodão, lenços umedecidos, sabonete, desodorante sem perfume. Olhei a validade de tudo e coloquei na cesta.
Na próxima seção, passei o olho pelos pacotes. Remédios de dor de cabeça, dor na lombar, dor muscular, dor no peito. Era mais um hábito do que por necessidade. Fui no de sempre: dois pacotes de Tylenol e escovas de dentes normais, com pastas de dente normais e shampoo normais. Coisa chata e sem graça de adulto.
Mas olhei pela segunda vez na prateleira de remédios de dores no peito. Durou um segundo, mas mesmo assim me fez lembrar. E me sentir ridículo pela trigésima vez no dia.
Bastou um mero vislumbre para eu suspirar e esquecer da lista padrão mental que sempre tinha quando ia na farmácia. Para sempre comprar as mesmas coisas, das mesmas marcas, dos mesmos formatos, seja aqui ou do outro lado do mundo. Quase me perguntei se eu tinha guardado um papelzinho no bolso, ou nas notas do celular, quando é óbvio que eu não fazia isso.
Bufei. Tinha pegado o essencial na cesta, então fui direto para o caixa. Caso me lembrasse de algo depois, era só voltar. Quem sabe, já estava na hora de criar uma lista fixa de O Que Comprar Na Farmácia. Ou, quem sabe, eu poderia simplesmente parar de pensar no que minha cabeça estava insistindo em pensar e me recuperar dessa fase.
Só fazia 24 horas. 24 horas que eu tinha saído do laboratório de Biotecnologia e aceitado ser o analista de . E alguma coisa estava… diferente. Estranha. Coisas que eu não queria pensar profundamente sobre, mas sabia que não deveriam acontecer.
Principalmente porque a pesquisa de tinha me conquistado de verdade. Porque ela sabia o que queria fazer, porque não estava apenas atrás do nome Augustus D., um nome que, honestamente, eu andava desprezando, e ela não estava atrás de glória acadêmica que só seria glória de verdade se você fosse virar um soldado do governo. Acho que eu estava esperando encontrar uma garota iludida, vivendo em um ideal utópico onde a ciência é o super herói que salva o mundo dos vilões da Fake News. Os dois extremos não me agradavam, e não eram compatíveis com a minha realidade. Seja lá o que me agradava ultimamente.
Aparentemente, uma garota com uma descoberta brilhante, que não queria salvar o mundo, mas só uma parte dele, e que ensinava gramática para o meu filho me agradou.
E tudo que eu poderia pensar ou sentir sobre ela, além do fato que ela era genial, poderia acabar aí, mas…
Aparentemente não acabou.
Aparentemente, eu estava achando muito interessante a forma que o cabelo dela caía atrás da orelha. E o jeito como o nariz se alargava quando ela sorria. Ou a voz dela, em tons altos e baixos e um pouco graves, tudo se misturando em uma frase só. E a mínima parte da barriga exposta na blusa curta…
Tinha algo de muito errado comigo.
Não havia problema em ser atraente. Conheci mulheres atraentes e bonitas a vida toda, trabalhei, conversei, convivi, beijei algumas vezes, e tudo bem. Não significava nada. A primeira impressão costumava ficar e perdurar por um tempo, mas essas coisas eram facilmente deixadas de lado depois de uma segunda ou terceira olhada. O esquecimento era inevitável.
Mas com … tinha algo errado. Nada urgente, eu achava. Devia ser unicamente pelo fato de que estava em uma espiral apática pelos últimos três anos, e que beleza nenhuma, nem do céu e da Terra, nenhuma paisagem ao redor do planeta estavam conseguindo prender a minha atenção.
Mas demorei mais do que o normal para dormir por causa de singelos dez minutos em que fiquei pensando sobre o seu anelar vazio. E em como, em alguma parte obscura de mim, eu torcia para que ele estivesse preenchido. Ou, pelo menos, se não estivesse, que pelo menos existisse um namorado. Alguma coisa séria que gritasse para mim que ela não estava disponível.
