━Autora Independente do Cosmos.
Finalizada ✅️
Um impacto no ombro esquerdo retumbou nos ouvidos de , como se tivesse acertado-a com uma bomba. A dor foi incômoda, e ela gritou de frustração enquanto corria a toda velocidade para trás de uma das pilastras espalhadas, abaixando-se para escutar os próximos passos do inimigo.
O movimento era inexistente de ambos os lados, mas ela sabia que ele estava se aproximando, que não perderia a oportunidade de devolver a bala que havia recebido bem acima da área do joelho, impossibilitando sua mobilidade em direção à vitória. trincou os dentes enquanto verificava novamente sua munição. Se ele a pegasse agora, seria fatal. Não era apenas em carga que se encontrava quase completamente desfalcada, mas nos companheiros de batalha, que ou estavam mortos ou haviam desertado.
Ela respirou fundo e se preparou para levantar e lançar seu contra-ataque. Sabia que ele provavelmente estava sozinho e sua situação não era lá muito diferente da sua. Se tratava de um embate de habilidades. Ela só precisava…
Um gemido alto e prolongado a fez se encolher ainda mais. Uma espiada sutil e discreta de trás do esconderijo mostrou um rapaz caído no chão, por cima de um dos braços, parecendo seriamente ferido. Ela automaticamente se preocupou com a possibilidade de quaisquer acidentes fora do planejado, porém encarou a cor que ele vestia. E aquelas cores pertenciam ao inimigo.
Sem perceber, ela se deixou mais à vista. O inimigo estava abatido no chão, detido por um ataque que não partiu dela, portanto, ela não estava mais sozinha. Algum companheiro estava vivo, alguém tinha retornado para a batalha.
Ela se aproximou rapidamente do corpo caído no chão, a fim de confirmar a morte e finalmente declarar a gloriosa vitória. Quando se ajoelhou desengonçada ao lado de sua cabeça e puxou os ombros para cima, encarou o cano da arma escondida sob o braço soterrado e um sorriso satisfeito por trás.
— Aí está você! — o sorriso disse na mesma hora. Antes que qualquer pensamento lógico ou estratégico passasse pela mente da garota, o baque explodiu em seu peito, derramando-se por todo o seu tronco e anunciando o veredicto nada agradável: ela estava morta.
A risada do adversário foi alta e debochada, apesar de não durar muito. Quando começou a se levantar e dar as costas, sentiu a raiva espumando no mesmo lugar onde havia sido atingida, e finalmente conseguiu se colocar de pé, só para erguer a pistola para a frente e apertar o gatilho em direção às costas do oponente.
O ataque foi tão inesperado que os joelhos dele quase cederam e levaram-no ao chão. Ele virou-se novamente para ela, com os olhos arregalados pelo susto.
— Você é maluca?! — arfou, uma recente raiva cintilando os olhos. — Não percebeu que tá morta?
— Você jogou sujo, imbecil.
— Sua péssima habilidade em achar um esconderijo decente agora é culpa minha? Francamente…
— Você dizimou todo o meu pelotão e os esconderijos possíveis. Acha que estamos em algum jogo online pra usar manobras tão deselegantes e sujas como essa?
— Você é cega? Não viu que fez o mesmo com o meu time? — ele apontou para o campo em volta. — Não tem nada mais justo do que o combate dois a dois, no fim das contas. E ele chegou ao fim, se ainda não percebeu. Então, pode atirar em mim o quanto quiser–
Uma explosão amarela acertou em cheio a parte superior de seu capacete, a gosma descendo lentamente pelos seus olhos à medida que se aproximava.
— Posso atirar o quanto eu quiser? — mais um tiro no ombro. — Pois bem, então que tal isso? — ela o atingiu na altura do quadril, o que o fez dar um passo pra trás.
— Ah, sua… — ele trincou os dentes, erguendo o cano novamente para ela e direcionando a mira quando ouviu um grito atrás de si.
— Ei, ! — o grito o fez bufar e abaixar a arma. — O que tá fazendo? A partida acabou! Pega a bandeira!
Ele levantou as sobrancelhas para ela, que repuxou ainda mais os lábios pela raiva de ter sido enganada de forma tão estúpida e amadora. Ele deu de ombros, retornando com o sorriso cafajeste enquanto passava ao lado dela, pegando a bandeira fincada no pequeno monte não muito longe do esconderijo de trás da pilastra usado anteriormente por ela.
— Foi um prazer, sobrevivente. — o rapaz murmurou próximo de seu rosto em uma fração de segundo antes de voltar a caminhar para junto dos amigos, sem perder o sorriso nem por um momento.
era capaz de queimá-lo vivo só com a raiva ardendo nos olhos.
Ele se aproximou calmamente dos rapazes, que vibraram em uníssono enquanto davam tapas desengonçados nas costas do garoto.
— Não queria dizer, mas você foi um tremendo filho da puta fazendo aquilo com a garota. — disse Jeno quando começaram a caminhar de volta para a base.
— Se ele não tivesse feito isso, ela teria matado ele. Esqueceu quem te deu um tiro quase no meio das pernas? — comentou Renjun, balançando a cabeça.
— Ei, eu não morri por causa disso.
— Claro que não, foi pelo tiro na testa que ela te deu logo depois.
— A mira dela é mesmo terrivelmente boa. — bufou, destravando o capacete e se livrando da visão amarelada pelo impacto na cabeça.
— Tô dizendo, se não tivesse aquela jogada inteligente, ele não estaria com essa bandeira agora — completou Renjun. — E não existem regras contra um melhor uso do cérebro no paintball, não é?
Um ronco atravessou o céu naquele momento, fazendo os três garotos erguerem a cabeça para cima imediatamente. Nenhum deles havia notado as nuvens carregadas chegando.
— Vai chover de novo… — resmungou Jeno, desanimado.
— Ainda bem que você finalizou antes de ter que lutar contra a lama também. — Renjun tateou os bolsos da calça cáqui verde.
— Mas vocês não acham que ela parecia um pouco familiar? — perguntou Jeno quando entraram sob o toldo da base, indo direto aos armários onde havia guardado os pertences e as respectivas roupas. Renjun praticamente correu em busca do celular.
— Familiar? — olhou para trás, mas já estavam longe o bastante e a esta altura a garota já devia ter corrido para se salvar da chuva que começava a cair. — Com aquele capacete? Tenho certeza que nunca a vi na vida.
Jeno estalou a língua, revirando os olhos.
— Você com certeza não se lembraria mesmo. — ele se virou para Renjun, que se encontrava concentrado demais enquanto digitava no celular. — Renjun! A garota não parecia familiar? — Nenhuma resposta. — Renjun!
— O que é?! — ele levantou os olhos rapidamente.
— Ela é mesmo familiar. — uma voz grogue e preguiçosa veio do canto do quadrado, fazendo Jeno quase pular de susto.
— Cruzes! — ele gritou, pondo as mãos no peito. — Haechan, o que ainda tá fazendo aqui? Achei que tivesse ido embora. E como você pode dormir nessa posição?
— Seu maluco… — murmurou, retirando os adornos pesados do uniforme.
— Tô de carona com vocês, esqueceram disso? — Haechan respondeu, soltando um bocejo alto enquanto se sentava no banco largo de madeira. — Vocês foram mais lerdos do que eu esperava desta vez. Quase peguei o ônibus.
— Você é muito mão de vaca pra não se aproveitar de uma carona grátis. — Renjun guardou o celular e começou também a retirada de toda a roupa de guerra. — Se apressem porque eu tenho um compromisso mais tarde.
— Eu tenho que chegar na cafeteria. — olhou o relógio, frustrado pela constatação do que Haechan havia acabado de falar: a partida demorou mais do que o esperado e agora ele mal teria tempo de limpar toda a tinta desferida contra ele.
— Espera aí… Haechan, você disse que conhece ela? — Jeno perguntou depois de um tempo, encarando o amigo ainda sentado do outro lado.
— Disse que ela é familiar, conhecer tá bem longe disso — respondeu ele, e Jeno revirou os olhos. — Como é mesmo o nome? Acho que é … Alguma coisa assim, com certeza. Ela é amiga da Amelia. Vocês não tem Instagram?
e Renjun viraram o rosto ao mesmo tempo, tão rápidos quanto os projéteis lançados no campo nas horas passadas. Recuperaram-se um segundo depois, disfarçando a ansiedade que a menção do nome da garota causava em ambos.
— Amiga da Amelia? Como eu nunca vi ela antes? — Jeno murmurou para si mesmo, em voz alta.
— Não sei, mas com a Pat por perto, duvido que você enxergaria até sua própria mãe.
— Idiota.
— Tá legal, continuem sua investigação da nossa rival maluca no carro, pode ser? Jeno, pega as chaves — disse , interrompendo o garoto antes que ele começasse a enxurrada do discurso defensivo sempre que tocavam no assunto Pat. — Se eu chegar atrasado de novo, a senhora Farrow vai ter um troço.
— É só você fazer aquele aegyo ridículo pra ela como da última vez, a velha fica calminha — comentou Haechan, colocando a mochila nos ombros como os outros, enquanto começavam a caminhar para a entrada.
— Ela tem 50 anos, que nojento. — Renjun resmungou, puxando o capuz para o topo da cabeça. — Vamos, Jeno! Corre na frente pra abrir a porta!
Jeno bufou e olhou para o céu antes de correr:
— Maldita chuva de outono.
A chuva era apenas uma das surpresas que a abertura do novo semestre da Universidade de Seul trazia naquele ano.
A outra surpresa era Cusack.
Era esperado que os veteranos do departamento de Línguas já estivessem familiarizados com todos os estudantes de sua seção. Afinal, agora era a vez de seus pupilos receberem a nova leva de calouros naquele outono. No entanto, a chegada da garota, que foi apresentada como uma aparente veterana, estava sendo motivo o bastante de confusão.
“Ela estava em um intercâmbio na Europa nesse último ano, mas passou na prova junto com a gente, isso não conta?”, era um dos argumentos usados por sua melhor amiga, Amelia, ao receber o olhar apavorado de ao ouvir que teria de ser submetida à recepção de calouros como, bem… uma caloura.
Não pareceu adiantar de alguma coisa.
— Não dá pra falar com eles de novo? — perguntou , com os olhos pedintes.
Foi então que surgiu a proposta da partida de paintball.
Veio a calhar para o espírito competitivo da garota. Se conseguisse alcançar a vitória na batalha, poderia se livrar não apenas do título temporário de recém chegada, como também de seu lugar no banco dos novatos na famosa festa de integração. Afinal, não havia apenas Amelia como conhecida na turma de Literatura Coreana-Inglesa, como também alguns outros colegas longínquos do segundo grau. Ela claramente não era uma desconhecida. Entretanto, o senso hierárquico da Universidade não parecia querer levar isso em conta.
Infelizmente, seus planos foram por água abaixo pela derrota desonrosa no campo aberto do dia anterior.
— E ele simplesmente atirou em mim. Quando eu pensei que ele estava morrendo! — Ela bufou, puxando uma das cadeiras da mesa longa e retangular do refeitório no primeiro almoço do semestre. — Ele foi um aproveitador sacana que jogou sujo, não serve como um argumento de recurso?
— O que é isso agora? Estamos em um julgamento? — Amelia perguntou, sorrindo com sarcasmo enquanto remexia sua sopa.
— Você faz parte dos representantes do departamento, se você–
— , é só por uma noite. Ninguém tá realmente interessado se a sua matrícula é datada pelo carbono 16, eles se importam mais com ver a sua cara na mesma sala de aula que a deles. E isso não vai acontecer. — ela deu de ombros, bebendo um gole do suco avermelhado. — Você conseguiu uma ótima oportunidade de encher seu currículo com o seu intercâmbio, mas não foi o suficiente para completar o primeiro ano aqui.
— Não é com isso que eu tô preocupada. — brincou com o arroz na bandeja, mantendo um olhar cabisbaixo.
— Eu sei, você tá querendo fugir de uma festa bem divertida e é isso que não tô conseguindo entender.
— Você entendeu quando pedi da primeira vez.
— Sim, era compreensível, a parte do divertida na integração é só para os veteranos, mas ei, pensa comigo: é uma ótima oportunidade pra interagir e conhecer os calouros de verdade, assim como os nossos veteranos. Fora que é uma das únicas oportunidades de reunião com todos os departamentos juntos. Já cheguei a te mostrar o time de basquete?
— Não. — respirou fundo, dando-se por vencida ao engolir um pedaço de frango. Os possíveis argumentos contra toda aquela empreitada enchiam sua cabeça, mas não tinham força pra fazer nenhum dos maiorias mudarem de ideia. — Maldito verme dissimulado.
Amelia encarou a garota trincando os dentes enquanto parecia segurar o hashi com mais força que o necessário. Ela riu, parecendo enxergar a própria raiva que deveria estar sentindo, como se ainda pudesse ver o sorriso patife do adversário quando apertou o gatilho em sua direção.
— Não fica assim, . Ninguém iria imaginar que você encontraria alguém tão ou mais competitivo do que você.
— Pelo menos eu me contenho em jogar limpo. — ela respondeu com um sorriso forçado, enchendo uma grande colher de arroz logo em seguida. Apreciar a comida local era a única coisa que ela poderia fazer no momento para se distrair de preocupações por coisas que nem aconteceram ainda.
Amelia riu mais uma vez, achando graça em toda a situação. Pela primeira vez, percebeu o quanto sentiu falta da amiga.
— Mas e então, como foram suas primeiras aulas?
