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Codificada por: Cleópatra

Última Atualização: 03/10/2024


Eu sempre gostei de estudar. Nunca fui o tipo de criança que chorava na porta da escola para não entrar. Nunca fui o tipo de adolescente que cabulava aula. Na faculdade, apesar de todas as adversidades, eu ainda tinha uma das maiores médias da turma. Entretanto, existiam exceções para minha vibração com os estudos. Sabe aquela aula tão chata que você não conseguia manter seus olhos abertos? Quando uma piscada que deveria durar um attosegundo, acaba durando três segundos? Isso resume bem o que era a aula do professor Victor.
Graças a ele, eu havia desenvolvido uma técnica, que metade da sala já havia aderido: Anotar cada palavra do professor. Eu apostava comigo mesma que conseguiria anotar um parágrafo inteiro sem interrupções, para isso eu tinha que escrever bem rápido. O professor Victor ajudava bastante, já que ele sempre falava como se estivesse com cinco batatas na boca e numa lentidão terrível. No final, todos comparavam seus cadernos, se alguém estivesse com uma frase a menos que todo mundo, já sabíamos que essa pessoa havia perdido um parágrafo.
Eu já estava igual um zumbi, sentia meus olhos arderem, mas esse método mantinha todos acordados, gerava uma divertida competição e ainda éramos obrigados a prestar atenção na aula. Às vezes, ficava um pouco confuso, mas na prática geral, funcionava direitinho.
– Julie? – Ouvi a voz de Toni chamar meu nome em uma cadeira atrás da minha, mas não quis me mover. Olhei para o lado, preocupada com a disputa e notei que Bela escrevia tão rápido que já tinha uma frase inteira antes da minha. – Quer que eu passe na sua casa hoje?
Franzi a testa, em dúvida sobre o que ele estava falando. Inclinei meu corpo um pouco para trás, tentando ouvi-lo melhor. Toni foi um dos primeiros amigos que fiz em Hillswood. Fizemos nosso primeiro projeto de área juntos, nos tornamos bem próximos após isso e eu até conheci sua adorável família.
O "adorável" foi ironia.
– Para quê? – Questionei, confusa. Resmunguei quando precisei pular uma grande quantidade de palavras para chegar na frase atual do professor.
– O aniversário da Heide. Você esqueceu? – Reclamou, cutucando meu ombro. Eu tinha esquecido completamente, é claro. Com o semestre chegando ao fim e minha vida amorosa explodindo de uma forma diferente a todo final de semana, eu acabava ficando bem alheia a tudo em minha volta. – Droga, Julie! Você me prometeu...
Toni era o típico "pobre menino rico". Ele não se adequava aos padrões que sua família, podre de rica, impunha sobre ele.
Começando pelo fato de ser uma família cristã ortodoxa e ele era bissexual assumido. Acho que só não o expulsavam de casa pois ele era inteligente e estava sempre salvando a editora da família de afundar-se em polêmicas e mal gosto. Apesar de todo o dinheiro e status, o homem não gostava nada da vida que levava. Ele, na verdade, sempre quis ser pintor.
Heide, sua irmã mais velha, era diferente dele. Ela era atriz e cantora, já havia até participado de um musical na Broadway. Heide era uma mulher legal, mas sua criação no meio do luxo e riqueza acabaram deixando marcas fortes em sua personalidade. O nariz empinado e o esnobismo era uma delas. Apesar de eu ter problemas com gente rica, acabamos nos tornando amigas. Eu adorava musicais e Heide encontrou em mim uma parceira em potencial para suas festas musicais, já que Toni fugia dos padrões impostos sobre gays/bissexuais e odiava musicais.
– Ah! É claro que eu não esqueci! É que eu estava concentrada aqui. – Larguei a caneta, olhando para os lados, vi Bela e Ed sorrindo debochados ao perceberem minha desistência. Aceitei a derrota no jogo que eu mesma criei. – Que horas? É hoje mesmo?
– Posso passar às 22h? – Concordei, assentindo. Sorria, mas por dentro, quis morrer.
Quando voltei às aulas, após o acidente, a psicóloga da faculdade achou melhor que eu me focasse apenas em uma coisa de cada vez. Na semana seguinte, eu já havia pedido demissão do Daily, jornal em que eu trabalhava e que era culpado pelos meus recentes surtos. Mas é claro que eu não ficaria quieta, focada em apenas uma meta. Agora eu era monitora da disciplina Ética Jornalística. Com meu recente desemprego, eu tive tempo o suficiente para melhorar minha situação na faculdade e agora eu tinha tempo para dar aulas todas as quintas e sextas.
A aula terminaria 20h e eu tinha monitoria até às 21:30. Como diabos eu ia ficar apresentável para uma festa de aniversário da família Hall em 30 minutos? Eu já tinha experiência o suficiente com eles para saber que não importava o quanto diziam que as festas eram simples, eu não acreditava. Sempre envolviam gente rica, vestidos elegantes e ternos caros. Eu só queria saber disso na primeira vez que fui em uma festa deles.
Saí correndo pelo campus até meu carro assim que minha monitoria chegou ao fim. Fui o caminho inteiro arriscando minha segurança, procurando fotos de penteados no celular. Quando cheguei, entrei correndo no apartamento, mas parei no meio do caminho. Jack, Cam e estavam na sala com Dana. Já tinha se tornado um costume vê-los ali. Era até estranho eu chegar em casa na sexta-feira e eles não estarem na minha sala, planejando ficar bêbados ou já bêbados, o que parecia ser o caso naquele dia.
– Julie girl! Finalmente! Vem beber com a gente. – Empolgado, Jack esticou os braços para cima assim que me viu entrar no local. – Hoje é uma noite de comemoração!
– Comemoração? – Questionei, confusa. Apressada, quase não prestei atenção no que meus amigos falavam. Fui em direção a geladeira, abrindo-a, sem realmente pegar nada lá de dentro.
– Eu e Dana fomos contratados, como você já sabe. – Cam citou e eu assenti. Cameron e Dizzy, que viviam fazendo bicos em uma empresa de marketing, foram contratados, finalmente. Observei que minha mesa estava cheia de porcarias, embalagens de lanches, refrigerante, garrafas de cerveja. Me perguntei desde que horas eles estavam ali. – Jáck conseguiu transar com a polaca e vai viajar amanhã!
– Viajar? Polaca? Vocês não estão fazendo sentido algum. – Reclamei e antes de abaixar para desamarrar o tênis, dei uma olhada em . Ele desviou o olhar assim que o olhei, não parecia estar cintilando de felicidade, para falar a verdade.
Á alguns dias atrás, havia me contado que iria ficar fora durante seis meses (ou mais). Desde então, nós não havíamos tido muito tempo sozinhos. Ele estava ocupado demais com a preparação para a pequena turnê e nos dias livres, saíamos todos juntos, curtindo nossos momentos juntos antes da ausência de .
– Ele vai viajar hoje, lembra? Ah, Julie, só faltava você aqui! – Jack abraçou-me pelos ombros e virou um shot de vodka na minha boca, de surpresa. Fiz uma cara feia quando senti o líquido arder no meu estômago, lembrando-o que eu não comia nada desde o almoço.
Turnê de seis meses.
– Lembro, sim. – Afirmei, atordoada. É claro que eu lembrava, porém parecia fazer anos desde que comentou a data de sua ida. Não consegui nem pensar direito, o fato dele estar indo despertou uma queimação em meu estômago. Ou talvez fosse a vodca pura. Talvez. – H-hoje eu não posso.
– Mas eu comi a polaca! – Jack gritou, como se estivesse lidando com o maior e melhor feito da face da terra.
– Ele comeu a polaca! – Dana tentou, mas eu neguei com a cabeça. Eu não conseguia desviar os olhos de , este, porém, não desviava os olhos do celular.
– Hoje é aniversário da Heide. Eu esqueci, mas vou ter que ir. – Esclareci a todos. – Já havia prometido.
– Então, você vai trocar a gente por aquele bando de gente fresca que gosta de cantar? – Dana perguntou, fazendo careta para mim.
– Ei, cadê o respeito? é um cara fresco que gosta de cantar! – Cameron abraçou de lado. Olhei para o tempo todo, mas quando ele me olhou, desviei o olhar.
– Está tudo explicado agora, oras.
Julie gosta de gente fresca, é um cara fresco, logo...
– Desculpa, gente. Hoje não dá. – Interrompi Jack antes que ele completasse a frase e eu morresse de vergonha. – A gente pode curtir se vocês ainda estiverem aqui quando eu voltar...
Corri para o meu quarto antes que alguém falasse mais alguma coisa. Tudo o que fiz em seguida foi como se eu estivesse no modo automático, pois eu só conseguia pensar em um duas palavras.
Seis meses.
Tomei um banho em tempo recorde, enrolei-me na toalha e fiz a melhor maquiagem que eu sabia fazer, o que não era muito. Depois de um tutorial rápido na escola de moda chamada YouTube, fiz um penteado no meu cabelo de modo em que ele ficasse amarrado, quase como um coque. Parecia meio solto, mas a moça do YouTube garantiu que estava tudo bem. Coloquei minhas lentes de contato e só não sabia passar a porra do delineador, porque isso já era pedir demais da minha coordenação motora recém afetada. Corri até a sala, segurando a toalha em meu corpo.
– Amiga, me ajuda? – Pedi, entregando o delineador na mão dela e me sentei ao seu lado no sofá.
– Belo vestido, Julie. – Cam debochou da toalha amarela do Piu Piu que cobria meu corpo. – Vai conquistar todos os rapazes da festa desse jeito.
– Cala a boca. – Resmunguei, tentando não me mexer enquanto Dana fazia a mágica em meus olhos.
– Pelo menos é fácil de tirar. – Jack também entrou na brincadeira, puxando a barra da minha toalha.
– Sai! – Empurrei-o com uma perna, sem me importar com minha calcinha aparecendo. Todos riram de Jack, que continuava a beliscar minha perna. O interfone tocou nesse instante, devia ser Toni. Ele e sua mania de ser irritantemente pontual. Dana anunciou que estava pronta e eu corri para atender seu segundo toque.
– Estou aqui, vamos. – Toni, irritantemente pontual.
– Estou quase pronta, Toni. Quer subir? – Não esperei sua resposta, apenas desliguei e apertei o botão para abrir o portão.
– Espera, você vai acompanhada? – Jack perguntou, meio surpreso e sendo nenhum pouco discreto, olhando de esguelha para .
– Com o Toni? – Dana ergueu uma sobrancelha, também curiosa.
– É só uma carona, gente. A festa é da irmã dele. – Justifiquei, não conseguindo não olhar para . Ele desviou o olhar antes que eu o olhasse, abriu a garrafa de vodca e se serviu.
Desde a notícia da partida de , parece que suspendemos todos nossos assuntos pendentes e passamos a apenas aproveitar os momentos com o grupo todo reunido. Nossa situação com Dana acabou ficando para trás. Dana já não comentava nada. Nem ele insistia em querer conversar. Parece que todos nós entramos em um acordo silencioso de ignorar tudo que se passou.
E entre nós... Bom, eu fiz merda, como sempre. Na noite em que o cantor me contou sobre a turnê, não conversamos. Eu apenas disse que estava com sono, e ficamos os dois ali, deitados lado a lado, fingindo estar dormindo para não ter que falar sobre o nosso futuro.
Corri até meu quarto, jogando a toalha na cama. A campainha tocou e eu gritei para que Dana abrisse a porta e torci para que eles não massacrarem o coitado do Toni. Sofri um pouco para colocar o vestido já que era bastante apertado no busto, fazendo surgir uns peitos que eu não costumava ter. Peguei uma bolsa carteira prateada, colocando o necessário ali e um scarpin preto comum e confortável.
Olhei-me no espelho mais uma vez, analisando meu corpo inteiro. A barra do vestido estava quase no meio de minhas coxas, fazendo-me questionar quantos quilos eu havia engordado desde a última vez que usara aquele vestido. Eu estava bonitinha demais para quem arrumou-se em 20 minutos.
– Anthony, cuidado com minha garota! – Voltei a sala no momento em que Dana ordenava, com a fala já arrastada e apontando o dedo para o loiro ao meu lado.
– Ela que costuma cuidar de mim, mas eu faço o possível. – Lembrei que quem havia deixado a minha viagem com Neil paga, no fatídico dia do meu porre, havia sido Toni. E não havia sido a primeira vez, cuidávamos um do outro o tempo todo.
– Uau, olha você! Nem parece que estava usando um poncho na aula. – Brinquei, vendo Toni todo elegante em seu terno, encostado no balcão, já com um copo na mão. Meus amigos não suportavam ver ninguém sóbrio.
– Você estava dormindo de olho aberto e com o cabelo na cara, garota. – Nós dois rimos da nossa situação deplorável na aula do Sr. Victor Callam. – Não vem me humilhar, não!
– Então? – Dei uma voltinha na frente dos meus amigos, fazendo meu vestido girar e eu me sentir a melhor pessoa do local.
– Você está tão linda que quando você chegar em casa, eu vou te dar uns beijos! – Dana apontou para mim e sibilando um "prepare-se".
– Eu também! – Jack falou e recebeu um tapa de Cam, negando com a cabeça.
– Você está um poço de lindeza, pequena Julie. – Cameron abaixou a cabeça em reverência, do jeito que sempre fazia, sorrindo. Ele bateu no ombro de Jack e depois no próprio peito, como se dissesse "assim que se fala".
Olhei para , agora em pé, encostado na janela. Esperei que ele falasse algo, mas ele apenas olhou-me dos pés à cabeça, com uma sobrancelha erguida e aquele sorrisinho irritante. Revirei os olhos bem visivelmente, mas não desviei o olhar. Queria obrigá-lo a me elogiar, mas a frase que veio em seguida não me deixou reagir.
– Eu odeio quando você não se comunica comigo. – Arregalei os olhos, sentindo o peso da sua fala me abater imediatamente. O cantor me provocou da forma que mais me envergonhava. Falou sobre nossas pendências na frente de nossos amigos. Meus lábios abriram-se levemente em entendimento quando o rapaz deu de ombros, sorrindo de lado. Era uma cilada.
Eu sabia que ele havia falado isso justamente por conta da minha falta de ação com o seu afastamento. Ele sabia que se estivéssemos sozinhos, eu desviaria o assunto, mas com sua atitude de "chamar minha atenção" na frente de todos, eu teria que falar sobre isso.
Um silêncio constrangedor instalou-se na sala, ninguém sabia o que falar ou fazer para quebrar o clima estranho. encarava-me, sério e inabalável. E eu não desviei o olhar nem por um segundo. Pareciam sair faíscas de provocação e desafio de nossos olhos e nós podíamos nos matar ali menos, só com o olhar.
Céus, como eu sentiria falta dos nossos jogos maliciosos. A maioria das pessoas era contra joguinhos e provocações em relacionamentos, mas e eu vivíamos disso. Era estranho pensar que para muitos isso significava imaturidade, manipulação, mas entre nós não era bem assim que funcionava. Nos chamem de loucos e dissimulados, mas não tinha jeito. Éramos o sinônimo de paixão desavergonhada.
– Uau, eu tenho certeza de que seria divertido ficar aqui, mas... – Toni pigarreou, tentando chamar minha atenção. – Atrasados, lembra?
Assenti, ainda encarando , sem abaixar minha cabeça. Me corroía por dentro não responder sua provocação, mas eu não daria esse gostinho a ele. Ele revirou os olhos, prendendo um sorriso entre os dentes ao notar que eu não revidaria sua afronta. Acenei para meus amigos, querendo ficar ali com eles, mas eu prometi a Toni e também não ia aguentar uma noite inteira de provocações como aquela.
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– Mais um giro e chegamos na porta de entrada, Julieta!
Os pais de Toni faziam questão que ele ficasse até o final da festa, mas já eram quatro da manhã e já tinha tocado a discografia inteira de Rent e vários outros musicais. Eu gostava muito de Rent, mas quando começou a tocar Mamma Mia, sabíamos que era hora de sumir dali ou alguém ia acabar empolgando-se na hora de Voulez Vous. O único jeito de sair sem que os pais dele vissem e nos impedissem era saindo pela porta de entrada, que pelas quatro da manhã, ficava desprotegida. Eu gargalhava enquanto Toni me girava pelo salão ao som de Mamma Mia até chegarmos lá.
Ficamos dançando na porta até Heide parar de fitar-nos, provavelmente entendendo nosso plano, e saímos correndo pelo lobby do hotel até chegarmos no estacionamento. Joguei-me no banco do carro, ofegante e sentindo minhas pernas dormentes por ter corrido com um salto de 15 cm.
– Eu queria entender o porquê que em toda festa que vamos juntos, nós saímos assim, na correria. – Questionei, tentando normalizar minha respiração e ignorar a dor intensa nos meus membros inferiores.
– Eu trago emoção para sua vida. – Riu e deu partida com o carro. Liguei o rádio, ainda arfante. – Se bem que eu acho que você tem emoção o suficiente na sua vida. Não tivemos tempo de conversar hoje, mas foi impressão minha ou era lançando indiretas para você na sua sala?
– Somos amigos... Éramos. – Tentei responder, mas acabei mais confusa. – Eu não sei mais.
– Ok, eu entendi tudo. – Balançou a cabeça em entendimento, olhando-me de esguelha.
– Entendeu o que? – Franzi o cenho, não tendo a certeza se queria ouvir a conclusão de seus pensamentos. – Não há nada para entender.
– Ele quebrou seu coraçãozinho? – Imediatamente, fechei meu rosto em uma carranca. Tudo que eu menos queria era Toni, que não sabia cuidar nem da própria vida, dando uma de conselheiro amoroso para cima de mim.
– Eu, possivelmente, quebrei o dele, mas sabe, isso não é da sua conta. – Enunciei, séria. Mexi meus pés, esticando-os e estalando meu calcanhar ainda dolorido.
– Ok, assunto ruim? – Toni tomou meu silêncio como resposta e parou de questionar sobre o que eu, obviamente, não queria falar. Comecei a puxar assunto com Toni sobre a festa e sobre os vestidos bizarros que vimos por lá, tudo que fosse capaz de tirar da minha cabeça e minha ansiedade em relação a ele.
Dei um abraço forte em Toni antes de sair do carro quando ele estacionou em frente ao meu prédio. O loiro quase chorou em meu ombro depois de me agradecer mais uma vez por ido à festa com ele. Os pais estavam tratando-o como se ele fosse um merda, mas a conta bancária daquela família só respirava por causa dele. Eu desconfiava que esse fosse o único motivo que Toni ainda não havia sido completamente excluído daquele círculo social. Os pais eram uns interesseiros, que não sabia nada sobre finanças e economias, mas também não se importavam em aprender. Apenas queria esbanjar e ostentar.
Observei a Ferrari de Toni afastar-se e continuei em pé, no meio da rua, brincando com o barulho que meus saltos faziam no asfalto úmido, adiando minha subida até aquele andar. Olhei para cima, as luzes do meu apartamento ainda estavam acesas. Eu não queria voltar lá e ser obrigada a aceitar a existência de . Acabei indo de escada, apenas para prolongar o momento ainda mais, no entanto, quando cheguei a porta do 305, não tinha volta.
Quando entrei em casa, dei de cara com uma cena nada inusitada. Cameron dançava em cima da mesa de centro, Dana filmava com seu celular e estava deitado no sofá, gargalhando. O primeiro que eu quis agredir foi Cam, por estar com aqueles pés imundos em cima da minha mesinha. O segundo foi por ter parado de rir e assumido uma postura mais séria assim que entrei na sala. O terceiro foi Jack, que nem estava na sala, mas eu já desconfiava do motivo de sua ausência.
Provavelmente, já tinha apagado de tão bêbado.
– Você chegou! – Dizzy veio correndo até mim, trôpega. Segurou meu rosto entre suas mãos e beijou-me, arregalei os olhos com a atitude inesperada. Cam e começaram a gritar, como se estivesse comemorando um gol.
Os vizinhos deviam estar querendo nos matar e eu definitivamente ia pagar uma multa por perturbar a paz.
– Tira a roupa dela! – Cam gritou, empolgado. Dana desgrudou os lábios dos meus rapidamente e depois juntou-os novamente, sugando meu lábio inferior de leve.
– Eu estou ficando com ciúmes! – acompanhou a gritaria de Cam. Afastei-me dela, rindo. E ela gargalhou, jogando a cabeça para trás, abraçando-me.
– Você está bem? – Segurei seu corpo, que se curvava cada vez mais para trás, pela cintura. – Vamos parar por hoje? Começou a me beijar significa que já está na hora de parar!
– Agora que você chegou, eu posso me retirar desse aposento. – Dana assentiu várias vezes para si, sob reclamações de Cam e . – Jack vomitou até o fígado dele e está dormindo no seu quarto.
Joguei meus sapatos longe, sentindo meus pés quase agradecerem e coloquei a bolsa em cima da bancada. Eu só rezava para que Jack não vomitasse na minha cama, como da vez em que ele vomitou na cama de Dana. Ajudei-a desencostar-se da parede sem cair, Cam e cochichavam entre si, mas não consegui entender nada já que Dana chamava minha atenção.
– Eu vou ali... – A morena foi cambaleante até o banheiro, ela parecia muito concentrada em não cair. Tentei segui-la com os braços em sua volta, mas ela desvencilhou-se de mim. – Dorme no meu quarto, Julie.
Ofereci ajuda, mas ela não respondeu, apenas se dirigiu ao banheiro. Olhei a sujeira que estava minha sala e me surpreendi com o número de garrafas vazias. Eles tinham bebido muito e misturado vários tipos de bebida. Não era de se estranhar que Jack estava quase morto na minha cama. Todo mundo estava destruído demais, não tinha como continuar com a "festa", meu trabalho agora era só deixar todos dormirem seguros.
– E você, garoto? Vamos parar? – Fui até Cam, que ainda estava em pé na minha mesa, e peguei a garrafa de cerveja de sua mão.
– Você acabou com a festa. – Reclamou, fazendo um biquinho triste e pulou da mesa.
– Pode ir dormir no quarto da Dana. – Direcionei ele, que me parou no meio do caminho. O rapaz estava em um estado deplorável. O cabelo todo para cima, olheiras profundas e um short jeans que parecia curto demais para ele. Espera aí... – Cameron, esse short é meu?
– Claro que não! – Bufei. É claro que era! – Espera, eu preciso que você me faça um favor. Eu preciso que você leve em casa – Olhei para jogado no meu sofá, acenando pra mim com um sorriso insolente e bêbado. – Ele vai viajar amanhã, o voo dele sai às 6h.
– Já são 4h! – Constatei, olhando para o relógio na parede oposta.
– E ele ainda nem fez as malas. Eu disse que ia levar ele, mas no momento, eu acho que não é uma boa ideia porque eu estou vendo três de você e você não está bêbada, você está? – Não entendi metade das coisas que Cam disse, mas imaginei que ele queria que eu desse carona para .
– Ele pode pegar um táxi. – Ignorei a verborragia de Cam, pensando num método mais fácil de deixar longe de mim. Eu não queria ter que lidar com um bêbado, provavelmente falante e o pior, irritado comigo.
– Está vendo, Cam? Ela não consegue ficar sozinha comigo. – debochou e eu revirei os olhos. Aproveitei a garrafa de cerveja de Cam ainda pela metade e virei o resto do líquido em minha boca. Se eu tivesse que lidar com agora, teria que ter um pouco mais de álcool no meu sangue.
– Agora é a hora em que eu saio e deixo vocês resolvendo o problema de vocês. – Cameron riu das nossas feições raivosas. Eu nem sei mais o porquê de estarmos irritados um com o outro. Era pura implicância. – Vou dormir com um pijama seu, Julie.
– Chega de usar minhas roupas, Cameron! – Reclamei, rolando os olhos.
Cam ignorou-me totalmente e foi até , eles se abraçaram e beijou sua testa. Mais uma vez, as palavras "seis meses" voltaram a minha mente. O último dia do rapaz na cidade e eu não fiquei com ele nem cinco minutos. Eu definitivamente não chamaria um táxi.
– Cara, amo você. – Cam segurou o rosto de próximo ao seu. Olhei com a expressão debochada para a cena que os dois bebuns dramatizavam em minha frente.
– Eu também amo você, irmão. – Eu não sei dizer se estava emocionado ou apenas bêbado.
– Não, é sério. Você precisa me ligar todo dia! – Apontou um dedo, em tom de ameaça.
– Não pira, Cam! Não vou virar seu namoradinho. Jack vai me matar se eu ligar mais para você do que para ele. – empurrou Cam e ambos começaram a rir. Eu sorri com cena, era invejável o carinho entre eles. A masculinidade nada frágil ou tóxica de ambos deixava tudo ainda mais adorável.
– Verdade, você já tem uma namoradinha. – Perguntei-me de quem ele falava. Eu ou Dana? Ou Jack? – Boa viagem, cara. Avisa quando chegar!
Cam foi cambaleante em direção ao banheiro, mas a porta estava trancada, provavelmente Dana ainda estava lá, então ele simplesmente se abaixou e deitou ali mesmo. Eu ri da situação, sendo consumida pela preocupação com minha melhor amiga e o nervosismo de ter que lidar com .
– Você vai vomitar no meu carro? – Questionei, tentando manter a expressão fechada para esconder minha ansiedade.
– Eu, sinceramente, não sei! – Gargalhou alto como se fosse a coisa mais engraçada já dita.
– Só vou pegar um casaco, aí nós vamos. – Avisei, virando o corpo para procurar o meu casaco.
Foi difícil alguém do meu tamanho ter que praticamente carregar até o carro, foi difícil até chegar no elevador, mas difícil mesmo foi fazê-lo desistir da ideia de ir comprar milk-shake de morango. Eu falo sério quando eu digo que ele abriu a porta do carro em movimento quando eu passei em frente ao McDonald's 24h, ignorando seus pedidos. Acabei dando a volta e comprando-o o maldito milk-shake.
A cena tornou-se sutilmente nostálgica para mim. Eu, dirigindo pela chuva fina, enquanto cochilava no banco ao meu lado, o mesmo que havia acontecido a meses atrás, quando o conheci no Carté. Nas mãos dele, o milk-shake pela metade, quase derretido. Revirei os olhos, odiando-me por ceder as vontades dele. Peguei o copo da sua mão e tomei, sentindo o gosto do nosso beijo no píer.
Talvez essa fosse a intenção, me fazer lembrar do início agora que parecíamos estar no fim.
