━Autora Independente do Cosmos.
Atualizada em: 30.05.2025
Sexta-feira
09 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
09 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
Até o mais velho ser humano vivo da atualidade acharia aquela ideia uma porcaria.
Os pedaços de papel cortados na palma da mão de Mingyu estavam dobrados de um jeito porco e desajeitado, mas ninguém estava animado para corrigi-lo. Dava pra ver os rabiscos e as silhuetas de palavras escritas em caneta preta nas bordas da folha, mas não fazia diferença, já que não revelavam nada além daquilo: rabiscos.
— Eu não queria ter que perguntar, mas por que voltamos à 2ª série mesmo? — Jungkook se manifestou, com as duas pernas erguidas para cima da cadeira antiga de madeira enquanto girava a taça de vinho – que tinha cerveja – nas mãos. Ele tinha sido o único dos outros amigos que tinha topado cortar os filetes de papel com uma régua quebrada que achou em alguma gaveta.
Mingyu revirou os olhos.
— Eu já disse, é um sorteio muito importante, pra ajudar na harmonia da casa nesse feriado. Nunca viu um sorteio assim?
— Eu já! Aconteceu quando eu nasci. Minha mãe tava indecisa sobre o meu nome. — Yugyeom respondeu do outro lado da mesa retangular de carvalho, com os cotovelos apoiados no tampo enquanto segurava um vídeo game portátil.
— E ele acabou saindo Yugyeom? Caramba, tomara que ela nunca jogue na loteria.
Yugyeom olhou pra ele e disse:
— Cala a boca.
Mingyu estalou a língua e se colocou no centro da cozinha grande.
— Tá legal, vem todo mundo pra cá pra gente começar de uma vez! Anda logo, vocês dois aí.
A voz estourada e autoritária de Mingyu ecoou pela casa inteira, como se ele estivesse em mais uma de suas aulas de crossfit em Seodaemun enquanto gritava com seus colegas um “bora, gente! Isso é tudo que vocês conseguem? Que vergonha, bora bora BORAAA”. Colocava você em movimento na hora, mesmo que o verdadeiro professor quisesse expulsá-lo depois. Mas, curiosamente, o vozerio não funcionou com todos de primeira dessa vez.
Eunwoo tinha os olhos tão grudados na janela que não saberia dizer o próprio nome caso perguntassem naquela hora. De vez em quando, até virava a cabeça e fingia estar interessado em alguma coisa que os amigos diziam, mas no geral, ele não estava no aqui e agora. Não desde que viu Nellie entrar no Toyota Camry branco e cantar pneus para longe da avenida.
Isso já estava começando a irritar Mingyu.
— Dongmin! — Ele gritou, fazendo o amigo quase pular do parapeito que estava tentando se manter sentado. Quando Mingyu dizia seu nome verdadeiro daquele jeito, significava que ele sofreria punições: 10 flexões, 10 polichinelos e 30 segundos de prancha. Soava como se quisesse dizer: culpado! Criminoso! — Cara, sai um pouco daí, você tem que tirar o seu papel.
Eunwoo já estava de volta à realidade, olhando para as mãos abertas do amigo como se tivesse desaparecido por mais de um mês em 60 segundos e não fizesse ideia do que ele estava falando. Só quando levantou o queixo para os outros e Yugyeom fez o favor de murmurar a palavra “sorteio” em leitura labial, foi que ele se viu inserido na proposta de novo.
— Já disse que podem me dar qualquer quarto.
— Você diz isso agora, mas se pegar o quartinho do lado da piscina, vai ficar reclamando até o dia de ir embora. — Jungkook murmurou, agora com os olhos grudados em alguma edição passada da Motor Trend Korea que ele achou dobrado embaixo do tapete de boas-vindas.
— Eu não vou… — Eunwoo tentou, mas logo suspirou e desistiu. — Tá bom, tanto faz. — Ele pulou do peitoril da janela logo depois, pegando um dos papéis da mão de Mingyu sem nenhuma expectativa. — Número 7.
O número não significou nada para ele ou para os outros, até Mingyu soltar um resmungo insatisfeito:
— Não acredito! — agarrou o papel de volta com certa pressa, sem deixar de aproveitar para vasculhá-lo antes de bater o martelo porque, como sempre, não dava pra confiar cegamente nos seus amigos. — Sortudo de merda, pegou uma das melhores suítes, meus parabéns!
— A de frente para a praia? — Jungkook levantou a cabeça rápido da revista. Mingyu assentiu, a contragosto. — Ô, sacanagem! Isso foi comprado!
— Bem, de acordo com a conta bancária dele, ele poderia mesmo comprar todas as suítes da casa. — disse Yugyeom.
— Dá um tempo, Viola Davis. Já não basta a família dele ter comprado aquela mega fazenda no mês passado? O dinheiro dessa gente não acaba nunca?
— Na verdade, quem comprou foi minha irmã. Ela acabou de se casar, caso você não lembre, idiota. — Eunwoo estreitou os olhos para o amigo. Jungkook levantou um dedo.
— A sua irmã já casou com um cara podre de rico. O que custava vocês deixarem a compra da casa com ele? É por que o carinha não ganha tanto quanto vocês? Os Lee estão buscando a origem do dinheiro de–
— Tá legal, chega, ninguém quer saber onde a irmã do Eunwoo mora ou deixa de morar. O sorteio de papel é justo e sem margem de erro. Só nos resta aceitar. — disse Mingyu, tentando controlar o próprio rosto contorcido de quem não aceitava. — Vejam pelo lado bom, ninguém vai precisar aguentar aquele violão dele tarde da noite. Estamos livres dos covers do Bob Dylan. Agora você, Jaehyun. Um papel.
— Ei, esse lance de tarde da noite vai existir nessa viagem? — Eunwoo resmungou com uma careta.
— Em relação às suas músicas melosas de menininha? Sim! Jaehyun? — Mingyu chamou de novo, sem deixar de olhar para Eunwoo, que agora fazia uma careta desgostosa como a que sempre fazia quando o amigo alfinetava suas músicas. Elas não eram tão ruins assim!
O silêncio da falta de resposta fez Mingyu finalmente virar a cabeça para a outra extremidade do cômodo, quase se abrindo na sala, na direção de uma poltrona verde escura de veludo, ocupada por um cara alto e com um rosto parecido com o que se via em comerciais de perfume caro, focado na tela de um laptop apoiado no colo em perfeito silêncio e concentração, fechado em seu próprio mundo. Uma atitude mais do que esperada vinda dele.
— Jaehyun! — o grito de Mingyu rasgou a sala inteira, trazendo reclamações dos outros. O rapaz quase pulou da poltrona com o susto. — Acelera! Tira esse negócio logo pra gente começar a arrumar as coisas. As meninas já vão chegar.
Jaehyun demorou 1 segundo a mais para se tocar do que deveria fazer e limpou a garganta, fechando a tela do laptop depressa.
— Foi mal, eu me distraí. — respondeu, já se levantando.
Jungkook soltou um pffff de desdém com a boca.
— Se distraiu trabalhando de novo. A gente não tinha combinado que você não ia trazer essa porcaria pra cá?
— Não me diga que você tá escrevendo aquela música? — Os olhos de Yugyeom brilharam de expectativa quando o amigo se aproximou, e Jungkook desferiu um tapa no seu ombro. — Ai! O quê? Eu só quero uma pista.
— Se liga, idiota, não faz ele querer trabalhar. Você não tava ouvindo o novo lançamento dele agora mesmo? — Jungkook estreitou os olhos.
— Não é meu lançamento. — Jaehyun olhou para os papeis com cuidado, como se pudesse adivinhar o conteúdo de cada um deles caso encarasse por muito tempo.
— Lançamento do NCT 127 também é um lançamento seu, acorda. — Eunwoo já tinha voltado para o parapeito da janela, agora fazendo o máximo para prestar um pouco de atenção também no que diziam os outros, só para o caso de ser interrompido e obrigado a sair de sua vigília cedo demais.
Jaehyun olhou para ele de soslaio e ignorou. Estendeu os dedos para o centro da mão de Mingyu e puxou um dos papéis, entregando-o para ele. A expressão que o amigo fez dessa vez parecia um pouco mais amena do que na vez de Eunwoo.
— Número 3, final do segundo corredor. É o suficiente também para ouvir aqueles seus discos chatos o quanto quiser. — sorriu, embaralhando o restante dos números em suas mãos e oferecendo à Yugyeom.
Jaehyun revirou os olhos, mas riu pelo nariz. Não era de hoje que seus amigos o chamavam de cerimonialista de enterro. Fora da aura de ídolo k-pop, suas músicas eram um gatilho perfeito para dormir ou para chorar, sem meio-termo, e isso não combinava nada com o sol radiante lá fora e os planos de festança que tinha se enfiado para aquele feriado.
Na janela, Eunwoo não perdeu tempo para verificar suas mensagens de novo, mesmo que já estivesse fazendo isso há um intervalo de tempo cada vez mais curto. Nem percebeu quando o rodízio de distribuição de quartos terminou e as orientações de Mingyu também. Sentiu um cutucão no ombro de Jungkook, que apontou para as malas jogadas desordenadamente no hall de entrada, dando um típico aviso para que ele desse um jeito de se mexer e começar a se acomodar.
Jaehyun, por outro lado, já começava a empilhar as suas malas e, de quebra, alguma outra de Yugyeom, que foi o feliz sorteado a pegar o quarto da piscina. Ele não reclamou ou invocou alguma lei da constituição sobre ser colocado contra a vontade em um cubículo quase sem janelas, como era de se esperar, mas pensando bem, seria muito melhor estar longe dele caso resolvesse fazer tudo que pretendia fazer naquela viagem.
Jaehyun observou Eunwoo juntar a mochila preguiçosamente, junto ao violão nos ombros, com olhares nada disfarçados, porém rápidos, para a janela.
— Quer ajuda? — Jaehyun perguntou, caminhando até o rapaz.
— Não precisa, eu consigo. — ele respondeu, puxando a única mala de mão que trazia e indo em direção à escada larga.
— Aposto que trouxe sua coleção inteira de jaquetas puffer para 3 dias do contrato. — Jaehyun soltou uma risada enquanto seguia o amigo escada acima.
Eunwoo semicerrou os olhos.
— E por que isso seria tão errado assim?
Jaehyun balançou a cabeça. Ao alcançarem o topo, arrastou suas malas até o final do longo corredor, passando por Eunwoo e sua rápida entrada no quarto de número 7. Pelo tamanho da casa, era de se esperar que todo aquele espaço fosse tomado de portas de cada lado, mas a residência parecia deixar claro o quanto essa estética de hotel lhe era desagradável. Eles descobriram o lugar através de um recorte de jornal amarelado dentro de uma caixa de metal enferrujada no escritório do pai de Yugyeom, porque preferiam correr o risco de alugar um lugar desconhecido a serem colocados sob a influência social — e financeira — de Lee Dongmin de novo. Naquele corredor em questão, as outras três portas restantes eram um banheiro compartilhado e dois quartos. Um deles já estava reservado, sem ser incluído no sorteio. Reservado para ela.
Mesmo a casa sendo provavelmente do ano em que seu pai havia nascido, Jaehyun não odiou o quarto. Ele era grande e todo revestido em madeira clara, uma condolência pelo fato de ser o lugar com maior déficit de luz natural do que todos os outros. Parecia tão isolado quanto o que aguardava Yugyeom na parte de fora. As janelas eram direcionadas para o quintal de trás, direto para a piscina e a Avenida deserta de Seogwipo, cheio de árvores grossas e estufadas que formavam uma barreira impenetrável contra o Sol, e ainda carregava cortinas enormes em blackout. Olhando em volta, era como estar dentro da cripta do Drácula.
— Nossa, que deprê! — Eunwoo falou da porta enquanto Jaehyun ainda despejava a bagagem em cima da cama. — Mingyu tava certo, pode estourar seu Cigarettes After Sex à vontade aqui que eu vou continuar dormindo como um bebê.
— Como se você fosse dormir tão cedo assim.
— É verdade. Insônia costuma deixar a pele feia, mas eu sou incapaz de ficar feio, então tudo bem. E é feriado. — ele riu, dando de ombros. — Mas você acabou tirando a sorte grande de qualquer jeito naquele sorteio do primário.
— Não tirei, não. — Jaehyun arranhou uma risada. — Acha que eu sou fã das trevas que nem o Jungkook? Vou precisar ligar as luzes durante o dia.
— Ah, você vai mesmo. Mas não é disso que eu tô falando. Eu vou ser vizinho de porta do Mingyu.
— E o quê… — Jaehyun estava pronto pra perguntar, mas se tocou rápido do que o amigo estava falando. — Ahhh… Aquilo.
— É. Aquilo. E ele ainda tem a audácia de reclamar do meu violão.
— E dos meus discos.
— Agora tenta falar dele e Nellie fazendo os “exercícios” de madrugada. Ele se esquiva igual lagartixa. Meu Deus, é nojento. — Eunwoo fez uma careta. Jaehyun riu enquanto abria o zíper da mala.
— Só é nojento porque você não está fazendo.
— Calma, o feriado ainda nem começou, meu caro padawan. Não sufoca o artista. — Eunwoo deu aquela piscadinha canônica de astro da TV que deve ter aprendido a fazer antes de saber falar. Jaehyun revirou os olhos e exibiu um singelo sorriso torto (que também poderia ser um estouro na TV, caso ele se importasse com esse tipo de coisa). — Enfim. Eu gosto da Nellie e acho incrível ela ser filha de astros do rock e ter todas aquelas tatuagens iradas, mas odeio os gritos dela. Não quando ela grita com a gente normalmente, mas aqueles gritos. Você entendeu.
— É, entendi. — foi a vez de Jaehyun fazer a careta. Existia uma história por trás do alcance vocal admirável de Nellie Yohn: seus pais beberam muito, estavam no auge da carreira, ela acabou sendo uma prole acidental e, pra conseguirem ficar perto dela de alguma forma, colocaram a garota numa aula de canto e a viciaram em Eagles e AC/DC, suas bandas favoritas, pra deixarem ela fazer o próprio show no quintal da frente quando os velhos voltassem.
A parte do canto foi um fiasco, mas ela tinha aprendido grandes coisas com Highway to Hell.
Eunwoo ficou parado por mais alguns minutos, girando a cabeça por todo o entorno do cômodo, até finalmente soltar um suspiro forte e dizer:
— Já sei, Jae. Vamos fazer o seguinte, vamos trocar.
— O quê?
— É sério, de que adianta ganhar uma suíte foda se vou ter que ser torturado auditivamente por um cara com a incapacidade de gozar em menos de 10 minutos como o resto de nós? Quer dizer, não nós. — ele se corrigiu na mesma hora em que Jaehyun arqueou as sobrancelhas, murmurando um “fale por você”. — Não foi isso que eu quis dizer, caramba. Mas voltando, eu garanto que lá é bem mais a sua cara, tem vista pro mar e tudo. E você bem que tá precisando pegar uma corzinha. Nem parece que mora em um lugar mais ensolarado do que esse.
— Mas…
— E aqui é praticamente uma toca de coelho, vamos concordar. Mingyu não vai ter motivos para reclamar do meu violão, talvez eu até possa cantar. E você tem aqueles headphones irados, vai escutar suas músicas e se proteger do Irmão Urso acasalando no quarto ao lado. — ele sorriu, dando de ombros. — Vamos, vai, tem certeza de que a ideia de claridade desnecessária e uma mega banheira não te atraem? Elas são muito instagramáveis, eu juro.
Jaehyun balançou a cabeça, cruzando os braços.
— E se ele descobrir? Sabe como o Mingyu é com essa coisa de organização. Vai ficar falando no nosso ouvido até o ano que vem.
— Gritando, você quer dizer.
— É, ele e a Nellie são uma disputa acirrada.
Eunwoo riu, estremecendo ao mesmo tempo.
— Isso não é uma preocupação, ele não vai entrar no quarto.
— Como você sabe? Ele sai entrando em tudo.
— Porque é o meu quarto. Ele nem vai chegar perto, ele sempre fala que eu sou desorganizado.
— Você é desorganizado.
— No caso, ele chama o meu apartamento de “um belo lixo ao estilo filhinho de papai”. Parece que ter empregadas virou crime agora.
— Ah. — Jaehyun se lembrou do apartamento do amigo e que ali eles não teriam nenhuma empregada. — É, ele não vai entrar no seu quarto.
— Não vai mesmo.
— E aqui?
Eunwoo fez “pffff” com os lábios.
— Quem você quer enganar? Se disser pra ele não entrar, ele não entra. Você consegue fazer ele obedecer com essa voz de irmão mais velho.
— Eu sou o mais velho.
— Que seja. Vai aceitar a proposta ou não?
Jaehyun mordeu o lábio inferior, examinando o quarto mais uma vez, pensando seriamente que não seria uma má ideia abandoná-lo. Não por causa da baboseira da luz, mas por outra coisa.
— Ok, me convenceu. Vamos trocar.
— Muito bem, Jae, tô indo buscar minhas malas! Não dá mais pra voltar atrás!
O rapaz voltou saltitando para o quarto mais à frente, enquanto Jaehyun revirava os olhos e ria mais uma vez da situação.
Antes de fechar a porta do agora ex-quarto, ele olhou mais uma vez para as horas. Em seguida, encarou a janela, mesmo que não tivesse qualquer visão da entrada da casa. Ainda assim, se viu tomado pela ansiedade de novo, como quem pressente um terremoto se aproximando.
Ela estava vindo. E chegaria a qualquer momento.
Sexta-feira
09 de setembro
Aeroporto Internacional de Jeju
09 de setembro
Aeroporto Internacional de Jeju
Meu estômago embrulhou pela 20ª vez.
Eu não odiava voar. Muito pelo contrário. A primeira resposta que tinha escrito na turma do primário assim que aprendi a juntar uma palavra na outra foi “quero ser piloto”. Ninguém da minha família era piloto, ninguém de fora da família também — meus pais não me deixavam nem ter um patinete —, mas ainda assim, aquela resposta saiu. E ela foi repetida por muitas e muitas vezes, estando na ponta da língua até meu primeiro teste vocacional aos 12 anos de idade, quando entendi porque aquela palavra estava sempre na minha boca, mas nunca na minha mente.
Era uma coisa muito distante do que meus pais tinham planejado pra mim. E por isso eu queria tanto.
Não me tornei pilota de avião, mas o que eu fazia exigia que eu entrasse em um muitas vezes. Pensava que as pessoas que trabalhavam viajando se acostumavam tanto com os perrengues que estariam prontas para tudo. Achava que eu também seria assim. Mas daí fiz a besteira de aceitar um pedaço de lutefisk, uma gentileza que os clientes noruegueses acharam de bom tom presentear para a empresa que abriria portas para a sua filial na Coreia do Sul e os colocaria no radar do restante da Ásia.
Eu nunca tinha ouvido falar de lutefisk até algumas horas atrás, e agora gostaria muito de ter tirado 1 minutinho que fosse para abrir o Google antes de abrir a boca e colocar aquilo dentro de mim.
Já tínhamos passado pelo norte da Inglaterra e o sul da Escócia quando todo aquele bolo estava se transformando em uma coisa grotesca. Se colocassem uma câmera de endoscopia dentro da minha barriga, alguma coisa muito parecida com o Demogorgon iria estar dando tchau. Quase xinguei o senhor Baker por escolher aquele péssimo momento para mandar várias mensagens e emojis no meu celular, comemorando: 4,1 MILHÕES, GAROTA! CONSEGUIMOS! Quatro vírgula um! E é só a entrada!
Graças a Deus ele não estava sentado ao meu lado, ou eu seria capaz de morder suas orelhas de abano. Mesmo que, por um lado, ele estivesse certo: se tivéssemos saído da Noruega com qualquer coisa menos que quatro, não teria valido a pena. De que vale falar sobre dinheiro sem estar disposto a quebrar a banca?
O avião sacudiu de novo e quase rachei os dentes de tanto que os apertei. Perdi as contas de quanto tempo já estávamos naquele voo. Rezei para que pousássemos de qualquer maneira, mesmo se fosse em cima do oceano. Só precisava parar de flutuar no ar há mais de 100 metros do chão por 5 minutos, só 5 minutos para que eu respirasse o ar oxigênio de verdade e tivesse forças pra segurar as tripas pelas próximas 4 horas.
Voltei ao assento depois de sair do banheiro de novo. A aeromoça já olhava preocupada para a cor verde do meu rosto. Dei um sorrisinho de canto para ela, indicando que eu estava bem — ou o mais próximo disso.
Uma boa eternidade depois, onde fui obrigada a ceder a uma pílula para cinetose dentro da minha mala de mão e cair no sono, o avião estava finalmente pousando no aeroporto de Jeju, com um céu limpo e sem uma única nuvem, muito diferente da onde eu tinha saído.
Lutei para não atropelar as pessoas à minha frente para que saíssem mais rápido. Puxei todo o ar puro que meus pulmões aguentaram assim que pisei em terra firme, sentindo a brisa quente e confortável da cidade balançando meu cabelo já bagunçado para trás e as pedrinhas novas da minha pulseira recém-comprada em alguma rua de Praga.
— Não acredito que vou chegar em Nova York com tempestade. — o senhor Baker estava do meu lado em um pulo logo depois de pegar as bagagens, discando um número rápido pelo telefone enquanto admirava os sapatos lustrosos. Antigamente, eu nunca sabia se ele estava mesmo falando comigo ou apenas pensando alto. — Uma conexão de 3 horas, onde já se viu? Preciso autenticar esses relatórios antes que todo o país acorde. Quero que saibam em primeira mão que a Wren Investimentos vai ser a primeira a abrir capital para a Avanza.
Finalmente, ele olhou para mim e sorriu. Era um homem baixinho e gorducho, muito parecido com o Danny DeVito, o que significava que ele quase sempre precisava olhar para cima para falar com qualquer um. Balancei a cabeça, concordando com o que quer que ele tivesse dito, mesmo se fosse “Abaixo a Rainha”.
— É claro, fizemos um bom trabalho, senhor Baker. — abri o meu próprio sorriso, ignorando que ele pudesse parecer quebrado por causa do enjoo, mas não tinha problema porque Claude nunca percebia nada. Era uma lesma para qualquer coisa que fugisse de papeis e relatórios. Era uma parte boa dele: só se preocupava com o seu trabalho, nada mais.
— É claro que fizemos, ninguém mais nesse país faria coisa melhor. Talvez a NYSE, mas estamos falando da Ásia. Você catalogou os dados?
— Sim, estão no relatório.
— Deu entrada no contrato?
— Já está no e-mail do advogado.
— Reservou meu hotel em Nova York?
— Em Manhattan, bem ao lado de Wall Street.
— Perfeito. Preciso ir. — ele deu uma olhada rápida no relógio de pulso e se virou, mas não foi imediatamente. — Ah. Como era o nome daquela coisa vermelha que você derramou no colo do superintendente?
Quis ranger os dentes e enfiar minha cara no chão. Eu sabia que Claude não estava sendo maldoso ou provocativo, mas isso parecia piorar um pouco as coisas; ele estava sendo curioso, ingenuamente curioso.
— Geleia de frutas vermelhas, senhor. — respondi em tom baixo e envergonhado, e o homem arqueou as sobrancelhas e franziu a testa em reconhecimento.
— Hum. Interessante. Mande entregar 3 dessas no meu hotel antes de amanhã. Acho que a poodle vai gostar. — disse ele, finalmente erguendo o pescoço e encontrando meus olhos ali, afundados e parados bem acima dele. — Vejo você na semana que vem?
Concordei mais uma vez com a cabeça e de repente ele já estava indo, dando as costas enquanto arrastava sua mala de rodinhas e atendia alguém no exato instante em que o celular tocava.
Suspirei. Por que ele tinha que mencionar o episódio da geleia? Me dava vontade de morrer.
Cocei os olhos e tentei arrumar um pouco que fosse da confusão de cabelos e puxei o meu iPhone para ver as horas. Acabei encontrando o telefone vibrando em uma chamada recebida e outras mensagens não lidas. Considerando que eu nem tinha me mexido ainda da área de desembarque, atendi rápido só pra falar: Estou saindo, e desliguei de novo, puxando minha mala um pouco maior na direção da saída.
Não demorei muito pra avistar o que eu mais temia: a placa enorme — exageradamente enorme — em papel branco com os dizeres coloridos: PEQUENAS FÉRIAS E GRANDES “TEZÕES” DA ! O texto mal escrito cobria o rosto da pessoa que estava por trás, mas as pernas altas como uma banqueta e os braços tatuados expostos a entregavam.
— Ok, já chega, quer esconder isso? — afastei aquele constrangimento absurdo e olhei para Nellie. — Ah, meu Deus! Você cortou o cabelo!
— Você gostou? — ela jogou os cachos loiros de um lado a outro, que agora batiam um pouco acima das costelas. O sol da manhã a deixava com a pureza de anjos. — Não sei como não fiz isso antes, é maravilhoso!
— Ficou realmente maravilhoso em você. — sorri, controlando a pontinha de inveja passageira por ela ter ficado absurdamente linda fazendo algo que eu jamais teria coragem.
— Ótimo, então vamos antes que Mingyu comece a gastar toda a conta de telefone ligando pra mim. Temos 40 minutos de fofocas europeias pra colocar em dia.
— Achei que Seogwipo ficasse a 50 minutos.
— Detalhe, gata. — ela pegou uma de minhas malas e começamos a andar. — Como foi seu voo? Por falar nisso, você está pálida como uma privada, nem parece que estava no verão da Noruega. — ela torceu o nariz.
— Experimenta comer peixe cru banhado em soda cáustica e passar mais de 10 horas em um avião. Vou ter que dizer que sou alérgica a tudo de fora da Coreia daqui pra frente.
— A melhor parte de uma mentira é quando ela salva a sua vida, eu sempre te disse isso.
— Nunca é tarde pra aprender. — resmunguei.
— Também tem o fato do seu corpo ser fraco e o seu cérebro querer comer por dois. Acha que consegue se esforçar um pouquinho nesse feriado? — ela fez um biquinho de deboche e eu estreitei os olhos. Seu rosto já estava com algumas manchinhas de sol e ela usava um vestido com estampa de pétalas azuis.
— Muito engraçada. Estava justamente sonhando com a sua banoffee. Não dou a mínima pro que o meu intestino acha disso.
— É assim que se fala, garota! — ela levantou as mãos aos céus de forma teatral e caímos na risada.
No estacionamento, apertei minhas malas no porta-malas do Toyota Camry de Nellie (ou de Mingyu, não fazia muita diferença) e entrei no banco do carona. Mexi no aparelho de som do painel, colocando meu R&B favorito e comecei a tirar os sapatos.
Meu celular continuou vibrando em mensagens frenéticas, quase escapando do meu bolso de trás. Todas vindo da mesma pessoa.
Puxei o aparelho e fiquei encarando a tela por um bom tempo enquanto lia uma mensagem de cada vez. Eunwoo não sabia se comunicar no Kakao sem mandar fotos suas seguidas da mensagem, e isso me fazia rir sozinha em qualquer ocasião. As últimas tinham sido uma série de fotos em sequência dele fazendo uma cena enquanto escorregava do sofá e perguntava a cada meia hora: “Já está chegando?”, “O avião quebrou?”, “Por Deus, qual é o nome desse piloto? Ele é muito devagar!” e assim por diante.
— É o Eunwoo? — Nellie perguntou depois de um tempo, ao me ver sorrindo como uma idiota, obviamente. — Ele estava tão ansioso que acabou dormindo a manhã inteira, Mingyu precisou acordá-lo pra eles resolverem a divisão dos quartos. Pelo menos ele se distrai muito fácil quando está com os outros, se não, já teria atravessado a nado pra te buscar.
— Que exagero, Nellie. — balancei a cabeça, tentando disfarçar o formigamento no estômago ao ouvir aquilo. — Ele só deve estar animado para me mostrar a cidade, só isso.
— E você está animada para vê-lo, não é? Ou melhor, para colocar seu plano em ação... — ela disse, enquanto dava partida no carro.
— Plano? — quase gritei. Eu não imaginava que ela se lembrasse disso. — Eu não sei do que–
— Agora vai dizer que a ligação da semana passada não existiu? Quando você me contou que já estava na hora de se declarar pra ele? — ela arqueou as sobrancelhas, me deixando sem resposta. — Inclusive, espero que você tenha se planejado bem para essa empreitada, pois temos um passeio de barco em… — ela olhou para o relógio no painel de controle. — 1 hora! Cacete! — Os pneus cantaram em um sonoro altíssimo assim que Nellie acabou de falar, e tive que me segurar no banco para não bater com a cabeça na janela.
Bom, eu já imaginava que não receberia o itinerário daquela viagem, mas imaginei que, pelo menos, me deixariam tomar um banho. Ainda devia ter um pouco de suor seco na minha testa de todas as vezes que tremi e arrepiei com o mal-estar do vôo, fora o cabelo que pedia o socorro de alguém que tinha atravessado um oceano sem dá-lo total atenção.
Mas quem eu queria enganar? Aquilo tudo era demais. Eunwoo tinha sido tão fofo quando me convidou pra passar o feriado Chuseok com seus amigos que me vi incapaz de recusar. Não que eles não fossem, de certa forma, meus amigos também — ou quase todos eles —, mas alugar uma puta mansão isolada em um paraíso tropical durante um feriado tão tradicional como aquele era um legado que pertencia a eles, e agora eu estava incluída. Mesmo que Nellie, minha melhor amiga e, convenientemente, namorada de um dos amigos de Eunwoo, não estivesse aqui, ainda assim eu estaria perfeitamente confortável.
E era exatamente por isso, por todo esse nível de amizade e intimidade aumentando entre nós, que eu tinha decidido fazer o que pretendia fazer.
Não que eu não gostasse da minha amizade com Eunwoo, nada disso. Ficar presa com ele dentro de uma sala de reuniões da Wren Investimentos há 3 anos quando errei o código de acesso da porta e ter que esperar por 2 horas pelo resgate fez com que a minha adaptação na Coreia fosse mil vezes mais fácil. Ele conversou comigo e me acalmou quando eu estava prestes a cair no choro enquanto repetia uma verdade que ele e todo mundo daquela empresa acabariam descobrindo mais cedo ou mais tarde: sou a pessoa mais azarada do mundo. Algum dia, no futuro, eu provavelmente iria morrer tropeçando em um calço de borracha. Ou tomando Tylenol vencido. Era o meu destino.
Bom, ele riu bastante das minhas lágrimas, me ofereceu chá de ervas e viramos amigos. Quero dizer, posso ter ficado com tanta vergonha que saí correndo da sala, orando ao bom Deus pra nunca mais encontrá-lo na vida, mas eu já era amiga de Nellie Yohn, e um belo dia quando fui conhecer o “namorado misterioso”... ele levou um amigo. Aí sim, as coisas começaram.
Talvez não fosse tão recomendado assim estimular uma amizade com uma celebridade mundialmente famosa. As pessoas apaixonadas por privacidade — eu — desaprovariam isso no momento em que a ideia surgisse no cérebro. Mas Eunwoo não fazia com que parecesse desse jeito quando estávamos juntos. Ele não era Cha Eunwoo, grande astro de TV e ídolo k-pop, mas só Lee Dongmin, um cara divertido, engraçado, que odeia trancar portas e o herdeiro de um conglomerado que decidiu dar um destino mais digno ao próprio dinheiro que não fosse em um mega jatinho ou figurinhas do Pokémon. Foi aí que ele começou a investir na Wren, e quando todo o resto da minha trajetória naquela cidade nova foi traçada.
As coisas aconteceram bem rápido. Um dia eu ri de uma piada que ele fez sobre o aquário de peixes betta e guppy da sala de espera do senhor Baker (ele os chamou de feras arco-íris), depois aceitei o café que ele tinha comprado pra agradecer pelo “meu” trabalho (eu era apenas uma aspirante a analista de investimentos, vivendo à sombra do CEO), vi ele sorrir depois que esse mesmo café tombou na minha roupa e, pela ordem natural das coisas, deveria me encolher e chorar, mas comecei a rir junto e notei pela primeira vez o quanto ele era bonito.
Sei que isso era um fato tão óbvio quanto 2 + 2 são 4, ainda mais quando o rosto do cara estava estampado por toda a cidade em outdoors e banners digitais de pontos de ônibus, mas aquela foi a hora que meu córtex orbitofrontal decidiu registrar isso. Ele era lindo. Daquele jeito que paralisa seu coração e você é envolvida numa luz divina e vozes de anjos.
Eu provavelmente deveria ter juntado minhas coisas e entregado uma carta de demissão na mesa de Claude no fim daquele dia, mas o diabinho à minha esquerda só precisou dizer uma frase: “se fizer isso, nunca mais vai vê-lo de novo.”
Na teoria, eu veria. Pela TV, pelo Instagram, Tiktok, pela janela do táxi. Mas era o mesmo conceito do “tirar doce de criança”. No meu caso, o doce já estava na minha boca, indo pra garganta, prestes a ser deglutido e misturado a todo o meu organismo. Não dava mais tempo de impedir.
Sendo assim, deixei as coisas acontecerem. Aceitei os convites, os cafés, as pizzas de anchovas, os elogios à minha tatuagem, depois ao meu cabelo, os defeitos apontados que vinham logo em seguida — “As pessoas normais da realidade não misturam ouro com prata, ” —, os presentes de vez em quando, a companhia para assistir meus filmes favoritos, os chocolates caros que ele ganhava… deixei a bola de neve rolar e tomar forma, acreditando sinceramente que tudo ia passar, que eu só precisava de um amigo depois de uma mudança radical, que o meu bom senso gritaria “peraí peraí, gata, o que você acha que tá fazendo?” e eu voltaria pra dentro da minha concha de realidade, mas ele estava demorando muito pra fazer essa proeza. E o que começou com uma bolinha do tamanho de um limão, hoje já teria devastado toda a Escandinávia.
Estava sendo incômodo e desgastante acordar com uma vontade maluca de ser ele a primeira pessoa que eu queria ver. Ou sair para almoçar quando ele está na Coreia e conversar até tarde da noite na minha varanda bebendo um vinho barato. Essas e outras mínimas coisas culminaram para onde eu estava hoje: apaixonada. E planejando contar tudo para ele na primeira oportunidade que parecesse conveniente o bastante.
Eu só não contava que Nellie se lembraria desse “plano” depois que fiz aquela ligação bêbada do lado de dentro da cabine do banheiro unissex do escritório da Avanza, um complexo de madeira afastado da civilização na Ilha Svalbard, governado por nerds que acreditavam em ovnis e escutas telefônicas. Normalmente, ela mal se lembrava do que comeu há 3 horas (e por isso não fazia dieta).
Nellie fez uma curva perigosa em uma estrada que começava a se afunilar e ficar deserta, com as casas se espaçando cada vez mais entre uma e outra, grandes palmeiras balançando ao vento no quintal e o cheiro da maresia penetrando até mesmo com os vidros fechados. Ela enterrou o pé no acelerador, determinada a não me deixar nem tirar uma foto borrada do celular, e, quando correu mais do que achei ser possível na direção de uma fachada branca atrás de uma fileira de carros, soube que tínhamos chegado.
E… Uau.
A casa era cercada por um muro alto, que não dava conta de esconder a beleza do que poderia ser visto da propriedade. Grandes janelas de vidro espalhadas por todo lado davam um ar de modernidade e sofisticação dignas de mansões presidenciais estampadas na primeira página da Architectural Digest. O quintal da frente era ladeado de coqueiros e acácias, e tinham ainda mais delas na direção dos fundos. Eu repararia em mais do que isso, se Nellie não tivesse deslizado pelo asfalto como o Toretto para conseguir enfiar o carro entre outros dois, e reconheci a Mercedes de Eunwoo na mesma hora. Quando saí, queria ter parado um pouco e continuado a admirar a casa, mas ouvi o grito de Mingyu assim que passamos pela porta:
— Nossa, até que enfim! Achei que tinham voltado pra Seul.
Ele caminhou até Nellie, dando-lhe um selinho e virando-se para mim.
— Você veio pra ficar, certo? — ele olhou para trás dos meus ombros, claramente procurando as malas.
— Nellie disse que estamos atrasados. — dei de ombros. — E eu não faço ideia de onde está minha roupa de banho no meio de toda aquela bagunça, então eu vou-
— Por isso mesmo vou pedir dois minutos a mais para ela vestir o que eu vou emprestar. — Nellie começou a me conduzir para a escada. — Pode deixar que buscamos a mala dela mais tarde. Vai chamando todo mundo.
Mingyu não teve tempo de responder, e muito menos eu. Seguimos até o topo da escada, saindo em um corredor largo com paredes de mármore branco e portas espalhadas dos dois lados. Entramos em uma à esquerda, com uma cama queen e pelo menos 6 malas espalhadas pelo piso, como se tivessem sido literalmente jogadas ali. Fora isso, o quarto era impressionante, com vista para a frente da casa e a lateral da praia, paredes em tom neutro e um banheiro com piso esverdeado digno de um hotel decente. Vindo de trás de uma das cômodas de madeira perto da janela, vi a sombra de um pompom ligado a uma corrente, um dos meus maiores traumas visuais sobre Nellie e Mingyu.
Desviei o rosto. Minha amiga voou até uma das malas, começando a revirar tudo.
— Eu realmente posso ir do jeito que eu estou. — tentei falar de novo, mas ela rapidamente levantou o dedo para me calar.
— Vou estar morta em um caixão de prata no meu velório tocando hip-hop colombiano no dia em que eu deixar você usar calça e tênis em um barco. — ela revirou os olhos, puxando uma bolsa transparente cheia de mini bolsinhas transparentes juntas. — Estamos na praia, , e você não pagou todas aquelas aulas de pilates nos últimos 6 meses pra não exibir o resultado agora. Você precisa deixar claro para o Eunwoo o que ele vai estar perdendo sem nem sequer pensar nisso ainda. Quer dizer, não que ele vá te rejeitar ou algo parecido, mas tenho certeza de que você pensou nessa possibilidade.
— Na verdade, eu não pensei. — ela virou a cabeça com tudo para me olhar. — Quer dizer, eu literalmente não pensei muito em nada disso. Eu estava bêbada, lembra? Isso não é pra ser uma cobrança pra ele, não quero dizer o que eu sinto para que ele também diga, eu só… sei lá, quero dizer. — suspirei, enrolando o cabelo no dedo indicador, me sentindo violentamente perdida no meio daquilo. — Eu quero que continuemos amigos acima de qualquer coisa.
— Se você quer tanto isso, não pensaria em abrir o jogo. — Nellie me jogou um conjunto de biquíni azul turquesa ainda na etiqueta. — As pessoas não se confessam a outras esperando que absolutamente nada aconteça. Não dá pra conviver com essa dúvida. E se der certo, várias questões são envolvidas, porque infelizmente esses caras lá embaixo não são pessoas normais, tudo é em cima de regras e combinados, então antes de seduzir-
— Tudo bem, tudo bem. — interrompi antes que ela começasse um monólogo sobre a realidade de se namorar um idol. — Temos o fim de semana inteiro, prometo que vou fazer a lista dos prós e contras e considerar esse… cenário.
Nellie franziu o cenho, como se estivesse tentando se lembrar de quando me orientou a fazer uma lista de qualquer coisa, mas não a dei chance para falar e entrei no banheiro.
Nellie não tinha noção alguma de inconveniência.
Tudo bem, estávamos na praia e devia estar fazendo pelo menos uns 28º. Era compreensível, quase obrigatório, que eu estivesse usando um biquíni. Mas o que ela tinha me dado ultrapassava o limite da palavra desinibido. Exigi na hora a troca pelo meu maiô que estava guardado na minha mala, mas é claro que ela não me deixou ir buscá-lo.
Tratei logo de descolar um vestido sem mangas de sua bagagem número 5 pra jogar por cima de toda aquela falta de pano. Não que eu fosse tímida ou algo parecido, mas eu não era, bem, tão descontraída assim.
— Onde eu vou dormir? — perguntei quando saímos de novo para o corredor, observando as fachadas de madeira nobre lado a lado.
— Bem ali. — Nellie apontou para uma porta um pouco à direita na outra parede, com um sorriso sugestivo. — Te coloquei bem na frente do quarto do Eunwoo. — e acenou com o queixo para a porta na frente da minha, que estava um pouco aberta e vazando um pouco de música baixinha para fora. Não era bem o tipo de música que Eunwoo escutava. — O Mingyu me mandou uma mensagem depois que ele e os garotos dividiram os quartos. Deixei esse pra você porque não é tão grande e tem um banheiro lindo, sem nenhuma vidraria cara ou chuveiro alto. Caso o Eunwoo fosse parar em outro andar, eu faria um apelo pra te mandar pra lá, mas eu nem precisei fazer isso. Quer um sinal melhor do que esse?
Meu rosto ardeu. Olhei de relance para a porta com um fiapo de abertura e puxei Nellie na direção das escadas, trincando os dentes para perguntar:
— Você contou sobre isso para o Mingyu?
— Contei? — ela piscou os olhos, fingindo inocência, mas cravei as unhas no seu pulso. — Ai, tá bom, tá bom, eu posso ter contado. Mas e daí, você acha mesmo que ele vai abrir o bico? Inclusive, ele é um dos maiores torcedores desse casal, não vê a hora do Eunwoo começar a namorar. Quem sabe assim ele para de viver de salgadinho de queijo e cigarro no café da manhã.
— Nunca consegui fazer ele largar aquele salgadinho.
— Talvez você tenha mais sucesso no cigarro. Os caras são capazes de tudo pela garota que amam. Olha o que eu fiz com o Mingyu.
— Achei que ele tinha parado de fumar depois que viu as fotos de câncer da embalagem.
— Na verdade, foi quando eu preguei uma montagem dos Teletubbies em estágio terminal na embalagem. Você sabe que ele tem medo.
— De câncer?
— Dos Teletubbies. Dã.
Arqueei as sobrancelhas.
— Ah, é. Os Teletubbies maconheiros realmente roubam o sono de um homem.
Nellie estalou a língua.
— Pois é, mas o que eu estava dizendo é que você e Eunwoo já são amigos, entendeu? Ele já te ama bem mais do que deve amar aquelas primas bruacas abusadoras de Chanel que moram na Indonésia. Ele tá sempre falando de você ou pensando em você em qualquer ocasião, vive saindo cedo dos rolês porque é noite de ver os filmes esquisitos que vocês gostam, ou dia de correr no parque, ou pra tirar uma barata do seu banheiro, e passou a gostar daquele leite fermentado da sua terra depois do primeiro brunch que foram juntos. Tá me entendendo? Esse cara tá na sua, amiga. Só precisa de um empurrãozinho.
Engoli em seco. Senti o fundo do intestino delgado queimar e se contrair como os tentáculos de um polvo. Eu não tinha nenhuma ambição de fazer Eunwoo mudar alguma coisa em si mesmo caso ouvisse o que eu tinha a dizer e decidisse que nós dois éramos um match perfeito, mas a ideia de ele já ter mudado, nem que seja uma coisinha, e por minha causa…
Bom, qualquer mulher de 24 anos se transformaria automaticamente em uma garotinha de 13, com suspiros profundos e olhinhos brilhantes.
Abri a boca pra dizer alguma coisa, mas um “nheec” sutil de uma porta se abrindo no fim do corredor me despertou para o fato de não estarmos totalmente sozinhas ali, naquela passagem cheia de portas numeradas.
— Ok, a gente pode só ter um passeio de barco normal por hoje? Sem tocar nesse assunto? Obrigada.
Nellie deu de ombros e terminamos de descer as escadas de mármore reluzente, curvando em uma sala aberta e repleta de vidro, luz solar e poltronas espalhadas. Ali, todos os garotos já estavam prontos e discutindo algo entre si. Eunwoo me viu na mesma hora enquanto eu me aproximava do grupo, sorrindo daquela forma tosca e divertida que me fazia retribuir no mesmo instante.
Não queria deixar que Nellie e suas expectativas românticas entrassem muito dentro da minha cabeça, mas podia jurar que ele estava sorrindo mais do que o normal.
Cumprimentei os demais: Yugyeom, que sempre me dava uma piscadinha nada discreta quando me via, deixando bem claro que, se eu não fosse tão amiga de Eunwoo (ou tão “esquisitinha”, como ele já tinha carinhosamente me chamado), eu poderia ser caracterizada como presa. Jungkook, que bagunçava meu cabelo como se eu fosse um lulu da pomerânia e gostava de exibir seus novos piercings e tatuagens, porque aparentemente ele enjoava rápido da própria aparência. Mingyu, que olhou para o vestido soltinho e as alças do biquíni escapando na minha clavícula primeiro, para depois sorrir largo para Nellie, sabendo que o trabalho tinha sido dela. E, quando estava prestes a ir para o lado de Eunwoo, quase esbarrei no braço da pessoa que passou como um cometa atrás de mim, murmurando um pedido de desculpas naquela voz baixa e rouca que provavelmente só ele conseguia fazer.
Ele olhou pra mim por um milésimo de segundo antes de se colocar entre os rapazes, ajeitando o cabelo embaixo de um boné com a aba para trás, deixando à mostra as argolinhas nas orelhas e o maxilar sempre travado.
Tentei abrir um sorrisinho de cumprimento, mas ele não me olhou. Como sempre.
Aquele era Jaehyun. O 5º membro do grupo (apesar de Eunwoo sempre dizer que era o 1º), vocalista do NCT (meu top 3 de grupos favoritos de k-pop, que Nellie nunca soubesse disso), era ator como Eunwoo, e tão lindo quanto todos eles — um pré-requisito básico da profissão, aparentemente. Em alguma época passada, Nellie já chegou a dizer que o cara era bastante rotulado como um dos homens mais bonitos da Coreia ou coisa assim. Bom, não dava pra duvidar dessa informação, sendo fake ou não.
Todo mundo tinha coisas maravilhosas para dizer de Jaehyun. Ele aparentemente gostava de discos de vinil, skate, violão, piano, câmeras analógicas e filmes musicais. Também era o rosto queridinho da Prada e desfilava por aí em roupas de marca e cabelo sempre hidratado. Era o único barítono de sua agência e o visual do grupo, ostentando aos quatro ventos uma beleza nada difícil de ser apreciada. Também falavam muito das covinhas dele quando sorria (o que só tive a oportunidade de ver por fotos), e da vibe silenciosa e indecifrável, cheia de “o que será que ele está pensando?” É, ele era um acontecimento juvenil da onda Hallyu e um escândalo nacional.
Mas era por causa dele que eu não poderia dizer que estava em uma viagem com todos os meus amigos. Em vez disso, precisava usar o quase. “Quase” todos os meus amigos. Porque tinha total certeza de que nós dois não nos encaixamos nessa definição.
Na verdade, acho que Jeong Jaehyun me odiava. Ou gostava bem pouco de mim.
Quero dizer, não me lembro de ter derrubado uma travessa de panna cotta em cima dele ou gorfado nos seus sapatos brilhantes da Gucci. Muito menos feito piada sobre musicais chatos como A Noviça Rebelde ou expressado minha opinião sincera sobre Sticker na frente dele — a música era ruim e a coreografia também, mas ele e os amigos estavam lindos de morrer. Não me lembro de ter feito nada que chegasse ao ponto desse cara quieto ficar ainda mais quieto toda vez que me via, fazendo todo o possível pra se manter afastado de mim como se eu fosse o epicentro da peste bubônica.
Seja como fosse, já tinha desistido de tentar entender. Ser secretamente odiada por alguém não era um atributo de grande orgulho, mas eu poderia sobreviver a isso se Jaehyun nunca falasse essa verdade na minha cara. Não tenho muita certeza de como eu reagiria. Talvez rolasse umas lágrimas? Não dá pra saber. Geralmente, eu era boa em administrar minhas emoções, mas ninguém nunca disse que me odiava em voz alta.
Ignorei tudo isso e voltei a prestar atenção na conversa. Eles estavam no meio da discussão sobre o armazenamento de bebidas e medidas de segurança do barco, que era um catamarã espaçoso que faria a rota de Hamo Beach até Chunjang Beach. Quando Mingyu acabou o discurso dizendo — ou exigindo — para ninguém levar o celular, finalmente começamos a seguir para fora. Senti braços passarem pelos meus ombros enquanto prendia o cabelo em um rabo de cavalo, certa de que, se não fizesse isso, o vento faria um estrago ainda maior.
— Você se atrasou muito. — disse Eunwoo, com a boca muito perto do meu ouvido. Minha nossa, tenha compaixão! — Mais do que o normal. Tem certeza de que o piloto não comeu algum peixe estragado igual naquele filme antigo Apertem Os Cintos, o Piloto Sumiu?
Ri na mesma hora. Era disso que eu estava com saudades, principalmente disso.
— Se foi isso, o boneco inflável que me trouxe soube pilotar muito bem, obrigada. E, Jesus, pode parar de usar referências de filmes não tão ruins? É como se eu não te ensinasse nada.
— A culpa é sua. Passou duas semanas na Noruega, então a gente perdeu duas Sextas da Framboesa. Aposto que viu Sharknado sem mim.
— Eu nunca melei a Sexta da Framboesa. Agora se você assistiu qualquer coisa com menos de 3 estrelas no Rotten Tomatoes sem mim, você é um corrupto.
— Assisti Esqueceram de Mim duas vezes em sua homenagem, não conta.
— Você odeia filmes com crianças.
— Não era o que eu tava procurando, mas eu não podia assistir um filme ruim sozinho. Tem ideia do sofrimento que eu passei tendo que assistir um filme bom?
— É a regra. Às sextas, a gente desenterra o lixo do cinema, eu mantive a tradição.
— Que foi…?
— Palhaços Assassinos do Espaço Sideral.
Eunwoo colocou uma mão no peito e arfou.
— Traidora!
— Tecnicamente, eram 23h40 da quinta-feira, então-
— Vocês sabem que o aluguel do barco é por hora, não sabem? — Jungkook gritou com a cabeça do lado de fora do banco de trás do carro de Mingyu, o mesmo Camry que Nellie tinha me buscado. — Podem deixar essa fofoca para outro lugar que estamos pagando?
Dei um sorriso tímido para Eunwoo enquanto afastava seus braços de mim e caminhei para o mesmo banco de um Jungkook irritado e ansioso para beber num convés em alto- mar. Achei que Eunwoo seguiria na direção oposta, mas ele apenas franziu o cenho e disse:
— Ei, tá indo pra onde?
Parei e me virei, sem entender. Ele estalou a língua.
— Você vai comigo.
— O quê? — olhei para a Mercedes Benz E-Class azul estacionada logo ao lado do Camry de Mingyu, onde o banco do carona já estava devidamente ocupado por um Yugyeom absorto no Instagram.
Eunwoo acompanhou meu olhar e se aproximou da porta, desferindo um tapa no vidro da janela, fazendo Yug pular de susto e bater o joelho no painel. Tive que colocar a mão na boca pra não rir alto demais. Ele arqueou as sobrancelhas e os dois se comunicaram por um tipo de telepatia por pelo menos um minuto até Yugyeom sair e ir para o carro de Mingyu.
Fazendo uma reverência da mais ridícula, Eunwoo manteve a porta aberta para que eu entrasse e me acomodasse. Revirei os olhos para esconder o batimento maluco que tomou conta de mim por causa disso.
Pelo espelho retrovisor interno, vi Jaehyun entrar no banco de trás, ajeitando as pernas longas por baixo do banco de Eunwoo e mudando a aba do boné para a frente, concentrado em algum ponto fora da janela. Mas, por alguma ilusão de ótica maluca que às vezes a gente tem por virar a cabeça muito rápido, pareceu que ele estava olhando para frente um segundo antes. Mais especificamente na minha direção. Será que ele queria ir na frente?
Pensei em perguntar isso. Eu não teria problema nenhum em trocar de lugar, ainda mais se Eunwoo fosse colocar aqueles podcasts de autoajuda motivacionais com episódios chamados Perseverança, Generosidade, Lealdade ou a trilha sonora do Bob Esponja pra me irritar. Na verdade, naqueles breves milissegundos em que Eunwoo contornava o carro, o silêncio ali dentro me sufocou a tal ponto que eu estava pronta para abrir a boca e falar qualquer coisa que meu cérebro era capaz de pensar, só para que aquele cara se lembrasse que eu era uma pessoa e que também entenderia uma piadinha sobre águas-vivas caso ele quisesse fazer comigo.
Mas, com a graça de Deus, Eunwoo chegou ao seu lugar antes.
— Agora sim! Cintos. — ordenou ele, virando para se certificar de que estávamos obedecendo.
Uma confusão de barulhos do couro sendo puxado e o clic do cinto sendo prendido encheu o carro, mas nenhum deles veio do meu. Eunwoo olhou para frente, avaliando algo no painel e ligando o som enquanto algo havia prendido meu cinto em algum lugar daquele carro maluco e extremamente caro que me dava medo de tocar no lugar errado. O que estava acontecendo? Eu não sabia mais como colocar um cinto de segurança?
Levantei a mão para verificar o que tinha de errado no sulco por onde o couro se desenrolava e encostei em outra que chegou antes de mim, por trás de mim. A mão de Jaehyun desfez o que pareceu ser um nó do outro lado de forma rápida e a tira de nylon deslizou pela minha mão. Em um movimento rápido, ele puxou o cinto até a outra extremidade e finalmente ouvi o click ao lado do meu quadril.
Olhei para o lado. Eunwoo continuava na mesma posição, como se nem tivesse visto nada — tanto a minha dificuldade quanto as mãos alheias que me ajudaram. No retrovisor, vi Jaehyun olhando algo no celular de cabeça baixa, o boné para frente escondendo metade do rosto. Esperei que ele me olhasse para que eu pudesse agradecer, mas ele não fez.
Uma efervescência tomou conta do meu estômago, subindo até minhas bochechas. Que ótimo. Ele devia me achar tão patética que queria me poupar de mais um constrangimento.
O ronco do motor me fez balançar a cabeça e começar a olhar para frente, enquanto Eunwoo apertava o play em The Chain, do Fleetwood Mac. Música dos anos 70 passava bem longe da playlist dele, então aquilo só podia significar que ele iria batucar os dedos no volante e agir exageradamente como se estivesse em um MV, cantando alto e desafinado de propósito pra me provocar. Já não bastava o que eu passava semanalmente com Nellie e seu tributo diário à Bohemian Rhapsody, achei que com meu melhor amigo e nosso gosto compartilhado por porcarias pop eu teria um momento de paz.
Mas eu nunca tinha paz com Eunwoo. Ele me fazia rir o tempo inteiro, e normalmente de coisas que eu jamais riria com qualquer pessoa, tipo a barbicha estranha do meu chefe ou do hino nacional coreano. Também teve a vez que o citaram como ator revelação depois de ter feito My ID is Gangnam Beauty, quando ficou bem claro que ele foi péssimo. Ele gargalhou tanto que até chorou.
A Coreia realmente dava muito valor à beleza.
E era pra esse cara lindo e divertido, considerado (segundo um artigo qualquer da GQ) como o face card da nação, que eu estava planejando me confessar.
Só não fazia ideia de como faria isso.
Sexta-feira
09 de setembro
Hamo Beach, Seogwipo
Ilha de Jeju
09 de setembro
Hamo Beach, Seogwipo
Ilha de Jeju
— O que é isso? Um barco ou o remake do Titanic?
Tentei dizer isso apenas no ouvido de Nellie, mas com Eunwoo do lado, não existia chance daqueles ouvidos biônicos não ouvirem e de sua garganta não produzir a maior gargalhada já nascida na face da Terra.
O barco (ou seja lá o que fosse aquele filhote de iate) estava ancorado em um porto extremamente deserto da praia, o que fez eu me perguntar o que exatamente estava sendo pago ali. Claro, eu estava metida com caras nada normais que precisavam usar máscara, boné e óculos escuros para zanzar por aí, mas alugar um porto inteiro em um ponto turístico no pico do feriado mais popular do país? Não me admira a insistência de Jungkook para irmos mais rápido.
Tinha que admitir: eles tinham caprichado para valer na escolha da locomoção. Era gigantesco — pelo menos para mim, que nunca tinha entrado em uma coisa daquelas na vida —, com dois andares, sofás na popa, um enorme mastro com uma bandeira coreana hasteada no convés e um varal de luzes ao lado de um leme (decorativo, eu aposto), preso de uma forma quase frágil no piso de madeira, sugando a energia de algum lugar no interior das cabines que não estivesse em contato com a água.