Enquanto isso, um grupo de garotos parecia travar uma discussão silenciosa sobre quem merecia o último pedaço de porco agridoce que repousava tranquilamente em um dos recipientes da bancada. Jeno e Renjun já estavam há pelo menos dez minutos em uma troca de argumentos que incluía o número de vezes que cada um havia lavado as louças naquele mês, e estendido as roupas também. Por fim, passou na frente da dupla, se apossando da comida enquanto ouviu as reclamações quase imediatamente dos amigos.
— Eu ganhei a partida ontem. — ele deu de ombros, sorrindo de canto enquanto seguia na fileira de pratos.
— Babaca — murmurou Jeno.
O pico do horário de almoço abarrotava o refeitório de forma desordenada, enchendo as mesas em todos os pontos do quadrado. Jeno, sendo o primeiro a se servir, olhou para todos os lados com precisão até enxergar as últimas cadeiras vazias de uma longa mesa bem perto da grande janela de vidro, que os concedia a visão do pé de cerejeira que começava a perder suas folhas.
Ele cutucou Renjun assim que o amigo se prostrou ao lado dele, começando a andar sem dar grandes explicações. Renjun seguiu os passos dele, olhando para trás enquanto inclinava a cabeça para avisar da rota que estavam tomando, vendo o último membro se apressar em escolher sua sobremesa e acompanhar os outros.
Quando viu quem ocupava a mesa, Renjun sentiu uma queimação na boca do estômago.
— Ei, isso é um castanho claro? — disse Jeno assim que se aproximaram o bastante das duas garotas. Amelia virou-se rapidamente para o garoto que havia chegado em suas costas, não escondendo o susto da repentina voz alta. Jeno gargalhou com a reação. — Ah, não, com certeza é aquela cor chocolate, não é? Puxa, você não se decide nos tons de cabelo mesmo. — ele ainda ria enquanto puxava uma cadeira ao seu lado, olhando por sobre o ombro. — Não vai sentar?
Renjun engoliu em seco, olhando por tempo demais nos olhos de Amelia enquanto lhe lançava um sorriso breve e ia em direção ao outro lado da mesa, reparando na segunda pessoa em questão.
— Seu otário. — Amelia resmungou, revirando os olhos. — Oi pra você também, Jeno! Achei que passaria um dia inteiro sem ver sua cara de avestruz, mas esqueci que não acredito em milagres. — ela deu um sorriso forçado. — Essa é minha amiga, , caso vocês estejam se perguntando. Esses são Jeno e Renjun, do departamento de Engenharia. — ela inclinou a cabeça para a garota, que havia se ocupado em beber o restante do suco ao notar a aproximação dos dois desconhecidos. Renjun fez um breve cumprimento formal de cabeça enquanto sentava-se ao seu lado, olhando disfarçadamente para a amiga à sua frente.
— Cadê o resto da sua matilha? — perguntou Amelia, olhando de um garoto para outro.
— Eles estão vin- Espera, matilha? — Jeno juntou as sobrancelhas, vendo a amiga finalmente abrir um sorriso. — Semestre passado éramos uma colônia, por que- Ah, que seja. Oi, , você é nova por aqui? Espera aí… — ele juntou as sobrancelhas, aproximando-se dela. — Você não me é estranha.
— Pessoal, alguém vai ter que urgentemente comer essas azeitonas que colocaram na so… — A voz de se deteve ao finalmente chegar à mesa, assim que fixou o olhar em um rosto específico.
O cabelo dela estava diferente do que no semestre passado. Parecia mais claro, mais curto, ainda exalando o verão. Ela sorriu ao vê-lo se aproximar e teve de controlar o rubor no rosto e o coração acelerado.
— Ah… Oi, Amelia.
— Esses panacas te deixaram pra trás de novo, não é? — Amelia riu, lançando um olhar rápido para a cadeira vaga do seu outro lado. — Vem, pode sentar aqui. , esse é o -
— Lembrei! — gritou Jeno, pegando todos de surpresa. — Lembrei da onde eu te conheço! Você é a garota do paintball!
Todos os olhares se moveram para . A garota levou ainda alguns segundos para registrar a situação, olhando para o rosto de todos da mesa, perguntando-se como eles sabiam de tal informação.
— É ela, é a última sobrevivente do time rival — continuou Jeno, batendo uma palma pela descoberta.
— Espera, eu não… — riu de nervoso, desviando os olhos para o último garoto a chegar, ainda de pé. E de repente a silhueta do canto de seus lábios não lhe era estranha. E quando se lembrou do dia anterior, seu sorriso sumiu instantaneamente. — Você é o cara que pegou a bandeira?
— Não acredito. — riu de ironia, finalmente puxando a outra cadeira vaga ao lado de Amelia, bem em frente à Renjun. Observou a faísca raivosa que piscou nos olhos da garota e imaginou o que viria em seguida.
— Você jogou contra eles ontem? — Amelia perguntou para a amiga, segurando uma risada pela ironia da situação.
— Não, ela acabou com a gente ontem — respondeu Jeno. — foi o único remanescente da matança.
— Como se ele não tivesse dizimado o meu time também. — grunhiu.
— Desculpa, achei que era assim que se ganhava uma partida de paintball — ele respondeu, dando de ombros.
— Pegar a bandeira é o objetivo final, não o extermínio do meio do caminho. — ela largou o hashi, bufando. — Mas não se preocupe, seu espírito genocida não foi a pior parte de todas, e sim a vitória suja e desonesta depois do seu teatrinho mal feito.
Renjun e Jeno se entreolharam, fazendo movimentos estranhos com as mãos para sinalizar um tremendo “o que está acontecendo aqui?”
— Você é sempre tão péssima perdedora assim? — levantou as sobrancelhas, não se deixando intimidar pelas farpas.
trincou os dentes, desejando de imediato que algum tremor de terra repentino engolisse o garoto solo abaixo.
— Tá legal, tá legal. — Renjun levantou as mãos em sinal de rendição, observando o rosto da garota começar a ficar vermelho. — Foi só uma partida amistosa de domingo, pessoal, não precisam-
— Fale por você — disse , remexendo na comida de forma desordenada.
Um ringtone soou logo depois, quebrando o silêncio pesado e repleto de fagulhas que os olhares furtivos de e deixavam no ar. A garota agarrou o celular virado em cima da mesa e, ao ver o nome no visor, tratou logo de começar a se levantar.
— Vou encontrar a Pat, ela vai me ajudar com os documentos de aproveitamento. — murmurou para Amelia antes que ela abrisse a boca para perguntar. — Com licença — ela chiou para os demais quando agarrou a bandeja e seguiu para fora.
Renjun lançou um olhar confuso para Amelia, que mordeu o lábio inferior ao pensar nas próximas palavras a serem ditas.
— Sua amiga leva as coisas um pouco a sério demais, não acha? — disse , sem tirar os olhos da comida.
Amelia revirou os olhos.
— Eu não fazia ideia de que ela tinha jogado contra vocês — suspirou. — Esse jogo não era apenas um amistoso. — ela olhou para Renjun.
— Tinha alguma grana na jogada? Porque garanto que nada chegou às nossas mãos, não é, gente? — ele apontou para os outros dois amigos.
— E como eu nunca vi ela por aqui antes? Ela parecia familiar ontem, mas acho que era por causa de uma foto sua e da Pat. — Jeno falou enquanto mastigava.
— Ela ficou na Europa por 1 ano, praticamente acabou de voltar. Passou na prova no ano passado junto com a gente, mas recebeu a proposta logo depois. Trancou antes mesmo de começar.
— Irado, é como se ela fosse uma caloura. — Jeno riu, pelo menos o máximo que conseguiu com a quantidade de arroz na boca.
— É exatamente por isso que ela tá desse jeito. — Amelia cerrou os olhos, respirando fundo. Em seguida, virou-se para . — O que raios você aprontou ontem, afinal?
O garoto levantou os olhos para ela, puxando os cantos da boca em uma expressão de desdém.
— Não entendi.
— Ah, você com certeza irritou ela com o tudo ou nada que vocês usam pra ganhar qualquer coisa. E juro que ela estaria mais em paz se não fosse na situação atual. — ela suspirou e Renjun inclinou a cabeça para que ela continuasse. — Os veteranos e os outros representantes do departamento querem que ela vá a recepção da semana que vem. Como caloura.
A sincronia de risadas de Renjun e Jeno encheram a mesa. Até mesmo tirou a expressão séria do rosto, abrindo um sorriso sem mostrar os dentes.
Amelia revirou os olhos para os garotos.
— Quero muito entender o que acham que é tão engraçado.
— Entendo totalmente o sentimento dela. — Renjun respondeu, balançando a cabeça. — Ganhar a partida foi a exigência do seu pessoal para que ela não participasse da integração virando shots e servindo mesas ou algo do tipo?
— Basicamente. — Amelia deu de ombros, agora também abrindo um pequeno sorriso. Não podia sorrir demais ao olhar para ele, pelo menos não na frente de todos. — Eu não sei muito bem o que os veteranos mais antigos estão preparando pra integração desse ano.
— Eu só sei da parte do beber até cair — disse Jeno. — Meus calouros vão ser muito bem tratados nessa parte.
— Quero só ver se você for o primeiro a cair. — Amelia levantou as sobrancelhas, arrancando mais uma risada de Renjun. Ela voltou-se para . — Ainda tá com a ideia de não ir? Vai perder esse espetáculo?
Ele tossiu de leve ao perceber a voz dela tão perto de si. Renjun se remexeu na cadeira.
— Acho que a senhora Farrow não vai perder a oportunidade de me fazer trabalhar horas extras no fim de semana — respondeu ele, depois de se certificar que a voz sairia de forma mais branda.
— Corta essa, . Todo mundo sabe que você pediu as horas extras. — Jeno estalou a língua.
— Achei que já tivesse o bastante pro seu carro. — Renjun falou, dando de ombros.
— Não é isso, é só… — ele olhou para os três amigos ao mesmo tempo, tentando pensar em uma resposta. Por fim, suspirou antes de responder. — Talvez eu possa tentar chegar um pouco atrasado.
— Isso é ótimo! — Amelia bateu palminhas animadas com a resposta, fazendo-o sorrir automaticamente. — Tenho certeza que vai ser uma noite divertida pra todo mundo.
— Principalmente pro e a caloura especial. — Jeno encostou-se na cadeira.
Amelia cerrou os olhos para o garoto, mas apenas continuou sorrindo. A ideia de cruzar com de novo não passava pela sua cabeça, muito menos se divertir às custas dela, mas o semestre estava apenas começando.
A claridade de um segundo raio atravessou o céu, bem em cima de sua cabeça.
As poças recém formadas pela chuva torrencial ainda estavam pequenas. Não era o bastante para soterrarem seus pés quando se corria por cima delas, assim como fazia no momento. O temporal apareceu tão subitamente que ela não era a única que se apressava, em busca de um abrigo.
As luzes amareladas de um estabelecimento baixo pareceram ser a solução. Ela sentia seu cabelo pingar enquanto escondia a bolsa no peito, preocupando-se a cada momento com a possibilidade de encontrar seu diário encharcado. Atravessou a faixa de pedestres em uma velocidade que ela sabia ser guiada pelo desespero, e empurrou a porta de vidro com os ombros, sendo abraçada pelo ar quente e aconchegante de dentro.
Ela afastou os cabelos molhados enquanto observava o lugar. O cheiro de café encheu suas narinas, e ela já tinha visto um ladrilho hidráulico tão bonito igual aqueles? E as vitrines que estampavam os mais lindos bolos que ela já tinha visto, como os que costumava comer com seu pai na infância.
Ela olhou para as horas no celular. A chuva lá fora não parecia disposta a parar de cair naquele momento e, agora pensando em seu pai, ela não o pediria para deixar a empresa tão cedo e enfrentar o trânsito caótico que viria depois, devido à junção de chuva com horário de pico.
Olhou ao redor mais uma vez. Ela tinha de dar continuidade aos primeiros trabalhos já atribuídos naquela primeira semana de aula e, de quebra, terminar o projeto textual que planejava enviar para a GQ Korea ou qualquer outra revista local que estivesse disposta a aceitar colunas românticas e bregas que fariam com que algum cidadão apaixonado se identificasse.
Caminhou até a bancada de vidro responsável por mostrar aquele verdadeiro porn food e se sentou em uma das banquetas, apoiando a bolsa em outra ao seu lado. Suspirou antes de dizer:
— Com licença. — ela disse para as costas de um rapaz alto que se encontrava concentrado em algum ritual de limpeza de uma moderna máquina de café.
Ele não pareceu lhe ouvir de imediato. Ela torceu o pescoço, procurando algum fone de ouvido que ele pudesse estar usando, mas nada.
— Com lice-
— Só um minuto. — ele respondeu enquanto finalizava o processo, finalmente virando de frente para ela e sorrindo de forma gentil. — Me desculpa, a gerente tem um TOC terrível com a limp-
O sorriso dele deu uma leve diminuída ao encarar a garota do outro lado que ainda torcia os cabelos molhados. A reação dela não foi muito diferente. Sem perceber, pode ter explicitamente revirado os olhos até as órbitas, deixando as mãos caírem sobre o colo.
— E dizem que Seul é um lugar grande. — ela murmurou, sorrindo em linha fina.
— Também disseram que não choveria tanto no outono, mas os sensos geográficos e meteorológicos não são o forte da internet. — o canto dos lábios dele se curvaram para baixo, em uma insolente zombaria.
Ela cerrou os olhos, claramente sufocando uma pontada ínfima de raiva.
— Você se acha engraçado?
— Nem um pouco. Inclusive, é uma das maiores reclamações que recebo dos meus amigos.
