Revisada por: Saturno 🪐
Última Atualização: 12/06/2025espirrou, esfregando as costas da mão no nariz avermelhado com irritação. Quando ela era mais jovem, costumava amar o sótão. Era como sua própria casa assombrada, apenas a alguns passos e uma pequena escada de distância da sua cama quentinha e segura. Isso até seu pai construir uma casa na árvore para ela e suas escaladas começaram a permanecer do lado de fora do seu lar.
A garota, no entanto, nunca deixou de romantizar aquele cômodo da casa que quase nunca era visitado, a não ser quando sua mãe queria guardar algo velho para dar espaço a coisas novas, ou quando seu pai queria manter os velhos brinquedos dela a vista, resistindo a acreditar que sua garotinha estava crescendo além dele. Mesmo quando ela saiu da cidade para cursar faculdade no outro canto do país, em sua mente, o sótão sempre estaria lá: protegendo suas lembranças como um velho amigo que não te deixa esquecer de onde você veio.
Em retrospecto, nunca se questionou o motivo da sensação de segurança que aquele lugar trazia. Cada canto da sua casa tinha uma boa memória: noites de cinema na sala, preparando uma guloseima com seu pai na cozinha, aprendendo a fazer a maquiagem como nos anos 80 com a mãe no banheiro, correndo no quintal com seu cachorro de infância. Se as paredes falassem, elas só cantariam sobre o amor.
Claro, havia momentos de brigas. A fase rebelde dos 13 anos, a raiva de tudo e todos que a atingiu na adolescência. Achar que está sempre certa e sabe de tudo dura até os 18 anos e, então, você é cuspida no mundo real e tudo parece incerto e assustador. Mas ele sempre teve um lugar para voltar.
E aqui estava , no auge dos seus 20 anos, assistindo a poeira cintilando sobre os raios de sol que entravam pela única janela redonda do seu lugar seguro e esquecido. Ela uniu as sobrancelhas, aperreada pelo cheiro de velhice que a atingia. Aquele lugar parecia intocado pelo tempo, como se tivesse esquecido que as horas passavam para todos. A garota suspirou, seu aborrecimento diluindo em melancolia.
Ela não podia odiar o sótão pelos mesmos motivos que havia se apaixonado por ele em primeiro lugar.
Havia um reconhecimento naquelas caixas. Parecia dura por fora, até feia, sem qualquer significado. Ainda assim, a cada uma que ela a primogênita abria, uma onda de pertencimento a banhava — com espuma de areia do tempo, também conhecida como muita poeira.
Em algum lugar dentro de si, quase sentiu como se pertencesse ao passado ao abrir aquelas memórias que mal eram suas.
A Barbie cantora que havia ganhado da tia quando era pequena. O seu skate, que durou duas semanas até ela perceber que o esporte definitivamente não era seu forte. Os jogos de tabuleiro que todos costumavam jogar nas reuniões anuais, que foram gradativamente substituídos por outros, exceto o D&D, que havia se tornado uma regra votada pela maioria, à contragosto de alguns que encaravam esses momentos com uma simpatia disfarçada. O uniforme da escola fundamental. Os seus óculos de sol enfeitados com glitter e lantejoula, que seu pai havia ajudado ela a criar (e ele ainda guardava o dele em sua penteadeira). Havia tantos pedaços dela ali que, às vezes, a morena queria conseguir pegá-los e os encaixar de volta, talvez não se sentisse tão sozinha assim.
A universitária bufou para si mesma. Aquilo era ridículo. Ela estava mesmo se sentindo solitária por conta de um feriado idiota? Certo, era o seu primeiro Dia dos Namorados sem um namorado. Mas com certeza conseguiria um cara se ela quisesse! Ela nunca tinha tido problema nenhum com isso. Entretanto, era maior do que um encontro. Esse era o primeiro ano dela na faculdade da Califórnia: longe dos amigos, longe da escola, longe dos seus pais, longe de tudo que ela conhecia.
O fato de ser o feriado mais romântico da terra não ajudava em nada aquela agonia de sentir que estava fora de hora, que estava perdendo algo.
A menina bufou para si mesma, empurrando a caixa com o nome escrito na frente. Ela levantou, escutando os ruídos do chão de madeira enquanto andava pelo sótão, como se o lugar estivesse se reacostumando a tê-la por lá.