Não sabia porque estava pensando nisso. ter ou não alguém não devia me importar. Eu não faria nada com isso. Permaneceria no bloco profissional até o término da sua tese.
Mas meu pulso estava acelerado quando deixei o laboratório, e acho que só parou bem depois da manhã seguinte. Como se meu organismo estivesse experimentando a emoção da criação, uma vítima de afogamento cuspindo toda a água salgada que estava corroendo seus pulmões por sei lá quantos minutos ou horas.
E isso estava deixando minha cabeça nublada o dia todo, me fazendo esquecer a porcaria de uma lista que sempre esteve no mesmo lugar do meu cérebro.
Espantei o pensamento de novo, tirando as coisas da cesta um pouco rápido demais. Não queria saber se meu cérebro estava decidindo justo agora voltar a ficar ativo e notar garotas bonitas, mas ele tinha escolhido a ocasião e a pessoa errada para isso. Principalmente porque eu tinha certeza que não queria, que não estava pronto.
Enquanto ouvia o “tic” da máquina infravermelha lendo o código de barras, avistei um pequeno quadrado roxo nas divisórias de produtos do balcão. Uma caixa metálica com a logo da Altoids com o recado: “chicletes velozes: acabam em um piscar de olhos”. Parecia algo que Jihoon gostaria. Mas então, vi outros pacotes ao lado desse. Vermelhos, verdes, laranjas, tamanho P, M, G, com lubrificante ou sem lubrificante, fina ou ultra-fina, texturizadas, de látex ou sem…
Encarei a fileira de preservativos por um tempo estranhamente longo, sendo sugado por um vórtice de caleidoscópio, todos exibindo a mesma imagem, repetindo em espiral de hipnose: a barriga exposta de por dentro do jaleco aberto.
Um fogo descabido, acompanhado de pensamentos intensos, obscenos, impronunciáveis me atravessaram como um jato, uma bala de canhão, basicamente uma pancada na cabeça. Quase me assustei com a força daquilo, e em como ela fez o resto do lugar desaparecer, me transformando em uma pilha de carne e ossos fervendo de desejo.
— Hum… senhor? — a voz aguda do caixa, um rapaz de não mais do que 18 anos, quase me fez saltar. — São 30,67.
Quase perguntei do que ele estava falando, mas me recuperei.
— Ah… claro. É… crédito. — puxei a carteira, limpando a garganta repentinamente seca.
Não entendi direito porque ele tinha franzido os lábios e corrido os olhos por todo o meu rosto enquanto embalava os produtos, até que disse:
— Não quer aproveitar e levar um deles? Os pacotes estão em oferta porque vão lançar uma nova linha de sabores, mas por enquanto temos de melancia, morango e cereja, e com látex extra fino que faz sucesso entre os caras. É um ótimo produto.
O sorriso agora muito aberto dele permaneceu um enigma para mim, até que eu acompanhasse seu olhar e visse o que ele estava vendo. Aliás, o que eu estava vendo antes disso. Paralisado.
— O q-quê? Não! — gaguejei, sendo tomado por um espanto de ser pego fazendo algo que não deve. — Eu não estava… não tô interessado.
— Aham. Se preferir, temos outras marcas de tamanhos menores no segundo corredor, 2 pacotes pelo preço de 1…
— Não, não. — balancei a cabeça muito rápido. Me ocorreu que isso poderia ser levado como várias horrendas formas de interpretação. — Digo, não é o tamanho, eu… não vou levar. Não vou. — tentei ser definitivo. Ele arqueou uma sobrancelha.
— Tem certeza? É um ótimo produto mesmo.
— Tenho.
— Não tem nenhum registro de vazar, pocar, encher de água, nada de bebês surpresa.
— Eu acredito.
— E dizem que o cheiro de morango dura por horas. É até bom na hora de…
— Eu não vou levar mesmo. — fui mais firme, estendendo o cartão. Agora todo aquele calor estava queimando minhas bochechas, em uma mistura de irritação e vergonha. Eu tinha 35 anos e estava com vergonha por ter feito contato visual com camisinha de sabor. Humilhante.