— Duvido que seja só isso. — ela grunhiu, encarando o sorriso desdenhoso do garoto. — Vai me tratar como uma cliente agora ou vou ter que pedir pra outro funcionário?
— Se tivesse chegado há 10 minutos atrás, provavelmente estaria sendo atendida por outro cara alto e bonito o bastante pra se preocupar em te oferecer algo bem quente depois de ter pegado essa chuva. Mas sinto te dizer que agora só tem eu. — ele pendeu a cabeça para o lado, suspirando. — Sendo assim, em que posso lhe servir, jovem senhorita?
Ela revirou os olhos e se endireitou na cadeira antes de voltar a vasculhar os bolos, ignorando o sorrisinho quase bonito que ele havia lançado.
— Um mocha. — ela enfim respondeu, olhando para ele e depois voltando aos bolos. — E…
percebeu sua indecisão. Já trabalhava a tempo demais com clientes como aquele e merecia os elogios de Rosemary Farrow sobre seu trabalho — mesmo que aquela não fosse exatamente uma cliente agradável.
— Escolhe a torta caprese. — ele falou, começando a pegar as xícaras debaixo da bancada. — Você olhou pra ela cinco vezes a mais do que os outros.
ergueu a cabeça rápido, claramente surpresa com a atenção dele. Sem dizer nada, ela apenas concordou com a cabeça e o viu dar as costas de novo para a máquina grande, começando a preparar o seu pedido.
O banco acolchoado ao lado da janela de vidro parecia convidativo para deixar as banquetas e se sentar enquanto olhava a chuva. Ela encarou o relógio de novo após a mudança de lugar e aceitou novamente que o aguaceiro não pararia tão cedo. Decidiu tornar o tempo um pouco mais útil e tirou o notebook da mochila, abrindo já no documento pendente do texto baseado no poema de algum artista oriental do século 17 que trazia inspiração de sobra para todas as suas criações amorosas que ninguém tinha lido.
Pelo menos, ninguém que a conhecesse.
Ela começou a digitar à medida que encarava o lado de fora. A calçava tinha virado um mar de guarda-chuvas e algumas mãos se entrelaçaram por debaixo deles, escondendo casais que se protegiam mutuamente do temporal e, mesmo que ela não visse, sabia que eles estavam sorrindo, e completamente imersos na bolha romântica que circundava aquele universo particular.
Universo esse chamado amor. Esse que parecia ganhar um significado completamente novo e estimulante diante daquela ocorrência da natureza, elevando o coração da garota a um nível acima do patamar romântico que sempre esteve inserida. Cusack era assim: apaixonada, arrebatada, poética. Não que demonstrasse isso abertamente.
Contudo, olhando para o cenário atual, um fio quente de expectativa queimava em seu peito com a vontade ardente de um desejo antigo: ela queria demonstrar essa característica para alguém. Uma pessoa em específico. Um certo rapaz da mesma universidade, com rosto já conhecido por anos no ensino médio, e que manteve-o vivo em sua temporada inteira no outro continente, um certo estudante de Administração que ninguém sonhava em saber.
O barulho da cerâmica pousando ao seu lado lhe tirou dos devaneios subitamente ambiciosos por dar vida às palavras que escrevia. A fatia de torta caprese de chocolate parecia ainda mais bonita vista tão de perto, e pareceu destilar um extremo cuidado ao posicionar os dois pedidos um ao lado do outro. Um pequeno sorriso pareceu brotar dos lábios dela ao encarar a fatia.
— Mais alguma coisa? — ele perguntou, tentando não reparar na expressão admirada dela.
— Ah… Não, é o bastante, obrigada. — ela ergueu os olhos para ele e deu um sorriso de canto. O clima aconchegante, a beleza daquela sobremesa e a chuva que caía lá fora repentinamente tiveram um efeito direto sobre seu humor. Ele se deteve em apenas balançar a cabeça devagar e começar a se mover para trás do balcão novamente, perguntando-se o que ela deveria estar fazendo naquele computador para uma mudança tão significativa na sua expressão antes tão azeda.
Pelas próximas 2 horas, não houve um grande movimento no estabelecimento e a noite chegava como mais uma dentre tantas, com a absoluta normalidade de sempre. sorria e acenava, servia mesas e fazia café. Recebia gorjetas pela gentileza e limpava a bancada. Não havia nada de incomum.
Exceto pelo fato de que aquela garota ainda estava ali.
E que ela voltaria pontualmente nos próximos dias.
Ele estava sinceramente curioso. O contato entre os dois era reduzido a troca de olhares e acenos de nucas quando se cruzavam pela universidade na parte da manhã, e podia jurar que ela revirava os olhos logo em seguida, cedendo os cumprimentos calorosos apenas para Jeno e os demais garotos do grupo. Mas não parecia mais magoada pela derrota na batalha, muito pelo contrário. Estampava um enorme sorriso na frente daquele computador dia após dia, como se viajasse para um mundo paralelo e estacionasse lá por umas boas horas. Um universo onde nada a perturbava.
Qual é, o bolo nem era tão bom assim. Ele sabia disso. Era Johnny quem fazia, e ele só servia para atrair a clientela feminina com seus flertes bregas e aquele sorriso idiota.
O café também não era lá grande coisa. A senhora Farrow era muito mão de vaca para permitir um upgrade nos produtos, e acreditava que uma decoração bem estruturada e moderna seria o suficiente para atrair as pessoas. Ela nem sequer pensava em um jeito de fazê-los permanecer, e que para isso era essencial um bom produto, mas preferia se manter calado diante da cabeça confusa da velha senhora.
Entretanto, havia de fato se tornado uma cliente regular. Até dava um perfeito cumprimento a ele todo fim de tarde, sempre num tom um tanto constrangido, corrido, como se tivesse pressa para chegar ao seu lugar de sempre ao lado da janela. E ele havia se habituado a não mais perguntar o que ela queria, já levando o café mocha com a fatia de torta e pousando-os ao seu lado na mesa.
Chegou a comentar com os amigos sobre as vindas assíduas da garota em um dos horários de almoço da próxima semana, usando seu tom habitual calmo e despreocupado, como se trabalhasse em uma funerária.
— Meu Deus, ! — Jeno foi o primeiro a responder, ainda de boca cheia. — Será que ela tá apaixonada por você?
— Quê? — juntou as sobrancelhas, olhando o amigo como se ele tivesse repentinamente falado em klingon. — Claro que não, nada a ver.
— Então ela tá apaixonada pelo Johnny. — Haechan disse casualmente.
— Impossível, ela chegaria mais cedo se quisesse vê-lo tanto assim.
— Como sabe que ela não encontra ele antes do seu turno?
— Porque antes do meu turno, ela está aqui. Tendo aulas. — inclinou a cabeça para o lado, falando em tom óbvio. — Olha, não faz sentido colocar o Johnny na história. Ele nem gosta de garotas mais novas.
— Ela pode tá tramando alguma coisa pra se livrar da integração. — Jeno falou, levantando as sobrancelhas. — Não acha, Renjun? Ou até mesmo planejando algo pra se vingar da gente, ou melhor, de você… Ei, Renjun! — o garoto levantou os olhos cravados do celular em um susto, olhando para os outros amigos. — Você de novo ignorando a gente por causa desse celular. Estamos falando de um assunto sério aqui!
— O que foi dessa vez? — Renjun encarou os rostos dos rapazes. — Se for sobre o delírio da estar apaixonada pelo só porque curtiu o bolo do Johnny, acordem agora mesmo.
— Não falei? — Haechan ergueu um dos braços, enquanto Renjun retornava sua atenção ao aparelho. — Ela tá apaixonada por aquele clichê de hippie pacifista dos anos 70. Deve estar frequentando a cafeteria esse tempo todo esperando ser notada por ele, escreve o que eu tô dizendo.
— Não. Não pode ser isso. — insistiu, olhando para a comida sem vê-la realmente. A situação não lhe parecia tão simples assim. Cusack não parecia ser uma garota que rondasse a pessoa cobiçada daquela maneira, e ele não sabia explicar porquê pensava tal coisa.
— Todas as provas estão aí, Lee. — Haechan, sentado ao lado do garoto, desferiu pequenos tapinhas nos ombros dele. — O Johnny pode até não ter terminado o ensino médio e com certeza jamais fará uma faculdade, mas ele é do tipo bonito demais pra essas coisas, entende? Com certeza vai achar uma namorada primeiro que a gente.
Uma tosse incontrolável tomou conta da garganta de Renjun enquanto ele tentava engolir o restante de um suco de laranja, causando um mini caos por cima de seus jeans e na região do antebraço esquerdo. Jeno franziu o cenho enquanto lhe entregava alguns guardanapos em cima da mesa.
— Falei pra comer mais devagar, seu idiota. — ele murmurou, observando enquanto Renjun fazia o trabalho de se limpar e mexia os olhos vagarosamente na direção de e Haechan, como se tivesse sido pego em flagrante por algum crime.
— Valeu. — Renjun limpou a garganta, aceitando a água oferecida por do outro lado da mesa. — Mas então… Acho que o Johnny não é exatamente o tipo da .
— Como você sabe uma coisa dessas? — perguntou Haechan.
— Sei lá, fiquei sabendo que ela teve um namoradinho na Europa. Um francês, eu acho. Não durou muito, ela faz o tipo romântica demais. Mas parece que ela tá gostando mesmo de alguém, não acham? Talvez não tenha esquecido esse cara. — ele deu de ombros.
Os burburinhos sobre a recente hipótese apresentada por Renjun começaram imediatamente, mas se manteve calado. Ele sempre era calado, mas naquele momento parecia estar sinceramente pensando naquela lógica. E, novamente, não entendeu porque estava se dando ao trabalho de tentar adivinhar quem era o alvo da paixão de Cusack. Isso teria algum efeito significativo na sua vida?
Claramente não.
Entretanto, ele se encontrava calculando as variáveis da situação. Se ela parasse repentinamente de frequentar a loja, isso poderia significar um avanço em sua vida amorosa? Se é que tivesse uma. O caixa sentiria falta dos wons que ela transferia todo dia, e Johnny estava começando a fazer uma calda de chocolate realmente gostosa pra torta. E não precisaria mais ficar vigiando aquela mesa ao lado da janela para ver se outra pessoa diferente iria se sentar nela e ele ter que dizer que estava reservada.
Minha nossa. Por que estava pensando nisso? Ela poderia ir pra onde quisesse. Com quem quisesse. Ele não dava a mínima pra isso.
Lee sonhava com o Alfa Romeo 164 desde que o viu exposto em uma feira de carros antigos de Incheon quando fazia uma de suas visitas semestrais à sua avó.
Não foi premeditado, assim como nenhum amor jamais é. Mas quando viu, ele estava sinceramente apaixonado e ambicioso por aquela lataria que certamente iria parar nas mãos de algum colecionador rico o bastante para pagar sem pressa o preço sugerido pela placa retangular na frente do para-choque. E, por alguns segundos, apenas por alguns segundos, ele pensou que talvez fosse melhor desistir da ideia descabida de colocar as mãos em uma iguaria daquelas. Que poderia comprar um Fiat qualquer como o que Jeno havia adquirido naquele ano por ter passado no Suneung, e que carros são carros. Não havia necessidade de todo aquele desejo por um em específico.
Mas a ideia não deixou sua mente um momento sequer. E ah, sabia bem que quando uma ideia não deixava sua mente de forma voluntária, era porque estava sendo tomada por uma avidez maior do que ele. Que não sossegaria enquanto não traçasse um plano para enfim alcançar a mira que o deixava naquela excitação contida, aquela vontade incontrolável por alguma coisa. Tinha sido assim desde que se entendia por gente, e com base nisso, considerava-se um bom cultivador de seus próprios sonhos e um delineador de metas incomparável. Sua família não tinha lá muito dinheiro e bens, mas ele era um garoto inteligente, bastante inteligente, porque teve sorte de perceber desde o início que não alcançaria suas ambições sem isso. Lamentações sem sentido não impulsionavam ninguém a lugar algum.
E, por mais que fosse um exímio planejador de conquistas, ele não tivera muitas na vida. Não tinha o olho grande, como as pessoas diziam, e não se deixava aventurar por aspirações fora de sua realidade, mesmo que soubesse que, se assim quisesse, tudo faria parte da realidade que criasse. Mas ele era simples, sempre foi. Gostava de pensar que nada era complicado demais, e que tudo tinha um tempo certo para acontecer.
Até para deixar que Amelia soubesse de seus verdadeiros sentimentos.
A vida do garoto era repleta de atitudes práticas e tenazes. Se queria uma bike aos 12 anos, entregaria os pedidos do restaurante americano de Glenn Dreyfuss ou faria meio período na padaria próxima do bairro. Se queria trabalhar profissionalmente com carros, estudaria o bastante para entrar na melhor universidade contemplado com uma bolsa 100%. E, é claro, se quisesse seu próprio carro, trabalharia em uma grande cafeteria no centro da cidade onde receberia gorjetas além do salário. Era simples, uma linha reta de pensamento eficiente onde os fins justificavam os meios.
Porém, quando se tratava da amiga de infância, ele ainda não fazia ideia do timing correto. De como deveria levar o progresso adiante, ou até mesmo de como começá-lo. E afinal, o que alcançaria? Seu coração, seu sim, um beijo, uma noite? A lista foi aumentando conforme ele cresceu e amadureceu, e à medida que descobria o que realmente poderia fazer com outra garota.