Nem tive oportunidade de perguntar se aquilo era mesmo seguro. Yugyeom e Mingyu já estavam subindo primeiro, levando todos os coolers que conseguiam carregar, e os demais foram um a um até chegarmos ao convés, onde toda a estrutura tremeu sob os nossos pés quando foi ligada e, finalmente, começou a se mexer.
Assim como voar, eu também não odiava velejar, mas… a sensação era estranha. Era mais uma aberração maquinária de 100 toneladas confrontando as leis da Física: aviões flutuando no céu, barcos flutuando no mar. Resultado da inteligência ou da imprudência humana?
Tudo bem, eu estava só um pouco nervosa. Só um pouco. Mingyu disse que tinham vários coletes disponíveis (as normas de segurança que ele tanto ralhou na casa) e Jungkook deixou claro que preferia morrer afogado a vestir alguma coisa laranja, então é, os coletes acabaram sendo oficialmente ignorados. E estava cedo demais pra eu parecer uma idiota.
A tarde foi se desenrolando bem. Em pouco tempo, o som já estava ligado nas alturas, a churrasqueira elétrica distribuindo carne aos montes (um alívio insano pra quem não comia há mais de 16 horas), e a primeira caixa de cerveja ficou vazia em um piscar de olhos, assim como o fardo de garrafas de soju. Eunwoo tinha tentando me ensinar a beber nesse estilo coreano e os resultados foram desastrosos — do tipo que me fez levantar do meu sofá e o jogar contra a janela da sala porque ele estava usando um moletom com capuz e eu pensei que fosse um ladrão atrás do meu aspirador robô —, por isso eu estava mais do que satisfeita em ficar só na cerveja normal.
Também teve aquele momento. Aquele em que Nellie, já brilhando com seu biquíni de caveirinhas e o cabelo loiro jogado ao vento como uma garota propaganda de spa all inclusive, se sentou ao meu lado no sofá da balaustrada, ofereceu um drink de frutas e murmurou baixinho um “está na hora” e eu não tinha entendido nada até Mingyu tirar a camisa. Daí pra frente, foi um efeito dominó.
Todos eles imitaram o amigo, e Yugyeom gritou a maior banalidade de todas: “O último que chegar vai ter que ir ao mercado com o Mingyu”. Eunwoo nem esperou que ele terminasse a frase; disparou para a frente, seguido de Jaehyun e Jungkook, e Mingyu até poderia ter levado a melhor se não tivesse perdido tempo ficando para trás para reclamar do seu nome sendo usado tão levianamente. Eles atravessaram o convés até a proa, saltando dali mesmo e mergulhando; alguns de cabeça, outros abraçando os próprios braços e alguns desengonçados que se arrependeram da ideia um segundo depois de saltar. Esse foi o Mingyu, mas Nellie estava do meu lado, então fui barrada de tirar sarro dele antes mesmo de começar.
Ela tentou fazer eu me arriscar em um mergulho também, mas isso era tão possível quanto a chance de eu magicamente virar uma sereia assim que colocasse os pés na água.
No fim, o céu já estava ficando laranja quando eles pareceram se acalmar um pouco e se concentraram em comer e beber o que ainda conseguiam (e era uma tolerância extremamente absurda). Sentei de novo no sofá depois da partida de pôker mais humilhante da minha vida contra Nellie e Yugyeom, e fiquei hipnotizada pela beleza do sol indo ao encontro da linha do horizonte, cada vez mais pertinho, sem pressa, me passando uma sensação de tranquilidade junto com o vento agora mais equilibrado e fresco da maresia. Tinha desistido de manter o rabo de cavalo há um tempo, deixando que a natureza fizesse sua vontade no meu cabelo, e tenho certeza de que o nariz já devia estar com aquele vermelhão onde eu sempre esquecia de passar o protetor, mas nada estava pior do que as costas e os ombros de Yug. Ou Jaehyun. Os dois eram o próprio cosplay da família Cullen — muito brancos, mas também muito bonitos.
Desviei os olhos da minha paisagem por um instante para olhar os meus amigos. Ninguém parecia estar sentindo a cabeça zoneada, os olhos fechando, a língua embolando, nada disso. Jungkook estava na churrasqueira, empilhando uns 4 pedaços de carne de uma vez pra colocá-las dentro de um pão. Yugyeom gritava com Nellie porque ela estava trapaceando, o que a fez automaticamente erguer o dedo do meio com raiva. Mingyu abaixou a mão dela e a mandou trapacear direito. Eunwoo tinha ido ao banheiro, ou ainda estava no mar, eu não lembrava. E Jaehyun bebia em um canto, andando de um lado para o outro com os olhos no chão enquanto puxava um pano seco qualquer com os próprios pés nos arredores do convés. O som era curiosamente abafado, e ele passava do meu lado várias vezes, sem esticar os olhos por um segundo na minha direção. O quê, ele estava secando o chão? Agora? E eu estava no seu caminho? Talvez estivesse?
Dei de ombros sozinha e levantei as pernas, sentando em borboleta, tentando equilibrar minha cerveja pra que ela não caísse no piso. O bom rapaz secador de chão poderia fazer seu serviço em paz.
Voltei a olhar o sol se pondo, ajeitando a alça do biquíni preguiçosamente, agora aparecendo livremente depois do vestido de Nellie ter se transformado em uma saia.
Um par de braços molhados me agarrou repentinamente, quase me fazendo berrar e derrubar a cerveja de vez. Eunwoo gargalhou com a minha cara de choque enquanto se sentava na beirada do sofá, balançando o cabelo encharcado e me molhando ainda mais.
— Valeu, Dongmin. Cerveja com água, que delícia. — ironizei, agarrando o copo agora com o líquido mais claro.
— Ninguém mandou você levar susto com tudo e andar despreparada pra isso. Já falei que cerveja pra você só no copo com tampa e canudinho.
— O Starbucks vende cafés assim, e nem por isso o pior deixou de acontecer.
— É verdade, teve aquele cara que vomitou no seu frapuccino às 7 da manhã no metrô.
— Você vai tocar mesmo nesse assunto? — arqueei as sobrancelhas. Ele abriu um sorriso imenso e cafajeste.
— É que ele se parecia muito com a cor da sua cerveja agora.
Dessa vez, eu que quis levantar o dedo do meio pra ele.
Esbocei um sorrisinho fino e fiz o que qualquer ser humano faria depois dessa lembrança: joguei a cerveja fora pela gradinha. Só o líquido, não o copo. Não queria a morte de uma pobre tartaruga marinha na minha consciência — ainda mais se fosse o Crush, de Procurando Nemo, que é, sim, um personagem real. E sim, estava vivo até hoje.
Coloquei o copo vazio no chão ao lado dos meus pés. Eunwoo riu, é claro. E como sempre, senti um fio quente queimando minha coluna mais do que aquele sol foi capaz de fazer a tarde inteira.
— E aí, tá admirando a vista? Achei que já tivesse tido o bastante disso na Noruega com seus colegas de trabalho americanos. Ou portugueses. — ele fez uma expressão pensativa quando não respondi. — Franceses…?
— Lá não é o McDonald’s, Dongmin.
— Mas o Baker adora diversidade. E falar de filiais, multinacionais, pregão, dinheiro, vírgulas e mais dinheiro. Por isso ele quer contratar gente de todo o continente que também ama essas coisas chatas. Aposto que ele faz uma festinha secreta no lobby do hotel de cada país que leva você, e te apresenta pra toda aquela gente esquisita que vive com o cérebro cheio de matemática e fórmula de regressão sei lá das quantas pra você gravar os nomes no lugar dele.
Sufoquei uma risada.
— Primeiro que se chama Modelos de Séries Temporais e eles me ajudam a não perder o emprego. Segundo, eles eram irlandeses, mas tinham um sotaque norueguês tão perfeito que mal percebi. Terceiro, fui para as montanhas, o máximo que eu vi foi a sala escura e deprimente de um edifício mais escuro e mais deprimente ainda que o Baker alugou. E quarto: você está com ciúmes de novo? — brinquei, num tom convencido. Eunwoo riu mais uma vez, agora um pouco engasgado.
— Como é, de novo? Da onde você tirou isso?
— De todos os seus discursinhos das minhas viagens a trabalho. Eu minto quando digo que você não suporta que eu tenha outros amigos?
— Você não tem outros amigos, por isso são chamados colegas de trabalho.
— Igual o Sanha é seu colega de trabalho?
— Não é a mesma coisa, a gente se conhece desde os 15 anos, . O trabalho fica pra trás depois de tanto tempo.
— Isso ainda pode acontecer comigo, só tem três anos que eu trabalho lá.
— Três anos e você continua preferindo ir beber comigo do que com seus colegas no jantar de equipe. Vai chamar isso de progresso? — Droga, ele me pegou. — Mas não vou te julgar, eles parecem mesmo insuportáveis. Principalmente o cara da verruga que te chamou pra sair.
Mordi o lábio inferior, querendo chutá-lo na sua canela molhada, mas nem teria força suficiente pra isso. Principalmente porque ele estava com os olhos quase fechados por causa do resquício de sol e o cabelo molhado esvoaçando um pouco com a brisa, e continuava sorrindo na minha panorâmica como se eu fosse o melhor programa de entretenimento do mundo — um milhão de vezes superior a Roda da Fortuna.
E ele ainda não entendia por que eu preferia me agarrar a ele como um coala numa árvore a sair com outras pessoas?
— O cara da verruga tem um problema genético, você não deveria zoar com isso. E aliás, cala a boca?
Ele balançou a cabeça, os olhos puxados se fechando mais ainda pelo sorriso.
— Você foi à Noruega a trabalho, então repito: você não tem outros amigos. Não importa que tenha lotado seu Instagram com fotos de cerveja artesanal e montanhas bonitinhas, já tava maluca pra voltar pra mim.
Quase engasguei na hora de rir.
— É, eu pensei muito em você quando tava jogando tiro ao alvo num barzinho de Bergen. Sua foto deve estar lá até agora.
— Sendo exaltada e emoldurada, você quer dizer.
— Alvejada. Desenharam até um bigode.
— E chifrinhos? Se não tiverem colocado um chifre, não vai ter graça. Um bem aqui. — ele esticou a mão para tocar no topo da minha cabeça. — E uma barba enorme do Gandalf bem aqui… — agora levou a mão ao meu queixo. — Mas com caneta preta ia ficar mais para o Hagrid do que para o Gandalf. Ai, que merda, acho que tô citando filmes bons de novo, foi mal…
Ele riu um pouco mais alto, e aquela mão não saiu dali. Tentei retribuir, mas de repente fiquei nervosa demais. Por causa do vento e da música, ele foi obrigado a chegar mais perto para falar e, quando me tocou ali, chegou mais perto ainda, a ponto do seu cabelo voando bater na minha testa e bochecha. Não sei se era por causa da bebida, mas de repente meu corpo parecia a pontinha fina de uma alça de níquel tocando na chama de uma lamparina e se acendendo todo em fogo puro. Senti o coração batendo no ouvido.
— Muito engraçado, Dongmin, mas que tal agora você calar a sua-
Estiquei a perna para ficar de pé, querendo me afastar o máximo possível dele, só até o meu coração voltar ao normal. Mas é claro — é claro! — que toda a atmosfera terrestre era contra situações onde eu pudesse me safar ilesa.
Uma onda sorrateira escolheu aquele exato momento pra fazer um movimento mínimo no barco, tão mínimo que não faria diferença pra ninguém com todos os membros parados no lugar, mas que fez pra mim, que, ao desfazer as borboletas das minhas pernas e colocar os pés no chão, esqueci do copo de plástico que tinha apoiado ali e pisei com tudo em cima dele. O susto foi o catalisador para que eu me desequilibrasse de vez e fosse levada pelo balanço temporário do barco, tombando para trás.
Em minha defesa, até tentei travar meu outro pé no chão, mas como todo mundo já tinha mergulhado e voltado tantas vezes, sacudindo braços e cabelos como um cachorro depois do banho, o piso ainda estava meio encharcado. Me restava aceitar e me preparar para a queda iminente e vergonhosa que provavelmente me traria o primeiro roxo da viagem.
Mas o tombo feio não veio. Digo, o tombo aconteceu. Mas não cheguei a ir ao chão como era de se esperar. Em vez disso, bati a cabeça em algo forte, porém macio, e… forte…?
Abri os olhos e me deparei com um peito nu. Nu e muito bem definido — com certeza pedia pra gente olhar só mais um pouquinho —, mas percebi, com choque, que eu estava bem em cima daquele tórax, envolvida em um aperto firme na cintura que não me deixou bater com a lateral do corpo no piso molhado e duro. Ergui a cabeça e dei de cara com um Jaehyun tentando disfarçar uma careta de dor. Ele encontrou os meus olhos ao mesmo tempo e, naquele silêncio que antecedeu as risadas explodindo, a coisa mais alta era a respiração irrompendo dele, um jato quente e ofegante que abraçou todo o meu rosto até as orelhas.
Estávamos ridiculamente perto.
Me desvencilhei na mesma hora, tomada por um tipo de pânico misturado com constrangimento misturado com um desejo desesperado de sumir, mas deveria ter me lembrado da minha péssima coordenação motora, pois meus pés vacilaram praticamente na mesma hora que tentei. Escorreguei e caí pro lado, fazendo Nellie soltar uma gargalhada altíssima. Jaehyun pareceu apertar ainda mais o laço em minha cintura enquanto tentava se levantar também, me protegendo de mim mesma.
— Desculpa, desculpa… — murmurei de forma desconexa, tentando me apoiar em algo que não fosse aquele peito estupidamente excepcional para me colocar de pé. Meu Deus, desde quando ele era assim?
Uma mão se fechou um pouco acima do meu cotovelo, me puxando em um único solavanco para cima. Eunwoo estava rindo, mas de forma um pouco estranha — leve demais, quase forçando o ar a sair. Eu jurava que teria de buscar ele escada a baixo da embarcação, porque ele rolaria para lá de tanto rir.
— Tinha que ser você, . — ele falou, mas foi tão baixo e abafado pelas risadas dos outros que mal escutei. Ele ajeitava algo no meu vestido que eu não estava vendo.
Mas então eu vi. Com horror, percebi que, na queda, o vestido (que agora era só uma saia) tinha subido até o umbigo, pelo menos, deixando à mostra o terrível biquíni no melhor estilo brasileiro que Nellie tinha me emprestado. E eu havia caído bem de costas para ele. Meu Deus, bem de costas! Ele viu tudo!
Eu lutaria contra todos os tubarões em reabilitação do Nemo pra conseguir me esconder na casinha deles nesse exato momento.
Puxei o vestido para baixo com toda força, sabendo que meu rosto estava inteiro pintado de vermelho. Não conseguia encarar Eunwoo, não naquela hora.
Então olhei para outra pessoa.
— Você tá bem? Se machucou em algum lugar? — Jaehyun perguntou, já de pé. Ele também parecia um pouco vermelho, mas eu preferia acreditar que era trabalho do sol e do tempo que ele havia passado no mar junto com os outros.
— Sim, tô bem, e sinto muito, muitíssimo por isso tudo, eu juro, eu só queria-
— Não foi nada demais. — Jaehyun deu um passo para trás quando eu, inconscientemente, me aproximei dele. O cara agarrou o próprio pulso e desviou os olhos para o lado, parecendo um pouco nervoso, travando o maxilar daquela forma já conhecida até estacar a atenção em Eunwoo ao meu lado, talvez usando uma comunicação telepática pra dizer ao meu amigo pra ficar de olho em mim ou me colocar urgentemente em uma aula de balé, e que se dane se já estava tarde pra isso — ele parecia mesmo um pouco bravo.
Honestamente, não estava nem aí para o que Jaehyun pensava. Naquela hora, estava ocupada demais sentindo as bochechas queimarem por ter caído de um jeito tão patético na frente do cara que eu gostava (e ter mostrado mais do que deveria).
— Jaehyun, nosso herói! — Jungkook gritou de repente, tirando um pedaço grande de carne do fogo, colocando-o em um prato ao lado. — O jeito como você correu para salvar a garota, aish! Fico preocupado desse pedaço não ser prêmio suficiente! Vem pra cá, meu rapaz, pode vir, é toda sua!
Outro coletivo de risadas explodiu, até a minha, que saiu atrasada pelo motivo de eu não estar entendendo nada. Jaehyun não riu. Na verdade, ele olhou para Jungkook como se fosse matá-lo se ele não calasse a boca.
É lógico. Ele detestava ser o centro das atenções e eu tinha acabado de fornecer exatamente isso pra ele. Devia estar mais arrependido do que nunca.
Com uma última encarada e o osso do maxilar quase saltando pra fora, Jaehyun sumiu da minha frente em um piscar de olhos, descendo rapidamente as escadas para a cabine, ignorando o seu presente oferecido por Jungkook, que, por sua vez, deu de ombros e começou a fatiar o pedaço grande. Olhei para Nellie, que tinha uma expressão entretida no rosto, como se eu fosse o Stuart Little dentro da casinha de hamster. Tenho certeza de que perguntei o porquê ela estava sorrindo daquele jeito através de nossa linguagem peculiar por olhares, mas ela também deu de ombros e se voltou novamente para Mingyu.
— Lindo biquíni, . — ouvi a voz de Yugyeom repentinamente por trás da minha orelha, seguido de risadinhas divertidas enquanto ele ia desfrutar da carne de Jungkook.
Ah, céus, que humilhação.
Tomei coragem e virei para Eunwoo, agora concentrado em algum ponto entre as escadas por onde Jaehyun havia sumido e as costas de Yugyeom enquanto comia. Tinha algo muito estranho naquela expressão dele, e as sobrancelhas franzidas eram só a primeira da lista. Ele estava sério demais em uma situação que deveria estar convulsionando de tanto rir, pelo amor de Deus!
Quando percebeu que eu estava encarando, ele endireitou a posição e fez nascer o sorriso que eu estava esperando, mesmo que não estivesse nada espontâneo como sempre era.
— Você tá legal? — ele perguntou, cruzando os braços. — Você caiu bem feio ali.
— Estou bem. Tropecei em cima de um 97 line, posso publicar isso no Twitter e ficar famosa, já pensou? — ri, meio desengonçada e arfante, mas ri. Ele não riu. Foi estranho. — Eu tô brincando. Não é hoje que eu vou torcer um tornozelo, mas se Jaehyun não tivesse secado essa reta, talvez você estivesse me carregando para o hospital agora mesmo.
Esperei o deboche. Esperei a negação na cara dura. Esperei qualquer coisa, menos aquele sorrisinho distraído de quem está tendo muita dificuldade de voltar da Lua.
— Nos seus sonhos, . Viro um boxeador de sucesso antes de virar o seu cavalheiro particular. — e, finalmente, ele ergueu a mão para bagunçar meu cabelo meio úmido. — Vou aproveitar para dar um último mergulho antes da gente voltar. Tenta não se mexer muito até esse negócio chegar no porto, beleza?
Ele nem esperou eu dizer alguma coisa; simplesmente deu as costas e pulou para o mar.
Comecei a sentir um extremo desconforto e não entendia por quê. Parece que perdi alguma coisa no ar, mas, mesmo olhando em volta, ninguém parecia sequer estar lembrando do fato de eu ter caído em cima de Jaehyun de um jeito tão… bizarro e grudento. E eu estava quase crente que Eunwoo fez a careta estranha porque eu o envergonhei de algum jeito — que não sabia dizer qual era, porque minha cota de momentos constrangedores na presença dele já tinha chegado no limite, tornando o episódio de hoje um mero acontecimento normal, com a única variável sendo a minha seminudez.
Quando voltei a me sentar, Nellie atravessou saltitante para se juntar a mim, agora com um drink de frutas cítricas e o cabelo em uma trança grossa, pousando do meu lado como uma fada. Nenhum músculo dela se desequilibrou.
Ainda com aquele mesmo sorriso, ela se inclinou no meu ouvido, suspirou e disse:
— Eu estava certa, o pilates está mesmo fazendo efeito em você.
Dez e meia.
Eu sou capaz de abrir um buraco no chão a qualquer momento.
Nellie me fez usar esse vestido ridiculamente chamativo, porque “o vermelho é a cor que representa as paixões, do amor ao ódio, o desejo carnal dos renegados, não me faça reler esse texto inteiro, estou dizendo, é o vestido certo!” e agiu daquela forma que não, você não tem escolha nenhuma.
E atribuo a culpa totalmente a ele quando saímos para o quintal dos fundos naquela noite e fui bombardeada por alguns olhares curiosos e confusos, como se a Taylor Swift tivesse decidido aparecer de surpresa na festa particular. Não que eu fosse parecida com a Taylor, ou que aquilo ali fosse uma festa — era só a continuação da bebedeira de mais cedo —, mas ser encarada daquele jeito me fez ter uma rasa ideia de como devia ser uma estrela pop.
Tirei os sapatos para pisar no gramado, o que rendeu um olhar efusivo de Nellie — ela sempre dizia que eu não podia dar bobeira porque meus pés eram meu ponto fraco, ou devia estar me censurando internamente por causa do meu esmalte descascado. Caminhamos até a mesa retangular ao lado da piscina, que estava recheada do mais variado da cozinha coreana existente, ou seja: muita carne, muito macarrão e muita pimenta. Nada vantajoso para o meu estômago ainda não 100% recuperado do lutefisk.
A verdade era que eu estava exausta e todo aquele álcool da tarde tinha terminado de anestesiar todo o meu raciocínio. Tentei muito tirar um cochilo quando voltamos do barco, e o restinho de sono me abandonou por apenas 3 minutos, só pro meu cérebro registrar meu lindo e agradável quartinho no segundo andar, mas eu sabia no que estava metida antes mesmo de chegar ali. Nellie e sua energia perpétua de metaleira-barra-golden retriever jamais me deixaria perder um segundo que fosse de qualquer lugar onde poderíamos beber margaritas à vontade.
Então, depois de toda aquela cerveja, decidi encher uma caneca de café em cápsulas na cozinha — grande, linda e, até o momento, muito limpa —, e a mistura dessas duas coisas no meu estômago poderia acabar tão mal que o nome estaria pra sempre riscado de convites futuros do feriado. Mas eu precisava ficar acordada, e precisava estar um pouco ciente dos meus próprios movimentos para fazer aquilo hoje. Hoje. Se eu não fizesse hoje, nunca mais iria conseguir.
Então, o plano do momento era: pescar os petiscos mais apimentados do bufê improvisado daquela mesa, jogar pôquer com Yugyeom e não apenas assistir ao jogo (manter o cérebro ocupado, mesmo que eu fosse perder de qualquer maneira, não importa o quanto eu me esforçasse), dar uma volta discreta na piscina pra movimentar as pernas e rir das piadinhas de Jungkook, mesmo que fosse forçado. Ele não tinha um repertório bom que fosse além de “toc toc”.
Em resumo: precisava me manter equilibrada e não consumir absolutamente nada que me deixasse chapada de nenhum dos lados: nem café, nem álcool.
Os meninos pareciam felizes demais, com a sua tolerância quase genética para o álcool. Normalmente, essa felicidade toda levava ao karaokê — que já estava montado no jardim antes mesmo do passeio de barco. Jungkook e Mingyu tentavam reproduzir alguma coreografia maluca de algum grupo da segunda geração em frente ao telão borrado do projetor, mas eles estavam mandando bem mal (pra ser simpática). Mas estavam rindo muito e tinham até reunido uma pequena plateia, que estava dividida entre pedir por mais ou jogar rolinhos primavera nas costas queimadas de sol das nossas estrelas.
Eu meio que tinha dito que não era uma festa, mas, à medida que atravessei o gramado, mudei de opinião. Tinham mais pessoas, gente que eu nunca vi na vida, mas que parecia ser próxima o suficiente de alguém dos 5 para chamar mais algumas e ir costurando uma rede até ela se transformar em uma massa humana que cobria quase todo o gramado. Vi Eunwoo sentado em uma cadeira de madeira dobrável bem ao lado de uma mesa de sinuca, que estava sendo usada pra apoiar mais bebidas e as pernas perfeitas de dançarinas famosas que estavam inclinadas sobre ele, rindo de absolutamente tudo que ele falava.
Que ótimo. Nada surpreendente.
Não havia cadeiras vazias perto dele. Nada do que eu, ridiculamente, estava esperando — um lugar ao seu lado, um que ele guardaria pra mim, lógico, porque éramos melhores amigos, e era minha primeira vez ali, e eu tinha combinado certas coisas comigo mesma nos últimos dois anos, que eram: nunca, jamais, beber o bastante ao ponto de aceitar o microfone do karaokê de Mingyu. Nunca. Nem se todos nós fôssemos sequestrados pelo Predador e a única forma de não termos os cérebros arrancados fosse eu cantar Wish You Were Here do Pink Floyd.
— E agora essa vai… — a voz embriagada de Mingyu se espalhou por todos os lados quando ele virou para o seu pequeno público e arrastou a boca no microfone. Ele não demorou a ver Nellie comigo. — Pra minha namorada, a melhor do falsete descolado! Vem pra cá, delícia!
Ele apontou o dedo com uma euforia louca para Nellie, e a cena seguinte seria bizarra se não fosse tão normal. Com um grito animado, ela se colocou a correr e costurar todo mundo até chegar em Mingyu e literalmente pular no seu colo, passando as pernas ao redor de sua cintura com uma flexibilidade que me fez pensar se ela estava frequentando as aulas de yoga depois do meu pilates. Suas diferenças de altura eram de, no mínimo, uns 15 centímetros, e ela estava super produzida — produzida ao estilo Nellie de ser, o que significava que todos os seus pontos fortes estavam muito além da roupa — e ele um pouco suado e cheio de areia, mas isso não pareceu importar pra que trocassem um super beijo na frente de todo mundo. Em um segundo, Jungkook cedeu o microfone pra ela e abandonou o palco de bom grado, mudando a música no aparelho e jorrando as primeiras batidas de T.N.T. do AC/DC. Então, ele fez algo que quase todo o mini público sabia que deveria: sair dali. Porque Nellie Yohn estava prestes a cantar.
E ela não cantava nada bem.
Mas ela sabia gritar, o que já era tipo 40% da música inteira (que Bon Scott me perdoe).
Apesar de tudo, aqueles dois formavam uma dupla e tanto no palco, promovendo os próximos memes e figurinhas do grupo. A energia em abundância ali do meio foi o que tinha levado minha amiga a desistir da ideia de voltar para os Estados Unidos com seu curso de Belas Artes inacabado. Nellie tinha vindo parar aqui porque a sujeira e a competitividade do meio artístico de Nova York entraram na sua consciência, justo no momento em que estava se apaixonando por Lee Ufan, um grande pintor coreano com trabalhos expostos no MET. A partir dali, foi só pagar umas aulas e solicitar uma transferência para a Universidade de Seul, depois de dar só um telefonema para os seus pais, que estavam fazendo shows em pubs apertados na Nova Zelândia e concordaram com a ideia no meio de uma sessão de massagem tântrica.
Foi isso. Nem chegaram a perguntar quais planos ela tinha, ou “você acha mesmo prudente mudar de carreira depois dos 21?”, ou “Coreia do Sul? Enlouqueceu? E o seu diploma em Direito?”, ou ainda: “Seu tio não te ensinou nada sobre plano de carreira?”
Eu ainda tinha muita dificuldade em responder que a única coisa que meu tio tinha me ensinado era como pronunciar trebuchet, mas esse não é o lance. Minha melhor amiga teria minha admiração pareada com inveja eterna apenas porque conseguia ir de lá pra cá sem ser bombardeada com inquéritos, frustrações e expectativas que nunca pediu.
Puxei um palito e peguei um pedaço de tteokbokki em uma vasilha com molho vermelho, observando os dois rindo e cantando desengonçados, chegando à conclusão que eles zombavam um pouco da própria Matemática, porque como assim dois positivos se repelem? Quem disse isso nunca conheceu aqueles dois.
Por um momento, quis estar lá, sendo os dois, por mais esquisito que isso possa soar. Queria ser o sentimento pairando ali no meio, queria estar cantando I’m dirty, mean and mighty unclean, I’m a WANTED MAN apontando para alguém, sem ter vergonha ou medo de cair, sabendo que a atitude significava basicamente: eu amo você, da camada mais sexy à mais idiota. Também significava que ela o chamaria para o quarto um minuto depois, porque o estímulo rock ‘n roll a inspirava de algum jeito nessa parte. E Mingyu ia, é claro, porque ele não lutava contra Nellie ou contra essa coisa enorme que envolvia os dois, como eu fazia na minha própria bolha.
Olhei de novo para Eunwoo, que estava sendo muito habilidoso em uma conversa bastante longa com uma garota que puxou um puff vermelho para se sentar ao lado dele, uma que ele não pediu licença ou avisou que aquele lugar já tinha dona — soa meio ridículo, mas foi o que ele fez em um dos restaurantes que fomos com Nellie e Mingyu e outros amigos dela para comemorar sua nova exposição no Daelim Museum. E tudo bem que ele confessou mais tarde que, na verdade, só fez isso porque queria se livrar de uma das garotas que Mingyu estava querendo “colocar na conta dele” — o que fez Mingyu passar mais de 3 semanas na minha lista negra, não que alguém soubesse disso —, mas ela era muito insistente e ele quis fugir. Mesmo assim, contava, não contava? Ele queria afastá-la e pensou em mim imediatamente. Eu era sua luzinha de esperança, alguém que sempre seria minimamente agradável pra ele, mesmo que não conseguisse andar de um lado para o outro três vezes sem esbarrar em alguma coisa ou passar um constrangimento.
Eu era importante para Dongmin, e não estava afim de começar a duvidar disso hoje, logo hoje, e por causa de meia dúzia de mulheres lindas que combinavam com ele mais do que uma taxa nominal combina com quem não entende a inflação.
Ele finalmente virou um pouco a cabeça e olhou pra mim, lançando aquele sorrisinho icônico que geralmente disparava uma corrente de ar quente desde o meu ombro até bem abaixo das coxas. Gostava de pensar que era um sorriso só meu, mas não sabia até onde a névoa de apaixonada me enganava aí. Qualquer pessoa poderia dizer que ele estava mostrando a mesma fileira de dentes até para os cães de rua.
Mas eu ganhei um sorriso, o que era bom. Considerando que mal tinha trocado 10 palavras comigo no caminho de volta para a casa e fugido do meu olhar mais vezes do que isso depois da minha queda vergonhosa no convés, demonstrava que ele já tinha superado a visão da minha bunda exposta em um biquíni pequeno demais para os padrões e já já voltaria ao normal.
Até lá, voltei a olhar a mesa de comida, espetando três pedaços de tteokbokki no mesmo palitinho e colocando tudo na boca quando vejo um braço longo se esticando ao lado dos meus ombros, indo direto para a bacia de garrafas de água.
Me virei casualmente e dei de cara com Jaehyun, olhando pra mim lá de cima, com seus um-e-oitenta-e-tantos e a feição neutra de sempre.
Não sinto nenhum orgulho do tempo que levei pra perceber que eu estava com as duas bochechas cheias igual um esquilo e finalmente desviei os olhos envergonhada, puxando um guardanapo.
— Ah… oi. — dei uma pausa na mastigação desesperada, sentindo uma gotinha de molho vazar pela lateral da minha boca e descer rápido até o queixo. Limpei na mesma hora, forçando tudo pra dentro. Mesmo assim, não deu pra esconder a bagunça na minha cara. E Jaehyun continuava me olhando, dessa vez até um pouquinho entretido, se certificando que eu terminasse o show.
Devia ser ótimo mesmo observar alguém em um momento tão humilhante.
— Oi. — ele disse finalmente, assim que engoli a última porção da comida. — Você deixou isso cair mais cedo.
Ele enfiou uma mão no bolso da frente da calça cargo e puxou de lá minha pulseira de Praga, estendendo pra mim.
Raspei o pulso no vestido, percebendo só agora que ele estava nu, sem aquela coisinha brilhante e cara que me fez usar o cartão de crédito com peso na consciência, mas antes que eu pudesse pegá-la de volta e agradecer, notei outra coisa: a tala preta e apertada presa em volta da outra mão dele, a que não estava sendo usada para me devolver nada.
Entrei em um quase pânico.
— Meu Deus, o que aconteceu? — quando vi, já estava fazendo: tocando seu antebraço e puxando a mão machucada para a luz. — Isso foi de hoje? Foi quando eu caí? Eu machuquei você?
Arfei. Vi o maxilar dele trincar como antes, e seus olhos cravarem no ponto exato onde meus dedos o tocavam de um jeito intenso que me fez perceber a besteira que eu fiz. Larguei ele imediatamente.
— Desculpa. — murmurei, engolindo em seco. — Olha, eu sinto mui-
— Isso não foi você. — ele respondeu na sua voz grave, abaixando o braço com a tala bem devagar. — É um pensamento um pouco desproporcional, inclusive. Você não é um barril de pólvora, não deslocaria meu pulso nem se quisesse.
Jaehyun voltou a estender a pulseira e guardou a mão com tala no outro bolso da frente, remexendo um timbre metálico que deviam vir de suas chaves do carro, o grande Kia Stinger GT prateado que estava estacionado na entrada como os outros.
Limpei a garganta e peguei a pulseira, tentando não pensar em quanto pesava um barril de pólvora.
— Tudo bem, se você diz…
— Fica com isso também. — ele passou a garrafa de água que tinha pegado para a minha frente na mesa. — Parece que você precisa.
Olhei da garrafa para ele. Parece que preciso? Como é a cara de alguém que parece estar precisando de hidratação?
Ignorei as bochechas queimando e peguei a garrafa.
— Obrigada. — eu acho? — Não só por isso, mas por hoje no barco. E o cinto de segurança também.
Ele olhou pra mim por um tempo, talvez o maior tempo que já tenha me olhado sem desviar os olhos, e só então balançou a cabeça devagar.
— Não foi nada, só quis ajudar.
— E ajudou. Talvez você estivesse escrevendo seu nome no meu gesso agora mesmo se não fosse aquele ato heroico.
— Eu estava por perto, foi automático.
— Não estava, não. — uma pequena risadinha escapou da minha boca e vi seu rosto ficar indistinguível. Ele não apenas não sorriu de volta como apoiou a mão boa na mesa e começou a mexer com as farpinhas de madeira escapando do tampo distraidamente, fazendo aquela coisa de novo de não olhar pra mim.
Fiquei com a sensação de ter dito algo que não devia. Quer dizer, eu sabia que ele não estava por perto, porque estava muito ocupado secando o restante do convés, mas Jungkook gritou que ele tinha corrido, e, honestamente, essa ideia era tão esquisita que eu preferia me agarrar ao que realmente tinha visto: ele e sua pequena terapia de limpeza no fim da tarde tediosa.
Mas meus neurônios exaustos não eram tão confiáveis.
— Ou talvez estivesse. Assim como estava no cinto e tudo mais. — complementei apressada, encarando aquele rosto sempre sério que nunca me deixava saber o que estava pensando. Não que eu fosse boa em adivinhar esse tipo de coisa nas outras pessoas, mas Jaehyun parecia propositalmente puxar a cortina toda vez que eu tentava olhar pela frestinha, deixando sua postura bem clara: Aqui não, . Por aqui você não vai entrar.
Minto, talvez ele não coloque meu nome no meio dessa frase. Às vezes, eu genuinamente pensava que ele não sabia meu nome, porque nunca o usava. A única vez que me lembro foi quando o conheci naquela festa de Jungkook há 3 anos e Eunwoo nos apresentou. “Essa é a , meu duende do Gringotes.”
“Minha nossa, cala a boca. Oi, você pode me chamar de .”
Estendi a mão. Ele olhou pra ela por um tempo maior do que o normal até apertá-la e dizer: “.” Pronto. Só isso. Sem um “é um prazer te conhecer” ou “um duende? Então você já tem a fantasia perfeita pro Halloween.” Não. Ele repetiu meu nome, quase como se estivesse experimentando cada letra dele, e pronto. Depois, quando ele queria falar comigo, era sempre daquele jeito: chegar e falar. Às vezes era pra me mandar um recado, dizer que alguém estava me chamando ou simplesmente um Oi obrigatório que ele tinha que me dar porque eu era o mais novo mascote de seu grupo de amigos e ele tinha que suportar isso. No fim, tenho certeza que Jaehyun esqueceu ou simplesmente não dava a mínima para o que estivesse escrito na minha certidão de nascimento.
De qualquer forma, era desse jeito que ele estava me olhando naquele momento: sério, arredio, quase como se preferisse que eu me esquecesse de sua ajuda.
— O cinto. É. — ele esticou a mão boa para uma cerveja em lata, e a sombra de um sorrisinho apareceu no canto da boca. — Você tava comprando uma boa briga com ele. Se eu não fizesse nada, ele poderia até te golpear.
Arqueei a sobrancelha na mesma hora em que tentei rir. Jaehyun estava me zoando? Brincando comigo?
— E essa não seria a primeira vez. — respondi com uma careta. — No meu primeiro emprego, sentia alguém chutando minhas pernas por baixo da mesa por um tempão. Achei que eu não podia reclamar ou coisa do tipo, então fui deixando, até perder a paciência um dia e descobrir que os cabos da internet estavam todos misturados ao gerador do ar-condicionado, e tudo estava ali no meu pé. Minha colega riu tanto que nem se preocupou em ficar aliviada por eu estar viva.
Dei de ombros. Ele apoiou a lata e puxou seu lacre com uma mão, atento aos detalhes dessa ação sem virar os olhos pra mim, mas vi o sorrisinho aumentando. Aumentou tanto a ponto de deixar a primeira curvatura das covinhas aparecerem.
Meu Deus, nunca tinha visto esse evento tão comentado na internet acontecendo ao vivo.
Quando ele levantou o queixo pra me olhar de novo, ainda estava sorrindo.
— Isso foi… memorável de se ouvir. Mas também foi preocupante. Essa empresa ainda funciona?
— Fecharam depois que o chefe foi pego atirando pranchetas nas pessoas quando não gostava das planilhas delas. As pessoas em Mapo-gu são meio malucas.
— Meus pais são de Mapo-gu.
Merda.
— Hã… então espero que eles não danifiquem a vértebra de ninguém quando reclamam do som alto da TV? — falei cada palavra como se estivesse sendo sufocada. A expressão de Jaehyun não mudou por uns bons 5 segundos, 5 tortuosos segundos até algo inacreditável acontecer.
Ele riu. Riu de verdade, sem o “quase” ou a impressão de rir; até os dentes apareceram. As covinhas na íntegra deram um soco na minha cara, e agarrei a garrafa de água que tinha ganhado com até um pouco mais de força.
O sorriso dele era bem bonito e contagiante. Eu sabia que estava retribuindo aquilo mesmo sem perceber; era tipo olhar aqueles vídeos de mini coelhinhos correndo pelo campo em câmera lenta: uma beleza e fofura tão intensa que nenhum ser humano é capaz de resistir.
— Eu tô brincando. Meus pais moram em Jongno-gu. E lá as pessoas não têm o costume de atirar coisas nas outras por aí.
— Sério? Nem uma caneta? Um papel toalha? — abri a garrafa. Jaehyun negou com a cabeça, aquele sorriso cintilante indo para trás da latinha cinzenta quando ele a colocou na boca. Foi tipo como se alguém tirasse um holofote da tomada. — Caramba. Fiz uma entrevista de emprego lá uma vez. Foi bom não ter passado, não tava afim de perturbar a paz de uma área residencial sem paredes pichadas.
Ri um pouco da minha própria piada, mas ficou bem claro que ele não entendeu muito bem. Suas sobrancelhas se juntaram no meio da testa, aquela mesma expressão solene voltando. Pelo menos ele não estava trincando o maxilar.
Suspirei, meio dramática.
— Você já ouviu falar na lei de Murphy? — perguntei. Ele inclinou a cabeça levemente para o lado, assentindo. — Não é um conceito científico nem nada, mas quando esse nerd desgraçado dos anos 40 decidiu julgar o universo por conta própria, o Cosmos respondeu. A partir de então, algumas pessoas nascem sabendo pintar como o Van Gogh, colocar a perna atrás da cabeça ou atingir sopranos incríveis como a Adele, enquanto outras prendem o dedo na impressora da escola e levam 5 pontos. Ou vão abrir um vinho e atingem o olho de uma senhora de 94 anos. Ou quase provocam um incêndio no apartamento no primeiro dia em que tentou fazer um lámen. Consegue entender? — Jaehyun apenas arqueou uma sobrancelha. Eu bufei. — Qual é. Eu. Síndrome de Murphy. Azarada. Nuvem negra. A 5º cavaleira do apocalipse.
Ele fez uma cara de quem estava tentando não rir, bebendo mais um pouco da cerveja.
— É isso que você acha? Que é um radar de desgraças ambulantes?
— Meio que o meu histórico deprimente me faz ter certeza. Você acredita nisso tudo?
— Na Lei de Murphy? Claro, o Kenny morto por um bebê alienígena não deixa dúvida. — e então, vi uma avalanche de risadas chegando, mas ele só deixou as extremidades da boca se mexerem, balançando a cabeça em seguida. — Desculpa, eu não sei se você…
— Acabou de fazer uma piada sobre South Park? — interrompi, porque ainda estava num estado muito ingênuo de surpresa.
Jaehyun semicerrou os olhos por um segundo.
— É, parece que eu fiz.
— Irado! — arfei, e esperava muito, pela graça do Senhor, que meus olhos não estivessem com aquele brilho de empolgação que sempre ficavam quando alguém falava sobre coisas que eu gostava sem fazer careta. Digo, existia muita gente que comprava pôsteres e capacetes de South Park, mas geralmente eram homens de meia idade reclusos ou pré-adolescentes que acham graça em toda produção 2D que falasse sobre sexo e punheta. — Não achei que você curtia esse tipo de coisa. Quero dizer, não achei nada sobre você, minhas opiniões são aleatórias, mas South Park é cheio de ofensas e autodepreciação, e coisas meio nojentas, tipo gore entre idosos, orgia alienígena, zoofilia e… — puxei o ar. — Acho que tô bêbada.
Ele passou uma língua distraída nos lábios finos e desenhados, franzindo um pouco o cenho.
— É, eu também.
Não pude responder a isso. Pra mim, Jaehyun não parecia nem um pouco bêbado, porque bêbados não articulam frases tão bem e geralmente estão ocupados correndo, pulando ou enterrando uma latinha vazia no meio do chão, dizendo que iriam brotar e fazer mais um monte de latinhas cheias (Yugyeom, 1 ano atrás, festa de aniversário da Nellie. Longa história). Mas, pensando bem, eu não tinha conhecimento de Jeong Jaehyun bêbado, e talvez pudesse acreditar naquela história se considerasse que ele estava ali, rindo e falando comigo. Duas coisas que ele só faria sob efeito de um psicotrópico.
Nossa, isso era bem deprimente.
Sendo assim, já comecei a avaliar minhas opções de sair dali quando um breve silêncio se instalou, mas Jaehyun falou na frente:
— Essa lei de Murphy… pode até não ser uma ciência exata, mas ainda é uma lei, né? Ela é quase a estrela principal de Interstellar junto com o Matthew McConaughey. Na verdade, ele diria até que você está discriminando os processos do universo. Mesmo que o universo dele tenha praticamente acabado… — Jaehyun franziu a testa, olhando rápido pra mim antes de beber mais um gole da cerveja. — É um paradoxo. Você atingiu alguém com uma rolha de champagne, e o osso zigomático dela voltou pro lugar. Aquela senhora pode ter ganhado mais uns 3 anos de vida, sabe?
Um súbito pico de felicidade comprimiu meu peito em uma contração involuntária e surpreendente. Em resumo: meu sangue correu a uma velocidade parecida com a de um Phelps quando ouvi Jaehyun falar Interstellar.
E eu nem gostava desse filme.
Quero dizer, eu nem queria gostar.
— Ah… Nossa. — pisquei algumas vezes, passando a cerveja de uma mão para outra. — Obrigada por tirar esse peso da minha consciência. E esse discurso foi ótimo, um pouco apelão por usar um filme do Christopher Nolan, já que eu sou do time do cinema pobretão que usa ketchup pra fazer sangue. Na verdade, eu e o… — travei, automaticamente olhando para a mesa de sinuca.
Eunwoo ainda tagarelava com a mesma garota, que tinha chamado outra e mais outra para se reunirem em volta dele como uma cirandinha de tiro ao alvo — elas claramente fazendo suas jogadas, e esperando os resultados com base nas reações dele: se ria por mais de 3 segundos = 1 ponto; se ele apenas inclinava a cabeça e sorria pouco = não muito promissor.
Eu geralmente não tinha muitas opiniões sobre Eunwoo e sua vida amorosa — que de amor não tinha nada, já que ele era um grande fã de relacionamentos que duravam 60 horas no máximo, e que se passavam dentro das 4 paredes de um apartamento —, mas gostaria muito que hoje ele pensasse que aquelas garotas não eram uma boa ideia. Não porque não fossem lindas e delicadas, mas porque era o meu dia de falar.
E seria meio patético se declarar pra alguém depois de ele ter dormido com outra pessoa.
Ele levou só alguns segundos pra virar a cabeça pra mim, mostrando que, de alguma forma, estava prestando atenção em onde eu estava. O pastor tentando não perder a sua ovelha.
Desviei o rosto de novo, pegando Jaehyun olhando pra mim. Minhas bochechas arderam por um momento.
— Desculpa, você disse alguma coisa?
Fui encarada por mais um tempo, a expressão no rosto dele inescrutável, e dessa vez me perguntei se ele tinha percebido alguma coisa, percebido que eu estava com uma vontade explosiva de afastar aquelas garotas de Eunwoo como se eu fosse a bola de boliche e elas fossem os pinos.
Se foi isso que ele viu, não demonstrou. Mas a ruguinha de sua testa estava de volta e, sem falar nada, ele puxou o prato de tteokbokki para a minha frente junto com outro cheio de queijos fincados com palitinhos.
— Estou parecendo faminta, né? — soltei uma risada constrangida, aceitando a gentileza estranha, evitando mais pimenta do tteokbokki e puxando um queijo quadrado.
Ele não me respondeu imediatamente, mas também não saiu dali, o que estava começando a me deixar confusa. A mão machucada se movia pouco, e ele deve ter acabado com aquela latinha de cerveja só naqueles minutinhos de conversa que trocou comigo, o que poderia significar que estava mesmo um pouco bêbado. Será que ele estava esperando que eu saísse primeiro?
Considerando que eu ainda não queria ficar de plateia para Eunwoo e nem furar a bolha romântica e barulhenta de Nellie, continuei ali.
— Você tomou algum remédio pra isso? Soube que analgésicos com álcool podem fazer um estrago na cabeça. — falei de repente, indicando sua mão com o queixo, me lembrando da notícia de um cara que levantou uma cômoda com um braço só depois de ter misturado Fentanil e whiskey. Eunwoo tinha lido em um site de notícias venezuelano, então concordamos que aquele exemplo não era nada que sairia em um artigo científico.
Jaehyun tombou a cabeça levemente para o lado.
— Não se preocupe com isso. Onde você estava mesmo? Noruega? — deu de ombros, depositando alguns pedaços de carne e folhas variadas em outro prato, também passando pra mim. — Fez algo de interessante por lá?
Eu não precisava perguntar como ele sabia onde eu estava (Eunwoo contaria até para o cara do pedágio caso ele perguntasse), mas não esperava seu interesse pelo assunto. Por um momento, quis perguntar a ele se não tinha nada, absolutamente nada com que preferisse passar o seu tempo naquela festa ao invés de perder tempo comigo, mas ele se vestiria de sua educação impecável e neutra e continuaria no mesmo lugar. Talvez pra provar aos outros que ele era, sim, capaz de ser bonzinho com a novata.
Que se dane.
— Eu… fui a trabalho. — respondi, e antes que eu percebesse, estava falando pelos cotovelos. Até mesmo quando troquei os documentos finais do acordo entre as duas empresas e me destrambelhei ao entrar no carro do meu chefe na volta pro hotel. Quando você coloca álcool demais dentro de um corpo exausto de 12 horas de voo, que revezou a alimentação entre biscoito cream cracker murcho e café, as coisas começavam a acontecer meio fora do seu consentimento, como se eu fosse aquela sombra difusa que resta do Flash depois que ele dá a largada. Não prestei muita atenção no rosto de Jaehyun enquanto eu falava, mas ele não parecia entediado ou arrependido por ter aberto uma brechinha para que eu falasse.
Na verdade, se eu não estivesse tão desatenta, diria que ele estava sorrindo. E caramba, nunca vi esse cara sorrir tanto, mesmo que seus lábios mal abrissem direito.
Só podia significar uma coisa: ele me achava lamentável. Patética, sim, já tinha chegado nessa conclusão, mas depois de eu apontar minhas dificuldades com fontes textuais em tamanho menor que 14, ele já estava atualizando suas opiniões.
Não sei como me sentia em relação a isso. Os pontos de vista de Jeong Jaehyun nunca me importaram — devo tê-lo visto um total de 6 vezes nos últimos 3 anos, e sabia separar muito bem minha admiração pelo seu trabalho com a quase indiferença à sua pessoa. Conviver com celebridades tornava essa troca cada vez mais fácil e automática. Mas, quando estávamos juntos em uma dessas situações, eu gostava de pensar que conseguiria driblar aquela parede que ele erguia para mim e que finalmente trocaríamos algumas palavras decentes, nem se fosse fingimento pelo bem do grupo. Mas, bom, nem preciso dizer como era difícil chegar nessa parte. Principalmente depois que ele me dava aquele longo primeiro e único olhar da noite (um olhar completo, que não me dizia nada, mas que parecia tirar coisas de mim) e eu automaticamente esquecia da ideia e passava a fingir que ele não estava ali.
Em resumo: dar oportunidade pra conversar por muito tempo com esse cara parecia com abrir a porta do seu restaurante para um crítico gastronômico: por mais que você saiba que faz um ótimo salmão, ele sempre vai colocar um defeito.
Mesmo assim, me permiti ficar ali, me doando naquele protótipo de conversa porque de uma coisa ela estava servindo: me distrair um pouco do harém de Eunwoo e também da cantoria devastadora dos nossos amigos no karaokê, que já tinham trocado para Blue Öyster Cult e passado para a fase onde Mingyu juntava os dedos na frente da barriga e fingia tocar guitarra.
— Dizem que dá pra ver a aurora boreal em Svalbard. — Jaehyun falou distraído a seja lá qual dos milhares de assuntos eu tinha emendado um no outro. — Você chegou a tentar?
Surpreendentemente, eu tinha.
— Ainda era agosto, então não ia adiantar. — respondi, dedilhando outra lata de cerveja, mas sem exatamente pegá-la. — Os funcionários do hotel disseram que se eu visse uma nessa época, seria muito sortuda. Daí eu entendi o recado.
Mas isso não tinha me impedido de me enrolar numa mantinha e sentar na sacada do meu quarto minúsculo no 6º andar, olhando para o céu em busca desse sinal que eu tinha decidido ser o responsável pelos meus próximos passos: contar para Eunwoo ou não? Correr o risco ou não?
É claro que o céu continuou da mesma cor e a minha porcentagem de sorte nos mesmos níveis subterrâneos da estratosfera, mas decidi do mesmo jeito. Depois de me dar conta do caminho que tinha percorrido desde Lisboa até Seul, passado por dezenas de entrevistas de emprego humilhantes, trabalhado mais do que um estagiário em empresas duvidosas onde os chefes eram agressivos e guardavam potenciais canivetes nas gavetas e ouvir da sua própria mãe que você não era inteligente o bastante para a área de finanças, considerei que estava calejada de tribulações e merecia me arriscar em mais alguma coisa que não tinha garantia nenhuma, porém com 0,1% de chance de sucesso: me declarar para o meu melhor amigo. Ignorando o fato de que isso poderia estragar tudo.
Jaehyun me encarou mais um pouquinho até mexer em outra garrafa de água, olhando pra ela como se fosse o elemento mais interessante da festa. Alguns aneis brilharam nos seus dedos longos, e me lembro de já ter dito para Nellie o quanto achava as mãos dele bonitas. Talvez o único elogio que já tenha feito sobre ele em voz alta.
— É uma pena. Eu lembro do Monte Ulriken. No inverno, as pessoas sobem até lá achando que vão conseguir ver alguma coisa, mas tudo é só névoa e neve. Conheceu outros lugares?
— Alguns. Geralmente o que se dá pra ver da janela de um prédio. Umas montanhas altas, um rio bem longe, alguns balões. Ah, espera, você disse que se lembra? — apontei para o entorno do lugar, meio distraída, como se tentasse pegar a fala dele antes que ela desaparecesse. Jaehyun assentiu ligeiramente.
— Fui pra lá uma vez. Achei que conseguiria ver a aurora boreal pegando o teleférico do Monte Ulriken às 11 da noite, mas não deu muito certo. Você já pegou o teleférico?
— Ah, isso… — abri a boca, pensando em como explicaria que nunca, jamais, entraria numa coisa que, além de se elevar há vários metros do chão, ainda tinha a chance de parar de repente e simplesmente soltar a trava de segurança.
Mas não concluí o que diria, porque uma voz saiu na frente:
— Ela tem medo de altura.
Eu e Jaehyun olhamos para o lado no mesmo momento. Eunwoo terminava de secar um copo enquanto nos encarava fixamente, agora de pé e sem rastro de feromônios atrás das costas. Contive a vontade de revirar os olhos.
— Eu não tenho medo de altura. — retruquei. — Tenho medo de ligas de alumínio e aço inoxidável sem manutenção. A surpresa de descobrir um problema desses pode ser literalmente a sua última.
Dei de ombros, convicta no meu argumento, e olhei pra Jaehyun de relance. Ele havia tirado a atenção de Eunwoo e voltado para mim, agora com todos os traços que eu já estava acostumada: maxilar travado, postura rígida e cada metro quadrado do rosto sério como um membro do governo. Nada novo sob o sol.
Mas acho que, dessa vez, fiquei um pouco… decepcionada.
— Blá blá blá. Quem liga? Você tem medo até se a Coca-Cola chia demais. — Eunwoo se aproximou até passar o braço pelo meu ombro, como sempre. — Quais histórias mirabolantes ela tava te contando, Jae? Se deixar, ela meio que não para de falar. Já falei pra ela abrir um podcast chamado : X dias sem desgraças. Talvez desse um pouco de trabalho pra editar.
Trinquei os dentes quando acertei as costelas dele com meu cotovelo, com uma força inútil de quem estava sentindo o corpo formigar tanto que mal conseguia se manter de pé direito.
— Idiota. — murmurei, voltando a olhar Jaehyun, que agora tinha se afastado um pouco para trás e estava com a lata de antes na mão. Não tinha um único traço de sorriso no seu rosto, mesmo que Eunwoo estivesse com o seu à mostra e eu e minha letargia bêbada não podiam fazer nada a não ser imitá-lo. Infelizmente, eu tinha vontade de rir toda vez que ele ria, mesmo quando tinha acabado de me envergonhar.
— É… acho que vou dormir, o dia foi cheio. — Jaehyun anunciou, começando a se afastar da mesa.
— Dormir? Que história é essa? Acabamos de começar. O barril de Pilsen ainda nem chegou. — Eunwoo protestou, balançando a cabeça.
Jaehyun deixou um sorrisinho aparecer, um que ele costumava mostrar para os amigos.
— Se for tão bom assim, vou ouvir os gritos e descer de novo.
— Vou fazer você beber de cabeça pra baixo igual em 2017 no porão dos meus pais.
— Se prometer não colocar limão, eu bebo qualquer coisa.
Os dois trocaram uma risadinha cúmplice até a expressão de Jaehyun voltar à mesma estaca zero e ele me lançar um olhar demorado e dizer apenas:
— Boa noite pra vocês.
E saiu com sua última latinha, andando para dentro da casa naquela imponência de delicadeza de movimentos que eram tão bem articulados que parecia até que ele estava atravessando uma passarela 24 horas por dia, ou ensaiando pra estar em uma.
Não percebi que fiquei olhando até ver Eunwoo entrar no meu campo de visão, olhando pra mim sob aqueles cílios bonitos e especialmente longos naquela noite, combinando bem com sua camiseta azul escura e os jeans pesados, quase escondendo seus pés descalços em cima do gramado.
— O que tá rolando com você? — ele disse quase em um murmúrio pra si mesmo, puxando de volta todos os pratos de comida da minha frente devagar e indo direto no queijo.