– Julieta? – A voz baixa e rouca de me chamou de modo suave, arrancando-me da minha lembrança. Eu amava que apenas me chamava pelo nome inteiro. Nem meus pais me chamavam de Julieta, todos só me chamavam de "Julie". Eu gostava disso, pois parecia uma coisa só dele. Coisa nossa.
Eu só conhecia duas Julietas. Julieta Capuleto e Julieta Sobanitela.
De Julieta Capuleto, eu só tinha o azar e o dedo podre para relacionamentos, mas eu tinha muito de Julieta Sobanitela. Ela era uma cantora argentina que tinha os cabelos vermelhos e em todas as vezes que a vi, ela usava um vestido amarelo. Eu sempre a via quando ia à feira do outro lado da cidade aos sábados pela tarde. Eu amava vê-la xingando as pessoas e furtando peras das barracas.
Acho que eu era a única pessoa que gostava de Julieta, o resto do mundo só a via quando ela cantava. E como cantava! Ela dizia que era triste, referia-se a Etta James como Deus e me disse que o amor era superestimado e supérfluo. Um mês depois, eu vi Sobanitela de novo. Estava apaixonada e casada.
Uma vez, contei a ela que meu nome também era Julieta. Ela sorriu, entregou-me uma de suas peras roubadas e disse: "O fardo de ser Julieta só existe graças ao Shakespeare, aquele cuzão". Identifiquei-me pela referência literária, pela incoerência e pela leve inclinação ao antagonismo.
– Você estava simplesmente deslumbrante hoje. – Articulou, lentamente. Estranhei não estar falando exageradamente, talvez ele não estivesse tão bêbado assim.
– O elogio que eu esperei a noite inteira. – Confessei, sem conter um sorriso.
– Você me desculpa não ter falado antes? – Perguntou, achei adorável ao extremo ele estar receoso comigo.
– Antes tarde do que nunca, não é? – Virei o rosto para olhá-lo no mesmo segundo em que ele virou também. Como dois adolescentes envergonhados, viramos o rosto para frente logo em seguida, não suportando o nosso próprio peso.
Parei no início da rua de pedras já tão conhecida por mim. Estacionei e apoiei as mãos no volante. Pela segunda vez, eu não sabia como agir perto dele. Não sabia como dizer adeus, não sabia se o abraçava, acenava. Não sabia o que nós éramos, o que não éramos mais.
Antes que eu fizesse algo, abriu a porta, mas pensou por dois segundos e fechou a porta novamente. Olhou-me interessado, estudando minha expressão.
– Sobe comigo? – Eu não sei o que acontecia comigo quando se tratava de . Eu travava, tropeçava, me atrapalhava, meus pensamentos se tornavam incoerente.
O que era isso, afinal? Eu costumava ser uma pessoa centrada e calma, mas era apenas falar algumas palavras a mais e eu me perdia completamente. Nem era minha intenção tratá-lo mal ou algo assim, eu tinha plena consciência que não o merecia, mas não conseguia evitar questionar suas intenções comigo.
O universo brincou comigo várias vezes, me colocando em histórias de amor como coadjuvante e antagonista, que quando chegou minha vez de ser protagonista, eu acabava pisando na bola e me tornando uma babaca gigantesca.
... – Interrompeu-me, provavelmente percebendo que eu ia dar para trás. Eu nem sabia por que ia dar para trás! Eu estava desesperada para pular no colo dele e beijá-lo a noite inteira.
– Que porra, Julieta? Eu vou embora amanhã, vou sumir da sua vida por um tempo! Será que dá para subir comigo e deixar eu te beijar? Porque eu acho injusto você aparecer assim, estupidamente linda e sair com outro. – Retrucou, meio embolado. Ok, talvez eu estivesse errada e estava um pouco bêbado, sim. Era fácil medir seu nível de álcool quando falava sem parar. – Eu sei que tem alguma coisa acontecendo, e que Dana está no meio disso tudo. Só que eu ainda estou tentando entender muito coisa e você deve achar que eu sou o maior idiota da face da terra, mas será que você pode fazer o favor de deixar eu me despedir de você do jeito que eu quero?
– Você não vai embora para sempre. – Tentei argumentar, sentindo o nervosismo cada vez maior conforme ele aproximava-se. Estremeci quando ele citou Dizzy na conversa, ele sabia? Dana avisaria se falasse com ele. Ambos estavam bêbados demais hoje, poderia algo ter saído sem querer.
– Você é impossível. – Riu sem humor, bagunçou o próprio cabelo e saiu do carro, batendo a porta com força. Trombei a cabeça no volante, sentindo-me uma completa idiota.
estava ali, vulnerável e pedindo por mim. Por mim. Ele passou a noite ao lado de Dana e pediu para ficar comigo. Ele sempre voltava para mim e eu voltava para ele. Eu o queria tanto quanto ele me queria, por que era tão difícil para mim simplesmente deixar essa angústia de lado? Eu não tinha mais dúvidas de meus sentimentos por ele, por que eu não ligava o foda-se e arriscava?
Eu só precisava de dois segundos de coragem.
Sem importar-me com a chuva, sem me importar em estar descalça, estacionei o carro do melhor jeito que pude, sem conseguir conter a tremedeira em minhas mãos. Saí do carro, dando uma corridinha para alcançá-lo e quando cheguei ao seu lado, segurei sua mão. Ele não me olhou de volta, mas deixou que eu segurasse sua mão desajeitadamente. E isso já significava muito.
A casa dele era a última da viela de pedras, então até lá, fui apenas sentindo as gotas de chuva tornarem-se fortes e geladas contra o meu rosto, embaçando minha visão. Tudo o que fizemos desde que entramos em sua casa foi automático e não trocamos uma palavra sequer. fora direto para o banheiro e eu fiquei meio em dúvida do que fazer a seguir, mas lembrei que estava ali para levá-lo até o aeroporto então fui até o quarto dele. Uma mala aberta em cima da cama e uma mochila por fazer deixavam a área ainda mais bagunçada do que de costume. Aproveitei para dobrar algumas roupas amassadas e controlar a ansiedade enquanto ele não saía do banheiro. Engoli em seco quando abri o armário dele e notei-o quase vazio.
Seis meses. Eu ainda não conseguia lidar com a ideia de ficar tanto tempo longe dele. Sentiria uma falta absurda.
entrou no quarto poucos minutos depois. A neutralidade em sua expressão era tradição. Não parecia ter mudado muita coisa, só estava mais esperto. Agradeci baixinho quando me entregou uma toalha. Parou ao lado da cama, encarando-me suavemente enquanto eu parei a ação de colocar suas calças de moletom na mala de modo que não ocupasse muito espaço, para secar meus braços. Não parecia raivoso, nem magoado. Apenas parecia estar esperando por mim, como sempre.
Não me atrevi a fitar seus olhos, com medo de toda a verdade e os variados sentimentos que eu poderia encontrar ali. O silêncio entre nós era incômodo, ele parecia esperar que eu tomasse uma iniciativa, provavelmente, por pirraça. Então, eu só precisei de mais dois segundos de coragem para responder suas perguntas de algumas noites atrás.
– Você a beijou. – Proferi, subitamente, sentindo meus músculos se enrijecerem. Apertei a toalha em minhas mãos, definitivamente nervosa e preocupada com o rumo da conversa.
– Ela me beijou. – Afirmou, já ciente do que eu estava falando, e eu assenti, ainda sem levantar a cabeça.
Eu sabia que sim, mas o que me incomodava em toda essa história, não era tendo lances com outra garota, e sim com Dana, especificamente. Eu nunca tive inveja da minha melhor amiga, mas quando ela chamou atenção dele, mesmo que inconsciente, as coisas mudaram em mim. Se fosse qualquer outra pessoa, como Rachel (a groupie nova iorquina de peitos gigantes), eu provavelmente não ficaria tão mal. Mas era Dana. Eu entendia todos os motivos de alguém apaixonar-se por ela e até achava estranho que alguém não sentisse uma queda por ela.
O controverso de tudo isso é que se fosse qualquer outra pessoa, eu aceitaria a derrota. Mas com Dana, eu me recusava.
– Ela gosta de você! – Cobri minha boca com uma mão assim que percebi a besteira que eu tinha feito ao contar, impulsivamente, o segredo da morena justamente para quem não deveria saber.
Felizmente, (e infelizmente para Dizzy), o cantor não se interessou com o que foi dito.
– E eu gosto de você! – O tom de voz dele parecia o de quem estava explicando 2+2 para uma criança e eu não sei se fiquei feliz com isso. Ele parecia seguro demais de si e de seus sentimentos. Seria mais difícil fugir dele, se ele estivesse certo do que queria.
– Mas ela é linda e incrível, e... – Novamente, fui interrompida.
–Sim, ela é, mas... Que inferno, Julieta! Só você não percebe! Você está sempre aí, achando-se melhor que tudo e que todos, você precisa parar de ficar ditando o sentimento alheio. Você parece incapaz de entender que eu sou louco por você. Nunca sei como devo agir, não entendo seu jeito de pensar. Eu não sou, nunca fui assim, mas você me deixa inseguro como eu nunca fiquei com ninguém. Eu nunca sei com qual das suas 30 personalidades eu vou ter que lidar. Mas adivinha só? Eu gosto de todas elas. Eu sou apaixonado por você, Julieta!
Meus olhos não conseguiram segurar o amontoado de lágrimas que se formaram e eu senti meu rosto umedecer assim que ouvi proferi, suave e contidamente, o que eu sempre quis escutar e nem sabia. Sentou na cama e começou a atirar as peças de roupa restantes de qualquer jeito na mala, o que faltava guardar. Fiquei uns segundos paralisada no mesmo lugar, impactada com suas palavras. Quando percebeu que eu não iria me mover, continuou:
– Nós nos damos bem e seria estranho alguém não a querer, Dana é uma garota linda e qualquer cara daria tudo para ficar com ela. Mas eu olho para você e... É ridículo falar isso, mas parece que meu coração pula no meu peito toda vez que você aparece.
Desde o início, até mesmo quando contei que estava apaixonada por ele, nunca tinha se declarado para mim daquele jeito. Tão seguro de suas escolhas, falava cada palavra com propriedade. E fazia isso com tranquilidade, enquanto jogava as roupas dentro da mala. Eu parecia estar flutuando, então resolvi me mexer e ajudá-lo.
– Você nunca disse nada sobre ela ter te beijado. – Comentei de um jeito que não parecesse acusatório, apenas curioso. Estendi a ele algumas roupas dobradas, que ele atirou na mala de qualquer jeito.
– Porque eu nunca sei o quanto do que a gente tem é real, Julie. – Explicou, pacientemente. – Eu não sabia se você ia ficar chateada, se você não ia ligar, fiquei preocupada com a amizade de vocês. E teve dias em que eu realmente esqueci que esse beijo tinha acontecido. Eu literalmente nunca sei como você vai reagir as coisas, você me deixa...
Ele não completou a frase, apenas esfregou o rosto (coisa que ele fazia constantemente, principalmente quando se sentia cansado ou confuso) e deitou-se na cama, empurrando a mochila preta com o pé para o outro lado e jogou a mala grande no chão, assustando-me com o barulho. Parecia desgastado depois de ter falado tudo o que eu nunca pensei que ele pensava.
Eu subestimei e seus sentimentos, agora estava sentindo-me terrivelmente negligente com o rapaz. Achava que éramos apenas um sexo casual, umas confusões com uma garota sem noção como eu e ponto. Aparentemente, para ele, era mais. E agora eu estava querendo arrancar cada fio de cabelo só de pensar que talvez eu tenha sido tóxica e abusiva com ele.
– Vocês conversaram sobre isso? – Questionei, não aguentando a dúvida. Precisava saber com o que eu lidaria quando chegasse em casa e encontrasse uma Dizzy sóbria. – Você e ela.
– Hoje mesmo, na verdade. Pediu desculpas pelo beijo, estava se sentindo culpada. Falou que tinha estragado tudo para você. – Neguei com a cabeça. A garota só era aberta demais para ignorar e esconder seus próprios sentimentos. – É, eu também não concordei. A culpa disso não foi dela, você ia arranjar um jeito absurdo e estranho de ferrar com a gente.
– O que?! – Abri a boca, indignada, mas meu corpo não obedeceu aos meus comandos e não consegui segurar a risada.
me conhecia bem, mesmo que eu negasse.
– Você sabe que é verdade, por isso está rindo! – Peguei uma camisa dobrada que estava na cama e joguei nele, meio indignada, mas ainda sem conseguir controlar a gargalhada. – Você é neurótica.
Balancei a cabeça, ainda rindo. Eu e , era tão fácil.
Aos poucos, nosso riso foi se dissipando e as dúvidas e lacunas entre nós foram voltando a nossa mente.
– Foi por isso que você sumiu nos últimos meses? Por causa da Dizzy? – Assenti, quase imperceptivelmente. Não queria dar mais informações sobre o sentimento alheio. – Me magoou, Julie.
– Eu sei. – Fechei os olhos, sentindo agonia por conta de sua confissão. O murmuro dolorido, os olhos magoados, foi um golpe baixíssimo. – Na minha cabeça, era o certo a se fazer.
– Talvez até fosse. Eu sei que é sua melhor amiga, que vocês se conhecem a anos e que amizade é acima de tudo para você, mas... – Proferiu, pensativo. – Sei lá, você não pensou duas vezes de me descartar.
Franzi o cenho, confusa. De início, tive dificuldades, mas quando entendi seu raciocínio, suspirei profundamente. Dei a volta na cama, sentando ao lado dele, que continuava deitado. Sorri tristonha, encarando seus olhos, que não deixaram meu rosto por um segundo sequer.
, quantas vezes estivemos juntos desde que você e Dana...? – Não completei a frase, pois ainda era estranho demais dizer em voz alta, então apenas gesticulei.
– Nunca paramos de nos ver. – Respondeu.
– Exatamente. Foi por isso que eu e Dana brigamos na semana passada. – Revelei, finalmente. – Eu nunca consegui me manter longe de você, .
– Então, você gosta de mim. – Concluiu, sua feição se iluminou e mordeu os lábios para segurar um provável sorriso.
– Que pergunta, ! – Rolei os olhos, mas no fundo, senti uma terrível tristeza. Afastei-o tanto que o rapaz chegou a pensar que eu não era apaixonada por ele. – Eu só não queria ficar com alguém que poderia vir a preferir outra pessoa.
– Mas eu não... – Tentou falar, mas eu o impedi.
– Quem me garante que você não vai mudar de ideia completamente? – Exaltei-me. Olhou-me com pena quando me viu com os olhos lacrimejados. – Vai ser demais para mim, ! Não seria a primeira vez, sabe?
Pensei em todo o meu histórico e em todas as minhas histórias de amor que não deram certos. Eu não suportaria perder o cara de novo, e dessa vez, minha melhor amiga ia de bônus.
– Ninguém nunca pode garantir nada, Julieta. Assim como eu não posso te prometer nada, você não pode prometer que sempre vai me querer por perto. Você precisa deixar essa sua insegurança de lado e... – Parou abruptamente, sentando-se.
– E...? – Estendeu uma mão para mim antes de completar. Aceitei e ele puxou-me para sentar ao seu lado. Encostei-me na cabeceira estofada de sua cama, tremi quando ele jogou seu braço por cima das minhas pernas, acariciando minhas coxas levemente.
– Ficar comigo. – Os olhos de pareceram maiores e mais dourados quando emitiu o pedido. Nossa posição apenas reforçou nosso contato mais próximo. Ele estava meio sentado e deitado ao mesmo tempo, de modo que seu rosto ficou na altura do meu ombro quando sentei ao seu lado. – Caralho, Julieta, eu quero ficar com você.
– E eu quero ficar com você, mas... – Não suportei o seu olhar afetuoso em minha direção e não o olhei de volta. Coloquei os dedos pelos seus fios de cabelo na nuca, acariciando suavemente, fazendo-o suspirar fortemente, como se estivesse expelindo toda a exaustão que eu estava causando nele. – Você vai embora, .
A sua feição, habitualmente serena, mostrou-se conturbada e chateada. Eu estava novamente negando os pedidos de , mas dessa vez, eu não estava tendo motivos puramente egoístas.
era um cara de vinte e poucos anos, iniciando a carreira, entrando em uma turnê de seis meses pelo país. A última coisa que ele precisava era de uma namorada prendendo-o. Eu também não estava pronta para ser classificada como namorada de cantor.
Ambos respirávamos pesado e estávamos absortos em nossos próprios pensamentos. Cada um tentando lidar com seus monstros e sentimentos sem forçar nada ao outro. Me peguei considerando aceitar seu pedido, mas eu sabia que precisava ser madura em relação a nós. Perdemos nosso tempo, eu sou a culpada pelo nosso atraso e agora era tarde demais para ficar ao seu lado.
– Você ficaria, se eu ficasse? – Insistiu.
– Você não vai ficar! – Balancei a cabeça e apertei meus olhos. Eu não tinha dúvidas que repetir isso doía mais em mim do que nele. Doía pensar no que poderíamos ser se não fosse por mim. Doía pensar até no que nós costumávamos ser.
– Não vou, mas eu preciso saber se você ficaria! – parecia implorar por uma resposta minha quando eu o olhei. Seus olhos ternos procuravam pelos meus, ansiavam por uma resposta que ele já tinha.
– Eu estou aqui, . – Inclinei meu rosto em sua direção e encostei meus lábios em sua testa.
– Você ficou. – Concluiu, com a expressão exalando entendimento do meu ato. Assenti de leve, sendo avaliada por ele constantemente.
Estar ali com ele, naquele momento, já significava algo. Aquilo já era o meu "sim". Desde o momento que eu decidi descer do carro e correr atrás dele, eu havia dito "sim".
– Eu estou aqui desde o dia em que você apareceu na minha faculdade, afim de me levar para um encontro. Não sei bem o porquê, mas toda vez penso nesse dia quanto tento lembrar quando minha obsessão por você começou. – Deu risada leve com a minha declaração, pegando minha mão e entrelaçando nossos dedos.
Era a segunda vez no dia em que ele fazia isso. Só um recente casal, em exploração de seus próprios sentimentos, saiba dizer que um entrelace de dedos pode ser mais íntimo que um ato sexual em si. Eu e nunca andamos de mãos dadas. Fora a primeira vez que eu senti que eu era dele e ele era meu.
Subitamente, passou o braço em volta do meu pescoço, puxando-me para baixo de seu próprio corpo, deitando e deixando-me por cima dele, em nossa habitual posição. Fez um carinho na minha nuca, fazendo-me fechar os olhos tamanha foi sua ternura. Cegamente, mapeei seu rosto com meus lábios, sentindo cada pedaço de sua pele. Meus lábios, finalmente, tocaram os seus e antes de aprofundarmos o beijo, movi minha língua delicadamente pelo seu lábio superior e me afastei. Ri quando ele grunhiu, irritado.
– Que horas nós vamos sair? – Questionei, preocupada com o horário do voo do rapaz. Revirou os olhos, frustrado com a minha interrupção.
– Não vamos. – Franzi a testa, confusa e ele sorriu ladino. – O pessoal da banda vem para cá às 5h e vamos todos sair juntos.
– Eu achei que fosse precisar te levar no aeroporto. – Comentei, bagunçando seu cabelo, estranhando os novos planos.
– Nah! – Sorriu sapeca e eu revirei os olhos, sabendo o que vinha a seguir. – Foi só mais um dos planos malignos de Cameron Koernig.
– É claro que foi! – Balancei a cabeça negativamente. – Não sei por que não pensei nisso antes.
– Aparentemente, nossos amigos são nossos maiores admiradores. – O rapaz riu, deixando-me com a feição abobalhada. – Já estou com saudades desses idiotas...
Seis meses.
– Eu não acredito que você vai embora! – Exclamei ao fazer um biquinho triste porque senti que ia chorar. A ideia do garoto longe não me agradava em nada. – Uma turnê! , você vai ser famoso!
– Eu não quero ser famoso. Só quero fazer o que eu gosto e ganhar um pouco de dinheiro com isso. – Deu de ombros, colocando uma mecha solta do meu cabelo atrás da orelha.
O penteado permanecia o mesmo e isso me fazia querer deixar um comentário positivo no vídeo do YouTube que me ensinou.
– A consequência disso é a fama, ! – Exclamei. Eu não sei se estava pronta para dividir com o resto do mundo, mas é o preço que se paga, certo? – Eu vou sentir tanto a sua falta...
Antes de ser o cara que eu beijava pelos corredores, era um amigo. Um que eu via quase todos os finais de semanas, que jantava no meu apartamento nas quintas-feiras. Fazia maratonas Marvel com Cameron e eu. Comprava brownies para Dana e sempre era cuidadoso quando Jack ficava bêbado. Seria difícil não sentir saudades.
– Só por uns dias, baby. – Encostou os lábios nos meus, beijando-me rapidamente.
– 182 dias é muito, ! – Choraminguei e prendi minhas pernas na cintura dele. Ficar presa ao corpo dele, enrolada em seus lençóis, não era uma novidade para mim. Tornou-se minha atividade preferida, inclusive.
– Envio nudes para você todos os dias. – Apertou meu nariz, rindo suavemente.
Algo se alertou em minha mente e fui direcionada para a última vez que tínhamos transado.
Flashback.
Eu já sou uma pessoa distraída por natureza, já era bem difícil manter a concentração em algo, mas com o barulho de várias pessoas falando e música no apartamento ao lado tornava-se quase impossível. Naquela noite, eu experimentei o que os meus vizinhos sentiam quando nós fazíamos festas em casa. A irritação acumulava-se em mim a cada gargalhada alta de alguém na sala ou uma batida remixada de alguma música horrível, mas eu explodi em nervos quando alguém se empolgou e começou a fazer um sexo barulhento no cômodo que dividia parede com o meu quarto. O barulho era tanto que me deixou com a boca escancarada pelo choque e susto de uma pessoa desconhecida gemendo alto demais.
Em segundos, guardei meus materiais em uma mochila, coloquei um short jeans e por cima do pijama, coloquei um moletom gigante que havia ganhado de Tom, o empresário de . Era preto e na parte de trás, estava escrito "" em letras garrafais. Enquanto saia do quarto, Dana estava fazendo o mesmo. Rimos ao notar que estávamos vestidas quase da mesma forma.
– Estamos provando do nosso próprio veneno, não é? – Brincou e eu concordei. – Estou indo para a casa do Cam.
– Eu vou...
– A gente se fala depois, beijo! – Não deu tempo para minhas explicações, apenas saiu quase correndo, batendo a porta de casa. Suspirei, sabia que ela não queria ouvir o que eu tinha para falar e contar para onde eu ia.
Procurei outras alternativas que não fossem . Mandei mensagem para Jack e ele demorou demais para responder, então segui em frente e mandei mensagem para Toni, que respondeu com um mísero: "estou acompanhado". Procurei em minha agenda pelo nome de pessoas que eu fosse próxima o suficiente para surgir durante a noite em sua residência. Eu não conhecia tanta gente assim, muito menos tinha tantas amizades.
A biblioteca municipal já estava fechada, eu não tinha dinheiro nem para comprar uma água em alguma lanchonete e não conseguia pensar em qualquer lugar público. Meu dedo automaticamente deslizou para a letra F da minha agenda e eu sorri de lado. Eu sabia que acabaria lá e eu, inconscientemente ou não, desejava por isso. Disquei seu número em um impulso, demorou três toques e ele atendeu.

– Baby! – Aquelas palavras já tão familiares e amadas por mim.
– Está em casa? – Mordi uma unha enquanto chegava a garagem do prédio.
– Não, por que? – Questionou.
– Eu tenho coisas para fazer e não tenho para onde ir, também não dá para ficar em casa agora.
– Você sabe onde fica a chave, ué. – Respondeu sem hesitação e eu sorri com sua frequente gentileza.
– Estou indo para lá, então. Tudo bem mesmo, não é? – No fundo, eu esperava que ele dissesse que não, aí eu cairia na real e voltaria para casa. E desistiria dessa ideia de ficar provocando minha melhor amiga.
Mas nunca seguia meus roteiros imaginários. Sempre indo na minha contramão.
– Claro, Julieta! Anh... Talvez eu demore um pouco. – Sua voz parecia um pouco apreensiva ao me informar.
– Tudo bem, eu posso ir só depois. – Dei uma risadinha, achando fofo sua tentativa de justificativa, tentando não parecer estar dando uma.
– Pode ir agora, sem problemas. É que eu vou num pub com uns amigos e...
, você não precisa me dar satisfações. – Garanti. Sentei no banco do motorista, ligando o carro. – Vou dirigir, a gente se fala depois.
Desliguei o celular, pensativa. Ir para casa de seria sacanagem com Dana? Seria. Eu estava me importando? Não. Eu estava frustrada comigo mesma por não estar me importando? Sim.
Dirigi até o apartamento de , cheia de pensamentos conflitantes, como o usual. Assim que entrei, joguei-me no sofá, liguei o carregador no notebook e mergulhei nas palavras por horas. Eram duas da manhã quando eu finalmente levantei a cabeça e percebi que já tinha estudado tudo. Comemorei igual uma criança, pulando no sofá de sem me importar com o barulho eu poderia estar fazendo ou com os danos ao móvel.
Era a primeira vez desde que eu tinha iniciado a faculdade que eu havia conseguido finalizar várias matérias e revisar tudo. E a melhor parte: Sem me distrair, sem procrastinação, sem enrolação, sem surtar por não entender algo. Eu sabia que isso era efeito dos novos remédios que o psiquiatra havia receitado, então isso se tornou um terceiro motivo para comemorar: Remédios que me deixam viva, sem bater em postes e sem sonolência. Eu precisava tomar remédio para dormir, mas levando tudo em consideração, valia a pena.
Sentia-me muito cansada então voltar para casa nem era uma opção enquanto eu tinha a cama grande e confortável de .
Tomei um banho quente, procurei por alguma roupa intima minha nas gavetas de , porém, não achei nenhuma. Acabei ficando apenas com o moletom. Soltei meus cabelos e me joguei em sua cama. Eu não senti o sono até encostar a cabeça no travesseiro e apagar quase que imediatamente.
Eu teria um sono longo e renovador se eu não sentisse algo cutucando o meu nariz uns dez minutos depois que me aconcheguei entre os lençóis grossos que continham o familiar perfume. Abri os olhos e dei de cara com próximo demais do meu rosto. Seu rosto estava vermelho e ele só ficava assim quando tomava bebidas destiladas, o que parecia ser o caso já que um forte cheiro de vodca emanava dele.
– Oi, meu amor! – Saudou alegremente e esmagando meus lábios em um beijo apertado.