Desde que ajudou a aluna nova com cálculos muito difíceis para uma criança de 11 anos que era muito boa em História Coreana e gostava de falar sobre edifícios antigos, ele sabia que havia entrado naquela fase brega que os adultos chamam de “pré-adolescência”. Ou que ele estava virando um homem e qualquer um desses discursos arcaicos que se propagavam em massa conforme ele crescia. Não importava. Ele só sabia que não estava louco quando seu coração batia mais rápido quando a via cruzar a esquina do parque regional, e em todas as esquinas que já a esperou durante a vida.
estaria mentindo se dissesse que não tinha um plano. Por muito tempo, ele realmente não teve. Mas, como uma daquelas ideias ditas anteriormente que não largava sua mente de jeito nenhum, ele sabia que precisava fazer algo sobre isso. E entendeu desde o começo que lidar com esse tipo de coisa, as coisas que envolviam outras pessoas além dele próprio, poderiam ser mais complicadas do que esperava. E que não podia simplesmente fazer o que desse na telha. Que confessar a ela de forma crua e desengonçada daquela forma poderia acarretar em mais malefícios do que benefícios. Era uma balança com um resultado bem claro: ele poderia afastá-la de vez.
A solução era bem fácil: de nada adiantaria os sentimentos imaturos de um garoto de 12 anos. Amelia Brenneman era nova na cidade, filha de pais advogados que tinham uma casa na ilha de Jeju. Ele só dividia a sala de aula com ela, e com tantos outros filhos de outros advogados, doutores ou seja lá quais profissionais que podiam pagar aquela escola por causa de sua proeminente bolsa de estudos, a qual mantinha com excelência com suas boas notas. E não é que pensava que não fosse bom o suficiente pra ela.
É que ele ainda não era bom o suficiente.
E assim, traçou mais uma meta. Ele continuaria sendo seu amigo e cresceriam juntos enquanto ficavam mais próximos. Até quando Amelia teve de ser transferida para outra escola no extremo norte da cidade no começo do segundo grau, não foi o suficiente para abalar os planos dele. Ele continuava pensando nela da mesma forma e intensidade, com o mesmo carinho e paixão do garoto de 12 anos.
Ele não tinha nada a oferecer no momento, mas no futuro teria. Ah, Lee com certeza tinha um futuro brilhante pela frente. A formação honorária do ensino médio se repetiria certamente na universidade, e sairia da mesma com tantas propostas de emprego que mal poderia contar, e seria tão bem sucedido confeccionando automóveis para marcas estrangeiras que poderia ter todos os carros que quisesse, até mesmo uma garagem inteira para guardar todos eles, junto com uma casa enorme em Gangnam, sem contar com a casa de verão em Jeju.
Daí então, ele se confessaria. Era o momento certo, o fim do caminho. Quando ele finalmente poderia se considerar pronto a assumir os riscos de perdê-la.
Pelo menos era assim que pensava até aquela tarde de sexta-feira, anterior à todo o rebuliço que o fim de semana guardava para todos.
— Sabia que te encontraria aqui. — ele ouviu a voz dela sibilando por trás de suas orelhas, causando-o um tremor imediato. — Assustado como sempre. Como andam seus cálculos?
— Bons, eu acho. — ele respondeu, pousando o lápis ao lado do livro aberto no tampo da mesa de vidro da silenciosa biblioteca. — O que faz aqui? Achei que tinha aula.
— Meus colegas estão mais interessados com os preparativos de amanhã do que gramática de caracteres. — ela deu de ombros, puxando uma das cadeiras confortáveis do outro lado. — Mas eu imaginei que você estaria aqui no seu tempo livre. Acho que preciso conversar sobre uma coisa.
a encarou com um olhar assertivo, recostando-se no banco com um falso relaxamento. Ele não fazia ideia do que poderia ser, mas os últimos tons baixos da voz de Amelia já o faziam prever todo tipo de coisas.
— Pode começar. — ele fez um gesto com as mãos parecido com o de um apresentador de TV ao apresentar um convidado, e a garota riu brevemente.
— Você sabe que nos conhecemos há muito tempo. — “sim”, ele murmurou. — E que somos amigos há muito tempo. — ele repetiu a mesma resposta. — E que sempre te conto as coisas mais relevantes, como quando dei meu primeiro beijo, ou briguei na aula de natação com aquela tal de Gabby na sétima série, ou até quando menstruei pela primeira vez-
— Ta aí um algo mais estranho que relevante. — ele a interrompeu, levando os dois a darem risadas, as mais baixas possíveis, ao relembrar o ocorrido. — Mas sim, entendo meu papel de confidente. O que aconteceu dessa vez?
Ela mordeu o lábio inferior, desviando os olhos por um segundo. Olhar para os lados fez com que o embrulho no estômago de ganhasse ainda mais força. Ela parecia tensa, e isso nem sempre era um bom sinal.
Por fim, ela apoiou os antebraços na mesa e levantou o tronco até se aproximar o bastante de do outro lado, chegando até os primórdios de seu nariz quando disse:
— Acho que estou apaixonada.
Ela falou e voltou ao seu lugar tão rápido que quis pedir para repetir, mas ele havia escutado tudo. E entendeu, por mais que a frase causou-lhe um belo tumulto dentro da mente, piscando em setas e gritos, fazendo o garoto levar um tempo para enfim conseguir dizer:
— Como é?
Amelia levou as mãos à boca, parecendo radiantemente feliz. Como se um peso do tamanho do World Trade Center finalmente tivesse se desintegrado e deixado suas costas em paz.
— É isso mesmo que você ouviu. — ela falou baixo, não mais se importando em encarar os lados. — Não é demais? Eu tenho um namorado.
— V-você… — ele tentou dizer, apertando os nós dos dedos por debaixo da mesa sem qualquer controle. Um mundo de perguntas queriam invadi-lo, a ansiedade que ele nunca tivera chegando em seu peito como uma avalanche. — O que tá dizendo? Como assim apaixonada?
— Eu sei, eu sei, é inesperado. Mas eu tô falando sério, Lee. Acho que finalmente achei o meu Sam Wheat, sabe? Daquele filme que assistimos, Ghost, tá lembrado? Tirando o fato de que ele tá morto, mas esse cara é-
A falação de Amelia em seguida foi parcialmente capturada pela mente conturbada de . Uma recapitulação de sua vida inteira se passava bem diante de seus olhos, e o seu eu consciente divagou em uma linha do tempo extensa como um tapete vermelho em cima daquela mesa.
Primeiro: como jamais considerou que uma coisa daquelas pudesse acontecer? Ele não era idiota, e nenhum tipo de pessoa totalmente fora da realidade que esperava que seu primeiro amor fosse seguir a vida completamente imaculada de ser atingida por outras paixões. Afinal, ela não pertencia a ele e nem nada parecido. Não havia um trato e nem coisas assim para que as pessoas temessem se aproximar. E como poderia culpá-las, meu Deus do céu! Amelia era uma garota completamente incrível. Ele tinha total conhecimento disso, e sempre reforçava tal coisa quando se pegava olhando para ela. Se apaixonar por aquele sorriso não chegava a ser uma opção.
Mas como pode ser tão mesquinho ao imaginar que ela fosse esperar mais? Não que fosse por ele, é claro. Ela não tinha a menor ideia de nada que acontecia dentro daquele coração, nem antes e nem agora. Mas esperar mais um pouco para dizer coisas como aquela, coisas como Sam Wheat e malditas almas gêmeas, céus, como isso era possível? Ele não estava ouvindo, mas ela sorria e sorria tanto, seus olhos brilhavam a uma intensidade alarmante e pessoa alguma seria louca de dizer que ela não estava falando sério.
viu seu plano se deteriorar bem diante de seus olhos. Era inegável o quanto ela parecia feliz. Mas e ele, e suas metas, e tudo que havia planejado para enfim se declarar? Sabia que levaria tempo, mas era a coisa certa a se fazer, ele se preparava para finalmente ser bom o bastante, cada passo até ali foi pensado para isso, até mesmo aqueles cálculos idiotas rabiscados na folha de papel abaixo de seu nariz.
De repente, nem aquilo parecia ter tanta importância assim.
— Ele até me levou pra comer naquela barraca na beira do rio Han, e também jogamos boliche na gale-
— Quem é o cara? — ele perguntou quando voltou a se concentrar, sem um pingo de arrependimento por ter perdido grande parte do monólogo. — Digo, eu o conheço?
O sorriso de Amelia diminuiu um pouco, sem sumir completamente. Ela limpou a garganta e colocou uma mecha de cabelo atrás das orelhas.
— Eu meio que não posso te contar agora.
— Por que não?
— Porque é tudo muito novo e recente, entende? Quer dizer, eu acho melhor você saber na hora certa, assim como todo mundo, mas só você sabe dessa primeira informação que acabei de contar, não disse pra mais ninguém. Então eu prometo te contar o resto depois.
— Como assim, Amelia? Por que não…
O toque explosivo do celular dela fez com que todos os olhares presentes na biblioteca se voltassem para os dois com expressões raivosas. Ela tateou a mochila com mãos rápidas, olhando para trás em sussurros de desculpas antes de desligar a chamada.
— Os veteranos querem uma reunião agora mesmo. — ela bufou, começando a se levantar. — Juro que vamos conversar melhor sobre isso. Não pode só me dar os parabéns por hoje, ?
Ele assentiu com a cabeça de forma relutante, recebendo um pequeno abraço da garota antes de se retirar do lugar.
sabia que teria de pagar uma xícara ou outra até o fim do dia.
Estava chovendo, de novo. Desta vez, não passava de uma leve garoa, acompanhada de nuvens cinzentas que tomaram o céu na metade da tarde, e que agora traziam o anoitecer mais rápido naquela parte da cidade.
A visão normalmente seria apreciada por ele. Gostava de dias chuvosos como aquele, da calmaria que tomava sua mente, mas naquele dia específico, não conseguia manter um foco necessário para a singela estima do fim da tarde através da fachada de vidro. Não conseguia focar em absolutamente nada, e nunca tinha recebido tantas advertências da senhora Farrow em um dia só, depois de 1 ano de trabalho. Afinal, Lee nunca na vida tinha dado motivo para sequer um olhar esticado da velha proprietária.
Mas ele não conseguia evitar. As palavras de Amelia dançavam na sua frente, fazendo questão de relembrá-lo a cada minuto que seus planos perfeitinhos agora tinham um buraco do tamanho do Estádio Olímpico. E assim foi fácil trocar pedidos, manchar o avental e ouvir reclamações até mesmo de Johnny, que foi o primeiro a perceber a perturbação do garoto.
Não estava sendo fácil aceitar a situação. O problema não era Amelia ter um namorado — ela já tivera outros antes, caras aleatórios de todos os tipos, a maioria sem ter nada a ver com ela, mas que lhe pareceram agradáveis de algum jeito. Um namorado não era uma novidade. Mas estar apaixonada? Não, aquilo definitivamente não tinha acontecido em nenhuma outra situação que ele se lembrava. sabia que aquela palavra ultrapassava o normal da coisa. O normal era ouvi-la contar duas, até três semanas depois que não havia dado certo. Que ela percebeu que eles não eram compatíveis, e vida que segue. sempre considerou isso sinais bem claros de que o universo estava cuidando bem de seus planos.
Mas o jeito como ela o olhou hoje, ah… Não, aquilo não parecia ser um namoro que terminaria nas próximas 2 semanas. Na verdade, ele tinha certeza que aquilo já estava durando há um tempo, um tempo bastante considerável, tipo bem antes das férias de verão.
E ela nunca tinha escondido tal coisa assim antes dele. Por tanto tempo. Isso só servia para reforçar a teoria de que ela poderia estar realmente entregue na relação, talvez pensando até em casamento e filhos.
Esses e outros pensamentos martelavam a cabeça de de tal forma que o deixava à beira de um colapso nervoso silencioso. Ele não era uma pessoa que se desesperava com facilidade, resultado de uma personalidade sistemática e organizada, mas no momento, ele se sentia sinceramente frustrado. E até agora, não tinha achado um jeito de contornar a situação. Sabia que deveria fazer algo, ou ele precisaria rasgar o primeiro mapa de metas de sua vida.
Ainda tão absorto em suas reflexões, ele nem percebeu quando a cliente regular batia seu ponto do dia e ultrapassava a entrada do local. Ela o viu parado bem atrás do balcão, como sempre estava, esfregando demais uma xícara de cerâmica e com os olhos perdidos enquanto observava o processo, sem olhar realmente. Como se fosse um robô ou algo parecido. Ela juntou as sobrancelhas com a cena, olhando-a mais de uma vez enquanto ocupava seu lugar de sempre.
O clima parecia especialmente bom para naquele dia. Não chovia tanto, assim como não fazia frio, mas o fio de uma pequena neblina começava a passear do lado de fora, e o céu começava a tomar tons de roxo e rosa à medida que as nuvens pesadas se afastavam. Um dia bom, ela pensou. Nada estragaria esse dia.
Abriu o notebook, dando uma última olhada para fora a fim de reunir sua última torrente de inspiração antes de recomeçar seu processo literário. Desta vez, ela tinha certeza que terminaria a última estrofe do poema, e que os dias passados ao lado daquele cenário urbano e romântico foram cruciais para uma melhora significativa da qualidade de sua escrita. Tudo ali a inspirava fortemente. A luz amarelada e acolhedora, o ladrilho hidráulico em cores vivas e diversas, o material confortável do estofado do assento que a deixava repousar ali por horas a fio sem sentir qualquer tipo de incômodo, o saboroso café mocha preparado na hora, com a espuma de chocolate na superfície igual ela gostava quando era criança, e a bebida acompanhada pela fatia…
olhou repentinamente para o lado. Costumava mergulhar tanto em seus devaneios na tela que não se atentava direito no momento exato em que trazia seu pedido de sempre. Vai saber quanto tempo se passou até que se tocasse que a mesa ainda estava vazia, e de que o garoto continuava parado exatamente no mesmo lugar, perdido em algum ponto da xícara em mãos, parecendo um cão abandonado.