— O quê? Nada. — ri pelo nariz, franzindo o cenho. — Eu tô normal, eu não tava olhando, nem… eu não estava. Será que eu machuquei ele? — a pergunta saiu automática da minha boca. Foi a vez de Eunwoo não entender. — A mão dele com a tala. Eu não sabia que tinha caído com tanta força, me senti m-
Eunwoo demorou pra ligar as engrenagens até se tocar do que eu estava falando e simplesmente riu alto.
— Aquilo não foi você. É só a lesão dele, volta a doer de tempos em tempos. Deve estar bom amanhã.
Ele respondeu com tranquilidade, enquanto eu esbocei o que era claramente uma expressão curiosa. Não choque, só uma… curiosidade.
Mas não perguntei nada pra Eunwoo. Porque ele tinha voltado a ficar parado e me olhando eternamente.
Tinha algo de estranho nele. Ou na forma que estava me olhando. Tentei dar uma girada de cabeça e procurar as garotas de antes, mas elas tinham desaparecido, e ele parecia concentrado em encher sua caneca de vidro com mais cerveja enquanto continuava com uma pupila dilatada pra cima de mim (isso talvez tenha sido por causa do baseado que andava pulando de mão em mão por aí). Já estava começando a me irritar.
— O que foi? — grunhi, de repente sentindo a necessidade de ajeitar o cabelo. — Tem alguma coisa na minha cara? Estou com o nariz vermelho?
— Não, mas por que o seu vestido está? — ele retrucou de imediato, apoiando o quadril na borda da mesa. E então, fez uma coisa que desmantelou o que restava da minha inteligência: ele desceu os olhos pelo meu corpo inteiro, captando e incinerando cada centímetro de pele que podia ver, me tocando sem exatamente me tocar, e isso ativou um curto-circuito nas minhas terminações nervosas. Eu quase tinha esquecido que estava usando esse vestido, e várias emoções diferentes estavam lutando pra ver quem tomava conta do meu rosto primeiro: a vergonha, surpresa, confusão, todas elas.
Tentei rir. Era o único jeito de contornar mais uma piadinha que ele faria sobre as minhas roupas, é claro.
Mas ele não riu. De novo. Foi mais estranho do que sua reação no barco.
— Empréstimo da Nellie. Acho que ela odeia minhas roupas mais do que você.
— Nunca disse que odeio suas roupas. — Eunwoo respondeu, e não se mexeu um centímetro sequer.
— Tudo bem, senhor “jardineiras são pra garotinhas”, ou “tiaras são atestados de virgindade”. O seu sonho é me mandar pro Queer Eye.
Esperei sua rebatida, mas Eunwoo permaneceu ali, sem demonstrar qualquer interesse em discutir, torcendo a boca como quem não concorda com o que ouviu.
— Com esse vestido você está bem longe de parecer uma garotinha. — declarou, o tom de sua voz baixando várias oitavas, se transformando quase em um sussurro.
Tirei o sorriso na hora. Ficou bem claro que suas palavras não eram um ataque à minha vestimenta, e isso era meio estranho.
— Você não se vestiu assim em nenhuma Sexta da Framboesa.
— É, acho que esse estilo não combina muito com ficar embaixo de um edredom no sofá comendo salgadinho de queijo.
— É, não combina mesmo. — suspirou, olhando os próprios pés por um instante. — Não tô acostumado com isso, eu acho.
— Com me ver bonita?
— Em não te ver debaixo de um edredom na sexta-feira. Qual é o próximo filme da lista mesmo?
Ignorei a bagunça e o redemoinho de coisas que aconteceram dentro do meu estômago quando ele disse aquilo e naquela voz, me fingi de idiota, e esperava que aquele arrepio que desceu pelos meus braços não fossem tão visíveis assim.
— Ahm… Domínio Alien, eu acho. — limpei a garganta, esfregando o antebraço distraidamente. — Não me diga que quer assistir agora.
— Você não quer? — sua voz saiu abafada, espremida por um impulso que mal reconheci. Tornou aquela tarefa de fingir normalidade praticamente impossível.
Tentei engolir em seco, mas eu não tinha saliva pra isso. Pensei em começar a rir pra dispersar, mas o olhar dele estava sério demais. Eu e Eunwoo assistindo um filme juntos hoje, talvez no meu quarto, e ele me olhando como olhava agora…
— Ah, qual é. — forcei a risada a escapar do meu nariz, quebrando a bolha de tensão com um soco. — Assistir um bando de caras com maquiagens horríveis em cenas de muita luz estroboscópica depois de 12 cervejas e um beck? Vou estar te protegendo dizendo não.
Ri mais um pouco, bebendo quase toda a água daquela garrafa de uma vez só, desejando por um segundinho que eu morresse afogada com ela. Que merda eu estava fazendo?
Ele voltou um pouco a si, abrindo aquele mesmo sorrisinho frouxo de sempre.
— É, você tá certa. Que ideia idiota. — Eunwoo pousou a garrafa de cerveja no tempo da mesa, umedecendo os lábios. — Então, eu vou… sei lá, acho que vou subir. Não tinha me tocado que foram 12 cervejas.
— Já vai subir? — arfei, surpresa.
— É, pois é. Eu dançaria com aquela professora de yoga bem ali, mas é possível que uma tragédia aconteça, e dessa vez nem vai ser com você, . — ele deu de ombros e encarou a mesa ao lado. Depois, estava esticando o corpo sobre ela e puxando um prato grande e redondo com pedaços de bolo já cortados. — Aqui. Você gosta de um doce depois do jantar, mesmo que tteokbokki esteja longe disso, mas valoriza a intenção. Eu que pedi pra fazerem esse. Não sei se é bom, mas pelo menos não tem chocolate. — recebi um peteleco amigável nas costas da mão, uma coisa que ele fazia de vez em quando ao pensar que fez alguma coisa que merecesse um parabéns, tipo um cachorrinho pedindo petisco. Na eventualidade dessas coisas, eu tinha sempre um sorriso e uma piadinha pronta, mas ali era diferente. Meu cérebro estava tão lento que não estava formando as frases que eu precisava. — Curte um pouco a festa, tá bom? A gente se vê amanhã. Boa noite, .
E ele simplesmente foi embora.
Acompanhei suas costas por mais tempo do que o normal, olhando para o leite se derramando entre os meus dedos sem entender em que horas a jarra quebrou. Minha cabeça não estava entendendo nada. Não foi o bolo-sem-ser-chocolate, ou pelo “boa noite”, ou pelo lembrete da Sexta da Framboesa, não. Eu e Dongmin vivíamos desse jeito, dois números inteiros e divisíveis apenas por eles mesmos estampando cálculos puros. A rotina que definia nossa amizade não era perfeita, mas era constante, sem muitas mudanças bruscas. Mas tinha, sim, alguma coisa estranha hoje. Porque ele estava me olhando diferente, e por mais que eu quisesse excluir o episódio do barco dos registros da Terra, não conseguia parar de pensar que tinha algo a ver.
Minha nossa, Eunwoo estava tão traumatizado assim com a visão da minha bunda? Estava tentando decidir se era uma boa bunda ou enojado por ser minha?
Independentemente do que fosse, encarei o bolo por muito tempo antes de comê-lo. O comportamento diferente dele havia causado coisas em mim, coisas que eu já sabia, já tinha aceitado, mas em algum momento daquela noite decidi adiar.
E de repente mais uma cerveja não pareceu uma má ideia.
Era agora, eu sabia que era.
Minha cabeça girava, mas eu sabia onde estava pisando. O texto dançou na minha cabeça o dia inteiro, um monte de palavras empilhadas e acumuladas pelo tempo, que agora teriam que ser colocadas pra fora de qualquer maneira.
Eu sabia o que diria. E seria rápido, sem rodeios, assim como era tudo na nossa relação — tirando as vezes que ele me perguntava sobre o que eu achava do tapete novo da sua sala, e até hoje não tinha conseguido responder que era muito parecido com o vômito de alguém que comeu 20 cachorros-quentes.
Eu só precisava chegar na droga do quarto.
Subi degrau a degrau, caminhando na direção do número 6, fazendo tudo isso com uma lentidão maior que o normal. Um quase tropeço no meio do corredor me fez parar e me perguntar se eu tinha mesmo que fazer aquilo hoje — não que estar com o dedinho do pé esquerdo inchado fosse motivo pra não fazer alguma coisa —, mas não ia deixar a exaustão roubar o restinho da minha lucidez. Porque é dela que eu precisava pra completar aquilo. Talvez se estivesse 100% lúcida, não conseguiria encarar (verdade seja dita).
Parei em frente à porta do meu quarto e olhei para a frente, encarando a maçaneta da suíte vizinha. Comecei a imaginar o cenário: ele deitado sem camisa, ainda mexendo no celular, usando aquela calça de moletom azul que devia ter desde os 16 anos, a respiração tranquila esperando o sono chegar, a brisa quase gelada que vinha das suas janelas com vista para o mar, a ideia súbita de ir tomar um vinho na banheira, e “olha só, , que surpresa te ver aqui. Quer me acompanhar?”, ou “Ah, é sério que esqueceram de colocar uma cama no seu quarto? Que lástima! Vem, dorme aqui na minha, ela é bem grande. Talvez, se tirar as roupas, vai ganhar até um espaço extra…”
Dei um tapa na minha cara. Foco, garota! Tá apressando as coisas.
Talvez eu devesse voltar lá pra baixo, mesmo que Jungkook já estivesse na fase de tentar ficar de pé em cima de uma boia em formato de rosquinha.
Não! Eu já sabia do resultado de ser uma covarde, mas não sabia como era o de ser corajosa.
Toquei a maçaneta e girei de leve. Destrancada, é claro. Eu poderia ter batido. E, mesmo sendo eu, ele poderia negar a presença. Podia me tacar uma almofada e me expulsar como um cão sarnento. Mas eu já estava entrando, com o coração batendo tão forte que vibrava no corpo inteiro.
O quarto era um breu impenetrável. Até mesmo as cortinas enormes que pendiam do teto estavam fechadas, frustrando minha curiosidade de admirar a paisagem que ele tinha das janelas. Todo o cômodo era tão grande que precisei apertar os olhos e ficar parada por alguns instantes pra não correr o risco de esbarrar em alguma coisa sem querer.
Comecei a procurar. Minha cabeça dava piruetas, meu corpo inteiro estava pesado, e minhas bochechas estavam quentes. Nenhuma luz foi emitida com a minha chegada, apenas um som. Ele se moveu em cima de uma cama bem no centro do quarto, as coxas acariciando o linho. Eu conseguia ver apenas a sua silhueta, movendo-se lentamente na escuridão, entrando e saindo de foco. Um movimento mais rápido e ele estava de pé, talvez finalmente percebendo a invasão no seu quarto com um susto.
— Ah… merda. Você estava dormindo? — falei, e percebi como minha voz estava arrastada, devagar. — Achei que tava brincando sobre ir dormir. Você não vê um reality show no celular quando deita como os seres humanos normais? — um riso meio involuntário borbulhou pra fora de mim, e coloquei a mão na boca. — Foi mal, eu dei um gole naquela coisa azul na mão do Yugyeom, e talvez tenha sido a pior escolha da minha vida. Quer dizer, ainda não sei se foi a pior porque eu ainda preciso… Eu meio que tenho… Ér, preciso te contar uma coisa.
— Ju-
— Não. Shhhhh. Não, não. Você fica quieto, eu falo. Eu tenho… — tentei levantar os ombros e parecer com a postura um pouco mais firme, mas provavelmente devia estar com o peito estufado igual uma idiota. Graças a Deus pela falta de luz. Por causa dela também, eu não via o rosto dele, mas sabia que ele continuava parado, praticamente imóvel, se não fosse uma mão agarrando o topo do cabelo e os músculos delineados em total exposição.
Sem camisa. Acertei.
Puxei ar para os pulmões. A covardia quase reapareceu, colocou um pano na minha cabeça e me levou de volta correndo pra longe dali, mas ignorei. Eu precisava fazer isso agora.
— Bom… pareceu bem mais fácil quando pratiquei no espelho na semana passada. — outro riso embolado, agora combinado com um giro louco de 90 graus na minha cabeça. — Você sabe que pratico bastante no espelho antes de encontros importantes, né? Sempre fiz isso pra não correr o risco de amarelar ou dizer besteira na hora. Ou de não conseguir mais um trabalho em um dos escritórios que eu sei que vão ser um pesadelo. E geralmente dá certo. Eu consigo falar sobre todas as bolsas de valores do mundo como se cada uma fosse uma princesa da Disney. Mas isso aqui… é bem mais difícil do que convencer qualquer corretor. — suspirei, olhando para o lado, mesmo que não importasse, pois cada metro quadrado era um negrume profundo e sem fim. — Talvez porque mostrar para outras pessoas que meus números estão corretos seja mais simples do que lidar com a parte não racional do meu cérebro. No caso, meus sentimentos. O que eu sinto por você, na verdade.
Limpei a garganta. Talvez assim aquela bola obstruindo minha glote voltasse a descer.
— Eu… nossa, isso é muito complicado. Vamos começar pelo básico: eu tive crushes. Sabe? Desde que eu cheguei aqui e conheci Nellie, tive aqueles crushes padrões, como o Lee Minho ou o Park Bogum, e tive aqueles meio inusitados, como o carinha de moicano que trabalha na cafeteria e pinta as unhas de preto. E eu acho que tive uma quedinha pelo repositor da mercearia antes de saber que ele tinha 56 anos. Mas o lance é que… com você não é assim. — franzi o cenho, pensando sobre o assunto na hora. — Quer dizer, é claro que você é lindo, e todo mundo com os neurônios no lugar tem um crush em você, mas quando eu pensava no que eu faria com o cara do moicano caso ele me chamasse pra sair, ou até se o Bogum aparecesse de repente e me buscasse numa limusine, eu ainda iria preferir comer pizza com você. Ou ler um livro de poesia só pra gente rir quando chove e as estradas fecham. Eu nem sei se você gosta de poesia, ou de ler. Ainda tem um monte de coisas que eu quero saber de você, mas o que eu sei… me faz querer dispensar o resto. E eu sempre soube o que era isso, mas também sempre esperei que passasse logo porque essas coisas podem destruir o que a gente tem, e eu sei bem o que é destruir coisas, mas eu não posso mais. Não consigo mais guardar essa maldita coisa dentro de mim, e às vezes dói, e me sinto sufocada, e minto pra todo mundo igual os nossos políticos, então decidi que não dá mais pra engolir esse sapo. Ou pedra. Ou… enfim, não posso! Parece que vou explodir se eu passar mais um dia sem dizer que… que eu te amo.
Eu sabia que estava falando, que minha boca estava se mexendo, mas as palavras pareciam estar vindo de quilômetros de distância, proferidas por outra pessoa, outra garota maluca que invadiu outro quarto de outro melhor amigo pra abrir o coração.
Mas eu tinha dito. E, passado o primeiro segundo de choque, comecei a rir, uma risada estranha e baixa, totalmente desesperada.
— Desculpa. Desculpa, eu sei que você não estava esperando por isso, e sei que é loucura, e amanhã a gente vai ter que dar um jeito de olhar um na cara do outro sem pesar o clima, mas… eu amo você. — a palavra saiu de novo, engatilhada como um tiro. Dei um monte de passos à frente, sem saber o que estava fazendo. — Todos os momentos que passamos juntos, por mais que fossem muito rápidos, eram a melhor coisa do meu dia. E quando você sorri, um dia feio e cinza de repente vira primavera, e tenho certeza que você já ouviu elogios o bastante sobre os seus olhos, mas já reparou como eles são bonitos? Como eles quase fecham quando você começa a rir, e isso me faz hiperventilar de um jeito degradante, e nessas horas eu preciso sair de perto de você porque vou acabar entregando tudo, mas não deu mais pra fugir. É isso, é tudo isso. E sei que agora as coisas não vão ficar normais, porque não dá mais pra ficar normal, nada aqui dentro fica normal quando você chega perto de mim, é tão… meu Deus…
As coisas começaram a se embolar de verdade nos fios do meu cérebro, então parei. As palavras podiam estar saindo sem veemência, mas tinha certeza que Eunwoo estava escutando. No momento seguinte, ouvi o som arrastado de passos, os passos dele chegando mais perto e triturando a distância enorme entre nós dois.
Fiquei rígida, sem comemorar nada. Ele poderia estar revirando os olhos e se preparando pra dizer “ok, , já chega, vou te levar pro quarto e matar o Yugyeom por deixar você beber as porcarias que ele bebe, beleza? Mansinha, mansinha”, ou ele só me atiraria no corredor e me daria uma bronca amanhã. “Apaixonada por mim? Que isso, tá comendo merda, ? Você sabe que eu não namoro, quanto mais uma amiga. Se liga!” Ou talvez…
— Eu sei que eu devia ir. — falei apressada, então o que provavelmente saiu da minha boca foi um “eu seeeeeei que debia irrr”. — Porque eu só planejei falar, sabe? Só falar. Só queria que você soubesse, mas… seria ótimo ouvir alguma coisa sua. Uma risada? Aquele barulho que você faz quando fica bravo? Pode me dar um fora, é sério, eu vim aqui preparada pra tudo, e não tem coração partido que aquela coisa azul do Yugyeom não possa salv-
Parei de falar quando ele me tocou. Quando aquele hálito quente de menta se espalhou por todo o meu rosto e me deixou em estágio vegetativo. Quando os dedos dele me apertaram no cotovelo como se quisesse ver se eu era real. E quando sua respiração descompassada deixou seu peito subindo e descendo como se, na verdade, ele tivesse corrido até mim.
Ainda estava escuro pra cacete, e eu não conseguia ver nem a parte branca dos seus olhos, mas o toque dele foi como um lança-chamas na minha corrente sanguínea lerda. Talvez até tenha me deixado sóbria por dois segundos. E foram nesses dois segundos que eu fiz.
Ergui o corpo pra cima e puxei seu rosto, deixando o instinto me guiar até a sua boca. E achei.
Dei um beijo nele.
Eu beijei meu melhor amigo.
Sábado
10 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
10 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
Não sei o que me acordou primeiro.
A luz e a brisa quente eram perceptíveis até de olhos fechados. Eu podia ouvir o barulho do tecido da cortina se chocando entre si por causa do vento, e o cheiro da maresia salgada se infiltrando pelo papel de parede, me fazendo abrir os olhos de uma vez.
As imagens demoraram um pouco a focar, mas de imediato, foi aquilo que chegou ao meu cérebro: azul. Uma porção de azul-bebê, turquesa, royal, pastel, tudo espalhado por cada centímetro quadrado das paredes, no tapete redondo em cima do piso de carvalho branco, nas toalhas empilhadas na cômoda e nas cortinas balançando com leveza. Pisquei os olhos e me sentei devagar, sendo atacada pela dor de cabeça tenebrosa atravessando meu cérebro de uma ponta a outra. A cama — também com os lençóis azuis — estava semi bagunçada, como se eu tivesse apenas me jogado nela e embarcado no sono direto.
Estar usando o mesmo vestido do dia anterior também provou isso.
Respirei fundo, a cabeça funcionando devagar. Ainda estava processando meu quarto sensacional, com seus um milhão de tons de anil e branco, a luz do sol potente e aquela luminária em formato de chapéu na mesinha de cabeceira. Amei. Iria tentar encontrar uma dessas para mim assim que voltasse para Seul. E quando encontrasse, deveria pedir que Dongmin me desse de presente…
Dongmin.
Meu Deus. Dongmin!
Tentei ficar de pé rápido, mesmo que isso tenha me trazido quase uma queda ao chão. O quarto girou três vezes até que eu me firmasse e virasse a cabeça enquanto procurava… alguma coisa. Meu celular. Onde estava meu celular?
Achei que ele me daria algumas respostas, mas depois de dois minutos, nem precisei. As lembranças estavam voltando. Ou melhor: saíram de debaixo da cama e vieram dar um soco no meu nariz.
Beijei Eunwoo. Eu fiz mesmo isso. Depois de dizer que o amava. Não do jeito como eu sempre dizia. Eu disse daquele jeito!
E ele me beijou de volta.
Jeju. Sei lá que horas da madrugada. Muito calor, mil por cento de umidade, uma das suítes mais fodas de uma das mansões mais fodas disponíveis para aluguel na região. A minha língua na boca de Dongmin.
Estava acontecendo. Sabe-se lá como, estava acontecendo.
Pensei em parar depois de um tempo. Isso seria tão difícil de explicar no dia seguinte que me tirava a vontade de continuar. Já estava estranho o suficiente se declarar, já era coisa demais para se colocar na cabeça de um homem, então eu deveria deixá-lo em paz. Mas foi aí que as mãos dele, antes paradas e meio trêmulas ao meu lado, relaxaram e desceram pelo meu tronco. Eu não sabia direito o que ele estava tentando encontrar, mas, aparentemente, depois da língua dele se mexer de uma forma deliciosa enquanto se entrelaçava com a minha como se fosse um peixe agarrando em um anzol, descobri que seu objetivo era a minha cintura, bem na altura da pelve, onde Dongmin pressionou os dedos de um jeito tão intenso que deve ter marcado minha pele por baixo do vestido.
Senti uma espécie de derretimento na barriga, onde alguma coisa estava se descolando e descendo direto para o meu ventre. Não compreendi direito o que era. Na verdade, não compreendi mais nada da vida quando ele puxou a respiração tão forte no meu nariz e gemeu baixinho dentro da minha boca, elevando meu estado de espírito para outra dimensão. Agradeci por ele estar me segurando, porque eu com certeza poderia desabar. Agarrei nos seus ombros, ingeri seu cheiro, que talvez estivesse diferente do que sempre era, e senti seu cabelo molhado por entre os meus dedos, saboreando o fato delicioso de ele ter tomado banho há pouco tempo. Só a imagem disso serviu para que eu envolvesse ainda mais o seu pescoço e praticamente devorado a sua boca como uma maluca.
Ok, talvez com isso ele me pararia. Voltaria a si, veria que era uma loucura. E eu bem notei seus músculos ficando rijos e uma de suas mãos se afastando de mim, mas era só para que ela descesse mais. Direto para minha bunda.
Ora, ora, Dongmin. Quem diria que você me queria tanto.
Era exatamente o que eu estava pensando. Que ele me queria. E do jeito que estava me agarrando, não decidiu isso há cinco minutos, quando ataquei sua boca como uma desvairada. Ele parecia um rio seco que finalmente recebia a tempestade. Um prisioneiro nas sombras que cavou e cavou até, por fim, romper a barreira para o sol. Um escravo recebendo sua carta de alforria.
A impressão era que ele estava esperando uma chance, apenas uma chance, e agora se viu liberado a me engolir, provando e degustando cada detalhe, querendo o pacote completo, com saliva, suor e um pouco de glitter que Nellie espalhou pelo jardim.
Precisava respirar, mas meu pulmão tinha sido treinado para isso. Se por acaso, no meio de uma quinta-feira qualquer comendo comida mexicana, Lee Dongmin decidisse que eu era atraente e uma boa parceira de beijos, precisava mostrá-lo que sim, eu era. Se ele me desse brecha, teria que me deixar provar que eu estava à altura.
Mas ele mesmo se afastou um pouco, ofegando por cima da minha boca enquanto eu fazia a mesma coisa com a dele, duas respirações se encontrando e condensando. O jeito como ele firmava as mãos no meu quadril só me provava que eu devia sim estar prestes a cair, e meu sorriso idiota cheio de dentes não seria capaz de amortecer minha queda.
— Nossa… — arfei.
— …
Tempo do oxigênio encerrado. Já tinha recuperado tudo, e me vi mordendo a boca dele antes de reiniciar mais um beijo, e dessa vez nenhum dos dois estava para brincadeira. Eu já estava sentindo aquela coisa dura entre nós, e por mais que não tivesse pensado nessa parte, não me via erguendo uma placa de Pare e impedindo aquilo de jeito nenhum.
Mas eu estava tão bêbada e tão cansada. Os beijos dele estavam me incendiando ao mesmo tempo que apaziguando, por mais contraditório que fosse, e aí os borrões começaram…
Antes em pé, depois sentados. Eu podia captar o lençol debaixo das minhas coxas, bem macios e ainda meio quentes do corpo dele ali. As coisas estavam acontecendo mais devagar, mas eu ainda estava tentando… subir no colo dele. E Dongmin balbuciava alguma coisa que eu não estava entendendo. Se eu conseguisse enxergar seu rosto, talvez fizesse uma leitura labial. A mão dele raspou na minha perna por baixo do vestido, mãos ásperas e grossas, mãos que nem pareciam mãos de verdade. Não que eu pegasse muito na mão dele para saber. Só me lembrava do fato de que ele odiava lavar louça em dias que ia ao spa de mãos.
O cara sempre soube se cuidar.
Quando enfim consegui montar nele, apoiando uma perna de cada lado do seu quadril, soltei uma risadinha por entre o beijo por causa do choque de ter conseguido fazer aquilo sem tombar para trás como uma idiota. Eu estava no meio de uma neblina, mas Dongmin tinha me puxado com tanta firmeza, ao mesmo tempo em que eu deslizava para a frente e em cima da parte em que ele estava desesperado, que nós dois soltamos um gemido involuntário. Meu sangue inteiro virou lava, e ela estava subindo e subindo, indo de encontro à erupção. Tive certeza de que nenhuma tosse ou rinite alérgica me deixariam acordada à noite mais do que a lembrança de que já fui beijada daquele jeito.
Eu queria ser mais do que beijada.
Mas ele estava se afastando e falando de novo. Me perguntou alguma coisa. Eu ri de novo, porque quando se está bêbada, parece ter um monte de mosquitinho falando no seu ouvido. Isso matava um pouco do romantismo, mas eu não estava afim disso a partir do momento em que ele me agarrou de volta e se esbaldou como o Pooh em um pote de mel.
Inclinei a cabeça para raspar a língua no seu pescoço e percebi seus dedos afundando na base do meu cabelo. Ele estava ficando animado, muito animado, mas então, em um movimento rápido (que o meu cérebro mal processou), minhas costas estavam estendidas no colchão, e esperei para ter o corpo dele por cima do meu, mas as coisas ficaram ainda mais nebulosas, e uma onda de sono me tomou inteira ao mesmo tempo em que eu dizia mais alguma coisa, e daí…
Acabou. Eu acordei no meu quarto e acabou.
Meu Deus.
Não sabia o jeito certo de interpretar aquilo. Quando lembrei disso tudo, senti o mesmo formigamento no estômago, a mesma sensação de ter alcançado o Nirvana. Ele não quis transar comigo porque eu estava uma ridícula bêbada, tudo bem, mas ele tinha me beijado de volta. Dongmin tinha me dado uma resposta. Aquilo só podia ser uma resposta.
Sorri sozinha. Cometi um momento de loucura insana e as coisas tinham acabado bem? Caramba, viva o Chuseok!
Depois de uns gritinhos abafados de alegria e uns pulinhos animados (que quase me fizeram derrubar o abajur de chapéu), respirei fundo e corri para o banheiro, sem fazer ideia de que horas eram. Ver mais azul e branco nas paredes me trouxe uma esperança transcendental de que nada, absolutamente nada estragaria meu dia hoje.
O cheiro do café estava forte quando finalmente desci.
Aparentemente, não dormi por tanto tempo assim. O aroma de comida ainda sendo preparada vinha da cozinha, onde uma mistura de palavrões, piadinhas de baixo calão e tapas fortes deixou claro que ali era território masculino, e que era melhor eu ficar longe. Fui para o outro lado, direto para a varanda ampla depois da sala principal, onde Nellie estava deslizando os dedos sobre um iPad em cima da mesa de madeira comprida.
— Vamos ter mesmo que comer o que eles estão fazendo? — puxei a cadeira na sua frente e me sentei. Nellie ergueu a cabeça rápido.
— Caramba, ! Até que enfim levantou! — ela largou o aparelho de lado, falando daquele jeito… gritando. — Bati na sua porta umas três vezes pra ver se você acordava. Achei que você nunca passava das 7 da manhã.
— Como você estava acordada às 7 da manhã? — arqueei uma sobrancelha.
— Corrida matinal. Foi uma… promessa. — Nellie experimentou aquelas palavras saindo da própria boca e terminou tudo com uma careta. Agora eu notava um biquíni diferente embaixo da sua regata branca, e uma pontinha vermelha no nariz, já exposto ao sol.
— Mingyu ainda não sabe que você é ruim com promessas?
— Eu não sou ruim com promessas, eu só não tenho um bom humor constante e inabalável que vá me garantir estar 100% disposta no dia de cumprir alguma coisa. — argumentou, com um levantar de ombros. — E eu fui, não fui? E pelo visto, você também foi.
Eu não queria entender imediatamente o seu tom malicioso, mas foi exatamente o que aconteceu. E daí, na mesma hora, fiquei com o rosto da cor de um tomate e olhei diretamente para a cozinha, verificando se algum deles tinha ouvido alguma coisa. Supostamente nada. Todo o bando de cromossomos Y estavam muito bem embalados na mesma sinergia compartilhada de “quem esqueceu o arroz na panela, porra?”
Já recuperada, quis chutar Nellie por debaixo da mesa, mas ela não conseguiria disfarçar a cara feia (e muito menos seu grito), e não duvido nada de que quem acabaria se machucando de verdade seria eu.
— Não sei do que você tá falando. — tentei. — Eu estava dormindo. Subi ontem pra dormir.
— Eu não duvido que você dormiu. — uma piscadinha sugestiva por baixo daqueles cílios lindos e grossos da minha amiga. — Dormir é ótimo, é saudável, todo mundo veio nessa viagem pra dormir nem que seja um pouco.
Semicerrei os olhos.
— Isso se aplica a você? Porque sem ofensa, mas se estamos usando essa analogia pra sexo, você e Mingyu são os próprios ursos-pardos no inverno.
— Bom, você já viu minha pele? — ela jogou duas mechas do cabelo cacheado para trás da orelha, exibindo seus poros sempre fechadinhos e lisos. — Só tem um tônico aqui. Tenho certeza que os ursos-pardos nem precisam disso, o sono faz tudo.
Porque eles são animais!, falei pela nossa comunicação por olhares. E fica quieta? Eu sei o que você está pensando que aconteceu, e mesmo que não tenha acontecido exatamente isso, ainda aconteceu, dá pra entender?
O sorriso malicioso que atravessou seus lábios enquanto Nellie mordia um morango de uma forma extremamente vulgar foi o suficiente para que eu soubesse que ela tinha captado. Menos mal. Deixaria ela me encurralar para perguntas sobre minha noite inacreditável assim que conseguisse colocar alguma coisa no estômago.
— E aí, . — a voz de Jungkook veio pelas minhas costas quando ele se aproximou com uma pilha de pratos para colocar na mesa. — Demorou a acordar. Me disseram que você não passava das 7.
Olhei para Nellie, que deu de ombros.
— Hum… é a magia do feriado, aparentemente.
— Queria ter bebido menos pra sentir essa magia. Até agora só foi apagão, boca seca e Tylenol. Mas não acordei com nenhuma tatuagem nova, é um ótimo sinal. — ele deu um sorriso largo de vitória. E talvez fosse mesmo uma. Geralmente, em Seul, Jungkook ouvia música e bebia com seus outros amigos em pubs subterrâneos desconhecidos, o que normalmente virava uma má ideia porque ele acabava indo para a rua procurar confusão com carros de madrugada, mas aqui ele estava seguro.
— Acho que acordei com tudo isso junto. — resmunguei, entornando muita água garganta adentro, finalmente.
— Ih. Achei que você aguentava melhor. Que era dessas de beber vinho quando não consegue dormir, sabe?
— Essa é a Nellie. — apontei com o queixo para ela.
— Ah, confundi. Mas mesmo assim, achei que você soubesse beber.
— O Yugyeom me ofereceu uma coisa azul. Você saberia beber aquilo?
— Do Yugyeom eu não aceito nem um pirulito.
— Justo. Você deveria saber disso. — Nellie apontou para mim, com as sobrancelhas levantadas. Eu tinha uma resposta à altura, mas não poderia soltar ali na frente de Jungkook, porque era bem direta, do tipo: eu precisava de coragem, Nellie! Da porra da coragem! Você lembra? Aquela coisa azul me prometia isso!
— Tá legal, de qualquer forma, a cerveja de vocês é um pouco diferente do meu país. Lá a gente gosta da ideia de ir trabalhar sem dor de cabeça no dia seguinte.
— Aqui também. Caso você trabalhe no Subway e tal. — a cabeça dele tombou, pensando no assunto. Revirei os olhos.
— Então, o que vocês estão preparando ali? — gesticulei para a cozinha.
— Um pouco de tudo, eu acho. Mal me deixaram mexer em alguma coisa depois que eu quis colocar pimenta na omelete, mas vai ser um café da manhã reforçado pra durar o dia todo. Vamos sair cedo.
— Cedo? — olhei para o relógio no celular.
— O nosso cedo, . Depois das 9 da manhã.
— Pra onde vamos hoje? — perguntei, na mesma hora em que os demais estavam começando a se aproximar da mesa. Tive meu primeiro vislumbre de Dongmin, juntando alguns pratos de acompanhamento enquanto os trazia com concentração absoluta, sem me encarar. Meus músculos paralisaram um pouco.
— Você leu o nosso roteiro? — Jungkook vincou a testa para mim e se virou para Nellie. — Ela leu o nosso roteiro?
— Que roteiro? — Nellie se mostrou igualmente confusa. Jungkook contorceu o rosto, como se ela tivesse cuspido nos seus pés e vomitado logo em seguida.
— Como assim…
— A gente jogou o seu roteiro fora. Foi mal, cara. — Yugyeom chegou, dando um tapinha no ombro de Jungkook enquanto puxava a cadeira do meu lado e se acomodava, indo direto na garrafa de café. — Mas respondendo à pergunta, o rolê hoje é no melhor clichê do mundo: parque de diversões. Alguma coisa tem que balançar o nosso estômago que não seja soju com cerveja.
Nellie expirou, animada, e Mingyu se sentou ao lado dela logo depois. Finalmente, Dongmin olhou para mim enquanto organizava os acompanhamentos em cima da mesa. Aquela coisa gelada dentro do meu estômago ainda estava ali, formando placas, e não segurei o sorriso, que provavelmente era para ter saído mais contido, mas não sei se tive sucesso. Vai saber qual seria a forma certa de me dirigir a ele depois de ontem.
Antes de descer, eu deveria ter dado uma estudada no meu diário mental abarrotado onde eu compilava todas as coisas relativas à Dongmin, como: qual sua forma de agir depois de beijar uma garota? Opção A: quando ele gostou do beijo. Opção B: quando ele não gostou.
Pelo sorriso que recebi de volta, marquei a opção A.
Feliz e desconcertada, virei a cabeça, pronta para chamá-lo para se sentar comigo, mas ouvi os dentes de Yugyeom cravando em uma torrada descontraidamente do meu lado, sentado na cadeira que deveria estar desocupada.
Abri a boca, quase deixando que um “vaza daqui!” saísse de mim, mas logo a fechei e me calei. Não ia fazer muito sentido. Todo mundo sabia, sim, que eu e Dongmin éramos a Thelma & Louise do bando, mas tirar alguém já perfeitamente confortável de seu lugar só para acomodar meu chaveirinho? Esse tipo de inconveniência eu dispenso.
Dongmin acabou desviando os olhos e se arranjando em uma cadeira próxima, focado no seu café da manhã.
Suspirei e peguei o hashi, tentando disfarçar a pontinha de frustração. Procurei não olhar muito para ele naquela hora, então fiz uma vistoria rápida pela mesa, vendo Nellie e Mingyu discutindo pela quantidade de cebolinha na omelete, Jungkook de ombros baixos e olhos mais ainda, cansado demais até para ler as mensagens do celular, Yugyeom balançando uma caixa de cereal, e… estava faltando alguém.
— Yuno, vem rápido! — Mingyu gritou, com a boca cheia de arroz.
Demorei um segundo a mais para virar e ver Jaehyun entrando pela porta lateral da cozinha, jogando o cabelo suado para cima enquanto ofegava como se tivesse acabado de voltar de uma corrida matinal na praia.
A julgar pela calça de moletom, a regata preta e os fones de ouvido sem fio, foi exatamente aquilo que estava fazendo mesmo. E notei (com um certo alívio) que ele não estava mais usando a tala no pulso.
Pelo visto, o cara tinha planejado dobrar a cozinha e subir direto para o seu quarto, já que só resmungou alguma coisa relacionada a banho que não entendi direito e atravessou o cômodo. Mas daí, em reflexo, ele virou a cabeça para a mesa e olhou para o caos de todos nós. Olhou até mesmo para mim.
E nessa hora, ele não aparentou tanto cansaço e desânimo como eu sempre espero que alguém que tenha concluído um percurso no calçadão depois de beber o equivalente a uma lata inteira de tinta aparente. Na verdade, suas bochechas coraram por um segundo e os olhos ficaram congelados, até um pouco apreensivos.
Automaticamente, passei uma mão pela boca, procurando sinais de molho ou grãozinhos de arroz presos no meu buço.
Ele desistiu da ideia do banho e caminhou até nós, guardando os fones e arrastando uma cadeira ao lado de Mingyu, enchendo a mesa com o aroma de água salgada e o brilho do seu cabelo úmido e bagunçado. Ainda estava olhando para mim.
Que estranho. Eu não estava com molho na boca e nem bigode de leite. Nem tinha leite na mesa.
— A gente tem que definir o nosso itinerário. — continuou Mingyu, gritando acima de qualquer paranoia minha. — Eu pensei em uma coisa.
— Eu também tinha pensado em uma coisa. — Jungkook resmungou, irritado e magoado. Mingyu revirou os olhos.
— Eu já falei que a gente pode ir andar de kart no final.
— E as maquetes? — um murmúrio geral de negação se espalhou pela mesa. — O quê? Isso é interessante!
— Montar um prédio de papel pra acrescentar numa maquete de um metro e meio da prefeitura que ninguém se importa parece mesmo interessante, Jeon, mas a gente tá sem tempo. — Dongmin ironizou, batendo no ombro do amigo. Jungkook revirou os olhos.
— Eu sei que é chato, mas eu prometi ao Nam…
— Mentira. — Mingyu cortou. — Não vem meter Namjoon nisso. Você que quer ir lá.
— E não quer ir sozinho porque precisa usar a gente pra esconder de todo mundo o quanto você gosta de baboseira patriótica. — Dongmin mastigou uma porção de kimchi. Seu cabelo estava caindo no rosto, liso e fino, e decidi me concentrar nisso enquanto eles continuavam discutindo.
Mas não durou por muito tempo.
— Nossa, que merda. — Yugyeom tossiu várias vezes contra o cotovelo, olhando alarmado para a própria comida. — Isso era pra ser a sopa de alga? Onde você se meteu, Yuno? Você tinha que estar aqui pra não deixar essa gente fazer merda na comida. Olha só, parece que tô bebendo água de piscina…
— Que exagero! — trovejou Mingyu.
— Você fala demais, Yug, como sempre. — Dongmin revirou os olhos, tomando um pouco da sopa. A mesma careta veio logo em seguida. — E talvez esteja um pouco certo…
Nellie largou a colher antes de tirar a prova. Mingyu arregalou os olhos para ela e se virou para todos com indignação.
— Vocês estão brincando comigo? Isso é um complô? — bufou, apontando para Jungkook. — Vejam só, o cara mais rico da roda não tá reclamando de nada.
Jungkook ergueu as sobrancelhas, mas não podia dizer nada pelas bochechas já cheias de comida. Dongmin soltou uma risada nasalada.
— E desde quando o Jungkook é parâmetro? Ele literalmente come qualquer coisa que se pareça com comida.
— Ei, que isso… — Jungkook tentou dizer.
— Foi aquela terra alucinógena de Busan que ele comeu quando era criança… — disse Yugyeom, me dando um leve cutucão com os cotovelos, o que me fez rir.
— A areia de Busan não tem nada a ver com a minha sopa. Babacas! — Mingyu estalou a língua. — Você, , o que achou dela então?
Vi todo mundo olhar para mim de novo e quis me esconder por baixo da mesa. Yugyeom e Dongmin diminuíram a explosão de risadas, Nellie conseguiu disfarçar a barra de chocolate que puxou do bolso, Jungkook parou de se esquivar dos tapas de Dongmin e Jaehyun já me encarava fixamente, como se não tivesse ideia do que estava acontecendo ao redor e muito menos se importasse.
— Ah… — comecei a dizer. — O arroz pelo menos tá ótimo.
Yugyeom deu um tapa na mesa quando gargalhou, e Mingyu cerrou os olhos para mim.
— Em minha defesa, a culpa é toda desse idiota aqui. — ele apontou para Jaehyun. — Ele simplesmente sumiu quando deveria decidir o tempero.
— Ótimo ponto. Que ideia é essa de levantar com as galinhas pra sair pra correr? Isso aqui virou um caos sem você. — Yugyeom reclamou.
— Achei que você não corria mais. Tipo há anos. — Dongmin comentou com curiosidade.
Jaehyun, finalmente se tocando do espaço e das pessoas ao redor, se virou para ele, encolhendo os ombros.
— Não dormi muito bem. E isso aqui… — apontou para a sopa com uma colher. — Precisa de mais pasta de pimenta. Deixei ela bem em cima da bancada.
Mingyu resmungou alguns palavrões no mesmo instante, enquanto Yugyeom voltava a comer, sentindo a sopa na língua, absorvendo seu sabor de verdade.
— É mesmo. A pasta de pimenta teria dado jeito nisso.
— Não tinha nome na embalagem. — Mingyu tentou se defender. — Como eu ia saber que era ela? Tem um milhão de potinhos com coisas vermelhas dentro espalhadas por essa cozinha.
— E eu também disse pra não deixarem você como responsável por essa parte. — Jaehyun olhou para Mingyu de canto de olho e, simplesmente assim, deu o assunto por encerrado, porque os outros iriam apenas espernear sem argumentos.
E foi assim o nosso primeiro café da manhã do feriado: ressaca, sono e provavelmente fome, já que a sopa não foi o único prato com defeito na mesa.
Olhei para Dongmin de soslaio. Não havia um único traço na sua aparência que denunciava que ele tenha rolado na cama a noite toda, ou andado por aí com ansiedade depois do nosso amasso fervoroso de ontem. Na verdade, seu rosto e sua pele continuavam perfeitos, sem olheiras, igualmente como um boneco reborn da era atual que conseguia conciliar um bom sono com muita bebedeira como se ele fizesse isso todos os dias.
Não sei o que senti com a possibilidade de ele estar tão… bem. De ter conseguido dormir. Eu, honestamente, me sentiria melhor em saber que não fui a única que ficou acordada por um tempo, e que ficaria por todas as próximas noites.
Ao contrário de Jaehyun, em quem reparei quando esbarrei o olhar nele de relance. Não importava o quanto tivesse corrido lá fora sob o sol, ele ainda parecia pálido, cabisbaixo, com olheiras em dia e lábios cerrados.
Coitado. Sua lesão deve ter doído a noite toda.
Eu ainda não tinha ideia de como me comportar.
Descobri que esse negócio de pós-declaração era um saco. Eu devia ter lido algo na internet ou sondado melhor Nellie antes de tomar uma decisão daquelas. Ela com certeza seria uma ajuda bem melhor do que as colunas da Vogue — ou, no meu caso, uma revista adolescente online que comprei e pedi reembolso depois de 17 horas. Os minutos se passavam e a dúvida não saía de mim: qual era o próximo passo?
Meu cérebro não conseguia formular nenhuma resposta coerente, totalmente sem experiência no assunto.
Enquanto eu me aprontava com a cabeça no mundo das prováveis atitudes que eu deveria tomar, minha amiga entrou no meu quarto se preparando para me lotar de perguntas sobre a noite de ontem. Eu bem que queria — ou precisava — responder a todas elas, mas Mingyu e sua pressa foram mais rápidos e logo deram um jeito de tirar Nellie dali. Tentei fazer o olhar de cachorrinho abandonado e pedir para que ela chutasse a canela daquele atleta idiota e não saísse, mas, infelizmente, nenhuma de nós duas éramos páreas para os braços do crossfiteiro.
Não havia nenhuma mensagem dele no meu celular. Quando desci de novo e fui para a entrada, onde todo mundo parecia empolgado com a conversa sobre nossa programação, vi que Dongmin me encarou de novo, mas sem nenhuma expressão importante. Nenhum sinal de: então, eu lembro do que fizemos ontem, só não quero dar muito na telha, entendeu? Ainda temos uma viagem em grupo pra tocar.
Eu não vi nada disso. Na verdade, ele parecia um tanto confuso toda vez que eu encarava, e eu esperava que não fosse porque eu estava encarando demais.
Meu Deus, precisava me acalmar.
Antes que eu metesse os pés pelas mãos, me aproximei de Nellie novamente, que tinha os braços de Mingyu pelos seus ombros, enquanto ele conversava com Yugyeom e Jaehyun. Esse último automaticamente me olhou de novo, daquele mesmo jeito do café da manhã, como se eu estivesse com algo no rosto, mas decidi ignorar. Principalmente porque aquilo não devia passar de arrependimento tardio: foi com ela que gastei meus últimos minutos no jardim ontem? Jesus, devia estar bêbado mesmo.
— Então — Mingyu começou a falar —, Yug e Eunwoo vão no carro com a gente, então vocês três podem ir juntos. — ele apontou para eu e Jaehyun. Franzi o cenho para Nellie.
— Como? Mas o Dongmin…
— Aquele pateta tá de ressaca. Tô fazendo um favor pra vocês levando ele no meu carro e correndo o risco de encher meu banco com matéria orgânica. — respondeu Mingyu, puxando um molho de chaves do bolso da bermuda e voltando-se para Jaehyun. — Sei que você curte fazer a vovozinha no trânsito, mas não demora muito pra seguir a gente com a sua lata velha, beleza? A gente quer fugir do horário de pico. Vamos sair em cinco minutos.
Ele piscou para nós dois e se retirou, gritando algo para Dongmin e Jungkook logo mais à frente, que conversavam em voz baixa. Captei a mão de Yugyeom afagando meu ombro, e logo seu sorriso quadrado cheio de sarcasmo.
— Parabéns, . Com o Yuno, suas chances de sofrer um acidente diminuem bruscamente. — ele riu e começou a andar em direção ao carro de Mingyu.
Fiquei parada por alguns segundos, tentando desesperadamente não deixar que minha paranoia me tomasse e eu começasse a pensar que: Dongmin não queria ir comigo de propósito. Ele inventou uma ressaca para não ter que passar 40 minutos comigo em um carro, e o que isso afinal queria dizer? Depois de ontem, o que era para acontecer hoje? Mas que mer…
— Oi. — Jaehyun soprou ao meu lado, naquele tom baixo e aveludado que só sua garganta era capaz de produzir. Virei e o encontrei mais próximo de mim do que eu me lembrava. — Temos que ir. — ele inclinou com a cabeça para o Kia prateado estacionado ao lado do carro de Mingyu.
— Ah, claro. — foi só o que consegui responder, antes de caminhar para o carro em silêncio, temendo que toda aquela sorte que pensei ter tido ontem não passava de uma coisa frágil de vidro ou tão falsa quanto uma taça de plástico. Sério, o que seria desse dia?
Estendi o braço para abrir a porta de trás, desejando de repente ficar sozinha por alguns minutos e colocar o pensamento — e a ansiedade — em ordem. Como era de se esperar, ela estava trancada, mas não precisei tentar por mais tempo. Jaehyun chegou perto, apertando a trava da porta do passageiro e abrindo-a para que eu entrasse.
Por um motivo estranho, me senti constrangida.
— Não precisa, posso ir atrás. — falei rápido.
— Que tipo de cavalheiro eu seria te deixando ir no banco de trás? — Jungkook veio por trás de minhas costas, em um tom quase de sono. — Muito bem, Yuno. Sempre disse que sua criação foi a melhor de todos nós. Vai logo pra frente que eu quero deitar, .
Ele deu um soquinho no ombro do amigo e abriu a porta de trás, enfiando-se para dentro.
Jaehyun soltou uma risada nasalada, inclinando a cabeça novamente para que eu entrasse. Desviei os olhos e entrei. Não era como se eu pudesse negar alguma gentileza.
Jamais pensei que algum dia entraria no carro de Jeong Jaehyun. Muito pelo fato de que eu não chegava nem perto de ser amiga do cara ou próxima o bastante para precisar fazer isso, então já imaginei que não poderia sentar de pernas cruzadas ou esticá-las no painel, como fazia no carro de Dongmin. Ainda assim, não consegui segurar meus olhos curiosos nos primeiros segundos em que estava ali e olhei em volta.
O couro marrom por dentro devia ser mais limpo do que um hospital, e o pequeno televisor digital acoplado no painel era enorme, com comandos que eu nunca tinha visto ou não reconhecia, mas eu não era parâmetro de nada — ainda era a pessoa que só usava o banco de trás do Uber e torcia para chegar viva no meu destino, nada mais.
Mas o luxo não era exatamente algo ao qual eu era alheia. Trabalhava com dinheiro e, concomitantemente, com pessoas que tinham bastante dinheiro, as quais meu chefe me obrigava a tratar como se estivéssemos na era do Egito: dando uvinhas nas suas bocas e balançando um pedaço de papelão recém cortado no lugar do ar-condicionado.
Seja como for, eu sabia reconhecer uma pessoa cheia da grana. E Jeong Jaehyun com certeza estava nessa lista.
Bom, ser idol em um grupo com mais de 20 pessoas não devia te tornar um Jeff Bezos, mas juntando isso com as campanhas implacáveis da Prada, as capas de revistas que esgotavam em questão de horas, trabalhos de atuação e a pilha de publicidades esburrando na caixa de entrada do agente dele… é o bastante para dormir em um colchão de penas de ganso à noite.
A mão dele voou sobre a tela, me acordando da minha averiguação nada discreta. Percebi que só eu não tinha colocado o cinto ainda, e fiz isso o mais rápido possível, rezando para não precisar de nenhuma ajuda dessa vez.
Vi ele me olhando de canto de olho em cada segundo que eu fazia isso, pronto para me puxar para fora caso aquela coisa emperrasse ou simplesmente me asfixiasse sozinha. Que vergonha.
— Pode colocar Justin Bieber? — Jungkook projetou o corpo para o meio dos nossos bancos, vendo os dedos de Jaehyun deslizarem pelo ecrã enquanto mexia no celular com a outra mão.
— Nunca. — Jaehyun respondeu, finalizando a conexão com seu telefone. Quis rir com o choramingo de Jungkook; ele realmente precisava ouvir outra coisa que não fosse Justin Bieber. — O que você quer ouvir?
Levei alguns segundos para perceber que ele estava falando comigo.
— Que não seja nada de antes de 2009. — pediu Jungkook.
— Ah… — repuxei os lábios, fazendo uma anotação mental do que eu gostava e que fosse decente o bastante para se escutar em grupo, sem ser melancólico ou triste demais. — Vocês gostam de R&B?
Jaehyun abriu um belo sorriso. Deu para ver que foi mais forte do que ele.
— Frank Ocean? — disse ele.
— Isso! — respondi. Logo ele explorou os botões e Pink + White começou a soar na melhor vibe soul que deixaria os longos minutos no carro muito mais agradáveis.
Jungkook desabou no banco novamente, pegando o celular como antes.
— É, vocês têm bom gosto.
Virei o rosto para Jaehyun, contendo um sorriso. Ele me olhou ao mesmo tempo. Depois, o Camry de Mingyu diminuiu a velocidade quando passou por nós, a buzina soando alta de dentro da janela para chamar a atenção. Revirei os olhos. Jaehyun ligou o carro e logo o colocou em movimento.
Em poucos quilômetros, constatei que ele parecia mesmo uma vovozinha no trânsito. Mas, estranhamente, não achei isso irritante. Ao contrário; Jaehyun me passava a impressão de que manter o limite de velocidade em uma avenida era apenas uma forma de cuidar de si mesmo e dos outros. Principalmente dos outros.
E não foi nada, nada broxante.
Sábado
10 de setembro
Hallim-ro, Ilha de Jeju
10 de setembro
Hallim-ro, Ilha de Jeju
Eu não tinha pensado na multidão.
Também não tinha imaginado que não estaríamos sozinhos.
Sair com idols em lugares públicos poderia facilmente se transformar em uma dor de cabeça, mas essa parte pareceu ter sido planejada muito bem. Os portões do parque estavam abertos e com a lotação esperada do feriado, mas quando estacionamos em uma parte afastada, de repente sete pessoas se transformaram em quatorze, ficando mais fácil de se misturar. Reconheci algumas da festinha de ontem no jardim — incluindo as garotas, que não perderam tempo para cumprimentar Dongmin da forma mais calorosa possível, prontíssimas para continuar suas investidas pela atenção dele.
Suspirei, tentando não pensar nesse e em nenhum outro assunto que envolvesse a noite passada. Andei ao lado de Jaehyun, que sacou um óculos escuro e o colocou junto com seu inseparável boné, marchando elegantemente até a entrada do espaço amplo do parque, que tinha mais verde e curvas do que eu podia esperar. Eu me sentia tão pequena perto dele. Ou era isso, ou ele era particularmente bem grande mesmo.
Jungkook vinha logo atrás, se arrastando sobre os próprios pés, sem a menor preocupação com bonés, moletons e outros artefatos de disfarce. Eu gostava disso nele; mesmo sendo disparadamente o cara mais famoso do grupinho, Jungkook não se preocupava com esse status quando estavam juntos. Ele poderia ter pegado seu jatinho particular e ido direto para a Disney do Japão ou até a Flórida, sim, poderia rachar a gasolina com Dongmin, sim, poderia fechar o parque inteiro só para a gente se quisesse, sim, mas isso não faria o menor sentido. Ostentação exacerbada não era uma característica de nenhum daqueles caras (e, por causa disso, nós éramos amigos).
Os outros foram chegando e se reunindo, todos emboladinhos em pequenos círculos enquanto eu avistava Nellie com Mingyu e companhia e seguia para lá. O cheiro ao redor era de pipoca, feijão doce e alguma coisa parecida com maçã, a fruta da estação. O sol batia violentamente contra as centenas de vidraças das cabines da roda-gigante, expondo todas as ferrugens e a boca aberta de criancinhas chorando e, agora, eternamente traumatizadas.
Ok, primeiro brinquedo a ser retirado da lista.
No entanto, quando alcancei o pessoal, Yugyeom soltou:
— Vamos à montanha-russa.
Engasguei.
— É o quê?
Recebi pouca atenção, porque os outros já estavam devidamente vibrando de felicidade com a ideia. Uma vertigem fraca começou a me tomar, me adiantando que não, eu não teria livre-arbítrio naquela decisão.
— Se não quiser ir, não vai. — disse Nellie, quando viu minha pele empalidecendo. — Pode tomar aqueles milk shakes de bolhas enquanto espera.
Comecei a sorrir, mas então Yugyeom falou na frente:
— Tá zoando, né? — ele estreitou os olhos. — Assim não tem graça. Todo mundo tem que ir.
Olhei para Dongmin de soslaio. Ele estava com o olhar cravado em mim, mas desviou logo em seguida para responder à pergunta de uma das garotas de ontem, uma com traços chineses que surgiu do nada. Eu não me importava de revelar o meu explícito medo de altura ali no meio, mas esperava que alguém com esse conhecimento prévio (Lee Dongmin, por exemplo) me ajudasse a reforçá-lo, ainda mais para alguém como Kim Yugyeom, que não se importava com as limitações alheias se as dele estivessem sendo bem atendidas.
— Tem um milhão de brinquedos pra ir, ela não precisa ir nesse. — de repente, Jaehyun falou na minha frente, novamente usando aquela voz que encerra um assunto.
— Nem todos tão emocionantes assim. E espera… — Yugyeom olhou para mim. — Isso é medo de altura, é?
Apenas concordei com a cabeça, dando um sorriso amarelo. Ele sorriu de volta.
— Ótimo. Assim fica melhor ainda. Vamos fazer uma aposta!
Franzi o cenho. Metade do grupo parecia estar em revezamento na fila dos ingressos, mas os que estavam ali se agitaram com a voz pomposa e sempre animada de Kim Yugyeom. A energia dele era contagiante e eu seria fisgada por ela se não estivesse com o estômago embrulhado naquele exato momento.