– Você está bêbado. – Empurrei–o, pronta para ignorá-lo e aproveitar meu merecido sono.
– Só um pouquinho. – Exemplificou com o dedo indicador e o polegar. – Como você está? – Perguntou e soltou um soluço logo depois, que me fez rir.
– Com sono e cansada. – Assegurei, voltei a fechar os olhos e tentei dar as costas ao bebum ao meu lado, mas seus braços me impediram.
– Acredita que o Tom me obrigou a tocar no Jaiskai Club? Ele sabe que eu odeio aquele lugar! – ignorou o que eu disse e continuou falando sem parar.
era o segundo pior bêbado de todos nós, Jack continuava invicto no primeiro lugar.
– Eu disse que eu estou com sono, . – Tentei mais uma vez, mesmo sabendo que era quase inútil.
– Você não sabe o quanto eu odeio aquele lugar. Eu lembro de um dia que... – Começou a reclamar, sentando no chão, ao lado da cama e encostando a cabeça na cômoda.
– Eu sei, baby, você passou três horas reclamando quando fomos lá. – Eu o interrompi antes de ele começar a falar e terminar só no outro dia. A melhor estratégia era essa, não o deixar começar a contar histórias.
Ele ficou em silêncio por mais de 5 segundos e eu logo estranhei. Eu não estava brincando quando disse que era o bêbado falante. Nós contamos uma vez. Ele falou sem parar por quatro horas seguidas e a festa durou apenas três. Abri os olhos e ele me olhava sorrindo de canto, seu rosto sempre juvenil me fez sorrir também.
– O que foi? – Questionei, sem conseguir não sorrir por conta do seu sorriso infantil.
– Não consigo odiar nada quando estou com você. – Declarou, com a cabeça um pouco inclinada, como se fosse um filhotinho de cachorro.
Eram por momentos assim que eu explodiria Dana e ficaria com ele só para mim.
– Vem dormir, vem. – Bocejei. Puxei seu queixo para mais perto de mim. Beijei-o de leve, mas logo me afastei ou ele se empolgaria e eu ainda estava cansada e com sono.
– Só vou tomar um banho e já venho. – Depositou um beijo em meu rosto e levantou. Rápido demais, acabou esbarrando em tudo, derrubando a sua estante de quadrinhos e eu também escutei mais alguns sons de coisas caindo vir de dentro do banheiro.
– Nem fodendo que eu vou levantar daqui para arrumar a bagunça dele. – Resmunguei sozinha e me aconchego novamente debaixo dos cobertores.
Cochilei gostoso até meu corpo se arrepiar ao sentir o corpo gelado e emanando o cheiro gostoso do sabonete grudar-se ao meu por debaixo do edredom. Encostei a cabeça em seu peitoral e joguei minha perna em sua cintura.
– Boa noite. – Deixei um beijo leve em sua clavícula, mas é claro que não ia parar de falar.
– Vou passar alguns dias em Chertsey, a gente podia ir à praia quando eu voltasse, que tal? Eu, você, uma pousada, sexo, comida legal, sexo, praia, um pouco de sol, sexo... – Sugeriu, acariciando minhas costas e brincando com meus cabelos.
– Eu disse que estava com sono, . – Reclamei mais uma vez, lembrando-o novamente.
– É só dizer sim ou não, Julieta! – Choramingou enquanto brincava com meu cabelo.
– O que você quiser, baby. – Enunciei, sem realmente confirmar minha presença na sua pequena viagem.
– Preciso tirar uma foto sua depois! – Inclinou-se, murmurou ao pé do meu ouvido antes que eu questionasse seus motivos: – Você, com a bunda de fora e meu nome grafado nas suas costas, é o tipo de coisa que eu gosto de ver quando chego em casa!
Sorri abertamente com seu enunciado. Virei um pouco o rosto para facilitar o caminho dos seus lábios até os meus. As mãos de desceram da minha cintura e infiltraram-se dentre minha camisa, aproveitando-se mais uma vez d'eu não estar usando calcinha. Arfei quando senti Felipe e seus dedos atrevidos brincando de um jeito inocente numa área do meu corpo não tão inocente assim. Meu corpo entrou em alerta geral no momento que apertou seu corpo contra o meu ainda mais.
Soube ali, que nossa noite estava apenas começando.
A lembrança do sexo devasso, lotado de lascívia, provocado pela breve embriaguez de , fez meu corpo esquentar e as partes do mesmo que estavam em contato com ele, pulsaram.
– Por falar nisso, faltam quinze minutos para as 5h. – Olhei o visor do celular de , que tinha uma mensagem de Tom, perguntando se ele estava acordado. – Consegue fazer milagres? – Levantei e fiquei ao lado da cama, de pé e de costas para ele.
– Você está falando do zíper ou...? – Perguntou, confuso e eu quis ver sua feição.
Ainda de costas, eu mesma abaixei o zíper do vestido até o final e deixei o escorregar no meu corpo. Inclinei-me um pouco para sair de dentro do vestido e no ato, fiz questão de empinar meu traseiro do modo mais sensual possível. Quando virei de frente, cravava um olhar totalmente arrepiante em meu corpo. Mordeu os lábios quando viu meus seios à mostra, já que eu não usei sutiã aquela noite.
foi o único homem que conseguiu a proeza de me fazer esquecer todas as minhas inseguranças. Olhava-me como se eu fosse a maior gostosa de todos os tempos. Eu odiava atribuir essa responsabilidade a ele, mas não tinha como negar.
– 182 dias, . – Soltei meus cabelos do penteado improvisado e baguncei-os. Abri sua mesa de cabeceira e tirei dois preservativos de dentro, jogando-os no peitoral do rapaz. – Você tem 15 minutos para me manter satisfeita por 182 dias.
– Talvez eu precise de 20 minutos. – Engoliu em seco quando me viu engatinhando pela cama até chegar a ele. Quis cravar meus olhos nos dele, mas ele estava perdido demais analisando o meu corpo, parado na mesma posição quando cheguei à sua frente. – Meu desempenho pode não ser dos melhores. Me deixa nervoso pensar que tem pessoas vindo para cá nesse momento. Tom tem a chave da casa, sabe? Ele entra quando eu não atendo de primeira...
– Eu não me importo em ter plateia. É até pecado que a população não veja o jeito bonito e gostoso que só a gente sabe fazer... – arfou, jogando a cabeça para trás. Talvez não suportando em me ver na sua posição favorita sem ele por trás, como de costume. Ou talvez estivesse apenas surtando com minha libertinagem.
Soltei um suspiro de aprovação quando, sem aviso prévio, o rapaz puxou meu rosto para si com as duas mãos e logo em seguida eu senti sua língua quente enrolar-se na minha. Afastou-se apenas para dizer:
– Um dia, você ainda vai me matar. E de várias formas diferentes, Julieta Young.
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Um gemido de frustração deixou meus lábios no momento em que abri minha porta e vi minha sala/cozinha em estado deplorável. O cheiro de cerveja, cigarro e queijo embrulhou meu estômago e a careta que surgiu em minha face foi instantânea. Até o chão parecia imundo.
Sabia que, mesmo exausta, não conseguiria pregar os olhos enquanto eu não deixasse aquele lugar, pelo menos, habitável. Comecei separando todos os lixos em categorias. Vidros, plásticos, louça suja e restos de comida. Achei que me ocupando com a limpeza, a imagem de acenando para mim naquele portão de embarque não ia perseguir meus pensamentos. Eu não poderia estar mais errada.
Não conseguia parar de pensar nele e em tudo o que ele me disse naquela madrugada. Em tudo que nós conseguimos fazer em 15 minutos, eu ainda sentia seus toques por todo meu corpo. E o abraço apertado do adeus, tão dolorido. Ainda era difícil acreditar que era tão apaixonado por mim quanto eu era por ele.
– Julie? – Dana apareceu na sala. O rosto amassado e inchado, o cabelo bagunçado, denunciavam seu estado pós álcool. Seus olhos baixos denunciavam uma possível ressaca que estava por vir.
– Oi, como você tá? – Cumprimentei-a. Agachei para pegar uma fatia de pizza que estava grudada no chão e xinguei qualquer um que tenha feito aquilo. Após essa, eu nunca mais arrumaria a bagunça daqueles selvagens.
– Mal, eu vomitei logo depois que você saiu. Chegou agora? – Perguntou-me, confusa ao me ver com as roupas da noite passada.
– Estava com . – Olhei-a de soslaio, atenta a sua reação. A morena apenas deu um meio sorriso e seguiu para a cozinha, indo em direção a cafeteira. – Fui ao aeroporto com ele e o pessoal da equipe.
– E como foi? Aposto que você chorou. – A morena brincou. Sentou no balcão após pegar uma garrafa de água grande e bebeu na boca mesmo, desistindo da ideia do café.
– Eu sou de chorar com despedidas, realmente. – Debochei, revirando os olhos. – Chorei antes, na verdade. Nós conversamos.
– Como foi? – Perguntei, atenciosa.
– Difícil e... Esclarecedor, como eu imaginei que ia ser. – Enunciei, jogando o saco de lixo do outro lado da porta. Desviei o olhar para Dana, que encarava a janela em nossa frente, pensativa. – Como você se sente? Tudo bem eu ter ido lá, não é?
– Eu conversei com ontem, Julie. Eu pedi desculpas por tudo, falei que no dia do beijo, eu estava confusa e estressada. Acabei usando-o, confundindo tudo e etc. – Explicou.
– Você mentiu para ele, então? – Questionei. Dana não estava confusa, nem estressada. Ela nutria sentimentos verdadeiros por , eu sabia disso.
– Claro! Julie, é você. Ele é louco por você. E você nunca esteve tão apaixonada e uma pessoa nunca gostou tanto de você como ele. Talvez Hani, mas ele foi otário e estragou tudo. – Exclamou e gargalhei ao notar ressentimento contra Haniel em sua voz. – Eu conversei com Cameron ontem, sobre algumas coisas. Relacionamentos, a história dele com a ex...
– E você chegou a alguma conclusão?
– Ele falou tudo o que eu estava sentindo sem nem saber, Julie. – Soltou uma risadinha, quase envergonhada. – Eu não sei como ele entrou na minha cabeça dessa forma. Mas cheguei à conclusão de que eu não posso forçar a ter sentimentos por mim, sabe? Eu posso ter me apegado ao imaginário de ser o cara para mim porque eu não tenho ninguém. Ou talvez eu realmente tenha sentimentos por ele. Mas tanto faz, não importa! – Exclamou, coçando os olhos. – Eu acho que você não percebeu, mas vocês já estão em outro patamar! Seria desrespeitoso da minha parte ficar entre vocês agora. Por isso, eu pedi desculpas a ele. E tenho que pedir a você também.
– Você não tem que pedir nada, Dana! – Retruquei, arrancando as luvas de plástico das minhas mãos e fui até a morena. – Tudo o que eu fiz foi por você, sim! Mas também foi por espontânea vontade minha.
– Exatamente, você fez por mim. Você faz tudo por mim desde quando nos conhecemos! Está na hora de me deixar retribuir e fazer algo por você também. E é o começo da minha quitação com você.
O olhar carinhoso que eu via na face de Dana era o motivo de eu não ter dúvidas em relação a mulher. Ela era minha relação mais recíproca, verdadeira. Assim como todos os relacionamentos do mundo, tínhamos nossas diferenças e algumas desavenças, mas no final do dia, ela era por mim.
Me matava notar que Dana Tomanzio, minha melhor amiga, a garota mais bonita do colégio, era tão (ou talvez mais) solitária que eu. Eu não precisava dizer que ela poderia ser muito mais, porque ela já era algo de outro mundo. Mas ela merecia mais, muito mais.
Impactada com as palavras da morena, estanquei no lugar. Estive tão presa em meu egoísmo e em meu mundo que nunca notei a solidão de Dana. Nunca notei que a garota tinha tantas histórias de amor falhas quanto eu. E foi por puro azar que a vida nos fez nos encantarmos pela mesma pessoa.
Larguei a vassoura e ignorei a limpeza e fui me sentar ao seu lado, no balcão. Abracei-a pela cintura, antes que eu pudesse falar alguma coisa, ela enunciou:
– Desculpa por ter feito você desistir dele por mim. Eu sei que compliquei tudo para vocês. – Murmurou, de cabeça baixa.
– Eu faria tudo de novo. – Afirmei, convicta. Encostei meus lábios em sua bochecha e recebi um delicado afago no cabelo. – Eu faria qualquer coisa para você ser feliz, Dana.
– Eu não mereço isso, Julieta. – Retrucou, sentida.
– Você salvou minha vida algumas vezes, pode ter qualquer homem que você quiser! – Exclamei, bem-humorada. Fui bem-sucedida na missão de arrancar uma risada da moça ao meu lado.
Isso era eu e Dana. Como eu disse a algum tempo atrás, sem muitas complicações. Eventualmente, tudo ficava bem.
– Esse é o preço da sua vida? Homens? Porque eu acho que você vale o preço triplo de todos os homens do mundo. – Dizzy exagerou nas estatísticas e acabamos gargalhando juntas.
– Esse é o melhor elogio que uma feminista pode receber! – Sorri quando ela encostou a cabeça em meu ombro. Olhei em volta, prestando mais atenção a minha volta do que o normal.
O lugar ainda estava um nojo, mas o silêncio das 6h da manhã trazia uma calmaria necessária a nós duas, Cameron ainda dormia no chão em frente a porta do banheiro e nossas janelas de vidro gigantescas nos ofereciam o nascer do sol como um espetáculo particular. Parecia perfeito.
Eu, ela e nosso pequeno (e imundo) mundinho.


Ao contrário do que eu pensei, os dias após a partida de passaram de forma inesperadamente ligeira. Com a faculdade tomando grande parte do meu tempo, eu quase não senti falta do rapaz. Eu disse "quase", pois haviam dias em que eu sentia falta até das nossas brigas alucinadas e imprudentes. Sentia falta de servir de motorista para ele e de seus resmungos. E haviam noites que a saudade era grande demais para uma simples ligação me ajudar. Então, a saudade ficava ali, guardadinha e recolhida no meu peito.
Também nos dias seguintes, Dana e eu conversamos muito sobre tudo o que havia acontecido nos últimos meses. Dana deixou claro que ainda tinha uma queda (um abismo) por , mas eu também fiz questão de avisar que desistir dele não era mais uma opção. Ela sempre mudava de assunto, alegando estar envergonhada, disse que nunca mais queria falar sobre aquilo e propôs fingir que nada nunca aconteceu. Nós tentamos resolver até nossas antigas pendências. Conversamos sobre coisas que nunca tínhamos falado antes, como nossa primeira grande briga na época da escola, quando ela se envolveu com um delinquente juvenil da nossa área. No fim, Dana aceitou minha teoria de que ela só havia se metido nessa confusão por conta da reprovação de seus pais com o rapaz. Ela nem sequer gostava dele mesmo, era pura provocação.
A quarta-feira estava agradável, o tempo ameno e, o melhor, sem nuvens. O meu dia estava sendo completamente normal. Eu estava realizando todas as minhas atividades costumeiras: Acordei cedo, fui para a fisioterapia e para a psicoterapia, preparei minhas aulas durante a manhã quando voltei para casa, arrumei a sala, preparei o almoço com o auxílio de minha linda mãe via chamada de vídeo. Fui para a faculdade e assisti minhas primeiras aulas do dia. Até que Gina Callaway, a mulher de longas tranças nagô por todo o cabelo, solicitou minha presença em sua sala.
E meu mundo inteiro virou de cabeça para baixo pela segunda vez no ano.
– Não acho que eu esteja entendendo muito bem, Dra. Callaway. – Pisquei repetidas vezes, alisando minhas mãos ansiosas em minha saia jeans. A sala amarela da reitoria da Universidade Nacional de Hillswood parecia menor a cada palavra da mulher sentada do lado oposto da mesa.
– Toda a direção mudou, Srta. Young. Com isso, nós perdemos grande parte dos fiadores e... – Tentou explicar o que eu já havia compreendido.
– Não, isso eu já entendi. Eu só queria ter a certeza de que estou sendo mandada embora! – Engoli em seco, falando um pouco mais grosseira com Callaway. Minha garganta parecia seca demais, mesmo depois de ter dado um longo gole de água do copo que me foi servido.
– Você foi uma das melhores acadêmicas financiadas que tivemos aqui. Vimos o quão longe você chegou, acompanhamos sua luta contra você mesma, te apoiamos e você foi...
– Ah, meu Deus! Eu realmente estou sendo expulsa. – Obstruí a fala da mulher novamente quando senti o tom de despedida em sua voz. Levantei da cadeira, retirando meus óculos e comecei a ofegar. De repente, parecia não haver oxigênio algum ali. Comecei a mover meus braços para cima e para baixo, afim de gastar toda a adrenalina que meu corpo havia reunido após a notícia.
Eu sabia que a diretoria da universidade havia sido modificada, é normal, acontece sempre que o governo também muda. Eu só não sabia que essa mudança poderia afetar a mim, não sabia que existia mais alguma forma do universo me ferrar. Dra. Callaway contou que, com a mudança de todo o corpo docente do lugar, eles perderam muitos fiadores por conta da mudança política no local e para cortar os gastos, eles decidiram acabar com alguns programas. E como a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco, o financiamento estudantil interestadual fora o primeiro a ser cortado.
Em outras palavras, significava que a minha hora de voltar para casa chegara (bem!) antes do que eu imaginei.
– O que eu faço? O que eu vou fazer agora? – Murmurei para mim mesma várias vezes, sentindo minha cabeça rodar, como se eu tivesse tomado taças de vinho o dia inteiro.
– Julieta... – Chamou, parecendo alarmada com minha agitação preocupante até para mim.
– Eu não sei o que fazer agora... E-eu tenho provas para fazer! – Rebati em tom de questionamento. Eu buscava razões absurdas para ficar, mesmo sabendo que nada do que eu falasse faria diferença.
– Bom, você não é mais alun... – Parou bruscamente, notando que sua frase provavelmente seria bruta demais para mim. A reitora tomou uma grande quantidade de ar antes de continuar. – Você agora é estudante da UN de Springfield, então, todo o processo vai continuar lá...
– Mas a minha irmã, Clarissa, está morando com meus pais de novo. E ela está dormindo no meu antigo quarto. E foi embora um dia desses, não é justo eu ter que ir também! – Desatei a falar em um claro ato de desespero e pânico. A mulher em minha frente suspirou profunda e pesarosamente. Eu sabia que a reitora não fazia ideia de quem eram as pessoas que eu estava citando, mas não liguei. Só precisava pôr em palavras meu desatino. – Eu tenho meus alunos, a monitoria...
– Srta. Young! – Interrompeu-me com uma voz grave, que me assustou. Imaginei que eu devia estar torturando a mulher com meu surto. – Você precisa ir para casa.
– Eu nem sei mais onde fica minha casa. – Minha voz falhou quando proferi tal frase.
– Eu faria o possível por você, Julieta, mas para ser bem sincera, eu não sei nem se eu vou sobreviver a tudo isso. – Ela parecia aflita ao ver meu breve estado de desespero. Eu andei pela sala de um lado para o outro, meus cabelos já quase não sobreviviam ao ataque constante de minhas mãos.
Eu não acreditava no que estava acontecendo. Faltava menos de um ano para eu me formar, eu não podia simplesmente desistir agora, mesmo que eu não quisesse mais uma carreira no jornalismo. Minha mente trabalhou rapidamente, buscando por soluções para meu infortúnio.
Eu daria tudo para ficar em Hillswood, mas minha graduação é minha prioridade. Em poucos segundos de raciocínio, eu comecei a aceitar a minha ida. Eu poderia voltar depois de formada, as coisas definitivamente seriam diferentes sem o auxílio do governo, apenas com uma boa ajuda dos meus pais. Eu nem sei se daria certo, porém, eu precisava ter um conforto, uma esperança de que eu voltaria um dia.
– Eu sei, Drª. Eu só estou... – Respirei fundo antes de voltar a sentar, colocando meus óculos novamente. Toquei em uma mão de Callaway, que repousava sobre a mesa. – Graças a você, eu tenho um ótimo psicólogo, pude voltar as aulas logo após o acidente que sofri...
Obrigada por tudo, de verdade. É só que...
– É difícil de aceitar, eu entendo. Já tive essa conversa com alguns alunos antes de você... – Confidenciou, bebericando um pouco de algo em sua xícara de porcelana.
Conversamos por mais uns minutos, onde ela me passou as informações e instruções do que aconteceria comigo nos próximos dias. Tentou meu convencer a ficar, mas sem a bolsa, eu não tinha condição alguma. Eu dependia inteiramente da bolsa de auxílio para viver em HW. Em Springfield, querendo ou não, seria bem mais fácil de continuar a graduação. Eu só precisava de alguns papéis para finalizar minha transferência para minha cidade natal, já que eu havia finalizado a maioria das matérias daquele semestre. Após o recesso de Natal, no mês de janeiro, eu já estaria oficialmente integrada a uma unidade da Universidade Nacional no meu estado.
Logo Gina pediu licença, já que precisava ter a difícil conversa com outros bolsistas. A mulher pediu-me desculpas mais uma vez antes que eu saísse da sala. Eu não queria deixá-la pior do que ela parecia, então eu fingi que eu não estava em pânico quando despedi-me dela. Pelo menos até a hora em que encontrei Bela, sentada no chão, esperando por mim no corredor.
– E aí? O que ela queria? – Bela levantou e veio em minha direção, limpando a calça com as mãos. Não falei nada, apenas me joguei em seus braços, abraçando-a com força. – Ah, não. Tem algo errado.
– Você não vai acreditar... – Proferi, magoada.
Expliquei para a garota tudo o que tinha acontecido, repetindo as mesmas palavras que a reitora. Até mesmo para tentar aceitar melhor, mas a cada vez que eu falava que estava indo embora de HW, parecia uma ideia ainda mais absurda.
– Não tem mesmo como...? – Balancei com a cabeça, negando. Bela suspirou fundo, jogando os braços sob meus ombros. – Caramba, amiga. E agora?
"E agora?"
Essa pergunta vinha me assombrando demais esse ano. Foi a mesma pergunta que Dana fez quando eu descobri sobre seus sentimentos. Foi a mesma pergunta que fez quando me contou que estava indo embora. Foi a mesma pergunta que Jack fez quando nós deixamos o celular de Cam cair no vaso sanitário tentando tirar umas selfies divertidas. A verdade é que eu não sabia o que fazer agora.
Eu estava totalmente desnorteada. Voltar para o Jeins – distrito onde eu morava – não estava em meus planos pelos próximos quatro ou cinco anos. Eu tinha planos de ficar em HW mesmo depois da formatura. Agora, eu sentia que a cidade estava me expulsando, deixando-me na porta com minhas malas já prontas. Fazia um mês desde que se fora, agora faltavam duas semanas para eu ir também. Eu voltaria a Springfield no recesso, iria celebrar o natal no Jeins, como de costume. Entretanto, dessa vez eu não voltaria alguns dias depois e essa veracidade estava me matando.
Tive que repetir a mesma explicação mais três vezes para o resto dos meus colegas de classe, já que muita gente não estava entendo porque eu, dois alunos da mesma sala e vários de outras salas, estavam desolados após sair do escritório da reitoria.
– Você não vai se formar com a gente? – Sid, um cara ruivo e bom demais para seu próprio bem, um grande amigo meu, choramingou e abraçou-me pelos ombros. Encostei a cabeça em seu ombro e fechei os olhos porque senti que ia começar a chorar ali mesmo.
Passar a formatura ao lado de outra turma, em outra cidade, com pessoas que eu sequer conhecia, deixava-me destruída. O que seria pior que isso?
– Julie? – Abri os olhos ao ouvir o chamado de Toni, que me olhava consternado. – Você já falou com a Dana?
Isso seria absolutamente pior.
Dirigi calmamente pelas ruas da cidade, tentando retardar minha chegada em casa. Eu só conseguia notar que caiam alguns fracos pingos de chuva por conta das marcas que apareciam no para-brisa do meu carro. Deixei as janelas abertas, aproveitando o tempo gélido que fazia para me afundar em um casaco que havia deixado para trás.
Não tinha mais seu cheiro, mas a lembrança dele ali quase parecia um conforto. A voz melancólica de Beck Hansen era a minha companhia, eu murmurava baixinho a letra, esperando que o cover da música de Daniel Johnston desse um pouco de vazão à minha dor.
Enquanto esperava o semáforo mudar de cor, comecei a pensar nas tantas mudanças que haviam acontecido comigo nesse ano, que eu começaria a classificar como o mais intenso da minha vida dali em diante. Eu sentia que minha vida era uma grande quebra cabeças, onde eu encaixava duas peças e quatro saiam do lugar. Eu costumava quebrar as regras que me eram ditadas, mas agora, todas as regras que eu ditava acabavam sendo quebradas pelas outras pessoas.
Eu não costumava ser uma pessoa de choro fácil, porém, desde que eu comecei a frequentar as consultas com o psicólogo assiduamente, eu havia aprendido que chorar não era sinal de fraqueza e sim, sinal de que você sente. E está tudo bem em sentir. Então, eu chorei durante o meu caminho inteiro até em casa. Logo meus devaneios sobre mudanças tornaram-se esmagadores quando dobrei a esquina e vi meu prédio, desbotado e caindo aos pedaços. Minha casa.
Tentei recompor-me quando cheguei em frente ao 305, tentei engolir aquele bolo de angústia que estava preso em minha garganta, mas minha tentativa falhou quando abri a porta e vi a habitual cena que sempre aquecia meu coração.
Jack estava sentado no chão, olhando atentamente para a TV, com um prato em mãos. Dana estava deitada no sofá e mexia no celular e Cameron mexia nas panelas em minha cozinha, como sempre. Fiquei parada na porta, encarando a todos ali presentes. Aquilo ali era meu lar, minha casa e ninguém me faria pensar o contrário. Fechei a porta, respirando lentamente. O apartamento de Jack era bem localizado, nunca estava em casa e a casa de Cam era a maior de todas, mas ainda assim, meu apartamento ainda era o ponto de encontro preferido do grupo. Eu entendia, eu também era apaixonada por aquele lugarzinho.
– Você chegou bem na hora. Hoje é Itália! – Cam comemorou e veio até mim, beijando minha testa, já entregando um prato em minhas mãos. A cada semana, para aperfeiçoar seus dotes culinários, o rapaz nos fazia escolher um país e ele faria algo relacionado ao lugar. – Eu fiz lasanha de frango com molho de provolone! Modéstia à parte, é o melhor que eu já fiz.