Ela pensou consigo mesma se faria alguma coisa para chamar sua atenção. O outro cara loiro que exercia aquela função já devia ter ido embora há muito, então não havia outra pessoa a quem ela pudesse fazer seu pedido. Talvez deixasse de tomar café hoje, não era lá grande coisa. Poderia acreditar que a repetição de padrões que estavam acontecendo nas últimas semanas, que incluíam atravessar a porta de entrada pontualmente, sentar-se no mesmo lugar e pedir a mesma coisa estavam sendo cruciais para sua produtividade e que quebrar esse ciclo poderia trazer uma catástrofe, mas o que ela poderia fazer? Ele parecia realmente um cidadão despejado na sarjeta. Os ombros caídos não a deixavam mentir.
Decidiu fazer uma última tentativa. Ela limpou a garganta, alto o suficiente para reverberar pelo lugar que recebia apenas a melodia baixa de uma música instrumental ambiente. Não tivera muitos resultados. Tentou uma segunda vez, mais alto do que na primeira. Ele empinou a cabeça como uma águia, olhando primeiro para a porta e em seguida para a mesa da janela, onde se encontrava.
— Ah, você chegou. — ele murmurou, em tom tão baixo que ela não foi capaz de ouvir além de meros sussurros. Ele a lançou um leve cumprimento de cabeça e voltou-se para a máquina de café atrás de si, tentando juntar todo e qualquer resquício de foco para fazer pelo menos aquela tarefa bem.
Ao depositar a bebida juntamente com a fatia de torta ao lado do cotovelo dela, ele se conteve em apenas fazer uma breve reverência e voltar a caminhar para seu posto.
— . — ela chamou, e ele se virou imediatamente. Um suspiro escapou de seus lábios sem intenção. Ele provavelmente tinha feito algo errado de novo. — Você está bem?
Ele piscou os olhos algumas vezes, ligeiramente surpreso.
— Estou sim — respondeu.
— Ah. — ela desviou os olhos rapidamente, um tanto constrangida por ter feito tal pergunta baseada em seu fraco senso de observação. — É que você parecia, bem…
Ela não terminou a frase, não que precisasse. sabia exatamente como estava parecendo naquele dia, e sinceramente não queria iniciar um papo sobre o motivo. Nem saberia o que dizer.
— Bom apetite. — ele falou e, por fim, voltou pro balcão.
olhou novamente para a tela, mas, desta vez, não conseguia pensar nas próximas palavras. Ela tinha tudo que precisava, tudo que tinha aflorado sua imaginação nos últimos dias, mas havia algo diferente. O atendente não estava com aquela expressão em nenhum momento dos dias anteriores. Que diferença o bem estar de Lee pode ter sobre o meu trabalho?, mas então por que aquela expressão cabisbaixa e perturbada há alguns metros a seu lado pareciam deixar todo o ambiente sem graça e sem nenhuma magia? Fala sério, isso não fazia sentido, não poderia ser tão metódica assim.
Estava na hora de voltar pra terapia?
Reparar nele levou a garota a se lembrar do que estava evitando até então: o dia seguinte. O sábado de integração. A tal reunião pavorosa que convocaria todos os veteranos de todos os departamentos para fazer gincanas e bebedeiras malucas para os calouros, onde ela estaria incluída por livre e espontânea pressão. Seria um dos ápices da vergonha, uma que ela teria conseguido se livrar se não fosse a jogada inescrupulosa do garoto de camisa branca dividindo o mesmo local que ela agora.
Pensando nisso, era fácil simplesmente bufar e esquecer que, por alguns segundos atrás, ela havia sinceramente se interessado se ele estava bem. Besteira. Ele com toda certeza estaria no meio da corja de amanhã que a fariam virar dezenas de shots de soju, e desafiariam seu senso competitivo em jogos alcoólicos até que ela levantasse a bandeira branca. Um fiasco atrás do outro era o que eles esperavam, é claro, mas não o que teriam, não se dependesse dela.
Ela não poderia perder a chance de se mostrar uma ótima ganhadora amanhã, não quando ele certamente estaria assistindo.
Infelizmente, essa antecipação dos fatos somados com aquele clima de bad dentro daquelas paredes coloridas por causa de um garoto tristonho, tiraram qualquer verso bonito que poderia nascer da sua cabeça. sentia como se eles estivessem presos à terra, entalados, e que talvez fosse melhor deixar assim por hoje. Era fácil florescer palavras bonitas quando seu coração e mente estavam em sintonia, em paz com a própria realidade para que fugisse dela por algumas horinhas, mas não parecia ser o caso daquele fim de tarde.
O celular vibrou em seu bolso na hora certa, revelando uma mensagem de Amelia no grupo do Kakao que dividiam com Pat. A garota mandou um SOS bem acima do último recado que dizia “@ 🧚♀️ quer um spoiler do que terá amanhã pra já ir preparada?”
sorriu, digitando com os dedos velozes enquanto guardava suas coisas desordenadas, rápidas, sem deixar de olhar o celular. Uma onda de alívio perpassou por toda sua coluna. Era tudo que ela precisava, exatamente tudo: ter uma vantagem. Quanto mais rápido terminasse sua parte naquela festa, mais cedo poderia ir embora e se ver livre de obrigações idiotas, tipo servir porção de kimchi na boca de caras bêbados e fazer dancinhas estúpidas para entreter aos outros bêbados.
O barulho do salto das botas contra o piso fizeram com que voltasse ao mundo real a tempo de vê-la deixando o estabelecimento em uma corrida ávida. Ela nem ao menos deu boa noite. Ele piscou os olhos e caminhou até a mesa, encontrando a torta intocada e o café pela metade, junto de algumas notas lançadas com pressa por cima do tampo. Estava se perguntando o que diabos poderia ter acontecido para que ela encerrasse seu expediente mais cedo e ainda mais daquele jeito, quando sentiu algo na sola dos pés.
A princípio, não parecia grande coisa. Era um papel de carta cor-de-rosa, dobrado várias vezes até se reduzir em um pequeno quadrado do tamanho da palma da mão e — pelo amor de deus — aquilo era perfume?
Ele franziu o cenho ao pegá-lo. A marca de seus tênis tinha danificado o exterior do papel, e por um momento ele se preocupou em vê-la voltando dali há alguns instantes para pegar aquilo de volta, mas olhando naquele momento, não parecia grande coisa. estava ciente de que se sentava no mesmo lugar e de que digitava sem parar naquele computador, assim como estava sempre anotando algo em um pequeno caderno grosso e cheio de colagens desconexas. Aquela deveria ser uma anotação de aula ou uma lista rápida de compras, quem sabe. Ela não se importaria tanto de topar com a sujeira causada pelos pés dele de forma totalmente não intencional.
Porém, ao abrir e verificar o conteúdo do papel, se tocou de que talvez estivesse totalmente enganado sobre a importância do que tinha em mãos.
Porque não era uma lista de compras. Meu Deus, não era nem uma lista! E muito menos anotações de alguma aula qualquer. Porque o “meu coração poderia ser seu lar” estampando a primeira linha de um pequeno poema o deixaram ciente de que ele com certeza estava lendo algo que não devia.
Meu coração pode ser seu lar,
Um refúgio seguro, um lugar especial.
Onde sonhos florescem e amores se acalmam,
E a felicidade encontra um portal.
Ele arregalou os olhos, olhando para trás automaticamente, como se tivesse tropeçado em uma maleta preta contendo segredos de Estado. A caligrafia perfeita demonstrava um capricho excelente, e a escolha de palavras eram as mais tocantes e profundas que já havia lido. Se gostasse de ler, talvez encontraria essas coisas nos livros de Shakespeare ou da Jane Austen, mas ele tinha total certeza que a que segurava no momento tinha nascido única e exclusivamente da cabeça de Cusack. E que ela tinha escrito isso recentemente, porque a tinta da caneta colorida ainda brilhava e o perfume doce invadia suas narinas. Era uma confissão planejada e estruturada, tudo isso bem explícito pela dedicação do texto.
Com um levantar de ombros, ele guardou o papel no bolso da calça, mantendo por perto caso ela decidisse voltar pra buscar. Um dos clientes do outro lado da loja chamou sua atenção enquanto erguia as mãos para cima em um sinal de pedido da conta. Ele coçou a garganta enquanto arrastava os pés apressados até o lugar, recolhendo o dinheiro e vendo-o se retirar porta afora.
Em algum momento mais tarde, voltou a pegar o papel dobrado, agora drasticamente amassado pela velocidade com que o guardou da primeira vez. Algo o dizia que certamente voltaria para buscá-lo e, se não fizesse isso hoje, ele poderia ser abordado no primeiro horário da segunda-feira pela garota, pedindo sua confissão de volta. Ou talvez estivesse tão constrangida com o conteúdo da carta que simplesmente fingiria que ela jamais existiu, e talvez nunca voltas-
Ah, meu Deus. Não. Ele não tinha pensado nessa possibilidade. A baboseira que Jeno disse naquele dia do almoço não passava disso: baboseira. Uma ideia tão merda que nem tinha sido mencionada de novo, a ideia de que existia, sim, um motivo que faria aquela garota largar uma cartinha de amor de propósito ali, depois de ter vindo todos os dias e sentado no mesmo lugar na mesma hora, sem sequer pensar em voltar pra pegar de volta
Porque talvez… Talvez a carta foi deixada no lugar correto. Talvez era realmente para que pisasse em cima dela ou enxergasse o ponto rosa bem ao lado da mesa. Talvez ela tivesse saído correndo daquela maneira descabida para não ser pega em flagrante. Talvez ela sabia que ele leria…
Porque talvez a carta era para ele. Porque — não, Deus queira que não — Cusack poderia estar apaixonada por ele.
Cusack poderia estar apaixonada por ele.
O mundo estava desabando.
Jisung desferiu o copo sobre a mesa de madeira com tanta força que os pés tremeram na base.
Ele tinha acabado de virar todo o líquido com força, sem desviar os olhos da garota por um minuto sequer, mesmo que a garganta queimasse o bastante para que ele não conseguisse segurar uma careta. levantou as sobrancelhas do outro lado da mesa, ouvindo os gritos eufóricos ao redor, a torcida declarada berrando seu nome ao fim de mais uma disputa do famoso beer pong.
— Mais uma! — ele falou, um tanto grogue pelo quinto copo de 300ml que tinha entornado em um tempo recorde naquela noite, cambaleando até a pequena raquete no chão.
— Ainda não desistiu? — ela riu, cruzando os braços, parecendo decidida a não se mover.
— Garanto que na próxima você vai beber. — ele havia resgatado a raquete com certa dificuldade, levantando-se com a ajuda de dois rapazes da multidão. Ela revirou os olhos, o vazio começando a tomar seu rosto. — Eu juro, dessa vez eu vou… Vou… — os olhos do garoto perderam o foco por um instante, até que de repente seu corpo inteiro tremeu antes que virasse a cabeça para o lado e simplesmente colocasse para fora toda a bebida que havia consumido naquela noite e mais umas coisas que não fez questão de observar. O grunhido da ânsia foi emitido em uníssono, e ela simplesmente deu de ombros enquanto largava a raquete em cima da mesa azul, sumindo pelo lado contrário.
Ela pensou em pegar o telefone e começar a procurar por alguma das amigas, quando alguém tocou em seu braço repentinamente, puxando-a para algum espaço fora da aglomeração, especificamente no gramado do lado de fora.
— Achei você! — Pat gritou, e precisou ir aumentando gradativamente o tom de voz pela por causa da música ficando mais próxima e mais alta. — Preciso admitir que a Amelia tava certa quando disse que você não seria uma caloura muito fácil. Conseguiu driblar até mesmo um beberrão como o Jisung.
— Eu não sou caloura. — repetiu, porém abriu um sorriso. Ela não tinha conseguido ficar totalmente alheia à consumação do álcool, e já perdera a noção de quanto tempo estava ali, e de quantos jogos havia ganhado. — Mas você pode me chamar assim, é claro. — ela riu, caminhando até a mesa de bebidas, esbarrando em ombros alheios.
— Vou chamar você do que eu quiser, caloura.
Ela riu enquanto procurava uma garrafa de água no balde de gelo. Estava quente, tão quente quanto julho na França. O rabo de cavalo foi uma solução favorável assim que se viu encurralada pela massa de pessoas logo no início do evento, mas agora ela podia sentir o suor descendo por sua nuca, parando em suas costas e deixando a camisa larga do curso de Línguas ainda mais abafada. Os shorts haviam sido uma jogada inteligente, mas ela queria desesperadamente tirar aqueles tênis apertados e andar descalça por todo aquele gramado pelo bem de sua sanidade.
— Tô procurando a Amelia, você viu ela? — Pat perguntou quando finalmente conseguiram achar água gelada o suficiente no meio do caos da mesa. — Ela sumiu um pouco antes da sua vitória, e eu acho que perdi meu celular no meio da partida de kart.
— Eu iria tentar ligar para ela, mas não faço ideia pra onde ela pode ter ido.
— Sinceramente, acho que ela tem um peguete.
— O quê? — riu com a fala da amiga, engasgando com a água. — Amelia com um peguete? Sem chance, ela falaria sobre isso.