— Que merda você vai falar agora? — Dongmin perguntou, olhando para mim e o restante dos amigos ao levantar a cabeça da conversa paralela com a garota. Consegui perceber, sem a influência de ciúme e nada parecido, que ele estava sendo apenas o ouvinte dela, uma parede de educação que sempre era, e que se despiu disso quando ouviu meu nome ser citado ali no meio.
Um sinal? Alguma coisa relativa a ontem à noite?
Yugyeom voltou a falar:
— Calma aí, é muito tranquilo. Ou vai à montanha-russa, ou ela paga as bebidas de hoje à noite!
Quando até Nellie riu, eu sabia que estava ferrada.
Olhei zangada para Yugyeom. Ele era bom naquilo; sabia mesmo conquistar as pessoas. Jungkook pareceu adorar a ideia, colocando as mãos nos meus ombros e Dongmin apenas coçou a cabeça antes de voltar a conversar com a garota.
— Ah, qual é… — gemi, buscando ajuda. Cheguei a realmente pensar quanto exatamente eu tinha no banco para chapar toda aquela gente, mas não cheguei nem perto de terminar essa conta.
— Qual é, , se anima! Vai ser legal! Mas vai ser mais legal ainda beber às suas custas, então você que decide… — disse Jungkook, rindo logo em seguida.
Outro que sabia muito bem usar as artimanhas de Yugyeom. Eu queria não ser a única imune àquela tática.
Se eu fosse esperar que alguém dissesse algo contra, eu me frustraria. Vi Nellie juntar as duas mãos na frente do queixo e sussurrar: por favor. Você acabou de comprar a sua lava-louça. E aqueles sapatos novinhos. E as minhas mudinhas importadas da Tailândia.
Grunhi. A caixa de madeira que trouxe as mudas eram mais caras do que as próprias plantas.
Com a patética realidade da minha conta bancária escancarada, me preparei para o meu destino miserável. E então, como se fosse mais uma coisa que eu sonhei do que a realidade em si, ouvi a voz de novo:
— Eu vou com ela.
Olhei para Jaehyun. Ele só me encarava de soslaio, mas eu sabia que ele tinha mesmo dito aquilo. E nem parecia estar brincando.
Tenho certeza que, por um minúsculo segundo, todos os rostos ali olharam para ele com a melhor cara de: hein?
— Ótimo, perfeito, que seja! Agora vamos, direto pra nossa dose de adrenalina natural. — Mingyu gritou e puxou a mão de Nellie, os dois cochichando sobre algo enquanto recuavam para a outra extremidade da entrada. Fofoqueiros.
Vi Dongmin caminhar na minha direção, o rosto entalhado com traços duros e confusos, parecidos com a expressão do barco, o que significava que ele devia estar rindo, mas alguma coisa do além tinha roubado essa reação biológica dele.
— É meio feio mentir sobre o status da conta bancária, . — provocou, abrindo um sorriso artificial. — Achei que fosse preferir nos pagar margaritas do que ver aquele carrossel virar uma miniatura a cinquenta metros do chão.
— Tem um carrossel aqui? — arfei de repente. Dongmin semicerrou os olhos para mim. — Quer dizer, eu não menti. Eu nem falei nada.
— O bonitão aqui não deixou também, né? — Dongmin deu um soquinho no ombro de Jaehyun quando começamos a andar na direção das outras pessoas com uma penca de ingressos na mão, prontos para serem distribuídos. — Fica tranquilo, Yuno, eu assumo daqui.
Jaehyun olhou para ele. Ele parecia um pouco antiquado e erudito naqueles óculos de aro fino, encarando Dongmin do meu outro lado, os dois como um par de pilares gregos acima de mim, me cercando até o meu leito de morte.
Os lábios dele pareceram se enrugar em uma expressão indecifrável.
— Tudo bem. — respondeu, em voz grave. — E a Songlian? Vai sozinha agora?
O sorrisinho de Dongmin murchou.
— Quê?
— Você não disse pra ela que iriam juntos? Acho que ela só foi buscar o ingresso lá atrás.
Olhei para Dongmin. Depois olhei para Jaehyun. E fiquei me perguntando, principalmente: quem é Songlian?
A única garota que conhecia naquela viagem além de mim era Nellie, e só porque já éramos amigas e estávamos na mesma casa. Songlian, seja lá quem for, ganhou um combinado de Dongmin longe da minha presença. É uma das garotas da festa de ontem? Qual delas? A chinesa que estava conversando com ele há pouco? Em que momento ele tinha programado aquilo? E fez isso mesmo depois do que houve entre nós?
Quando me colocou na cama, ele ficou tão frustrado que foi procurar alívio com alguém que pelo menos o beijaria sem dizer nenhuma groselha junto?
Eu não diria que Dongmin pareceu exatamente feliz em se lembrar de Songlian, mas também não o impediu de falar:
— Ah… Songlian. Eu combinei, sim, com a Songlian. — ele deixou escapar um riso hesitante. — Talvez eu possa falar…
— Não. — balancei as mãos. Finalmente, a coisa toda pareceu tirar o tampão dos meus ouvidos. — Não, você combinou com ela primeiro, não tem problema. Eu vou com o Jaehyun e te encontro depois.
Dongmin me olhou de cima, diminuindo os passos quando chegamos à fila do brinquedo. As sobrancelhas grossas tinham se juntado no meio da testa, como se ele estivesse um pouco chocado com a minha resposta.
Depois, fez praticamente a mesma expressão para Jaehyun.
— A Songlian andou falando de você também na semana passada. Sabe, se você quiser…
— Não. — Jaehyun cortou. Um fio de gelo correu ao longo de todas as minhas articulações com aquele som, sabe-se lá porquê. — Ela é toda sua.
Dongmin se calou. Eu também. Até tentei dar um sorrisinho de “está tudo bem”, mas acho que minha boca estava travada.
Por fim, um gritinho feminino veio da mesma garota de cabelos longos e franja retinha de antes (que agora sabemos ser Songlian), andando rápido sob saltos cor-de-rosa e uma bolsinha brilhante. Ela parecia uma super modelo, daquelas que com certeza fazia o tipo de Eunwoo. Até eu prometeria minha nova lava-louças para ela caso pedisse.
Dongmin forçou a cabeça a assentir e olhou para nós dois.
— Beleza. A gente se vê lá em cima. Ou aqui embaixo.
E sorriu lindamente como seus personagens de TV, mas estava estalando um osso do pescoço quando se afastou de nós.
Bufei. Dei as costas de propósito para não precisar vê-lo interagir com a Barbie da China. Tinha uma queimação estúpida dentro de mim, um sentimento frustrante que não me adiantava como eu deveria agir ou o que deveria esperar dele. Não queria exatamente que ele me deixasse solta para me divertir por aí sem sua companhia, ao mesmo tempo que não queria parecer uma desesperada e pedir para ele ficar comigo o tempo todo. Meu Deus, como isso era difícil!
Acabei olhando para o lado e vendo Jaehyun. Ele já estava olhando para mim, o que significa que viu minhas caras e bocas de garota desapontada e isso me fez ter vontade de virar o cesto de lixo em mim e me tornar parte do seu conteúdo.
Limpei a garganta duas vezes.
— Desculpa você ter que fazer isso. — murmurei, cruzando os braços e encarando aquela coisa grande de metal.
Jaehyun não disse nada por alguns segundos arrastados, e trocou o peso das pernas duas vezes.
— Não precisa ter medo. Só fecha os olhos e tenta se imaginar em outro lugar.
— Que tipo de lugar? Terra da Moranguinho?
— Eu ia sugerir algum sem perigo de acidose metabólica, mas esse também serve.
Comprimi os lábios.
— Vou imaginar o McDonald’s de Yongsan-gu. Lá tem uma piscina de bolinhas que nem é exclusiva das crianças, e uma fonte com peixinhos artificiais que fazem as pessoas acharem que é de verdade. Mas nenhum peixe é rosa-choque. Como as pessoas acreditam nisso? — gesticulei exageradamente com as mãos. Olhei para ele de novo. — Foi mal, tô nervosa. E acho que pensar em comida ou lugares que vendem comida não é a melhor solução pra agora.
Mesmo com os óculos e o rosto sempre escondido atrás de qualquer coisa que fornecesse sombra o suficiente, eu sabia que ele estava sorrindo. Ou fazendo um esforço monumental para não fazer isso. Mas as covinhas apareceram, e logo sumiram quando ele desviou os olhos.
— É, você vai se sair bem, .
A fila começou a avançar, chamando a nova leva de passageiros que ocupariam mais uma rodada da montanha-russa. As pessoas passaram e esbarraram no meu ombro. Percebi que parei de andar por um segundo, girando o pescoço rápido para Jaehyun como se ele tivesse me dado um soco na costela.
Mas não. Ele só disse o meu nome. E, mesmo assim, pareceu que disse muito, muito mais que isso.
Balancei a cabeça e me recompus, voltando a seguir em frente. O nervosismo estava me deixando maluca.
Foi um processo apertado e barulhento até chegarmos na área de embarque. O brinquedo cheirava a gasolina e ferro, mas parecia estar em boas condições. As curvas horrendas que se cruzavam umas com as outras acima da minha cabeça fizeram a cor fugir do meu rosto. Quando falei, minha voz era fraca, porém ácida:
— Espero que Yugyeom sente na frente. — subi. — Se der alguma coisa errada, ele que sofra as consequências.
Jaehyun subiu logo atrás de mim.
— Tomara que sim.
Dei um risinho. Ele parecia estar me apoiando. Eu ia precisar disso quando provavelmente caísse no choro lá em cima.
Nellie me mandou um beijo no ar antes de se acomodar ao lado de Mingyu. Dongmin se sentou a dois gabinetes de distância atrás de mim, tendo o pulso puxado pela Barbie, que falava sem parar como se fosse a secretária do meu chefe, sempre tendo zilhões de comentários a fazer sobre a cor do céu e a textura do café. Ignorei meu peito farfalhando e não quis saber se ele estava olhando para mim. Aceitei meu destino e senti a superfície suave da mão de Jaehyun nas minhas costas, me conduzindo para dentro daquele pesadelo.
Aquilo me acalmou. Ele era muito maior do que eu, então se algo acontecesse, eu poderia me segurar nele, mesmo que ele fosse odiar isso.
Nos sentamos no banco duplo e comecei a mexer nos cintos e apetrechos, logo antes do operador do brinquedo vir verificar de um jeito bem ríspido se estávamos seguros. Quando ele saiu, Jaehyun fez uma vistoria mais completa, avaliando meus cintos duas vezes. O espaço ali atrás era pequeno e apertado, me dando a certeza de que não tínhamos mais idade para essas coisas, mas toda aquela lata-velha fazia parte de um cenário familiar e desgastado pelo tempo no cérebro de qualquer um acima dos 20 anos, trazendo uma nostalgia irresistível.
Só que agora nós crescemos e meus joelhos se apertavam na coxa de Jaehyun, enquanto os joelhos dele se achatavam contra a traseira do banco vizinho, e decidi olhar para eles como um jogo mental contra o pânico; ter um ponto fixo para não soltar tudo para fora de imediato.
Ele me encarou rapidamente e eu realmente tentei pensar em outras coisas. Mapas amassados, folhas impressas do escritório, o diário que eu sempre quis ter, lanternas, varas de pescar, os joelhos de Jeong Jaehyun…
O brinquedo deu um tranco, anunciando a partida, me tirando do meio da bagunça da minha mente. Fechei os olhos com força e não me importei se já estava sendo observada pelos outros e com certeza sendo alvo da gravação de Yugyeom. Instantaneamente, lembrei de um momento feliz e lento, como eu e Dongmin pedindo pizza no meu apartamento, apesar de que pizza não era a melhor coisa a se pensar agora, e de qualquer forma a lembrança se dissipou junto às outras assim que aquela coisa começou a se mexer.
Durante todo o percurso, parecia que tinham batido meu cérebro no liquidificador e jogado nas profundezas do Tártaro. Devo ter gritado uma ou duas vezes (ou mais), mas eu não me ouvia. Os gritos vinham de todos os lados, e se aquela risada alta que me lembrei de captar com meus ouvidos totalmente atentos fosse de Yugyeom, eu jurava que pularia em seu pescoço assim que recuperasse meus sentidos lá embaixo.
Tentei abrir os olhos alguma hora para que eu desse pelo menos uma imagem para o pavor, mas a vertigem me tomou de tal forma que um berro saiu pela minha garganta assim que o compartimento se preparava para uma descida rasante. Levei uma das mãos ao rosto, porque a outra foi segurada bruscamente, o que me deixou aliviada por me lembrar que não estava sozinha.
A atmosfera não era nada mágica. Na primeira curva, o medo foi tão grande que cravei as unhas na camiseta de Jaehyun e afundei o rosto em algum lugar perto dele, temendo que o maior pesadelo de um acrofóbico se tornasse real: a coisa toda de metal despencar e eu sair voando a centenas de metros do chão.
Possivelmente, o peito de Jaehyun não era o melhor lugar para acalmar minha angústia, mas era a coisa mais sólida em que eu poderia tocar até que tudo acabasse. E, por algum raio de motivo maluco e confuso, ao chegar mais perto dele, senti seu cheiro quase que completamente e uma fagulha se acendeu no meu cérebro e me levou de volta para a noite passada, onde eu abracei Dongmin e senti o mesmo cheiro…
Bom, eles eram amigos, afinal. Os dois moravam em apartamentos próximos há praticamente 8 anos, e se conheciam desde adolescentes. Era lógico que compartilhavam bem mais do que a mesma idade.
Parei de pensar nisso. Só queria que tudo acabasse logo.
E aí acabou.
Quando senti tudo parando de novo, soltei de Jaehyun e engoli em seco, constrangida, me encolhendo o tanto que dava para se encolher naquele espaço minúsculo. Eu tive que pensar em algo para me distrair e tinha conseguido, mesmo que não estivesse absolutamente certa de que esse algo precisava envolver tocar outra pessoa daquele jeito.
— Desculpa. — falei, prendendo uma mão na outra. Precisaria passar os próximos dois anos fugindo dele até esquecer que essa vergonha aconteceu, o que não seria nada difícil, considerando a pouca frequência com que eu o via.
Ele apenas balançou a cabeça, o maxilar cerrado e o rosto sem os óculos com uma estranha cor avermelhada quase desbotada pelo sol. Jaehyun desatou seus cintos antes de me ajudar com os meus, sem olhar para mim. Senti aquele cheiro de novo, um lance meio: “acabei de tomar banho, mesmo tendo acabado de sair da academia”.
Era um cheiro muito bom; esse perfume devia estar popular no mercado.
Estava pronta para me levantar quando notei um brilhinho raso por baixo de seu boné, e um movimento pequeno no seu ombro.
Entendi tudo.
— Você está rindo. — falei.
— Não estou rindo. — ele respondeu imediatamente, soltando a última fivela, mexendo os ombros para afastar a vontade de gargalhar.
Eu mesma ri daquela tentativa, um pouco chocada ao mesmo tempo que queria enfiar um palito do algodão doce na minha córnea.
— Pode rir, vá. — me levantei finalmente. Uma tontura me fez segurar discretamente no aro do banco da frente e Jaehyun se levantou, pondo uma das mãos em meu ombro.
— Tá tudo bem? Deu tudo certo?
— Claro. Eu e minha conta bancária sobrevivemos. — dei de ombros, começando a descer de volta para a terra firme.
Encontrei o celular de Yugyeom apontado para o meu rosto logo quando coloquei os pés no chão.
— Afastem-se, usuários da Nike! se aproxima com toda a sua microbiota recheada de café da manhã do Mingyu. Vamos, , mostra pra gente o seu conjuntinho de vermes…
Grunhi, ouvindo as risadas ao redor enquanto corria para acertá-lo com meu chute. Ele e suas pernas odiosamente longas foram mais rápidas, rindo como um idiota enquanto virava o celular para pegar cada ângulo meu. Sério, tinha alguma coisa muito errada com Kim Yugyeom, e eu provaria isso quando o pegasse.
Mas no fim, eu estava rindo também, porque isso não era bem uma escolha no fim das contas. A partir do momento em que eu estivesse no mesmo ambiente que aqueles caras, mesmo que fosse constantemente e pavorosamente humilhada, eu estaria rindo de qualquer coisa.
E é claro que não consegui alcançar Yugyeom.
Quando a noite caiu, eu já estava em um campo verde, que se estendia em uma ladeira até as árvores.
Mais adiante, existiam umas montanhas muito altas, mais altas do que as que já estávamos, e o mar podia ser visto aqui de cima, escuro e impenetrável. Nellie havia dito algo sobre o lugar ser o resort mais caro da Ilha de Jeju, bem no topo do declive, iluminado e privativo.
Mas nem daqui de cima eu consegui me livrar da areia. Não que ela me incomodasse em condições normais. A coisa era que Nellie havia me dado sandálias caras e altamente frágeis, que eu insisti que não deveriam ser usadas na praia, mas ela insistiu que sim, acrescentando o argumento de que com elas, eu saberia sair por cima de qualquer situação (o que com certeza não iria acontecer se eu caísse como uma jaca primeiro).
Considerando esse cenário sempre provável, eu já estava devidamente descalça.
A brisa do mar corria em meus ouvidos, assim como as conversas no centro do espaço. O cheiro de cerveja com soju me lembrava de onde eu estava e a cantoria só servia para reforçar com quem. E isso devia estar sendo motivo de sobra para que eu me sentisse nada menos que empolgada e comunicativa, mas não era isso que estava acontecendo.
Aparentemente, me confessar para Dongmin logo no primeiro dia tinha sido a pior ideia que tive em anos. A bebida azul de Yugyeom não chegou nem perto disso. Eu já tinha parado de pensar naquele líquido duvidoso, mas não conseguia parar de pensar no beijo mais perfeito que já me aconteceu e na incerteza se ele tinha significado algo ou não (e se eu iria ganhar um outro, é claro).
Isso estava minando o meu clima para festas. Toda a minha energia tinha sido gasta no parque de diversões, tanto indo a brinquedos aleatórios, quanto esperando ansiosamente qualquer contato de Dongmin, enquanto ele continuava sorrindo e fazendo piadinhas com Songlian. Nellie me ajudou a escolher roupas bonitas para a programação da noite, junto aos sapatos e os brincos brilhantes, para continuar na mesma. Eu não fazia ideia do que esperar. A magia que eu esperei ser o dia de hoje não estava acontecendo.
Cheguei a me perguntar se tudo não tinha sido realmente coisa da minha cabeça e agora ele estava tão arrependido que, como uma solução para não tornar o clima geral ruim, decidiu fingir que nada aconteceu, cortando qualquer oportunidade que tivéssemos para falar do assunto.
Ótimo. Que ótimo. A revista teen não me avisou sobre isso.
Não era mais um segredo as doses que eu tinha tomado desde que cheguei. Pareceu mais fácil para mim sentar e jogar conversa fora com o barman, que cedeu drinks coloridos e fortes enquanto contava sobre a clientela, do que agir como se eu não tivesse um bolo entalado na garganta. Não tinha conseguido contar nada para Nellie ainda, e duvidava muito que conseguiria agora, no meio da balada de “Long Train Runnin’” e debaixo de toda aquela luz azul que batia nas flores brancas que ela tinha prendido no meu cabelo.
Por favor, me diga que Dongmin só não quer dar a sua opinião sobre ontem e não que o ontem não existiu de fato. Acho que pensei nisso olhando para um pedaço de morango que flutuava na vodka.
Antes que meu coração doesse mais pelo sofrimento antecipado, senti a taça pequena escapar de minhas mãos quando Nellie me empurrou uma garrafa de água pela bancada, erguendo as sobrancelhas em seguida.
— Até quando vai ficar parada aqui? Vamos dançar! — ela se sentou ao meu lado, e estava tão bonita com aquele colar de flores que serviria para ser a garota propaganda do cartão postal das Maldivas. — Não sem antes lotar seu organismo com essa água, é claro. Esse piso não pareceu tão escorregadio no início, mas já vi uns dois quase quebrando o cóccix depois de tentarem dançar a Macarena.
Revirei os olhos e abri a garrafa, sem qualquer interesse em lutar contra. Nellie bufou e parou atrás de mim, pondo as mãos nos meus ombros e iniciando uma massagem desengonçada.
— É sério, você precisa me contar o que aconteceu. — ela abaixou até falar em meu ouvido. — Ele te rejeitou? Foi um babaca? Deu a entender que é capaz de abandonar um cachorrinho fofo em alguma fábrica ou armazém mal assombrado no vale?
— Não. — respondi, suspirando, sentindo a batida da música praticamente nos meus pés. Larguei a garrafa e me levantei. — Eu não sei. Ainda não conversamos, se posso dizer isso.
— Como assim? Vi vocês se falando no parque um monte de vezes.
— Estávamos falando sobre salsicha empanada, Nellie. No máximo, dos pretzels de baunilha da barraquinha. Ele não se desgrudou daquela… — engoli o termo “Barbie Tokidoki da Amazon”.
— Achei ela com muito mais cara de Musa, minha Winx favorita.
— Isso foi um elogio!
— Ah, desculpa. Ok, ela parece a Barbie plebeia. O cisne de O Lago dos Cisnes. — Nellie tentou. Eu a fuzilei com os olhos mesmo assim. — Beleza, eu não consigo pensar em ofensas pra uma garota linda agora. Podemos voltar a você e Dongmin não falando sobre o que precisam falar?
— Não é tão fácil assim. Eu não… — parei, sem saber o que responder. — Eu não sei como, mas vou tentar falar com ele. Hoje.
Nellie assentiu e, então, Jungkook se aproximou de nós duas aos tropeços, passando os braços pelos nossos ombros e falando alto o suficiente para que fosse ensurdecedor.
— Ei, vocês não vão dançar, é isso mesmo? Eu e os caras nos oferecemos pra ensinar as coreografias, suas mal-agradecidas. Cadê o senso de equipe de vocês? — disse ele e só consegui rir. Talvez eu não tenha bebido o suficiente, mas havia uma quantidade significativa de álcool dentro de mim que era muito capaz de demolir minha glicose. Olhei para Nellie, que apenas deu de ombros e nos levantamos, deixando nosso amigo bêbado nos guiar para a pista de dança.
O colar floral de Jungkook estava torto e, não muito tempo depois, pisoteado no chão. A gola de sua camisa estampada grudava na pele pelo suor e eu ria sem parar com os passos de dança mal executados que ele insistia em fazer na minha frente. O cara era um bêbado engraçado e extrovertido, duas coisas que só conseguia fazer com muito álcool no sangue, já que a sua sobriedade trazia uma carranca séria e algumas vezes aborrecida na maior parte do tempo. Em resumo: ele normalmente era um pouco assustador com suas roupas e botas pretas, mas naquele momento e naquela viagem, fez meus problemas serem esquecidos por um tempo.
Quando ele de repente me pressionou contra seu corpo em alguma dança que (talvez?) precisasse disso, olhei de relance para o lado até topar com Dongmin, que estava sentado em alguma poltrona na frente do pequeno bar enquanto olhava fixamente para minha dança atrapalhada com o Golden Maknae. Meu companheiro cantava trechos de “La Grange”, nos obrigando a nos mexer intensamente, e em nenhum momento percebeu meu sorriso diminuindo.
A mão de Dongmin estava muito bem fechada em torno da garrafa de vidro da cerveja. A minha não estava muito diferente, mesmo que estivesse apertando o tecido da camiseta de Jungkook.
A troca de olhares foi breve. Logo, Nellie disse algo para JK, que logo olhou para trás ao ouvir alguém chamando seu nome, e o que ele disse depois para mim foi irreconhecível até se afastar e se juntar a Mingyu perto do bar. Bufei, ainda rindo, acompanhando Nellie até uma das mesas e agradeci pelo clima fresco da maresia, batendo com força nas gotículas de suor da minha nuca. Quando me sentei, as sobrancelhas franzidas dela e a cabeça inclinada para Eunwoo na poltrona perguntavam: O que isso significa?, e meus ombros levantados responderam: Eu não sei, me diga você.
Ela revirou os olhos e eu suspirei, olhando para a frente de novo. Topei com Jaehyun, que conversava animadamente — ou tão animado quanto Jeong Jaehyun poderia parecer — com dois caras que eu não conhecia. Tinha um cigarro entre seus dedos, queimando de leve mesmo com um pouco da ventania que vinha do mar. Ele estava com suas inseparáveis calças cargo e uma jaqueta por cima de uma camiseta off-white do Kiss. Fiquei impressionada por um momento em como tudo caía bem nele: desde o cabelo voando até o cigarro, compondo minuciosamente uma imagem de um cara normal em uma conversa normal, mas que ainda assim, não era exatamente normal.
Não gostava de pensar assim. Tinha alguma coisa nele que era… diferente. Eu sempre soube disso de algum jeito, mas achava que era porque ele era intimidante e muito fechado a novas aquisições do seu grupo. Mas a verdade era que ele não me passava nada, até quando estava rindo e se divertindo com um script memorizado na cabeça na frente da câmera com os outros membros do seu grupo.
Não sei por quantos vergonhosos minutos fiquei olhando para ele até que ele reparasse em mim, bem na hora em que tragava mais um pouco do cigarro. E eu não acredito como pude ser capaz de achar isso sexy.
Desviei os olhos na mesma hora, piscando as pálpebras igual asa de passarinho, e limpei a garganta. Que sensação estranha. Talvez a vodka, na verdade, fosse rum com teor alcóolico de 90% em uma garrafa diferente.
— Hum… essa música é legal, né? — falei a primeira coisa que veio na minha cabeça. Nellie parou de mexer no celular e prestou atenção.
— É Lou Reed. O cantor favorito da minha mãe.
— Achei que o cantor favorito dela fosse o seu pai.
— O cantor favorito de verdade. Você nunca foi casada, né?
— Bom, nem você. — dei de ombros.
— Mas já conheço algumas regras dessa coisa toda quando minha hora chegar. Por exemplo: você acha mesmo que o Mingyu é o cara mais lindo que eu já beijei?
Semicerrei os olhos.
— Quando você o beijou pela primeira vez, sim, você disse isso.
Foi a vez de Nellie piscar os olhos rápidos e entreabrir a boca.
— Ah, é verdade. Ele é mesmo o cara mais lindo de todos.
Revirei os olhos.
— Mas não é o mais alto.
— Não mesmo. Teve o atleta de halterofilismo que chegou na cidade com aquele sonho maluco de colocar 15 ml de silicone pra ficar melhor nas fotos do campeonato e tinha um Camaro ridículo. Nunca vi 1,94 de altura tão desperdiçados em uma pessoa.
— Você disse que ele comprou o prédio ao lado do seu com dinheiro vivo.
— Bom, eu disse que ele era bizarro, não que tinha perdido o campeonato.
Segurei uma risada. Tentei me conter, mas meus olhos estavam levantando de novo, olhando para a frente, captando aquela redoma de fumaça que envolvia Jaehyun e os outros.
Forcei minha atenção de volta.
— Então, você reparou… nesse lugar? — limpei a garganta de novo. Ela estava ficando seca muito fácil. — Como ele é grande e… bem aberto, até. Nem imagino quem tenha comprado ele. — Nellie vincou a testa toda, me olhando com aquele jeito de: “do que você tá falando?” — Ou quem compre cigarros pra fumar nele. Como alguém consegue fumar aqui? Olha o tanto de vento.
Oficialmente: estava bêbada. Não sabia mais o que eu estava falando. Nellie pensou a mesma coisa, porque ergueu a cabeça para o alto para olhar algo atrás dos meus ombros, direto para Dongmin lá perto do bar.
— O seu gatinho não tá fumando agora. E como você só liga se ele… O que você tá olhando?
Merda.
Nellie girou o pescoço para trás tão rápido que quase tive vontade de puxar de volta pelo ombro.
— Você tá falando do Jaehyun? — ela semicerrou os olhos, confusa.
— Claro que não.
— Você tava olhando pra ele.
— Claro que não.
— , você tava olhando pra ele.
— Eu não. — teimei. Nellie cruzou os braços e ficou olhando para mim da sua posição de inquisidora, e no fundo eu sabia que, por mais assustadora que fosse, ela era capaz de ficar daquele jeito a noite inteira. Bufei. — É que eu preciso olhar pra algum lugar que não seja para o você-sabe-quem, e você começou a ser engolida pelo TikTok e ele estava na minha frente, e… meu Deus, desde quando ele fuma?
— Sei lá. Sempre?
— Mas eu achava que… — parei. Não fazia ideia do que eu achava. O que eu poderia achar? — Ele parecia ser…
— Ser o quê, ?
— Não sei. O irmão mais velho. Tipo o Anthony Bridgerton. — dei de ombros.
Nellie abriu a boca por um momento antes de soltar uma risada alta, agora largando o celular de vez.
— Anthony Bridgerton? Você pirou. — ela pegou o copo de bebida da mesinha. — Jeong Jaehyun pode até ter nascido primeiro do que os outros manézinhos por aqui, mas ele com certeza não está no nível do Anthony. Ou o Anthony não está no nível dele. Vai saber. Tudo depende do que você acha de um homem que come umas três mulheres por semana, mas sempre volta pra família no fim do dia.
— Não é um bom partido.
— Então esqueça o Anthony Bridgerton. Aquele ali pega bem mais mulher que isso.
Nellie voltou a mexer no celular, enquanto eu fiquei… parada. Olhando pra frente. Mirando Jaehyun de novo, como se eu precisasse encaixar sua imagem naquela nova informação.
Eu sabia que aquele assunto não era meu lugar de fala. Eu não conhecia nem ⅓ do cara, não sabia de uma única informação irrisória como a cor favorita dele ou a profissão dos seus pais, mas algumas coisas não batiam com toda aquela postura, aura, elegância, ou seja lá como esses atributos podiam se combinar em uma pessoa só.
Mas não gostei da forma como meu estômago reagiu quando meu cérebro tentou imaginar ele beijando alguém. Pegando. Usando aquelas mãos pálidas com veias aparentes. Um embrulho horrível de curiosidade.
Na mesma hora, ele virou de novo e topou os olhos nos meus, parando a frase que estava dizendo no meio.
— Ei, para de olhar pra ele. — Nellie foi a pessoa que me deu um chutinho na canela, me chamando de novo. — Tá parecendo uma psicopata. Qual é o problema?
— Nenhum. — balancei a cabeça. Terminei a minha bebida. — Eu só quero me distrair. E já que Dongmin…
Nellie reluziu em um sorriso.
— Perfeito. Tá se distraindo flertando com um cara bonito na frente dele. Por que não pensei nisso antes?
— Hã? — franzi o cenho. — Não! Tá doida? Não tô flertando com ninguém.
— Se você fosse a baleia bíblica de Jonas, já teria engolido o gato bem ali. — Nellie deu de ombros. Minha bochecha pegou fogo em um instante. — Ah, para com isso, Irmã Deloris. Você sabe que ele é gato.
— O que isso tem a ver?
— Tem o Eunwoo. Já pensou? Você e o Jaehyun poderiam ficar mais próximos, você daria um jeito de usar essa reboladinha que você sempre faz quando anda, pesquisaria uns filmes bons pra terem assunto, entraria no carro dele e dariam uma volta pelo pôr-do-sol até o galã ali atrás se desesperar pensando que você tá em outra…
— Nellie! — arfei, apavorada. Não estava acreditando que ela estava dizendo aquelas coisas! — Pelo amor de Deus, você tá se ouvindo?
— O tanto que Walk On the Wild Side tocando está me permitindo, sim.
— Você tá dizendo pra eu… eu enganar…
— Não seria enganar.
— Como isso não é enganar?
— Eu não tô dizendo pra você fingir um namoro falso com ele, ! Isso sim seria enganar e provavelmente também seria a coisa mais constrangedora que você faria, e olha que você já fez muitas, mas a questão aqui é o ciúme. Só isso. Vamos embora daqui a dois dias e você não pode passar esse tempo todo sem nenhuma diversão. E ver um homem como Cha Eunwoo perdendo a compostura vai ser com certeza a minha e a sua maior diversão.
Engoli em seco. Minha garganta estava queimando, aquela bebida não devia estar no cardápio de lugar nenhum do planeta e minha cabeça estava borbulhando de coisas. De imagens. De desejos. De efeitos pirotécnicos de circo.
— Você ficou doida. — foi tudo que consegui dizer.
Nellie riu com perplexidade.
— E você tá perdendo seu tempo. Qual é, acorda, . Algumas respostas têm que ser tiradas à força. — ela gesticulou com o queixo para Dongmin, em algum lugar atrás das minhas costas. — E você acha mesmo que Jeong Jaehyun vai se importar com isso? É só mais um beijo aleatório de uma viagem que ele vai dar na vida. Os motivos não importam.
— Quem está falando de beijo? — arrepiei de repente. Meu corpo inteiro estava coberto de folículos protuberantes e abertos.
— Bom, se o Dongmin e a sua rejeição tornarem a sua experiência ruim no seu primeiro Chuseok, as coisas ainda podem ser salvas. Beija o Jaehyun e pronto, lembrança imaculada.
Nellie bebeu mais um pouco, dando aquele sorriso aberto de gênia do mal, a própria Cersei Lannister arquitetando mais um plano brilhante que destruiria a cidade, mas que salvaria outra maior. Essa era a lógica de Nellie. No outono depois que nos tornamos amigas, fomos ver Jogos Vorazes em uma reexibição no cinema e ela defendeu o presidente Snow com unha e dentes. “Imagina só se você ajuda uma velhinha a atravessar a rua e, do outro lado, ela senta a bengala na sua barriga? Dá vontade de jogá-la na faixa de novo.”
Ok, ela era assustadora, mesmo que ladrasse mais do que mordesse.
Só que o conteúdo da cabeça de Nellie tinha me assustado de verdade agora.
— Você… meu Deus, Nellie. Essa ideia é uma estupidez. — grunhi, trincando os dentes, o corpo todo projetado para a frente, tentando sussurrar, como se fosse possível alguém nos ouvir no meio do caos sonoro. — Eu não vou beijar o Jaehyun.
— Por que não?
— Porque eu não quero! Isso não tá certo, você sabe de quem eu gosto. E ele também… — automaticamente, olhei para Jaehyun de novo, mas desviei no mesmo instante. — Ele não vai querer.
— Por que ele não iria querer?
— Porque ele não gosta de mim.
— Você quer que ele goste de você?
— Não, você entendeu. Ele não gosta de mim como pessoa, nós não somos amigos, mal somos colegas. Ele nunca fala comigo.
— Achei que estavam conversando ontem na festa. — ela franziu a testa. — E ele foi com você hoje na montanha-russa.
— A educação funciona desse jeito, Nellie.
Ela revirou os olhos.
— Acho que você tá maluca porque em todos esses anos, eu nunca vi o querido Yuno ali odiar nem mesmo o CEO da própria agência, quanto mais uma garota que ele mal vê. Mas se prefere pensar assim, ainda é uma vantagem: se você não significa nada pra ele e nem ele pra você, bota a mão na massa e aproveita. Ninguém vai se importar com isso depois.
— Nellie…
— Ele nem vai lembrar no próximo feriado. Com certeza, vai estar saindo com uma atriz famosa até lá de novo. Soube que a última era a Song Hye Kyo. Ele gosta mesmo das experientes.
— Nellie…
— É um plano brilhante, .
— Nel-
— Oi.
Estiquei o copo inteiro para trás na poltrona, prendendo a respiração quando Jaehyun apareceu às costas do cabelo loiro e cheio de Nellie, segurando uma garrafa de água gelada enquanto olhava para mim.
Nellie virou a cabeça devagar, abrindo um sorriso tão verdadeiro, como se tivesse certeza absoluta de que ele não tinha ouvido nada. E como poderia com toda aquela música?
— E aí, Jeong? Linda a sua camisa. Onde comprou? — ela encarou com olhinhos brilhantes a estampa do Kiss.
— Em algum lugar que não tinha a do Elton John. Parece que as do Kiss sempre sobram.
— É porque Elton John e Rocket Man são coisas de menininha.
— E o Kiss não é coisa de ninguém, pelo visto.
Nellie fechou a cara por um instante antes de começar a rir, balançando a cabeça. Ela sabia que defender seu gosto musical rebuscado e extremamente nichado era coisa que só conseguiria com Mingyu, com ainda muitas ressalvas.
— Como você é engraçado. É pra mim? — ela apontou para a garrafa na mão dele.
Jaehyun não respondeu, mas olhou para mim do outro lado. Nellie seguiu seu olhar.
Meu estômago embrulhou. Não pelo olhar dele, mas pelo dela, cheio de malícia, acompanhada de um pulinho para fora da poltrona.
— Beleza, saquei. Que tal você fazer dupla com esse mulherão enquanto eu vou dar atenção ao meu namorado? Ele ficou de ver se tinha um karaokê por aqui pra gente.
— Boa sorte. Tomara que encontrem. — ele deu um sorrisinho meigo, divertido, mesmo que desse para captar toda a ironia da sua frase.
Quase me fez sorrir também, se eu não estivesse tão zonza de repente.
Nellie deu uma olhada de soslaio para mim antes de saltitar para longe de nós e se perder na pequena multidão.
Fiquei parada. Congelada. Como se Jaehyun de repente fosse o Clint Eastwood versão faroeste apontando uma pistola para o meu rosto.
Mas ele só estava estendendo a garrafa de água.
— Parece que você precisa de uma dessas.
Parece que preciso? De novo aquele papo?
Relaxei. Não tinha motivo para eu estar nervosa.
— Obrigada. — aceitei a garrafa. Eu não estava bêbada, mas alguma coisa na minha cara devia estar levando as pessoas a pensarem que sim, então bebi um monte de goles. Era por causa do papo absurdo de Nellie, com certeza. Eu normalmente tinha reações exageradas quando ouvia absurdos.
Pensei que ele ia embora. Assim como pensei que ele também iria embora depois de me entregar a pulseira ontem, mas Jaehyun ficou parado ali, a boca entreaberta, os ombros meio rígidos, me encarando de cima, a expressão difícil de decifrar.
Nunca conseguia saber o que ele queria quando me olhava. No verão do ano passado, quando Eunwoo e seu grupo lançaram um álbum e chamaram todos para o concerto de encerramento, ele tinha passado metade do tempo livre caçando boas posições para tirar fotos da sua câmera analógica e a outra metade tentando decidir como sairia do meu lado sem parecer sem educação, já que foi obrigado a se sentar ali porque Nellie estava com Mingyu e Yugyeom estava na onda do vape de maçã, arrastando Jungkook para ser seu cobaia. Foram longas horas vendo o cara trincando o maxilar, trocando a posição das pernas e soltando o ar com força a cada cinco minutos, como se estivesse aborrecido.
De qualquer forma, aquilo me deixava um pouco estressada. Jaehyun não esboçava qualquer estranheza com as outras pessoas. Pelo contrário, sempre parecia feliz, sorridente, relaxado com os demais seres humanos, mas quando olhava para mim, era como se olhasse para o lixo que esqueceu de carregar para fora de casa, e agora teria que descer sete andares de escada de novo.
E Nellie ainda queria dizer que ele não sentia nem uma pontinha de aversão por mim?
Bom, com aversão ou não, sua conversa e seu cigarro com os outros caras deviam estar extremamente chatos para ele simplesmente coçar a garganta e se sentar no antigo lugar de Nellie.
Notei como ele ficava bonito debaixo daquelas luzes escuras e a camiseta em gola V descendo bem baixo no peito. Dava até para ver uma correntinha de prata balançando lá dentro, grudada no seu tórax. E os olhos dele estavam muito fixos em cima de mim. De um jeito louco, como: eu sei que o lugar é grande e tem garotas lindas aqui, mas eu ainda quero olhar pra você.
Eu pensaria isso de qualquer cara. Mas aquele era Jeong Jaehyun.
— Er… Oi.
Sem querer, torci o nariz.
— Hum… Oi.
Ele parou de novo, desviando os olhos. Talvez só quisesse se sentar em algum lugar onde não conversariam com ele, e optou pelo óbvio ali, perto de mim. Sua perna direita estava balançando um pouco.
— O que tá achando daqui? — ele perguntou finalmente, voltando a me olhar.
Pesquisa de mercado para saber se gastou bem o próprio dinheiro? Tudo bem.
— É um lugar legal. Também é bonito, apesar da areia. A decoração tá em toda parte. — gesticulei com o queixo para o chão, que estava forrado de pequenas flores artificiais de plástico amassadas por causa de todos os pés em cima delas. Mais fios metalizados de poliéster pendiam do teto como cipós de uma floresta. Tábuas lascadas formavam telheiros sobre todas as mesas, já tão gastas pelo vento e por toda a maresia que pareciam ter vindo de uma era nuclear. Era o tipo de coisa que eu com certeza iria julgar muito se ficasse sabendo do preço cobrado.
Tenho certeza que Jaehyun estava reparando nas minhas caretas típicas de: “aquilo não deve valer 700 dólares, aquilo ali é no máximo 50” que Nellie sempre dizia que eu fazia sem perceber, porque ele abriu um sorrisinho pequeno, de canto, coisa bem básica, mas que na minha frente nunca rolava.
— Então quer dizer que deu pra se divertir?
Dei de ombros.
— Considerando que Jungkook me colocou nessa de dançar, acho que dá pra dizer que sim. — respondi, e tentei me concentrar em outra coisa que não fosse… aquele olhar. — Ele disse que era uma coreografia nova e eu tentei ficar bonitinha e não fazer nada de errado, mas acho que ele vai ter uma surpresa quando tirar os sapatos amanhã.
Jaehyun riu com vontade pelo meu comentário, e de repente me incomodou o fato de ele possivelmente ter visto toda a minha destrambelhação na pista de dança. Já foi um milagre não ter sido a escolhida para escorregar no piso liso. Tenho certeza que o motivo foi meu pensamento rápido de ter tirado as sandálias.
— Ele vai entender, já deve estar acostumado com isso. — comentou ele.
— É verdade, acho que eu fui a parceira número 20. Mas vou ser inesquecível pra ele, se não for pelo hematoma no pé, vai ser pela desafinação na música do Usher.
Ri pelo nariz. Dessa vez, ele não retribuiu, apenas ficou parado, os dois antebraços agora apoiados nas coxas, fitando o meu rosto com dois glóbulos castanhos extremamente brilhantes, tão brilhantes quanto aquele globo de isopor girando no canto.
Me senti totalmente exposta. Iluminada cantinho a cantinho, nua em pêlo, ossos para fora da carne.
— É. Você vai ser inesquecível, sim.
Não soube o que responder. Achei sinceramente que não tinha um repertório para aquilo. Jaehyun estava, frequentemente, dizendo coisas que encerravam assuntos. Era como se, pelo fato de ele falar tão pouco, a hora que falava gerava uma pressão de expectativa em todo mundo, esperando sua contribuição para a sociedade. E quando ela vinha, seja o que fosse, era a palavra final.
Mas eu não sentia esse tipo de coisa. Pelo contrário, ele falava e eu queria perguntar. Queria saber porquê falou. Queria saber porque ele estava me olhando daquele jeito, porque começou com isso agora, porque nunca dizia meu nome e porque me evitava tanto como se eu fosse a precursora do furacão Sandy.
Meu Deus, eu estava mesmo bêbada.
Seja o que fosse, ele pareceu se aproximar um pouco mais dos joelhos, e dizer, com uma voz grave e imprensada, mais do que antes, tendo dificuldades para soltar:
— Olha, sei que é estranho, mas… o que foi aquilo ontem?
Pisquei. Ele pareceu ter reunido uma centelha de coragem para perguntar aquilo. E tentei não parecer tão pateta.
— Hum… o quê?
— Ontem, depois do jardim…
— Caros amigos, o que ainda estão fazendo aqui parados? — Yugyeom berrou ao nosso encontro. — Tá na hora da fogueira, caramba! Tô chamando vocês um tempão! Vem, Jaehyun, tá na hora de mostrar nossos talentos…
Yugyeom agarrou nos ombros de Jaehyun e o tirou do lugar, levando-o na direção do pequeno declive que levava de volta à praia.
Não demorou para que eu visse Nellie acenando para mim ao longe, indicando que seguíssemos os outros. Bebi o restante da água e fui.
A fogueira já estava montada e enorme, com espaços devidamente delimitados ao seu redor. Vi alguém passar com um violão e a música dar uma abaixada brusca. Imaginei imediatamente o que eles planejavam fazer.
— É isso mesmo que eu estou pensando? — perguntei para Nellie, ao alcançá-la na base da escada. A areia ainda estava quente pelo resquício do sol de mais cedo.
Ela suspirou e sorriu animada.
— Não sei o que você está pensando, mas acho que é.
Revirei os olhos e caminhei com ela até o entorno da fogueira, sentando-me ao seu lado em um tronco muito bem polido e que tirava toda a imagem “selvagem” do ato. Olhei em volta e vi que todos se acomodavam com risadas e mais bebidas, inclusive Dongmin, que se sentou bem de frente a mim do outro lado e parecia ter o riso solto enquanto conversava com Jaehyun. Ele devolveu a minha encarada e me lançou uma piscadinha animada, dizendo algo rapidinho com os lábios que absolutamente não consegui captar. Meu coração quase saltou do peito.
O violão agora estava na mão de Jaehyun, que apoiou o instrumento em cima da calça jeans enquanto tentava algumas notas e murmurava com Dongmin. Respirei fundo, sentindo o peito ser arruinado pelo aperto que senti, aceitando a lata de cerveja antes mesmo que chegasse a mim.
— Não sabia que tocava essa coisa, Jae. — disse um dos caras aleatórios, completamente chapado e grogue. — Maneiro.
Jaehyun deu apenas um sorriso de canto e soltou um som ínfimo do violão.
Ele e Jungkook discutiram um pouco em voz baixa. Eu já tinha entendido o teor da apresentação. Jungkook cantaria, porque ele adorava cantar o tempo inteiro e todos amavam a voz dele, e depois passariam a vez para quem quisesse. Eu não tinha certeza antes, mas agora pensei: Dongmin aceitaria cantar alguma coisa, um cover talvez de “Hotel California”, e eu seria descuidada e o olharia daquele jeito escrachado — aquele de “estou completamente apaixonada por você, socorro?”
Ele não era como o Jungkook (a própria Branca de Neve encantando os passarinhos), mas também não decepcionava quando soltava a voz. Na verdade, na época que cantou para mim quando estava testando diferentes tipos de acordes para uma música do seu futuro solo sem data de lançamento, achei que fosse ter um ataque cardíaco. Foi quando percebi de vez que estava sentindo algo além de amizade por ele.
Jungkook cantou Save Your Tears, o que não surpreendeu ninguém, já que ele era amante de pop moderno e estava sempre informado dos últimos lançamentos do mercado. Depois foi obrigado a cantar uma das únicas músicas que Nellie gostava e que datavam bem antes de qualquer um ali ter nascido: Stairway to Heaven. Por incrível que pareça, JK gostava dessa música, e deixou claro quando repetiu e repetiu o refrão várias vezes.
Por fim, ele riu no final e passou a palavra para Dongmin. Achei que ele não cantaria, considerando que já estava com os olhos meio baixos e um sorriso idiota no rosto, mas então, ele levantou um dedo e disse:
— Eu estava tentando criar uma coisa nos últimos meses, mas não sei se está tão bom assim. Na verdade, pode estar uma merda. Espero que todo mundo esteja podre de bêbado pra não se lembrar. — ele repuxou os lábios e seu olhar correu até mim, desviando-se no mesmo minuto. Ele gesticulou na direção do violão.
Jaehyun entregou o violão para ele e Dongmin virou para contemplar a fogueira, deslizando os dedos pelas cordas. Ele começou a cantar, no belo tom gostoso que era a sua voz:
“Você chega e o tempo desacelera,
Seu sorriso acalma minha pressa.
Seu jeito leve, tipo brisa na janela,
Faz do meu caos uma festa.
Mas eu juro que não sei dizer,
Se isso é amizade ou se é mais pra querer.
Seu toque é suave, tipo som na madrugada,
E eu me perco nessa estrada.”
A música era lenta e tinha muitas partes cortadas por um “nanana” de quem esquecia a própria letra, o que mostrava seu status de não finalizada, mas ainda assim tinha certo impacto. Seus olhos vagavam para o fogo e para o restante das pessoas, parando um pouquinho mais em mim, um detalhe quase imperceptível.
“Diz pra mim, o que você tem?
Que faz tudo girar tão bem.
Eu tento fugir, mas volto também,
Pra esse lugar onde você me tem.”
Ele estalou os dedos mais algumas vezes e parou. A uma distância, as vozes femininas gritaram. Uma garota se aproximou e se sentou ao seu lado. Ele me encarou por mais tempo e então virou-se para as vozes. Engoli em seco, balançando a cabeça e voltando ao mundo real. Isso era tudo?
O que isso queria dizer?
Quando ergui os olhos de novo, encontrei os de Jaehyun totalmente cravados em mim, daquele mesmo jeito do café da manhã. Como se ele soubesse exatamente, de alguma forma, o que eu estava pensando ao ver Dongmin cantar. Como se, por um acaso, se sentasse comigo e perguntasse, eu o contaria tudo, porque ele e sua voz mansa de professor eram capazes de persuadir até o sol a parar e lhe dizer as horas.
Nellie disparou um olhar sugestivo para mim, e eu sabia que ela estava pensando no que me disse há alguns minutos lá em cima. Ignorei isso, porque só conseguia focar na comoção da voz e dos olhos de Dongmin, tentando pescar alguma coisa escondida, uma indireta, uma mensagem que tivesse alguma relação ao dia anterior.
Só que ele tinha voltado a mergulhar na conversa alheia com a Barbie chinesa, que estava trabalhando incansavelmente pela sua atenção e aprovação (querendo acabar no lugar exato onde eu estive há 24 horas).
Levantei, ignorando o chamado de Nellie e procurando mais um drink colorido. Ele seria o bastante para me fazer pensar em outra coisa que não fossem as minhas dúvidas e a pessoa que era fonte delas, então caminhei rapidamente até a mesa pequena de madeira prostrada na areia, enquanto a multidão começava com as conversas altas e o violão voltava a soar novamente.
E então, depois de um tempo que não soube identificar quanto exatamente, a voz surgiu pelas minhas costas, desencarnada e um tanto fraca:
— Posso falar com você?
Virei rápido para trás, vendo Dongmin parado enquanto enfiava as mãos nos bolsos e tirava. Parecia nervoso. Mas Dongmin jamais ficava nervoso do meu lado. Seu negócio estava mais para rir o tempo inteiro de mim, me lembrando de uma vergonha que passei durante meses, em todas as ocasiões possíveis.
Esperava que eu ter me declarado para ele não fosse uma dessas coisas.
— É claro.
Ele assentiu e inclinou a cabeça para além das escadas da onde estávamos antes, em um espaço igualmente aberto, e mais alto. Eu tentava desesperadamente não pensar em nada, não adiantar nada, não fazer absolutamente nada até que ele começasse a falar. Talvez eu não conseguisse soltar a respiração até que isso acontecesse, mas ela já estava bem falha de qualquer jeito.
— Ô esperta, o seu copo tá rachado. — ele disse de repente quando paramos, tirando o copo de plástico da minha mão, que pingava a bebida pelo meu joelho e vestido.
— Droga… — grunhi, pensando imediatamente em Nellie e sua reação indignada quando visse o meu estrago. — Achei que esses copinhos vermelhos fossem mais resistentes. Nos filmes, eles duram a noite toda. Caramba, Nellie vai me matar, e acho que vai… — parei e mordi o lábio inferior. Dongmin estava me olhando com as sobrancelhas arqueadas. — Esquece. Vai, diz o que você quer.
Ele olhou para mim de forma profunda e confusa. Enfiou as mãos nos bolsos novamente, tentando pensar nas próximas palavras.
— Você… Ouviu a música que eu cantei lá embaixo?
Engoli em seco.
— Claro. Ela é linda.
— Não vai me perguntar por que eu não te mostrei ela antes?
— Você nem sempre me mostra suas composições. — dei de ombros. Ele riu pelo nariz.
— Porque eu nunca tenho composições. Eu não componho nada, .
— Não é o que pareceu ali.
Foi a vez dele de morder o lábio. A pontinha das minhas vértebras estremeceram.
— Eu comecei essa há um tempão. E ainda nem tá pronta, eu tive que ficar pedindo ajuda pro Jinjin, ele que manja disso, mas odeia música romântica. Ou seja, a gente quebrou a cabeça e saiu metade meu e metade dele. Começamos na primeira semana de junho, e só agora tive coragem de cantar.
— Uau. — me impressionei de verdade. — Eu não notei nada diferente. Juro. Nada que mostrasse que você estava… Sabe… — apaixonado? Inspirado? Secretamente reparando em alguém, ou querendo ainda mais a companhia desse alguém?
Meu coração estava pulando muito, não estava conseguindo pensar direito.
Dongmin continuou olhando para mim, agora com uma ruguinha entre as sobrancelhas, como se estivesse tentando formar a palavra certa.
— Que eu estava o quê? — ele se aproximou de mim, com um sorrisinho. — Qual é, , vamos lá. Não tá fazendo as perguntas certas. Não quer saber o que me inspirou a fazer isso?
Prendi o ar.
— Hum… Quero.
Ele riu. Como se nem estivesse vendo minha palidez, ou que toda aquela minha postura travada não fosse porque ele estava tão perto de mim, mas sim porque eu estava preocupada com a sua resposta. Isso era engraçado para ele.
— Adivinha só? Eu tava voltando pra casa depois de ter passado uma madrugada inteira assistindo uma maratona de Tubarão com você, e daí, na volta pra casa, passei pela rua onde fica aquela lojinha de antiguidades e olhei na vitrine. Tinha uma estátua sem cabeça de um pássaro, muito parecido com os do filme. Eu tava morrendo de sono e fiquei com medo de ter pesadelo com aquilo de novo, mas daí, quando cheguei e dormi, na verdade, eu sonhei que você era o passarinho, mas um bonitinho, porque você é bonitinha, fica tranquila. — ele deu uma piscadinha. Continuei calada. — Daí eu acordei e as coisas simplesmente… vieram. Por isso eu te dei aquele porta-tempero de passarinho, que você milagrosamente não quebrou. Porque se olhar de perto, você é tipo uma calopsitazinha, e elas são bem companheiras, e daí eu quis cantar uma música sobre isso, sobre o sentimento, com um toque de drama, é óbvio, porque eu preciso vender isso. Mas você viu como fez sentido? Até o Jinjin disse que queria tatuar um pintarroxo na barriga…
Ele riu mais alto e eu não sabia se estava conseguindo captar as coisas direito. Mal sabia se estava com a postura certa; a voz dele parecia passar por mim através de uma linha e isso explodiria no final como uma dinamite.
Ele percebeu meu silêncio e trocou o peso de uma perna a outra.
— Tá bom, olha, eu tô bêbado e não sei se as coisas estão fazendo sentido. O negócio é que eu te adoro, entendeu? Tô muito feliz que você aceitou vir passar o feriado comigo, e notei que talvez eu possa estar sendo um idiota e não te dando atenção direito, e sei que isso é vacilo, nem um chocolate galês que eu resolver te pagar depois vai resolver isso. Ontem, sabe… Ontem, eu devia ter feito melhor com você, eu devia…
Uma espécie de impulso extracorpóreo tomou conta de mim assim que captei aquela fagulha de lembrança dos olhos dele e, de uma forma imprevisível, dei um passo à frente e colei meus lábios no dele. Meu corpo agiu antes da minha mente.
Dongmin não fez um único movimento. Ele ficou ali, parado, tenso, enquanto a minha boca tomava a sua. Nos primeiros segundos, tudo foi preto ou branco total, sem resquícios lógicos ou inteligentes. Mas daí, passado o choque inicial, ele abriu a boca minimamente, muito minimamente, e uma sensação estranha me tomou; não foi o fato de ele parecer não estar retribuindo. O esquisito em tudo isso foi que… estava diferente. parecia a primeira vez.
Ele me afastou em um movimento rápido, as mãos nos meus cotovelos, o olhar de repreensão e surpresa. Fiquei congelada, sem saber como agir imediatamente.
— … — sua voz rouca saiu quase cortada. — Você ficou doida? Que merda foi essa?
Ele me largou zangado, com um leve empurrão, se afastando a dois passos de mim como se eu tivesse o atingido com uma máquina de eletrochoque.
Finalmente consegui me mexer e o encarei confusa.
— O… quê?
— Porra, você tá bêbada? — Dongmin agora arfou, passando a língua na boca. O peito dele subia e descia sem parar. — O quanto você bebeu?
— Mas… Não queria que eu fizesse isso?