– Maratona The Fresh Prince na NBC, corre! – Jack informou, com a boca cheia e sem desviar o olhar. Isso explicava a atenção fixa na TV, era a série preferida dele.
Senti minha cabeça oscilar, senti minhas emoções e sentimentos todos virem à tona e eu não sabia com o qual deles lidar primeiro. Meus olhos encheram-se de lágrimas. Eu tentei me controlar de todas as formas possíveis, tentei usar as técnicas de respiração que minha psicóloga havia ensinado caso eu sentisse que estava prestes a ter um ataque de ansiedade, porém, minha agitação chamou a atenção de Dana, que me encarava, confusa.
– Você está bem? – Questionou, franzindo o cenho.
– Eu vou embora. – Arrependi-me no exato segundo em que as palavras saíram da minha boca sem que eu sequer notasse.
– Você acabou de chegar. – Dana estranhou, levantando do sofá e indo até mim. Comecei a expirar o ar fortemente, parecia ser um ataque de pânico, mas eu só estava tentando parar de chorar, pois já estava ficando irritante até para mim.
– Julie, você está bem? – Jack questionou e diminuiu o volume da TV. Senti a mão de Cam acariciando minhas costas e guiando-me até o sofá. – Você está pálida!
– Eu perdi, e-eu não tenho como ficar aqui. – Fui dando-me conta das coisas à medida que fui falando e me arrependo, porém, eu não conseguia parar. Era informação demais para lidar, eu precisava expelir tudo. Dana levantou e veio em minha direção, com uma expressão confusa. Cam parecia ter entendido tudo e deixou-me no caminho, indo sentar no sofá com uma expressão pensativa.
– Você não está fazendo sentido algum. – Jack perguntou novamente, parecendo preocupado ao extremo. Quando tentei explicar, apenas um soluço alto escapou de meus lábios e como uma criança assustada, virei meu corpo, escondendo meu rosto no torso de Jack, começando a chorar copiosamente. – Julieta, alguém fez alguma coisa com você?
– Você está nos assustando, Julie. O que houve? – Dana exclamou, aflita.
– Tem alguma coisa a ver com a UNH? – Cameron perguntou, preocupado. Balancei a cabeça, afirmando.
– E-eu... – Respirei fundo, limpando meu rosto. Jack me levou até o sofá, massageando meus ombros, tentando me oferecer conforto. – Eu perdi a bolsa de estudos, vou ter que terminar a faculdade em Springfield. Se eu voltar para lá, não terei que pagar minhas últimas mensalidades. Vai ser como se o dinheiro da interestadual fosse pagar minhas mensalidades. E eu vou ter que ir porque eu não tenho dinheiro, eu até liguei para os meus pais, mas... Eu não tenho nada!
– Isso tem a ver com a mudança de governo? – Cam questionou, não parecendo muito surpreso. Assenti e questionei-o com o olhar sobre como ele sabia disso. – Me formei na UNH, ainda recebo e-mails com as notícias de lá. Não imaginei que algo assim fosse acontecer...
O silêncio absoluto na sala fez-me ficar arrependida de ter falado na frente de todos de uma vez, eu devia ter preparado cada um deles e principalmente, ter conversado com minha amiga e companheira de quarto antes de tudo. Devia ter pensado direito no que eu faria antes de surtar, mas meus sentimentos estavam todos a flor da pele. Subi o olhar, procurando por Dizzy. Ela estava em minha frente, de braços cruzados e com a testa franzida.
– Espera, deixa eu ver se entendi. – Jack esfregou o rosto, apoiando os cotovelos nos joelhos, apreensivo com sua própria conclusão. – Você não tem mesmo como continuar aqui?
– Não, Jack Jack. – Suspirei profundamente, sentindo as lágrimas inundando meus olhos novamente. – Eu vou para casa.
Após minutos em silêncio, Dana se pronunciou. Foi como uma avalanche, forte e destruidor, quando ela proferiu categoricamente:
– Você está em casa.
Senti meu coração quebrar-se em vários pedaços quando ela nos deu as costas e foi em direção ao seu quarto. Fechei meus olhos, sentindo extrema tristeza quando ouvi-a bater a porta de seu quarto com violência, deixando seus sentimentos bem claros. Jack passou um braço pelos meus ombros, abraçando-me e me permitindo voltar a chorar.
– Julie? – Cam chamou, pesaroso. – E agora?
A pergunta de um milhão de dólares estava ali novamente. E agora?
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Dezembro.
As batidas de Let It Bleed do Rolling Stones começaram cutucando meu ombro e eu os mexi no mesmo ritmo. Meu quadril acompanhou o as batidas ritmadas e quando me dei conta, eu já dançava na ponta dos pés ao redor da mesa de centro. Joguei meus cabelos de um lado para o outro, não notando a confusão que aquilo acarretaria a mim mesma.
As luzes psicodélicas piscavam rápido demais e mesmo com os olhos fechados, elas continuavam lá. As luzes começaram a causar uma sensação horrível de confusão, então esfreguei os olhos com força, usando as palmas das mãos. Tudo parece ter gosto de terra e pensando bem essa minha afirmação não tem sentido algum.
– Você achou que íamos acabar assim? – A voz arrastada de Dana tirou-me do meu delírio de luzes estroboscópicas e quando virei para vê-la, tudo parecia normal. Sem luzes e sem gosto de terra.
– A maconha é uma surpresa. – Murmurei, encarando meus pés, que ainda se mexiam incessantes. Gargalhei ao notar que eu ainda dançava e nem havia percebido.
Eu não sei exatamente que horas eram, mas eu sabia que já devia ser madrugada, pois Dana e eu estávamos na sala de nossa casa pelo que pareciam ser algumas horas. Desde que cheguei em casa, já pela noite, após passar um dia inteiro em cartórios, bancos e afins, encontrei uma Dizzy personificando a palavra "tristonha". Estava deitada no sofá, ouvindo rock antigo e bebendo vinho de segunda. Extremamente convidativo, óbvio que me juntei a ela.
Logo, o vinho transformou-se em vodka e a partir daí, eu já tinha perdido o controle de mim mesma, então não entendi muito bem como os baseados surgiram.
– Não deveria ser uma surpresa. Nós devíamos fazer isso mais vezes. – Sugeriu, sentando e procurando pelo isqueiro em cima da mesinha de centro.
– Ficar bêbadas em plena quinta-feira? Nós fazemos isso desde que viemos para cá. – Gargalhei, nostálgica. Lembrar de nossas primeiras noites sozinhas na cidade me causava uma enorme melancolia.
Éramos duas adolescentes vivendo longe de casa, morando sozinhas pela primeira vez. A empolgação com a recém liberdade nos fez extrapolar algumas vezes e acabamos perdendo o limite. Sempre prometíamos que íamos mudar, que logo o sentimento de novidade ia passar e nós viveríamos como adultas e responsáveis. Esse dia nunca chegou. Quase seis anos depois, Dana e eu ainda abusávamos de nossas liberdades, principalmente quando o assunto era diversão.
Senti que as luzes fortes iam voltar aos meus olhos, então sentei no chão também, o que fora uma péssima escolha pois senti um enjoo terrível. A mistura de álcool com a cannabis não fora exatamente uma boa ideia.
– Você odeia fumar. – Comentei, observando Dizzy acendendo um cigarro.
– Minha melhor amiga vai embora, eu posso fazer o que eu quiser. – Embolou-se toda para falar e após dar uma baforada para cima, tossiu vigorosamente. – Que saco, eu odeio fumar!
– Então, para de fumar! – Puxei o cigarro da mão dela, tragando um pouco. Isso só piorou minha situação. Antes a sala apenas oscilava, agora a sala fechava-se em minha volta. – De onde surgiu isso, afinal?
– Minha melhor amiga vai embora, eu acho que tenho todo direito de fumar umas coisas que Cam guarda na bolsa. – Replicou, puxando o cigarro de volta.
– Para de falar isso! – Reclamei, colocando minha cabeça entre as pernas. Eu não gostava de ficar lembrando a cada minuto que eram meus últimos dias na cidade. A música ainda ecoava pelo apartamento, o disco do Rolling Stones quase no fim e eu sentia que estava chapada demais para conseguir, ao menos, brigar com minha garota.
– Me lembra de novo do seu itinerário? – Pediu, curiosa e arrastadamente.
– Amanhã, ou hoje, eu acho... – Olhei no meu relógio de pulso, mas até os ponteiros resolveram sair para brincar. – É meu último dia de aula e a bendita festa, sábado é o dia da ressaca e domingo...
– O dia da ida. – Completou, empurrando meu ombro de leve e sorrindo tristemente. – Você tem noção disso, Julieta? Você vai embora em três dias!
– Nós vamos passar o Natal juntas, como sempre. – Tentei acalmar a morena ao meu lado, que já demonstrava irritação, passando o braço pelo seu ombro e acariciando seu braço.
– Não me interessa o Natal, Julie. – Vociferou. Seus olhos cheios de lágrimas fizeram-me perder a fala. – Meu problema vai ser voltar para casa e você não!
Achei que ao longo dos dias, enquanto eu arrumava minha vida, resolvia toda a burocracia e planejava minha nova vida, eu aceitaria e ficaria inteiramente pronta para voltar. Porém, passou-se exatamente um mês desde que eu havia recebido a notícia que estava sendo despachada de Hillswood e ainda era difícil digerir. Ainda mais difícil quando eu olhava para Dizzy. Às vezes, estávamos no meio de uma conversa, gargalhando ou fazendo brincadeiras idiotas e a garota ficava subitamente triste. Eu sabia que ela tentava disfarçar, mas Dana nunca foi boa em esconder seus sentimentos.
– Tem um cachorro na sua cabeça! – Apontou para mim, mudando de humor bruscamente. Gargalhei ao notar que os efeitos da erva começariam a aparecer na mulher ao meu lado.
– Eu odeio cachorros. – Coloquei a mão na boca, ainda rindo, porém receosa quando senti a náusea tomar conta de mim.
– Eu sei! Por isso é engraçado. – Gargalhou alto.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, um bolo surgiu em minha garganta, implorando para sair. Levantei correndo, esbarrei em várias coisas até chegar ao banheiro. Joguei-me no chão sem necessariamente senti-lo e despejei todo o liquido nojento que saiu da minha boca no vaso sanitário. Senti Dizzy atrás de mim, segurando meus cabelos.
– Eu não acho que nós ainda sejamos jovens o suficiente para misturar essa quantidade de drogas. – Reclamei, sentindo o gosto amargo na minha boca, deixando-me grogue. Estiquei-me até conseguir chegar à pia para lavar a boca com o máximo de enxaguante bucal possível.
– Eu não acredito que vamos estar de ressaca na sua festa de despedida. – Encostou-se na parede oposta, ainda sentada no chão. Posicionei-me entre as pernas dela depois que enxaguei minha boca. Eu ficava imprestável depois que vomitava, tinha certeza que estava pálida como a parede. Meus olhos pesavam e eu podia dormir ali mesmo que nem me daria conta.
– Eu não acredito que vou ter uma festa de despedida. – Comentei, aconchegando-me nos braços de Dana.
– É a melhor produção de Cam, segundo ele mesmo. – Rimos da famosa prepotência de Cameron. O rapaz tomou a frente da ideia de Jack de fazer uma festa de despedida para mim e planejou a pândega em sua própria casa no sábado, um dia antes da minha viagem. – Jack está responsável pelas bebidas, então você já sabe que vem variedade por aí.
– Eu ainda lembro do aniversário do que ele cuidou das bebidas, você lembra? Aquela...
– Bebida azul! – Falamos juntas e caímos na gargalhada em seguida.
Jack era a pessoa que realmente não se importava em gastar todo seu salário com bebidas diferentes que as pessoas nunca costumavam beber. Uma simples cervejinha não tinha vez com ele. Uma vez, quando lotou um show em uma grande casa de shows pela primeira vez, Jack surgiu com um absinto polonês para comemorar. Eu não lembro absolutamente nada desse dia.
– E por falar nele, você já contou? – Questionou, prendendo meu cabelo em um rabo de cavalo com uma liga.
– Não. – Suspirei, esforçando-me para não cair no sono ali mesmo. – Ele já deve saber pelos garotos, mas eu não falei nada.
– Ele vai ficar puto com você. – Deu uma risadinha e eu concordei, dando de ombros. Já não era novidade para ninguém que eu me tornava uma completa covarde com/por . – Argh, que saudades dele!
– É, eu também tenho saudades...
Não falei nada a mais pois a última coisa que eu queria era perceber o quanto eu sentia falta dele enquanto estava alta. Até acompanhar suas publicações nas redes sociais era um inferno para mim.
Aparentemente, Tom só era um cara estressado em HW, pois em turnê, ele estava todo gracioso e folgado. Assumiu com louvor o posto de amigo irritante, sempre me mandando fotos, vídeos e notícias do cantor, como por exemplo: "Oi, Julie. está extremamente bêbado e não para de falar. O que eu faço?". Ou então: "Oi, Julie. Hoje fez o show sem fazer os aquecimentos vocais. Briga com ele."
– Julie? – Chamou e eu atendi, virando a cabeça levemente para olha-la. – Você me perdoou?
– Pelo o quê? – Questionei, confusa.
– Toda a confusão com . – Explicou, mordendo os lábios. – Às vezes, eu penso que seria melhor se eu nunca falasse nada, sabe? Mas eu não saberia viver mentindo para você.
– Eu acho que tudo aconteceu da forma que deveria acontecer. – Balancei as mãos e voltei a deitar a cabeça em seu ombro, fechando os olhos.
– Eu não acho. Acho que tudo entre vocês já estaria certo se não fosse por mim. – Supôs, pensativa.
– Mesmo que não houvesse a história com você, nós ainda estaríamos cheios de problemas com essa nossa súbita partida. – Refleti.
Eu nunca iria querer um relacionamento a distância, e a julgar pela forma que não se opôs a minha ideia de ficar na mesma, ele também não queria. Nosso afastamento era inevitável.
– Eu gostei dele de verdade, Julie. – Comentou, murmurando em tom de confidência. Puxei seus braços de forma que me abraçassem, segurando suas mãos.
– Eu sei, amiga. Você não se sujeitaria a nada que aconteceu por apenas uma queda. Ou como os jovens dizem: "Um crush!" – Declarei, afirmando, causando risadas na garota.
– Depois que tudo aconteceu, eu fiquei me perguntando: E se meus pais estão certos? E se eu realmente for mimada e egoísta? – Questionou, visivelmente abalada. – Você acha que eu devia ter voltado para Springfield quando eles me pediram? Eu devia agradecer de alguma forma tudo o que eles fizeram por mim.
– Eu acho errado o que eles fizeram você pensar de si mesma, Dana. Adoção não é empréstimo onde você tem que pagar por tudo o que eles fizeram por você. E você pensar assim só mostra o quanto eles manipularam você e te chantagearam emocionalmente. Eles não, ele. Porque eu sei que sua mãe não concorda com isso. – Discursei, extrapolando na sinceridade e na indignação.
Era errado e triste, ver Dana se torna uma mulher submissa, pequena, amuada e retraída quando estava perto dos pais. A adoção não é algo para se usar como agressão quando as coisas ficam difíceis.
– Vamos dormir? – Sugeriu, fraca, mas ainda estava com o cigarro na mão e baforava tranquilamente.
– Você não parece querer dormir. – Olhei-a, levantando a cabeça, confusa. O rápido corte na conversa mostrou que Dana estava incomodada, lidar com aquele assunto nunca fora fácil, mas ela sabia o que era certo e o errado.
– Não quero, mas não consigo parar de pensar que daqui a uns meses, quando eu quiser ficar bêbada e chapada sem motivo algum no meio da semana, você não vai estar aqui para me acompanhar. E eu fico triste de pensar isso. E eu não quero ficar triste. – Apertou os braços em volta de mim e eu encostei a cabeça em seu ombro, suspirando. – Eu não vou saber viver sozinha, Julie. Eu nunca vivi.
– Eu queria dar algum conselho, confortar você de alguma forma, mas... – Murmurei, mordendo os lábios. Engoli o choro, mais uma vez.
– Você também não vai saber viver sem mim, não é? – Suspirei e não respondi. Limpei meu rosto antes que as lágrimas caíssem e eu não conseguisse mais segurar por muito tempo. – Vem, Julie, vamos tomar um banho e dormir. Vão ser dias agitados, precisamos descansar.
Eu concordava com Dana, eu não queria mais ficar triste. O mês havia sido exaustivo. Eu sentia que passava a maior parte do tempo engolindo o choro e isso era agoniante. Tiramos nossas roupas em meio a tropeços, ambas quase não aguentando ficar de pé. A fumaça de vapor quente juntou-se a fumaça dos cigarros.
Nós deveríamos tomar um banho gelado, mas estava quase 14° lá fora, não tinha como não morrer de hipotermia. Assim que saímos do banho, fomos direto para o quarto de Dana. Dormimos juntas a semana inteira, apenas alternando nos quartos. O clima de despedida já completamente instalado na casa.
– Eu já venho, preciso tomar um pouco de água. – Avisei assim que terminei de colocar meu pijama de flanela.
– Espera! – Me afastei dois passos quando Dana me chamou de volta. A garota já estava confortavelmente deitada, coberta por um grosso cobertor e estendia um celular em minha direção. – Liga para ele. – Choraminguei, meus ombros caídos demonstravam a minha falta de vontade. Agradeci mentalmente que meus sentidos e reflexos já estavam voltando ao normal após o banho, já que Dizzy soltou o aparelho livremente e antes que chegasse ao chão, o peguei. – Agora!
Fui até a sala em passos lentos, como se aquilo fosse me impedir de falar com ele. Notei que o aparelho de som ainda estava ligado, mas agora tocava alguma música desconhecida por mim, parecendo ser um daqueles rocks clássicos que Dana amava. Não me importei em desligar o aparelho, apenas diminuí o volume. Me preparei para uma conversa do mesmo jeito que meu garoto costumava fazer. Coloquei uma jarra de água na mesinha e um copo quase cheio ao lado.
Desliguei as luzes, deixando apenas a luz mínima que vinha do corredor e sentei no sofá, posicionando um travesseiro em meu colo.
Olhei fixamente para o nome do rapaz na tela do celular, o brilho máximo iluminava o breu da sala. Toquei rápida e impulsivamente no ícone verde na tela, sem nem ensaiar o que falar. Eu só sabia que precisava contar ao rapaz.
Alô? – A voz rouca de fez-me abrir os olhos. Após cinco toques, eu não achei que ele atenderia. – Alô?
– Oi, baby. – A ligação teve delay e eu ri quando ouvi a reverberação da minha própria voz. Extremamente bêbada e arrastada.
São 2h da manhã aqui, Julieta. Aconteceu alguma coisa? – Parecia impaciente e irritado. Eu, provavelmente, estava atrapalhando seu descanso.
– Eu preciso falar com você. – Mordi o lábio, estiquei a mão para pegar o copo e dei uma longa golada.
Aconteceu alguma coisa? Sua voz está estranha…
– Talvez eu esteja bêbada. E um pouco alta. – Confidenciei, rindo.
Você nunca foi de me ligar bêbada, Julieta. – Declarou, desconfiado e sonolento. Eu o imaginei acomodando-se no travesseiro, pronto para escutar qualquer idiotice que eu viria a falar.
– Mas você sim! – Acusei-o.
Apenas uma vez e você prometeu que a gente nunca mais ia falar disso. – Gargalhei com a lembrança e acho que acabou rindo também. – Vai, me conta, o que aconteceu?
Permaneci em silêncio, ainda perdida nas lembranças. Fora extremamente engraçado e inesquecível quando ficou bêbado e insistia em falar comigo, perturbando os garotos insistentemente para que me ligassem. Cam o torturou durante uma semana inteira por conta da situação.
Julieta... – Chamou.
– Ok... – Respirei fundo, tomando mais um gole de água, impedindo que minha garganta ficasse seca. – Alguns dias atrás, eu soube que...
Eu estou a quase um mês, desde que Cameron me contou da sua festa de despedida, esperando o dia que você ia me contar que está indo embora.
Cortou minha fala abruptamente, mas não parecia irritado. Sua voz era puro ressentimento e sono. Eu não pude dizer nada mais do que "desculpa".
– Eu não sabia como falar. – Murmurei, confessando, mordendo minha própria unha. Me sentia extremamente envergonhada de minhas ações, mas de alguma forma estranha, isso não me impedia de continuar errando com .
Ainda dá tempo de me contar como se eu já não soubesse a história toda. – A voz soava calma, mas eu tinha certeza que se estivéssemos frente a frente, ele estaria de braços cruzados e de maxilar travado.
Então, eu contei, desde o início, desde a minha conversa com a Dra. Callay até a noite anterior, quando Jack e Cam me ajudaram a empacotar as últimas coisas.
, você dormiu? – Estranhei, pois, a linha ficou em silêncio por uns segundos após o fim do meu monólogo.
Não, desculpa. Eu só não sei muito bem o que falar. – Revelou.
– Diz que vai sentir minha falta, ué. – Disse, manhosa, jogando-me de costas no sofá.
Quem disse que eu vou sentir sua falta? – Ironizou e eu revirei os olhos. Eu ainda estava morrendo de sono, mas ultimamente quase não tinha tempo de falar comigo ao telefone, então eu não via problemas em sacrificar umas horinhas de sono por ele. "Idiota", resmunguei baixinho. – Baby? – A voz do rapaz chamou-me, apreensiva. Murmurei em resposta. – E a gente? O que vai ser de nós? Quer dizer, eu vou voltar para casa um dia…
Eu entendia o ponto dele, era exatamente como eu pensava. Ele iria voltar para casa e eu não estaria lá. Esse talvez tenha sido o principal motivo de eu não ter falado logo para que eu estava de mudança. Eu não gostava da ideia de ter que mudar todo meu relacionamento com ele. O combinado era: ele voltaria e nós iriamos nos resolver.
– Eu não sei, . Acho que continuamos na mesma. – Dei de ombros, tristonha.
Eu nem sei qual é a nossa mesma. – Riu sem humor. A voz ainda preguiçosa me deixava morrendo de vontade de estar com ele, abraçada ao seu corpo.
– Acho que agora, mais do que nunca, é algo que a gente não pode decidir. – Constatei.
Ficamos em silêncio. Eu sabia que não concordava totalmente comigo. Ele deveria estar querendo totalmente o contrário que eu, mas eu sabia que ele não me pressionaria a nada, principalmente agora, que eu estava lidando com uma grande carga emocional.
– Então, a minha festa! – Mudei de assunto. Não por desconforto, mas por que se eu passasse mais um minuto em silêncio, eu dormiria. – Cameron está empenhado nessa. Você.... Tem como você aparecer?
Ele está empolgado, já me mandou uns 5 convites diferente. – Rimos juntos. Nosso amigo estava realmente ansioso para a tal festa. – Eu posso tentar.
– Promete? – Pedi, exagerando na meiguice. – Eu meio que tenho que ver você antes de ir.
Tem, é? – Riu, debochado.
– Eu estou na minha sala e aqui tem muitas coisas para fazer. – Olhei em volta, observando a breve bagunça. O sono já estava me deixando desconexa, então, achei melhor levantar do sofá, pois se eu continuasse ali, dormiria. – De tudo que tem aqui, a única coisa que eu não posso fazer agora é ver você. Então... Eu meio que preciso que você venha.
Eu prometo, linda. Vou fazer o possível e o impossível para ir. – Sorri abertamente, mas logo senti meu sorriso se desfazer.
Perguntei-me internamente se a gentileza e o afeto de comigo ainda estaria ali futuramente. – Vá dormir, amanhã a gente se fala melhor, tudo bem? Boa noite, Julieta.
? Desculpa não ter contado antes. Contar parecia real demais, então, eu fui adiando, adiando... – Suspirei profundamente, sentindo meus olhos fechando-se sozinhos. – Enfim, foi difícil falar sobre.
Tudo bem, baby. Foi difícil de ouvir também.
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– Dizzy! Eu não sei se você lembra, mas eu já sofri um acidente automobilístico esse ano e, ai meu Deus! – Gritei, desesperada. – Eu não estou afim de sofrer outro, Tomanzio!
Dana nunca andava em alta velocidade, sempre gostou de segurança, mas desde que se envolvera em um acidente de carro, a preferência por motos reinava. Dizia que com moto era mais provável machucar a si mesma do que aos outros, esse pensamento partiu do fato de que o homem que ela atropelou havia quebrado um braço e ela não havia sofrido nenhuma escoriação. Após meu acidente, eu discordava veemente dessa teoria. A baixa velocidade de Dana ainda era demais para mim, que tinha fama de "marcha lenta". Segurei-me com força em sua cintura, já que minhas pernas não pareciam oferecer a segurança que eu precisava.
– Já estamos chegando! – Gritou de volta.
– Não estamos, nã...Puta merda! – A morena fez uma curva tão fechada que eu quase senti meu joelho tocar no chão. A maldita apenas gargalhou do meu desespero.
Estávamos a caminho da casa de Cameron, onde seria a minha festa de despedida. O fato de ter uma festa me deixava extasiada, pois eu finalmente tinha amigos que se importavam o suficiente comigo para me fazer uma festa. Uma festa em minha homenagem! Eu nunca me senti tão especial e amada, mesmo que fosse em uma ocasião especial.
Vacilei quando desci do veículo e senti minhas pernas molengas e fracas. Passei a mão pelo cabelo, tentando conter as ondas indesejados no lugar dos cachos. Eu estava toda desarrumada e até um pouco suada por conta dos momentos de tensão que passei em cima daquela moto. Quando chegamos em frente ao local, eu sorri maravilhada. Eu havia esquecido a quão grande e linda era a casa de Cam.
– Ok, agora eu entendi por que você me fez colocar um vestido. – Declarei, um pouco surpresa e assustada. A casa de Cameron parecia abarrotada de gente. Eu sabia que a festa mesmo era no pequeno quintal do fotógrafo, mas tinha tanta gente que as pessoas estavam acomodando-se na porta de entrada mesmo. Era minha festa de despedida, mas eu tinha certeza que não conhecia metade das pessoas ali. – Quem são essas pessoas todas?
– Um pouquinho de cada. Uma galera que eu conheço, uma galera de Cam, Jack, ... – Dana comentou, retirando o capacete.
A menção ao nome de me fez suspirar e estremecer. Eu sabia que o garoto estava fazendo de tudo para que conseguisse aparecer essa noite. Só me restava torcer – eu estava morrendo de saudades do meu garoto – e ficar extremamente ansiosa.