— A Amelia não fala muito sobre essas coisas com a gente, não percebeu? — Pat levantou as sobrancelhas, como se dissesse algo mais do que óbvio. — Ela conta sobre as vacinações anuais dos cachorros dela, mas de jeito nenhum fala sobre garotos. É bem provável que ela tenha um namorado ou coisa parecida e esteja escondendo ele em alguma caverna.
— Que exagero. — balançou a cabeça, começando a caminhar para longe da mesa e da maior confusão de pessoas. A piscina olímpica ficava há alguns metros a frente, e um frescor palpável já aliviou todo aquele calor que ela sentia. — Eu acho que ela só tá conversando com os veteranos por aí.
— Com certeza, mas não vamos descartar a especulação de que ela simplesmente tem uma trava quando o assunto é garotos. Não percebeu? Enquanto você estava na Europa, ela nem mencionou que tinha reencontrado o melhor amigo dela de infância aqui na UNS, e eles eram totalmente unha e carne.
— Melhor amigo de infância? Tá falando do-
— Isso, do ! Ela nunca te contou isso? Ela foi transferida pra nossa escola no ensino médio, mas estudou com ele antes disso. E olha só, nem naquela época ela falou sobre isso. Eu só descobri quando ela entrou em êxtase ao vê-lo nessa mesma integração no ano passado.
— Ah… Eu não fazia ideia disso. — murmurou, um tom de surpresa estampado na voz. Ela tinha conhecimento da amizade entre Amelia e , mas não fazia ideia do tempo específico que fazia. E realmente chegou à conclusão de que a amiga não falava muito sobre garotos, ou sobre coisa alguma de sua vida particular. — Mas você acha que ela-
Em um instante, Pat sumiu do lado de . Ela não percebeu na hora, com seu olhar fixo nas ondulações transparentes da água conturbada pelas pessoas pulando ou dançando ou fazendo qualquer outra coisa lá dentro, mas de repente virou para o lado e viu as costas da amiga, e mãos desconhecidas passando pela cintura dela enquanto travavam um beijo intenso e totalmente não apropriado para uma multidão, mesmo que essa multidão estivesse quase que totalmente alucinada.
ficou imóvel até que a menina finalmente se desse conta e afastasse bruscamente o rapaz, que mordeu o lábio inferior de forma lasciva enquanto não tirou as mãos de sua cintura.
— , desculpa, é que o-
— Oi, ! — o cara finalmente notou sua presença, parecendo levemente embriagado, mas duvidava muito que fosse por causa da bebida. — Lembra de mim? Sou o Jeno, amigo da Amelia, e do Ren-
— Eu conheço você, Jeno. — ela o interrompeu, ainda olhando para Pat com uma expressão que certamente pedia por uma explicação plausível para a cena que acabara de ver, mas não teve muito tempo para prolongar o assunto, muito menos para receber alguma resposta, porque percebeu que mais gente estava se juntando no semicírculo.
— Jeno, tive de pegar seu celular de dentro de um copo vazio e fedido no meio da moita, cacete. — Haechan apontou para o garoto ainda apoiado em Pat. — Ah, vocês dois estão… — ele olhou para o lado. — Ah, e aí, ! Puxa, você tá uma gata!
Ele sim estava muito embriagado.
— Oi, Haechan. — ela sorriu em resposta, olhando para o rapaz que o acompanhava logo atrás. — Oi, .
demorou alguns segundos para enfim retribuir o cumprimento, desviando os olhos do rosto dela logo em seguida enquanto tomava um grande gole da cerveja que levava em um copo amarelo.
— Fiquei sabendo que você deixou os veteranos comendo poeira nos jogos de mesa. — Haechan cruzou os braços, ainda encarando a garota com uma certa fascinação… Alcoólica.
— E nas disputas de resistência também — pontuou Pat, sorrindo.
— Deus do céu, você realmente não entra pra perder, não é mesmo? — Haechan estalou a língua. — A não ser quando o resolve entrar no jogo, daí realmente é uma batalha de grandes mentes.
Haechan riu abertamente, puxando um coro com Jeno e Pat, mas não passou disso. deu um risada forçada, tirando alguns poucos fios rebeldes da testa e se conteve em apenas lançar um olhar tedioso para Haechan.
Em seguida, Jeno sussurrou algumas palavras no ouvido de sua amiga, fazendo com que ela desse risadinhas discretas na palma das mãos enquanto começava a ser puxada para alguma outra direção que se afastava do grupo.
— , eu vou… Lá… Talvez eu encontre a Amelia. — ela tentava dizer alto enquanto se deixava ser levada pelo garoto. — Eu já volto, eu só vou- Enfim, eu já volto! — e simplesmente sumiu no meio do povo.
Haechan encarou o casal se embrenhando no meio dos corpos e ficou estático no mesmo lugar. Aqueles 2 tinham virado 4, e depois 6, e aí voltaram a ser 4 de novo. A sensação não era muito boa e ele sentiu sua cabeça girar em 360 graus, até conseguir virar novamente para os amigos.
— Eles não são adoráveis? — disse, e se arrependeu no mesmo segundo ao sentir o bolo amargo na garganta, um bolo que desejava desesperadamente sair. — Sempre shippei os dois… Onde está mesmo o Renjun… Eu...
— Ah, merda! — praguejou enquanto largava a cerveja em algum canto do chão e corria para pegar em um dos braços de Haechan, que começava a ficar mais verde a cada segundo que passava. — Fala sério, Haechan, seu infeliz, não vomita agora, não aqui.
— Ele tá bem? — perguntou, sentindo-se repentinamente agitada com a pressa de em segurar o garoto.
— Com certeza não. — ele respondeu ao passo que os pés de Haechan pareceram perder metade da força e precisar ancorá-lo bem na hora em que ele iria ao chão, e o resultado disso não seria nada bom. automaticamente pegou em seu outro braço, sendo de grande ajuda para que ele também não desabasse. — Vamos levá-lo até aquela árvore grande onde ele pode ceder bastante material orgânico para as plantas. Duvido que a gente acha uma privada vazia a essa hora.
torceu o rosto em repugnância, mas apenas assentiu e passou o braço de Haechan sobre seus ombros, conduzindo-o ao local indicado por , que era afastado o bastante para a música não soar mais do que um ruído e o cheiro do que poderia surgir dali sumir rapidamente com o vento.
Eles nem precisaram concluir o percurso. Há 20 metros da árvore, Haechan pareceu ser tomado por um desespero maluco e soltou-se voluntariamente dos amigos, correndo para trás do tronco grosso que escondia quase seu corpo inteiro e despejar tudo que precisava ali mesmo. não conseguiu controlar novamente a expressão de náusea, e apenas suspirou pela cena já familiar.
— Espera um pouco aqui. — ele murmurou para ela, dando as costas enquanto voltava para a área da piscina. encarou as costas agachadas de Haechan, procurando por quaisquer dificuldades que ele pudesse estar tendo para se levantar ou simplesmente terminar de soltar tudo até que voltasse carregando uma pequena espreguiçadeira branca, posicionando-a logo ao lado da árvore. — Tá tudo bem aí, amigão? — ele perguntou, recebendo um resmungo grotesco da garganta de Haechan em resposta.
— Ele tá mesmo bem? — ela perguntou de novo, começando a se preocupar de ter que levar o rapaz até um hospital ou coisa parecida.
— Ele tá sim. Tá colocando para fora exatamente dentro do tempo padrão: 5 garrafas de soju. Me preocuparia se ele tivesse passado disso. — ele deu de ombros, observando as últimas gorfadas de Haechan. — Pronto, pronto, agora vem aqui. — ele puxou o garoto para cima delicadamente e o colocou na espreguiçadeira, onde Haechan fechou os olhos imediatamente e permaneceu assim.
terminava de ajeitar os pés e os braços desengonçados do amigo quando perguntou:
— O que a gente faz agora?
suspirou.
— Por enquanto só deixamos ele dormir um pouco. — respondeu, colocando as mãos no bolso e puxando o celular. — 30 minutos devem bastar. É o tempo que ele leva pra acordar e voltar a si.
— E se ele não acordar? — ela perguntou apressada, olhando para o peito de Haechan que subia e descia tranquilamente em um sono profundo.
— Daí podemos encher um grande copo de água e jogar na cara dele. É tiro e queda. — ele deu de ombros.
Ela forçou uma risada, imaginando que no dia seguinte com certeza riria de tudo aquilo, apesar de no momento achar que Haechan certamente já foi responsável por vários sustos dos amigos para chegar ao ponto de ter padrões. Observou digitar algo no celular e revezar seu olhar em Haechan e na árvore atrás, provavelmente comunicando o ocorrido aos outros amigos.
Que… atencioso.
Ele guardou o celular e finalmente encontrou os olhos da garota.
— Então… — ela começou a falar, um tanto apreensiva. — Eu acho que já vou, ainda tenho uma partida de battleshot pra dar conta.
— , espera. — ele respondeu em ímpeto, antes mesmo que ela desse qualquer outro passo. Andou até ficar de frente para ela. — Eu queria mesmo falar com você.
Ela o encarou confusa. Se estivesse totalmente sóbria — totalmente —, não teria feito a careta que fez quando disse:
— Quer falar comigo? — ela apontou para si mesma. Não imaginava nenhum assunto que pudesse ter com Lee.
Ele comprimiu os lábios, de repente se questionando se o que pretendia fazer era, de fato, a coisa certa a se fazer. Se ali era o lugar certo, se a abordagem era certa, tudo. Também não estava tão sóbrio assim, e duvidava muito que adiantaria alguma coisa, mas fazer aquilo 100% sóbrio seria mil vezes pior.
Ele agarrou o pedaço de papel cor-de-rosa do bolso de trás do jeans e ergueu bem na altura do peito, não em um gesto de devolução, mas como se mostrasse um objeto furtado ao próprio responsável pelo roubo.
— Eu achei isso ontem na cafeteria. — ele disse devagar, encarando fixamente seus olhos.
Levou quase 1 minuto para que enquadrasse a peça em sua panorâmica e finalmente se tocasse do que se tratava. Em questão de segundos, seus olhos se esbugalharam de terror e suas mãos voaram de forma inconsciente em direção ao ponto rosa nas mãos de , o coração batendo tão rápido que era possível escutá-lo pulsando nas orelhas.
O garoto previu isso. Mais rápido do que ela, ele levantou o braço detentor do objeto e deu um passo para trás, olhando-a como se fosse um bicho raivoso.
— O que você tá fazendo com a minha carta? Devolve ela agora! — grunhiu, jogando-se para cima do menino de forma quase cega, focando apenas no papel entre os dedos do que o mantinha alto, irritantemente alto, pelo menos 18 centímetros a mais do que ela.
— Dá pra você se acalmar?!
— Me acalmar uma ova! Me devolve isso agora, , ou se não eu juro que-
— Se você me escutar, eu te devolvo! Agora vai pra lá, por favor?! — ele ergueu as sobrancelhas, tentando não demonstrar que não conseguiria lutar por muito mais tempo com as investidas violentas da garota. — Eu prometo que te devolvo.
Ela rosnou algum palavrão antes de soltar a camisa dele, afastando-se o bastante para que ele descesse o braço em segurança e ajeitasse a camisa quase arruinada.
— Meu Deus do céu, Cusack, achei que teria de ligar pro centro de zoonose. — ele gemeu ao balançar os pés que ela havia detonado com seus pés de elefante. — Você sempre foi violenta desse jeito?
— Cala a boca, ! O que você tá fazendo com a minha carta?! Você leu ela?! Aposto que sim, seu miserável. Isso é falta de respeito, invasão de privacidade!
— Ei, ei, a parte do me escutar, se lembra? — ele ergueu as mãos em rendição, encarando o rosto vermelho da garota. — Preciso te perguntar uma coisa importante sobre essa carta. — ela levantou as sobrancelhas e esperou, o coração ainda batendo forte no peito. Será que ele sabia? — Você deixou isso lá pra mim?
Ela piscou os olhos, claramente confusa com a pergunta. Ele respirou fundo, tentando juntar toda a firmeza possível na voz.
— Tá bom, olha, o que eu quero dizer é… Você tá apaixonada por mim? É isso? Por isso tem ido no café todos esses dias, ficado tanto tempo, ter parado de surtar pelo paintball, isso é por que você gosta de mim?
absorveu a pergunta por quase 1 minuto inteiro antes de explodir em risadas. O coração ainda batia de forma desgovernada, mas agora estava tomado de um alívio intenso. Não dava nem pra sentir raiva do garoto, ou de sua intromissão à sua vida particular.
Ele revirou os olhos com a reação dela, permanecendo com o rosto sério e, agora, o maxilar trincado.
— Você… — ela começou a dizer, ainda rindo. — Meu Deus, você pensou mesmo que eu estaria apaixonada por você? É sério isso?
— É totalmente compreensível pensar uma coisa dessas naquela situação, se quer saber. — ele trincou os dentes, sentindo uma irritação subir pelo peito, o rosto queimando pela pergunta idiota que tinha feito. — Mas que bom, fico feliz. Seria a primeira vez que eu teria de rejeitar uma garota.
— Ah, pode ficar despreocupado com isso. — ela riu, agora de forma irônica, estendendo as mãos para ele. — Agora, se não se importa.
— Espera. — ele deu mais um passo para trás. — Mas essa carta é realmente uma confissão, não é? Pela sua reação, ela não é só uns devaneios poéticos bobinhos. Então você pretendia entregá-la-
— Lee.
— … Ao Johnny?
Desta vez ela não riu, mas pela cara que fez, pareceu literalmente que Haechan havia vomitado em cima de seus sapatos.