O caixa apenas deu de ombros e passou o valor, me entregando a sacola com a nota e um novo sorriso simpático.
— Obrigado e até mais. — ele tentou dar uma piscadinha discreta, mas não ficou nada discreto.
Engoli uma careta e saí rápido da farmácia, atravessando o estacionamento pequeno em menos de dez passos e entrando no carro, jogando a sacola com produtos infantis no banco do carona e puxando o cinto.
Mas não saí imediatamente. Mal toquei na chave de ignição. Fiquei parado, olhando o painel, encarando as arrastadas 17h de um dia arrastado, em que a minha cabeça não me pertenceu e o trabalho precisou ser forçado a entrar ali dentro através dos buraquinhos que e sua blusa deixaram disponíveis para outro pensamento entrar.
Me deixei pensar nisso. Só um pouco. Só por míseros minutos de testagem, de apreciação. Só queria abrir o forno para sentir o cheiro do bolo assando, só pelo prazer de sentir.
Mas isso não funcionava para quem estava faminto, como eu descobri que estava.
Grunhi, apoiando a testa no volante enquanto sentia o sangue correr rápido, a cabeça zonear, a imaginação que eu nunca tive querendo começar a existir. Uma imaginação que levava aquelas minha mãos de sempre a levantarem e acariciarem uma faixa pobre de pele, e o que esse território deveria esconder, o que aquela blusa deveria estar guardando, o quão desenhados deveriam ser os dois seios ondulando por debaixo de um provável sutiã de renda, um daqueles que eram bem fáceis de tirar, e também…
Levantei a cabeça rápido, respirando fundo. Ok, tudo bem, eu estava atraído por . Fazia três anos que não me sentia atraído por coisa nenhuma e agora tudo estava voltando de uma vez, a imagem dela batendo nas minhas portas fechadas com teias de aranha, acordando um adormecido… praticamente morto, pau entre as pernas.
Por um lado, fiquei feliz com isso. Quase eufórico. Provavelmente, não aconteceria nada entre mim e , e seria melhor assim, mas só de sentir aquilo… aquilo que eu estava me abaixando no banco para esconder, respirando fundo, já era muito bom. Um indício de que eu ainda estava aqui, de que ainda era capaz de sentir de novo, nem que fosse tesão. Um sinal de que eu poderia me recuperar algum dia.
A ideia me fez rir pelo espelho retrovisor interno de repente, a cabeça apoiada para trás. Eu, pensando em sexo depois de tanto tempo. Pensando que seria interessante fazer de novo, se surgisse a oportunidade. Pensando se eu poderia evocar a imagem do abdome de caso fosse ter algo casual com alguém no futuro e me lembre exatamente do que estava sentindo ali agora.
Não era das tarefas mais fáceis me imaginar em uma situação assim, mas aquele momento não era normal. Não era, e talvez por isso eu tenha soltado o cinto e saído do carro, atravessando tudo de novo
Para voltar ao caixa da farmácia.
Só percebi o que tinha feito quando estava lá, as duas mãos apoiadas no balcão e dizendo:
— Vou querer um pacote desse, por favor. Com sabor de… nada. Só um pacote normal.
O garoto abriu um sorriso vitorioso, assentindo devagar.
— Mais alguma coisa?
Movi a mandíbula, e puxei a caixinha metálica de chicletes.
— Isso aqui, e… — engoli em seco e olhei para as camisinhas. — Outro desses. Sabor morango.


— Você está pronto?
— Não.
— Mas você disse que estava.
— Já tem dez minutos que eu disse isso.
— O que mudou?
Isso aqui mudou, .
Yoongi abriu a jaqueta, revelando a camisa amarela com letras inclinadas em laranja que eu o entreguei em cima da hora. Não era meu plano fazer isso dez minutos antes das cortinas abrirem, mas Belle demorou uma vida para conseguir estacionar lá embaixo e disse que meu sobrinho Yves tinha ficado preso na cadeirinha pela terceira vez. O que era engraçado, porque ele sempre ficava preso justo quando Elliot não estava com ela. “Não é das tarefas mais fáceis tirar uma criança de quase 2 anos, com 11 quilos de uma cadeirinha”, ela disse quando jogou a camiseta para mim, se esquecendo que eu também tinha um bebê.