– A minha realeza chegou! – Cameron surgiu entre as pessoas, correndo até mim. Abraçou-me até me tirar do chão, o cheiro forte de seu perfume misturou-se com o cheiro de álcool que emanava dele.
– Uau, a festa mal começou e você já está bêbado! – Gargalhei e segurei meu casaco grosso contra o meu corpo quando ele se afastou. As noites de dezembro sempre eram frias demais, mesmo com o calor humano que aquela casa transmitia, eu ainda sentia frio. O céu estava bem estrelado, considerando que havia chovido a semana toda e até umas horas antes do evento.
– Cameron, bêbado no início da festa? Está querendo roubar o lugar de Jack? – Dizzy brincou, guardando a chave da moto na bolsa.
Cameron virou-se para ela, encarando-a de cima a baixo e voltou a olhar em seu rosto, meio sério. – O que?
– Você está... – Olhou novamente para o corpo todo de Dana, que parecia excepcional com o vestido azul de mangas longas, colado ao seu corpo, indo até um pouco antes de seu joelho, deixando-lhe elegante e sexy e o all star completava o seu look do jeito certo.
– Eu estou o que, Cameron? – Dana cruzou os braços enquanto um sorrisinho ladino aparecia em seus lábios. Ergui uma sobrancelha quando captei a presença do flerte inocente dos dois a minha frente.
– Bonita, ué. Você está bem bonita. – O fotógrafo pareceu meio embasbacado, mas logo se recuperou, dando duas tapinhas amigáveis no ombro de Dizzy e nos puxando pelo braço. – Vamos entrar!
Olhei para Dizzy, com uma sobrancelha erguida, procurando explicações pela cena, mas ela olhava para baixo, com os lábios entre os dentes, como se estivesse prendendo o riso.
Não era de hoje que eu vinha sentindo um clima diferente entre Dana e Cameron. Dana não fazia questão de esconder que o achava super gostoso (nem tinha como, o cara realmente era). E Cam, apesar de estar sempre nos elogiando e brincando, nunca tinha nos faltado com respeito e nem tinha realmente dado em cima de nenhuma de nós ou tentado algo. Grande parte disso era culpa da ex, eu sabia. Cameron amou e ficou com a mesma mulher por muito tempo, ele estava se acostumando com a vida de solteiro de novo. Mas eu não via a hora do rapaz superar completamente a ex para começar a prestar atenção nas garotas a sua volta.
Eu não sabia muito bem a quantas andava os sentimentos de Dana em relação ao . Ela dizia que o rapaz fora apenas um refúgio de seus monstros internos, mas eu não sei. Muito do discurso dela parece ter sido criado apenas para esconder os seus sentimentos por minha causa. Eu queria muito ser altruísta e perguntar sobre, dizer que esconder seus sentimentos e vontades não faziam bem, porém eu não me importava o suficiente. Estava sendo ótimo para mim o jeito que estávamos lidando com as coisas.
Mesmo que fosse completamente errado jogar a sujeira para debaixo do tapete.
As poucas pessoas que eu conhecia foram me cumprimentando pelo caminho enquanto eu entrava na residência. As agradáveis batidas de Tame Impale me confundiam enquanto Cam ia apontando para as coisas e pessoas, falando empolgado sobre seu trabalho. A casa inteira estava sendo iluminada apenas pelo mais variados e coloridos pisca-pisca. Demorei um tempo para perceber que essa era a decoração e o tema da festa: Luzes de natal. Agradeci-o mais uma vez por ter feito uma festa pra mim em sua própria casa, visto que seria mais fácil e menos trabalhoso todos irmos para uma boate ou algo do tipo.
Distribui uns tapas nele quando cheguei a cozinha e vi que algumas fotos minhas – aquelas que eu nunca autorizava, mas ele sempre tirava quando eu estava distraída – espalhadas pelo local serviam de decoração. "Você tem sorte que o dinheiro não deu, senão eu ia espalhar pela casa toda", afirmou quando eu reclamei das fotos.
– Jack Jack! – Gritei quando encontrei Jack na cozinha, encostado na geladeira, com uma garrafa de cerveja em uma mão e uma ruiva na outra.
– Hey! Finalmente! – Abracei-o e Dana fez o mesmo. – Não está com frio? – Estreitou os olhos, apontando para minhas pernas. Meu vestido era consideravelmente mais curto que o de Dana, mas ele era bem soltinho e com mangas longas. Eu não estava sentindo tanto frio assim, as botas de cano alto que eu usava que ajudaram bastante.
– E ela, quem é? – Dana, ciumenta invicta, perguntou antes de qualquer tentativa de apresentação de Jack. Apontou para a ruiva, entrelaçada no braço de Jack, com um sorriso até agradável no rosto.
– Essa é Victoria, minha... – Ele deu um sorrisinho envergonhado, apresentando a garota, mas aparentemente, sem saber seu status de relacionamento.
– Sua o quê? – Dana questionou, cruzando os braços. Estiquei o braço, oferecendo um aperto de mão a ela, que não parecia assustada com a atitude de Dana. Pelo contrário, parecia estar achando engraçado a reação da garota.
– Quase um mês e ele nem mencionou meu nome. – Victoria revirou os olhos e deu uma tapinha na cabeça do rapaz. – Você deve ser a Julie, a festa é sua, não é? É uma pena nós estarmos nos conhecendo só agora, já ouvi falar muito de você!
– Não tive oportunidade! – O loiro se justificou, levantando as mãos.
– Estivemos juntos ontem! – Dana reclamou, entretanto, todos rimos. Antes que eu pudesse me apresentar formalmente, a garota entrou em minha frente, esticando o braço para cumprimenta-la. – Eu sou Dana e pelo jeito, vocês se conhecem o suficiente para você saber da gente, mas nós não sabemos nada de você.
Eu sabia que Dizzy iria dificultar a vida deles quando ela a cumprimentou com um aperto de mão e apresentou-se como Dana. Que ela era ciumenta, todos sabiam, o problema era Jack, que se tornou o "xodó" da morena. A pobre Victoria sofreria nas mãos dela. Ou talvez não.
– Victoria. – Apertou a mão de Dizzy, olhando-a de forma gentil, mas ainda assim, encarando-a. – E não se preocupe. Eu sei quem é a Julie, você quase não apareceu nas conversas.
– Uh, Jack Jack! – Gargalhei vendo a expressão de Dana transitar entre a indignação e irritação. E o desespero de Jack. – Você está com problemas! – Apontei para as duas, que agora estavam lado a lado, olhando para o loiro. Ri da expressão nervosa dele enquanto me afastava. – Eu vou procurar alguns amigos. Victoria, bom te conhecer. Dizzy, comporte-se!
– Eu sempre me comporto. – Ouvi Dizzy murmurar de longe e quase senti pena de Jack e sua nova "amiga". Quase. Eu também não gostava nada da ideia do nosso mascote andar de romance por aí e não contar nada a ninguém.
Avistei e acenei para alguns conhecidos enquanto atravessava a casa em direção ao quintal, onde – teoricamente – seria a festa. Abri um sorriso enorme quando vi minha turma da faculdade em um canto. Estavam todos juntos, conversando alegremente e até dançando entre eles. Corri e atirei-me nos ombros de Toni, mesmo ele estando de costas para mim. Fui recebida com gritos e festejos pelos mesmos, senti-me imensamente querida.
– Eu já disse que não quero contato nenhum com você hoje, Julieta. Sai! – Toni desfez-se do meu abraço desengonçado, virou com uma expressão irritada, que logo transformou-se em um biquinho tristonho.
– Não, bebê! – Resmunguei, apertando as bochechas dele com uma mão. – Já disse que não quero choro hoje... Mackenzie, o que você está fazendo aqui? Eu não convidei você, garoto!
Mac, que estava com o braço em volta do ombro da namorada, revirou os olhos com minha provocação. Eu gostava de Mac, era um cara engraçado, gentil e dedicado a minha grande amiga. Nossa maior diversão era fingirmos que sentíamos ódio um do outro, mas todos sabiam que nós nos dávamos bem de verdade.
– Vai ter que me engolir... Vaca! – Lançou um beijo debochado em minha direção.
– A única que engole você aqui é a Bela, querido! – Proferi, sarcástica.
– Literalmente. – Toni murmurou, mas não baixo o suficiente. Logo todos começaram a gritar provocações entre gargalhadas e palmas.
– Já começou a difamação! – A garota reclamou, causando-nos risos. Puxei-a dos braços do jogador e a abracei fortemente.
– Não é difamação quando se é apenas a verdade! – Hugo, outro amigo nosso, gritou, causando ainda mais risos e bochechas coradas no simpático casal.
Faltavam poucos dias para o natal. A faculdade tinha entrado em recesso, e mesmo assim, a maioria dos meus colegas de classe foram para a minha festa de despedida. Alguns que moravam em outros distritos, como Bela, até atrasaram a sua volta para casa por conta da festa. Toda vez que eu olhava para meus amigos reunidos, eu engolia o choro. Não conseguia acreditar que não subiria no palco para pegar o meu diploma no mesmo dia que eles.
Comecei bebendo apenas cerveja, mas ao meio da noite, depois que Jack me fez beber uns goles de rum Bacardi, eu já estava aceitando um pouco de tudo.
Nós dançávamos no meio do quintal ao som de algumas músicas dos anos 90, gritando, cantando e com as mãos para cima. Eu já nem sentia frio, apenas jogava meu quadril e minha cabeça de um lado para outro. Quando o ápice da festa chegou, quando todos já estavam com um alto teor de álcool em seu corpo, todos resolveram imitar a mim e meus amigos e foram para o quintal dançar. Tinha tantas pessoas no apertado quintal de Cameron que até parecia uma rave.
Eu e Sid tentávamos um passo de dança – arriscado demais para pessoas que continham álcool no sangue – quando olhei para o outro lado e dei de cara o maior plot twist da noite. Dizzy (aparentemente bêbada) dançava agarrada ao pescoço de Victoria (também aparentemente bêbada). De boca aberta, soltei o ruivo no meio do local e fui até a outra ruiva. Assim que me viu, Dizzy indagou rapidamente:
– Amiga, fala para a Vic que, na vida, é necessário se experimentar de tudo. – Ordenou, com um sorriso malicioso. – Ela nunca beijou uma garota antes.
– "Vic"? – Repeti, embasbacada.
Não faziam muitas horas que eu deixei aquelas duas na cozinha a ponto de se estrangularem, como passamos de hostilidades para um aparente flerte? Já estavam até se tratando por apelidos. Ambos se entreolharam, Dana com uma sobrancelha erguida e Victoria parecendo ponderar.
– Você acha que Jack vai se importar? – Victoria me olhou, mordendo os lábios. Victoria era uma mulher charmosa, seus cabelos ruivos eram grossos, ela era corpulenta, mas apesar disso, seu rosto era lotado de traços finos, parecia ter saído de um filme sobre anjos.
– Por que se importaria? Vocês... – Pensei por uns segundos antes de concluir a frase. É claro que Victoria e Jack tinham algo, ele não levaria alguém para um compromisso com a gente, se a pessoa não fosse especial. A conclusão do pensamento me levou a dar uma tapa no braço de Dizzy. – Para de se meter entre os casais, inferno de mulher! – A minha indignada revolta causou uma explosão de gargalhas em nós três.
– Quantas risadas! O que está rolando? – Bela surgiu por trás de mim e entrelaçou nossos braços.
– Bela! – A expressão de Dizzy iluminou-se quando viu a cabeleira roxa de Bela na rodinha. – Você já ficou com uma mulher! – Afirmou, apontando para ela.
– Eu namorei uma! – Bela riu, mas revirou os olhos. Eu não sabia muito sobre o antigo relacionamento de Bela, mas sabia que havia sido abusivo e traumatizante, por isso a demora da garota em ver Mackenzie como um potencial namorado. Dana olhou para Victoria, insinuante. – Por que? Vocês estão pensando em fazer algo divertido depois daqui? – Bela brincou, analisando nossos rostos.
– Deixem a Julieta fora dessa suruba, – A voz de Cameron surgiu ao fundo, mas logo se aproximou, enfiando-se entre Bela e eu. O rapaz já estava com os cabelos bagunçados e olhos baixos, parecendo mais ébrio. – A noite dela vai ser ocupada!
Antes que eu questionasse, o fotógrafo apontou com a cabeça para o portão de saída do quintal. Se eu não estivesse de salto, eu não conseguiria enxergá-lo por contas do aglomerado de pessoas. E seria trágico se eu não conseguisse vê-lo.
entrando pelos fundos, estava com uma mochila nas costas e usava um boné preto. Parecia cansado, mas estava ali, como prometido. Ergueu a cabeça, provavelmente procurando algum de nós, mas não demorou muito para o seu olhar encontrar o meu.
Coração descompensado. Mãos suadas. Sorriso inevitável. Saudades, muitas saudades.
– Até hoje eu não acredito que você tem um caso com ! – Ouvi o comentário descrente de Bela, mas até o som parecia abafado depois da chegada do cantor.
– Você tem?! – Victoria questionou, completamente surpresa e exaltada.
Gargalhei alto e corri em direção a ele, esbarrando em todas que estavam no meu caminho, fazendo com quem a maioria das pessoas procurassem saber para quem eu estava correndo com tanto afinco. O cantor riu quando percebeu meu entusiasmo. Quando cheguei até ele, pulei em seus braços e prendi minhas pernas em sua cintura. Fui recebida como se tivesse sido criada para aquele abraço.
Cheiro de . O tempo sem ele parecia ter sido uma vida, por mais clichê que isso soasse.
– Julieta, sua calcinha está aparecendo! – Ouvi Dana gritar, mas não me importei, apenas apertei meus braços em volta do rapaz mais ainda. Senti a mão de puxando o tecido do meu vestido, provavelmente cobrindo minha bunda. Afastei-me um pouco para olhar em seu rosto, mas sem desprender minhas pernas dele.
– Posso beijar você? – Pedi, manhosa, tocando em seu lábio inferior com o dedo indicador. – Vai ser incrível as pessoas descobrirem que eu beijo essa boca justo agora que eu estou indo embora!
gargalhou e antes que eu falasse algo mais, ele puxou-me pela nuca e me beijou. Fora apenas um selinho demorado, mas o suficiente para me acender por inteiro. E o suficiente para todos prestarem atenção em nós e começarem a gritar em comemoração. Antes que eu me afastasse dele e descesse do seu colo, senti mais braços nos sufocarem em um abraço grupal.
– Gente, é sério, nosso último dia juntos, eu vou chorar! – Dana choramingou. Nos afastamos e eu desci dos braços de . Dana correu até o garoto, abraçando-o da mesma forma que eu.
– Agora sim, estamos completos. Preparem-se para destruir esse lugar hoje! – Cam gritou e balançou a saia do meu vestido. Gargalhei, empurrando-o e logo puxando-o de volta para um abraço.
– Esse lugar é sua casa! – , como sempre sensato, alertou a Cam, que não se importou. Sem qualquer prévio aviso, rasgou a lata de cerveja com uma chave e posicionou a lata na boca de quando a bebida estourou por todo lugar.
A partir de então, eu lembro de rir bastante. Eu ria de tudo e de todos. Eu ri quando Toni teve uma crise de choro e começou a gritar comigo por eu estar indo embora. Ri mais ainda quando Jack, como sempre, começou a vomitar nos arbustos de Cam, o que iniciou uma briga entre os dois, apesar de eu achar que Jack não estava falando dos arbustos quando gritou: "Se quer tanto o arbusto por aqui, porque não casa com ele?". Sem seriedade nenhuma, mas não deixou de ser engraçado. A imagem de e Cam levando Jack nos braços até o sofá sempre iria me fazer rir, pois era uma imagem recorrente. Eu também ri muito enquanto gravava Toni dançando Grease com sua irmã, cena está que ficou no meu celular para quando ele quisesse fingir que não curtia musicais.
– É sério isso? – Questionei, apontando para o sofá, entediada. – Eles estão realmente jogando vídeo game no meio da minha festa?!
Eu estava sentada no sofá oposto, com a cabeça de Jack em minhas pernas. O loiro ainda se recuperava do breve mal-estar, mas estava quieto demais. Geralmente, ele ficaria cutucando e brincando com os garotos, até eles se irritarem e o trancarem em um quarto qualquer.
– Nós estávamos morrendo de saudades, Julieta! – Cam respondeu minha provocação dando um beijo na testa e passando um braço em volta do pescoço de um cara que eu nunca havia visto na vida.
Rolei os olhos, virando todo o conteúdo do meu copo na boca. Perdi todos de vista por uns minutos enquanto ajudava Bela, que se sentiu mal no mesmo minuto que Jack. Quando voltei ao recinto, Dana e Vic estavam em outro patamar, nem se falava, apenas gargalhavam. Cameron, e o cara que eu não sabia quem era estavam sentados no sofá, com os olhos fissurados na TV, quase quebrando o joystick tamanha a empolgação. E Jack estava do lado, observando tudo com uma expressão entediada e (um pouco) raivosa.
– Quem é esse cara? – Perguntei, torcendo os lábios.
– Sabe quando você tem um namorado muito legal e seus amigos são loucos por ele? A ponto de vocês virarem ex-namorados e seus amigos idiotas ainda convidarem ele para as festas? – Jack murmurou ao pé do meu ouvido. Parecia ficar furioso a cada palavra, estava com os braços cruzados e lábios cerrados.
– Esse é o tal do Victor? – Perguntei, surpresa. – Você não contou que eles vivem grudados? Se ele está aqui, então... – Supus e ele assentiu, apontando com a cabeça para o lado oposto da casa, onde uma mulher estava, encostada na parede, olhando em nossa direção.
Nosso pequeno Jack teve um único relacionamento. Ele e Victor namoraram por um tempo, o suficiente para que ele conhecesse a família dele e, consequentemente, sua irmã. Ela parecia legal, entretanto, apesar de ser uma defensora dos animais e se dizer feminista, mostrou ser uma pessoa extremamente preconceituosa e intolerante. Ela não acreditava em bissexualidade e Jack nunca teve problemas em assumir suas preferências afetivas.
Ao contrário do que deveria ter acontecido, Victor nunca defendeu seu namorado das declarações odiosas e debochadas da própria irmã. A mulher era um monstro e Victor – que não era assumido para a família – acabava acatando as ofensas da mulher por puro medo da exposição, o que causou o fim de seu relacionamento.
Sobre Victor, eu preferia me abster de opiniões. A história dele era composta por vários aspectos – como pressão da sociedade, homofobia e famílias disfuncionais – que me deixavam totalmente de fora do meu lugar de fala. E afinal, quem somos nós para julgar as ações de alguém injustiçado perante a sociedade?
– E por que ela está aqui? – Indaguei, confusa e irritada. Eu não queria aquela mulher no mesmo lugar que meus amigos nunca mais. – O convite não foi apenas para ele?
– Ela não perde a oportunidade de encher a porra do meu saco! – Rolou os olhos, raivoso, ainda falávamos baixinho.
– Espera um momento... Você está aqui com Victor e Victoria? – Questionei, encantada com a coincidência dos nomes de pares de Jack. Mal segurei a risada quando vi o rosto de Jack se contorcer em uma careta, atentando-se ao fato pela primeira vez. – Meu Deus, Jack. Você é um mito!
– Não! – Ele virou meu rosto com a própria mão, fazendo um "shhhi", certificando-se que ninguém havia escutado minha risada estrondosa. – Que inferno! A letra V me persegue! E o pior é que Victor costumava encrencar com a Vic quando nós namorávamos. Se ele a ver aqui... – Contou, balançando a cabeça e desviando o olhar para o sofá, observando o seu ex. – Acho que ele estava certo, afinal.
– Está vendo? Nós sempre sentimos quando alguém tem segundas intenções com nossos cônjuges! – Dei de ombros, falando em um tom mais alto, apenas para fins de implicância com . – E esse garoto ainda tenta dizer que não tinha nada com a nova iorquina! – Provoquei, chamando a atenção dos rapazes no sofá e recebendo beliscões de Jack para que eu ficasse quieta.
– Quase um ano, Julieta. Supera. – proferiu, rolando os olhos, voltando sua atenção para a TV.
– Depois nós que somos malucos... – Cruzei os braços, injustiçada, mas me arrependi do comentário quando notei que Victor analisou meu comentário por mais tempo que o normal. Nos entreolhamos por uns segundos antes de ele sorrir de leve e lançar uma piscadela a mim.
Ótimo, ajudei o cara contra o meu próprio amigo.
Seu sorriso se desfez quando Cameron e , pularam no sofá, abraçando-se em comemoração à partida finalizada e provável vitória por conta da distração que eu causei no rapaz. Antes que eu me inclinasse para comentar com Jack sobre minha bola fora, vi Dizzy e Victoria chegando juntas na sala. Nem notei que carregavam a mesma expressão diabólica. – Estão vindo para cá, pensa rápido!
– Ei! – Levantou rapidamente, indo até elas, abraçando-as de uma só vez, mas acho que seu plano de as afastar da sala deu terrivelmente errado quando Vic simplesmente puxou o rosto de Dana, beijando-a bem visivelmente. Arregalei os olhos com sua atitude.
O número de pessoas chocadas no recinto aumentou de 0% para 80%. Jack nem piscava, parecia não acreditar no que estava vendo e todos nós estávamos da mesma forma. Logo, todos estavam rindo e comemorando o beijo cinematográfico dos dois. Victor também ria e gritava palavras de incentivo, até notar que conhecia uma das duas moças que estavam se beijando e logo suas expressões mudaram.
– Eu não sabia que vocês conheciam a Victoria. – Victor comentou, parecendo incomodado.
– Nós... Anh... – Cameron tentou formular algo.
Como explicar para ele que suas suspeitas a respeito de Jack e Victoria estavam certas?
– Uau! – Vic exclamou ao soltar o rosto de Dana e finalizar o beijo. – Obrigada por isso! Acredita que tem gente que não consegue entender que qualquer forma de amor é amor? – Declamou em alto e bom som, extrapolando no nível de sarcasmo na voz. A expressão dela era de escárnio e nojo, e eu jurei que se ela continuasse ali por mais tempo, eu iria até lá e a tiraria do lugar com minhas próprias mãos. Puta merda, drama de primeira bem em nossa frente. – Sem preconceitos, sabe? – E falou isso virando o corpo e olhando diretamente no rosto da garota, sem nem piscar.
Foi assim que eu descobri o porquê de Dana e Victoria se darem tão bem e tão rápido. Elas carregavam o mesmo nível de veneno e escárnio dentro de si.
Não consegui me controlar e, novamente, eu ri. Soltei uma gargalhada tão alta ao ver a cara de tacho da ex-cunhada escrota de Jack, que precisou levantar e foi cobrir minha boca com a mão, pois parecia muito que eu estava desdenhando. E eu estava mesmo, os homofóbicos que se fodam!
– Obrigado por emprestar sua garota, Jack! – Dana enunciou, soprando um beijo para o músico e voltou para o quintal.
Simplesmente fez a cena e saiu do recinto. Maravilhosa, sem mais!
Victor pareceu reparar bem na frase de Dana, refletindo por uns poucos segundos antes de sorrir de modo sarcástico. – É claro... – Levantou do sofá e saiu, indo em direção a porta de entrada.
– Victor! Você está aqui!? – Victoria questionou, completamente surpresa ao ver o rapaz, seus olhos já mostravam arrependimento.
– E você também, não é? Como sempre! – Bufou, rolando os olhos.
Não consegui ver o desfecho da história, pois eu ria tanto que, imediatamente, senti vontade de ir ao banheiro. Fui correndo em direção ao cômodo, agradecendo novamente por Dizzy ter me feito colocar um vestido, assim eu não tive muitos obstáculos para fazer xixi. Eu tenho vergonha de admitir, mas eu soube que estava mesmo bêbada quando ao finalizar minhas necessidades fisiológicas, ao invés de sair do banheiro, abaixei a tampa do vaso e acabei cochilando sentada ali mesmo.
Acordei sobressaltada com as batidas fortes na porta. Rapidamente levantei-me de supetão e fui me desequilibrando, toda estabanada.
– Moça, você já está aí tem um tempo. Eu preciso mijar! – Alguma voz masculina gritou do lado de fora e eu rolei os olhos, indo abrir a porta. O rosto do homem se iluminou quando ele pareceu reconhecer meu rosto. – Ei, você é a mulher das fotos na cozinha!
– A festa é para mim, cara! – Resmunguei. Ele estava de mãos dadas com uma garota. "Preciso mijar". Ah, tá. Eu bem sei o que ele ia fazer dentro daquele banheiro. – Divirtam-se. – Dei dois tapinhas em seu ombro e parti.
Quando voltei, a festa parecia ter entrando a um patamar que eu me recusava a permanecer. Apenas algumas pessoas estranhas andavam pelo quintal e outras dormiam dentro da casa. Jack e todas as outras pessoas pareciam ter desaparecido em um passe de mágica. Até cheguei a procurá-los, mas o único que achei foi Toni, dormindo no escritório de Cam.
O único em minha vista era , que infernizava a vida de um pobre coitado na cozinha, falando 1000 palavras por minuto, muito empenhado em contar uma história nem um pouco interessante ao cara ao seu lado, que, sinceramente, parecia já estar dormindo a uns bons minutos.
Resolvi salvar a vida do homem desconhecido e fui até , puxando-o pela mão e saindo da casa de Cam. Ri por um bom tempo quando o cantor tentou me convencer que o homem que ele falava estava acordado e que foi rude ter saído no meio da conversa.
era gentil e pensava no próximo até em leve estado de embriaguez.
– Por que estamos só nós dois nesse carro? Cadê todo mundo? Cadê a Dizzy? O Jack ficou no Cam? Para onde estamos indo? – desatou a falar e me tirou dos meus pensamentos. Parecia que todo o álcool que estava em mim tinha ido embora após o meu soninho e eu já estava sentindo a ressaca chegando.
– Estamos indo para a sua casa, eu pedi um Uber. Tudo bem? – Situei , que descansava a cabeça na minha coxa.
– Isso é bom, eu amo que só posso ficar bêbado assim com vocês. Eu só consigo com vocês, na verdade. Por que estamos em um Uber? Eu sou a favor dos táxis, você sabe...