— Hã? — agora ele pareceu assustado, atônito, chegando mais um pouco para trás. Agora é oficial: eu não tinha lhe jogado um eletrochoque, eu parecia ter desenvolvido uma lepra severa, bem ali, na frente dele. — Do que você tá falando?
— A música, eu pensei que… Que era isso que você queria. Por causa de ontem, quando a gente se beijou. E eu falei tudo aquilo com você… — gesticulei, nervosa, a língua embolando mais que o normal.
Ele ainda parecia estar me ouvindo falar em outro idioma.
— Ontem o quê? Enlouqueceu? Eu não te beijei ontem, eu não te beijei em dia nenhum, .
— Dongmin…
— Não, eu sei que bebi pra caralho, tá bom? Mas eu não faria isso, não com você, a gente é amigo, não rola essas coisas entre a gente. Isso aqui… — ele fez um movimento rápido e nervoso com as mãos, querendo exprimir o absurdo que sentia. — Isso aqui não. Como que você…
— Isso não tem graça, Dongmin…
— Não tem mesmo, . Olha, eu te acho bonita e inteligente pra cacete, gosto de rir com você, mas nunca tive segundas intenções com você, eu juro. E vou me sentir um merda se te fiz pensar isso, mas porra, …
Ele soltou o ar. Eu não conseguia manter o meu sob controle. Tinham rachaduras de vidro em volta de mim, a realidade se quebrando inteira.
— M-mas… Eu… A música…
— Aquilo foi só uma música, não é nada disso que você está pensando. E o resto, eu não… Minha nossa, eu não tô entendendo nada. Você… — ele bufou e balançou a cabeça. — Eu vou nessa.
E deu as costas, desaparecendo pela direção que viemos.
Fiquei parada, imóvel, me perguntando o que diabos tinha acabado de acontecer.
Domingo
11 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
11 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
Sentir o mundo desabar não era nada legal.
Causava uma série de sensações anestésicas, nenhuma em um sentido bom. Parecia literalmente que alguém tinha me dado um soco no estômago, outro na costela, e mais alguns espalhados pelo rosto — tudo que era necessário para te deixar completamente desnorteada ao fim do dia e não te fazer lembrar nem em que momento você foi parar na cama.
Mas no meu caso, infelizmente, eu me lembrava de tudo.
E o motivo de eu estar esparramada naquela cama imensa, com todos os músculos sedados e a cabeça em pane era porque tinha beijado Lee Dongmin. E ele não se lembrava disso.
Meu melhor amigo não se lembrava de ter me dado o beijo mais espetacular da minha vida.
A humilhação com certeza era um ponto de chegada inevitável para mim. É o que acontece quando se nasce com o espectro de Murphy. Você até experimenta umas coisas boas que se parecem com sorte, mas esquece de olhar as etiquetas de preço.
Ser encarada daquele jeito quando repeti a dose não foi nada bacana, ainda mais vindo dele. Eu juro, eu não era louca, e tinha plena certeza de que ele sabia disso, mas aqueles olhos de repente não estavam exibindo tanta convicção desse fato. E agora eu também passei a desconfiar um pouquinho.
Será que eu era mesmo louca? Qual seria meu próximo passo? Ajeitar uma torre de cereal na minha varanda e morar embaixo dela?
A festa no resort já tinha acabado há muito tempo, os quartos estavam devidamente ocupados com seus integrantes e eu tinha certeza absoluta de que era a única pessoa ainda de olhos abertos às 5 da manhã, repassando toda a noite anterior. E a anterior a essa também. Desejando, talvez, ter um aneurisma e só acordar em Seul daqui a oito meses.
Fantástico. Feriado dos sonhos.
Quando senti o sol no rosto, ele veio acompanhado da voz de Nellie e suas mãos sacudindo meus ombros até que eu abrisse os olhos pelo susto.
— Ai! Nellie! — gemi, virando o rosto para o outro lado, me escondendo da luz forte. — Eu ainda tô dormindo!
— Bem, isso eu sei. — ela grunhiu, e ouvi o barulho das cortinas sendo ainda mais afastadas. — Mas você já tá atrasada e ainda não me contou nada. Temos que sair daqui a pouco.
— Podem me esquecer aqui e… Espera. — desenterrei a cabeça do travesseiro, sentando-me num jato. — O que você disse?
— Que você teve uma aventura romântica em algum trecho desse paraíso e não me contou nada ainda?
— Não, não. A outra parte.
— Que vamos sair daqui a pouco? — ela franziu o cenho, confusa. Fiz uma careta de desespero.
— Por quê?! — voltei a me afundar nas cobertas, visualizando mais um dia terrível em 3D. — Por que precisamos sair hoje?
— Qual é o seu problema? — Nellie puxou as cobertas e vasculhou meu rosto de cima a baixo, com aquele mesmo olhar que eu já começava a sentir aversão: como se eu estivesse a um passo de ficar maluca de vez. — Eu te falei da praia há semanas. Hoje é dia de Hyeopjae, ela tem aquela água linda e transparente e quase não tem criança pra ficar mijando nela. Pensa só nas fotos que vamos tirar! — disse animada enquanto eu me sentava de novo, com a cara ainda mais fechada e apavorada que antes. Vendo que eu não estava retribuindo seu entusiasmo, Nellie suspirou e se sentou ao meu lado. — Qual é o drama dessa vez? São seus biquínis bregas ou a preocupação de escorregar e cair em cima de alguém de novo, igual no barco? Se for isso, desencana porque nem você consegue fazer esse tipo de espetáculo na areia, e quanto aos biquínis, eu tenho uma coleção imensa que comprei em uma liquidação daquela loja em Itaewon que respeita a boa vontade de estrangeiras que querem mostrar mais do que só o-
— Eu beijei o Dongmin.
Minha voz saiu anormalmente infantil e delicada, tão baixa e suave que Nellie precisou segurar a respiração para me ouvir e absorver a informação.
— O que você disse? — ela arqueou as sobrancelhas. Talvez estivesse pensando que eu ainda estava dormindo.
— Disse que beijei um cara. — desviei os olhos. A lembrança da noite anterior me deu mais um dos golpes violentos que vinha me dando nas últimas horas. Sem perceber, eu estava me levantando, iniciando o vai-e-vem frenético dos meus pés no piso.
— Não, não, você disse que beijou o Dongmin. — Nellie também se levantou, parando na minha frente com os olhos alarmados. — E ele é claramente um cara, tudo bem, mas que se dane, o que quero dizer é: como assim você beijou o Dongmin e não me contou?
— Eu tentei te contar. Mas não ficamos sozinhas depois do parque, e durante a festa seria impossível, e ele não estava me olhando direito, começamos a beber, você estava delirando sobre eu flertar com o Jaehyun, nada estava acontecendo, e daí ontem ele… Ele…
— Espera, você o beijou ontem na praia? Depois daquela música linda que ele claramente fez pra você?
— Argh! — grunhi, me afastando para as janelas, como se o ar inteiro daquela casa me sufocasse de repente. Se eu tivesse um desejo, gostaria de uma máquina de teletransporte. Sendo menos ambiciosa, um buraco no chão já estava de bom tamanho. Mas se tivesse alguma dessas coisas aqui, eu já teria encontrado faz tempo e não estaria sendo obrigada a matar mais um pouco da minha dignidade ao contar a história para Nellie. — Não é o que parece. Ele me beijou naquela noite, quando eu invadi o quarto dele pra fazer a droga da confissão, e aí ontem eu mesma o beijei quando ele me chamou, e então… ele simplesmente surtou. Ele nem sabia do que eu estava falando, o que eu estava fazendo, foi horrível, Nellie!
— Como é? — ela torceu ainda mais a testa, travando minha andança interminável com uma mão. — Aquele moleque tratou você mal?
— Não foi exatamente isso, Nellie. — bufei, me soltando de suas unhas. — Pareceu realmente que nenhum beijo aconteceu entre a gente, nunca. Ele estava tão chocado como se eu tivesse dito que estava grávida de um reptiliano, o que é no mínimo degradante. Até agora não tô conseguindo entender.
— Que você não tá grávida de um bicho verde e cabeçudo?
Fuzilei ela com o olhar.
— Nellie! ! — Mingyu vociferou do lado de fora, com intensas batidas na porta. Aquele cara tinha que se lembrar do tamanho daquelas mãos, ou colocaria a casa inteira abaixo. — Já estão prontas? O pessoal tá descendo!
— Estamos no meio de algo importante, Kim Mingyu! Dá pra você descer na frente?! — o berro de Nellie foi como um tsunami dentro dos meus ouvidos. Ela poderia limpar móveis empoeirados com aquela voz.
Um segundo de silêncio se passou até que ele respondesse do outro lado:
— Credo, não precisa gritar! — disse, gritando. Depois, os passos pesados no corredor se afastaram. Ele também precisava lembrar do tamanho dos pés.
Nellie revirou os olhos e voltou para mim.
— O que você acha que eu devo fazer? — perguntei em outro gemido. Eu parecia prestes a chorar igual uma criança. Ou ficar eternamente naquelas lamúrias, o que era tão humilhante quanto.
— Primeiro precisa tirar essa cara de derrotada e vestir o que eu trouxe pra você. Acredite, vou ter que vendar os olhos do Mingyu porque vai ser um colapso geral. — ela andou até a cama, pegando um pacote transparente que não reparei que estava ali e jogando-o para mim. — Depois você vai respirar e tentar esquecer essa história pelo menos nessa parte da manhã. Você e Eunwoo precisam conversar porque tudo isso tá muito mal contado e preciso ter certeza dos fatos antes de chutar aquelas bolas, mas isso não vai ser agora, me entendeu? Vista essa roupa e me deixa dar um jeito nesse cabelo e pronto, o mundo vai entrar nos eixos.
Assenti, cabisbaixa, e caminhei até o banheiro, suspirando como um cachorro abandonado. Quando me preparei para fechar a porta, uma lâmpada de epifania se acendeu em minha cabeça, e me virei de volta para o quarto rapidamente.
— Será que foi aquela coisa azul?
Nellie fez um “hum?”
— A bebida azul do Yugyeom. Sei que você não entende nada de química, e eu muito menos, mas tinha alguma coisa naquilo. Era muito gostoso, e me deu toda a coragem que eu precisava, então podia ser LSD destilado, ou um alucinógeno qualquer, eu devia perguntar pra ele…
— . — Nellie me interrompeu, com a expressão vazia. — Praia primeiro, dramas depois. Anda, vai trocar de roupa antes que Mingyu venha gritar de novo e eu precise gritar de volta. — resmunguei uma afirmação, arruinada, e voltei a dar as costas. — Ah! Mais uma coisa: se eu te ver aceitando um mísero copo de água de Kim Yugyeom de novo, eu vou ser obrigada a te despachar pra casa e castrar o pobre coitado. Estamos entendidas?
Bufei e entrei.
Corri os dedos sobre as diferentes texturas do biquíni e tive certeza que Nellie mentiu descaradamente sobre o papo da liquidação. Porque aquilo não poderia ter sido comprado por menos de 200.000 wons e isso me deixava pior ainda, já que eu claramente não estava com um pingo de auto estima para usá-lo.
Mesmo assim, deixei que ela se empolgasse e tentasse alimentar o meu ego com os elogios e encorajamento que eu sabia serem sinceros, ainda que o meu sorriso não estivesse conseguindo acompanhar.
Quando fiquei definitivamente pronta, percebi que Nellie estava certa; não adiantaria em absolutamente nada ficar repassando dezenas e dezenas de vezes a cena tenebrosa com Dongmin se eu não pudesse fazer nada para resolvê-la naquele instante, como a ansiedade corroendo meu estômago queria que eu fizesse. Só de pensar em encará-lo de novo dava vontade de vomitar. Será que ainda dava tempo de mudar de quarto?
Bom, só me restava levantar a cabeça, sorrir alegremente e curtir o dia como se minha dignidade não estivesse afundando em um pântano de areia movediça — com aquele biquíni, pelo menos ela afundaria com muito estilo —, esperando pelo momento em que eu e Dongmin conversaríamos e as coisas seriam esclarecidas. Se o erro foi meu em beijá-lo pela segunda vez — mesmo diante da cena ardente e inquestionável de suas mãos me agarrando famintas —, eu me apressaria em simplesmente me desculpar e tentar reaver a nossa amizade (e depois sairia correndo para marcar aquela consulta pendente com a minha psicóloga, levando o assunto que, no fundo, sempre achei que levaria: deu tudo errado. O que eu tenho que fazer primeiro? Queimar as fotos dele? Os casacos? As meias que ele deixou na minha secadora? Como Rachel, Monica e Phoebe fizeram mesmo naquele episódio?)
No momento em que cheguei ao pé das escadas, a base sólida de alguma coisa muito grande e muito pesada passou acima da minha cabeça, e por pouco não me pegou desprevenida e me fez afundar a cara no chão. Seria ótimo, o início de um verdadeiro dia incrível.
— Presta atenção, Yugyeom! — ouvi o grito de Jungkook enquanto eu andava para fora com o dobro de atenção.
— Não acredito que eles vão mesmo fazer isso. — agora Nellie suspirava enquanto observávamos algo que até eu, com meu histórico de Murphy e pouco conhecimento em experiências alucinantes sabiam que seria um desastre.
Eu não sei da onde tinha surgido aquele Jeep, mas era nele que os garotos empilhavam, um a um, pranchas enormes e perigosas, acompanhadas de coolers e um guarda-sol. Jungkook passou correndo ao meu lado, vestido com uma roupa colada de neoprene para mergulho, pousando a última das quatro pranchas no topo. Olhei para Nellie, com mais um daqueles olhares que diziam: “isso é sério mesmo?” e ela apenas balançou a cabeça que sim, era exatamente aquilo mesmo.
— Até que enfim desceram! Estamos saindo! — Mingyu falou, abraçado em mais um fardo de cerveja. — , você vai com o Dongmin ou…
— Eu vou com vocês! — interrompi depressa, virando a cabeça logo em seguida para ver se mais alguém tinha escutado. — Não é, Nellie? — busquei ajuda, erguendo a sobrancelha para ela.
— Claro, ela vai com a gente. — Nellie confirmou, não me deixando na mão dessa vez. Eu não esqueceria da sua traição na montanha-russa.
Mingyu apoiou a caixa na coxa e me olhou por uns instantes, como se eu de repente tivesse mudado de cor e virado a Mística dos X-Men. Não era um olhar muito animador.
Mas depois que ele abriu aquele sorriso malicioso, quase consegui prever cada palavra que saiu da boca dele:
— Belo biquíni, . Minha garota sabe mesmo o que faz. — os dois trocaram olhares cúmplices, e Mingyu jogou a chave para Nellie. — Vão entrando, só vou enfiar essas coisas no porta-malas.
Quis me encolher até virar um tatu-bola ou me dissolver no ar como fumaça. A última coisa que eu queria (e precisava) era Kim Mingyu percebendo que havia algo de errado comigo, porque ele já sabia demais dos meus segredos e tinha a fama de ser língua solta (o que só piorou depois de Nellie). Cerrei os olhos para ela em um aviso muito claro de “não fala nada, não fala na-da!” antes de caminharmos para o Camry, que estava parado no meio do caos dos garotos tagarelando ao mesmo tempo sobre a altitude das ondas, força do vento e onde comprar mais cerveja. Um momento de puro constrangimento aconteceu quando Jungkook, agora menos elétrico, virou em nossa direção e soltou um assovio que bagunçou meus ouvidos pela segunda vez no dia.
— Uau, , a maresia realmente levou toda a sua timidez embora.
É claro que com aquele trombone no lugar da boca, Jungkook chamaria a atenção de todo mundo para um único foco: eu e minhas bochechas vermelhas, combinando perfeitamente com o biquíni rosa e a saia branca. E estaria tudo bem, se aquela parte de cima não fizesse meus peitos parecerem muito maiores do que eram.
Aconteceu: o bando me olhou intrigado. Quis ser a tia Guida do Harry Potter e sair voando. Qual é, era eu! A garotinha considerada (contra a própria vontade, é claro) como a mascote da 97 line, e agora até Kim Yugyeom estava levantando o rosto do celular para me encarar como se nunca tivesse me visto?
— Fala sério… — murmurei para mim mesma, abrindo a porta de trás imediatamente e escorregando para dentro o máximo que pude. Quem quer que tivesse produzido esse biquíni, devia amar a caçada romântica de homens e mulheres, o processo de sedução e todas essas coisas que a Vogue ensinava na página 15. As propriedades estéticas daquilo não podiam ser acidentais; era uma obra de arte para acabar em um motel.
Coloquei meus óculos escuros e pensei o quão desagradável seria se eu apenas voltasse para dentro da casa. Não era como se eles fossem se divertir menos sem a minha presença. Mas bem, olhando para Dongmin rindo alegremente com Jaehyun enquanto os dois conferiam algumas bolsas no porta-malas do Kia, me fez ver que eu não tinha motivos para fazer aquilo. Se ele estava aqui, era porque se sentia confortável o suficiente para isso e que as coisas que aconteceram ontem — ou anteontem, vai saber, agora eu duvidava da minha própria sanidade — não tinham o peso suficiente para deixá-lo biruta, olhando ao redor e se perguntando se estava morando em uma caixa de vidro criada pela Matrix. Dongmin superou muito bem o meu ataque, portanto, eu poderia curtir um dia à deriva de sol forte e água salgada sem me preocupar também.
Isso é o que uma mulher empoderada diria, tenho certeza. Eu só precisava descobrir onde essa mulher estava dentro desse biquíni escandaloso.
Jaehyun se separou de Dongmin e foi ajeitar as pranchas no teto do carro, erguendo braços fortes que escapavam de uma regata branca, dando um nó preciso na lateral. Tive bastante consciência de que fiquei olhando aquilo e acompanhando cada movimento, usando isso como uma tática que me impedia de olhar o meu melhor amigo. Era muito melhor do que abaixar a cabeça e mexer no celular (já estava batido e ficaria na cara de todo mundo que eu estava querendo evitar alguma coisa; olhar para Jaehyun era uma opção bem melhor). O cabelo dele estava caído para o lado, a bermuda (cargo, é claro) caía bem no seu corpo, mesmo que fosse um traje que não caía bem em mais ninguém, e a boca entreaberta pelo esforço me fez lembrar automaticamente da conversa que tive com Nellie no resort.
Foi a única vez que pensei na noite anterior que não fosse na cena vergonhosa com Dongmin. E, mesmo que essa outra lembrança fosse tão horrível e embaraçosa quanto a primeira, ela ainda era infinitas vezes melhor só pelo fato de não ter nenhuma ação envolvida.
E nem teria. Essa ideia torta e completamente insana de beijar Jaehyun não iria acontecer. Ela não era viável de acontecer, não fazia parte da vontade dos Astros e nem do meus nervos, que já achava de bom tamanho toda a quantidade de frieza e indiferença que recebia dele. Não merecia que isso se estendesse para completo desprezo.
Mas toda essa negação começou a virar ladainha na minha cabeça a partir do momento em que ele virou a cabeça e me viu ali, por trás da janela, e parou por um momento para me cumprimentar com um inclinar da nuca, fazendo um sorrisinho simples de canto de boca virar um acontecimento inesquecível, cheio de luzes, fogos de artifício, dançarinas de jazz e tudo que fazia parte das festas do Jay Gatsby.
Foi só isso que me fez considerar por um segundo, um mísero segundo, a ideia de merda de Nellie. Imaginar um mundo colorido onde Jeong Jaehyun não me visse como chiclete grudado na sola do sapato e que nós podíamos… Beijar.
Pisquei várias vezes. Meu estômago formigou tanto que abracei meus próprios braços e me encolhi ainda mais no banco.
O vento em Hyeopjae estava exatamente como os rapazes disseram: perfeito para carregar um elefante. Mal terminamos de estacionar e a afobação em pegar as pranchas e vestir as roupas de neoprene foram maiores do que a organização inicial dos outros objetos importantes, como a churrasqueira e a tenda. Essa era a graça de se misturar com garotos: eles sempre agiam como garotos.
O único a ficar para trás foi Jaehyun, que se mostrou muito pró-ativo em fincar os pés de alumínio na areia, montar a churrasqueira e organizar o gelo dentro do cooler, que seria a primeira coisa a ser aberta assim que eles voltassem. Depois de poucos minutos, outros carros começaram a se achegar perto dos nossos, e não demorei a reconhecer as mesmas pessoas do parque, agora andando em nossa direção com ainda mais cerveja, pranchas e comida.
Em pouco tempo, uma tenda se transformou em duas e agora o dia tranquilo na praia pareceu ter se tornado mais uma confraternização, com música tocando e drinks de frutas sendo montados em cima de uma mesa improvisada. Rapidinho, já consegui ver Nellie embalar uma conversa com uma garota de cabelos azuis e a Barbie chinesa perguntar discretamente para outra “onde estava o Eunwoo?”. Fala sério.
Aproveitei minha total cara de bode para me afastar e tentar subir em um cooler vazio para amarrar a última parte do toldo de proteção. Estava realmente ventando muito, e o sol forte dificultava minha visão mesmo com os óculos escuros, o que me levou a pensar tardiamente que eu provavelmente não deveria estar fazendo o que estava fazendo.
Dito e feito: quando me preparei para dar mais uma volta na linha grossa, o cooler balançou de forma violenta, como se um par de placas tectônicas decidisse se mexer bem embaixo de mim — e só de mim — e me desequilibrei para o lado, indo de encontro à areia branca e quente.
Mas o impacto não chegou. Em vez disso, voltei ao eixo com a ajuda de braços firmes em minha cintura, que me puxaram direto para o chão.
— Deixa que eu resolvo isso. — Jaehyun subiu no cooler em meu lugar, esticando e amarrando as cordas de um jeito rápido e eficiente. Muito rápido e muito eficiente.
Em um piscar de olhos, ele finalizou e estava descendo, com o rosto plácido. Eu sabia que devia estar com a maior cara de tacho enquanto o encarava desconcertada. Sério, não tinha outro jeito de olhar.
— Er… obrigada. — murmurei, ajeitando sabe-se lá o que na minha roupa. — Eu ia conseguir, se tentasse mais um pouco.
— É, eu sei.
E pronto.
Encolhi os ombros sem notar. Sabia que eu conseguiria, mas ainda assim, preferiu não me deixar tentar.
— Estou lisonjeada pelo seu interesse em não me ver dando com a cara no chão. — soltei, sem notar como estava saindo meu tom de voz. Aos meus ouvidos estava normal, mas eu tinha ficado meio aborrecida.
Ele piscou rápido, os olhos espremidos por causa do sol.
— Não foi isso que…
— Não, tudo bem, não é ofensa, você acabou de me salvar. De novo. — tentei sorrir, mas desisti no meio do caminho. — Você parece ser bom nisso… Muito bom mesmo. Idol era a única coisa que você queria ser quando crescesse? Nada de bombeiro, astronauta, policial?
Bati os chinelos para me livrar da areia, sabendo que aquilo queimando minha bochecha não era o sol. Me senti uma idiota. Não queria descontar minhas frustrações em ninguém.
Mas antes que eu pedisse desculpas ou simplesmente pedisse licença e fosse para bem longe de Jaehyun, ele riu. Foi um riso raso e rouco, um que eu não esperava receber.
Também não esperava achá-lo tão bonito quando aconteceu. E dessa vez eu estava completamente sóbria.
— Ao que parece, ser médico e advogado andam meio fora de moda. — falou.
— É que eles não estão mais no topo da cadeia alimentar das profissões. — murmurei.
— Concordo. Mas nunca foram minhas opções.
— Então, o que era?
Tive vontade de me dar um tapa. Jaehyun apenas ficou me olhando.
— Você não vai querer saber o que eu queria ser antes dos palcos. — ele disse com confiança e, se eu me permitisse pensar demais, com mistério. — Acho que a Nellie acabou de fazer uma bebida de duas cores.
Ele gesticulou para baixo da tenda e se foi, sem me dar resposta. Assenti, seguindo-o até a mesa mais próxima, onde ele puxou duas cervejas de dentro de outra bolsa térmica em cima dela, passando uma para mim e se preparando para ir dar uma de servente em qualquer outra coisa que precisasse de ajuda, até mesmo nos canteiros de flores naturais da própria praia.
Mas eu ainda estava curiosa.
— Tem algum motivo pra você não ter entrado nessa com os outros? — perguntei antes que ele saísse, inclinando minha cabeça para o mar, onde o restante deles se encontrava em um looping infinito de ficar de pé sob a prancha por seis segundos antes de serem derrubados pelas ondas como copos de plástico.
Jaehyun encarou a cena e abriu mais um sorriso de canto.
— Na verdade…
— Aish! — um grito veio de longe e de perto ao mesmo tempo. Virei a cabeça para o lado até encontrar um Jungkook lutando contra as ondas pequenas até chegar na areia, chutando a prancha com um olhar raivoso e cansado, pegando-a logo em seguida e fincando uma de suas extremidades na areia perto da tenda. Sua cara não estava nada boa. — De quem foi essa ideia ridícula de surfar? Olha pra mim! Eu sou bonito demais pra isso.
Segurei uma risada enquanto ele ia direto para a bolsa térmica.
— Uau. Você sendo o primeiro a sair? Achei que tinha sido o líder daquela viagem do bungee jump. — comentei, as sobrancelhas arqueadas.
— Ele geralmente é muito corajoso e persistente quando faz as coisas pela primeira vez. Surfar não é o caso. — Jaehyun bebeu um gole da cerveja. Jungkook cerrou os olhos na nossa direção, levantando um dedo do meio.
— É, é, engraçadinhos, acontece que não é meu sonho ser o Gabriel Medina! Não sou igual ao Dongmin que tá disposto a levar um zilhão de caldos pra provar que pode ser tão bom quanto esse paspalho aí. — ele gesticulou na direção de Jaehyun. Franzi o cenho, confusa, e olhei para o cara ao meu lado. Ele deu de ombros e suspirou.
— Respondendo a sua pergunta… — ele olhou para mim, e apoiou a garrafa quase cheia no tampo. — Eu só tava esperando uma prancha vagar.
E então, falando isso, ele simplesmente arrancou a camisa. Melhor dizendo, ele arrancou a camisa bem na minha frente, como se estivesse num vídeo clipe da Doja Cat ou coisa assim, em câmera lenta e com ventiladores no cenário. Uma pequena correntinha prateada escapou e brilhou à mostra no peito recheado de pintinhas espalhadas em trechos estratégicos, da barriga ao pescoço, como se fossem um caminho a seguir e chegar ao paraíso que era…
Desviei os olhos. Deus do céu, o que eu estava fazendo? Alguém precisava urgentemente arrancar os meus olhos antes que eu passasse mais um segundo dando uma de patética!
Pelo menos ele pareceu não perceber nada. Simplesmente passou por mim, deu um tapinha no ombro de Jungkook e falou em voz baixa, só para ele:
— Termina a minha cerveja, ela ainda tá gelada.
Aquilo fez com que Jungkook esboçasse uma careta de desgosto enquanto via Jaehyun pegar a prancha enterrada e correr em direção ao mar, como a cena clichê de algum filme de comédia romântica. Passado o torpor da visão daquele abdômen perfeito, eu não fazia ideia de como aquela tábua reta e escorregadia poderia ser conduzida em cima de toda aquela água atribulada. Eu já achava perigoso demais pilotar motos ao longo de estradas perfeitamente lisas e retas.
— Mas o que é isso que eu estou vendo? — Nellie se aproximou de nós, olhando para o mar, onde Jaehyun acabava de deitar de bruços sobre o plano da prancha, remando com as mãos para se aproximar do fundo.
— Acho que ele vai fazer companhia para os meninos. — falei, sem perceber, ainda acompanhando cada movimento dele.
Ouvi a risada escarniciosa de Jungkook enquanto ele passava para o meu lado, bem onde Jaehyun tinha deixado sua cerveja cheia em cima da mesa.
— Fazer companhia é simpático demais pra ele, . Mostrar como se faz é mais o estilo desse filho da mãe.
Olhei para Nellie. Ela tinha a mesma expressão confusa no rosto: como se fosse algo um tanto difícil de acreditar, à primeira vista, que Jeong Jaehyun pudesse ter um lado competitivo ou intransigente, mesmo que fosse na aglomeração dos amigos.
Por fim, ela apenas deu de ombros e apontou para a minha saia.
— Hora de mostrar para o que viemos, . Vamos pegar um sol.
E então, como mais uma banalidade de cenários praianos, ela já estava com o tapete preparado embaixo dos braços e o estendeu a alguns metros da tenda, sentando-se gloriosamente enquanto puxava a cerveja para seu lado.
Bufei, olhando para Jungkook, que estava concentrado demais em tirar aquela roupa colada para prestar atenção em mim. Me livrei da saia e sentei ao lado de Nellie.
— As coisas podem piorar se alguém nos encontrar aqui, não acha? — perguntei enquanto pegava uma de suas bebidas. Nellie franziu as sobrancelhas.
— Fala de paparazzis?
— E sasaengs. Se elas enxergarem qualquer indício de idol por aqui, vão abrir fogo, as fotos vão estar por toda parte amanhã.
— Relaxa, , acha mesmo que esses garotos não pensaram em nada disso? Estamos muito bem protegidas em um canto reservado e sem vizinhos civis. Por acaso tá vendo alguma coisa ao redor além de pedras? Pois então. Essa gente sabe como gastar dinheiro. — ela sorriu, e me senti um pouco mais relaxada. — Agora vamos tirar a prova se Jeong Jaehyun é um grande homem ou só mais um riquinho frouxo.
Soltei uma gargalhada, virando para a frente e recebendo uma sequência de imagens inacreditáveis demais para serem descritas.
Jaehyun embalou em movimentos velozes e precisos, sumindo por debaixo de ondas ainda crescentes e saindo pela outra extremidade, como se entrasse dentro de um túnel. Dongmin o encontrava onde esse túnel terminava, e os dois riam, e tentavam de novo logo em seguida. Jaehyun se mantinha de pé mais fácil do que imaginei, e Dongmin e Yugyeom passavam grande parte do tempo tentando não afundar pelas ondas fortes. A pessoa que se igualava nas habilidades era Mingyu, que se colocava de pé e driblava ondas mais afastadas, sem esperar os amigos e suas propensões a perderem o equilíbrio. Vemos claramente alguém que não nasceu para o ofício de professor.
Aos poucos, um grande espaço vazio ia nascendo entre todos eles à medida que se afastavam para tentarem sozinhos. Mingyu e Jaehyun se deslocavam para as áreas mais tranquilas, longe de todos, muito longe. Aquela parte do mar onde a linha do horizonte ficava mais próxima era interminavelmente plana em comparação ao restante e, de certa maneira, estava sempre mais calma e colorida que o resto, como se tanto o sol quanto o vento o evitassem na maioria das horas. Senti Nellie suspirar ao meu lado, e eu soube exatamente o que ela estava olhando e o que sentia ao olhar: os dois rapazes, que não passavam de um pontinho risonho bem ao longe, sentados em cima daquela tábua em mar aberto, passavam uma imagem terrível de paz e sossego no meio do isolamento.
Odiava ficar pensativa a essa hora da manhã, mas uma sombra de reflexão pairou sobre mim e pensei com tristeza no grande esforço que eles tinham que fazer para ter um pouco de harmonia e serenidade sem ter a vida constantemente invadida 24 horas por dia. Precisavam esperar três míseros dias no ano para poderem se juntar e fazer coisas que amigos normais fariam todos os finais de semana.
Seja lá por quanto tempo ficamos em silêncio, ele foi totalmente quebrado por um Yugyeom que se aproximou ofegante, correndo com a prancha debaixo dos braços, ao mesmo tempo que Jungkook fincava uma cadeira do meu lado e se sentava relaxadamente, agora sem roupas apertadas e sem estresse que seu vape de maçã verde não pudesse dar conta.
— Garganta ressecada, amigo? — Jungkook zombou, estendendo a pequena latinha de Cass Fresh na direção dele. Nellie riu alto.
— Gostei da performance, Yugyeom! Foi pra impressionar as garotas ali atrás? Talvez você consiga o telefone de umas duas hoje, já que o resto viu você levar aqueles quatro caldos e se debater como uma foquinha.
Yugyeom estreitou os olhos para minha amiga e deu uma risada sarcástica, largando a prancha e começando a descer o zíper da roupa.
— As garotas gostam bem mais de quem fica por último, Nellie. Então é melhor colocar uma placa no Mingyu antes que seja tarde demais. — deu uma piscadinha. Nellie ainda riu, mas menos do que o esperado. E então eu tive certeza de que teria que aguentar uma pequena discussão de pelo menos quinze minutos no carro por todo o caminho de volta para casa.
— Bem, se nem o Dongmin esperou até o final, não se sinta tão mal assim. Ele costuma ser tão resistente quanto um cavalo. — Jungkook comentou, apontando para além das costas de Yugyeom, onde um Lee Dongmin driblava as ondas menores e joagava o cabelo pingando para trás enquanto alcançava a margem. — Não é mesmo, ?
— Quê? — virei a cabeça rápido.
— O Nunu ali aguenta muita coisa, né? Você deve saber quanto tempo ele consegue ficar sem respirar embaixo d’água…
Ainda fiquei com aquela cara de “hein?” um tempão até captar a malícia na voz de Jungkook, e odiei ter feito isso. Engoli em seco, a saliva passando como uma bola de pêlo, a lembrança do beijo interminável e sem qualquer preocupação com o oxigênio invadindo a minha mente.
Percebi que ele e Nellie estavam com olhares engraçados e sorrisos debilóides na minha direção.
— O quê? Não. Claro que não. Como eu saberia disso? — respondi, atrapalhada. — Podemos voltar ao Yugyeom? Ele foi muito bem, fiquei impressionada, foi o que mais manteve a boa aparência durante todo o processo. — e ri. Ri daquele jeito engasgado, entrando em pânico. Jungkook chacoalhou em risadas, daquelas que escapam do nada, enquanto Yugyeom levantava para mim.
E Dongmin se aproximava cada vez mais.
— Caramba, , achei que você fosse defender o seu Frodo com unhas e dentes como sempre, dizer que ele é um filho do Aquaman ou sei lá. O que é, aconteceu alguma coisa séria entre vocês? — Jungkook continuava rindo, bebendo alegremente. Olhei-o aborrecida, com as bochechas assando não apenas pelo sol, percebendo como minha língua perdia o controle quando me sentia implicitamente encurralada.
— Não é nada disso…
— Não precisa tentar me bajular, , nós nunca daríamos certo. — Yugyeom levantou os ombros e me lançou uma piscadinha, juntando os dois dedos em um gesto de continência para, então, voltar para a tenda. As gargalhadas de Nellie e JK encheram os dois lados dos meus ouvidos. A humilhação estava recaindo sobre mim como as ondas enormes que quebravam lá na frente.
Eu juro que a ideia do buraco poderia ser um sucesso no meio dessa areia, era só eu me esforçar.
O pior de tudo foi quando Dongmin se aproximou no exato momento em que Yugyeom saiu, acompanhando o amigo com os olhos. Algo naquela expressão apreensiva demonstrou que ele com certeza tinha ouvido a última parte. Sem pensar muito, olhei para ele e foi como chamá-lo para me olhar também, e então todo o ambiente pareceu ter se transformado em uma cabine fechada e ela começava a feder com tensão e mal-entendido.
— Meus parabéns, Eunwoo! Você ficou em terceiro lugar, e ainda vai receber uma ligação de uma daquelas garotas bonitas ali atrás. — Jungkook levantou a bebida em um brinde, e Dongmin desviou os olhos para ele com repreensão. — Claro, você precisa estar acordado para atender. E talvez sem camisa.
Nellie revirou os olhos e Dongmin balançou a cabeça, se retirando para a tenda enquanto bagunçava os cabelos de Jungkook. Ele não voltou a me olhar.
Apoiei o queixo nos joelhos, desejando que o sol me transformasse em poeira, me dando uma excelente alternativa para desaparecer.
Domingo
11 de setembro
Hyeopjae Beach
Ilha de Jeju
11 de setembro
Hyeopjae Beach
Ilha de Jeju
Já passava do meio-dia quando Nellie decidiu dar um mergulho. Mesmo deixando claro que essas coisas não funcionavam para mim, deixei que ela me arrastasse para a água, onde algumas pessoas da tenda vizinha já se aventuravam, e agradeci aos céus por minha amiga ser auto suficiente o bastante para me largar na margem e ir bater os pés para longe sozinha.
Olhei para trás instintivamente. Nessas horas, era natural que eu estivesse em modo de alerta para um Dongmin totalmente sacana que estaria à espreita em busca do melhor momento para me pegar desprevenida e me lançar ao mar como uma jaca podre. Eu ficaria extremamente irritada e ele extremamente feliz. Mas algo me dizia que, desta vez, eu não precisaria me preocupar com nada disso.
Comecei andando, pé ante pé, para dentro da água gelada, entrelaçando uma mão na outra em frente à barriga, rezando para não escorregar em lodo ou pisar em pedras, ou até mesmo sentir algas ou coisas desconhecidas roçando nos meus pés. O que seria extremamente vergonhoso, porque nada era capaz de se esconder naquela água linda e transparente.
— ! — disse Nellie bem alto, para ser ouvida apesar da distância que já tinha percorrido. — Anda, entra logo!
— Espe-
Um jato de água banhou toda a lateral do meu corpo quando alguém pulou de barriga, esparramando tudo ao redor. Virei pelo susto, dando de cara com Mingyu, que emergia tirando o cabelo molhado da testa, balançando igual a um cachorro.
— Foi mal, , era pra ver se você acelerava. — ele piscou como um idiota e tratou logo de abrir os braços enormes para abrir caminho através das ondas e nadar em direção à Nellie antes de ouvir meu grunhido de raiva.
— Ah, seu…
— Você precisa de ajuda? — disse uma voz atrás de mim, e me surpreendi internamente por já reconhecê-la de imediato.
Jaehyun chegou ao meu lado, e tentei dar um sorriso constrangido. Se existisse alguma explicação plausível para que eu ainda estivesse com a água até os joelhos e estivesse estupidamente nervosa por avançar naquele além desconhecido, ela tinha se perdido no meu embaraço. No entanto, não precisei falar nada. Ele apenas desceu os olhos por mim daquele jeito quase cirúrgico e assentiu, virando a cabeça logo depois enquanto comprimia os lábios. Bom, ali era o mar, e eu estava de biquíni, e era assim que as coisas funcionavam, então por que ele tinha feito aquela careta de aborrecimento como se eu estivesse fazendo topless? Ou ficando totalmente nua de repente?
Por que eu estava sentindo (de novo!) essa sensação de nudez?
Ele limpou a garganta disfarçadamente.
— Se for pela direita, vai achar um bom caminho sem pedras ou plantas. — e começou a se afastar. Mordi o lábio inferior.
— Eu não sei nadar. — minha voz saiu quase em um sussurro, e lá se foi toda a minha dignidade de novo. Eu me sentia patética.
Se ele achou a mesma coisa, não demonstrou.
— Vamos ver até onde você consegue.
Franzi o cenho, vendo ele começar a ir em frente, me chamando com a cabeça. Suspirei e fui atrás. Considerando que eu já tinha tropeçado e caído em cima dele, falado pelos cotovelos até tarde da noite e gritado como uma louca na montanha-russa em um tempo de 24 horas, acreditava que mais um vexame não faria tanta diferença na conta.
A água saiu dos joelhos para a cintura, da cintura para o peito, e do peito para os ombros em pouquíssimos minutos. Ela não era gelada e nem muito quente, e era tão limpa e transparente que me permitia ver cada grãozinho de areia que penetrava entre os meus dedos dos pés. Conseguia até mesmo ver a base das formações rochosas que Jaehyun tinha indicado, com lodo salpicando uma enorme superfície, junto com uma colônia de cracas (que descobri serem animais, e não só sujeira acumulada pelo tempo) e alguns mexilhões. Fiquei um pouco encantada, principalmente porque se tratavam de bichinhos incapacitados de morder e arrancar um pedaço da minha unha, como os pequenos caranguejos faziam na Praia de Carcavelos.
Nellie e Mingyu se aproximaram de nós depois de ver que eu tinha conseguido ficar mais de trinta minutos com a água até o queixo e quiseram loucamente apostar alguma corrida de quem nadava mais rápido, mas era óbvio que tudo tinha um limite. Calma lá.
Depois do que devia ter sido bem mais do que uma hora, saí da água, com os dedos enrugados como um maracujá e o cabelo duro e grudado pela água salgada, mas um pouco mais contente. Deixei Nellie me ensinar a nadar cachorrinho, Mingyu e Jaehyun fizeram piruetas engraçadas e passei as mãos para valer na parede de cracas. Elas fizeram um arranhão na palma da minha mão, então talvez não fossem tão incapacitadas assim de me machucar, mas ainda valeu muito a pena. O dia não parecia mais uma nuvem de tempestade completa.
Fui direto para o cooler em busca de uma garrafa de água, tentando desembaraçar o cabelo com os dedos. Lá dentro, encontrei a última lata de energético de pêssego, e aproveitei. Só que quando fui tentar abrir o lacre, não vinha. O anel metálico estava travado, displicente e teimoso. Agora entendi porque era a última lata, afinal.
Tentei por mais alguns minutos até ouvir o “shhh” úmido atrás de mim, e uma nova lata colorida sendo colocada na minha frente, erguida por braços longos e mais bronzeados.
Dongmin.
— Ah… Não precisa, eu já tenho. — estendi minha lata com defeito.
— E tem paciência pra tentar abri-la também? Vamos ficar aqui até o Natal se for assim.
Franzi os lábios e aceitei a gentileza dele, experimentando todas as minhas entranhas devorarem umas às outras de nervosismo.
— Obrigada. — agradeci em voz baixa e desviei os olhos.
Observei de relance que ele fez a mesma coisa, mas não saiu do meu lado, o que era péssimo. Se Dongmin quisesse falar do Assunto aqui e agora, eu sentia vontade de fugir como um gato assustado, com medo do que ouviria. Mas se ele fosse falar de qualquer outra coisa, como o clima ou a estampa horrorosa da canga de Nellie ainda estendida na areia, sentia que seria pior ainda. Seria ele, explicitamente e diretamente, cagando para o que aconteceu entre nós.
— Você… dormiu bem ontem? — perguntou. Parecia ser literalmente a primeira coisa que veio na sua cabeça, uma pergunta educada que se fazia para quem não se tinha tanta intimidade.
Assenti devagar. Me permiti a reparar um pouco melhor nele. Olheiras mais aparentes, um cansaço que não estava ali antes… exatamente tudo que procurei ontem e não achei.
— E você? — devolvi. Ele anuiu, mas nós dois sabíamos a resposta verdadeira. E isso não fazia sentido!
Dongmin perdeu o sono por causa do segundo beijo, mas não fez isso com o primeiro? Com aquela coisa louca que mal podia ser chamada de beijo? Que era, no mínimo, um aquecimento para a filmagem de um pornô?
Meu Deus, tinha alguma coisa de muito errada acontecendo aqui.
— Por um momento, eu achei que você não ia querer descer. — começou, trocando o peso das pernas. — Fiquei esperando na frente do carro e você não apareceu. Achei que eu pudesse ter acabado com a sua viagem.
— Não acabou. — quase, mas segurei a língua. — Espero não ter acabado com a sua também. — e nem com a nossa amizade.
Ele balançou a cabeça. Dava para ver que não sabia como introduzir o assunto, e dava para ver como eu não conseguia ajudá-lo nisso, e provavelmente nós não deveríamos abrir essa caixa de Pandora, mas não dava mais. Já tinha aceitado o erro terrível que foi me declarar para ele, Eunwoo podia pelo menos agir com consideração e ser minimamente linear.
Me beijar alvoroçadamente em um dia e no outro fingir que nada aconteceu não era ter consideração, caso ele estivesse pensando nisso.
— Olha, … — ele disse em voz baixa, as sobrancelhas juntas, o esforço que estava fazendo para abrir a boca e pensar no assunto. Fiquei parada, prendi a respiração. Ele se aproximou um pouco, o tronco nu e o cabelo úmido, o cheiro de mar me invadindo assim como o meu devia estar invadindo o espaço dele, e me lembrei automaticamente de quando nossa respiração se misturou naquele beijo caótico e obsceno. — Eu fiquei pensando. Aliás, fiquei tentando entender, e seja lá o que você achou que aconteceu…
— O que eu achei? — interrompi automaticamente, a voz quase quebrada.
— É, todo aquele papo da gente ter se beijado e tudo mais. Eu refiz todos os meus passos daquela festa e juro que não consegui chegar na parte em que tenha acontecido o que você disse que aconteceu. Eu tava bêbado sim, você estava uma gata sim, mas… Mas foi só isso, . Eu nunca esqueceria uma coisa dessas.
Mais um espasmo do meu estômago.
— Talvez… talvez você pudesse…
— Não, , nunca esqueceria que beijei minha melhor amiga, e nunca deixaria de me sentir culpado pra caralho por isso.
E pronto, foi desse jeito que Eunwoo conseguiu rasgar o céu e trazer de volta todas aquelas nuvens negras que eu tinha dolorosamente empurrado para longe.
Ele se sentiria culpado. Aliás, já devia estar soterrado em tanta culpa por causa de ontem a ponto de mergulhar em um estado de negação e ficar ali eternamente.
Não fazia ideia de que cara eu deveria estar fazendo, mas devia ser algo tão feio e preocupante que o fez ter o impulso de abrir e fechar a boca várias vezes, arregalando os olhos.
— Quero dizer… , é que a gente… a gente não…
— Jaehyun!
O nome e o grito escaparam de mim como rolha de champanhe. Meu coração estava acelerado, a testa estava quente, o oxigênio estava escapando de mim em espaços longos e cansados.
E daí Jaehyun surgiu no meu campo de visão, logo do outro lado da mesa grande, pegando uma toalha azul da sua mochila e começando a secar o peito molhado distraidamente. Ele imediatamente ergueu o pescoço para me olhar com um susto.
Agarrei a lata defeituosa de novo e andei até ele.
— Preciso da sua ajuda, é, com isso aqui, será que você pode, quer dizer, se você estiver com sede, esse daqui seria ótimo. — tudo se atropelou da minha garganta para fora. Ele ficou parado, fazendo uma pergunta naqueles olhos confusos: o que tá acontecendo?
Não sei. Não sei, não sei…
— . — Dongmin voltou a me chamar. Ele estava dando a volta na mesa e se aproximando. — Olha, tem um quiosque aqui do lado que vende aquela coisa de camarão no abacaxi, eu acho que a gente podia…
— Não posso. Não dá. — balancei a cabeça, girando para ele apenas em perfil, os músculos do corpo todo retesados. — Eu… eu vou com o Jaehyun. Naquilo… Lá. — apontei para alguma parte das pedras que se entrelaçavam na costa. — Ele ficou de me mostrar uma coisa. Não é?
Virei para Jaehyun. Minha mente era um completo nada. Eu não sabia o que estava fazendo, eu só sabia do eco da voz de Nellie na minha cabeça: “Já pensou? Você e o Jaehyun poderiam ficar mais próximos, você daria um jeito de usar essa reboladinha que você sempre faz quando anda, pesquisaria uns filmes bons pra terem assunto, entraria no carro dele e dariam uma volta pelo pôr-do-sol até o galã ali atrás se desesperar pensando que você tá em outra…” E repetiu, repetiu, repetiu…
Sabendo que Jaehyun estaria me olhando como se eu fosse uma paciente fugida do hospital psiquiátrico, voltei a olhar para Dongmin, só para não dar muito na cara que aquilo ali era a maior mentira improvisada de todas. Ele estava encarando Jaehyun, o cenho franzido, buscando a verdade onde ela não existia. Se Jaehyun ainda estivesse fazendo aquela cara, ele logo perceberia e eu ficaria ainda mais patética do que estava.
Em um impulso catatônico do meu cérebro semi apagado, dei um passo para trás, sentindo o peito de Jaehyun nas minhas costas, e fiquei. A pele dele era quente e ainda estava úmida. Por um milagre divino, ele não se afastou de mim, mesmo que eu tenha sentido seu corpo ficar mais paralisado ainda.
De repente, Dongmin estava abrindo um sorriso, um que era mais uma risada escarniciosa.
— Tá bom, olha, , eu sei que não falei direito, mas não vou demorar. Abacaxi, camarão, hein…
— Outra hora. — a voz de Jaehyun retumbou atrás de mim, me dando um susto. Sua mão surgiu do nada e agarrou a lata ainda fechada da minha. — A gente tem que ver uma coisa primeiro.
Jaehyun deu a volta e passou por mim, seguindo o caminho de volta para a praia.
— Você vem? — perguntou, e seus dedos deslizaram pelo lacre, abrindo aquela coisa sem dificuldade nenhuma.
Fiquei estática. Não conseguia nem olhar para Dongmin. Só conseguia sentir meu corpo sendo tomado pelo terror e pela certeza de que eu deveria ir. Que queria, para ser honesta. Que uma força estranha do meu cérebro queria seguir Jeong Jaehyun mais do que tudo, somente a ele nesse momento. Não meus princípios, meu coração, ou meu cérebro.
Por isso, depois de piscar bastante os olhos e firmar meus próprios pés, comecei a ir atrás dele, passando por Dongmin sem olhá-lo.
— Por favor, por favor, por favor, me perdoa por isso.
Já estava repetindo essa sinfonia há cinco minutos, desde que tinha conseguido alcançar suas pernas enormes, que estavam dando passos ainda mais enormes para a margem da mata. Ele tinha tomado quase toda a lata do enérgico e agora parecia praticamente apertar a pobre coitada com dedos fortes.
— Não tem problema. — ele disse de novo, pisando na primeira pedra.
— É que… eu e Dongmin, a gente… eu não tô afim de falar com ele agora. — gesticulei bastante com as mãos. Jaehyun virou a cabeça por um segundo, me encarando com curiosidade e desviando logo depois.
— Foi grave?
— Foi. Um pouco. — dei de ombros. Não chegava nem perto do que foi. — Foi um nível adequado pra eu ter… mentido daquele jeito. E te envolvido nisso, foi mal.
Falei como um ponto final. Nem ferrando que eu iria contar qualquer coisa sobre ontem para alguém que não fosse Nellie.
Mas Jaehyun não parecia querer saber da história. Na minha frente, ele parou de andar e se virou, enfiando os dedos no cabelo para jogá-lo pra cima.
— Você não mentiu em tudo.
Ele gesticulou na direção das pedras, indicando a pequena trilha de rochas que levavam a uma pequena redoma rochosa na borda do mar. Fiz cara de confusa.
— Tem mesmo uma coisa muito legal pra te mostrar. Caso você queira ver ou… — ele olhou brevemente na direção da tenda, onde Dongmin ainda estava parado, olhando por sobre o ombro. — Só pra ser mais convincente.
— Não, eu quero. — falei na hora, me aproximando dele. Agarrei o seu pulso. — Eu quero sim. Pode me levar.
Jaehyun desceu o queixo e encarou minha mão ali por um tempo longo demais até que eu me tocasse e o soltasse, mas só um pouco. Não dei um passo para trás e nem me afastei. Tinha certeza que Dongmin estava vendo aquilo, apertando os olhos para enxergar, quase desejando ter uma lupa (para ver melhor ou nos queimar com a convergência dos raios solares).
E gostei um pouco dessa sensação. Assim como gostei quando Jaehyun engoliu em seco duas vezes e ele mesmo pegou no meu pulso, quase tomando minha mão inteira com uma força e delicadeza impressionante.
— Vem comigo.
Ele começou a me guiar devagar, me esperando pacientemente pular pedras por pedras e andando de um jeito que não fosse vergonhoso para mim. Estava agarrando qualquer coisa que estivesse ao meu alcance para não ser ceifada por aquele vento forte ou pela minha própria condição biológica de azarada. Ele estava garantindo que eu ia adorar.
— Você lembra quando me disseram que eu também adoraria a montanha-russa? — murmurei. Ele riu andando em frente, enquanto eu desviava agora do lodo, que dessa vez era bem real.
— Isso aqui vai ser bem menos radical.
Ergui uma sobrancelha, mesmo que ele não pudesse ver. Quando parou, estávamos diante de uma abertura média no chão, uma grande poça com água até o limite que formava uma pequena piscina. Jaehyun ficou de joelhos e então, simplesmente, enfiou uma das mãos em uma das fendas entre uma pedra e outra, sem qualquer visão do que tinha embaixo delas.
— Jaehyun! — arfei sem perceber, abaixando-me ao seu lado. Um medo maluco me tomou, como da primeira vez que andei de bicicleta e fiquei com o pé preso no bueiro. — Você é maluco? Como tem coragem de fazer isso? Meu Deus, para! — experimentei um arrepio tão brusco, como se o braço enfiado no escuro fosse o meu e que ele seria devorado pelos monstros subterrâneos que minha babá inventava para que eu não entrasse no mar.
— Tá tudo bem. — ele riu mais, ainda movendo os braços pelo buraco por pura intuição. Se ele passasse mais um minuto naquela posição, eu podia jurar que surtaria. — Se tudo der certo, vou achar um… Agora mesmo. — e então, puxou para fora um caranguejo pequenino e laranja, quase branco, que cabia perfeitamente na palma de sua mão.
Parei por um segundo, tentando ligar os neurônios para assimilar o animalzinho que andava devagar por sua mão, como se nem notasse que tinha saído de seu buraco escuro.
— Minha nossa. — sorri, de repente, com uma estranha gratidão por não ter ficado pálida. Estendi um dedo em sua direção, e uma de suas patinhas locomotoras roçaram na minha pele. — Como eles são pequenos.
— Esses são os filhotes de Ocypode quadrata, ou maria-farinha. A gente encontra um monte deles embaixo da areia, dessas pedras ou até na margem. Os outros amigos dele devem ter saído bem rápido quando notaram a minha mão. — ele deu de ombros, e o animalzinho andou totalmente para a palma da minha mão. — Se eu fizer uma busca mais minuciosa, talvez eu encontre um ouriço ou até uma estrela-do-mar, que vão começar a migrar pra cá daqui a pouco quando a maré subir. Se tentar de madrugada e de manhã vai ser um sucesso, é quando a festa deles começa.
Não controlei mais um sorriso, agora olhando para Jaehyun enquanto o bichinho ainda corria pela minha palma. E parei.
Outro ser magnífico da natureza poderia ter irrompido sorrateiramente e talvez estivesse ali, subindo pelas minhas costas ou mordiscando meus dedos do pé, mas eu não perceberia. Alguma coisa muito louca me deixou hipnotizada, ou melhor dizendo, paralisada, enquanto Jaehyun sorria e apontava para as direções que provavelmente teriam outros membros da fauna oceânica de Jeju naquela madrugada. Não consegui prestar muita atenção na sua aula, o que foi estranho. Primeiro porque eu estava me tocando: tinha arrastado Jeong Jaehyun de repente para um cenário de Lagoa Azul assim tão fácil. Estava vendo Jeong Jaehyun conversando animadamente comigo sem fazer aquela coisa de expirar e inspirar como o Bruce Banner faz para não virar o Hulk. E estava vendo o sol descer bem na lateral de seu rosto, o vento fraco balançando seu cabelo e o efeito daquela luz nele radiando, deixando aquele rosto bizarramente lindo.
Lá veio a voz de Nellie de novo: “[...] as coisas ainda podem ser salvas. Beija o Jaehyun e pronto, lembrança imaculada.”
— ? — ele tocou no meu ombro e eu acordei. — Tá tudo bem?
Meu. Deus.
— Sim! Sim, tudo bem! — balancei a cabeça, sentindo o meu novo amigo chegar perto do meu pulso. — Eu me distraí com... as formigas. — balbuciei. Tenho certeza absoluta de que a cadeia alimentar daquela região impedia e muito a existência de formigas ali. — Mas tudo isso daqui, essas coisas, é surreal. Tudo muito novo pra mim. Inclusive o fato de ter trilhado esse caminho todo sem cair. — projetei os lábios para cima, impressionada. — Mas melhor não cantar vitória tão cedo, ainda temos a volta.
Jaehyun riu pelo nariz. Aparentemente, hoje ele tinha decidido que nada do que eu dissesse o deixaria desconfortável. Tinha que aproveitar o momento.
— É, precisamos voltar. — seu suspiro foi intenso, até mesmo triste. Bem, eu também me sentia da mesma forma por ter que sair daquela vista incrível.