Mas meu querido marido tinha bastante experiência com cadeirinhas, então eu não tinha lugar de fala daquela vez.
— Você ficou lindo com ela. — alisei seu colarinho, junto com as barras da camiseta. Ele continuava a fazer careta. — É sério! Acha que as pessoas vão se importar com o que você está usando?
— Eu não achava que as pessoas se importariam de sair de casa pra um evento chamado “Geologáticos”.
— Um evento muito importante pro meio acadêmico, já conversamos sobre isso.
— Eu nem sabia que isso existia até semana passada.
— Sabia sim, eu te contei há anos.
— Eu achei que era brincadeira.
— Bom, claramente não é.
— Mas foi só semana passada que você disse que eu tinha que “revelar a minha identidade”, como se eu fosse a Hannah Montana.
— Você é a Hannah Montana, meu bem. Da Geologia, pelo menos. Aqui, se as pessoas ganharem um autógrafo seu em um lápis, já vão considerar um milagre.
— Isso é estranho, sabia? Espero que você saiba que é estranho.
— É, aham, tá quase na hora. — olhei para o celular e passei os dedos pelo cabelo dele, bem mais curto do que quando o conheci, mas ainda igualmente sedoso e brilhante (e sem calvície, diferente de 3/4 da plateia fazendo barulho lá fora no Centro de Convenções Hynes). Recebi uma mensagem de Belle. — Eu vou descer, parece que a Dani percebeu que eu saí e a mímica do Jihoon imitando um flamingo vai acabar causando pesadelos no Yves.
— Ela quer mamar? Eu trouxe a bolsa, ela tá em algum lugar…
— Tá tudo bem, eu dei o peito no estacionamento, ela só deve estar querendo colo.
— Ou pode ser o dente crescendo. Ou a fralda precisa ser trocada, ou febre, ou a multidão, é melhor eu ir dar uma olhada nela…
Puxei o braço dele para o mesmo lugar, semicerrando os olhos.
— Gatinho, eu sei que parece que você pariu nossa filha mais do que eu, mas agora não é hora de você se distrair. A garota tá bem e ela vai adorar ver o pai dela dando uma palestra sobre qualquer coisa de pedras que ela não entende enquanto tira a peruca loira da Hannah Montana, tudo bem? Vamos estar na primeira fila de qualquer jeito, caso você queira pular como um astro do rock.
Yoongi balançou a cabeça várias vezes, e revirou os olhos antes de inclinar o corpo para me abraçar, fungando na curva do meu pescoço como fazia desde a primeira vez que me abraçou. Beijei a maçã do seu rosto, depois seu queixo, e por fim, ele me puxou para sua boca, nos colocando em um lugar que, ele sabia bem, eu não iria querer sair.
É óbvio.
Me afastei rápido, segurando a respiração entrecortada.
— Espertinho.
Ele sorriu, mordendo o lábio inferior. Estava prestes a arriscar mais um beijo quando Elliot e seus quase 2 metros de altura apareceram pelo pequeno corredor de acesso ao palco.
— Ei, o que estão fazendo? A palestra vai começar.
— Ele é todo seu. — empurrei Yoongi antes que ele protestasse. — Vou pra lá. Boa sorte.
Mandei um beijo no ar e saí pelo lado contrário, dando uma pequena corridinha até a primeira fileira de poltronas, onde não havia ninguém que não estivesse usando a camiseta amarela escrita “D-Day: A Revelação”. Ninguém.
Nem mesmo eu, Belle e as crianças.
Peguei Dani do colo de Belle e dei um beijinho no topo da cabeça de Yves, confortável e dorminhoco no colo de Jihoon. Achei que eu precisaria mandá-lo tirar os fones de ouvido, mas me esqueci que, em relação à Yoongi, aquele garoto era pura alegria e devoção. Eu ainda não sabia direito interpretar os terrores que se passavam na cabeça de um adolescente de quase 13 anos, mas aparentemente, eles estavam numa fase de testar personalidades. A de Jihoon no momento era se interessar por skates e ouvir músicas o tempo todo no meu antigo walkman, e também gostar de jogos online no computador em que combatia pragas, demônios, conquistadores e feras.