Revirei os olhos. Antes que falasse mais alguma merda que faria o motorista expulsar-nos do carro, inclinei-me e encostei meus lábios nos dele pela segunda vez na noite. Beijei-o do jeito que eu queria desde a hora que eu o vi. Ele segurou minha cabeça, não deixando-me afastar para respirar. Eu estava agradecida por ele estar deitado no banco e nós não estarmos tendo muito contato abaixo do pescoço, mesmo que a mão dele escorregando pela minha perna algumas vezes tenha me feito tremer. Nos beijávamos com voracidade, matando toda a saudade que se fazia presente. Eu já sentia meus lábios inchados e eu sabia que os dele não estavam muito diferentes, talvez até mais que o meu.
O motorista avisou que já estávamos em nosso destino. Paguei e pedi desculpas pelo inconveniente enquanto enrolava-se todo para sair do carro. E ainda tinha esquecido a própria mochila. Saí do carro com a bolsa em meus ombros e fui até ele, que estava encostado no poste, encarando-me e esperando por mim.
– O que foi? Por que você tá me olhando assim? – Aproximei-me, puxei o boné preto de sua cabeça e coloquei em mim.
Eu amava quando ele me olhava daquela forma. A cabeça meio baixa, um pouco debochado, mas sempre muito saudoso. Como se estivesse me ironizando, mas ainda estenderia a camisa sob uma poça d'água para que eu passasse.
– Devia ser proibido. – Ele virou a aba do boné para trás e me puxou pelo quadril, encaixando nossas pernas. – Você. Pessoas como você deveriam ser proibidas.
Tratei de puxá-lo pelas mãos em direção a sua casa antes que ele me beijasse. Eu já sabia onde nós acabaríamos quando começava a falar assim. A viela de pedras que levava até a casa dele sempre me deixava nostálgica.
– Pessoas como eu? – Indaguei.
– É, você é difícil demais de entender. – Procurou as chaves na própria jaqueta, embromando na procura.
– Nem tanto assim. É só prestar atenção... – Encostei-me no vão enquanto destrancava a casa.
– Eu acho que presto bastante atenção, Julieta. – Proferiu bem sério, abrindo a porta e me dando passagem. – Mas você sabe ser bem problemática.
Eu sempre soube que não era a pessoa mais fácil de se lidar, mas eu sentia muita diferença quando Dana e falavam isso. Quando ela falava sobre a dificuldade de lidar comigo, parecia uma crítica, parecia que ela ainda tinha esperanças que eu mudasse de alguma forma. Não é que ela não me aceitasse, mas amizades sinceras estão aí para te tirar do pedestal de vez em quando. Quando pontuava o mesmo, parecia que ele estava apenas me exaltando. Parecia que o que menos queria era me ver de outra forma. Era como se nada que eu fizesse o faria gostar menos de mim. Ao meu ver, as duas coisas são boas, pois e Dana eram meu equilíbrio.
Joguei a mochila no chão e corri até o sofá para tirar as botas, louca para sentir o interior quentinho da casa. A chuva voltara a atormentar e a temperatura havia diminuído drasticamente. Entretanto, agora que eu estava com , eu não me importava nem um pouco com os 10° que estava lá fora. O mundo poderia explodir e eu não ligava. Deitei no sofá macio de e estiquei minhas pernas em direção a ele, fazendo sinal para que ele tirasse meus sapatos.
Quando retirou o último par, prendi meus pés no seu quadril e puxei-o para mim. Apoiou os braços ao meu lado para não deitar em cima de mim completamente.
– Você quer saber qual é meu problema? V-você. – Emiti em um sussurro.
veio em minha direção como se fosse me beijar, mas desviou o caminho, virando minha cabeça para o lado e beijando meu pescoço lentamente. Arfei quando senti ele juntar nossos quadris, pressionando-se contra o meio de minhas pernas. O tecido áspero do jeans em atrito com o tecido fino da minha calcinha fez com que eu abrisse minhas pernas instantânea e urgentemente. Ele puxou um lado do meu vestido completamente para baixo e eu até ouvi a costura estalar devido a força. Quase tive problemas para completar meu raciocínio quando abocanhou meu seio direto com maestria.
– É vergonhoso o que eu me torno quando se trata de você, .

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– Você está quietinha demais. – comentou, notando minha expressão pensativa.
– Eu vou embora daqui a algumas horas. – Respondi e puxei o zíper da minha bota, fechando-a completamente.
– Eu também. – Quase me perdi na visão de , vestindo apenas uma calça jeans e prendendo o relógio em seu pulso. Eu me perguntava se algum dia eu não me perderia na beleza do meu garoto.
– Mas você vai voltar! – Refutei, indo até ele e pedindo silenciosamente para ele fechar os botões do meu vestido.
– E você não. – Concluiu, jogando todo meu cabelo para frente, fazendo carinho em meu ombro exposto pelas mangas caídas e depositou um breve beijo no local, antes de começar a realmente abotoar. Após meu vestido estar completamente fechado, senti sua mão segurando meu cabelo pela nuca, fazendo-me fechar os olhos enquanto ele virava minha cabeça em sua direção. – Eu queria mandar toda e qualquer responsabilidade para longe e ficar aqui, com você.
– Eu não pensaria duas vezes. – Assegurei, subindo minhas mãos em seus braços, acariciando-os. Antes que nos aproximássemos mais, seu celular tocou.
se afastou, indo atender a ligação desesperada de Tom, seu empresário, que havia constatado que o cantor não estava em seu quarto de hotel, como o esperado. Sim, fugira de sua turnê, do seu empresário, sendo acobertado pelos colegas de banda, apenas para ir a minha festa, para cumprir um desejo meu.
Mordi os lábios, tentando controlar o sorriso quando notei alguns pontos arroxeados no seu quadril e suas costas. Quando comecei a pensar que, talvez, eu não conhecesse minha própria força, lembrei que ontem nós não nos importamos muito com os modos e rolamos no chão algumas vezes quando o sofá se tornou pequeno para nossas ações indecentes. Desci o olhar, procurando alguma alteração em meu próprio corpo, mas nada estava diferente.
– Eu não acredito que fizemos isso com você. – Quando desligou a ligação, fui até ele, abraçando-o pelas costas e descendo minhas mãos levemente pela sua cintura. Olhou-me confuso, logo, apontei as marcas mais visíveis em seu quadril, fazendo-o erguer as sobrancelhas e rir logo em seguida.
– Uau. Estava mesmo com saudades de mim, não é, linda? – Brincou, virando de frente para mim e encaixando suas mãos em minha cintura, analisando meu corpo. – Você também sofreu alguma escoriação?
– Que nada, só você que estava bêbado além da conta e caiu do sofá, eu não tive nada com isso. – Dei de ombros, sorrindo.
– Estou cansado de cair por você. – Informou, assumindo uma postura e um tom de voz mais sério.
– O que mais eu preciso fazer para você acreditar que eu também caio por você, ?
Passei meus braços em volta do seu pescoço, e mesmo de salto alto, tive que ficar na ponta dos pés para aproximar nossos rostos. Senti sua respiração ficar irregular e sorri travessa. Tínhamos transado a noite inteira, usou meu corpo da forma que bem entendeu, mas me agradava que apenas um simples beijo o deixava tão desnorteado quanto o ato em si. Eu gostava de pensar que eu tinha culpa disso.
– Lembra da última vez que estivemos aqui? – Tocou meus lábios em um rápido selinho, descendo seus beijos castos pelo meu pescoço. Assenti, é claro que eu lembrava da nossa noite de conversas sinceras e declarações honestas. – Fala de novo? Diz que é louca por mim?
– Eu sou louca por você! – Pronunciei articuladamente, deixando o sentimento explodir em minhas palavras.
afastou-se e segurando meu rosto entre suas mãos, beijou-me urgentemente. Seria difícil deixá-lo ir novamente.
Após alguns minutos de pegação moderada, lembrou que tinha um voo para pegar e, por conta do horário, me convidou para almoçar com ele no aeroporto. Acabei aceitando, pois, cada minuto com ele ainda não seria o suficiente para mim. Depois que trancamos sua casa inteira, ficamos esperando por dez minutos algum táxi aparecer, já que – como sempre – se recusava a usar a modernidade ao seu favor.
– Eu tenho um aplicativo especialmente para isso. – Resmunguei após um táxi nos ignorar novamente, apertando o casaco grosso dele contra meu corpo. Mais um para a minha coleção. – Qual seu problema com aplicativo de transportes, afinal? Você não via problema nenhum em me fazer de motorista particular quando precisava ficar indo de estúdio em estúdio.
– Não é minha preferência. – Deu de ombros. Encarei-o tediosa, não aceitando sua resposta automática. – Minha mãe trabalhou como taxista por muitos anos, eu sou a favor da causa, só isso.
– Táxis não são uma causa, amor. – Dei risada. – Mas tudo bem, eu entendo, sua mãe é maravilhosa!
– Você conhece minha mãe?! – Indagou, confuso.
Eu havia esquecido que não sabia da minha breve comunicação com a sua progenitora. Foi um dia de domingo qualquer, em que eu tentava cozinhar algo agradável e rápido enquanto ainda dormia. Eu acabei atendendo seu celular por engano, deslizando para o "aceitar" ao invés de "silenciar". Eu não podia desligar na cara da mãe dele, então, decidi atender mesmo.
Quase uma hora de ligação depois, desliguei tendo uma receita de lasanha em mão, uma benção e um convite para o jantar.
– Conversamos numa ligação uma vez. – Respondi sem muito entusiasmo.
– E falaram sobre o quê? Por que eu nunca soube disso? – Questionou. Olhei de um lado para o outro, a procura de algum táxi a vista.
– Nada demais, falamos sobre sua teimosia, ela me chamou para jantar e me passou a receita de lasanha...
– De abobrinha! – Concluímos, juntos, rindo brevemente.
– Ela passou a receita e ainda chamou você para jantar?! Por que nunca fomos a esse jantar? – Questionou e eu apenas dei de ombros. Na época, não parecia grande coisa, eu e ele ainda não éramos algo e eu sequer me apresentei como namorada ou algo assim. – Eu não acredito que você é a primeira garota que mamãe tem conhecimento!
- "Mamãe". – Debochei até perceber o tom descrente em sua voz. – Ei! Por que? Qual o problema comigo?
– Eu mereço coisa melhor. – Sarcástico, olhou-me de forma zombeteira. Abri a boca em indignação, ele gargalhou, puxando-me para mais perto e tentando fugir dos meus beliscões vingativos ao segurar meus braços.
Não continuei com a briga infantil pois notei um táxi aproximando-se e logo me pus no meio da rua e abri os braços, deixando claro para o motorista que ele me levaria ao meu destino ou ele me atropelaria. Sorri vitoriosa quando o carro parou ao nosso lado. Abri a porta, estendendo a mão para , que apenas sorriu debochado e entrou, dando as coordenadas ao motorista. Quando me inclinei para sentar ao seu lado, fiz uma careta ao sentir minhas costas doloridas, entretanto, não pude controlar o gemido sôfrego quando sentei e senti uma pontada dolorida em minhas pernas e nádegas.
– O que houve? – Perguntou, preocupado. Não respondi, apenas fingi que não ouvi. Senti seus olhos analisando-me por inteiro e soube que ele havia notado meu incômodo quando abriu um sorriso ladino e inclinou-se para falar baixinho no meu ouvido. – Eu não sou o único com escoriações, não é?
– Você anda muito engraçadinho! Geralmente, quem tira uma com a sua cara sou eu! – Murmurei, resmungando e puxando o boné preto da sua cabeça e colocando em mim.
Após um almoço cheio de carinho e implicância, chegou a hora de ir e enquanto íamos até o portão de embarque, pensei que logo mais, eu estaria fazendo o mesmo caminho. Suspirei audivelmente, ir embora não estava em meus planos e agora eu estava assustada, refletir sobre os meus próximos passos não estava sendo tão empolgante. Eu amava fazer planos e gostava de mudanças, mas quando eu as queria. Fazer por obrigação nunca fora o meu forte.
– E esse suspiro? O que foi? – Indagou, acariciando minha mão.
Encarei nossas mãos encaixadas uma na outra. Andar de mãos dadas parecia ser um ato tão íntimo e sincero quanto um beijo na testa. Andar de mãos dadas com era ainda mais recompensador.
– Nós estamos mesmo indo embora de HW? – Questionei, desacreditada.
A cidade sempre foi tudo o que eu queria e o que eu esperava. Viver lá foi como um sonho realizado. Não era cidade grande, não era metrópole, mas havia se tornado o meu lugar. Um universo perfeito e feito para mim.
– Não é um adeus. – Afirmou, parando no meio do caminho, apoiando as mãos em minha cintura, puxando-me levemente. – Logo, logo vamos estar por aqui de novo, estremecendo a cidade com nossas brigas sem sentido algum. – Brincou, beijando-me suavemente.
? – Afastei-nos e olhei em seus olhos, procurando e esperando a resposta certa para a minha pergunta. – E a gente? O que vai ser de nós?
– Vamos achar nosso caminho de volta. Como eu disse, isso não é um adeus, não é o nosso fim, Julieta Young. – Assegurou, colocando algumas mechas de cabelo atrás da minha orelha.
Achei a resposta em seus lindos e sinceros olhos caramelados, que não deixavam dúvidas de que era o cara certo para mim. O encarei por alguns segundos, abrindo um sorriso radiante, aproximei nossos rostos e o beijei, segurando em seu rosto para manter o contato mais pessoal e intimo possível. Fui diminuindo com beijos leves em seus lábios, afastando-me quando ele tentava recomeçar.
– Uau, e você não gosta de demonstração pública de afeto. – Brincou, ironizando minha falta de jeito para gestos românticos.
– Idiota! Preciso te pedir uma coisa. – Anunciei. Encarou-me, atento, esperando minha fala. – Toma os seus remédios direitinho? – Pedi e gargalhei quando o rapaz revirou os olhos, mas também sorria. – Sua voz é seu instrumento de trabalho, não custa nada! O Tom me manda mensagem o dia inteiro e ele vai continuar a me avisar, caso você não esteja se cuidando...
– Ah, é? E você vai fazer o quê? Pegar um avião para enfiar algumas pílulas na minha boca? – Debochou. Pegou a carteira de dentro do bolso, tirando algumas notas de dinheiro e me entregou. Fiquei em dúvida por alguns segundos, mas lembrei que eu havia ido para a festa sem nada, apenas com meu celular.
– Não, vou tirar de você algo que você gosta. – Ergui uma sobrancelha, desafiadora.
– Vamos estar separados. – Semicerrou os olhos, como se não acreditasse em mim.
– Você mesmo disse que ainda vamos nos encontrar. Não duvide de mim, . Quando esse dia chegar, vamos estar louco de saudades um do outro e se houver uma reclamação do Tom, você não vai ver nem a cor da minha calcinha. – Ameacei-o. O cantor riu, tentando puxar o seu boné da minha cabeça, mas eu o segurei.
– Eu cuido bem daqui... – Apontou para a própria garganta. – Se você cuidar bem daqui. – Apontou para a minha cabeça, tocando minha testa com o dedo indicador. Abri a boca para falar, mas fui interrompida. – Você vai estar sozinha lá, Julieta. E nós dois sabemos muito bem que você gosta de fingir que nada está errado.
– Eu sei me cuidar muito bem! – Resmunguei, assegurando e afastando seu dedo de mim.
– Argh, essa atitude... – Rosnou, usando o tom de voz irritado que eu já conhecia. Geralmente, só era direcionado a mim. – Me avisa quando chegar? Em Springfield.
– Você também. – Pedi, arrumando as alças da sua mochila, verificando se estava tudo certo, tal qual uma mãe zelosa.
– E você, rainha dos problemas, não se meta em confusão, ok? Vou sentir sua falta. – Inclinou e murmurou no meu ouvido, me fazendo estremecer. – Desesperadamente.
E assim como chegou, se foi. Celeremente. Andando apressado, pois o seu portão já estava quase fechando. Mordi os lábios, vendo-o cada vez mais longe, pedindo internamente que ele não olhasse para trás ou eu desabaria. Sentia meu peito apertado, não sabia que eu seria uma dessas pessoas que é capaz de sentir saudades de outra, mesmo que a pessoa ainda estivesse em seu campo de visão. Como sempre, indo contra todas as minhas vontades, sempre fazendo o contrário do que eu queria, olhou para trás. Sorriu e acenou.
E como sempre, ele acabou fazendo o que eu queria sem que eu nem soubesse disso.
Andei para a saída do aeroporto, abraçando meu corpo e apertando o casaco contra mim mesma. Puxei meu celular do bolso, pronta para abrir o aplicativo de transporte, porém, sorri quando um táxi parou em minha frente sem que eu nem pedisse. Parecia até que tinha planejado.
Quando cheguei em casa, todas as cortinas da sala estavam abertas e a claridade do local (mesmo nublado lá fora, nossas janelas sempre deixavam mais claro do que realmente estava) fez minha cabeça quase explodir. Retirei o boné preto da minha cabeça e corri para fechar as cortinas, tropeçando em meus próprios saltos. Meu corpo inteiro estava dolorido, eu sentia a ressaca emergindo como se fosse um iceberg.
Estar com me deixava em um estado de torpor tão grande que até a ressaca custava a aparecer.
Olhei em volta, prestando atenção em cada detalhe. Haviam algumas caixas e algumas malas pelo local e isso acabou provocando um sentimento misto em mim. Seria muito triste se Dana também estivesse indo embora, pois a sala estaria completamente vazia.
Nossos quadros não estariam lá, nossas cortinas, nossas fotos. Tudo estaria dentro de caixas, tudo impessoal. Mas era ainda mais dolorido, ver apenas minhas caixas, minhas fotos, minhas coisas fora do lugar. Era como se fosse um lembrete de que eu estava indo, mas a vida por ali continuaria.
O sentimento ruim de despedida voltava intensamente. Suspirei, apoiando as mãos na cintura e fazendo uma careta logo em seguida. Meu corpo estava dolorido a ponto de meu próprio toque incomodar. A noite que passei com fora extremamente prazerosa, mas acho que a saudade acabou nos forçando a ultrapassar o limite de força.
Dizzy já havia avisado por mensagem de texto que estava em casa, então fui ver se a garota estava bem e o que havia acontecido para que todos sumissem da casa de Cam na noite passada. Bati na porta do quarto dela, mas não houve resposta. Afastei-me, pronta para ir para meu quarto e hibernar até domingo de noite, quando Dana gritou um "entra".
– Oi, está tudo bem? – Andei até a cama onde a garota estava deitada e digitava freneticamente no celular. – Você sumiu ontem. Na verdade, todos sumiram.
– Foi você quem sumiu. – Refutou sem nem me olhar. – achou que você estava dando para alguém no banheiro e queria invadir, mas eu expliquei que você estava apenas dormindo.
– Quem disse que eu estava dormindo? – Cruzei os braços, sarcástica. Dana levantou a cabeça, erguendo uma sobrancelha e duvidando da minha cara de pau de ainda negar o fato. – Foi só um cochilo.
– Quase uma hora. – Voltou a olhar para o celular, mexendo os dedos incessantemente. – Perdeu toda a briga.
– Briga? Teve briga? – Indaguei, confusa e curiosa.
– Victor e Jack começaram a discutir. Aí Victoria foi se sentindo culpada e começou a chorar. E aquela filha da puta veio tirar satisfação! – Exclamou, rolando os olhos. – E eu já estava alcoolizada, você sabe como eu fico, mas os meninos me seguraram.
– Você ia bater nela?! – Questionei, gargalhando. Poxa, uma briga em que eu não estava envolvida? Deve ter sido uma cena e tanto. – E a sororidade?
– A sororidade só existiu até ela ser uma completa imbecil e homofóbica com o meu melhor amigo! – Exprimiu, severa, entretanto, ainda sem desviar o olhar do celular.
Cerrei os olhos, eu estava sem saber muito bem o que estava acontecendo. Já era estranho eu chegar e a garota estar acordada. Pelo nível em que ela estava, eu esperava que ela dormisse, no mínimo, 24 horas. Ou pelo menos 10 horas, que era o tempo que tínhamos para ir para o aeroporto no domingo.
– O que está acontecendo? Você está bem? – Notei sua expressão estranha ao ouvir meu questionamento. – Dana, o que houve? O que você fez? – Tudo bem que Dizzy tinha uns momentos estranhos durante a ressaca, mas não havia nem sinal de ressaca no rosto da morena. Ela só estava agindo como se estivesse preocupada com alguma coisa.
Minha mente imediatamente me levou a Jack e sua nova namorada.
– Me insulta você pensar que eu fiz algo. – Indignou-se, virando de costas para mim. Insisti mais uma vez, chamando-a pelo nome. – Ok, talvez eu tenha... – Sentou na cama, mordendo o lábio inferior, parecendo nervosa e ansiosa para me contar algo. – Quero dizer, não talvez, porque realmente aconteceu, mas...
– Dana!
– Eu transei com Cameron! – Proferiu, num ímpeto.
– Você o quê?! – Quase gritei indignada e logo explodi em risadas.
É claro que isso ia acabar acontecendo. Dana e Cameron eram os tipos de pessoas que iriam transar duas vezes na vida, no mínimo. Eu até gostei que Cam perdeu um pouco a cabeça e parou de tentar resistir a Dana. O rapaz sempre fora bem observador sobre a minha vida, mas parecia esquecer que eu também o observava. E não era difícil perceber a admiração mais que amigável dele por nossa querida e amável Dizzy.
Ela também acabou rindo da minha crise de risos que parecia incessante. Tirei minhas botas e com um pouco de dificuldade, sentei ao seu lado na cama.
– Parece que não fui a única que transou ontem, não é? – Brincou, sarcástica, notando meu desconforto ao sentar.
– O álcool nos anestesiou e a gente não sentiu tanta coisa, a dor veio toda hoje. Dizzy, você não vai me distrair, me conta tudo o que aconteceu agora! – Exigi, batendo minhas mãos na cama.
– Ah, Julieta... Estou com vergonha. – Cobriu o rosto com as mãos, puxando o lençol para cobrir-se inteira.
– De mim? Fala sério! – Desdenhei.
– Não de você, de tudo! – Estiquei-me para desligar o abajur, deixando o quarto escuro. Lá fora, chovia tanto que parecia noite mesmo. – Eu não sei o que aconteceu. Ele estava muito bonito e eu estava... E ele começou a jogar aquele maldito charme para cima de mim. – Falava cheia de pausas e incertezas, esfregando o rosto e balançando as pernas. Tudo isso me fazia rir, é claro. – Sabe quando ele dizia que nunca havia, realmente, tentado algo com alguma de nós e apenas por isso nós achávamos que éramos imbatíveis? Bom...
– É o Cameron. – Conclui junto com Dana, entendendo-a completamente. Cameron era o cara mais legal, gentil e bonito de Hillswood. Era apenas uma obra do acaso o meu coração já estar totalmente nas mãos de outra pessoa, senão fosse por isso, eu teria uma queda por Cam, com certeza. – E como foi?
– Ah, Julie... – Enrolou para falar, cobrindo o rosto com as mãos.
– Dana, você está com vergonha? De mim? Nós já fizemos um ménage, por favor! – Gargalhei, puxando suas mãos para longe do rosto. – Eu vivi para ver você envergonhada! Então, quer dizer que esse é o efeito de Cameron Koernig?
– O problema não é ele. – Confessou, tímida. – É que um dia desses eu estava apaixonada pelo seu namorado, e agora eu dormi com o melhor amigo dele, e roubei uns beijos de Victoria, e... Minha própria inconstância está me matando, Julieta!
– E daí? Você é uma mulher adulta, solteira, com várias facetas e vontades distintas. Não critique a si mesma usando um estigma social machista e idiota. Não querendo apontar o óbvio aqui, mas e se você fosse um homem? Eu aposto que estas questões nem estariam passando pela sua cabeça. – Discursei, afirmando que o que incomodava Dana eram os valores conservadores que a família Tomanzio implantara na garota. – Já que resolvemos isso, vamos falar sobre o fenômeno Cameron. O tamanho do...
– Vamos só dormir, ok? – Interrompeu minhas curiosidades em relação a sua noite entre risadas e tapando a minha boca com a própria mão, não querendo oferecer mais nenhum detalhe. – Ainda temos umas horinhas antes de ir.
Todo o clima leve e engraçado pareceu ter virado pó. Senti Dana posicionar o edredom sobre mim de forma mais adequada e murchei completamente. Por um minuto, eu havia esquecido que iria embora. Por um minuto, parecia apenas uma noite qualquer de inverno. Uma noite qualquer de aventuras nossas, o momento que nós deitávamos juntas e falávamos sobre os fatos da noite anterior. Por um minuto, parecia apenas minha melhor amiga e eu conversando sobre garotos no nosso quarto. A realidade logo surgiu, lembrando-me que em algumas horas, Hillswood não seria mais minha casa.
– Vou até deixar você dormir sem tomar banho. – Rimos levemente com a implicância da mulher.
– Eu já tomei banho! – Informei, chutando a perna dela.
Dana abraçou-me por trás e encaixei meu corpo encolhido em seu tronco. Eu sentia sua bochecha contra o meu ombro e agarrei seus braços. Agradeci ao universo por ter Dana Tomanzio. Nós éramos complicadas, mal resolvidas, diferentes e acabávamos nos enfrentando de alguma forma, mas ao mesmo tempo, nos completávamos. A morena de longos cabelos ondulados sempre sabia exatamente do que eu precisava e quando precisava. Parecia que nós estávamos compartilhando pensamentos, perdidas em nossas bolhas. Apesar de estar com uma ressaca acumulada de três dias, eu não sentia sono algum.
Eu sentia muito medo. Estava completamente ansiosa para voltar a minha vida anterior. Recomeçar no lugar onde eu nasci estava sendo assustador e ainda mais preocupada eu ficava quando pensava em como estaria minha relação com Dizzy daqui a um ano. Um ano inteiro separadas pela primeira vez desde que nos conhecemos seria um divisor de águas em nossa relação, eu sabia disso.
Senti uma dor quase física quando senti um líquido quente escorrer do meu ombro pelo meu braço. Me neguei a falar alguma coisa ou, ao menos, tentar ajudá-la. Tudo o que ela sentia, eu também estava sentindo. Não tinha muito o que fazer, então ficamos ali, chorando baixinho, procurando conforto no abraço apertado, no quentinho das cobertas, até o sono nos abater definitivamente.

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– Ok, suas malas, mochila, bolsa... Pegou seus documentos? – Cameron contabilizava, analisando a mala do seu carro e contando cada item nos seus dedos. Apenas assenti, afirmando. Eu estava sentada no chão da garagem, vendo Cam arrumar minhas malas e de Dizzy no porta malas do seu carro. Ele iria nos dar carona até o aeroporto. Eu só iria resolver como levar meu carro para Springfield quando eu chegasse lá. – Identidade, passaporte... O que foi?