— Johnny? O seu colega que flerta com a clientela? Tá de brincadeira comigo?
— Eu pensei que-
— Ah, pensou! Você andou pensando demais na minha vida privada, seu sem noção! Acha mesmo que caras altos e bonitos são o tipo ideal de todas as garotas? Me poupe! — ela deu um passo a frente, erguendo as mãos para pegar o papel, mas viu se afastando mais uma vez. — Agora já chega, devolve a minha carta, .
— Espera, espera, preciso fazer mais uma pergunta. — ele falou rápido, vendo a veia em sua têmpora inchar de irritação. — Você não negou quando eu disse que isso é mesmo uma confissão. Por que não tem nome nela?
— Quê?
— É, não é assim que funcionam os bilhetinhos de declaração? Jeno já recebeu uma vez de uma garota da nossa turma, ela desenhou o nome dele dentro de um coração gigante com glitter.
abriu e fechou a boca, ainda procurando sentido naquela conversa.
— Você tá mesmo querendo saber pra quem eu escrevi isso?
— É, acho que sim.
As bochechas dela tomaram uma cor avermelhada intensa, e ela sentiu as orelhas arderem de uma raiva pungente.
— Você- Não te interessa! — respondeu, indignada. — Por que eu contaria uma coisa dessas a você?
— É o Jaehyun, o veterano bonitão que cursa Direito e faz parte do time de basquete? — ele tentou, vendo-a cruzar as sobrancelhas. — Ou aquele outro cara que as meninas gostam, o Kun que faz Artes Plásticas?
— Do que você tá falando-
— Ou pode ser o Yuta que faz Design! A Amelia e a Pat viviam falando dele ano passado.
— Você está perdendo seu te-
— MAAAAAAAAAARRRRKKKK!
Um berro viajou da entrada do portão até onde os dois conversavam perto da árvore. virou o rosto na direção de onde seu nome foi chamado e mal teve tempo de abrir um sorrisinho — que, com certeza, seria forçado — antes de ser pego em um abraço de urso que o fez ser erguido do chão.
— Lee! Nem acredito que você veio! — o cara desvairado literalmente gritou no ouvido de , que se afastou com uma careta disfarçada. — Onde estão aqueles seus outros amigos engraçados, como o Renjun, o Jeno e- Aquele ali é o Haechan? — ele olhou para trás dos ombros de , encarando o garoto inconsciente em cima da espreguiçadeira. — Puta que pariu! Esse é o Haechan! — gargalhou, dando tapas fortes nas costas de . — Se eu soubesse que o Haechan tava querendo chegar nesse ponto, eu teria chegado mais cedo! Infelizmente, tive que ajudar meu pai na empresa hoje, sabe como é? Ele diz que quer me preparar para a presidência, mas hello, já olhou pra mim? Consegue me imaginar de terno e gravata? Na verdade, consigo sim! Te peguei! — ele riu mais uma vez, sacudindo com mais um abraço pelos ombros, fazendo o garoto forçar uma risada até o último limite. — É óbvio que vou ficar ótimo em roupas sociais, como daquela última vez que apareci no jogo da liga com terno e gravata, pode apostar, eu tava arrasando! Opa, boa noite, moça! — o rapaz virou-se para ao notá-la, fazendo uma reverência exagerada com as costas. — Muito prazer, mademoiselle. Sou o Hendery. Como você se chama?
olhou pra ela e tomou um susto. O monólogo cansativo e sem noção do colega havia tirado a atenção dele por alguns segundos, mas quando virou, ele parecia estar olhando para outra pessoa. Antes, estava com o rosto vermelho pela fúria de ver sua carta exposta nas mãos dele, mas agora ela parecia tão pálida quanto um fantasma, a linha da boca tão contraída como se segurasse um vômito. Seus olhos estavam fixos e arregalados em Hendery, o suficiente para se perguntar se ele era alguma assombração. E quando o cara fez um gesto brega de pegar em uma das mãos dela para dar um beijo na mesma como uma cena da idade média, o rosto dela mudou automaticamente para um vermelho tão vivo e tão intenso que parecia estar em chamas. As pálpebras tremeram de forma abrupta em um segundo e ela perdeu a fala por mais tempo que isso.
— E-e-eu… Meu n-nome é Cusack… ! Cusack! — ela respondeu, totalmente desconcertada. — E-eu…
— Ei! LUUUUCCCAAAAASSS! — Hendery virou a cabeça como um jato para algum ponto da multidão, berrando mais uma vez o nome da outra pessoa. — Você tá atrasado, seu otário! Trouxe o que eu pedi? Ei! — ele começou a correr igual um espantalho, virando-se de repente no meio do caminho para a dupla de novo. — Foi bom te ver, ! Vamos nos encontrar mais tarde lá na cobertura! Bonito nome, ! Preciso ir! — e saltitou novamente para o meio das pessoas.
exalou de alívio, balançando os ombros e os braços pra ajeitar a roupa que aquele mala sem alça desarrumou. Hendery Wong era considerado o cara mais chato de toda Universidade de Seul, isso se não estendesse o título para a própria Coreia do Sul inteira. O cara conseguiu alcançar uma enorme reputação por fazer as pessoas correrem ou inventarem uma dor de barriga só pra não precisarem passar por 5 minutos de bate-papo com ele e seu ego gigante. E como o cara também tinha a inteligência de uma porta, fugir dele era a única opção viável para uma média convivência.
Ele olhou de novo para , que permanecia em algum tipo de estado de transe olhando o caminho por onde Hendery havia saído, parecendo um pouco desolada e até… triste.
E foi então que sacou tudo.
A confirmação veio como um tapa na sua cara. A forma como ela parecia outra pessoa quando o garoto chegou perto, e o jeito pesaroso com que olhava o vazio agora, massageando uma das mãos, a mesma que aquele idiota tinha beijado, e por Deus, a forma como aqueles olhos brilhavam como duas enormes estrelas da manhã…
— Sem chance. — ele disse, balançando a cabeça. — Você… Não. — ele sufocou uma risada, enquanto ela acordava do que quer que estava acontecendo a partir do momento que Hendery chegou. — Não vai me dizer que a anta do Hendery é o alvo da sua carta de amor?
— O-o q-quê?! — tentou formular, e conseguiria isso se um grande nó não tivesse atado sua garganta naquele exato momento. — Eu n-não sei do que-
Ele riu. Riu de verdade. Riu tanto a ponto de curvar as costas e se apoiar em seus joelhos, fazendo afogar o rosto em suas mãos, desejando como nunca que fosse abduzida por alguma força extraterrestre que a tirasse daquele lugar agora, que a levasse embora para sempre, que nunca mais tivesse de encarar Lee na vida.
— Já acabou? — ela cerrou os dentes, o rubor tomando conta de seu rosto novamente.
— Desculpa, é que não dá pra acreditar. Caramba, Cusack, a caloura brilhante do departamento, não esperava mesmo que você curtia protótipos de idol. — ele riu mais uma vez, tentando recuperar o fôlego de antes. — E agora o papel rosa faz todo o sentido, era pra combinar com a cor do cabelo dele?
— Já chega, devolve a minha carta, seu miserável! Já não basta ele ter me visto com essa roupa ridícula, com esse cabelo bagunçado, e todo esse calor que tá me fazendo suar como uma porca. — a garota reclamou, avançando de novo, mas não parecia ter a mesma determinação violenta de antes. Estava frustrada demais pra isso. — Argh. Que situação horrível. Ele perguntou meu nome, o que significa que não lembra de mim, mas pensando bem, por que se lembraria? Eu nunca falei com ele na escola, ou na formatura do ensino médio, ou até mesmo quando fazíamos parte do clube de Atletismo, meu Deus, ele nem sabia que eu existia. — ela tropeçou nas palavras desconexas até enfim se dar conta de que estava soltando a língua demais. Olhou para , que observava a torrente de palavras da garota com uma sobrancelha levantada. Ótimo, estava dando uma de ridícula de novo. — Enfim, agora que sabe pra quem eu escrevi, devolva minha carta!
— Claro, senhorita. — ele deu de ombros e estendeu o papel, mas o puxou de volta no mesmo segundo. — Assim que você aceitar a proposta que vou te fazer.
— Que diabo você tá falando agora?
— É muito simples, Cusack. Você pode me ajudar com uma coisa importante, e em troca posso ceder um pouco do meu precioso tempo para sacrificar meus ouvidos perto daquele idiota e tentar introduzir o nome de Cusack naquele cérebro de azeitona.
Ela foi abrindo a boca aos poucos, os pés presos no gramado úmido.
— Não! Você tá sonhando se pensa que vou te ajudar depois de tudo isso, . Chega de besteira e devolve minha carta. — ela avançou novamente pra ele, que se afastou imediatamente.
— Tem certeza que não vai ajudar? Tudo bem então, vou ter que considerar aquela reuniãozinha que ele acabou de me convidar pra cobertura, só não confio demais no que posso contar a ele na primeira brecha-
— ! — ela levou as mãos à boca, arregalando os olhos mais uma vez. — Seu… Babaca desonesto, traiçoeiro! Até quando vai jogar sujo contra mim?
— Até você escutar a minha proposta. E então, o que vai ser? — ele arqueou as sobrancelhas. estava cercada. Com os olhos brilhando de raiva, fez um sinal para que ele continuasse. — Tá legal, é o seguinte: preciso que você escreva uma carta dessas pra mim.
— Como é que é?
— Olha só, nunca curti essa coisa de poesias e palavras difíceis, mas as coisas que você escreveu… bom, é bem bonito. É profundo de uma forma natural, me entende? Não é igual a alguém se declarando em praça pública, mas alguém fazendo isso no ouvido de outra pessoa dentro do metrô lotado. Sei lá, parece talento pra mim. — Foi a vez de se sentir ligeiramente constrangido por ter dito o que disse, mas não desviou do rosto de por isso. Um novo rubor nasceu das bochechas dela, um que ele mal conseguiu ver na semi escuridão. — Pode existir um risco sério daquele palerma não entender uma palavra sequer do que você colocou aqui, mas garanto que isso não vai ser culpa sua.
— Ok, ok. — ela respondeu rápido, baixando os olhos enquanto colocava duas mechas fugitivas para trás das orelhas. Nunca ninguém tinha dito coisas tão… singelas a respeito de qualquer coisa que ela tenha escrito. — O que minha aptidão com palavras difíceis podem ser úteis pra você?
— E daí que eu quero- Na verdade, preciso me declarar para alguém também. — ele colocou uma mão na cintura, desajeitado. Agora a bochecha queimando era a dele, percebendo como jamais havia dito aquilo em voz alta.
— Você quer que eu escreva uma confissão pra você?
— Basicamente.
— E você acha que é simples assim? Vou sentar uma noite na minha cama e puf, consegui expressar todos os seus sentimentos? — ela esticou o braço num piscar de olhos, agarrando o papel rosa das mãos do garoto de forma ligeira, deixando-o chocado por um instante. — Isso aqui não é uma música da Taylor Swift ou um trecho que eu tirei do Gemini. Isso é o que eu sinto de verdade, e só pareceu tão bom porque sou eu que sinto. Como você quer me dar a responsabilidade de escrever o sentimento de outras pessoas? Não tem como, .
Ele ficou parado por um tempo, sentindo um novo tipo de constrangimento, como se tivesse aberto uma porta sem querer e encontrado o quarto cor-de-rosa cheio de pelúcias fofinhas de .
— Espera, eu sei que parece loucura, mas eu juro que você é a pessoa certa pra isso. Sei que pode parecer difícil, mas-
— Não vai rolar. — ela estava pronta para sair.
— E que tal se escrevêssemos juntos? — parou, a testa franzida. — É isso, vai ser como se eu mesmo estivesse escrevendo. Eu posso te contar mais sobre mim, sobre ela, sobre toda a porra de sentimentos que-
— Tá legal, tá legal. — ela ergueu as mãos, fazendo-o se calar. — Tá mesmo disposto a passar um tempo comigo só pra gente escrever uma carta pra sua garota?
— Sim, estou. — ele deu de ombros, suspirando pesado, como se tivesse ficado sem respirar em algum momento do processo. — E então? Você me ajuda a escrever uma carta de amor e eu te ajudo a entregar a sua. Que tal?
pensou sobre aquela proposta, sabendo que teria de dizer não, definitivamente não, que passar mais tempo com Lee com certeza não fazia parte de nenhum dos seus planos, mas então foi pega pela seguinte pergunta isolada: por que não?
Ele poderia não ser sua pessoa favorita no mundo, mas, felizmente ou infelizmente, era uma romântica incurável. Amava escrever cartas de amor, amava a paixão incontrolável e fantasiosa que ganhava vida com suas palavras, o ardor forte no coração de quem estava pensando em outra pessoa, amava a beleza do amor platônico. E, por isso, sentiu certa solidariedade com aquele trapaceiro.
Talvez não estava apenas chamando-a para presenciar em primeira mão o nascimento de um belo romance da vida real, mas também convidando-a a finalmente encarar a realidade de seus próprios sentimentos, uma chance de não mais sonhar com ele, mas finalmente vivê-lo. Era tipo chamá-la para a beira de um precipício e dizer a ela pra voar. E se ela tivesse asas?
E se aquilo desse certo?
O álcool podia ter a ver com isso, mas, quando viu, estava respirando profundamente, ainda agarrando o pequeno pedaço de papel em uma das mãos e estendendo a outra para o garoto, que sorriu ao mesmo tempo que selava o acordo.