— Valeu por isso aqui. — esbanjei meu melhor sorriso genuíno, apontando para o reflexo da luz do sol batendo na superfície da água da pequena piscina. Acredito que era isso que ele queria que eu visse também. — Não é o tipo de coisa que a gente vê na cidade grande. E foi bem divertido, mesmo com o lodo e as cracas. Acho que vou correndo comprar uma passagem pra Austrália pra ir ver os recifes de coral.
— Tenho certeza de que você se divertiria aqui de qualquer maneira. A propósito, a Austrália é incrível.
Segurei a vontade de perguntar quando ele teve tempo de ir à Austrália.
— Estudei em um lugar com regime de internato, é claro que sei me divertir. — falei, levantando os ombros. — Mas hoje em especial eu não estava com nenhuma expectativa. Nada demais, só… ressaca.
Passei o caranguejinho para a outra mão. Não queria que ele me perguntasse nada sobre o assunto, e deixei isso claro na minha postura, porque mesmo parecendo curioso, Jaehyun ficou calado, apenas franzindo a testa.
— Se passou quatro anos do ensino médio perambulando em festa clandestina naqueles campus isolados, você que deveria ter feito nosso itinerário. Aliás, você deveria ser o nosso Ferris Bueller. O Mingyu mal sabe a diferença entre resort e clube aquático.
— Achei que eram só os tobogãs.
— Ele achou que um resort tinha que ter uma pista de hipismo. Obrigatoriamente.
Não aguentei; ri até quase roncar. Consegui segurar bem, mas foi por muito pouco.
— Isso explica porque ele achou genial fazer o sorteio dos quartos de vocês com papelzinho.
— É, não foi exatamente o método mais confiável de todos. — seus olhos brilharam na minha direção. — Mas… não posso reclamar do meu.
Eu posso!, quis gritar. Me embrulhava o estômago admitir o quanto eu desejava que não fosse Dongmin o meu vizinho de porta, porque agora ele não acordaria em uma manhã ensolarada e fresca e apareceria no meu quarto, segurando um polpudo punhado de flores azuis de um tipo que ninguém nunca viu antes, me dando um beijo de bom dia e declarando seu amor por mim.
Iria de bom grado para o térreo, se Yugyeom já não estivesse lá.
— Bem, na minha época de escola ninguém diria que eu era a protagonista de Curtindo a Vida Adoidado, mas ainda foram meus anos favoritos, mesmo que meu karma de Murphy ainda estivesse em construção.
Ele tentou não sorrir, e balançou a cabeça negativamente com isso.
— Você com essa coisa de azar de novo.
— É só um fato. E quem me dera fosse só porque eu nunca ganhei um bingo ou sorteio de potinho hermético. Uma vez, no meu primeiro apartamento que morei sozinha, os vizinhos estavam em obras e o cara usou a furadeira com tanta força que atravessou a minha parede. Bem em cima da cama. E eu estava dormindo. — ele arregalou os olhos. — No casamento da minha prima, meu vestido de madrinha abriu nas costas quando eu caminhava para o altar, e ele nem estava apertado. E já fui furtada dentro de uma paróquia.
Agora ele não estava se segurando. Consegui ouvir o barulho de pfff do arquejo que ele soltou, balançando os ombros bruscamente enquanto mordia os lábios para não gargalhar alto e me deixar mal.
Mas como eu ia explicar que, surpreendentemente, a risada dele não me deixou com vontade de me encolher em posição fetal e lamentar minha existência? Não quando tudo que fiz para ele foi deixá estranhamente… feliz.
— Espero que a sua prima não tenha ficado chateada. — as bochechas dele estavam um pouco rosadas. Uau.
— Ela disse educadamente no fim da festa que a palavra madrinha escrita no meu convite foi um equívoco da gráfica. — prensei os lábios. — Mas não importa, ela sempre me odiou. E eu não suportava mais ouvir sobre o aveludado das pétalas do buquê ou o penteado dela estilo camponesa, então roubei um vinho rosé caríssimo da adega e me mandei.
Dessa vez, ele só sorriu. Não sei dizer se ele estava pensando agora que eu podia ser problemática ou que tudo que estava contando não passava de um monte de impossibilidades, considerando que, na visão dele, eu era só uma garotinha tímida que amava muito ficar bebendo comportadamente nos cantinhos.
Ah, se ele me conhecesse…
Coisa que não vai acontecer!
— Aposto que devia ser um bom vinho. — ele disse, em uma voz tão aveludada quanto as rosas brancas da prima Béatrice. — Aliás, ele é a prova da sua interpretação errônea da Lei de Murphy. Passar uns anos no internato, por pior que tenha sido, acabaram te levando pra uma boa universidade, não foi?
— É, mas descobri que meus pais queriam o meu diploma de Direito pra me mandar pro Senado, e não pra que eu salvasse pequenos empreendimentos fofos de cidades pequenas. O que significa que, na família , eu sou um fracasso.
Pisquei. Não acredito que acabei de falar isso. E sem nenhuma ruguinha na testa. Foi novo até mesmo para mim, que demorei um ano para dizer à Dongmin que eu era a ovelha negra dos de Lisboa.
Os desejos dos meus pais eram absurdos e, às vezes, medonhos para uma garota que sempre apreciou coisas muito simples. Isso significava que eles só ficariam satisfeitos me colocando em uma das escolas mais difíceis que um ser humano pode estudar, me obrigando a praticar todas as atividades esportivas possíveis (as quais eu eliminava uma por uma à medida que fracassava em todas), tecendo um futuro para mim nos bastidores que eu jamais fui capaz de dar.
Não foi tão fácil me livrar deles. Na verdade, foi a coisa mais difícil que tive que fazer na vida, porque, no início, eu não estava querendo desaparecer. Só queria sair de perto, viver minha vida, explorar o que eu gostava (que era muito diferente do que eles gostavam). Mas desde a invenção do celular e da internet, ninguém realmente fica longe de ninguém, então, quando peguei um avião, aluguei um quarto minúsculo em Gwanak-gu, troquei o chip e passei a me comunicar com eles exclusivamente por e-mail, as coisas finalmente pareceram outras. Novas. Deu para me olhar no espelho e dizer: você é adulta agora. Tirando a nuvem negra que paira sobre você (e que provavelmente veio de uma maldição da sua avó, que queria um neto ao invés de uma neta), você é inteligente, determinada, muito gata e com muita força de vontade. Agora pode começar.
Nunca vou conseguir descrever a alegria e o terror que foi essa primeira conversa ao espelho comigo mesma.
Meu amiguinho artrópode agora estava no meu antebraço, enquanto Jaehyun fixava o olhar em mim com uma expressão indecifrável.
Ri para dispersar.
— É brincadeira. Quer dizer, eu também nunca quis salvar pequenos negócios de agricultores em alguma cidade chamada Adamsville, a minha praia é outra. Então, isso não me afeta.
Ele assentiu devagar.
— O que significa que você passou um tempão fingindo ser alguém que não é.
Por algum motivo, fui deixando de sorrir aos poucos até o sorriso virar uma linha na boca. Ele não estava falando em um tom reprovador ou investigativo. Não tive aquele pensamento angustiante que costumava ter quando as pessoas começavam a me analisar demais. Eu não era alguém que abria espaço para isso, conseguia fazer piadas e falar mal de mim mesma sozinha, obrigada.
E isso foi bem estranho.
— É que eu não podia dar uma de enciclopédia ambulante sobre juro composto quando todo mundo tava mais interessado em mandar bem no júri simulado. Era a única coisa que importava na Academia Neeson, não tinha nem como ter notas baixas. Se elas caíssem abaixo de B, aquele lugar te colocava na rua. E meu pai me deixou claro que se eu não conseguisse me virar em uma escola particular, eu estaria fora do testamento. Mas ele foi amigável, falou enquanto comíamos um fettuccine.
Ele voltou a rir. Pensei naquela hora que, em questão de dar avisos sérios que definiam a vida de outro ser humano com frieza absoluta, eu era muito parecida com o meu pai. A não ser que o aviso fosse: estou apaixonada por você. Aí a coisa já não funcionava muito bem.
— Testamento e fetuccine, duas coisas que me lembram do que Eunwoo disse sobre você ter escondido seu poder de pagar as bebidas ontem.
— Eu não menti. Eu não disse nada. — revirei os olhos, mas ri assim mesmo. — E não é assim que dinheiro funciona pra mim. No mundo do Homebroker, você ter 500 mil dólares não significa que você tem 500 mil dólares, entende?
— Uau, você tem 500 mil dólares?
— Não exatamente.
— Dava pra pagar margaritas. Ou melhor: bourbon com cevada vermelha.
— Eu nem sei o que é isso.
— Deveria saber, se tem 500 mil dólares.
— Tá legal, se você contar isso pro Yugyeom, eu coloco esse meu amiguinho dentro do seu nariz, e falo sério.
Ele riu e estendeu o dedo indicador para que o caranguejinho passasse para as costas de sua mão. Em um lapso, nossos dedos se entrelaçaram para facilitar a passagem do bichinho. Senti uma agitação anormal e momentânea nas pálpebras, e me afastei rápido, vendo o sorriso de Jaehyun se tornar fino e rígido, como se tivesse estranhado a mesma coisa.
Esse era o problema: não era estranho. Era aquela sensação maluca de novo, como se eu reconhecesse o toque dele, como se o cheiro estranho, por mais que tivesse passado o dia todo no mar, ainda me jogava numa cortina de dèja-vu. Era a impressão de que alguma coisa faltava na minha memória.
Jaehyun limpou a garganta, olhando firmemente para mim.
— Olha, eu… — começou, a voz ficando mais baixa e um pouco mais distante. — Tem uma coisa acontecendo…
Ele parou, os olhos agitados, lutando para se manterem na minha imagem ao mesmo tempo que queria olhar para qualquer outro canto. Franzi a testa. Ele parecia um pouco atormentado de repente.
— , eu não sei como dizer isso, mas eu preciso saber. Preciso saber se você tem… alguma coisa pra me dizer. Qualquer coisa.
Relaxei a expressão. A partir do momento em que ele disse meu nome, uma onda de de pelos eriçados fizeram ondinha no meu braço. Levantaram e abaixaram na mesma hora. Isso era muito esquisito. Era bom e esquisito.
Era bom saber que Jaehyun sabia do meu nome, mas eu não sei se queria escutá-lo falando de novo. Porque sua voz abaixava mais que o normal, se tornava pesada, molhada, colocava meus ouvidos dentro de uma sauna, andava e dançava ao redor da boca dele inteira enquanto ele falava. Como se meu nome não fosse apenas um nome, fosse um rito. Um grito de guerra, um grito de paz, a divindade principal para se pedir a dança da chuva.
Os olhos dele estavam semicerrados, enquanto os meus… eu não fazia ideia.
— Eu… o quê? — voltei a vida.
Ele bagunçou o cabelo, parecendo minimamente frustrado. Talvez consigo próprio ou comigo, mesmo que eu não entendesse. Por que Jaehyun estaria esperando que eu tivesse algo a dizer a ele?
Só se talvez…
Ah, meu Deus.
— É que naquela noite…
— Droga. — resmunguei sem perceber. Ele parou. — Desculpa, desculpa, eu… Eu não quis dizer aquilo ontem, eu juro. Eu não tava julgando você, nem planejando nada com você. E se estava, foi só a vodka, eu não me dou bem com ela.
Ele piscou algumas vezes, a testa se enrugando inteira de confusão.
— O quê? Do que você tá falando?
Passei a língua nos lábios. Isso seria humilhante.
— Ontem à noite, eu e Nellie estávamos brincando, era só uma brincadeira. Eu não quis julgar seu cigarro, e nem te chamar de Anthony Bridgerton, caso você se ofenda com isso, foi só uma curiosidade. E sobre o lance de beijar…
— Beijar?!
— Foi brincadeira! Não tem beijar, nada de beijar, nós não vamos nos beijar!
Arfei. Meus músculos paralisaram. Os olhos de Jaehyun estavam tão focados em mim que funcionavam igual a furadeira do meu ex vizinho, e seu maxilar tão travado que dava para ver a linha do osso saltando contra a pele. Não conseguia ler nada dele, mas provavelmente eu tinha dado mais um motivo para esse cara dar um sorrisinho forçado e correr para o mais longe possível de mim.
Só que isso não aconteceu, porque o barulho de passos escorregadios em cima da areia das pedras tirou toda a minha concentração de Jaehyun. Virei para trás a tempo de ver Dongmin parado, já de regata e chinelos, revezando o olhar entre mim e Jaehyun.
— Mingyu mandou dizer que vamos sair em quinze minutos. — avisou, parecendo estranhamente desconfortável. — Todos estão esperando.
Assenti, começando a me levantar, apoiando as mãos seguramente nas pedras úmidas e sentindo o velho temor como um calafrio nos pulmões. Afinal, eu tinha conseguido esquecer por vários minutos que estava ajoelhada à beira de um pseudo precipício. Um precipício muito lindo e muito atraente, é claro.
Vi Jaehyun devolver nosso companheiro para a fenda e dei um sorriso involuntário para o bichinho. Em seguida, dei meia volta. Dongmin continuava parado, olhando para mim com intensidade, como se estivesse distraidamente me esperando.
Bom, eu ainda não estava com propensão a aceitar seu convite do abacaxi com camarão, então ele podia ir. Não estava afim de deixar explícito o nosso estranhamento de novo, apesar de que agora, ironicamente, Dongmin seria uma ótima distração do papelão que acabei de dar há dois minutos com Jaehyun.
Jeong passou para a frente, andando com cuidado nas pedras até parar de novo, quase ao lado de Dongmin. Os dois me olharam, esperando que eu me mexesse.
Olhei de um para o outro e de repente senti uma súbita vontade de sair dali o mais rápido possível. Talvez tenha sido por isso que a merda quase aconteceu. Desatenta em todas as minhas questões humanas de coordenação, avancei para a frente sem olhar para o chão, de um jeito rápido e impulsivo, esquecendo dos pés descalços e da umidade excessiva por causa das ondas que batiam por todas as horas do dia.
E então, senti a sola dos pés deslizarem para o lado, somado à fenda exposta a poucos centímetros que me causou um desequilíbrio imenso que até embaçou minha visão.
Foi como sentir que a morte era mais iminente que o próprio vento, e que eu estaria virada para a escuridão dela bem mais cedo do que eu pensava.
— ! — os dois disseram ao mesmo tempo.
Fora o pensamento mórbido da queda iminente, de novo eu consegui não cair. Mas dessa vez, não foi apenas Jaehyun que estendeu os braços para ser meu salvador da pátria. Dongmin, ao mesmo tempo, chegou para a frente, passando um dos braços pelas minhas costas, enquanto Jaehyun chegava pelo outro lado, fazendo o mesmo movimento, e então eu me apoiava em dois ombros diferentes de dois caras diferentes, que me olhavam com preocupação nítida.
Tenho quase certeza que parei de respirar.
— Você está bem?
— Se machucou?
Não sei quem falou o quê. As duas perguntas aconteceram ao mesmo tempo e eu estava confusa e desnorteada demais para identificar. Me soltei dos dois, balançando os braços com um sorriso patético.
— Eu tô legal obrigada precisamos ir agora rápido é isso vamos.
Falei sem pausas, seguindo em frente uma vez mais, agora com os olhos cravados devidamente no chão, por razões importantíssimas: não cair novamente e não revelar meu rosto queimando em um milhão de brasas.
Domingo
11 de setembro
Vanguarda
11 de setembro
Vanguarda
“Não é minha intenção deixar as coisas esquisitas, .”
“Não precisava ter saído daquele jeito.”
“Ainda saiu toda desatenta, imagina se você tropeça igual fez nas pedras? Achei que eu tinha que salvar sua vida.”
“Você ia me assombrar pelo resto da minha caso morresse nessa viagem.”
“A gente devia falar direito sobre isso…”
Parei de olhar as mensagens no celular e olhei para o rosto de Nellie enquanto Mingyu fazia a última curva em direção à casa. Agora minha amiga estava sorrindo e acariciando a mão do namorado em sua perna, como uma perfeita e odiosa cena romântica. Isso porque eles estavam discutindo não tinha muito tempo atrás, como bem previ depois daquele comentário infeliz de Yugyeom, mas olha só, em três segundos estavam melhor do que quando saímos naquela manhã.
Minha cabeça estava latejando. De sono e de tentativa de fuga. Existia muita dor envolvida em evitar conflitos, e com dois deles em andamento, tudo ficava genuinamente mais complicado.
Tinha o fato de que Dongmin estava querendo, a todo custo, se desvencilhar do fato do nosso beijo, agora tinha Jaehyun e minha vergonha alheia sobre ele, que não é nenhuma coisa nova, mas agora tinha ganhado o peso da palavra beijo — que não era uma palavra normal, caso ele tenha mesmo ouvido minha conversa com Nellie ontem à noite. E se não ouviu, as coisas estariam estranhas do mesmo jeito, porque agora ele sabia que eu tinha pensado e falado sobre beijá-lo.
Parecia ser o mesmo que fazer o beijo, por mais que eu soubesse que não era.
Quando chegamos, não perdi tempo em andar a enormes passadas para a escada e seguir para o meu quarto, onde eu pudesse sentar e refletir sozinha sobre o que quer que precisasse ser refletido no assunto, até que Nellie me alcançou no meio da escada.
— Lembre-se que nosso horário tá marcado para às oito.
Quase parei de andar.
— Oi?
— Não vem com essa. — ela revirou os olhos e puxou meu braço, devolvendo meus movimentos. — Você já tava avisada que todos os nossos horários aqui estão ocupados, e é por isso que tem um potinho de biscoito com pílula de cafeína bem no meio da sala. Elas são até vermelhinhas. — Nellie balançou os cachos, que mesmo depois de um dia inteiro de vento violento e água salgada, continuavam impecáveis. — Fora que esse lugar é muito grande e espetacular pra ficar em casa dormindo e chorando as mágoas por causa de um cara que nem sabe a diferença de um vinho branco e o tinto.
— Ele não foi ensinado!
— O filho da família Lee devia saber essas coisas, . O garoto já nasceu provando caviar Beluga.
Revirei os olhos e continuei subindo, marchando para o quarto. Nellie continuou atrás de mim.
— E eu sei que você não perguntou, mas hoje vamos ao boliche, beleza? Um lugar perfeito pra descontrair e não deixar que você escreva mais cartinhas de amor.
Parei com tudo.
— Eu não escrevo cartas de amor. — engasguei com o absurdo, sentindo o rosto queimar.
— Você se ouviu no dia em que me contou seu plano? Preciso invadir nossa privacidade e abrir o app de mensagens pra provar? — disse ela, ácida. Franzi os lábios e desviei os olhos, me sentindo ainda mais ridícula do que quando a contei das colagens que fiz de Dongmin depois de ter sonhado com ele. Dica importante: nunca conte para a sua amiga que sonhou com um cara. Muito menos o que você fez depois desse sonho.
— Eu não sei jogar boliche. — disparei, como uma última esperança de me livrar, mas Nellie apenas cerrou os olhos.
— Ninguém sabe, essa é a parte divertida. — recebi uma piscadinha, e soube que não existiriam mais argumentos que me livrasse daquilo. — Fora que você vai ter um ótimo companheiro pra te ajudar nisso.
Juntei as sobrancelhas, confusa.
— Do que…
— ?
Eu já estava quase no quarto quando ele disse meu nome. Nem precisei me virar para verificar. Nellie olhou para mim e para Dongmin se aproximando, como se avaliasse um grande momento de tensão em um reality show combinado.
Que merda, que merda.
— Oi. — minha voz saiu mais baixa que o normal. Normalmente, falar não costumava ser tão estranho.
Ele olhou para Nellie primeiro antes de dizer:
— Seu celular não tá apitando? Ou tá sem sinal?
É você que não tá captando meus sinais, eu quis gritar. Um sinal claro de que não quero tocar nesse assunto agora, provavelmente nem no próximo mês.
Mas seria ridículo demais dizer uma coisa dessas, então me contentei com:
— Acho que ele descarregou. E eu já tava indo pro banho, parece que a gente vai sair daqui a pouco. — olhei para Nellie enquanto mexia no meu cabelo duro de mar. Ela tentou parecer minha cúmplice, mas olhou pela janela do corredor. Ainda tinha um resquício de sol e não deviam ser nem 18h00 ainda. E era meio que de conhecimento geral que eu me arrumava em um piscar de olhos.
— É verdade, estamos atrasadas. — Nellie mostrou todos os dentes naquele sorriso vagabundo. — Eu, pelo menos, vou ficar. Essa coisinha aqui não se arruma sozinha. — apontou para o cabelo.
— Não mesmo. Ele sempre precisa de mim. — agarrei seus ombros, empurrando-a para o meu quarto. Não tinha absolutamente nenhuma roupa sua ali, mas ela poderia tomar um banho. — A gente tem que entrar, podemos conversar amanhã?
Olhei para ele com a maior plenitude que consegui reunir, uma que eu não sentia. Ele estava tão perto de mim; com seus mais de 1,80, seu cabelo abaixado, os contornos da boca tão finos e desenhados, o tórax exposto. Lindo demais. Dava vontade de se declarar até em latim, pelo menos dez vezes por dia.
Mas, como em Seul e em qualquer outro lugar que já estivemos juntos, Dongmin apenas assentiu e foi se retirando.
— Beleza. Mas se hoje mais tarde…
— O nosso boliche, né? Sim, tô sabendo. Vai ser como daquela vez que fomos com Nellie em Hongdae. Vergonha dentro do padrão.
Ri pelo nariz, quase engasgando. Queria deixar claro que aquela era a velha conhecida . Com uma bela história de superação de beijo para contar.
— Vou entrar, tá bom? Vamos, Nellie.
Não esperei para ver se ela abriria a boca. Simplesmente empurrei-a para o meu quarto e fechei a porta, também sem querer ver Dongmin entrar no dele.
Respirei fundo várias vezes. Mais um conflito que consegui escapar. Não era algo que eu deveria ficar feliz, mas estava.
Só percebi que ainda estava encostada à porta quando Nellie pigarreou, parada com os braços cruzados.
— Tá legal, essa sua novela tá gerando bastante fofoca, mas antes disso: você tem shampoo o suficiente pra mim?
Só balancei a cabeça que sim. Não conseguia pensar em shampoo. Não sei se tinha um pote inteiro ou só pequenas amostrinhas grátis que peguei do hotel na Noruega.
Nellie não me esperou ponderar. E se não saiu do banheiro depois de três minutos, era porque tinha o pacote.
Me recuperando aos poucos, quase dei um pulo quando o celular vibrou com força no meu bolso, no exato momento em que eu estava prestes a desamarrar a parte de cima do biquíni.
E a mensagem que vi me deu ainda mais vontade de nunca ter chegado ali. Nunca ter entrado em um avião para Jeju. Nunca ter aceitado o emprego na Wren naquela primavera há três anos. Nunca ter saído de Portugal. No fim, eu poderia ter continuado no útero da minha mãe.
Porque Dongmin dizia:
Por favor, tenta não achar estranho o que eu vou perguntar agora
Eu nem queria perguntar
Quer dizer, eu queria, mas ao mesmo tempo não queria
Você gosta de mim, ?
É isso que tá acontecendo?
Bloqueei o celular. Sufoquei um grito no travesseiro. Joguei o celular para o outro lado da cama. Respirei fundo. Fui separar uma roupa.
Ainda assim, tive que fazer do possível ao impossível para não invadir o quarto da frente de novo. Para fazer o quê, eu não sei. Acho que eu só precisava ver o rosto dele quando me perguntasse isso. Olhando para mim com uma careta confusa, como se ele não fizesse ideia, como se eu nunca tivesse dito nada.
Pensando bem, a vontade passou. Chega de mais drama e humilhação.
Porém, quando abri a mala no chão e comecei a atirar peças para todo canto, avistei uma coisa brilhante que eu nem lembrava de ter colocado ali. Na verdade, era para ser doado para o primeiro bazar chique que eu encontrasse em Sinchon, porque não conseguia me imaginar usando aquela blusa. Bem, até hoje.
Que mal faria mais uma carga de drama?
Nellie apontou para as luzes antes mesmo de chegarmos à entrada.
Também pudera: elas eram facilmente capazes de iluminar um quarteirão inteiro com aquele letreiro em neon e o design old school muito parecido com as aesthetics americanas dos anos 80 (especificamente para o clima de Gatinhas & Gatões, ou a terceira temporada de Stranger Things). Esse tipo de mídia não estava na minha lista com Dongmin, mas ainda assim, a ideia me deixou murcha, pensando que as Sextas da Framboesa tinham sido oficialmente canceladas por tempo indeterminado, já que fui abrir a boca e embarcar num sonho que, provavelmente, nunca aconteceu.
Mesmo assim, tendo acontecido ou não, ou Dongmin esquecido ou não, ele simplesmente não parava de me encarar — e nem precisei dos olhos de águia de Nellie para me informar disso. Desde que apareci no hall da casa com aquela blusa brilhante alá Sabrina Carpenter, de alcinha fina, costas nuas e boa distribuição nos seios, acompanhada da única saia jeans que eu tinha e sandálias abertas, não era uma coincidência encontrar os olhos dele em mim toda vez que eu virava a cabeça. Ele podia dizer o que quisesse, mas naquele momento, não estava só me vendo como sua melhor amiga bobinha (assim como não viu quando me beijou daquele jeito totalmente sórdido).
E eu estava tentando não criar possibilidades em cima de suas ações. Dongmin me achava bonitinha, uma “gracinha” como já tinha dito algumas vezes, mas não costumava olhar para mim como se eu fosse a Suzy de mini saia, ou a Barbie chinesa Songlian, com suas pernas longas que tinham a necessidade de serem exibidas em cima de saltos altos mesmo em um parque de diversões. Não dava nem para dizer que eu estava próxima de alguma supermodelo que ele flertaria num after da Dior, porque eu não estava. Eu não era assim. Mas seus olhos ainda estavam ali, desde que entrei no carro de Mingyu até quando estacionamos na frente do Vanguarda.
Seja como fosse, não queria perder tempo e sanidade com esse assunto essa noite, não esta noite, quando eu já estava com sono demais e fugindo de todas as cervejas que poderiam colocar na minha mão. Sono e álcool agora eram motivo de trauma pesado. Eu não queria mais aquela viagem alucinógena nem tão cedo, onde eu beijava pessoas e elas não se lembravam depois.
Nellie me mandou logo entrar com o restante das pessoas — os outros amigos, os mesmos conhecidos que estavam sempre conosco, mesmo não estando hospedados na mesma casa — enquanto ela e os demais resolviam a burocracia na recepção, como as horas alugadas e a garantia de nenhuma interferência no espaço (coisas que precisavam ser ditas quando se estava junto com idols). Enquanto isso, fui trocando algumas palavras com um cara muito alto e muito simpático (que não parava de olhar os meus peitos da forma mais disfarçada que podia), até perceber que ele era um dos caras que estavam fumando com Jaehyun no resort. Soltei uma série de risadinhas nervosas ao pensar que ele poderia puxar aquela coisa mortífera de repente, mas ele estava tão empenhado em dar em cima de mim que não daria esse mole.
Definitivamente, eu deveria explorar mais as lojas de roupa a partir de hoje.
Marco, que se apresentou com um levinho sotaque italiano, foi o primeiro a me oferecer uma cerveja, e eu já estava pronta para negar, mas então fui convencida a experimentar um drink bonito amarelo e laranja, e sabemos bem o que acontece quando drinks bonitos e extremamente doces começam a aparecer na nossa frente: eles são devorados, um atrás do outro, a enorme porção de álcool entrando no nosso corpo escondida dentro de um cavalo de Troia.
Quando Nellie voltou com um par de tênis desgastados e os colocou em meu colo, arregalei os olhos imediatamente.
— Nossa, tô insultada. — estendi o calçado dois números maior do que o meu.
Ela não respondeu enquanto sentava-se no banco ao meu lado e tomava um grande gole do meu drink. Marco também foi chamado para se aprontar e me deu um tchauzinho antes de sair.
— Você tá insultada pela indisponibilidade do seu tamanho ou porque vai ter que jogar?
— Os dois! — choraminguei, ela não mudou a expressão.
— Para com esse drama e vamos nos divertir. Não ouviu nada do que eu disse em casa? Aliás, você tá a maior gostosa. Chamando atenção até dos gringos. — ela deu uma piscadinha quando gesticulou discretamente para Marco. Revirei os olhos.
— Tecnicamente, somos gringas também.
— Eu sei, mas ele, , Marco Anglade, é uma joia de capa de revista. Você não o conhecia?
— Vocês são os únicos que conheço aqui, Nellie. — comecei a desfazer as tiras da minha sandália. — Como essa gente toda se conhece?
— Os meninos têm amigos, . Mas quanto ao Marco, ele trabalha na Prada e na Cartier. Algum tipo de produtor executivo ou qualquer coisa assim. Tá trabalhando num editorial de verão em Jeju e por isso apareceu aqui. Não é demais? — o sorriso que ela me lançou não foi retribuído. Eu sabia exatamente onde Nellie queria chegar. — E fiquei sabendo que ele é solteiro, sabia? E aproveitando que Dongmin não para de te olhar…
— Não fala mais nada. — olhei para os lados na mesma hora. Tudo que eu menos precisava era de outra pessoa escutando os planos malucos de Nellie e interpretando errado. — Já não basta você ter tentado me jogar pro Jaehyun? Não quero passar essa vergonha de novo.
— De novo? Mas você não… — Nellie parou e eu tive vontade de pegar aqueles cadarços e me enforcar com eles. — Não me diga que vocês dois…
— Não! — minha bochecha ardeu de novo. Meu corpo inteiro ardeu.
— No meio daquelas pedras? Tem certeza?
— Tenho certeza.
— De quem foi a ideia de ir até lá?
Não respondi. Desfiz os cadarços com uma certa pressa.
— Foi sua. — Nellie sussurrou, impressionada. — Então você seguiu o plano, você tentou fazer ciúmes no Dongmin. Meu Deus, como eu perdi isso? — ela quase bateu palminhas. Eu a fuzilei com o olhar.
— Não aconteceu nada, Nellie, e quer saber, eu acho que ele nos ouviu lá no resort, o que tornou a coisa toda uma vergonha nuclear. E eu tenho experiência em vergonhas nucleares.
— E pelo visto, não tem experiência nenhuma com garotos. — ela arqueou as sobrancelhas, calçando o primeiro pé do tênis rosa com glitter. — E daí se ele nos ouviu? Mesmo assim te levou para as pedras e ficou lá com você um tempão, e pelo que eu saiba, quem tem tanta aversão assim de outro alguém não faz isso. A não que ele tenha tentado te afogar na margem e você não está me contando.
— Não, ele… ele foi bem legal. — até demais. Legal a um nível que eu não esperava.
— Legal já basta pra beijar na boca, . É mais do que suficiente, aliás. E para de me olhar assim. — Nellie advertiu quando os meus olhos já estavam se espremendo em sua direção de novo. — Você não quer ficar de cabeça abaixada pelo resto da viagem, você quer se divertir e fazer um cara se lamentar por ter te dado um fora. E quando você quer algo, , você consegue.
Ri pelo nariz, calçando o meu tênis.
— Se eu quisesse essas coisas que você tá dizendo…
— Você teria colocado a sua blusinha polo da Abercrombie, não esse escândalo de paête. Tá seguindo meu raciocínio? — Nellie me encarou sob os cílios. — O Prada Boy ali quer te beijar, e quando ficarem sozinhos de novo, você tem que estar preparada pra isso, me entendeu? Se fosse mais ousada e aceitasse ir para cima…
— Nellie. — balancei a cabeça várias vezes. Não, sem ir para cima de nada. Não de novo.
Vi Mingyu se aproximando de nós pelo canto do olho e fiz um sinal para que ela não dissesse mais nada sobre o assunto. De preferência nunca mais.
— Já estão prontas? — ele perguntou, excessivamente animado. — A gente tem que dividir os times. Quantos nós você tá dando nisso aí? — ele gesticulou o queixo para mim.
— O bastante pra me proteger. Sabe quantos acidentes podem acontecer comigo só por ficar em pé nesse piso liso?
— Tá preocupada de sair rolando junto com a bola? Vai querer um capacete e joelheiras também?
— Se você conseguir achar. — sorri com ironia. Mingyu semicerrou os olhos.
— Pensando bem, você é mais leve que a bola e é maior para strikes. Se quiser trocar…
Ouvi uma risada alta de Jungkook, que mexia no celular mas tinha os ouvidos atentos na conversa. Jaehyun também estava perto dele, calçando os próprios tênis enormes e com os ombros se mexendo devagar, como se estivesse rindo também. Desde quando eles estavam ali?
Mas não me preocupei dessa vez. Eu e Nellie estávamos tipo a uns cinco metros de distância, e seu tom de voz estava, por incrível que pareça, perto do nível normal. Então, fiquei consciente o bastante de que eles só estavam sendo ridículos. Tão logo eles se colocassem na minha frente, sentiriam na pele os estragos de me colocar naquela brincadeira.
Com todos devidamente calçados, Yugyeom já puxava o painel de placar para ficar bem ao lado da entrada. Ou seja, rotas de fuga bloqueadas. Dois times foram divididos e todos jogariam em revezamento. Acabei ficando com Mingyu, Nellie e Jaehyun, enquanto Dongmin estava com Jungkook, Yugyeom e Marco, que foi o único disposto a jogar antes da comida e da bebida chegarem.
Sem mais delongas, ele foi o primeiro a se aproximar da pista e lançar a bola. Não fiquei nada surpresa quando, em sua primeira jogada, ele derrubou todos os pinos brancos no deck, concedendo assim o primeiro ponto do time adversário. Vê-lo comemorar alegremente com os outros só fez Mingyu estalar ainda mais os dedos.
Andei de um lado para o outro ao longo da mesa, aceitando meu destino com uma cerveja que estava quase no fim, vendo Mingyu e Nellie jogarem praticamente juntos, Jungkook entrar no seu modo competitivo que era assustador e Jaehyun fazer um strike lindo e muito pacífico, sem grandes comemorações exageradas como os outros garotos. Esse lado sereno e tácito dele era estupidamente atraente.
Atraente? Meu Deus, cala a boca.
Quando Mingyu apontou a pista para mim, paralisei. Pensei em perguntar se eles queriam realmente vencer, ou se não tinham nenhum amor no coração para estarem me obrigando a fazer aquilo, mas nada disso teria qualquer efeito na decisão deles. Então, caminhei até a prateleira da house ball, onde tinham as bolas da casa. Haviam números em cada uma delas, e diversas cores diferentes, algumas até mesmo estampadas e de diferentes pesos. Olhei para o meu time, que agora estava distraído em uma conversa e eu não sabia o que fazer. Na verdade, eu poderia simplesmente perguntar, mas hesitei. Parecia errado fazer uma pergunta sobre o jogo quando ninguém tinha feito nenhuma até agora.
Puxei a primeira bola à minha frente. Ela era tão pesada que me deu um susto, quase escapando de meus dedos e indo de encontro aos meus pés, que não saíram de casa naquele dia esperando ser esmagados. Se não fosse pelas mãos surgidas do nada — de novo, e desta vez eu o reconheci até pelo cheiro — agarrando aquela coisa, Nellie teria que me dar uma carona até o hospital.
Jaehyun colocou a bola de volta no lugar, sem rir ou soltando piadinhas, mas não adiantou de nada; despertou a vergonha nuclear de novo, me fazendo realmente querer afundar no piso.
— Foi mal, talvez eu seja péssima até na regra básica de segurar o objeto.
Ele abriu um sorriso completo na minha direção, um sorriso que ainda era hesitante, mas que, aos poucos, estava quase se tornando normal.
— Tá vendo essas numerações? São os pesos específicos de cada bola. Como você não tá familiarizada com o jogo, melhor pegar a mais leve. Essa aqui. — ele puxou uma bola verde vivo, colocando delicadamente na minha mão. — Fecha os seus dedos bem aqui, desse jeito. — puxou meus dedos, colocando-os levemente em cada buraco da bola, com a voz calma e mansa, perfeitamente equilibrada. — Agora é só jogar. Posso te mostrar, se quiser.
— Por favor. — gemi, e ele sorriu ainda mais.
— Tudo bem, vamos lá.
— Olha, mesmo se isso não der certo, você ainda é um ser humano exemplar, tá bom? — falei enquanto caminhávamos para a pista. — Tá fazendo a sua parte, vou anotar a sua placa de salvador da pátria. Talvez eu divulgue pra mais pessoas os seus outros talentos além de cantar e dançar.
— Prefiro que você não faça isso. — ele balbuciou. Dei de ombros, me posicionando na pista.
— Então tomara que elas nunca encontrem você.
O ar ficou mais quente quando senti sua presença nas minhas costas. Sua voz soprou ao lado de meus ouvidos, e um arrepio intrometido passou voando pela ponta das orelhas.
— Coloca os dedos como eu disse, levanta a bola até o peito. — minhas mãos foram erguidas pelas dele embaixo. — Abaixa um pouco os joelhos e olha para os pinos, esqueça os seus pés. Pense no objetivo, não em como vai cruzar a linha de partida.
Tenho certeza de que ele tinha falado mais coisas, mas o meu cérebro não conseguiu captar a maior parte. A partir do momento em que ele se aproximou, teve o cheiro, o hálito, e alguma coisa se contorcendo no meu estômago, aquela familiaridade de novo que já estava sendo ridícula porque não ia para lugar algum.
Concordei com a cabeça, recuperando-me do recente torpor e vi quando ele se afastou para o lado para me olhar.
— E aí, , vai desempatar esse jogo ainda hoje? — ouvi Jungkook no outro time.
— O hambúrguer esfria e o lámen incha, sabia disso? — agora foi Yugyeom.
Cerrei os olhos, soltando um suspiro pesaroso.
— Vocês são horríveis. — estalei a língua, focando nos pinos. — As pessoas precisam de tempo pra jogar isso aqui!
— Acho que vai precisar de bem mais do que isso pra conseguir vencer. — Yugyeom riu de novo, recebendo um tapinha de suporte de Jungkook. Revirei os olhos e não os escutei mais.
Avancei mais para a pista, parando rente à linha vermelha que me impedia de atravessar. A ansiedade fazia meu coração bater nas orelhas. Balancei a cabeça e olhei para a frente, focando nos pinos. Objetivo. Mudar de direção. Firmei meus dedos na bola, olhei para Jaehyun e lancei-a pelo meio da trilha de madeira.
A esfera pesada rolou a uma velocidade surpreendente, até mesmo para mim. O estrondo de sua gravidade foi alto e passou, e então, ela correu em linha reta, desviando-se minimamente perto da chegada, mas se corrigindo a tempo de se chocar com todos os pinos brancos, bagunçando-os em um caos barulhento e frenético.
As comemorações soaram ao meu redor, mas ainda permaneci estática, com a boca entreaberta em confusão, como se aquele strike tivesse vindo de outra pessoa, não de mim. Quando senti as mãos de Nellie balançarem meus ombros e seu grito invadindo meu tímpano, acordei do estado de abalo que foi como um chute e gritei junto com ela, recebendo seu abraço enquanto Mingyu celebrava com seus xingamentos habituais.
Quando ela me soltou, olhei para o lado e corri na direção de Jaehyun, que batia palmas com orgulho, e fiz uma coisa que não entendi na hora e que provavelmente jamais vou entender.
Joguei os braços em volta e o abracei, berrando a minha vitória, sentindo o corpo ser erguido do chão de um jeito distante, mas real. Aquilo tinha sido real.
— Você viu aquilo? Meu Deus, você viu mesmo aquilo?! — falei agitada, na curva de seu pescoço. Suas palavras passavam por mim, ainda muito incompreensíveis; eu sabia que você ia conseguir, você é incrível, … Esse tipo de coisa que fez com que eu me sentisse bizarramente feliz.
Eu tinha acertado um strike de primeira. E estava abraçando Jaehyun por isso.
Abraçando Jaehyun.
A constatação me acertou com o peso de uma chave de roda.
Me afastei assim que pousei os pés no chão, arrumando o cabelo como uma desculpa para olhar para baixo e limpar a garganta.
— Que bonitinhos! Não sabia que vocês estavam nessa vibe! — gritou Jungkook, e quando olhei para ele, soube que eu estava ligeiramente ferrada com aquela situação.
Porque todos os olhares estavam centralizados em mim, absolutamente todos, até de quem não estava jogando. Reparei principalmente em Dongmin com a testa franzida de confusão ou descontentamento, Nellie com os olhos arregalados e uma pergunta interna como “o que deu em você?” e Mingyu revezando entre mim e Jaehyun em uma análise embaraçosa.
Eles estavam certos: o que diabos foi aquilo?
— E aí, Yuno, quer me dar uma aulinha também? Tô precisando de um abraço… — Yugyeom zombou com uma gargalhada, mas recebeu um tapa imediato e pesado de Dongmin, que ainda tinha os olhos grudados em mim, o que me fez prender a respiração e desviá-los imediatamente. Não estava afim de confrontar algo tão árduo e pesado quanto aquele olhar.
Me preparei para pedir desculpas a Jaehyun quantas vezes fossem necessárias, porque eu não era burra e nem nada disso para não saber das diferenças culturais entre nós dois, e aquele abraço certamente era o primeiro da lista, mas o encontrei com a mão atrás da cabeça, corando como eu, porém sem se afastar ou se importar se a cidade inteira estivesse vendo. Se eu não estivesse com a mente tão zoneada, diria até que ele parecia ter chegado mais perto de mim.
— Desculpa. Jaehyun, eu fiquei… Bem, você sabe. — pedi mesmo assim, enrolando a língua mais do que o normal. — Não foi por mal, eu devia ter pensado melhor.
— Não. Não se preocupa com isso. — ele balançou a cabeça, e começou a se afastar de mim. — Eu vou só… pegar uma bebida. Parabéns, de novo. Sabia que você conseguiria.
E então, me dando mais um sorriso contido, ele se retirou para perto dos outros ao mesmo tempo em que Mingyu gritava por tempo para a próxima partida.
Olhei para trás e vi quando Dongmin desviava sua atenção de Jaehyun e voltava a focar na pista de boliche, pensativo e calado. Comecei a sentir um estranho clima de tensão no ar e isso não era nada bom. Eu tinha me enlaçado com Jaehyun por pura gratidão, para começar, e me sentido tão envergonhada quanto ele, para terminar. E, entre essas duas coisas, Dongmin interferiu com seu estranho olhar acusador, o que me deixava confusa e irada, porque não fazia sentido.
Encarei Nellie e balancei as mãos em uma clara resposta de não quero falar sobre isso.
Talvez eu nunca quisesse.
Domingo
11 de setembro
Vanguarda
11 de setembro
Vanguarda
Tentei me segurar na emoção com minha primeira vitória no boliche (e na vida, diga-se de passagem), mas não consegui. Meu primeiro strike de sucesso não impediu que perdêssemos o jogo de qualquer jeito, mas ainda assim, ali estava eu, tentando lançar bolas de basquete em uma cesta fincada na parede a poucos metros do meu rosto e que soltava um enorme “péeeee” piscante em vermelho vivo quando eu errava, como se estivesse caçoando de mim. Bem, contando o fato de que eu estava numa série contínua de erros, dava para entender as interferências elétricas sem paciência. Toda a minha sorte tinha sido gasta naquele arremesso na pista de boliche.
Por causa disso, mal consegui ouvir quando alguém se aproximou ao meu lado, alguém alto o suficiente para vetar a passagem do ar condicionado.
— Eu não sabia que você era fã do Michael Jordan.
Quase errei o próximo arremesso. Segurei a bola e virei, dando de cara com Jaehyun e seu sorrisinho econômico. Talvez estivesse um pouco menos econômico por causa daquela cerveja que ele segurava, que devia ser a terceira ou quarta.
— Quem? — perguntei, abobada. Daí, me virei para olhar o painel da máquina, onde a foto de um homem negro com uniforme branco e vermelho em traços bem reais estampava quase o metal inteiro. — Ahh… Desculpa te decepcionar, mas esse aí não tá registrado na minha planilha de crushes.
— Porque ele é velho demais ou alto demais?
— Rico demais. Tenho um fetiche estranho de querer ser a sugar mommy da relação.
Ele riu, com a boca encostada na abertura da cerveja. Não entendi o que exatamente meu cérebro viu e processou daquela cena, mas meu estômago deu um nó tão forte que precisei tossir e voltar a encarar a cesta.
As covinhas. É, eu ainda tô me acostumando com elas.
— Seria bom se você comprasse uma dessas, então. — disse ele, colocando a cerveja na bancada ao lado da máquina. — Quem sabe como dona de uma você tenha mais tempo pra tentar.
Semicerrei os olhos.
— Por que eu sinto que você tá me zoando?
— Eu jamais faria isso.
— Não acredito em você.
— Tudo bem, eu jamais faria isso na sua frente.
Prensei os lábios para não sorrir. Não podia entregar os pontos assim.
— Se você quiser, posso tentar mais uma agora mesmo.
Ele deu de ombros.
— A escolha é sua.
— É sério, pode dar certo.
— Claro que sim.
Bufei. Já estava olhando para a cesta de novo e erguendo os cotovelos com aquela bola que era mais leve do que deveria ser, mas que ainda assim, me fazia fingir que estava segurando uma coisa profissional e lancei, torcendo para que aquela palhinha de sorte se manifestasse ali, que ela me fizesse ter outro surto de felicidade e fosse para cima de Jaehyun…
A bola deslizou umas duas vezes pelas bordas da cesta, três segundos que se arrastaram com tensão em câmera lenta até que ela tombasse para o lado e ativasse o meu novo som desfavorito: pééé.
Ouvi sua risadinha antes mesmo de me virar. Ele nem estava tentando se segurar.
— É, pode rir. Em minha defesa, eu avisei. — resmunguei. Ele arqueou uma sobrancelha. — Avisei que a minha sorte é limitada. Deu certo uma vez, o próximo ciclo deve ser só daqui a quinze anos.
— Quinze anos pra quem tá num nível intermediário. Você eu apostaria uns vinte anos.
E riu de novo. Estava rindo de verdade. E eu ainda não estava entendendo os sintomas bizarros de gastrite aguda do meu estômago, sendo que eu nem tinha gastrite.
— Ah, que engraçado. Quer dizer que você sempre caçoa de meninas congenitamente sem coordenação ou só nos fins de semana?
— Só com aquelas que eu me dou bem. — deu de ombros, estendendo a mão para a bola que eu segurava. — Permita-me?
Entreguei a bola, vendo-o se aproximar até à frente da cesta e encará-la por dois segundos antes de lançá-la, que fez um giro perfeito no ar até afundar no centro do círculo, fazendo a máquina vibrar em um barulho que eu ainda não tinha escutado: o “plim-plim” da vitória.
— Fala sério. — murmurei, desatando uma risada perplexa. — Isso, em questões morais dos jogos de basquete, foi injusto.
— Por que injusto?
— Porque essas coisinhas aqui são feitas pra crianças. Pra quem não tem altura pra jogar basquete de verdade. Não pra vocês, idols, com no mínimo 1,80 que tem coordenações perfeitas de dançarinos e um pulmão cheio de energia, apesar de todo o cigarro que ficam colocando nos…
Parei de falar. Tive medo de que, mesmo sem intenção, minha voz tenha soado crítica ou grossa, do jeito que uma professora usa para dar bronca em um aluno.
Jaehyun olhou para mim, agora segurando outra das bolas que pulavam de um buraco depois que você acertava.
— É, eles deviam colocar uma placa de Proibido Adultos aqui. Nem eu entendo como isso ainda não foi quebrado. — e riu, sem tentar se explicar e nem nada. Mas aquela vontade ainda estava em mim.
— Eu não quis te julgar. Ou, sei lá, desdenhar de você…
— Por causa do cigarro? — ele girou a bola em um dedo por dois segundos, balançando a cabeça. — Não me ofenderia nem se tentasse. Sei os danos que ele causa. É só uma coisa que eu faço desde… — sua boca parou no ar, entreaberta, até ele se virar para a cesta de novo, com um olhar diferente. — Desde um tempo.
Esperei por mais, mas aquilo foi tudo que escutei. Tinham histórias por trás dele, coisas que ele não contaria para uma garota que mal conhecia (e que provavelmente estava fazendo um esforço imenso para tolerar, em respeito aos amigos), mas ele me deixava louca. De uma forma respeitosa, claro, mas louca para saber de alguma coisa. Não sabia palavra melhor para isso.
— Tá tudo bem. Não é como se eu vestisse um coletinho da patrulha anti-nicotina e fosse te indiciar por isso. Eu convivo com o Dongmin.
— É, eu sei.
Por um momento, ele ficou em silêncio, olhando as linhas da bola de basquete, pensando em não sei o que até se concentrar na cesta e se preparar para lançar.
— Mas nem todo mundo é desse jeito que você diz. A maioria finge ser algo que não é na frente dos outros. — mais um barulho de pontos. — E eu não imaginava que você fosse tão facilmente surpreendida.
Eu não era. Ou não costumava ser. Mas quando o assunto era ele…
— Não precisa fazer cerimônia, você é mesmo bom em quase tudo. — dei de ombros, encerrando o argumento. Observei-o pegar mais uma das bolas e jogá-la na cesta com uma mão só, pontuando de novo sem nenhum esforço. Abri a boca em um “o” teatralmente afetado. — É sério, para com isso, tá me deixando pra baixo.
— Você também é boa em muitas coisas. Só tem medo de tentar.
— Organizar um closet por cores e estação conta? — pisquei. Ele ainda estava com a mesma expressão. — É uma gentileza sua, mas tem coisas que a gente simplesmente não são pra gente, já aceitei isso. Tipo… — umedeci os lábios. — Você já teve a sensação de não nascer pra alguma coisa?
— Não nasci para gravar datas. — respondeu prontamente, levantando os ombros. Ele jogava uma bola de um lado a outro, e a forma como riu não me convenceu de que aquilo poderia ser verdade. — E com certeza não nasci pra fazer o que você faz. É um campo de conhecimento muito além da minha capacidade.
Ele me ofereceu uma das bolas. Olhei com desdém, mas logo agarrei a esferinha de plástico, me deixando levar pela esportiva do jogo.
— Achei que você diria medicina ou mecânica, mas pelo visto, você pode se dar bem nessas coisas também. — olhei para a cesta. Por um momento, nenhum som foi ouvido que não fosse a risada dele. — Mas é que… A gente sempre sabe no que é bom, e do que a gente gosta, mesmo que demore pra sentir isso de verdade. Mas sempre está lá. E, infelizmente, na maioria das vezes, essa coisa vem tarde demais, quando a gente já tá envolvido em outra coisa e não tem mais tanto tempo pra correr atrás dela. É tão…
— Injusto. — ele puxou bastante ar pelo nariz. — É, eu sei.
O olhar dele foi intenso para cima de mim. Aquela intensidade de quem compartilha alguma coisa com você. Pigarreei.
— É, tipo isso. Eu gosto do meu trabalho, é o que eu queria fazer, acho empolgante lidar com ações de ativos, configurar o MetaTrader e sentir a adrenalina de colocar trinta mil dólares em uma startup que acabou de nascer. Eu amo mesmo isso, mas às vezes eu só esperava… mais.
Meu queixo se voltou para o chão involuntariamente enquanto eu tentava engolir aquela frustração. Reclamar não era meu ponto forte, muito menos resmungar ou sair bicando a porta do edifício da Wren toda vez que entrava por ele, claramente desgostosa do lugar, mas… Bom, eu não amava o que estava fazendo ali, no 7º andar, ouvindo ordens de um homem com metade do meu tamanho, que me olhava suspirando enquanto dizia: olha, se continuar assim, vai ter ótimas oportunidades no futuro. Assim como? Passar de assistente para secretária? Poder cumprimentar os outros fodões da indústria com um aperto de mão quando chegassem ao escritório dele para fazer negócios com ele?
Não era isso que eu estava imaginando. Não chegava nem perto. Mas eu não conseguia admitir isso. Não conseguia verbalizar esse fracasso.
Como se escutasse meu cérebro tiquetaqueando, Jaehyun falou:
— Você se arrependeu alguma vez? De ter ido pra Seul.
Provavelmente, Jaehyun não estava tão perto de mim há dois minutos, quanto sua voz me deu a impressão de estar, mas não liguei. Ele estava fazendo aquilo de novo: me enxergando como se eu fosse água, cristalina e transparente.
— Vou estar mentindo se disser que não. — respondi, por fim. — Mas não foi o suficiente pra me fazer voltar. Na verdade, voltar é um lance meio fora de cogitação. Acho que eu só precisava entender que era um processo, uma fase. Eu ia gostar do que viesse depois, independentemente se fosse o meu sonho ou não.
— E você ainda está esperando esse depois.
— É, ainda estou esperando. — sentada em uma mesinha minúscula na última baia da fileira do escritório, cumprimentando executivos que nunca aceitariam me encontrar sozinhos ou ouvir as minhas propostas sem o nome de Claude Baker acoplado a mim.
Se possível, Jaehyun chegou ainda mais perto, agora também virado para a cesta, como se ela, de repente, fosse um quadro de Da Vinci, exigindo total silêncio e atenção dos espectadores. Sua mão foi para a bola que eu ainda estava segurando, e ficou ali, sem a intenção de tirá-la de mim, e eu sem pressa de devolvê-la.
— Você é mesmo fascinante. — ele disse em uma voz tão baixa que quase precisei pedir para repetir. Mas só aquela palhinha me causou um arrepio na nuca, então achei melhor ficar com a minha interpretação. — Saber o que quer e ir atrás disso não é pra qualquer um.
— Nunca achei que fosse pra mim. Tanta coisa podia dar errado. Tanta gente torcendo por isso… — senti o gosto amargo na minha boca, lembrando dos rostos inconformados dos meus pais quando anunciei minha decisão. — Era só uma coisa que eu tinha que tentar.
Suspirei. A bola ainda estava na minha mão, e o painel de pontos estava piscando, esperando o próximo lance. Os dedos de Jaehyun estavam contornando a textura do objeto, e quando olhei para ele, ele já estava ali, olhando para mim, demorando nesse gesto. Não me importei; estaria mentindo também se dissesse que não gostava um pouco que fosse quando ele me olhava, independentemente das coisas que estivesse avaliando e julgando com isso.
Mas ali, naquele momento, sabia que ele não estava pressupondo ou sentenciando qualquer coisa ruim sobre mim. Pelo contrário, ele estava me entendendo. Me deu ainda mais certeza que aquele “fascinante” realmente existiu, e foi dito de uma forma boa.
— Tentar é bom. Tentar é o primeiro passo. Se fosse comigo, acho que eu facilmente seguiria as ordens dos meus pais e nunca chegaria nessa parte do tentar, mesmo se quisesse muito alguma coisa.
Ergui a cabeça.
— Seus pais não parecem ter forçado você a virar idol.
— Não forçaram.
— Você parece gostar muito do palco. Tipo muito.
— Eu gosto.
— Você simplesmente sabe que consegue fazer aquele passo de Favorite como um profissional? Quer dizer, se jogar no chão e tal é normal pra vocês, mas daí quando emendam com Love on the Floor, naquele momento um pouco antes de tocar no chão, você sorri pra câmera como se já soubesse exatamente o que fazer, e faria sozinho, com ajuda ou não, e nem parece ficar nervoso com isso, nem se… — parei quando percebi que ele me encarava. Com as covinhas. — Você entendeu.
— Entendi que você é uma nctzen disfarçada.
— Não sou. — guinchei.
— A única pessoa que eu já vi detalhando tanto uma coreografia foi o Taeyong, e ele só faz isso porque é obrigado.
— Todo mundo repara em coreografias.
— Não reparam, não.
— Quando vocês se esfregam no chão em um ato quase pornográfico pra 300 mil pessoas verem, eu garanto, elas reparam.
Os cantos dos lábios dele se esticaram para baixo. Me senti uma idiota, meio maluca. Minha mão começou a suar sem motivo nenhum.
— É, pensando por esse lado, faz sentido. Mas em Favorite você se entregou.
— Ok, você também, estamos quites. Você descobriu que eu sou uma fã e eu descobri que você gosta mesmo de ser idol…
— Eu disse que sim.
— … mas que nem sempre foi assim. Tinha alguma coisa antes.
Ele riu. Agora deixei que ele pegasse a bola.
— Vamos começar com isso de novo?
— Prefere falar sobre cactos? Política? Os vulcões do Havaí?
— Você conhece muita coisa.