Fiquei em silêncio por um tempo antes de responder. Desde que acordei no domingo à noite, olhei para minhas malas e para as caixas espalhadas na sala, e senti um bolo agoniante na garganta. A ansiedade estava me deixando louca e o que eu mais fazia era me concentrar para não chorar. Ver Cameron fazendo seu papel de amigo só piorava minha situação.
– Vou sentir sua falta. – Respondi, simplesmente, mesmo com a voz falha.
– Não. – Cam falou antes mesmo que eu terminasse a frase, apontando um dedo para mim. – Você não vai fazer isso comigo.
– O que? – Rimos do seu rompante e ele virou-se de costas para mim, voltando a mexer nas malas.
– Você não vai me fazer chorar a essa altura do campeonato. – Meus olhos imediatamente encheram-se de lágrimas só de imaginar Cameron chorando.
Abaixei a cabeça, respirei fundo e levantei do chão. Fui até o rapaz e o abracei por trás, enfiando meu rosto em suas costas, onde depositei um beijo leve, escondendo minhas lágrimas e afastei-me, não olhando para trás. Se eu olhasse, nós dois iríamos chorar e era o que eu menos precisava agora. Fui para o elevador, mas assim que cheguei no meu andar, Jack e Dana já estavam esperando.
– Só estava pegando minha bolsa, trancando a casa. Deixou a chave com a vizinha? – Dana perguntou a mim quando eles entraram no elevador. Confirmei, assentindo. A garota observou meu rosto e perguntou: – Você estava chorando?
– Não acho que eu tenha parado de chorar desde que acordei. – Confessei, rindo e passei a mão pelo rosto. Jack, que carregava uma caixa que deixaríamos nos Correios, passou os braços pelo meu ombro e depositou um beijo em minha testa.
A ida ao aeroporto foi quase silenciosa, apenas fomos escutando umas músicas e eu agarrada no peito de Jack, quase me afundando no meio dos nossos casacos. Estava muito frio e a chuva não tinha dado trégua. Observei Cam e Dana sentados na frente e perguntei-me como ficaria a relação deles agora que tinham pulado umas regras de convivência. Espero que nada fique estranho, Dizzy precisaria de Cam quando voltasse para Hillswood sozinha.
Passamos vinte minutos apenas esperando, sem realmente conversar, cada um perdido em seus próprios pensamentos, até que o nosso portão de embarque foi aberto, ocasionando uma pequena fila, mostrando que estava na nossa hora. Nosso voo fora anunciado no autofalante e eu não consegui conter a emoção. Agarrei a camisa de Jack, que estava sentado ao meu lado e recebi um abraço cheio de comoção e sentimento.
– Não vai colocar Jeins de cabeça para baixo, hein? – Brincou, mas sua voz tremia e eu sabia que ele estava segurando o choro de todas as formas possíveis.
– Só se você prometer ser legal com Victoria. Não seja um babaca, fica com ela! – Rimos juntos e ele passou a mão pelo meu rosto, limpando minhas lágrimas grossas. – Vou sentir muito a sua falta, muito!
Abracei-o de novo, soluçando. Eu odiava despedidas, eu já estava exausta mentalmente e ainda nem tinha chego em Cam. Afastei-me de Jack, que foi abraçar Dana.
– Amo você, Cameron. – Abracei-o pelo pescoço.
– Amo você, pequena Jay. – Ele se afastou, colocando meus cabelos para trás da orelha. – Não se meta em confusões, ok?
– Por que vocês me falam isso? Eu não sou tão ruim assim. – Bati o pé no chão, contrariada e eles riram.
– Apenas tente não estourar o carro em um poste. – Jack brincou, rindo da minha feição emburrada.
– E também não seja expulsa da faculdade. – Cam completou, fazendo-nos gargalhar.
– Nem foi expulsão. – Murmurei, resmungando e colocando minha bolsa no ombro, causando mais risadas.
– Também tente não ser presa, ok? – Jack zombou e cutuquei seu braço, fingindo estar ofendida.
Dana passou por mim, indo abraçar Cam. Observei os dois pela minha visão periférica e pude notar quando o rapaz falou algo no ouvido dela, fazendo-a rir e dar uma tapa de brincadeira nele. Eu e Jack nos entreolhamos, sorrindo enviesados. A tensão sexual entre aqueles dois era quase palpável.
– Fiquei sabendo que o movimento estudantil da cidade está precisando de novas lideranças, talvez eles estejam precisando de alguém com ideias anarquistas. – Brinquei, dando de ombros.
– Julieta, pelo amor de Deus, não me faça ir vender minha passagem de volta e ficar lá com você. – Dana me repreendeu, preocupada com meu bem-estar. Ela sabia que eu estava brincando, mas que tinha um fundo de verdade. – Já está na nossa hora, vamos? Vejo vocês após o natal. – Dana segurou minha mão e com a outra, empurrava o carrinho com minhas malas.
Demos alguns passos em direção ao portão, mas impulsivamente, soltei a mão de Dana e corri de volta até os rapazes. Meus olhos embaçados de lágrimas me impediram de ver o rosto de ambos, mas abracei os dois ao mesmo tempo.
– Não a deixem ficar sozinha por muito tempo nos primeiros dias, ok? – Implorei, minha voz estava trêmula e preenchida por soluços. Olhei para baixo ao ver que Jack chorava comigo. – Vejo vocês algum dia.
Voltei a Dana, que nos olhava de longe e também parecia segurar as lágrimas. Inconsciente, olhei para trás, vendo os dois rapazes um ao lado do outro. Não era besteira dizer que Cameron e Jack haviam mudado a minha vida. Eu os amava tanto, tanto! Eu me sentia a mulher mais sortuda do mundo por ter a oportunidade de ser amiga dos dois caras mais incríveis que eu já conheci. Acenei enfraquecida.
Achei que nunca mais pararia de chorar quando avistei Cam limpando o próprio rosto e Jack confortando-o com uma mão no ombro, olhando-o pesaroso.


Março.
Eram em momentos como aquele que eu parecia sair do meu corpo e me questionar. Como eu voltei para cá? Eu estava lá, caminhando novamente pelas ruas apertadas do Jeins, pisando firme para não correr o risco de cair por conta do chão desnivelado. A visão panorâmica do local ainda era a mesma: as casas pequenas, apertadas e compridas, coladas umas às outras, vivendo entre o caos e a paz. A população fingindo viver à margem da sociedade para praticar suas barbaridades sem ser julgado por isso. As luzes amareladas das casas transbordavam nostalgia em mim, lembrava minha infância, em que eu andava pela rua, brincando, sem medo de nada. Agora eu não era mais a mesma, andava pelo bairro me agarrando a fé de que nada de ruim aconteceria comigo.
Dois meses atrás, eu achei que deixar Dizzy no aeroporto, vê-la voltar sozinha para a nossa casa, seria a coisa mais difícil do meu ano. Achei que a parte difícil seria sair de HW. Infelizmente, eu estava errada. A parte difícil era se manter no Jeins. Um mês após o meu regresso, eu já havia voltado a viver minha realidade de antes. Eu era novamente a garota certinha no meio errado. Sentia-me deslocada, mal-acostumada com a boa vida que eu tive em Hillswood. Essa deveria ser minha dificuldade diária. Minha readaptação a cidade etc., mas é claro que eu tinha que estar metida onde não devia.
Praguejei para mim mesma enquanto eu descia a rua a caminho da delegacia municipal. Max havia sido pego fazendo pichações no Centro Histórico de Springfield. Max era um cara alto, que jogava futebol todos os dias às 16h, morava sozinho desde os doze anos, era irritado, quase não falava e muito marrento. Nos conhecíamos desde a infância, assim como todos com quem eu convivia atualmente. Vivia dizendo que não precisava da ajuda de ninguém e que sabia se cuidar sozinho, porém era o meu número que o mesmo concedia como contato de emergência em todos os DPs da cidade.
Agarrei a bolsa contra o meu corpo quando meus sentidos entraram em alerta e eu notei que já não andava sozinha na rua estreita. O ruído de um motor se aproximava mais de mim a cada segundo. Era início de noite, o céu já estava tomado de nuvens, deixando tudo ainda mais escuro e perigoso. No geral, o Jeins não era um bairro de extrema periculosidade, mas a predominância de gangues rivais no distrito sempre deixava a população mais atenta, visto que todo mundo que residia lá tinha uma história de convivência com a violência urbana.
– Se andar mais rápido, vou começar a achar que está com medo.
Eu estava pronta para correr, mas reconheci a voz grave que veio por trás de mim. Virei para trás, dando de cara com Santiago. Ele também era um amigo de infância, fazia anos que não nos falávamos e eu sempre achei que ele não ia muito com a minha cara, mas desde que retornei, eu estava tendo mais contato com ele do que eu deveria.
– Ah! É você. – Desdenhei, relaxando a tensão do meu corpo, soltando a bolsa e deixando meus braços caírem ao lado do corpo.
– Cuidado com esse desprezo, garota! – Ameaçou-me, tirando o capacete vermelho e desligando a moto. Bufei com sua ameaça malfeita, cruzando os braços. – Eu conheço esse visual. E esse olhar.
– Que visual? – Perguntei, abusando do tom esnobe. Eu não tinha muita paciência para fingir que tinha medo do Santiago. Era um pouco incoerente quando eu lembrava que o cara costumava ter medo de gatos quando criança. E amava desenhar borboletas.
Nada contra quem tem medo de gatos e gosta de borboletas, é claro.
– Essa bolsa, esse olhar preocupado e raivoso. Você está indo na polícia pegar algum dos seus protegidos, não é? – Zombou, cutucando minha bolsa com o dedo.
– Dá licença, Gabriel. Estou atrasada. – Continuei andando e ele continuou parado no mesmo lugar.
– Vai ser caminho perdido. – Parei ao ouvir sua sentença e olhei para trás. Expirei profundamente, pois já sabia onde isso iria acabar me levando. Ele sorria, desdenhoso e sarcástico, como se já soubesse meus próximos passos. – Você precisa parar de me chamar assim.
– É seu nome. – Mudei de direção, seguindo o caminho contrário e indo em direção a ele. Esticou o capacete em minha direção, com a expressão entediada. – Não era o nome do seu pai?
– Você fala demais, Julieta! – Apontou o dedo indicador em direção ao meu rosto, empurrando meu queixo para o outro lado com um pouco mais de força. Estremeci, mas eu preferi apenas soltar uma gargalhada sarcástica, colocar o capacete e subir na motocicleta.
Toda vez que Santiago me tratava de forma um pouco mais brutal, toda vez que a outra personalidade dele aparecia para mim, eu ficava receosa. Me fazia refletir e considerar se valia a pena manter essa amizade. Eu sabia que muita coisa não estava certa, porém, eu não estava dando a mínima.
Seguimos o caminho de volta em silêncio, fiquei apreensiva quando dobramos na minha rua. Analisei bastante quem estava passando pelo local, imaginando se alguma daquelas pessoas iria me reconhecer e contar para os meus pais que eu estava passando direto da minha casa e indo em direção ao Forte – que era como Santiago e seus colegas chamavam o local –, uma casa comprida que ficava distante do resto das casas coladas umas às outras.
– Você está de sacanagem?! – Bradei, irritada ao ver Max sentado no sofá, jogando videogame tranquilamente. Nem um pouco preocupado com a minha preocupação. Não hesitei em soltar umas tapas em sua cabeça quando me aproximei. – Você tem sorte que eu não cheguei à delegacia!
– De nada. – Santiago sorriu sarcástico, lançando-me uma piscadela. Max não falou nada, apenas deu de ombros e voltou a jogar, me fazendo bufar de raiva.
– E você? Por que também não me avisou que ele já estava liberado? – Questionei Sun, que estava sentado do lado do outro imbecil, enfurecida com suas expressões calmas.
– Eu não tenho como, não tenho celular! – Defendeu-se, assustado com meu tom de voz enraivecido.
– Uma televisão que cobre a parede inteira, um videogame de última geração e você não tem coragem de dar um mísero celular para esse garoto? – Virei-me para Santiago, protestando aos berros.
– Quer cuidar da contabilidade para mim? – Debochou, jogando-se esparramado em um poltrona larga. Revirei os olhos, indo em direção ao mini frigobar e pegando duas latinhas de cerveja. Fiz questão de passar na frente da TV, provocando reclamações. Joguei uma das latas em direção de Santiago quando passei por ele, indo sentar em outra poltrona. – Você é muito abusada, cara! Relaxa aí...
Tomei o conteúdo da latinha quase todo em uma só golada, tamanha era minha sede e irritação. Acomodei-me no sofá, tirando meus tênis e procurando uma posição confortável. Não era a primeira vez que eu ficava no Forte, lugar considerado intocável e o mais perigoso por ser a residência de um dos líderes de uma das gangues de Springfield.
Eu disse que estava metida onde não devia.

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"O que sua mamãe faria se te visse agora?". As palavras de Gabriel Santiago não saiam da minha mente.
Entre um convite para ir ao bar e encontros aleatórios pela rua, acabei tornando-me íntima demais das pessoas erradas. Íntima demais ao ponto de continuar no Forte depois de Sun e Max irem embora. Íntima ao ponto de ver Santiago com a cabeça entre as minhas pernas. Fora em um desses momentos que o mesmo questionou o que minha mãe faria se soubesse que eu estava no quarto com o maior arruaceiro da cidade. Nós não conversávamos muito, o ato era puramente carnal, físico. Nos beijamos pela primeira vez em uma festa na vizinhança e as coisas foram ficando mais quentes, porém, nunca tínhamos ido até os "finalmentes". Eu nunca conseguia, nunca queria, pois um certo cara de Hillswood continuava impregnado em minha carne.
Fazia pouco tempo que eu estava em casa, mas minha vida já estava ficando de cabeça para baixo. Outra vez.
Pela janela do meu quarto, – que ficava na parte de trás da casa – eu tinha a visão "privilegiada" de um pequeno lago sujo e um antigo prédio destruído na beira, onde havia muito lixo e fora ocupado por moradores de rua. Ia seguir meu caminho até a estante de livros no lado contrário, mas voltei para a janela quando a visão de Santiago sentado em uma das construções quebradas chamou minha atenção. Como se soubesse que eu estava lá, também olhou em direção em minha direção. O cara que estava ao lado dele também, apontou para mim e pareceu fazer algum comentário. Santiago o empurrou e agora parecia brigar com o mesmo. Eu sabia que ele estava me defendendo de algum comentário maldoso feito pelo rapaz estranho ao lado dele. De alguma forma, eu me sentia segura com Santiago, sabia que ele nunca me faria mal (fisicamente), nem deixaria que ninguém me fizesse mal.
– Julie? Ouviu alguma coisa que eu disse? – Dana berrou, fazendo-me voltar a olhar para a tela do notebook.
– Desculpa, me distraí. – Balancei a cabeça, obrigando-me a parar de pensar em Santiago e suas provocações, dispersando meus devaneios.
já vai aparecer, corre para a TV! – Exclamou, animada. Fechei as persianas do meu quarto, obrigando-me a não olhar em direção ao lago novamente, levei o aparelho comigo e fui para a sala da minha casa, único lugar onde tinha uma televisão.
Patrick estava sentado no sofá, mas não olhava para a TV, estava concentrado demais mexendo no celular. Quando voltei, Pat foi o primeiro a vir correndo em minha direção quando cheguei no aeroporto de Springfield, demorei uns segundos para me dar conta que aquele garoto alto e atlético era meu irmãozinho de 18 anos.
– Vou usar a TV. – Puxei o controle remoto para meu lado e ele puxou de volta.
– Estou assistindo! – Reclamou, subitamente interessado na tela que não era do seu celular.
– Não está, não! – Antes que ele começasse uma discussão, joguei meu notebook em seu colo. – Fala com a Dana.
– Oi, Dizzy. Tchau, Dizzy. – Cumprimentou, entediado, e logo me devolveu o aparelho. Revirei os olhos com o seu mal jeito.
– Patrick na adolescência está me dando nos nervos. – Queixei-me, fazendo Dana rir. Posicionei o aparelho na pequena mesa de centro e sentei no sofá, encolhendo as pernas.
– Você perdeu a pior época. – Pat admitiu e deu de ombros, esquecendo sua implicância e voltando a mexer no aparelho celular.
Procurei pelo canal onde o meu novo cantor preferido iria aparecer. , maior promessa musical do ano, seria convidado de um famoso talk show nacional, ocasionando explosões de orgulho em seus amigos bobinhos. Fazia uns dias que não nos falávamos, mas fiz questão de mandar uma mensagem de boa sorte para o meu rapaz.
– Os meninos chegaram! – Dizzy avisou e eu logo ouvi o barulho familiar de Cam e Jack andando pela casa.
O coração apertou de saudades quando eles sentaram no sofá, em seus lugares costumeiros. Eu sempre achava engraçado e maravilhoso quando eles cumprimentavam e começavam a conversar comigo como se eu estivesse sentada no sofá com eles. Os primeiros dias longe de HW foram os mais fáceis. Eu sentia que estava apenas cumprindo o recesso, mas os dias iam passando e logo a ficha que eu não iria voltar estava caindo. Estava começando a ficar difícil de lidar com a saudade.
– O que vai passar aí? – Pat questionou, apontando para a TV com a cabeça.
vai participar, acredita nisso? Não é legal? – Exclamei, totalmente empolgada e Pat rolou os olhos, entediado.
Ele sabia sobre e toda a minha história com o mesmo. Quando percebi que Pat já não era mais um garotinho irritado que brincava no chão do meu quarto enquanto eu estudava, passei a dividir com ele minhas histórias e a tratá-lo como igual, como adulto. Passou a ser meu melhor amigo, conversávamos sobre tudo e ele sempre me atualizava sobre suas descobertas acerca da própria sexualidade. Patrick acabou mostrando-se um cara mente aberta e muito confortável com suas próprias escolhas. Um orgulho de irmão, eu diria.
– Pai, o namorado da Julieta vai aparecer na TV!
Porém, ele ainda sabia exercer muito bem o seu papel de irmão mais novo.
– Haniel? Por que? – Dana gargalhou alto com a pergunta talvez não tão inocente do meu pai. O homem de meia idade apareceu na sala, trazendo um caderninho em mãos. Meu pai era contador e sempre estava anotando alguns números em um de seus variáveis cadernos. Ele era um homem tranquilo, que sabia fazer comentários ácidos como ninguém.
Eu achava adorável a forma como ele e minha mãe estavam aderindo, juntos, seus cabelos brancos.
– Não é meu namorado, é meu amigo, ! Eu comentei sobre ele. – Expliquei, aconchegando-me melhor no sofá apertado, jogando minhas pernas por cima de Pat e dando espaço para nosso pai sentar ao nosso lado no sofá pequeno.
– Ah, claro! O músico. – Assentiu, guardando o pequeno caderno no bolso e sentando-se. – Dizzy, meninos. – Acenou para a tela, cumprimentando-os.
– Oi, sr. Young! – Os três pronunciaram juntos, como ensaiavam e sempre cumprimentavam meus pais.
Sorri quando o programa iniciou, apresentando como o convidado do dia. Ele estava sentado no sofá do apresentador tranquilamente, parecia até que fazia aquilo todo dia. era natural demais e nasceu para trabalhar com entretenimento.
– Olha como ele está bonito! – Comentei, sorrindo encantada, apoiando meu queixo na mão. Pat fez um barulho de vômito e Dana gargalhou, mas concordou comigo.
Aumentei o volume da TV, ignorando a tudo e todos. Suprimi um sorriso durante toda a entrevista. estava bonito demais, só de vê-lo em alta definição parecia que eu conseguia sentir seu perfume. A jaqueta de couro preta era minha peça de roupa preferida dos seus shows, ele ficava um pedaço de mal caminho quando colocava aquela peça.
falava sobre os próximos projetos, a gravação de um disco (que eu não sabia da existência!) e brincava de um jeito leve, deixando até mesmo o apresentador encantado com seu jeito suave e leve de conduzir a entrevista.
– Músicos... Não são confiáveis. – Meu pai cruzou os braços, intercalando seu olhar desconfiado entre mim e a televisão.
é confiável. – Sorri quando se posicionou no palco para tocar. Senti-o analisando minha expressão apaixonada por alguns segundos.
– Você já beijou esse garoto, Julieta? – O homem questionou seriamente, olhando-me severo. Todos irromperam em risadas, me deixando em maus lençóis.
– Pai! – Reclamei. Escondi meu rosto entre as mãos, envergonhada. Meu pai nunca fora rígido, mas ainda era estranho falar sobre minha vida íntima de forma aberta com ele.
– Muitas vezes, sr. Young! – Jack respondeu gritando do outro lado da tela e todos riram novamente.
– Ótimo! – Resmungou, sarcástico, puxando o celular do bolso. – Por que você não se envolveu com o menino Cameron? Ele é mais aprazível para você, filha.
Pois é, lembram quando eu sofri o acidente e minha mãe usou deste momento para dar em cima de Cameron por via celular? Acontece que meu pai também havia adquirido uma grande simpatia pelo nosso britânico, e agora vivia lançando indiretas para mim, usando-o. E quando perguntado sobre, Cam apenas dá de ombros e diz: "Pais me amam!".
– Obrigado, Sr. Young, sempre pontual e certeiro em seus comentários! – Cameron agradeceu, fazendo uma reverência.
– Estou no Google procurando a ficha criminal desse rapaz agora mesmo. – Eu via pelas lentes dos óculos dele que realmente estava.
– Pai... – Reclamei, rolando os olhos.
com ficha criminal, é até engraçado. – Dana debochou, rindo. – A sua filha deve ser mais fichada que ele. – Provocou, causando risos em todos. O pior é que era a mais pura verdade.
– Você está rindo do quê? – Zombei, sarcástica, olhando para meu pai rindo. – Eu tenho uma ocorrência, sim, do protesto estudantil em que eu apanhei e ainda fui culpada por isso, mas e você, "Sr. Vamos Tomar Os Meios de Produção"?! Quantas? – Provoquei, vendo o sorriso do meu pai se desfazer.
– É por isso que a Celia não queria ter filhos! – Provocou, mencionando a antiga vontade de mamãe.
– E teve logo três, se ferrou! – Pat zombou, rindo.
A história dos meus pais era uma das histórias de amor que eu mais gostava. Conheceram-se em uma assembleia estudantil na universidade, que acabou em protesto contra a reitoria da época. Conheceram-se por meio de amigos em comum, confeccionando cartazes de reivindicações. Fala sério, tem coisa mais incrível que isso?
Minha mãe conta que ela – estudante das ciências sociais e militante do movimento estudantil – se perguntava o que um cara de economia estava fazendo no meio de uma revolta universitária. Ficaram amigos e sempre gostavam de ficar juntos. Porém, um não assumia seus sentimentos para o outro, sempre haviam impedimentos. Um desses obstáculos fora um primo do meu pai, que minha mãe passou a namorar. Foi na mesma época em que ele teve seu primeiro filho. Perderam o contato até alguns anos se passarem e eles começaram a trabalhar na mesma empresa de telemarketing. Então, finalmente, deu certo.
Isso tudo só me deixava mais ciente do fato de que quando é para ser e acontecer, até os ventos são a favor.
– Sem arrependimentos. Se for para ter algo na ficha, que seja pela luta de seus direitos! – Meu pai passou o braço pelo meu ombro e deu um beijo estalado em minha testa. Não consegui conter o sorriso e o abracei de volta.
Era importante e incrível o quanto meus pais me apoiavam, eu me sentia extremamente sortuda em ter pais que sabiam da importância de se lutar pelo o que acredita.
– Eles realmente são uma família de comercial de margarina... – Jack comentou, descrente ao ver a cena. Rimos, orgulhosos de nossa boa fama.
Assistimos o resto do programa sem interrupções, apenas comentando e rindo dos comentários engraçadinhos de Jack e Cameron. Quando chegou ao fim, enviou vários palavrões no nosso grupo de mensagens e após isso, mandou: "Gente, estou tremendo até agora, me digam se deu pra ver na TV que eu estava mijando nas calças!". Mandamos várias fotos, textos e gifs em comemoração, comentando o quanto ele estava incrível.
E só para não perder o costume de me deixar com o coração aquecido, logo uma mensagem dele aparecer no meu individual, dizendo: "Usei a jaqueta que você gosta! (:"

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– Estou falando sério, Dana! Eu não sei quanto tempo vou ficar fora e você não tem mais como arcar com as despesas desse apartamento sozinha. – Já fazia quase uma hora, desde que o talk show chegou ao fim, que eu estava tentando convencer minha melhor amiga a conseguir uma nova colega de casa, mas ela parecia não estar convencida. – Você lembra que não tem tanto dinheiro assim, não é?
Balcio, pai de Dana, diminuiu consideravelmente a mesada da garota durante o Natal, na intenção de fazê-la voltar para casa, mas isso só a irritou profundamente. Ainda bem que ela tinha economias guardadas e um bom salário atualmente, senão ela teria que mudar de apartamento, apesar do nosso não gerir um gasto muito alto.
– Eu sei, Julie, mas eu não quero outra roommate! – A birra da garota me fez rir.
– Não é querer, você precisa! – Assegurei, firme. Terminei de arrumar minha cama e passei a arrumar a cama de Clarissa ao lado da minha.
Até hoje não entendi muito bem o motivo de Clarissa voltar a morar com nossos pais. Ela quase provocou a terceira guerra mundial ao sair de casa com apenas 16 anos, não imaginei que um dia ela voltaria. Mas eu também nunca pensei que, com 25 anos, eu estaria novamente dividindo quarto com a minha irmã de 31 anos.
– E eu vou ver minha conta bancária, dependendo do saldo, eu anuncio que estou procurando uma companheira para dividir o aluguel. Argh, parece traição com você! – Dana continuava a falar e ao que parecia, havia cedido. Antes que eu confessasse que não estava prestando atenção no que ela dizia, alguém bateu na porta do meu quarto.
– Não é traição, é sobrevivência. – Desviei o olhar da tela e fui até a porta. Era Clarissa, carregava uma bolsa preta gigante e parecia ter saído do trabalho naquele instante.
– Posso conversar com você? – Pediu timidamente, sorrindo de boca fechada. Franzi a testa, meu senso de irmã gritava em minha cabeça. Problemas à vista. Confirmei e me despedi de Dana, avisando que ligava no outro dia.