Um estrondo no céu indicou mais um sinal de aguaceiro naquele momento, e ao lado, os grunhidos de Haechan anunciaram seu retorno à consciência.
Agora as árvores já estavam quase despidas e a chuva vinha carregada de sombras e um frio intenso. Às portas do inverno, era o que se podia esperar. No fim daquele outono, as últimas semanas pareceram ser realmente perfeitas. E surpreendentes, principalmente isso, de uma forma que jamais imaginou.
No mais tardar, a chuva seria substituída pela neve, o mocha pelo chocolate quente e os tênis por botas pesadas e casacos sobrepostos. Ela passaria por mais um aniversário de morte da mãe e comemoraria o Natal e o Ano Novo em Jeju com seu pai, como mandava a tradição, mesmo que ele tivesse de voltar mais cedo por causa de exigências do trabalho e todo aquele papo corporativo e chato que detestava. Poderia aproveitar o tempo e visitar sua tia naquela mesma região, ou sua avó em Paju, ou passar alguns dias na casa de Amelia, mas nunca, jamais, em hipótese alguma pensou em ficar em Seul. Não até aquele outono.
Ela com certeza o convidaria para aproveitar nem que fosse um final de semana despreocupado em Jeju. Mesmo que fosse apenas um dia, por causa do trabalho na cafeteria. Mesmo que já exibisse seu Alfa Romeo por aí, parecia relutante em largar o emprego. Estava nele pra completar as últimas notas e algumas taxas de segurança, e quando se apossou do carro azul marinho de 4 portas, ficou feliz por ele. Muito feliz. Ela ainda estava feliz quando apareceu naquele pub com a esperança de vê-lo… e viu. Nas piores circunstâncias.
O outono perfeito acabou de forma desastrosa, cinza, terrível como aquela última chuva da estação.
Ela não conseguia ver para onde ia. Tinha consciência dos carros em alta velocidade no asfalto ao lado, e da imensidão do rio Han passando logo abaixo no outro, e das hastes espessas de metal que passavam por cima de sua cabeça, mas ela agora parecia desligada. Uma buzina ou outra soava de raspão em seus ouvidos, e alguém com certeza deve ter gritado para que a garota saísse daquela tempestade ou poderia pegar uma pneumonia, mas que se dane. conseguia se lembrar da frustração descabida que tinha sido aquele dia, e de como ele serviu para lhe revelar toda a enganação que se deixou cair durante todo o último mês. Tinha se deixado magoar, se iludido com algo que parecia real ou com um extenso potencial para ser, e viu tudo desmoronar bem diante dos seus olhos.
Porque, de todas as possibilidades imaginárias na vida de Cusack, nenhuma delas envolvia se apaixonar por Lee.
Não apenas isso; nenhuma delas sequer a avisou de que ela se apaixonaria por puro infortúnio. Por pura teimosia de seu coração. Porque não era pra ser, ela via agora claramente. Não podia ser parte de plano astrológico nenhum se apaixonar por um cara que ama outra garota. Não, nem em seus mais terríveis pesadelos ela pensaria que isso fosse possível. Era loucura demais.
E ela mesma já não era apaixonada por Hendery? Claro que era, não conseguia se lembrar de momento algum em que não fosse. Lembrava-se de selecionar cuidadosamente as roupas para sair de casa quando sabia que iria vê-lo, mesmo que ele não soubesse quem ela era, mesmo que fosse um tanto atrapalhado para ter conhecimento até de seu próprio nome, mas ela o amava. Não amava? Pelo menos, essa era a certeza incontestável até que estragasse tudo e a beijasse em uma maldita brincadeira de festa universitária que se provou o maior mal entendido do mundo.
Ela ouviu novamente a buzina, desta vez mais alta, mais perto. A luz forte de um farol banhou suas costas, e o barulho da porta de carro sendo aberta não demorou a vir, juntamente com a voz:
— ! — a alcançou antes mesmo de suas mãos pegarem em seu pulso, virando a garota para si. — Você precisa me escutar, não é nada disso-
— Escutar você. — ela riu com ironia. — Acho que fiz isso o bastante ultimamente. E pensei que tivesse te conhecido, ou que me considerasse sua amiga, ou… — ela soltou o ar, controlando a queimação absurda no nariz.
— , não, você não tá entendendo-
— Estou muito curiosa pra saber, : achou mesmo que eu nunca descobriria que era a Amelia? Que todo aquele tempo e toda a troca de segredinhos entre a gente não me levariam até ela em algum momento? Me responde, achou mesmo que isso aconteceria?
— Não, eu não… — ele bufou, os olhos desesperados e agitados, buscando uma saída. — Deixa eu te tirar da chuva primeiro, por favor? Aqui não é o lugar certo pra isso, eu prometo que-
— Não diga que me promete alguma coisa, por favor. — ela cerrou os dentes, encarando-o com firmeza. — Preciso ir pra casa agora. — ela se soltou levemente e começou a se virar para seguir o caminho de antes.
fechou as mãos em punho, indignado. Tantas palavras se amontoavam em sua garganta, tantas frases longas e explicações extensas que ele nem sabia por onde começar. Talvez por isso não começou de fato, e também pelo medo sufocante de piorar ainda mais as coisas. Mas como isso poderia ser possível? estava daquele jeito por causa dele, e sua expressão era dolorosa, o machucava, aqueles olhos magoados pareciam abrir uma cratera no seu peito.
Ele sabia o que aquilo significava. Nunca teve tanta certeza sobre algo na vida.
— Eu não entreguei a carta pra ela! — ele gritou, mais uma vez. Foi exatamente o que havia gritado antes de ela sair correndo, mas agora ele parecia realmente desesperado para que ela acreditasse. — Você precisa acreditar em mim. Eu não entreguei, e nem pretendia fazer isso há um bom tempo. Não desde aquele dia, desde o beijo e de tudo que acontecia comigo sempre que eu te via, será que dá pra me entender?
— Para com isso…
— Tudo bem, você pode pensar que essa é a resposta previsível que eu daria depois de ela deixar bem claro que não sente nada por mim. Depois de ter dito sobre o namoro dela com o Renjun e de levar quase meia hora pra explicar porque esconderam tudo, mas isso não importa, , tô falando sério. Não ligo pra quem a Amelia namora, não ligo para as coisas que escrevemos naquela carta. Quem eu quero enganar? Você é a pessoa pra quem eu deveria ter escrito uma confissão. — ele caminhou em direção à garota, que tremeu os lábios enquanto tentava dar um passo pra trás.
— Não… — ela balançou a cabeça, tirando os cabelos encharcados da testa. — Você não pode dizer essas coisas agora que sabe de tudo, que sabe como eu me sinto, como eu fiquei-
— Como tem tanta certeza que eu não sinto a mesma coisa?
— Você me beijou e depois fez parecer que era um erro, o que queria que eu pensasse?
— Eu não sabia o que estava acontecendo, . Você embaralhou totalmente a minha cabeça e me fez perder o sono enquanto eu me perguntava quem diabos era Lee e por que eu parecia estar repensando a minha vida toda, inclusive todos os meus planos. — ele grunhiu, se aproximando mais dela. — Te contei das minhas metas, todas elas. Na verdade, te contei mais coisas do que jamais contei a ninguém, e à medida que fiz isso, que me abri sobre essas coisas, algumas delas pareceram tão chulas e sem importância que me perturbaram como nunca, sério. E te ver se abrindo comigo também não ajudou muito a te afastar da minha cabeça, , te garanto. Imagine alguém que jurou estar certo sobre 100% das coisas sobre a própria vida, inclusive que amaria uma só pessoa pra sempre, se ver totalmente desestabilizado por outra, de uma forma que nunca nem sequer imaginou ficar.
— …
— Você precisa entender que não importa como aquela carta chegou nas mãos da Amelia, nem mesmo sobre o que diz, porque o conteúdo dela não faz sentido algum. É a mistura mais louca de palavras que alguém pode ler. Ela é dividida entre dois momentos malucos, o começo que fala sobre um amor idealizado que eu pensava que sentia, e no fim… Sobre um amor nítido e real que você tanto me falou. Porque eu já sentia, já me referi a você nessa parte, já pensava que você era a garota que eu queria que lesse, é recheada de você. E por não perceber isso mais cedo, posso ser considerado o maior imbecil do mundo de novo, um babaca desonesto como você sempre diz, porque pensei que poderia jogar com meu próprio coração. Que venceria qualquer influência contrária que ele pudesse me impor, qualquer ideia descabida que fosse contra os malditos planos, mas eu perdi. Eu realmente perdi, .
A respiração dela escapava em silvo. Ela queria que seu coração parasse de bater tão rápido para que pudesse escutar as palavras de com mais clareza, que ele se aproximasse mais, mesmo que estivesse a centímetros dela, que a olhasse com tanta confiança e desespero através da chuva, que a chamasse claramente para se aproximar também.
Mas parecia ser informação demais para sua cabeça. As verdades daquele dia tinham oscilado muito em um recorde de tempo, e agora ela parecia ainda mais confusa.
Uma confusão que desejava ser verdade, desejava alucinadamente.
— Eu… Eu pensei que… — ela respirou fundo, erguendo os olhos para ele, soltando uma risada nervosa. — Não pode usar referências de jogos comigo em um momento como esse.
A mínima risada dela era tudo que ele precisava. Se arriscando a levar um tapa ou coisa pior, diminuiu o espaço entre eles, tomando-a nos braços e matando o desejo que sentia desde que acordou naquela manhã. Ou bem, bem antes disso.
Ela não se viu corajosa o suficiente para quebrar o beijo. Ou negar, seja por qualquer forma, que estava sentindo a mesma coisa. De jeito nenhum. Passou os braços por trás de sua nuca e levantou um pouco os pés a fim de ficar ainda mais perto dele. Como tinha visto num filme antigo uma vez, como sempre imaginava que faria quando estivesse frente a frente com a pessoa que faria seu coração se comportar de forma avassaladora. Não existia a opção de deixar aquele momento passar.
E ela sentiu verdadeiramente o que era viver o amor que tanto descrevia. Sentia isso emanando dele também, sentia até o fundo de seu coração.
Ao abrir os olhos novamente, teve certeza de que estar vivo no presente era o melhor plano que pudesse ter feito.
— É verdade que você bateu no Hendery? — ela perguntou repentinamente, um segundo antes do garoto se inclinar mais uma vez para repetir o beijo.
Ele levantou as sobrancelhas, enquanto ela sufocava um sorriso.
— Ah… Não foi bem isso, eu só joguei a bola de basquete com um pouco mais de força. — ele respondeu, desconcertado, rolando os olhos de forma atrapalhada. — E talvez tenha ido parar no olho dele, e ele tenha ficado desacordado por mais de meia hora e- Calma, como você ficou sabendo de uma coisa dessas?
— Isso importa? — ela deu de ombros. — Quero saber porquê Lee se tornou um cara violento do dia pra noite.
— Acho melhor sairmos da chuva…
— .
— Porque ele riu da sua carta. — ele suspirou, deslizando os dedos pela nuca dela, da onde não tinham saído. — E por mais que talvez ele não tenha rido por mal e sim porque é tão burro que não entendeu uma palavra sequer, na hora eu só quis sei lá, matar ele.
Ela gargalhou, mais alto do que esperava, enquanto afogava a cabeça no peito dele, tentando imaginar a cena. Ele acompanhou a risada dela, mesmo ainda parecendo um pouco constrangido pela atitude atípica que tomou com o colega.
— Tá legal, agora eu realmente preciso tirar você daqui. — ele pegou na mão dela, puxando-a para o carro estacionado no meio fio, aliviado por ninguém ter chamado um guincho nesse meio tempo.
Talvez tenham se compadecido por um garoto que só queria confessar seus sentimentos.
— Mas pra onde nós vamos? — ela perguntou quando ele abriu a porta do carona.
Ele deu de ombros junto com um sorrisinho insinuante que sempre destrambelhava a cabeça de .
— Vamos viver um romance de verdade.
FIM.
NOTA DA AUTORA > Oiê!
eu sinto que preciso dar umas explicações mais detalhadas sobre o fim mixuruca dessa fic. primeiro: eu tava limitada a 40 míseras páginas pra desenvolver essa história, o que, como a gente comprovou, deu pra nada, mas serviu pra passar a ideia (sendo otimista). segundo: eu pensei sim em desenrolar toda essa parte da aproximação deles, a escrita da carta, o processo de paixonite do menino Mark com a pp, mas confesso que a vontade tá quase nula. mas eu tenho uma afinidade pela democracia, então, se bastante gente pedir, quem sabe rsrsrsrs.
ademais: obrigada a você que leu, espero que seu tempo gasto aqui tenha sido muito bem aproveitado. não esquece de deixar um comentário e me segue no instagram (@sialversion) pra ver mais fics minhas postadas.
beijos,
Sial.
eu sinto que preciso dar umas explicações mais detalhadas sobre o fim mixuruca dessa fic. primeiro: eu tava limitada a 40 míseras páginas pra desenvolver essa história, o que, como a gente comprovou, deu pra nada, mas serviu pra passar a ideia (sendo otimista). segundo: eu pensei sim em desenrolar toda essa parte da aproximação deles, a escrita da carta, o processo de paixonite do menino Mark com a pp, mas confesso que a vontade tá quase nula. mas eu tenho uma afinidade pela democracia, então, se bastante gente pedir, quem sabe rsrsrsrs.
ademais: obrigada a você que leu, espero que seu tempo gasto aqui tenha sido muito bem aproveitado. não esquece de deixar um comentário e me segue no instagram (@sialversion) pra ver mais fics minhas postadas.
beijos,
Sial.