— Você também, senhor maria-farinha.
Trocamos um sorriso cúmplice. Meu Deus, o que era isso aqui e por que eu estava gostando tanto?
— Sou só um pouco… meio curiosa. — expliquei, dando de ombros. — E você poderia ter escapado dessa caso ficasse na sua e não se aproximasse de mim como sempre foi.
Jaehyun franziu os lábios e assumiu um rosto sério. Percebi que, de novo, as palavras rolaram da minha boca sem se ater muito no tom, mesmo que continuassem sendo verdade: Jeong Jaehyun não falava comigo. E estava falando agora, graças à magia do Chuseok ou seja lá o que fosse.
Não faço ideia do que pode ter acontecido com ele, já que eu claramente não tinha muitos atributos atrativos que fazia meia dúzia de pessoas se interessarem em fazer amizade comigo. Aliás, Jaehyun não precisava de mais amigos. Era um fato estampado no seu comportamento. As pessoas costumavam ir até ele, e não o contrário.
Ele coçou a garganta, desviando os olhos.
— É, já tava na hora de dar uma atenção pra nossa mascote. — zombou, e semicerrei os olhos por estar sendo implicitamente comparada a um labrador. — E é, existiu uma coisa antes de ser idol, mas você não vai querer saber. Não é interessante.
Ele lançou a bola no ar. Cesta e plim-plim.
— Claro que eu quero. — insisti. — Agora você tem a obrigação de terminar, Jeong Jaehyun.
Ele riu ao mesmo tempo em que o letreiro piscou com a palavra vencedor e o barulho de fogos imaginários e plateias ensandecidas saindo da máquina invadiu o pequeno espaço entre nós.
— Quer um sorvete? — ele começou a se retirar, indo até uma máquina quadrada de sorvete expresso, ao lado de um fliperama colorido e ilustrado com um desenho de três garotos de camiseta sem manga apontando armas de chumbinho para a tela.
Fui atrás dele, vendo-o pegar um copo colorido e colocá-lo embaixo do bico de metal.
— Eu prefiro respostas. Qual era seu outro sonho? Hollywood e calçada da fama? Costureiro? Lutador de MMA?
— Qual sabor você gosta? — ele puxou outro copinho.
— Baunilha. Você não vai conseguir fugir assim.
Ele puxou a alavanca e o copinho azul se encheu de sorvete branco cremoso. Quando me ofereceu, uma pontinha de sobremesa esbarrou no seu dedo, e ele imediatamente levou à boca e passou a língua para limpar. A cena ficou se repetindo em eco na minha cabeça por umas três vezes, no mínimo, me dando vontade de ir checar minha temperatura.
O ar-condicionado desse lugar devia estar com defeito.
— Não tô tentando fugir. Só não sei como dizer isso. — respondeu ele. Voltei ao mundo real.
— É só dizer. É muito grave? Você queria ser um serial killer ou coisa parecida?
— Não. Digamos que é bem mais frenético do que isso.
— O que é?
— Queria ser pai.
Não sei como aquele copo frágil e de plástico não escapou da minha mão.
Quero dizer… Oi? Ele tinha dito isso mesmo?
— Não brinca.
Ele piscou. Eu arfei.
— Você tá falando sério?
Ele esperou um tempo longo para cacete até rir.
— Sua cara foi a melhor. Mas não, não é sério. Quer dizer, não totalmente.
Jaehyun agarrou seu copinho de sorvete e se virou para um dos fliperamas antigos, onde um jogo muito parecido com Street Fighter Alpha esperava seus próximos aventureiros.
Engoli em seco, conseguindo movimentar meus pés para ir até ele depois do meu leve estado de abalo.
— Ok, isso foi tipo a pior brincadeira que alguém já fez. Não dá pra sair falando que quer ser pai de crianças, pequenos humaninhos com catarro e piolhos e depois dizer que tá brincando. A não ser que você esteja falando de pai de pet…
Esperei que ele virasse o rosto, mas Jaehyun olhava para outro ponto, um ponto entre seu pulso e a palma da mão, raspando um dedo no local com um ar melancólico. Ou parecido com isso.
Demorei para me tocar de que aquela era a mão que estava com a tala depois do barco.
— Eu toquei piano por um tempo. — ele alisou a região entre o anelar e o médio. — Na verdade, foi por muito, muito tempo.
Fiquei olhando para ele, sem saber o que dizer. Ele não estava mais sorrindo.
— Era pra ser uma carreira. Daquelas que têm um diploma de excelência no Conservatório de Moscou, espetáculos no Teatro alla Scala em Milão, poder cobrar milhares de dólares em uma composição, contribuir para o Balé Bolshoi. E a minha favorita: compor a nova trilha sonora de Star Wars. — ele riu fraco. — Existiam várias possibilidades. Meus pais estavam animados. Diziam em todo canto que seu único filho ia pra Juilliard. E aí depois estavam tendo que explicar porque isso não aconteceu.
Meu coração apertou. Olhei para o pulso dele.
— Por causa da sua lesão? — balbuciei. Ele me fitou. — Não quis ser intrometida. É só que… aquele dia, você me deixou preocupada, e daí eu perguntei ao Dongmin, e ele disse que existia uma lesão, mas não falou nada além disso, eu juro. Não era pra invadir sua privacidade. — expliquei com mãos agitadas. Ele tinha uma expressão entretida, como se fosse capaz de se sentar em qualquer canto ali e me ver falando a noite inteira, mesmo que fosse sobre argamassa.
Depois, soltou uma risadinha.
— Eu lembro de dizer que você não precisava se preocupar.
— Me preocupo em não causar danos às pessoas.
— Minha tendinite crônica não é uma das vítimas da sua síndrome de Murphy, eu te garanto. — Jaehyun tomou um pouco do sorvete. Fiquei observando as suas mãos compulsivamente. — Aconteceu há muito tempo. Eu tinha acabado de voltar para os Estados Unidos. Fiz uma audição muito difícil pra entrar na Juilliard, e todo mundo estava exausto. Talvez por isso eu tenha decidido pegar a bicicleta pra ir na loja de quadrinhos. Eu nem queria ler de verdade, só não queria ficar em casa pensando no resultado da audição, ver minha mãe andando pra lá e pra cá olhando o telefone ou a caixa de correio, ansiosa o dobro por mim. E talvez não quisesse estar lá se a resposta fosse não, sei lá. Hoje não faço ideia do que eu pensei. Só sei que eu tinha 14 anos e uma Monark, e pedalei por quase dois quilômetros até aquele caminhão surgir do nada e eu tentar impedi-lo de avançar com as minhas mãos, como se eu pudesse fazer isso.
Ele riu com divertimento, mas eu não consegui. Mal estava conseguindo processar aquilo.
— Meu Deus… você sofreu um acidente? — tinha certeza que meus olhos estavam arregalados. Ele assentiu.
— Não foi tão grave assim. Ele freou bem rápido…
— Como pode dizer que não foi tão grave assim? Você parou de tocar piano.
— Eu…
— E tudo bem, você ficou vivo e tudo mais, e ninguém diria que passou por uma coisa dessas só olhando pra você hoje, mas mesmo assim, acabou com um futuro inteiro. Não consigo imaginar como…
Respirei. Percebi que não adiantava muito falar. Poderia usar substantivos e verbos juntos de um jeito super agradável e nem assim conseguiria expressar meu compadecimento por Jaehyun. E nem a vontade que eu estava de pegar na sua mão e avaliar linha por linha, veia por veia, camada por camada.
— Não precisa imaginar. Eu coloquei as mãos na frente da carroceria, quebrei o pulso, ralei os dois joelhos e tinha tanto sangue na minha testa que o motorista entrou em desespero. A ambulância demorou vinte minutos pra chegar e meus pais demoraram duas horas pra ficar sabendo, já que eu não tinha levado o celular, nem os documentos e, ainda por cima, era estrangeiro. Fiquei em uma maca do pronto-socorro por quatro horas, sentindo dor e fome, com uma fratura que nem tinha sido estabilizada direito, e não podiam autorizar uma cirurgia sem a presença dos meus pais, principalmente porque minha vida não estava em risco. Depois de um tempo veio o diagnóstico, junto com a ligação de Juilliard anunciando minha aprovação.
Ele riu pelo nariz, como se tudo fosse engraçado hoje. Uma verdadeira piadinha na mesa de jantar na ceia de Natal.
— Minha nossa. Isso deve ter sido… Cacete, deve ter sido muito ruim.
— Foi ruim. Mas poderia ter sido pior. Eu poderia ter ficado por lá, feito as fisioterapias, tomado as medicações e gastado muito dinheiro em terapias imunológicas só pra poder recuperar o sentido de uma coisa que já tinha perdido o sentido há muito tempo. — ele coçou a nuca. — Meus pais foram os primeiros a ver isso. E daí, voltamos pra Coreia.
— Então você… simplesmente desistiu?
— Eu aceitei desistir. Aceitei que não tava adiantando repetir na frente de um espelho que eu ainda queria fazer aquilo, que ainda era minha vocação. Se eu me dedicasse, o tratamento poderia dar certo, eu teria que conviver com umas dores leves que me obrigariam a tirar um intervalo de um ou dois dias do piano, mas no geral, daria certo. Talvez não para a trilha de Star Wars, mas o bastante para o certificado da Juilliard. No início, eu queria insistir. Mas… não por mim. — Jaehyun inspirou. — Era por eles. Porque eles mereciam, porque são ótimos pais, porque também fizeram sacrifícios por mim. Porque não ficaram bravos por eu ter saído sozinho, por ter feito uma coisa idiota que mudou meu futuro. E só tomei a decisão final porque eles disseram que eu poderia desistir, que estava tudo bem, que eu arranjaria outra coisa pra fazer. Um ano e meio depois, estava assinando um contrato provisório com a SM e descobrindo que eu podia cantar e dançar, duas coisas que nunca passaram pela minha cabeça.
— E muito bem, por sinal. — soltei. Ele sorriu.
— Foi de tanto cantarolar as notas de Rachmaninoff. Quem diria que dariam em alguma coisa.
Jaehyun umedeceu os lábios se virou de novo na direção contrária, dessa vez andando até as poltronas acolchoadas da parte de jogos de corridas automobilísticas, apontando com a cabeça para o assento vizinho, me chamando. Nós dois nos ajeitamos em frente ao pequeno volante que fazia parte da realidade virtual do jogo, que até me daria vontade de experimentar, caso eu não estivesse tão ferozmente concentrada e inclinada a dizer para ele:
— Eu sinto muito, Jaehyun.
Ele ficou tão surpreso que quase gaguejou um:
— Pelo quê?
— Por tudo, eu acho. Pelo futuro que você não teve. Sabe, você poderia estar na Itália agora, morando em uma mansão nos Nápoles, vendo pássaros batendo as asas no seu viveiro particular e casado com uma super modelo da Victoria Secrets.
— Por que uma super modelo?
— Não sei. Esposas troféu geralmente se parecem com super modelos.
— Não faz muito meu tipo. As supermodelos, eu quero dizer. — ele deu de ombros, apoiando uma das pernas na lateral da base de controle, onde as embreagens e os freios eram mais altos do que o normal. — E eu meio que gosto bastante do que andei vivendo na Coreia.
Claro, senhor Anthony Bridgerton, pensei na hora, engolindo uma careta. Dizer que super modelos não faziam o seu tipo não passava de modéstia; Jeong Jaehyun era conhecido, bem por baixo dos panos, não como um carinha que arrumava confusão nos sets e nas reuniões da vida, mas sim por se envolver com mulheres lindas e sofisticadas, atrizes e empresárias, o tipo de gente que trabalha de salto o dia inteiro e pegam táxis com um copo de café na mão.
Basicamente, o meu sonho.
— E a outra parte? — perguntei de repente. — Você disse que o lance do pai não era totalmente verdade. Então também não é totalmente mentira.
Ele cintilou um sorrisinho inocente.
— Quero mesmo ser pai. Um dia. Com uma família e tudo mais. O padrão.
— Nossa. — arqueei as sobrancelhas. — Acho que eu não esperava por essa.
— Pensou que eu acharia a ideia um pesadelo?
— É o que a maioria dos caras da sua idade acham.
— Péssima reputação de 97. — ele franziu levemente o nariz. Eu ri baixinho. — Mas eu entendo eles. Também entendo a mim. Bem, eu não sei como explicar isso no meu caso. Meus pais são professores e sou filho único, então fiquei sozinho e me virei em casa a maior parte do tempo, e quando eles chegavam o jantar estava na mesa, conversava sobre futebol com meu pai e sobre a escola com minha mãe e não passei por muitas coisas complicadas. Sempre gostei de cuidar deles, seja como fosse. E vi naquele casamento algo que eu queria pra mim. — virando a cabeça em minha direção, ele piscou aqueles olhos castanhos várias vezes de uma forma intensa, como se tentasse ver o que eu estava pensando. Depois, gracejou um pouco, apoiando a cabeça na parte superior do banco. — Desculpa, isso é meio chato.
— De jeito nenhum. — arquejei. — Na verdade, é bem… — fofo. Admirável. Sexy. — Responsável.
Minha bochecha ardeu quando ele me olhou por um segundo antes de voltar a ver a telinha pequena da máquina de jogo. Como se responsável fosse um adjetivo que ele comia, bebia e dormia junto, todos os dias.
Ele remexeu em alguns botões, em silêncio, e minha cabeça a mil (pensando principalmente nas palavras de Nellie no resort de novo, sobre a vida boêmia de Jeong Jaehyun) deve ter ficado incomodada com isso, porque eu logo estava perguntando:
— Ainda tá pensando nisso? — minha voz saiu um pouco rouca. — Digo, em filhos e comercial de margarina?
Jaehyun provavelmente ficou sem entender o cunho da pergunta repentina, mas ainda balançou a cabeça.
— Às vezes. Não fico meditando nisso todo dia, mas…
— Suas ex-namoradas sabiam disso?
Ele franziu a testa.
— O quê?
— É, as suas ex… as garotas com quem você sai. Você costuma já dizer o que quer de cara? Ou elas são supermodelos demais pra você, talvez…
Não sabia o que estava acontecendo na minha língua. Jaehyun parou de tocar os botões e se virou quase completamente para mim, o que deixou o ar pesado porque nossos joelhos e coxas já estavam se tocando naquele espaço apertadíssimo do brinquedo.
— Eu só tenho uma ex-namorada. E sim, ela sabia disso. — respondeu em um dos seus famosos tons de “aqui acaba a conversa.”
Só que isso não funcionava comigo.
— Foi por isso que terminaram? — quis cortar minha língua. Quis parar de querer saber tanto.
— A gente só tinha 18 anos. Tínhamos um milhão de motivos pra terminar além do fato de não ter os mesmos planos pro futuro.
— Ah, graças a Deus, achei que foi porque ela tinha agendado a cirurgia de retirada de costela.
Ele riu com a intensidade de alguém que estava sempre, perpetuamente, em modo “acabei de acordar”.
— E o seu término? Qual foi o motivo?
Primeiro achei ter ouvido errado. Poderia ter uma terceira pessoa na conversa e eu não ainda não a tinha notado. Segundo, demorei muito para perceber que isso era esquizofrênico e me tocar de que ele falava comigo mesmo.
Lutei muito para não gaguejar:
— Meu término?
— Com seu ex-namorado. — ele me olhou no fundo dos olhos, genuinamente esperando uma resposta.
— Hum… foi ótimo. A gente não brigou, não se xingou, não atirei meus perfumes nele, não fiz nenhuma dívida por ele. Seria difícil, já que ele não existe.
Esperei que ele risse da piada idiota, mas Jaehyun continuou me olhando, avaliando mais um item vergonhoso da lista da minha vida.
— Eu nunca namorei. — admiti, depois de ele ter olhado tanto. Sua pupila não estava doendo?
— Nem…
— Nem de mentirinha, nem por algumas horas. É. Vida amorosa fracassada.
— Por que? — ele parecia mesmo muito surpreso.
— Por que o quê?
— Por que nunca namorou?
— Porque… — respirei. Provavelmente, dizer a verdade verdadeira era muito superestimado na sociedade. — Não tive tempo.
Era uma mentira, mas, considerando tudo que eu já tinha contado da minha vida para ele, dava para acreditar.
No entanto, ele semicerrou os olhos e abriu um sorriso reto.
— Mentirosa.
— Não é uma…
— Falta de tempo é a desculpa mais esfarrapada que existe.
— Eu sei, acha que nunca usaram essa comigo?
— Imbecis.
— É assim que os caras agem quando a garota “não tem tempo”. — dei de ombros, autoconfiante na minha lorota. Ele deu uma risada gorgolejada.
— Deixar uma garota como você escapar por causa disso é a verdadeira perda de tempo.
Virei a cabeça. Meu estômago se contraiu, abrindo um buraco. Ah, aquele ar-condicionado tinha com certeza deixado de funcionar.
Pisquei várias vezes. Devo ter ouvido coisas. Porque Jeong Jaehyun não podia estar simplesmente flertando comigo.
— A-ah, é… É, é assim que as coisas são. — procurei meu sorvete, já quase completamente derretido.
— Qual é o motivo verdadeiro?
— Esse é o motivo verdadeiro. — insisti.
— Consigo ouvir sua mente, .
— Você anda ouvindo muita coisa.
— Tipo seu papo com a Nellie no resort?
Quase cuspi a porção de sorvete melado que tinha acabado de chegar na minha boca.
— Meu Deus, não é isso que você…
— Eu sei, é brincadeira. Já disse que não ouvi nada. Só queria entender a parte do beijar que você mencionou…
— Foi uma brincadeira. Ela estava… me zoando de uma coisa. — minha cabeça estava completamente e insanamente agitada. Nessas horas, vi que mentir realmente não doía tanto assim. Mentir podia salvar a minha vida.
— Que coisa?
— A coisa de… do que aconteceu uns dias atrás. — balancei a cabeça. Jaehyun se aproximou ainda mais no banquinho, fechando ainda mais o nosso espaço.
— O que aconteceu?
Engoli a seco. Eu tinha respostas lógicas e umas talvez não tão lógicas assim. A presença de Jaehyun e aqueles olhos perfurando os meus não estavam me deixando ver essa diferença. Parecia que eu era tudo que ele queria saber; que ele esperava a minha resposta mais do que qualquer coisa.
Limpei a garganta para afastar o nó.
— Eu beijei uma pessoa. E estou meio perdida sobre isso.
Sussurrei bastante, as palavras saindo. Elas se misturaram com o Dust in the Wind do Kansas tocando, mas ele estava tão perto que com certeza ouviu. Ouviu e reagiu.
Os ombros de Jaehyun se retesaram sob a camiseta, os olhos adquiriram um tom mais escuro ao mesmo tempo que as pupilas se dilataram um pouco. A boca entreaberta de surpresa me obrigou a olhar para ela, e depois voltar para os olhos dele, porque não sei explicar, eu precisava olhar para ele.
— Perdida? Então… você se lembra? — ele disse no mesmo tom que eu, a voz quase quebrando. Arquejei um pouco.
— É claro que me lembro, como não poderia? — dei uma risada incrédula. Eu me lembraria para o resto da vida, como quando Dongmin tinha aparecido de surpresa no meu aniversário do ano passado depois de ter dito várias vezes que estava no Japão. E trazendo dumplings. — Mas parece que ele não se lembra.
Agora foi a vez de ele franzir o cenho e ficar ereto enquanto me olhava com uma expressão… Embaraçada? Estupefata? Eu não sabia o que era aquilo. Ele balançou a cabeça algumas vezes, desorientado.
— Não. Ele se lembra, é claro que lembra. Só não sabe como dizer isso… Só… — sua voz se perdeu, e continuei olhando-o em espera. Algo parecia ter se desligado em seu cérebro, e Jaehyun buscava as palavras de volta. — , nós temos que falar sobre isso. Naquele dia…
Uma sensação gelada na minha coxa me fez desviar os olhos dos seus e flagrar a quantidade de sorvete que pingava na minha perna. Com um solavanco, larguei o copo em cima do controle, o que não foi nada inteligente, porque ele logo se desequilibrou e despencou para o chão, fazendo a maior bagunça no carpete.
— Droga… — trinquei os dentes, balançando as mãos para me livrar do doce, quando Jaehyun jogou as duas pernas para o lado e saiu.
— Vou pegar um guardanapo pra você. — as palavras saíram embaralhadas na sua voz rouca. Só deu tempo de assentir e esperar.
Mas eu ainda estava quente. O ambiente inteiro parecia estar. Ainda estava recebendo as informações picotadas pela metade, a voz de Jaehyun afirmando “claro que ele lembra”, me deixando zonza por um instante. Isso poderia ser…
Dongmin contou para ele sobre o nosso beijo? E disse que se lembrava?
Fiquei tão atordoada com essa informação que levei a outra mão para colocar uma mecha atrás da orelha, totalmente alheia ao fato de que meu antebraço estava arruinado com algumas linhas do sorvete que foram parar ali na confusão de me livrar do copo. Agora, tinha sorvete na minha bochecha e em algumas pontas do cabelo.
— Olha só pra você. — com outro guardanapo, Jaehyun se aproximou do meu rosto, rindo com minha nova proeza.
— Não precisa, eu posso fazer… — parei de falar. Na verdade, foi mais como ser absorvida por um tipo de frenesi. Minha intenção era bancar a durona e dizer que eu poderia muito bem arrumar minha bagunça, mas ficou difícil dizer qualquer coisa quando o rosto dele ficou tão perto de mim que era possível sentir sua respiração no meu nariz.
Foi desconcertante não sentir meu coração batendo, mas conseguir ouvi-lo. Estava surrando meus ouvidos, meus pulsos, meus calcanhares, minha garganta. Coisas que eu nem sabia que era possível de acontecer.
E ele estava ali, me olhando como há poucos minutos atrás, olhando e se inclinando, como se fosse uma ação tão natural quanto um bocejo.
E eu sei que, às vezes, fantasiava com as coisas. Fantasiava com meu melhor amigo e minha paixão ardente e não mais secreta por ele. Fantasiava com um dos caras do internato porque ele tinha 1,90 de altura e usava piercing na língua. Fantasiava porque era fácil, era bom, porque não me obrigava a fazer nada sobre isso. Era só um sonho bobo, que se desligava quando eu bem entendesse.
Mas ali, naquela hora, debaixo daquela luz vermelha atordoante, eu queria que Jaehyun me beijasse. Sem necessidade de idealizar nada — eu precisava que ele me beijasse.
— Ei, vocês!
Para o grande alívio da minha sensatez, acordei imediatamente e me afastei para trás, limpando a sujeira do meu rosto com as costas da mão. Comecei a sentir as coisas, como meu coração fazendo um ataque de violência física comigo. Não consegui olhar para Jaehyun de jeito nenhum.
Mas olhei para Yugyeom se aproximando correndo.
— Acho que vamos ter que ir nessa. Parece que a Nellie bebeu demais e bebeu a coisa errada. Mingyu tá chamando vocês lá fora.
Juntei as sobrancelhas e olhei para Jaehyun de soslaio antes de me levantar, ajeitando a roupa. Minhas veias estavam queimando.
— Que merda aconteceu com você? — perguntou Yugyeom, apontando para os meus dedos melados.
— Não importa, onde ela está? Ela destruiu alguma coisa? — comecei a caminhar para fora, ouvindo os passos atrás de mim. Ainda tentava me distrair do que tinha acontecido ali atrás, seja lá o que foi aquilo. Era uma adrenalina tão sem sentido que deixava o mundo real sem brilho e chato por horas.
— Só a dignidade dela, mas a gente tá acostumado com isso.
Semicerrei os olhos e visualizei a porta de entrada. Se Nellie estivesse bem o bastante, eu não sabia se a agradeceria ou me estressaria pela interrupção da fantasia mais absurda que já experimentei.
Na verdade, Nellie estava perdendo bem mais do que a dignidade.
O estacionamento era plano e feio, lotado de grama morta, que agora desaparecia por debaixo de toda aquarela que habitava no estômago da minha amiga. Deus do céu, era nojento. O fato de ela comer e beber tudo que acha bonito pela frente não me ocorreu antes, enquanto estava distraída com Jaehyun no playground.
Quando terminou de soltar tudo que precisava, puxei-a pelos ombros até o Camry, sentando-a no banco do carona com as pernas para fora. Ela imediatamente repousou a cabeça para o lado e fechou os olhos, respirando pela boca entreaberta. Não importava quantas vezes eu dissesse para ela que era sem noção tomar um drink só por soltar fumaça colorida ou ter açúcar salpicado nas bordas, Nellie nunca me escutava.
— Preciso levá-la pra casa. — disse Mingyu ao se aproximar com Jaehyun depois de os dois alegarem que iriam avisar aos demais e conferir se o desconto de primavera ainda valia mesmo se, hipoteticamente, as câmeras do estacionamento flagrassem alguma depredação não intencional às plantas do local. — Acho que ela tá um pouco mal.
— Você acha? — levantei uma sobrancelha afiada de propósito. Meu aborrecimento estava 50% em Nellie e 50% no seu namorado, que conhecia todo o processo para que ela terminasse a noite daquele jeito e não fez absolutamente nada para impedir. — Não adianta olhar para mim com esse bico, ela não é tão adulta quanto diz que é.
— Eu disse pra ela me avisar quando estivesse se sentindo mal. Temos um sinal, sabia? São duas batidas na testa, ela só deu uma. — ele respondeu com ingenuidade. Depois disso, um estalo discreto veio da direção de Nellie quando ela meteu a palma da mão na testa e começou a rir.
— Agora foi a segunda. — Jaehyun observou.
— O que tá pegando? — agora Jungkook se aproximava junto com os outros, incluindo Dongmin. Todos eles eram sombras sorridentes e bêbadas que andavam no mesmo ritmo, até quando esse ritmo não existia. Às vezes, aqueles garotos pareciam ter os mesmos traços alongados, ou os mesmos olhos arregalados de um boneco de ventríloquo quando bebiam. — Uau. É a Nellie? Nellie, é você? — ele cambaleou até a porta. — Nellie, o que houve com a nossa amiga Nellie? NELLIIIIEEEE!
— Para de gritar, cacete! — Mingyu puxou seus ombros para longe, ignorando o quanto Nellie tinha recomeçado a rir. — Não vê que ela tá passando mal?
— Mas ela tá rindo. Ô, Nellie, me prova se você tá bem, canta Hotel California sem trocar o refrão…
— Você não vai cantar nada. — falei com ela, ao mesmo tempo que fuzilava Jungkook. Ele queria que fôssemos expulsos?
— Ela parece velha e sofrida. — Dongmin falou, olhando para os cabelos loiros de Nellie puxados para a frente do seu rosto, igual a mulher louca de Misery.
Mingyu estalou a língua e começou a puxar os joelhos da namorada para dentro do carro.
— Tenho que levá-la embora antes que ela vomite no forro. Alguém…
— Temos que passar na farmácia. Ela vai precisar de efervescente amanhã. — eu disse, antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa.
— Tem aspirina em casa.
— Ela não toma aspirina. — ouvi Nellie soltar um “nãoooo” grogue e infinito, que morria a cada segundo. — Tá legal, ela não toma nada que venha em formato de pílulas que são criadas artificialmente em laboratório, mas só um chá de gengibre e um banho gelado não vão impedir a cabeça dela de explodir amanhã.
Mingyu analisou meu ponto sem me encarar, enquanto um ronco veio do nariz de Jungkook quando ele desatou a gargalhar mais uma vez.
— Chá de gengibre? Fala sério, Nellie, que coisa mais brega. Vai jogar o café de escanteio, caramba?
— Pelo visto, mais gente aqui vai precisar do efervescente. — Jaehyun murmurou enquanto segurava por um dos ombros de Jungkook antes que ele despencasse de tanto rir.
Revirei os olhos de novo. Mingyu passou o cinto em volta de Nellie, que ria tanto que mal conseguia se mover, o que não foi a melhor ideia do mundo. Sua cor verde se transformou em amarelo e, em um segundo, ela precisou levar as mãos à boca para não soltar tudo em cima do próprio colo.
— Caralho, linda, aguenta firme! — Mingyu gritou, os olhos arregalados, adiantando o trabalho. — Tá legal, vou levá-la direto para casa e você vai comprar o remédio. Tá combinado assim?
— Eu? Mas… — Mingyu não me deu atenção e já caminhava direto para a porta do motorista, acomodando-se ao lado de Nellie.
— Dongmin pode te levar. É melhor que você seja vista em um lugar cheio de preservativo e cigarro do que a gente. Feriado em Jeju, , as ruas estão cheias, sei que você entende. Enquanto isso, vou fazer o maldito chá de gengibre. — ele já estava colocando seu próprio cinto, e estava tão agitado que não percebeu a palidez que tomou meu rosto.
— Não, eu posso ir com vocês, vai ser rápido, não vai levar nem dois minutos…
— Isso! Eunwoo e vão juntos! Vão juntoooos… — Nellie cantarolou e bateu palminhas e, se não fosse pelo cinto de segurança e a porta fechada, já tinha caído para fora. — Fofos, vocês são tão shippáveis, mas você, Dongmin, se você se atrever a não valorizar a aluna número 1 do Pilates de Yongsan, vai sofrer as consequências. Porque ainda tem o Jae…
— Eu posso ir com ela. — Jaehyun falou na frente. — O Kia tá logo ali, eu posso…
— Ele disse pra eu ir junto. — fui obrigada a me virar quando ouvi a voz de Dongmin. Estava diferente de tudo que eu já tinha escutado. Até seu olhar na direção de Jaehyun era sério e afiado.
Jaehyun devolveu esse mesmo olhar. Um olhar que dizia tudo que Dongmin precisava saber sem ele ter que abrir a boca. Eu só não sabia que coisa era essa.
— Não acha que bebeu um pouco demais? É mais responsável ir direto para casa.
— Valeu pela preocupação, mas também é responsável comprar o remédio da Nellie. E sou perfeitamente capaz de carregar a por aí em segurança, já fiz isso mais vezes do que você imagina, bêbado ou não.
Jaehyun desviou os olhos e soltou uma risada engasgada.
— É, eu acredito, e não tô aqui pra bancar o guardinha de trânsito, mas talvez seja melhor eu levá-la dessa vez. — as palavras dele pareciam serragem na boca. Atingiram Dongmin de um jeito muito nítido para quem nem estava sóbrio. Quando vi, ele estava se aproximando de Jaehyun, os dois com olhares que eu, às vezes, via no rosto de um gato antes de atacar outro gato.
— Tanto faz, eu já disse que eu vou levar. E não tem mais discussão sobre isso.
Jaehyun puxou os lábios, endurecendo ainda mais o olhar já feroz.
— Não quero brigar com você…
— Eu sei que não, mas tá tentando usar sua voz de mais velho, e isso não cola comigo. Ainda mais quando eu sei o que você tá fazendo.
— Você sabe? — Jaehyun apertou os olhos, curiosamente debochado. Dongmin cerrou toda a mandíbula.
— É, eu sei, você sabe que eu sei, não vem dar uma de esperto. E eu já te falei que com ela não.
— Você não sabe de nada…
— Tô sabendo do suficiente. Inclusive do que eu disse naquela época.
— Você não lembra de tudo daquela época.
— Claro que eu lembro.
— Porra nenhuma, tá tudo a mesma coisa. E é por isso que não vou discutir com você, já que nem sabe o que sente, quanto mais o que fala.
— Cala a bo-
— Calem a boca, os dois! Que merda vocês estão fazendo? — gritei, empurrando Dongmin para trás antes que ele desse mais um passo. Os dois tinham os maxilares trincados como esqueletos e uma respiração ofegante escapando do nariz.
Mingyu buzinou forte do Camry. Em seguida, colocou a cabeça para fora da janela e berrou:
— Parem com essa porra agora ou vou colocar Nellie pra vomitar em cima de vocês! Manés do caralho! Decidam nos próximos dois minutos ou vou buzinar de novo!
Olhei para Mingyu por um segundo de um jeito mortal, pra logo voltar a jogar o mesmo olhar nos outros dois. Às vezes, eu me sentia a única adulta do recinto.
— Vai logo ligar aquele carro antes que eu prefira envenenar minha amiga com aspirina. — grunhi para Dongmin, vendo-o piscar os olhos. — Jaehyun, valeu por se oferecer, mas…
— Ótimo! Yuno, leva o Jungkook e o Yug antes que eles comecem a ligar para as ex-namoradas! Eu vou nessa!
O ronco do motor suprimiu todo o silêncio constrangedor que tinha se instalado de uma forma nada convencional. Em poucos segundos, o Camry já era um ponto invisível nas sombras azuladas e quentes da cidade.
— É só isso? Não vai ter socos? — Jungkook falou grogue, agora se encostando em Dongmin. — Ei. Você não vai pra cima dele? Fala sério, parecia que você queria muito fazer isso lá dentro quando nossa garota abraçou ele, vai amarelar assim? Você é mais alto, porra.
— Jungkook, já deu. — Jaehyun puxou o amigo para perto, olhando para mim de um jeito terno. — Você vai ficar bem?
Um ruído de escárnio veio de Dongmin, e assenti com a cabeça antes que ele dissesse outra coisa que me estressasse.
— Vou sim. Te vejo mais tarde.
Ele deu um sorriso de canto e começou a se afastar com os outros dois alcoolizados do grupo.
Suspirei e virei para Dongmin. Ele ainda estava parado, me analisando, como se não soubesse qual o próximo passo a seguir, mesmo que eu tenha dito claramente a ele qual deveria ser.
— O que ainda está fazendo aqui? — ergui a sobrancelha, gesticulando para o amontoado de carros ao lado. — A Mercedes.
Ele acordou em um estalo e limpou a garganta antes de andar até ela. Esperei mais algum tempo antes de segui-lo. Estava fazendo o possível para não ficar sozinha com ele mais tempo que o necessário, mas isso não ia adiantar muito. Teria sido pior se eu viesse com Jaehyun depois de toda aquela cena no playground.
Estava tentando esquecer seu olhar quando me perguntou se eu ficaria bem. Uma pergunta tão simples, mas tão impactante dita na voz dele, como se dissesse que eu tenho um câncer no pulmão e isso me deixasse feliz. Eu realmente estava precisando de umas noites de sono.
Entrei no carro e fechei a porta sem encarar Dongmin. Ele batucou os dedos no volante por alguns segundos, como se quisesse dizer algo, mas não disse. Simplesmente pisou na embreagem e saiu do estacionamento.
Domingo
11 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
11 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
Queria que Dongmin permanecesse em silêncio por todo o trajeto, mas é claro que não tive esse privilégio.
Ele parecia tão durão e distante dirigindo daquele jeito atento, o que só mostrava que as palavras de Jaehyun, seja lá o que significassem, conseguiram atingi-lo de algum jeito. Mas também significava uma tentativa de ignorar o quanto alguma coisa pesava ali dentro. Algo tão sólido quanto aquele carro, tão enorme quanto aquela ilha.
No caso, eu.
Se arrependimento matasse, eu já teria me misturado com os vermes debaixo da terra só por ter aceitado a ordem ridícula de Mingyu sem lutar o suficiente.
Porque ele sabia, era lógico que já sabia, ele era o namorado de Nellie e eu tinha certeza que o maior passatempo daqueles dois era rir de mim e tentar adivinhar quando seria a próxima situação em que ririam de novo.
Apesar disso, o mínimo que eu poderia fazer era não demonstrar o quanto minha relação com Dongmin estava frágil e delicada no momento, e tentei continuar com a expressão plena acompanhando as ruas e bares lotados de Jeju pela janela do carona enquanto ele procurava algum lugar convenientemente vazio, sem chance de alguma sasaeng se desenterrar de alguma moita.
Mas aquilo era muito estranho. Anormal. Ridículo, de certa forma. Dividir um carro com Dongmin sempre era motivo de risadas, piadas sem graça e Cheap Trick no último volume. Agora tinha apenas a parte do Cheap Trick, cantando Surrender tão baixo que parecia uma canção de ninar, o que não era suficiente para engolir todo o constrangimento sufocante daquele espaço.
Era nessas horas que eu xingava os malditos cientistas que ainda não tinham inventado um vira-tempo de verdade e colocado à venda na Amazon. Existia um abaixo-assinado na internet sobre isso!
Foi então que Dongmin limpou a garganta e decidiu começar a falar:
— Acho que a gente podia conversar.
Mordi o lábio inferior, ainda olhando para fora, onde um amontoado de gente havia combinado de sair com roupas coloridas e brilhantes, pulando e gritando como em um mini bloquinho de carnaval. Se eu me enfiasse no meio deles, poderia conseguir a localização da farmácia mais próxima, fugiria de um conflito e, de quebra, ainda ganharia cerveja de graça. Um sonho.
— Claro. Podemos falar.
Ele não pareceu gostar da minha resposta, já que ouvi seu suspiro pesado e soube que eu não estava ajudando muito.
Mas a coisa é que eu não era boa nessas coisas de parecer normal estando a sós com um cara que eu beijei e que praticamente me rejeitou. Aquilo foi tipo uma rejeição, certo?
— O que achou do seu primeiro jogo de boliche?
— Ah… foi divertido, mesmo que eu tenha feito o time perder, mas acho que Nellie já estava preparada pra isso.
— Tenho certeza que estava. — disse ele, com a expressão mais anuviada. Não era sobre isso que iríamos falar, não é? Eu sei que não era.
Mais alguns outros minutos se passaram enquanto Paul Simon tentava nos salvar do silêncio com uma canção mórbida e incômoda, porque era como tudo dentro daquele carro parecia. Sério, alguém precisava me explicar como o constrangimento parecia de início uma erva daninha pequena e inocente, mas que tinha o poder de se transformar no pé-de-feijão do João em questão de segundos.
— , eu… — ele recomeçou, dessa vez com o tom mais sério, o que não me adiantava coisas boas. — Eu preciso saber o que está acontecendo.
Olhei para ele de relance, me empertigando no banco.
— Não estou entendendo.
— O que tá rolando entre você e o Yuno?
Fui encarada severamente com aquela pergunta. Fiquei parada, piscando os olhos, completamente atônita e confusa.
— Que tipo de pergunta é essa? — ri com um engasgo, talvez não apenas pela pergunta ridícula, mas porque a expressão de Dongmin parecia tão excepcionalmente séria que senti a necessidade de quebrar aquilo. — Não tem nada rolando entre eu e Jae… Yuno.
— Essa resposta vale pelos dois? — ele arqueou uma sobrancelha. — Sei que somos culturalmente diferentes, mas mesmo assim, não te vejo abraçar ninguém daquele jeito, quanto mais um cara. Não acha que pode ser um pouco mal interpretado?
— O quê? — virei a cabeça para ele com o cenho franzido. Se Dongmin estivesse bêbado e falando asneiras, ele tinha que me mostrar que estava fazendo isso agora mesmo.
— , qual é, não se faz de desentendida. — ele murmurou em um tom baixo e rude. Tive vontade de rir alto, gargalhar.
— Você está entendendo tudo errado. — balancei a cabeça, frustrada. — Não tem nada demais em um abraço. Até porque eu abraço você daquele jeito.
Vi seu pomo-de-adão se mexer quando ele engoliu em seco. Esperava muito que ele não dissesse nada relacionado a “me abraça do mesmo jeito e acabou me dando um beijo e dizendo que me amava no meio da noite, então sim, posso saber se existe uma chance brutal de Yuno ser sua próxima vítima?” — isso considerando que ele se lembrasse de todas essas coisas.
No entanto, ele simplesmente disse:
— É diferente.
— Por que é diferente?
— Porque nós somos amigos. Você é minha melhor amiga, não existe comparação, , pelo amor de Deus, vocês mal se falavam antes dessa viagem e agora vejo o braço dele em prontidão pra te ajudar ou segurar ou até vigiar, não sei, não acha nem um pouco estranho essa aproximação toda?
Abri a boca para responder, provavelmente para negar tudo aquilo, mas percebi que não passaria de pirraça. É claro que eu achava estranho o simples fato de Jeong Jaehyun falar comigo, sorrir para mim, ou até mesmo olhar para mim, e criei teorias sobre um possível diagnóstico de dupla personalidade, mas e daí? Me recusava a deixar Dongmin saber disso.
— Qual é o problema disso? Estamos na mesma casa, seria estranho ele não falar comigo, não acha?
— Acho. Mas ele sempre faz o que quer, independentemente se for estranho ou não.
— Então, ele quis ser educado e falar comigo. Qual a sua queixa?
Ele deu uma risada resignada.
— Isso não tem nada a ver com educação.
— Então você tá com ciúmes?
— Não seja ridícula. — ele estalou a língua. — Meus amigos fazem os amigos que quiserem. Estou falando de você, não entendeu isso ainda? — agora a voz dele soava um pouco mais suave. Senti um frio pesaroso no estômago. — Quer dizer, você às vezes é inocente e pode não perceber as verdadeiras intenções das pessoas, entendeu?
Meu Deus, como eu queria ser surda nesse momento.
— Nossa. É, devo ser muito inocente mesmo. Achei que você poderia falar alguma coisa inteligente depois daquilo, mas me enganei. — falei irônica, erguendo agora as duas sobrancelhas enquanto olhava para o rosto emoldurado do meu amigo imbecil. — E eu gosto do Yuno, caso esteja com dúvida. Ele é um cara legal, me ensinou a jogar e não parece que vai me enfiar num esquema de tráfico humano, então um abraço não faria mal a ninguém.
— Eu nunca disse o contrário.
— Mas agiu como se fosse.
— Você ainda não entendeu-
— Eu entendi que você tá pirado. Qual é, Dongmin, eu e Jaehyun? O que você tem na cabeça? Isso é impensável, é…
Não consegui achar a próxima palavra. Não era impensável porque Jeong Jaehyun tinha um caráter duvidoso ou zero coisas em comum comigo. Nem era porque, como eu disse para Nellie naquela noite, ele tinha uma aversão por mim. Já tive tempo o suficiente para notar que é, julguei o cara rápido demais nesse quesito e talvez, falando no hoje, Jeong Yuno poderia ter mudado de opinião a meu respeito.
Mas ainda era impensável. Porque, honestamente, um cara daqueles não se interessaria por mim. Não desse jeito. Ele pode, sim, me achar bonita e pode até querer me beijar, como disse Nellie: apenas mais um beijo aleatório de uma viagem. Coisa que ele facilmente esqueceria, e continuaria a viver sua vida de celebridade almejada pelos quatro cantos do continente.
E mesmo assim, eu não queria pensar nisso. Estranhamente, juntar beijar e Jaehyun na mesma frase fazia minha língua inchar e meu corpo inteiro queimar como se eu fosse um bolo assando. Parecia mais válido imaginar eu e Dongmin do que eu e Jaehyun pelo simples fato de Dongmin já ser parte da minha rotina.
Ele permaneceu calado até também soltar uma respiração pesada e continuar.
— Tá legal, não quero falar sobre isso. — concluiu, com cautela, mesmo que eu ainda visse um pingo de aborrecimento em seu queixo trincado. — Só queria entender. Planejei essa viagem com os outros porque queria que você conhecesse cada lugar desse paraíso, queria que ríssemos juntos enquanto ficávamos no time vencedor, ou vendo você tentando nadar, ou dançar, não sei… Queria que você se sentisse bem comigo, mas desde aquele dia…
— Não fale como se eu tivesse feito isso sozinha.
— Tudo bem, tudo bem, eu também não ajudei, mas eu não sabia o que fazer, . Você simplesmente me beijou! — e pronto, foi desta forma que Dongmin conseguiu estourar o balão já cheio do constrangimento e despejá-lo sem dó em cima de nós dois. Me encolhi no banco, assim como ele, e continuei olhando para a frente, onde agora o sinal vermelho era a peça que eu mais odiava na vida. Onde estava a maldita farmácia? — Ok, certo, não é que eu queira trazer isso à tona assim, não quero piorar as coisas. Mas também não quero mais arrastar isso pra debaixo do tapete e fingir que nada aconteceu. Essas coisas nunca funcionam.
Assenti, passando a língua nos lábios.
— Então o que quer falar? — perguntei, sem olhá-lo.
— Você não respondeu minha pergunta de mais cedo.
— Que pergunta?
— A da mensagem.
Que droga.
— Essa camada do tapete não pode esperar? — resmunguei mais para mim mesma.
— Beleza, Então me diz o que aconteceu naquela noite, ? — ele deu uma pausa, e retornou: — De verdade.
O sinal verde não fez com que o carro continuasse em frente. O maldito trânsito de Jeju piorava o clima ali dentro, o que era uma lástima porque parecia que ainda demoraríamos bastante naquele carro.
Mas expirei. Não tinha o que fazer.
— Me confessei pra você. Nós nos beijamos. E depois pensei que seria minimamente conveniente fazermos isso de novo, mas parece que eu estava errada. — respondi em voz baixa. Dongmin virou quase todo o corpo para mim, parecendo completamente estupefato.
— Você se confessou pra mim? Mas o que… — ele arqueou as costas para trás, perdido, como se as minhas palavras tivessem roubado algo dele. — Quando foi isso? No primeiro dia que chegamos?
Concordei com a cabeça.
— Eu entrei no seu quarto depois da festa e falei… falei tantas coisas, pelo amor de Deus, como pode ter se esquecido disso?
— Entrou no meu quarto? , isso não é possível, você nunca entrou no meu quarto.
— Entrei sim!
— Eu te garanto que não entrou. Não sou tão tapado assim, , eu perceberia uma garota no meu quarto.
— Você estava bêbado…
— E daí? Eu tava morto? Porra, não faz nenhum sentido. Eu teria notado, , ainda mais se fosse você, ainda mais naquele dia, com aquele vestido…
Dongmin se obrigou a calar a boca. E pelo jeito que meu estômago se contorceu sobre si mesmo, agradeci por ele ter feito isso.
— Tá legal, acho que essa camada do tapete também pode ser descartada. — bufei, olhando para a frente. Já estava ridículo antes, mas agora eu oficialmente estava abominando a voz de Dongmin toda vez em que insistia em repetir que não se lembrava de nada, enquanto o acontecimento não saía da minha cabeça, como se eu fosse uma louca que tinha imaginado tudo. Ele estava me fazendo parecer sombria, maluca, alguém que tivesse entrado em seu quarto e lhe dado um beijo durante o sono como uma maníaca, por mais que aqueles braços me agarrando estivessem muito bem acordados.
— Ok, me desculpa. — ele sussurrou, talvez sentindo o mesmo que eu. — É só que… Então é verdade? Você gosta mesmo de mim?
Não respondi. Estava terrivelmente barulhento do lado de fora, com buzinas e sons altos vindo de grupos grandes na rua. Não queria parecer pirracenta e nem nada disso, mas por que ele precisava fazer perguntas tão óbvias?
— Sim, eu gosto. — limpei a garganta. — Mas não falei para receber uma resposta em troca ou nada disso. Eu só queria que você soubesse.
A maneira como eu disse o deixou em silêncio e preferi assim. Não era mentira que eu não fazia questão de uma resposta, no entanto, lembrei do que eu mesma falei naquela noite no meio do meu devaneio bêbado: “Só queria que você soubesse, mas… seria ótimo ouvir alguma coisa sua”. Então, é, não era só falar. Alguma coisa mudaria, como já estava mudando.
Só que eu não estava com a menor vontade de me corrigir, então deixei como estava, dando um pouco de conteúdo para raciocínio no cérebro dele.
Dongmin pressionou um dedo na pulsação logo abaixo do maxilar, o que significava que estava nervoso e pensativo. Eu costumava observar isso e soltar um “o que você tem aí, Lee? Ainda indeciso sobre hidratante labial de amora ou de limão?”, mas hoje eu só arfei e soltei um:
— Ali! — notei as luzes esverdeadas e estouradas de uma loja de conveniência. Ao lado, luzes esbranquiçadas indicavam a farmácia, com a vitrine decorada com uma torre de pasta de dente em promoção por 720 wons cada.
Dongmin girou o volante e parou no meio-fio, enquanto eu imediatamente já começava a retirar o cinto de segurança.
— Vou levar dois minutos, não precisa desligar o motor.
— Espera. — chamou com a voz arrastada. Parei e olhei para ele. Era nítido o quanto alguma coisa estava perturbando sua cabeça. Algo que precisava ser posto para fora. — Eu estou… Sei lá, totalmente confuso agora, . Sei que não é hora de conversarmos sobre isso, mas vamos fazer isso em alguma outra, não é?
Ele se contraiu no banco. Acreditei em cada uma de suas palavras porque não tinha motivos para duvidar da sua própria linguagem corporal. Mas ele me comunicava algo bem mais importante naquele momento, que só percebi quando entrei na loja e encarei as embalagens de remédios de dor variando em cores e formas.
Ele não sabia o que sentia e, por isso, não me comunicaria nenhuma resposta. Não deixaria sair nada que não fosse verdadeiro e isso fez com que eu me conectasse com ele novamente e desse um sorriso fino, porém sincero. Nós éramos amigos. Provavelmente nunca passaríamos disso, mas eu ficaria feliz só por passarmos por cima daquele clima constrangedor.
— Claro. Podemos conversar sobre qualquer coisa. — afirmei com meu tom casual. E aí, aproveitei o embalo da conversa: — Me desculpa por essa situação. Pelo beijo. Por estar te evitando, ou ignorando suas mensagens. Acho que me precipitei com essa coisa de paixão e acabei tornando as coisas estranhas entre a gente, e me arrependo muito por isso. Sinto muito.
E pronto. Muito bem, .
Fiz o meu melhor para abrir um sorrisinho solene, totalmente entregue à realidade das coisas. Esperei receber a mesma coisa de Eunwoo, mas ele apenas piscou algumas vezes e levantou os cantinhos da boca.
— Isso é… você não tem que se desculpar por isso, . Se eu fui a pessoa que não se lembra-
— Acho que agora não importa quem fez ou quem se lembra do quê. Podemos esquecer tudo isso e voltar ao que éramos antes. O que acha? — balancei os ombros, lançando a pergunta retórica ao mesmo tempo em que estendia minha mão para a frente. — Amigos?
Ele encarou minha mão. Apesar de que esquecer e voltar à estaca zero era a última coisa que eu quisesse fazer, eu não colocaria isso à frente da minha amizade com Dongmin. Se ele quisesse ser só meu amigo, tudo bem, eu aceitaria sua decisão de bom grado.
Talvez ele ainda estivesse entendendo do que tudo se tratava, porque demorou um pouco a mais até apertar minha mão.
— Claro. Amigos.
— Boa escolha, Lee. Você não ia querer ser meu inimigo. — ri, voltando a abrir a porta de novo, mas olhei para ele e imediatamente disse, com os olhos cerrados: — E se eu te ver brigando com seus amigos de novo, vou ser obrigada a te colocar de castigo.
Ele gargalhou.
— Castigo? Vai me deixar sem TV?
— Prefere uma greve das Sextas da Framboesa?
— Você não é maluca, . — ele balançou a cabeça. — Ninguém toca nas Sextas da Framboesa.
— Posso fazer pior: transformá-las em sextas douradas. Sabe, Oscar, Globo de Ouro, Cannes…
— Se você quer me torturar, eu prefiro um mergulho em ácido sulfúrico dentro de um caixão de madeira.
Foi a minha vez de rir. Estávamos quase de volta.
— Beleza, então sem brigas. E sem ciúmes.
Ele revirou os olhos.
— Por que você teria que vir com ele?
— Porque ele é mais gentil do que você. Agora tenta não colocar a cabeça para fora como a garotinha de Hereditário que eu volto em dois minutos.
Saí do carro antes que ele completasse qualquer outra frase.
A rota tortuosa de salvamento de Nellie acabou sendo em vão, porque minha amiga já estava dormindo como um bebê quando eu e Dongmin entramos pela porta. Fiz careta para o corpo jogado no sofá ao lado de Mingyu, tentando entender a situação por mímica. Ele explicou que parece que o maldito chá de gengibre e o banho gelado a colocaram para dormir perfeitamente bem, sem nem vomitar. Fala sério.
Deixei o remédio em cima da bancada da cozinha de qualquer forma e me preparei para voltar ao meu quarto, mas é claro que Dongmin daria um jeito de me impedir.
— Ei, ei, peraí. — ele me chamou em um tom baixo e ruidoso, e eu fechei os olhos com força antes de me virar. Não mencione o mesmo assunto, não mencione, não mencione, não mencione. — Nós estamos bem mesmo? Depois de hoje.
Engoli em seco, sentindo a pele quente, sem ter uma resposta certa para isso, mas de qualquer forma, assenti.
— Claro. Nós apertamos as mãos e dissemos “amigos”. É assim que fazem nos filmes.
— Também funciona com pactos em encruzilhada.
— Se eu fosse querer a alma de alguém, não seria a sua.
Ele abriu e fechou a boca com divertimento, ignorando a ofensa.
— Então a gente pode fazer alguma coisa amanhã? Digo, é nosso último dia de viagem e a galera combinou de ir ao aquário, então quero saber se você vai comigo. No meu carro e tudo mais. Como nos velhos tempos.
Limpei a garganta, me perguntando porquê um convite tão comum fazia com que eu me esquentasse como um condutor elétrico, mas, por fim, concordei.
— Claro, eu vou.
Ele cravou um sorriso lindo na boca e percebi que me vi extremamente aliviada com isso, aliviada com a ideia de estarmos voltando. O fato de eu ter me declarado seria esquecido em um ou dois meses. A roda do tempo faria o serviço e, logo logo, eu não pensaria mais em Dongmin desse jeito. Pela primeira vez, acreditei mesmo nisso.
— Então, vou nessa. Tá subindo?
— Vou fumar um cigarro lá fora primeiro. E não me olha com essa cara. — ele levantou um dedo de repreensão, e eu suspirei.
— Boa noite, Dongmin.
— Boa noite, . Até amanhã.
Deixei também que um sorriso escapasse e subi as escadas com rapidez, sentindo que esse mesmo sorriso tinha diminuído bruscamente assim que cheguei à porta do meu quarto. Olhei para a porta em frente, lembrando daquela noite, e sabendo que, pelo menos por hoje, eu ainda sentiria o peso de um desejo rejeitado.
Na manhã seguinte, meu estômago estava afundando de fome.
Me levantei e desci ainda meio sonolenta, encontrando a conjunção de todos os caras sentados na mesa enorme da cozinha, conversando e rindo alto enquanto Nellie ainda estava deitada no sofá e Jaehyun picava coisas em cima de uma superfície na pia. Dei um sorriso automático quando o vi, mas ele não percebeu, firmemente concentrado. Andei primeiro até Nellie, que tinha os olhos fechados, mas estava acordada porque soltou um grunhido pesado quando me sentei ao seu lado, sem que eu precisasse gritar a contagem regressiva para jogar um copo de água gelada na sua cabeça.
— Ainda não, Mingyu, caramba, me deixa. — ela murmurou e eu revirei os olhos, sacudindo seus ombros ruidosamente.
— Sou eu, Nellie. Você está melhor?
— Ah! Graças a Deus! — ela puxou meus braços para abraçá-los de um jeito meio atrapalhado. Antes que eu perguntasse, ela começou: — Mingyu quer que eu levante daqui e eu não quero isso, ! Não deixa ele me tirar desse sofá e me dar mais chá fedorento, por favor, eu não aguento mais aquilo!
— Eu trouxe o seu remédio ontem à noite, ele não te deu?
— Acho que eu o mordi quando ele tentou me dar. — ela deu um sorriso amarelo e eu estreitei os olhos. Mingyu podia se achar o líder do pequeno bando de 97, mas na hora de lidar com Nellie, virava uma cadela submissa (e muito frouxa). — Ok, tá legal, eu vou tomar essa bomba de substâncias artificiais que sabe-se lá o que tem dentro! Mas se daqui a 40 anos eu descobrir um problema sério no coração ou um novo braço nascendo das minhas costas, a culpa vai ser sua.
— Relaxa, acha que vai chegar aos 60 anos com esse aquecimento global? — dei de ombros e ela gemeu em desespero. Apontei para a caixa de plástico em cima da mesa de centro. — Toma o remédio e depois vem tomar o café da manhã.
— Espera, espera. — ela puxou meu braço quando quase saí. — E ontem à noite, como foi? — franzi a testa. — Não se faça de idiota. Você e Dongmin. Eu podia estar bêbada e pensando em comprar trinta caixas de quebra-cabeça do Fleetwood Mac, mas Mingyu fez questão de me contar.
Fiquei um pouco abismada. Dois fofoqueiros. Eram piores do que idosos ou menininhas.