Aparentemente, tudo normal.
— E aí? Deu a peruca? — Belle perguntou no meu ouvido assim que as luzes abaixaram. Balancei a cabeça com um suspiro.
— Infelizmente, seria abuso demais. Ele quase não entrou na camiseta.
— Careta. — ela torceu o nariz. Vimos Elliot entrar no palco, com a camiseta em tamanho GGG e o microfone sem fio embaixo de seu sorriso brilhante debaixo da faixa pegando de uma parede a outra, escrita: “Encontro Geologáticos: D-DAY”.
Yves gritou e abriu os bracinhos na direção de quem ele estava começando a balbuciar um sutil “papai”. Coisa que estava sendo um paraíso para Elliot e um terror para Belle, que ainda estava atravessando esse impasse moral sem saber o que pensar.
Mas, naquele momento, bateu palmas junto com todos antes de Elliot dizer:
— E agora, pra toda comunidade dos Geologáticos, o segredo mais perigoso e insano que todos vocês foram forçados a sofrer por causa do bonitão ali dentro. É, já é um spoiler, ele é bonitão, mas quem me garante o que os geólogos acham bonito ou não? Pois bem… Pode vir, Augustus.
As palmas se agitaram, os assovios e gritos ecoaram por todo o salão e Dani se agitou no meu colo, mas por pouquíssimo tempo. A partir do momento em que a cabeça de Yoongi, vestido com a camiseta amarela do restante das pessoas sob a jaqueta preta apareceu, a garota parou na hora, agora imitando Yves com as mãozinhas.
Ele olhou para nós antes de olhar para o restante das pessoas, que foram diminuindo as palmas e caindo em silêncio mortal à medida que se tocavam que aquele era o Augustus D., o choque atingindo em cheio suas cabecinhas.
Por um tempo, aquilo pareceu um velório, só olhinhos piscando por trás de óculos fundo de garrafa e bebês balbuciando para o nada.
Até que Yoongi pegou o microfone de Elliot e falou:
— Boa noite, pessoal. Eu sou o doutor Augustus D. É um prazer finalmente conhecer todos vocês.
E, em um estalo de consciência mútuo, todo mundo voltou a levantar os braços e aplaudir no meio de gritos ainda mais altos e cartazes levantados. Um deles dizia: “se você está lendo isso, é porque eu acertei e você é gato.”, e outro “LIGA PRA MIM, DOUTOR. 3758-9483”. Aparentemente, ninguém estava vendo a aliança dourada e brilhante no dedo esquerdo dele, mas quem se importa? Finalmente, aquela sensação que eu tive na plateia do auditório da Drexel há quase cinco anos estava sendo compartilhada pela imensa maioria.
Levantei os bracinhos de Dani para deixar que sua blusinha amarela ficasse à mostra e apoiei seus pés nas minhas coxas enquanto saudávamos um dos maiores geólogos da nossa geração.



FIM!

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NOTA DA AUTORA › Oi, gente! EU VOLTEI!
Tecnicamente nunca fui, mas quem me acompanha de perto sabe a tribulação que esse 2024 foi em tudo, e principalmente como acabou afetando essa parte da minha escrita no âmbito de criar coisas novas. Nada desse tipo tava saindo da minha mente, até que glorioso dezembro e uma oportunidade de homenagear uma das minhas melhores amigas surgiu, e uma explosão de dinamite aconteceu na minha cabeça. Pois bem, cara Maria Carolina, vulgo May, vulgo M-Hobi, essa fic é INTEIRAMENTE pra você!
Acompanhem de perto essa minha tentativa séria de fazer as pessoas se divertirem. Se eu alcancei o objetivo, me deixa saber nos comentários.
beijos,
Sial ఌ︎


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