Pela porta aberta, conseguia ouvir seus pais rindo na cozinha. Se fechasse os olhos, conseguia imaginar a cena: sua mãe sentada no balcão, sorrindo como uma adolescente apaixonada, enquanto seu pai estava de costas, cozinhando algo e virando para trás incontáveis vezes apenas para roubar mais um olhar dela, tal qual um garoto com seu primeiro amor.
Aqueles dois estavam tão conectados que pareciam um só, era impossível desembaraçar a paixão deles. Ela esperava que, um dia, pudesse encontrar alguém que a amasse assim. Que pudesse amar alguém assim.
— Você vai queimar o macarrão se continuar me olhando! — As paredes da casa ecoaram a voz da matriarca, uma repreensão englobada no tom risonho que só o marido conseguia arrancar dela tão facilmente.
— Bem, você pode me culpar por isso? Você está linda.
— Eu estou uma bagunça. — apostaria todos os seus 20 dólares que sua mãe estava revirando os olhos e corando para o flerte descarado do pai.
— A bagunça mais bonita que eu já vi.
— Que nojo, tem gente em casa! — gritou, antes que os dois começassem a se beijar. O sótão era perto demais da cozinha, e ela não precisava de mais traumas com a demonstração de afeto exagerada deles, obrigada.
— Desça e venha comer! Está quase pronto!
— Eu já vou!
Honrando a teimosia herdada da mãe, ela não foi. Ao invés disso, prosseguiu bisbilhotando as caixas, distraída pela ilusão de eras mais simples, até que quase tropeçou em um dos compartimentos. Arqueou a sobrancelha, tomada pela curiosidade, e se debruçou sobre o cubículo de papelão. O nome dos pais estava escrito no lado da caixa, junto década anos 80.
Ao abrir aquilo, se deparou com um monte de bugigangas. Tudo parecia ter saído diretamente de um filme antigo. Câmera Polaroid, vinil, VHS, cadernos desgastados, brinquedos que deveriam ter sido dos seus pais quando eles eram crianças. Ela limpou a mão na saia de cetim, deixando a poeira manchar sua roupa; surpreendentemente, não havia qualquer resquício de mofo nos objetos.
Deu de ombros, estava mais preocupada em cutucar nas relíquias dos seus pais. O murmurinho deles no presente sendo sobressaído pela ideia deles no passado. A garota se perguntou se eles já tinham se sentido tão perdidos quanto ela na sua idade.
Uma coisa em particular chamou a sua atenção. Um cassete player. O tocador de música era preto, com detalhes prateados, e dispunha dos mesmos botões dos aplicativos: play, pause, rewind, forward. Ela pegou o objeto em mãos, rindo ao perceber que era do tamanho da sua mão, apesar de ser um pouco mais pesado do que imaginava. pressionou uma rolagem lateral do aparelho, fazendo com que ele abrisse e ela desse um pulo, assustada.
— Não é tão difícil — resmungou para si mesma, assentindo satisfeita ao perceber que já havia uma fita dentro do walkman. — Ótimo. Cadê o... Achei!
Apanhou um velho modelo de fones de ouvido e os colocou, conectando o cabo no cassete. Já conhecia o gosto musical do pai e da mãe, só esperava que não fosse uma música brega e, sim, uma das boas.
— I hear the drums echoing tonight, but she hears only whispers of some quiet conversation — o walkman cantou em seu ouvido. O som não era tão nítido quanto a internet proporcionava, alguns chiados aqui e ali, como os walkie-talkies que seu tio havia dado de natal alguns anos atrás. sorriu para si mesma, englobada em seus devaneios como uma criança em um cobertor quentinho. — She's coming in twelve thirty flight, the moonlit wings reflect the stars that guide me towards salvation.
Conhecia aquela música muito bem. Mais do que cantos de natal ou melodias de carnaval. Era a canção deles, dos seus pais. Estava presente no vídeo de casamento e tocava em todo aniversário de casamento. Era tão pateta, de um jeito muito fofo que ela jamais admitiria.
— I stopped an old man along the way.
O ritmo foi interrompido, a cantoria puxada de lado em uma desordem que o fez parecer um integrante de filme de terror que mudava de timbre. A fita parecia estar enguiçada, mas, quando encarou o cassete ainda aberto, as engrenagens continuavam girando normalmente, sem qualquer pista do motivo daquele defeito. Ela deu de ombros, pensando que devia ser o preço de ser algo envelhecido.