— Eu não vou falar disso agora, Nellie. — sussurrei porque ela ainda devia estar bêbada de querer falar sobre aquilo a um cômodo de distância de Dongmin. — Mais tarde conversamos, agora toma esse remédio.
— Eu posso estar morta depois de tomar isso, .
— Não vai estar.
— Posso perder a capacidade auditiva por causa das escamas que vão brotar do meu ouvido.
— Ótimo, significa que você vai virar uma foca antropomórfica.
— Vai se ferrar.
— O remédio.
Gesticulei de novo para a caixinha e fui para a cozinha, que agora só tinha Mingyu sentado com as pernas apoiadas em outra cadeira e Jaehyun ainda picando coisas. Cheguei mais perto e chutei os tornozelos de Mingyu para que saíssem do caminho e ele gritou um "ei" em alto e bom som, tirando os olhos do episódio de Peaky Blinders rolando no celular e lhe lancei meu melhor olhar feio.
— Vai buscar a Nellie pro café nem que você precise carregá-la nas costas.
— Mas ela tá dormindo.
— E eu aposto que você acredita no Papai Noel até hoje. Anda, vai lá.
Apontei para a sala, e o ouvi resmungar alguns palavrões em coreano antes de se levantar. Peguei uma banana em cima da fruteira da mesa e fui para a cozinha pegar um copo de água. Jaehyun estava ali, já me observando e rindo, e eu sabia exatamente porquê.
— Bom dia. — falei, também rindo no final das contas.
— Bom dia, general. — ele juntou os dois dedos na testa como uma continência, e balancei a cabeça.
— Achei que você já tivesse domesticado eles. Por ser o mais velho e tudo mais.
— Eles sempre mordem a coleira. Tô vendo um jeito de conseguir aquelas com chip.
Dei mais uma risada alta.
— Você precisa de ajuda aí? — perguntei, me aproximando dele na pia. Os alimentos já picados estavam separados em pequenos recipientes sobre o tampo: tomates, abobrinha, maçã, rabanete, cebolinha e outros que já tinham sido misturados. A organização dele me dava uma certa inveja.
— Não precisa, pode se sentar e esperar, não vai demorar muito. — ele voltou a se concentrar. Achei legal essa parte dele de parecer saber fazer várias coisas ao mesmo tempo, porque esses momentos me davam a chance de observá-lo um pouco mais, sem a necessidade que eu formasse frases de interação sobre coisas que eu não entendia nada, como: comida. Facas, temperos, tipos de corte, tempo de cozimento, e eu ainda estava tentando descobrir o que era uma Pimenta de Sichuan. Era melhor ficar quieta.
Meu Deus, eu queria observar Jaehyun um pouco mais enquanto ele picava legumes? Eu ainda estava bêbada?
— Muito gentil da sua parte, mas se eu me sentar vou ter que ajudar a trazer Nellie, e eu não quero que ela me morda também. — continuei no mesmo lugar. Ele assentiu.
— Tá bem, então... — ele olhou para a pia em análise. — Não vou te pedir pra picar o resto dos legumes porque é melhor não deixar objetos cortantes na sua mão. Sem ofensa. Que tal…
— Ei! — bati meu ombro no seu.
— Questão de segurança. Coisa de mais velho. — ele arqueou as sobrancelhas, mas seu olhar era impagável. — Pode fazer o arroz e separar os pratos. Parece que vamos sair cedo, então é melhor adiantar.
— Vamos ao aquário mesmo? — perguntei enquanto abria o armário de cima para pegar a panela elétrica. Aquilo era mais alto do que pensei e tentei esticar as mãos para pegá-la, mas meus dedos só batiam até o nível da primeira prateleira e comecei a pensar que um banco faria trabalho melhor, mas então, Jaehyun surgiu pelas minhas costas e pegou a panela de inox sem nenhum esforço, colocando-a na minha frente na pia.
— Esses braços desbravadores... — murmurei para mim mesma, mas soube que ele ouviu pela risadinha que deu. E eu acabei ficando ali, parada, olhando-o com cara de idiota.
Porque foi estranho. Não era a primeira vez que Jaehyun me ajudava com alguma coisa, mas voz de Dongmin no carro ontem ecoou nos meus ouvidos como se aquele desgraçado estivesse bem do meu lado: "vocês mal se falavam antes dessa viagem e agora vejo o braço dele em prontidão pra te ajudar ou segurar ou até vigiar, não sei, não acha nem um pouco estranho essa aproximação toda?”
Balancei a cabeça. Ridículo. As pessoas não podiam ser gentis agora? Não podiam ajudar alguém com síndrome de Murphy quando viam uma? Como vamos fazer um mundo melhor quando as pessoas só fariam coisas de acordo com os próprios interesses?
— Aquário... Legal... — puxei o arroz do pote e o enfiei na panela, distraindo mãos e braços.
— Vai dizer que é aquela coisa cheia de peixes que podem achar algum jeito de passar pelo vidro e te atacar quando estiver passando perto?
— Exato, por isso não contem comigo na área dos tubarões.
A maneira como estava relaxado me fez achar melhor ajudar mesmo que ele não tenha pedido, então peguei o resto das coisas e as coloquei ao lado dele enquanto a panela de arroz fazia seu próprio serviço. Jaehyun percebeu minha presença em volta e limpou a garganta, virando-se um pouco pra mim.
— Então.... foi tudo bem ontem à noite? — perguntou, em voz baixa.
Balancei a cabeça, confirmando.
— Sim, foi o de sempre: nós bebemos, negligenciamos as leis de trânsito ao sair dirigindo, ouvimos George Harrison no carro, foi normal. — tirando o fato de que praticamente me confessei de novo e que ele ainda não se lembrava de quando fiz isso da primeira vez, o que nos enfiou em uma câmara de constrangimento sufocante, mas fora isso, realmente, não houve nada de anormal. — E eu quero me desculpar pela forma idiota com que ele agiu ontem.
Jaehyun negou com a cabeça.
— Você jamais tem que se desculpar pelas atitudes de outras pessoas. — disse simplesmente. — E eu também não ajudei nem um pouco. Mas se quiser saber, já tivemos uma conversa e ficou tudo bem. Dongmin pode ser um pouco temperamental, acho que você sabe disso, e bêbado fica pior ainda. Mas ele é um ótimo amigo.
— É. — abri um sorrisinho. — Ele é um ótimo amigo.
E eu não queria perder esse amigo. De jeito nenhum. Não por causa dos meus sentimentos, ou pelos sentimentos dele. Mesmo que todas as circunstâncias tenham me empurrado para um lugar onde eu não me sentia muito confortável (o de amiga apaixonada e rejeitada), não importava. Dongmin tinha uma importância vital para mim além de uma paixão. Ele esteve do meu lado em momentos em que eu me senti perdida, zangada e desesperançosa, e minou cada uma dessas sensações, uma de cada vez. Então era no mínimo injusto querer que tudo isso mudasse daquela forma drástica.
Depois de alguns minutos, eu e Jaehyun começamos a colocar a mesa. Mingyu finalmente surgiu com Nellie na cozinha, os dois se sentando à mesa travando uma discussão ridícula sobre quem deveria dar carinho em quem quando um deles está de ressaca. Mandei que se calassem e comessem antes que Nellie inventasse mais motivos para voltar para o sofá.
Em pouco tempo, as vozes de gritaria e risadas altas indicaram que o resto deles estava voltando. Yugyeom empurrou Dongmin para o lado quando ele lhe jogou alguma coisa no ar desconhecida, que eu não fazia ideia do que era, mas fez com que Jungkook saísse correndo para trás de Jaehyun, que acabava de colocar o último prato na mesa.
— Cai fora, Nunu, ou vou contar pra todo mundo a cueca que você tá usando!
— Não acha que é estranho você saber a cueca que eu tô usando? — Dongmin rebateu. Jungkook ficou sem respostas por um segundo antes de dizer:
— Vou contar só pra então!
Revirei os olhos. Dongmin pareceu mais apreensivo e bateu os pés até o banheiro mais próximo do térreo, ligando a água logo em seguida.
— Esse retardado acha que é normal achar uma barata morta na moita e querer fazer piada com isso. — Yugyeom resmungou enquanto se sentava ao lado de Mingyu. Ao ouvir barata, Nellie fez um som de refluxo, que fez Jungkook recuar mais do que já tinha, mas considerando que ela não tinha mais o que soltar, sua cabeça apenas despencou no ombro de Mingyu e ficou.
— O que vocês estavam fazendo? — perguntei enquanto me sentava entre duas cadeiras.
— Tivemos que limpar todos os carros de toda aquela areia e lama de ontem. — disse Jungkook, que tinha os braços vermelhos de todo o sol forte que pegou ontem. — Seria um trabalho mais interessante pra você e Nellie fazerem, sabia? De preferência de biquíni, com hip-hop dos anos 80 rolando enquanto jogam água no vidro... Ai!
Jaehyun deu um tapa na nuca de Jungkook.
— Senta e cala a boca. — grunhiu, voltando para pegar o último recipiente da sopa.
— Credo, foi só uma ideia! Nem o Mingyu reclamou. — Jungkook se jogou na cadeira do meu lado, puxando um dos pedaços temperados de rabanete.
— Tô muito ocupado servindo de apoio e muito cansado pra isso. — Mingyu suspirou, acariciando o cabelo de Nellie com mais força enquanto recebia outro tapa em resposta.
Quando Jaehyun voltou à cozinha, depositou a última panela na mesa e se preparou para sentar ao meu lado, mas então, surgido de lugar nenhum, Dongmin reapareceu, fazendo exatamente isso: puxando a cadeira e se sentando comigo, como nos velhos tempos.
Desta vez, olhei para Jaehyun rapidamente, querendo pedir desculpas, mesmo sem saber porquê. Ele logo desviou o rosto e se sentou em outro lugar, ouvindo o que quer que fosse que Yugyeom tinha a dizer.
Dongmin me encarou, um pouco inquieto, mas logo limpou a garganta e começou a juntar a comida como todo mundo.
— Você dormiu bem? — perguntou só para mim.
Assenti com a cabeça.
— E você? — devolvi a pergunta. Ele confirmou enquanto terminava de colocar uma porção de arroz em um pequeno bowl.
Esse mesmo bowl foi apoiado bem embaixo do meu nariz em um gesto delicado, muito diferente do que Dongmin fazia normalmente. Agradeci em voz baixa, só para receber depois outro com alguns legumes e a carne. Olhei ao redor, de repente constrangida, e captei os olhares de Nellie e seu sorriso enorme e sugestivo, que cutucou Mingyu, que me lançou o mesmo olhar, como se estivessem na quinta série. Fofoqueiros, eu disse!
Outro par de olhos servindo de audiência foi o de Jaehyun, que os desviou assim que olhei para ele, como se nunca tivessem estado ali. Arranhei a garganta e levantei a mão, sentindo as bochechas corarem.
— Já está bom, obrigada. — falei rápido para Dongmin, antes que ele inventasse de me dar mais coisas.
Coloquei a comida na boca e mastiguei rápido. Era assim que as pessoas daquele país chamavam uma interação comum de flerte. Nas praias de Malibu era olhar para um indivíduo por cima dos óculos escuros e abrir um sorriso de lente dentária, mas ali, bastava que você colocasse proteína na comida da pessoa! (E agora, Nellie e Mingyu estavam rindo por isso).
Mas Dongmin me servir arroz e um quadrado de carne de porco não significava nada. Não depois de ontem, não depois de todo o surto psicótico do fim de semana.
Não era nada.
Segunda-feira
12 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
12 de setembro
Seogwipo, Ilha de Jeju
Li uma vez que a cor azul representa frieza, monotonia e depressão.
Tudo isso poderia soar minimamente mais razoável se não tivesse saído da boca da inspetora do internato, que arrumava as mais bizarras desculpas para castigar ou repreender o uso de qualquer outra cor nos corredores do castelo de pedra que não fosse os neutros preto, branco e cinza. Até hoje não faço a menor ideia de como aguentei isso por tanto tempo sem me enforcar com o cadarço do tênis.
Só que eu sempre gostei de azul, sem me atentar em nenhuma dessas características. Era uma cor que traduzia coisas: o verão, as praias que eu sentia falta da minha cidade natal, os melhores vestidos de formatura para a escola naquela época (que foi uma das únicas coisas que pude fazer sozinha, sem minha mãe a tiracolo ditando o que eu deveria ou não usar. Afinal, era isso que ela fazia), e as luzes de led que espalhei pelo meu quarto pra me ajudarem a dormir.
Então, quando entrei naquele aquário e vi a frase em cima do suporte de madeira para os panfletos com informações e mapas que dizia: "Bem-vindo ao nosso paraíso azul. Vamos te fornecer momentos tão aconchegantes quanto seu significado — tranquilidade e serenidade. Aproveite!", me senti muito feliz. Expressamente feliz, com uma vontade infantil de gritar para a inspetora: chupa essa!
Nunca tinha pisado em um aquário antes, e estar andando literalmente debaixo de superfícies envidraçadas onde animais grandes e pequenos passavam ao seu lado tão de perto era um pouco assustador, mas o visual era incontestável. Com as luzes baixas, tudo lá dentro brilhava em anil, e os peixes nadavam serenamente, tal qual o significado das palavras entalhadas no panfleto. Com o tempo, o medo sumiu. Eu passaria horas olhando para eles, ouvindo o som ruidoso das bombas de água e admirando o contraste dos corais coloridos.
Não faço ideia de quando, mas, em algum momento, percebi que todo mundo se separou. Quando chegamos, o plano era que seguíssemos a "trilha" da guia turística e passássemos por todas as seções juntos enquanto ela explicava as espécies e seus habitats, como uma visita escolar ao zoológico. Ideia de Jungkook (que pegou a ideia de Namjoon, que aparentemente amava Jeju). O espaço não estava muito cheio, mas tinham corredores pequenos e plaquinhas com orientações nada precisas, fora o fato de que Nellie arrastava Mingyu para que ele fizesse seu papel de fotógrafo e eu estava… encantada. Provavelmente encantada demais, pensando em como tanta beleza podia ter sido feita.
E foi nesse vórtice de deslumbramento que, quando olhei para trás, não vi mais ninguém.
É lógico que eu devo ser a pessoa que se perdeu. Fiquei tão hipnotizada pelos peixinhos que não me contive em sair andando igual uma criança.
Ouvi os gritos de uma plateia ao longe, e me lembrei do roteiro do passeio que foi distribuído no início, uma folha de papel simples com os caracteres coreanos emendados um no outro, desprezando até uma experiência intermediária de um não-nativo. Mas sabia que existia uma exibição de golfinhos em uma arena aberta em algum lugar por ali, já com início.
Peguei meu celular e bufei. Sem um grão de sinal, vítima de tanto acrílico e placas pretas que te afundavam em uma linda noite escura, mesmo que o sol estivesse brilhando do lado de fora. Aceitei meu destino, andando um pouco mais rápido entre as placas multicoloridas para conseguir chegar pelo menos à arena, torcendo para que eles tivessem seguido o roteiro (diferente de mim).
Quando curvei em mais uma passagem, avistei um garotinho ao lado da faixa de segurança e alguém abaixado à sua altura, conversando com ele. Eu poderia pedir informação, porque era literalmente a minha última esperança. Chegando mais perto, olhei de relance para o boné colocado para trás das costas da pessoa e… aquele era Jaehyun?
Quando riu, eu tive certeza. Ele murmurava coisas e apontava para os corais e os peixes-espada à frente, o que fazia o garotinho soltar um som alegre e puxar sua pulseira prateada e cara, idêntica a dos outros rapazes. Não sabia se eu devia quebrar aquele momento agora, ainda mais porque não me sentia mais exatamente perdida.
Logo mais, uma mulher se aproximou afobada para perto dos dois e falou alto, um pouco sem fôlego: “Muito obrigada por encontrá-lo!”, dobrando as costas em uma reverência e, em seguida, tomando o garotinho de volta. Quando Jaehyun se levantou, vi como era bem mais alto do que todos os guias que encontrei, e a luz azul batendo na sua bermuda cargo escura o tornava quase parte do cenário, se ignorarmos a regata azulada um pouco cavada nas laterais. Ele parecia, de longe, um cara que eu encontraria em cima de um skate no parque Ttukseom. E nunca imaginei que eu gostaria de uma coisa dessas.
Decidindo que ficar ali parada feito uma pateta não era a melhor opção, limpei a garganta e me aproximei.
— Como eu pude duvidar de primeira quando você disse que queria ser pai? — usei um tom conspiratório que o fez virar a cabeça na hora.
— . — ele pareceu surpreso, e um pouco aliviado. — Nossa, onde você esteve esse tempo todo? Nellie deve ter perdido uns 10 decibeis na voz enquanto te procurava.
— Isso é pra fazer eu me sentir culpada?
— Não, é pra fazer você dar mais uma voltinha por aí e livrar a gente de um cover do James Taylor no último karaokê da noite.
Senti meus olhos brilhando.
— Ela é uma dramática, só me perdi como mais uma dessas crianças que você acabou de resgatar. — apontei na direção em que o garoto tinha ido. Como eu poderia ser diferente dele nesse quesito? Nós dois nos comportamos bem e não choramos, eu acho. — E o que você faz desse lado? Achei que tinha ido com os outros.
— Falei que ia te procurar porque tinha visto você entrando no corredor dos corais. Nellie se acalmou e foi com os golfinhos.
— Traidora.
— Eles iam equilibrar uma bola no nariz, . Não dá pra culpar ela.
Forcei meus músculos faciais a permanecerem no mesmo lugar ao ouvir ele dizer o meu sobrenome.
— É verdade. Mas se rolar o James Taylor hoje à noite, já sabemos de quem é a culpa.
— Eu aceito a punição. — ele deu de ombros e eu ri.
Girei a cabeça duas vezes para os lados, observando as cores e formatos dos corais brilhando por trás do vidro de acrílico.
— Pelo visto, gostou de se perder. — a sonoridade única de sua voz me fez virar a cabeça para ele, de repente muito perto de mim. — E pelo menos não foi na parte dos tubarões.
— Ah, é… tudo menos os tubarões.
Jaehyun exibiu um belo sorriso enquanto passava uma língua pelo lábio inferior. Minha nossa, se ele falasse alguma coisa comigo nos próximos cinco segundos, seria como se não falasse nada porque minha mente acabou de dar um delay. Todas as palavras do mundo ficaram em grego.
O que é isso? Que ribombar era aquele no meu peito? Que rave eletrônica era aquela que estavam fazendo no meu estômago? Parecia um coral de borboletas dançando valsa sânscrita. Um caos nuclear atravessando meu corpo inteiro, destruindo especificamente minhas células inteligentes e um pouco das não inteligentes também. Acho que, de alguma maneira, todas as células são inteligentes…
— Ei. — dedos enormes estalaram na frente dos meus olhos. — Você tá bem?
Agora o incêndio, queimada, fornalha, tudo isso estava acontecendo na minha bochecha.
— S-sim. Foi mal. Eu… tava pensando nos coptas. Os peixes coptas.
— Peixes… egípcios?
— Tem muitos peixes no Egito. — pisquei várias vezes. Estava sentindo uma necessidade absurda de arrumar o cabelo, de procurar um bebedouro. Nem sabia o que eu estava falando. — E os nomes deles são baseados na língua copta.
Um brilho de pura malícia tomou conta do olhar de Jaehyun, e quase quis chutá-lo na canela para que ele parasse com isso, para que ficasse um pouco longe, só um pouquinho.
— Nunca imaginei que você soubesse o que é copta.
Arqueei as sobrancelhas.
— Isso poderia me ofender.
— Não, eu não quis… — ele comprimiu os lábios, bagunçando o cabelo com uma mão agitada. O brilho no olho ainda estava ali. — Deixa pra lá. Você não me respondeu. Tava procurando por alguma coisa específica?
Corei um pouco.
— Eu queria ver a Dory. — respondi baixinho, com uma dose de constrangimento sem explicação. — Quer dizer, a espécie da Dory, fiquei sabendo que se chama cirurgião-patela e eu queria vê-la na vida real, queria ver de perto, e também o pai do Nemo, a casinha deles na anêmona-do-mar, o Sr. Ray, os amiguinhos insuportáveis do Nemo que deixaram ele ser idiota e conhecer a Darla, e ninguém nesse lugar sabe me dizer a espécie do Gil, e também… — parei de falar quando percebi que eu não estava dando pausas e que Jaehyun estava com um leve rosado na bochecha, tentando não rir. — É, é, eu sou fã de Procurando Nemo, sabichão. Por isso eu me perdi.
— Mal consegui notar. — disse, debochando. — Mas pra sua sorte, eu vim pelo outro lado, e acho que você vai gostar de me seguir.
Abri a boca.
— Você sabe que eu não tenho sorte, então se vai me enganar me enfiando no túnel dos tubarões, eu uso seu corpo de escudo.
— Tenho cara de quem te enganaria?
— Pior que não. — inclinei a cabeça. — Mas o Jeffrey Dahmer foi considerado o serial killer mais bonito de todos. Ele nem se esforçava tanto.
— Isso poderia me ofender. — ele repetiu. Rolou um sorrisinho cúmplice entre nós dois, e não, aquela onda de calor vigorosa e estranha, de novo não.
Cocei a garganta.
— Vou te dar um voto de confiança. Vai, me leva.
Ele riu e colocou as mãos nos bolsos, começando a caminhar para sairmos daquela seção e irmos para a próxima, um enorme espaço amplo depois de um arco, lotado de vidro separando vida aquática de terrestre, iluminando cada pedacinho de ponto cardinal com tranquilidade em forma de cor.
Não dava para explicar a paz. Não dava.
Quando parei junto com Jaehyun, estava olhando para o que era provavelmente uma das imagens mais lindas que já vi. O cenário do chão ao teto revelava vários recifes, de todas as cores e tamanhos e, entre eles, vários cirurgiões-patela nadando livremente em um território que parecia infinito, desconhecido e pacífico, tudo isso dentro dos limites de uma caixa gigante. Devo ter perdido o fôlego e um pouco de equilíbrio, porque segurei na barra de metal que nos afastava do vidro para conseguir ver mais de perto.
— Meu Deus, ela é tão linda na vida real. Elas. São tantas. Várias Dorys.
— Uma pra cada vez que assisti o filme. — disse ele. Larguei a barra, me virando para ele.
— E não achou interessante comentar isso enquanto eu dava uma de fangirl ali atrás, pelo visto.
— Tinha gente olhando. Daí eu usei seu corpo de escudo. — ele deu de ombros, inocente. Meu Deus, não consigo mensurar a circunferência com que minha boca abriu.
— Você é cruel. Na verdade, tem potencial pra ser uma pessoa horrível.
— Uma pessoa horrível gostaria de Procurando Nemo?
— Pra ser fã da Darla, sim. Sua cena favorita deve ser a que sequestram o Nemo.
— Tenho quase certeza que é quando eles cruzam o mar em cima das tartarugas.
— Ai. — uma pontada insana no peito seguido de uma explosão de cores nos meus olhos. — A minha também. Você não tá ajudando.
Pousei os dedos de volta na barra, voltando a olhar a imensidão azul através do vidro como se estivesse vendo cenas pós-créditos da animação. Era tão parecido. Eu vestiria uma daquelas roupas horríveis de neoprene dos outros e me jogaria ali fácil.
— Quero ter um desses um dia. — murmurei, movendo os olhos para pegar tudo que eu pudesse do ambiente — Um menorzinho, claro. Um onde caiba casinhas de coral e um par de Marlins e outro de Dorys. Acho que não vou conseguir fazer caber um Gil. Ei, você sabia que esponjas são seres invertebrados?
Virei, empolgada. Encontrei o corpo dele quase todo virado para mim, uma das mãos apoiadas na barra ao meu lado, um sorrisinho solene me admirando.
Fiquei com vergonha.
— Eu sei. E pepinos-do-mar são um dos mais vendidos nas feirinhas da madrugada de Seul.
— Eles devem ser fofos.
— São aberrações da natureza, .
Ri um pouco mais alto. Meu nome, de novo, causou cosquinhas no meu ouvido. Era bom saber que ele não tinha mais problemas em dizê-lo.
— Lembro de dizer à minha mãe que os tubarões eram as aberrações.
— Eles estão numa posição bem privilegiada na cadeia alimentar. Alguns idiotas acham que somos nós os grandes predadores do mundo.
— Bom, desde que pensaram em esfregar dois gravetinhos em uma rocha e viram aquelas faíscas, nossa inútil espécie ganhou um upgrade. Só foi se emocionando demais…
— Depois da criação do alfabeto, tudo foi uma enorme emoção. — ele encolheu os ombros. Ainda estávamos olhando para o aquário.
— Saudades de quando não tínhamos energia elétrica. — comentei.
— Saudades de quando dava pra ver as estrelas à noite na cidade.
— Saudades de quando o meio de transporte mais moderno era a charrete.
— Saudades da forma de pagamento por escambo. — olhei para ele na mesma hora. — Quero dizer, nem tanto, assim você perderia o seu emprego.
Ri pelo nariz. Que atencioso.
— Obrigada. Você poderia continuar fazendo o que faz, eles pagavam uma nota por uma rodinha de trovadorismo.
Jaehyun chegou um pouco mais perto.
— Fico lisonjeado, mas não sou tão bom com as palavras assim.
— Eu duvido.
— É sério.
— Continuo duvidando.
Ele me olhou e, discretamente, quase sem perceber, mordeu o lábio inferior, segurando um sorriso para que não saísse, o que considerei uma breve lástima.
— Tá, olha, só porque eu tenho aquele caderno cheio de letras inacabadas, não quer dizer que isso seja bom. A internet aumenta as coisas.
— Ah, meu Deus, você tem um caderno de composições? — arquejei, dando um passo para o seu lado. Jaehyun anuiu, movendo o pomo de adão.
— É, mas ele não tem nada demais. Tá configurado pra registrar umas frases soltas, coisas legais que eu vi em um filme, e umas nostalgias.
— Uau. O rei vai com certeza te contratar para o torneio. — fiz ele rir. Jaehyun apoiou as mãos na barra ao meu lado e voltou a encarar o azul, me deixando à vontade para olhar seu perfil, focar na linha de seu maxilar, traçar o caminho até a pontinha do nariz…
Mas que lado era esse? Em que fornalha natural esse rosto tinha sido esculpido? A própria matemática o usaria de exemplo para explicar a simetria.
Parei de olhar, engolindo em seco.
— Isso é muito maneiro. Sério. Todo esse lance do diário e tal.
— Acho que diário é um termo muito complexo.
— Complexo é calcular Mecânica Quântica. Ou saber falar línguas mortas. Escrever músicas é um…
— Paradoxo.
Olhei para ele. Jaehyun coçou a nuca levemente, e suspirou.
— Na indústria, a gente raramente tem controle sobre alguma criação. Se você escreve uma música com potencial, colocam na gaveta do “depois”. Se escreve uma música com muitas frases repetidas, eles conseguem considerar como um provável hit. Se você cria a batida, tem mais chance de conseguir a aceitação. E se escreve uma letra pessoal, com seus sentimentos de verdade, eles raramente reconhecem. Porque te deixariam em evidência, mas não a evidência que eles querem. Querem que olhem pra você, mas não olhem tanto. Que falem sobre você, mas que falem a coisa certa, e pra isso você tem que dizer a coisa certa no momento certo. Reparam até no jeito que você se coloca de pé em uma cafeteria, não é difícil imaginar as histórias que pensariam se ouvissem uma manchinha de honestidade. As pessoas desejam a verdade sobre você, elas fazem loucuras pra furar a sua privacidade, e quando recebem, elas não aceitam ou não entendem. É o paradoxo de Sócrates. — ele encolheu os ombros. — As pessoas buscam o conhecimento só até serem confrontadas com verdades desconfortáveis. E ser humano, no nosso meio de bonecos Ken à perfeição, é um crime grave. É como se as pessoas complicassem demais uma coisa tão simples, que é mostrar seu talento. Não parece ser só isso, sabe? Ninguém mais é permitido ser bom, ou ser mau, ou ser as duas coisas. Você só pode ser… o que eles querem que você seja.
Fiquei parada. Acho que até mesmo a colônia de Dorys estava nadando mais devagar, chegando mais perto só para ouvir o que o carinha bonito de bermuda estava falando. E se elas também estivessem sentindo aquele singelo aperto no peito que eu senti, cirurgiões-patela eram realmente seres muito adoráveis.
Olhei para as mãos dele na barra. Desde que soube do seu acidente, estava com essa mania instintiva de olhar para as mãos de Jaehyun. De querer pegar as mãos de Jaehyun. Que Deus me perdoe, de beijar os dedos dele, nozinho por nozinho.
Naquele momento, precisei me segurar para não cometer esse ato de insanidade.
— Retiro o que eu disse, quem precisa de fogo e Wall Street? Podemos voltar para a era Mesozoica e nos preocupar apenas em caçar dinossauros e nos cobrir com suas peles. Ou pra idade média na época da Inquisição, mesmo que provavelmente a gente morresse na peste negra. Tenho certeza que eles passariam a tomar banho depois dos nossos conselhos.
Ele riu, os furinhos na bochecha brotando lentamente.
— Ficou tão disposta a voltar ao passado?
— Passado quando é bom, vale a pena ser revivido. Sempre falei isso. Tirando o lance dos dinossauros, eu tava brincando sobre isso, inclusive.
Ele anuiu, sem se desfazer daquela amostra linda de dentes.
— Você prefere longe ou perto do meteoro?
— Hum, perto. Não é como se desse tempo da gente aprender muita coisa, né? Rasgar a barriga de uns mamíferos de pequeno porte, viver em constante ansiedade, não ter tratamento capilar, desenhar umas linhas na pedra, fazer pelo menos um filho… — baixei a voz até ela sumir. Nem tive coragem de virar para ver se Jaehyun estava me encarando; preferia enfiar a cabeça numa caixa de areia de gato. — Quer dizer, considerando que as pessoas viviam até os 27 anos, não daria tempo de fazer isso tudo porque estaríamos mortos e triturados por um T-Rex, então que tudo acabe junto.
Ele observou um dos cavalos marinhos girando em sua própria órbita por alguns segundos antes de brincar:
— Uma visão interessante da vida essa sua. A mais interessante que eu já ouvi dentro do contexto “copo meio vazio”.
— Valeu. Não vou me ofender por você ter me chamado de pessimista, é sério. — levantei um ombro. — É o jeito que eu sou. E por mais que eu mesma esperasse, não virei um desastre completo. A minha visão de mundo tem seu lado bom e ruim, assim como tudo na existência.
— Igual a cor azul. — virei a cabeça de novo. Naquela postura ereta e elegante refletindo as linhas tortas da luz na água, ele quase se parecia com um nobre inglês. Se abrisse a boca e recitasse um “ser ou não ser” de Hamlet, eu nem iria achar idiota. — Sabia que a cor azul pode ter um significado depressivo e claustrofóbico? As pessoas usam feeling blue pra dizer que estão pra baixo, só que ela também significa felicidade e serenidade, dependendo do que a gente tá falando. Essas coisas nunca são uma coisa só, tudo sempre está se movendo e trocando de posição, tendo mil e uma interpretações. Eu ter um caderno de composições pode parecer muito interessante, um show de criatividade, mas também significa que eu nunca digo o que eu quero dizer… pra quem eu quero dizer.
Ele olhou para mim, compartilhando uma espécie de conversa privada com os olhos. Era o tipo de coisa que eu estava acostumada a ver surgir entre mim e Nellie, ou às vezes entre mim e Dongmin quando víamos algo engraçado em público, e não achava que seria capaz de ceder isso a mais alguém. E não cedi. O que estava acontecendo ali agora com Jaehyun era algo diferente, completamente diferente, uma hipnose maluca que dava progresso a uma festa de carnaval que já estava acontecendo dentro do meu peito. Um que, até então, não fazia sentido.
Mas fez. De repente, minha cabeça estava doendo com aquele fato piscando: eu estava atraída por Jaehyun. Do tipo de sentir borboletas vibrando no estômago quando notei nossos dedos se tocando na barra de metal, tantas borboletas que elas seriam capazes de sair pelos meus poros. O olhar dele estava me matando.
— Jaehyun… — comecei a dizer, sem saber o que queria dizer. Talvez eu precisasse de um som para me puxar de volta daquela loucura. Deixar claro para ele também que estávamos do lado errado das nossas impressões iniciais. Que não devíamos sair do lado delas sem uma conversa antes.
Isso poderia dar certo se eu não quisesse que ele me beijasse. Se não estivesse gritando aquilo ali mesmo pelo olhar, um pedido que transcendia as palavras. Não sei o que está acontecendo, mas me beije, é sério, me beije agora.
A cabeça de Jaehyun se inclinou devagar na minha direção em resposta a qualquer coisa não dita por mim e tentei manter meu coração no lugar, tentei manter os pensamentos lógicos bem longe dali e comecei a fechar os olhos.
— Ei, vocês! — uma voz masculina assustou até mesmo as Dorys que tinham nadado para mais perto do vidro, tão fofoqueiras quanto Nellie e Mingyu. Pulei para longe de Jaehyun, o coração descompassado boxeando os meus ossos. — Vocês são e Jaehyun?
Levei um tempo para perceber que ele tinha falado meu nome, mas Jaehyun já confirmava a pergunta na minha frente, com a voz um milhão de vezes mais afetada do que a minha estaria.
O homem anuiu.
— Uma tal de Nellie foi até a torre de comunicação e disse que vocês estavam perdidos. É verdade?
As letras saíram da boca dele devagar, sugestivo, o que claramente queria dizer que ele tinha pegado a cena anterior. E viu que “perdidos” não combinava com aquilo.
Entreolhei com Jaehyun pela primeira vez, e ao invés de sentir um constrangimento profundo que me faria ter vontade de me diluir em ácido no chão, nós dois soltamos uma risadinha ao mesmo tempo; meio nervosa, nasalada e fraca, mas era uma risada, porque era melhor imaginar Nellie aos berros enquanto mobilizava aquele lugar enorme do que pesar o clima com o que iria acontecer há alguns segundos.
Deliberei por alguns instantes e falei com o segurança:
— Precisamos chegar à arena dos golfinhos. Nos perdemos um pouco do pessoal.
O homem assentiu e apontou para o corredor ao lado.
— Venham comigo, vou levar vocês até lá.
Ele se virou e seguiu em frente. Eu e Jaehyun o seguimos logo depois, andando lado a lado, sem trocar nenhuma palavra ou formar uma frase inteira que explicasse ou sequer dispersasse o peso. Talvez ainda levaríamos uns dez minutos para isso acontecer, então, foquei nos corredores escuros e climatizados até conseguir ouvir o barulho das conversas altas e da pressão na água causada pelos golfinhos. Talvez ver um animal aquático equilibrar uma bola colorida no nariz fosse o suficiente para que eu não pensasse no que diabos estava acontecendo comigo.
Me perder sempre foi um azar. Coisas assim eram do meu feitio. Mas me perder com Jaehyun não foi… ruim. Ou desagradável. Ou qualquer coisa ruim que poderia ser a todo mundo que é incapaz de viver sob horários e rotas pré estipuladas por um grupo.
Ao contrário do restante da população, ele não me olhava como se eu falasse grego, ou como se eu fosse um poodle engraçadinho, ou como se eu fosse inocente perante a assuntos sérios da vida, uma criança que precisasse ser protegida dos assuntos de adulto. Meus pais me tratavam assim, e então, nem preciso dizer o final da história. E até isso eu poderia contar para ele — meu caminho complicado até aqui, que eu transformava em comédia e risadas para abafar as noites solitárias e a luta mental vencida com lágrimas e Doritos para não desistir, meus pais egocêntricos, meu medo constante de nunca chegar ao ponto crucial dos meus objetivos. Muita coisa. Sentia que ele entenderia tudo isso, em todas as línguas que eu recitasse.
Foi sorte ele estar ali. Foi sorte ele estar na praia. Foi sorte tê-lo comigo na montanha-russa. Foi sorte estar comigo no jogo.
Mas eu não tinha sorte.
Eu só tinha… um paradoxo.
Na volta para casa, agradeci imensamente por estar no carro de Dongmin. Sua falação sobre a apresentação dos golfinhos e o que meu sumiço tinha me feito perder, tipo o início quando fizeram a introdução em nado sincronizado com fitas cor-de-rosa (e como eu teria amado todas elas), foram suficientes para que eu não precisasse falar muito, e eu realmente não queria falar. Tinha alguma coisa muito errada comigo e eu ainda não sabia bem o que era, mas sabia que precisava me livrar.
Porque a cada momento livre, eu lembrava do aquário de Dorys e da sensação do toque de Jaehyun no meu dedo mindinho. Lembrava dele se aproximando para me beijar. Lembrava que eu queria isso! Era como se tudo tivesse acontecido em um piscar de olhos e só agora eu estava conseguindo absorver tudo apropriadamente.
Nem reparei quando estacionamos na frente da casa, e muito menos quando Dongmin desligou a música. Eu só lembrava do azul, do momento azul e do toque...
— ! — acordei com o grito de Dongmin do banco do motorista. — No que você está pensando? Vamos entrar.
— Credo, não precisava gritar. — desafivelei o cinto rapidamente, não sabendo como não me embolei com ele e saí do carro, limpando a garganta e jogando para fora todo pensamento maluco sobre Jaehyun.
Quando eu estava conseguindo limpar minha mente e seguir caminho para dentro da casa, senti braços atravessarem meus ombros e vi Dongmin se achegar ao meu lado. Como nos velhos tempos, como costumava fazer sempre, deixando minha cabeça plantar fantasias de que nossas vidas estavam interligadas e toda essa baboseira romântica que ia se desprendendo da minha imaginação a cada dia que passava. Agora, pensando bem, ele fazia o gesto de um jeito mais acanhado, apreensivo, como se dissesse que sabia de tudo mas estava tudo bem, ele faria tudo que pudesse para que nossa intensa amizade voltasse ao normal.
— Hoje é o nosso último dia aqui, o que você quer fazer? — ele perguntou enquanto andávamos juntos.
— Hum, não sei. Abater um porco?
— As fazendas de gado estão muito longe. Vamos, uma resposta séria.
Ri pelo nariz.
— Não importa o que eu quero, Lee, vamos fazer algo todos juntos.
— Mas vou levar o seu querer em consideração, é claro. Esqueceu que você sempre escolhe programas que vão fazer as pessoas rirem no final?
Estreitei os olhos, vendo-o dar de ombros quando relembrou implicitamente de todas as minhas ideias de atividades mirabolantes que não condiziam bem com minha propensão ao azar e em como isso era divertido para quem via de fora. Como quando pedi para patinar na pista de gelo no inverno ou tentei ter uma aula teste com seu professor de boxe. Enfim. Acho que deu para entender.
— Bem, como eu sou inevitavelmente uma piada, podem marcar qualquer coisa que não vou ter escolha a não ser comparecer.
— Realmente, o livre arbítrio é algo irrelevante entre a gente. O que você acha de um luau?
— Já não tivemos um luau no dia do parque de diversões? — falei distraída, mas logo desviei os olhos para as próprias unhas ao lembrar que aquele fatídico dia foi quando agi por impulso de forma ridícula ao acreditar que sua música tinha sido para mim.
Dongmin pareceu indiferente.
— Sim, mas agora seria mesmo um luau. Aquilo foi mais um lance improvisado. Hoje vamos montar tendas na praia, encomendar um jantar decente, acender algumas luzes, ter números insuportáveis de karaokê com Nellie e Mingyu, o que você acha?
— Quero bolo de sorvete. — dei de ombros, arrancando uma gargalhada dele.
— Beleza, , vamos ter bolo de sorvete. Também vai ter laranja, elas são uma fortuna nessa época, mas posso te dar esse presente.
— Não é um presente quando você me deve. Esqueceu da primavera passada?
— Vamos começar com isso de novo? — ele soou falsamente magoado. Revirei os olhos.
— Melhor não. Amanhã vamos estar em Seul e não sei se tô pronta pra voltar a vida normal.
— Beleza, por que não pedimos-
Não ouvi o resto da pergunta de Dongmin porque travei um pouco os pés quando avistei Jaehyun ao lado das escadas, levando uma cadeira para a cozinha. Ele olhou para mim e os braços que passavam ao redor da minha nuca num gesto particularmente íntimo demais. Me senti um pouco nervosa, como se precisasse me explicar, e a queimação na boca do estômago voltou e não durou muito. Ele me lançou um sorriso de canto e subiu as escadas, desaparecendo no andar de cima.
Qual é, eu e Dongmin éramos amigos! Ele é a pessoa que eu tinha beijado nessa viagem, mas foi tudo um mal entendido, não vamos ter nada além disso aqui, você consegue compreender?
— ...E tem aquelas coisas azuis que se colocam em cima da mesa... O que foi? — a voz dele me tirou dos devaneios de novo e percebi que seus braços não estavam mais em mim. Quer dizer, pelo jeito que ele me olhava, parecia que eu os tinha afastado, o que era estranho porque eu não percebi nada disso.
— Nada, o que são as coisas azuis? Precisamos de coisas azuis? Por que não podem ser, sei lá, verdes? — falei, caminhando até a cozinha, buscando o primeiro copo de água bem cheio e bem gelado que eu pudesse encontrar.
— Mas azul é sua cor favorita.
— Não hoje!
Eu não sabia se vestir aquilo era uma boa ideia.
Conhecendo Nellie, aquilo tinha cara de planejamento desde muito antes que eu entrasse no avião. Desde antes de Dongmin me informar dessa viagem. Antes que eu decidisse aceitá-la. Se eu for exagerar, ela devia estar guardando essa coisa desde a primavera passada. Cada traço daquilo cheirava à mente maquiavélica da minha amiga.
O vestido branco tinha brilho, para começo de conversa. Era colado no tronco e solto na cintura, com uma corrente de metal atravessando o abdome como se eu fosse alguma garota do Pinterest. Mas era mais confortável do que tudo que ela já havia me emprestado na vida e talvez por isso eu não tenha reclamado tanto.
As mesmas sandálias caras e delicadas voltaram a desenhar meus pés, mesmo ela tendo noção de que iríamos para a areia. Os brincos grandes também me pareceram uma loucura, mas combinados com a maquiagem me deixaram tão absurdamente bonita que também fui incapaz de reclamar.
Ela não estava brincando quando tinha dito mais cedo ao invadir o meu quarto que “guardou o melhor para o final.”
Quando desci, tive aquela mesma sensação do primeiro dia: olhos furtivos para cima de mim, explicitamente surpresos e sem palavras. Me perguntei sinceramente como essas pessoas deviam me ver antes e se eu realmente ficava tão diferente assim quando colocava uma sombra nos olhos, mas a atenção sobre mim se dispersou muito rápido porque aparentemente estávamos atrasados e alugar uma parte de uma praia naquele país parecia ser absurdamente caro.
O lugar era exatamente como Dongmin me prometeu: tendas com luzes circulares, mesas de té tradicionais onde comeríamos no melhor estilo oriental, sentados no chão; um pequeno tablado que seria palco para as vergonhas alheias e bêbadas dos garotos e uma cabana de madeira bem perto, onde provavelmente eles reabasteceriam o estoque de bebidas.
Tinham muitas tendas para um grupo de sete pessoas, o que me fez notar — é claro — que eles pretendiam dar uma festa. Luau o caramba.
A visão dali era magnífica. Era perto e longe do mar ao mesmo tempo. Afastado o suficiente para que a maré não nos pegasse de surpresa e próximos o bastante para que sentíssemos a brisa no rosto e o odor da maresia. Parecia mesmo uma noite de férias, com gente feliz imersa em atividades brutas repetidamente, mas sem parecerem exaustos no fim do dia. Enquanto isso, passar três horas sentada em um escritório já dava para ficar zonzo de tanto cansaço. Acho que eu amava Jeju. E definitivamente, não estava amando a ideia de voltar para Seul.
Em pouco tempo, as pessoas se dispersaram, se misturando aos numerosos amigos comuns que, não adianta, eu jamais conheceria todos ou gravaria os seus nomes. Só me lembrava de Marco, que gentilmente acenou para mim de longe, muito ocupado em uma conversa na rodinha de outros caras, provavelmente falando sobre pautas importantíssimas do sexo masculino, que incluíam: futebol (nacional ou europeu), política e… seja lá o que os caras conversam que não seja sobre o acervo feminino do ambiente.
Dongmin tentou ficar comigo o máximo possível, mesmo eu dizendo que estava tudo bem, que ele poderia ir se divertir sendo a borboletinha social que sempre era. Ele não se abalou com a minha insistência, e parei por aí; assim como seria estranho pedir pela sua companhia, seria igualmente esquisito persistir para que ele fosse para outro canto. Não queria que ele pensasse que eu ainda estava afetada com alguma coisa (mesmo estando, um pouco, eu acho).
De qualquer forma, eu mesma me afastei para buscar uma bebida. Me esgueirei por garotas de biquíni, surfistas molhados em roupas de neoprene, um senhor de 60 anos e um cachorro usando uma fantasia de hula-hula. Quando cheguei na mesa lateral, mal olhei o que tinha (coisas coloridas e que provavelmente teriam mais gosto de vodka do que tudo, mas agarrei uma taça grande já cheia de um líquido rosa e puxei um guarda-chuva de açúcar de um coco aberto).
Estava procurando um canudo cheio de voltinhas quando ouvi:
— Acho que o canudo reto vai funcionar melhor.
Quase dei um pulo, me virando rápido e encontrando Jaehyun.
É claro que era ele. O cheiro me atingiu antes mesmo da sua voz, e não sei como meu coração ainda estava no lugar. Não só pelo susto, mas porque… bom, por tudo.
Pelo aquário. E… tudo isso.
Devo ter ficado parada como uma idiota, porque ele foi enrugando a testa devagar e se aproximando para falar:
— Tá tudo bem? Assustei você?
Pisquei várias vezes.
— Sim. Quer dizer, não, claro que não. O que você disse antes?
Arrumei o cabelo já arrumado. Parecia que eu estava hiperventilando. E não estava acontecendo nada; Jaehyun só estava parado na minha frente.
Odiava pensar que isso já era um motivo.
Ele deu um sorriso de canto e esticou a mão sobre a mesa. Estava sem o boné, junto com calça cargo verde militar e uma camiseta preta com mangas curtas o bastante para me deixar ver as veias aparentes nos seus braços que retornaram com um canudo longo de cor azul, um que ele balançou na minha cara.
— Vi você olhando pro espiral. Acho que, pela física, você consegue beber mais rápido com um desses.
Ele estendeu o canudo para mim e levei dois segundos a mais para pegá-lo.
— Hum… física, é? Essa é boa. — engasguei com zombaria. — O que mais você quer exibir?
— Eu iria pra trás dessa mesa e te prepararia um Cosmopolitan, se você não achasse exibicionista demais.
— Ah, eu acharia. Mais exibicionista do que fazer topless na praia.
— Então, vou só te dar o canudo e dizer pra você não beber o drink verde. Disseram que o Yugyeom que escolheu.
— Sem drink verde, então. — estremeci. Pensei muito em fazer uma piada sobre seu comentário da física do canudo com outra coisa sobre física, mas meu conhecimento de esquisitices matemáticas estava esgotado. Ou, pelo menos, eles não pareciam tão impactantes quanto meu choque por estar com o corpo inteiro fervendo repentinamente. Desde que ele chegou.
Meu Deus, provavelmente eu nem deveria beber aquilo. Não deveria beber nada.
Pela necessidade de olhar para qualquer canto que não fosse nos olhos dele, acabei notando o que ele carregava nos braços.
— Tá pretendendo dar trabalho hoje? — indiquei as três latinhas que ele empilhava em uma única mão. Jaehyun negou com a cabeça.
— Não, hoje não. Alguém precisa ser o responsável desse time, se não todos iriam escrever cartas de retratação aos fandoms todo fim de semana.
Eu ri.
— Deve ser uma barra ocupar o posto de mais velho.
— Acho que seria pior ocupar o posto de líder. Deixo essa tarefa pro Mingyu. Ou deixo ele pensar que tem.
Sorri de novo, e ele também, e notei como essa coisa estava fácil para ele. Sorrir para mim, formar frases inteiras, não aparentar estar cansado só com a minha presença. Isso era bom, surpreendentemente uma ideia que me deixava feliz, mesmo que provavelmente, esteja me deixando mais feliz do que o normal.
Porque quando tudo isso acabasse, olhar para ele nessa nova faceta me faria lembrar para sempre do aquário, e também do boliche, do cara que me olhava de uma forma tão profunda como se quisesse me beijar. Ou mais do que isso. Quase como se estivesse a fim de mim.
E era tolice até mesmo pensar nisso.
— Você tá muito bonita. — disse ele em tom grave, baixo, passeando pela maresia. Foi como uma sombra falando, uma sombra que não tinha nada da confiança jovial e desembaraçada daquele cara que dançava em roupas sexy para milhares de pessoas.
Mesmo assim, fez meu coração pensar que estava numa festa do David Guetta. Provavelmente, era o que acontecia quando Jeong Jaehyun fazia elogios a alguém.
— É o poder de um vestido caro. Você já deve ter topado com vários na vida. — ri nasalado, me perguntando porque não conseguia dizer um simples obrigada.
Jaehyun sacudiu a cabeça.
— Você tá fazendo aquilo de novo.
— Fazendo o quê?
— Se diminuindo por vergonha.
O quê? Eu não fazia isso.
Ou fazia?
Quando eu tinha feito isso?
Essas perguntas eram lentamente respondidas à medida que eu fixava o olhar nele e percebia, de uma forma maluca, que seus olhos já estavam em mim. Não ali, agora, mas muito antes, em muitas outras situações, onde os meus estavam ocupados e concentrados em outra pessoa.
— Yuno! — a voz de Mingyu rachou a atmosfera, vinda da tenda ao lado. — Chega de conversa e traz as cervejas.
Jaehyun piscou algumas vezes e se virou para mim novamente, desta vez com um vinco entre as sobrancelhas, um pedido implícito de desculpas pela interrupção de Mingyu.
— Então, eu vou… — ele apontou para a frente.
— Aham, vai lá. Aproveita e faz o Mingyu deitar e rolar também, por gentileza.
Ele riu com entusiasmo. Parecia não saber como se despedir, ou se era uma despedida já que estávamos no mesmo lugar, mas, quando andou alguns passos em direção à tenda, de repente parou e se virou para mim de novo, parecendo pensar com cuidado antes de falar.
— Hum, você… — parou. Umedeceu os lábios. Eu esperei. — Você já soltou lanternas de papel?
— Aquelas que voam como balões?
— Sim, mas… Já as soltou no mar?
Balancei a cabeça em negação.
— Quer soltar algumas? — ele perguntou rápido, e logo estalou a língua. — Quero dizer, pode ir apenas ver, se preferir. Mais tarde a maré vai subir e a lua vai estar mais no centro, é bem bonito de ver. Também tem essa coisa de desejos e tudo mais.
— Jura? — me aproximei dele um pouco mais, empolgada. — Isso tá no itinerário? Eles nem falaram nada.
— Na verdade, não. É uma coisa minha. — ele pareceu envergonhado em admitir isso. — Se você quiser…
— É claro que eu quero. — respondi rápido. Só tinha visto um show de lanternas uma vez na vida, e fui dormir pensando nelas por um mês inteiro.
Jaehyun pareceu satisfeito.
— Mas não precisa escrever nada, se não quiser-
— Jaehyun, você pode escolher uma pra mim? — interrompi, e podia sentir meus olhos brilhando. — Digo, funcionaria assim? Se você escolhesse a minha lanterna?
Jaehyun avaliou meu rosto com um cuidado pleno e concordou com a cabeça.
— Claro. Vou escolher uma pra você. — ele deu um sorriso de canto, e se afastou a meio passo antes de dizer, desta vez com a voz mais baixa e abafada, igualmente a que usou no aquário. — E também… Você pode me chamar de Yuno.
Entreabri a boca e fiquei parada.
— Yuno. — o nome dele fez cosquinhas na minha língua. — E você pode me chamar de .
Era uma coisa meio idiota, mas eu só queria avisar que ele podia usar o meu nome em livre demanda. Não precisava mais ficar fugindo dele. E Jaehyun, por um segundo, pareceu espantado com essa possibilidade, trocando o peso das pernas e logo voltando a se movimentar.
— Tudo bem. Combinado, então. .
E se retirou, deixando uma garota meio desorientada para trás. Desorientada em todos os sentidos, e senti de repente que eu nunca precisei tanto falar com Nellie sobre garotos do que naquela hora.
Porque ela podia estar certa. E eu não sabia lidar quando Nellie Yohn estava certa sobre alguma coisa (ela geralmente só acertava sobre tendências de obras de arte e “por que a Monalisa tinha aquele olhar. Um olhar que perguntava como as mulheres evoluíram tanto para permanecerem iguais?”). E, de todas as pessoas do mundo, ela decidiu avaliar logo Jeong Jaehyun pra ser aquele que, possivelmente, eu poderia beijar.
E agora, eu queria beijá-lo. Estava assustada com o quanto queria isso.
Aparentemente, me declarar e ser rejeitada por Dongmin não parecia mais tão ruim assim. Um pouco traumático, mas nada que eu não pudesse superar. E superaria de uma forma legal vendo lanternas no céu…
É isso, eu não precisava de Nellie. Sabia exatamente o que ela diria (ou que me exigiria). Se Jaehyun quisesse, que mal faria? Um beijo não faz mal a ninguém. Tinha a sensação de que o dele me faria bem até demais.
E, de qualquer forma, tudo acabaria ficando apenas nessa viagem mesmo. Amanhã a realidade me socaria com o lembrete de que ele era Jeong Jaehyun, e Jeong Jaehyun tinha coisas mais interessantes para conquistar do que… Eu. É.
Pelo menos, com ele, não iria rolar desilusão. Eu estava pronta para tudo.
Continua...
NOTA DA AUTORA > Olá! ESTAMOS EM MINI-FÉRIAS!
Mas vamo ter um momentinho informativo pra você não ficar muito perdida? O feriado Chuseok é como se fosse o "dia de ação de graças" na Coreia. É um momento de celebrar a colheita, agradecer aos ancestrais e fortalecer os laços familiares e (por que não?) aproveitar com os amigos também. Ele dura 3 dias e, por isso, nossa fic talvez tenha ficado bem pequenucha, mas muito, muito divertida!
Agradeço de coração a quem acompanhou essa história comigo, desde que eu me deixei levar pelo plot da minha amiga Bianca e segui em frente. Agradeço minha melhor amiga Beatriz por ser a fã número 1 de Murphy e sempre me lembrar que eu, dramática que sou, teria a capacidade de fazer uma história engraçadinha e levinha SIM.
Agradeço as meninas que apareceram depois lá no insta, ou pelos comentários, ou pelo simples fato de que finalmente encontraram uma fanfic multifandom nesse multiverso do k-pop. Obrigada a todas vocês, de verdade! Que o feriado da 97 line tenha te trazido conforto e divertimento em dias difíceis e um pouco de distração da correria da vida.
E pra não perder o costume: deixa um comentário pra eu saber se você gostou também e me segue lá no insta pra ver mais histórias minhas: @sialrkive.
beijos,
Sial ఌ︎
Mas vamo ter um momentinho informativo pra você não ficar muito perdida? O feriado Chuseok é como se fosse o "dia de ação de graças" na Coreia. É um momento de celebrar a colheita, agradecer aos ancestrais e fortalecer os laços familiares e (por que não?) aproveitar com os amigos também. Ele dura 3 dias e, por isso, nossa fic talvez tenha ficado bem pequenucha, mas muito, muito divertida!
Agradeço de coração a quem acompanhou essa história comigo, desde que eu me deixei levar pelo plot da minha amiga Bianca e segui em frente. Agradeço minha melhor amiga Beatriz por ser a fã número 1 de Murphy e sempre me lembrar que eu, dramática que sou, teria a capacidade de fazer uma história engraçadinha e levinha SIM.
Agradeço as meninas que apareceram depois lá no insta, ou pelos comentários, ou pelo simples fato de que finalmente encontraram uma fanfic multifandom nesse multiverso do k-pop. Obrigada a todas vocês, de verdade! Que o feriado da 97 line tenha te trazido conforto e divertimento em dias difíceis e um pouco de distração da correria da vida.
E pra não perder o costume: deixa um comentário pra eu saber se você gostou também e me segue lá no insta pra ver mais histórias minhas: @sialrkive.
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