— Hoping to find some old forgotten words or ancient melodies.
A melodia voltou ao normal por um segundo, até começarem os chiados. No início, eram baixos o suficiente para parecerem parte do modo vintage de ouvir música.
— He turned to me as if to say.
O ruído era tão alto quanto turbinas de avião direto em seu ouvido. O som semelhante a unhas arranhando um quadro. Todo o sótão pareceu esfriar. A poeira, antes descansando sobre os objetos antiquados, se ergueu como se quisesse transformar em uma memória também. A garota sentiu o peito pesado, parecia que alguém estava tentando arrancar seu coração. Sua garganta estava fechando, o mofo entrando em suas veias de uma maneira que não era possível, não devia ser possível.
— Hurry, girl, it's waiting there for you! — disse uma voz monstruosa, grossa, sem emoção. sentiu calafrios quando aquela pessoa, se é que era um humano, reverberou em seus ouvidos, roubando o lugar da música romântica.
E, de repente, tudo escureceu.
1986, Hawkins, Indiana
Todos encaravam a garota sem saber o que fazer. Até mesmo Nancy Wheeler, que havia liderado o grupo na última tentativa de vencer Vecna, parecia confusa ao encarar a mulher que havia aparecido, do dia para noite, deitada no sofá do porão da sua casa.
Mike residia no sofá do lado de El, aliviado pela namorada conseguir ter, ao menos, alguns minutos de descanso. Ele tentou focar nisso, e não na maneira que sua mente corria ansiosa ao pensar no que eles estavam enfrentando, e no que isso custaria a ela. Talvez essa nova integrante pudesse ajudar, certo?
Lucas suspirava ocasionalmente, impaciente por não estar no hospital com Max. Horários de visita idiotas. Já Dustin, estava comendo os chips de Harrington da maneira mais barulhenta possível.
Jonathan se encontrava encostado na parede, hora conversando com Will, que parecia amuado com algo, outrora ao lado de Nancy, que franzia a testa com preocupação mais e mais a cada minuto.
Steve estava sentado ao lado da Wheeler mais velha, esperando por algum sinal de vida da estranha, ou alguma ordem de Nance. Robin perambulava pelo cômodo, listando os prós e contras de tentar acordá-la.
— Ela pode ser um dos soldados do Vecna. Ou... Ela pode ter raiva.
Harrington revirou os olhos.
— Dá para você superar o lance da raiva? Ninguém tem raiva.
— Sério? Que médico olhou essa mordida nojenta e te disse isso?
— Pelo menos vai ficar uma cicatriz maneira — disse Argyle, sorrindo sem qualquer preocupação no mundo, um efeito colateral de estar chapado.
— Se ele não morrer antes... — Dustin acrescentou, jogando uma batatinha pringles entre os lábios e mastigando de boca aberta.
— Vocês podem parar? Eu não tenho raiva e não vou morrer. — Steve bufou, desviando o olhar da bela adormecida para o Henderson. — E dá para parar de comer de boca aberta?
— Você também faz isso!
— Mas não na frente das garotas, hein? — Buckley piscou para ele, e Harrington respirou fundo, pensando no que ele havia feito para merecer isso.
— Calem a boca! Ela está acordando — disse Nancy, com aquele tom inquisitivo que ela havia aprendido a usar para chamar a atenção de Mike quando ele roubava suas bonecas para fazer parte das campanhas de D&D.
As pálpebras de tremeram e, assim que abriu os olhos, ela se sentou no sofá com um arfar. A garota levou a mão até o peito, se encolhendo no sofá enquanto olhava ao redor. Arregalou as orbes, surpresa com a quantidade de rostos conhecidos, mas décadas mais jovens do que deveriam ser. Ela tinha inalado muito mofo? Estava tendo um surto psicótico com as últimas fotos que tinha visto no sótão?
O grupo levantou. Steve tomando a frente, incerto do que aquela estranha iria fazer, apesar de não sentir que ela era uma ameaça. Nancy colocou a mão no cós, pronta para pegar a arma caso precisasse. El, mesmo fraca, ergueu o braço, disposta a fazer o que precisasse para salvar seus amigos. O resto permaneceu estupefato, encarando a mulher sem dizer nada. A respiração ofegante deles era tudo que preenchia o silêncio da sala, até que finalmente disse:
— O que porra está acontecendo?