Agora que eu estudava de manhã, minhas tardes e noites eram quase que inteiramente livres. E por falar em estudo, a minha nova turma da faculdade não era de todo ruim, mas era o último semestre e todos tinham uma intimidade que eu jamais conseguiria ter. Eram todos bem inclusivos, eu até já participava de algumas festas e reuniões.
Entretanto, ainda me sentia uma estranha no ninho.
– O que houve? – Questionei, sentando na cama, observando o jeito como ela apertava as mãos uma na outra. – Desde quando você bate na porta do seu próprio quarto?
– Estou com problemas! – Proferiu com a voz trêmula. Eu não disse?
– Que tipo de problemas? – Perguntei novamente, preocupada. Ela bufou nervosamente, tirou os sapatos e sentou ao meu lado na cama. Abriu a bolsa, jogando uma sacola de plástico em meu colo.
– Esse tipo de problema. – Quando abri a sacola, quase pude sentir meu queixo encostar no chão.
Três testes de gravidez.
– Puta merda, Clari! – Exclamei totalmente surpresa enquanto abria as caixas de teste um por um, tendo a confirmação de que ela já havia feito todos. Para a minha surpresa e para o desespero dela, todos positivos.
– Eu tenho trinta e um, já estava na época, certo? – Tentou falar, mas sua frase acabou saindo como um choramingo. Abri a boca para falar várias vezes, mas nada saia tamanho choque. Ela ergueu as sobrancelhas, me forçando a ter alguma opinião sobre. – Julie!
– Eu não sei o que dizer! – Confessei, já sendo contagiada pelo seu aparente nervosismo. Mexi os palitinhos nas minhas mãos e comecei a balançar minha perna ansiosamente.
– Patrick! Vem aqui, rápido! Rápido! – Começou a gritar com urgência, batendo as pernas no colchão e me assustando com sua agitação. Ouvimos passos fortes vindo do corredor até Pat aparecer na porta do meu quarto, ofegante.
–O que houve? Você está bem? – Questionou, entrando no cômodo. Clarissa apenas deitou–se e esticou os braços em direção ao garoto.
– Eu preciso de um abraço! – Lamuriou-se, fazendo um bico.
– Eu vou te matar. – Ameaçou-a, apoiando as mãos na cintura e respirando profundamente. – Você quase me matou de susto, Clarissa! – Esbravejou.
– Você ainda não viu nada. – Mostrei os testes em minha mão. Patrick encarou os testes, depois subiu o olhar, intercalando entre mim e nossa irmã.
– De quem é? – Perguntou, embasbacado.
– De quem você acha? – Rolei os olhos, apontando para Clarissa ao meu lado.
A mulher revirava-se na cama, tal qual uma adolescente passando por uma crise, findando de bruços, com a cabeça enfiada no travesseiro e puxando os próprios cabelos loiros. Eu detestava vê-la daquela forma, especialmente por aquela situação ser uma total novidade. Clarissa nunca se desesperava com nada. Era conhecida por ser calma e confiante, era ela que sempre oferecia segurança em tempos difíceis.
– Puta merda, Clari! – Pat exclamou o mesmo que eu segundos atrás e estendeu a mão para pegar o palitinho.
Clarissa era o sonho de toda mulher independente e todo escritor de autoajuda. Aos 30, tinha uma carreira sólida em uma multinacional, era pós-graduada e, apesar de estar morando com nossos pais novamente, ela tinha seu próprio apartamento. Minha irmã nunca reclamava de seus problemas, ela nem sequer via seus problemas como problemas de fato. Eram apenas umas tarefas mais difíceis de resolver.
Exceto pela gravidez, isso sim parecia ser um problema para ela. Começando pelo fato de que eu nem sequer sabia que ela curtia homens.
– Clari, não precisa se desesperar. – Tentei reconfortá-la, passando a mão pela sua testa franzida.
– Puta merda, Clari! – Pat exclamou, ainda olhava estupefato para o objeto em mãos. O repreendi rapidamente com o olhar. A mulher já parecia desesperada o suficiente, ela não precisa de mais reações chocadas. – Eu estou confuso para caralho! Você não é gay?!
– Patrick! – Recriminei novamente, mas sinceramente, eu estava me perguntando a mesma coisa.
Aos vinte e poucos anos, eu assisti Clarissa se apaixonar e desapaixonar várias vezes pela mesma mulher. Elas viviam como gato e rato, personificando aquelas histórias de amor e ódio que vemos por todo canto. Logo após, Clarissa foi promovida, seu estilo de vida mudou e eu logo soube bem pouco da sua vida amorosa.
– Foi a minha... Primeira... Vez... – Recitou tímida e pausadamente, a voz diminuindo aos poucos.
– Você engravidou de primeira!? – Descompensei, acidentalmente.
– Julieta! – Agora foi a vez de Patrick me censurar.
– Você acha que a culpa foi minha? Acha que eu queria isso? Eu fiz algo por curiosidade e vou acabar com a porra de um bebê! – A mulher gritou, desesperada. Patrick fez um "shiu" nervoso, apreensivo com a possiblidade de nossos pais estarem nos escutando.
– Como isso foi acontecer? – Questionei, assustada.
– Eu sei lá, a camisinha estourou ou não funcionou. Eu não sei, Julieta. Acredite ou não, eu não entendo muito bem de sexo hétero! – Vociferou, inquieta e exasperada.
– Como um teste de farmácia sabe até de quantas semanas você está? – Pat questionou, encarando um deles.
– Vocês estão cheios de perguntas complicadas hoje. – Clarissa resmungou, rolando os olhos.
– Sério que diz isso aí? – Estiquei a mão, pedindo pelo objeto, curiosa com o resultado. Indicava apenas um "3+", o que eu acredito que signifique mais de três semanas.
– Eu não preciso disso, eu sei exatamente quando aconteceu. – Suspirou, revelando. Ela deu de ombros ao notar que eu a encarava com uma sobrancelha erguida, esperando que ela nos contasse pelo menos algum detalhe pequeno. – Festas de fim de ano deixam as pessoas solitárias, não me julguem.
O meu olhar e de Pat desceu de seu rosto até a barriga dela, procurando pelo menor sinal de protuberância causada por um bebê, mas com seu aparente ganho de peso – o que agora fazia todo sentido – não era possível ver tanta diferença assim.
– Parem com isso! – Exclamou, afetada, cobrindo com um travesseiro aquela parte especifica do seu corpo. Fechou os olhos, envergonhada, voltando a pressionar o próprio rosto contra o outro travesseiro.
– E ele já sabe? – Pat questionou, mudando de assunto. – O cara que... Bem, você sabe...
– Não, eu acabei de descobrir. Eu não sei o que fazer, nem sei se vou ficar! – Exclamou.
Eu sabia que Clari estava desesperada, mas eu não conseguia nem a imaginar fazendo um aborto ou algo relacionado a não ficar com o bebê. Pat mexeu nos cabelos, jogando-se ao lado da loira. Ela choramingou e abraçou o torso magro de Pat. Aproximei-me e abracei por trás.
– Você quer... Resolver isso? – Pat estranhou. Nós conhecíamos muito bem a personalidade afetiva de Clari. Ela nunca julgaria alguém por fazer isso, mas sabíamos que ela mesma não faria.
– Eu não sei! – Confessou, passando a mão pelos fios dourados.
– Quer saber? Não importa o que você vai fazer, saiba que você não vai ficar sozinha. – Afastei seus longos cabelos loiros e beijei sua bochecha. – Estamos aqui para te ajudar com qualquer coisa.
– Isso mesmo, qualquer que seja sua decisão, você não vai passar por isso sozinha. – Patrick concordou, apertando seus braços em volta da mulher.
Clarissa apenas assentiu, de olhos fechados. Foi doloroso assistir suas lágrimas grossas caírem pelo seu rosto perfeito. Gravidez não era uma maldição ou a pior coisa do mundo, mas para Clarissa, que tinha sua vida inteira planejada desde os 14 anos, era um completo desastre.

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As quintas-feiras eram sempre os melhores dias da semana para mim. No Jeins, nós almoçávamos todos juntos nas quintas, já que nos outros dias, isso quase não era possível de acontecer. Uma grande mudança para mim, que estava acostumada a tomar umas cervejas com meus amigos no Carté no mesmo dia da semana. Não foi uma mudança ruim, apenas diferente.
– Patrick, você está com a média baixa em biologia? É sério? – Minha mãe olhava o boletim do menino com uma feição de desgosto no rosto. O mesmo apenas deu um sorriso amarelo.
Minha mãe, Celia Young, era uma mulher extraordinária. Minha mãe era filósofa, formou-se na mesma universidade que eu, mas a vida a levou para outros caminhos e agora ela trabalha como gerente de uma companhia de telemarketing, mas mamãe nunca deixou de estudar, também nunca sentiu que isso foi uma falha em sua vida. Ela costumava promover saraus e encontros literários pelo bairro. Inclusive, meus conceitos de vida eram inteiramente influenciados por ela, que desde cedo nos introduziu a um pensamento independente e crítico.
– Acho que está na hora de ele receber o discurso que eu recebi quando tirei minha primeira e única nota baixa no colégio. – Comentei, fazendo questão de frisar a palavra "única". Não que eu fosse a maior nerd de todos os tempos, mas como já citei antes, eu sempre gostei de estudar, nunca fora um sacrifício.
Estávamos todos na pequena cozinha da minha casa, que também era a sala de estar e a sala de jantar. A minha casa era dividida em quatro cômodos, sem contar o banheiro. O andar de cima, onde haviam o quarto dos meus pais, o de Patrick e o meu e de Clarissa. (Essa mulher não decide onde morar, sério). E o andar de baixo era apenas um grande cômodo, sem paredes, cujos móveis foram organizados de forma que parecesse que haviam divisórias. Era apertado, mas a gente se virava. Eu estava arrumando a mesa para o almoço e Pat havia entregado o boletim para os nossos pais, que cozinhavam juntos.
– É uma boa ideia! Isso pode ser intenso, você está preparado? – Minha mãe concordou e perguntou. Pat assentiu, segurando o riso. – Patrick, meu filho amado, meu caçula. Não nos importamos com as roupas que você veste. Se você beija homens ou mulheres, dane-se. Se você quiser beber, beba. Se quiser fumar, fique à vontade. Não é como se você não soubesse os malefícios do álcool e da nicotina.
– Mas Julieta nos mostrou um estudo bastante convincente sobre a marijuana uma vez. – Meu pai comentou, salpicando algo na panela.
– De nada. – Murmurei, piscando para Pat, que já estava vermelho de tanto rir com o discurso engraçadinho de nossa mãe.
– Se for cocaína... – Meu pai quis continuar, mas logo foi interrompido.
– O que nós estamos querendo dizer, – Minha mamãe falou antes que o homem grisalho partisse para um lado mais sombrio. – É que a única coisa que nos importa (no momento) é onde você está, que horas vai chegar e suas notas. Nós precisamos dessas notas altas. Pois quando os vizinhos vierem fofocar sobre você estar bebendo e fumando por aí, nós vamos poder dizer: "Ele é o primeiro da turma, dona Josepha! Ele pode fazer o que quiser!"
Começamos a bater palmas ao término do discurso, estourando em gargalhadas. A velha Josepha definitivamente era a detentora do posto de maior fofoqueira da rua.
– Eu prometo que vou recuperar, mãe! – Pat assegurou, enquanto os ajudava a levar as travessas de comida para a mesa. – Eu perdi o foco por um tempo, só isso.
– Você também não pode engravidar ninguém. – Minha mãe apontou um dedo para Pat, que apenas revirou os olhos e seguiu de volta para o lado de nosso pai.
Como uma cena digna de uma sitcom, ouvimos o tilintar de chaves na porta e logo Clarissa entrou no local, cumprimentando a todos. Eu e Pat nos entreolhamos, apreensivos. Ela estava exalando a "Clarissa-vai-ao-resgate", era a expressão que nós criamos para descrever o semblante que ela usava quando entrava em um local pronta para fechar negócio. Consistia em seu rosto sério e formal, mas nada agressivo. Era a expressão que costumava usar para mediações de brigas e discussões em nossa residência.
Eu desconfio que foi assim que ela chegou na diretoria da empresa.
– Oi, estou atrasada? Já começamos? – Questionou, jogando a bolsa no sofá e indo lavar as mãos.
– Que nada, estamos esperando esses dois pararem de brincar com a comida! – Minha mãe resmungou. Patrick e meu pai haviam se empolgado na decoração do fricassê e não queria parar de desenhar coisas com os tomates cortados.
– Ótimo, nós podemos conversar, então. – Clarissa enunciou, com uma formalidade impressionante para quem ia anunciar uma gravidez. Por isso ela tinha um currículo invejável para qualquer administrador.
Algumas noites atrás, após muitos surtos e pesquisas, Clarissa havia decidido manter o bebê. Eu e Patrick havíamos passado horas fazendo uma lista de prós e contras – coisa que eu amava fazer! – para tentar ajudar nossa irmã a decidir seu futuro. Enquanto ela, como a boa planejadora que era, sentou na frente do computador e pesquisou tudo sobre bebês, maternidade, gravidez, pais, parto, aborto, adoção e bissexualidade.
Pois é, ela havia curtido o sexo hétero mais do que achou que iria curtir.
Havia uma lista enorme de contras, porém, uma lista de prós ainda maior. Logo, ao final da noite, tínhamos uma bissexual, dois tios e três pessoas extremamente empolgadas com um bebê em suas vidas. Eu e Patrick já tínhamos até planos com a criança. E umas apostas envolvendo o sexo e o pai também. E por falar no pai, descobrimos a maior confusão. O cara era melhor amigo de Clarissa – bonitão, diga-se de passagem –, mas também era o chefe dela!
E eu achando que minha vida era agitada.
– Na mesa, vamos comer agora! – Minha mãe foi empurrando todos em direção à mesa, já possivelmente irritada com a constante brincadeira entre nosso pai e Pat.
– Estou grávida. – Clarissa anunciou impetuosamente, ocasionado uma breve paralisia em todos no local. Droga, a mulher nem nos deu tempo de sentar à mesa.
Aí começou o pandemônio. Meus pais começaram a gritar feito loucos. Não necessariamente com ela, mas sim, um com o outro.
Depois partiram para as perguntas, só que perguntavam de uma vez, um falando por cima do outro e ninguém entendeu nada. Berraram umas cem palavras por segundo quando tudo, finalmente, ficou em silêncio de novo. Meu pai apoiava o corpo na mesa, ofegante, como se tivesse acabado de sair de uma luta corporal. Minha mãe encarava Clarissa com os braços cruzados e uma expressão dura. Notei que Pat e Clarissa, que estavam mais próximos, estavam com as mãos entrelaçadas e tão apertadas que eu podia ver os dedos de Pat ficando esbranquiçados.
– Julieta, nunca faça sexo! – Meu pai alertou, do nada. Eu definitivamente não estava esperando que ele falasse isso.
– Você chegou atrasado, querido. – Minha mãe debochou, ainda sem deixar de olhar para Clari. Arregalei os olhos com a frase da mulher, vendo meus irmãos também se chocarem com a fala. Mama Celia era uma mulher muito intimidadora quando queria.
– Ah, não... – O homem lastimou e sentou na cadeira que ficava na cabeceira da mesa, encostando a testa na madeira, desacreditado de tudo que estava acontecendo.
– Pai, eu... – Tentei falar alguma coisa, mas não queria ficar desatenta a minha mãe, que parecia querer voar no pescoço da minha irmã a qualquer minuto. Ela sabia que eu a defenderia e provavelmente usou a minha virgindade para tirar minha atenção. A loira segurava as lágrimas e não soltava a mão de Pat de forma alguma.
– Foi o garoto da TV, não foi? Músicos... – Resmungou, ainda de cabeça baixa, como se não conseguisse nem me olhar.
– Não, pai. Já faz tempo... – Ele abriu a boca, indignado e eu imediatamente me arrependi de ter falado alguma coisa.
– Você está grávida? – Mamãe perguntou-me, debochada.
– Não! Faz tempo que eu... Não faço isso. – Fiquei extremamente envergonhada de falar sobre isso na frente do meu pai.
– Então não me interessa! – Voltou-se para Clarissa, que engoliu em seco ao constatar que a mulher estava realmente irritada.
– Você precisa levar essa garota ao médico! – Meu pai apontou o dedo para mim, ainda descrente.
– Tem uma filha grávida aqui! – Mamãe frisou enquanto ia até a geladeira e voltou com duas garrafas de cerveja, entregando uma para meu pai, que bebeu metade em menos de dois segundos.
– Eu preciso de algo mais forte que isso. – Reclamou e foi em busca de seu famoso uísque de 20 anos, o qual ele só tomava em ocasiões especiais. E aquela estava sendo uma ocasião bem inesquecível. – E você, moleque? Onde estava enquanto estavam inseminando suas irmãs?
– Eu sou a única inseminada, deviam estar falando sobre mim! – Clarissa tentou e ninguém ligou muito.
– Cuidando da minha vida? – Pat respondeu, exalando obviedade.
– Eu estou grávida, um bebê! Uma boca para alimentar. Pai indefinido! Podemos falar sobre isso? – Clarissa perdeu a paciência e esgoelou-se, assustando a todos.
A situação fora tão cômica, tão típica da minha família, que eu não aguentei e gargalhei, quebrando o silêncio. Eram tão parecidos comigo e tão minha família que era reconfortante. Agora eu já sabia de onde vinha toda a minha dramaticidade. Meu pai me olhou, negando com a cabeça, recriminando minha risada. Cobri a boca e pedi desculpas, segurando o riso.
– Vão para o quarto, vamos conversar com Clarissa. – Nosso pai ordenou e eu neguei com a cabeça.
– Estamos com fome! – Reclamei. Eu nem estava, só não queria deixá-la sozinha na sala, pronta para ser devorada pelos leões, tal qual Daniel na cova.
– Podem comer no quarto hoje. – Mama Celia rapidamente jogou a comida de qualquer jeito em dois pratos e entregou-os para nós.
- Mas... – Pat tentou, eu sabia que ele também não queria deixar a irmã só. Nós olhamos para Clarissa apreensivos e solícitos.
– Tudo bem, vocês podem ir. – Passou a mão de leve pelos fios de cabelo castanhos de Patrick. Assentimos com sua "permissão" e pegamos nossos pratos e subimos as escadas, ainda apreensivos.
Pat foi em direção ao seu quarto e eu segui-o, sentei na sua cama e saquei meu celular do bolso, já abrindo a conversa de Dana, pronta para contar as últimas confusões para ela, quando Patrick começou a falar, chamando minha atenção.
– Então... – Pat iniciou. Olhei-o e ele estava de costas para mim, sentado na sua escrivaninha, mexendo no prato de forma desinteressada. – Eu vi você hoje.
– Moramos juntos, você me vê todo dia. – Brinquei, sem desviar o olhar do celular.
– Julieta... – Chamou minha atenção e eu levantei a cabeça, franzindo o cenho ao encontrar seu olhar sério em minha direção. – Você estava no Forte.
– O que você estava fazendo lá? – Retruquei imediatamente, deixando meu celular de lado e questionando o óbvio.
– Estava com Sun. Fomos jogar um pouco. Ele me disse que você vive por lá agora. – Dei de ombros, querendo fingir que estava tudo bem, mas no fundo eu estava preocupada. O Forte era um local perigoso até para mim, imagina para o meu irmãozinho. – Julie, eu não quero ser chato, mas... É perigoso.
– Eu sei me cuidar, Pat. – Peguei meu celular novamente, não querendo olhar para a possível expressão julgadora do menino.
Ficamos em silêncio após isso, acho que minha resposta atravessada acabou causando estranhamento em nós. Eu sabia que ele estava genuinamente preocupado, mas não queria ter que explicar meu envolvimento com Santiago, pois não parecia muita coisa. Eu trocava umas carícias com o cara, não era como se estivéssemos vivendo algo maior.
Eu já estava quase cochilando na cama de Pat, enquanto ele jogava no computador, quando Clarissa entrou no quarto, procurando por nós. Seu rosto estava vermelho e inchado, a conversa provavelmente tinha sido regada a choro. Levantei rapidamente e abracei–a. Tive vontade de chorar por ela ter chorado um pouco no meu ombro.
– E aí? – Pat perguntou, pausando o jogo e indo até nós.
– Foi um susto para eles, – Confessou, suspirando e passando a mão pelo rosto. – Mas eu acho que vai ficar tudo bem. – Deu de ombros, sentando na cama.
– E o que eles falaram? – Questionei, curiosa.
– Bom, em síntese, só perguntaram as coisas básicas. Quanto tempo eu estou, quem é o pai, o que eu pretendo fazer... – Explicou. – Pediram um tempo para pensar e se adaptar a ideia. Acho que preciso desse tempo também, sabe? Pensar no que eu realmente quero fazer. Se quero incluir o Adam nisso e... Enfim, pensar em tudo.
Passamos o resto da tarde conversando sobre tudo, menos sobre o futuro, não queríamos sobrecarregar ainda mais a situação. Clarissa logo ficou cansada demais, talvez devido todo o esforço e desgaste emocional, e decidiu não voltar para o trabalho naquele dia, principalmente pois teria que ver Adam, o pai, e segundo ela, ainda não estava pronta para contar ao homem que sua noite de curiosidade e álcool tinha resultado em um baby. Acabou aconchegando-se em minhas pernas e dormindo, enquanto Patrick dedilhava alguma melodia no violão, pensativo.
Eu acariciava os cabelos loiros de Clarissa, pensando no quanto ela parecia fragilizada naqueles dias. A mulher era seis anos mais velha que eu e não era pouco dizer que eu cresci venerando-a. Clarissa era tão forte e independente quanto nossa mãe e isso era extremamente significativo para mim. Vir de uma família que mulheres priorizavam seus estudos e empregos majoritariamente sempre foi motivo de orgulho para mim, mas agora que Clarissa estava saindo um pouco da reta (assim como minha mãe), eu me questionava quando seria a minha vez.
Desviei a atenção de Clarissa quando uma melodia família me despertou dos pensamentos. Pat tocava uma música de , aquela antiga melodia inacabada que tocava no player do meu carro. Sorri com a visão dos meus dois mundos colidindo. Eu desconfiava que o sorriso ladino não era apenas pela gozação com a minha paixonite, também servia como um pedido de desculpas pelo nosso pequeno estranhamento.
Eram por momentos como esse que eu não me arrependia, nem me sentia triste por ter saído de Hillswood. Nenhum lugar no mundo me proporcionaria o abraço caloroso que eu só achava nos braços de meus irmãos.

❍❍❍❖❍❍❍

Apertei os olhos, franzindo-os antes de conseguir abri-los totalmente. Pisquei algumas vezes, sentindo-me desnorteada e incomodada com o quarto tomado pela escuridão. Quando minha visão se acostumou ao escuro, notei que ainda estava no quarto de Pat e tinha caído no sono. Rolei os olhos pelo local, notando que Clarissa ainda dormia, agora enrolada em um cobertor. Peguei meu celular, procurando pelo horário e lendo minhas notificações. Senti minha barriga reclamar de fome, já devia ter passado horas desde a minha última refeição, tendo em vista que já estava de noite. Resolvi procurar algum alimento, desci as escadas na ponta dos pés, sentindo minha casa exalar tensão. Mesmo que toda a agitação e adrenalina já estivessem distantes agora, a casa ainda parecia ressonar inquietude.
Quando cheguei à sala, encontrei minha mãe sentada no sofá, com as pernas esticadas e lendo algum livro grosso. Levantou a cabeça, fitando-me quando notou minha presença.
– Onde está todo mundo? – Questionei, aproximando-me da mulher com olhos de águia.
– Seu pai foi trabalhar e Patrick foi para o judô. – Analisou me por uns instantes antes de perguntar: – E Clarissa?
– Dormindo, estava muito cansada. – Informei, receosa em me aproximar.
O lance com a minha mãe é que ela vai rodear você, como uma águia, e quando você menos esperar, ela vai atacar. Ou não. Celia Young era uma mulher implacável. Sempre fazia o queria, sempre conseguia o que queria.
– Como você está, vovó? Grandes notícias hoje, hein? – Brinquei, fazendo a mulher retorcer o rosto em uma careta.
– Vocês sabem a quanto tempo? – Questionou, estreitando os olhos.
– Isso me parece uma armadilha. – Estremeci, reproduzindo seu estreitar de olhos também.
– E é mesmo, não responda. – Admitiu, balançando as mãos. Fechou o livro e encolheu as pernas, chamando-me para sentar ao seu lado.
– Foi difícil? – Perguntei, curiosa. – Receber a notícia... – Expliquei ao notar sua confusão.
– Eu não usaria essa palavra... Foi apenas inusitado. – Raciocinou, esticando as mãos para tocar meus cabelos, afagando em um carinho gostoso.
Minha mãe nunca quis ter filhos. Ela dizia que gostava de sua independência e no momento em que gerasse alguma criança, ela seria totalmente dependente e fiel. Mas então ela conheceu meu pai, que sempre quisera ter filhos, e logo se viu cuidando de três crianças. Eu nunca entendi essa transição, mas senti que esse seria o momento certo para questionar o porquê.
– Mãe, posso perguntar uma coisa? – Pedi, apreensiva. Ela assentiu em concordância. – Por que é tão difícil para você aceitar filhos? Como você chegou aqui com, – não um, nem dois –, mas três filhos?!
– Sinto uma mágoa nessa voz? – Riu, sarcástica, ainda mexendo em meus cabelos.
– Não, até porque esse é exatamente o meu ponto. Você sempre teve uma grande ressalva com criança, porém, nunca nos negligenciou, apesar de sempre ter deixado claro que não queria ter filhos. – Explanei minha dúvida de modo claro e sincero.
– Porque vocês são perfeitos! – Proferiu em um tom infantil e maternal, apertando minhas bochechas. Rolei os olhos, fazendo-a rir com minha reclamação. – O seu pai queria ter filhos.
– Ok, e porque você cedeu as vontades dele? Você não faz isso nem atualmente! Ele obrigou você ou algo assim? – Indignei-me, confusa. Não era do feitio dele obrigá-la a fazer algo.
Ela suspirou, tirando o livro do colo e deixando-o no criado mudo ao lado do sofá. Carregava no rosto um sorriso de gente sábia, um sorriso leve de boca fechada, mas nada arrogante. Soube neste momento que eu sairia daquela conversa com uma visão de mundo diferente.
– Seu pai nunca me forçou a nada, Julie. A primeira vez que rompemos foi justamente por este motivo. Já tínhamos uns anos nas costas e ele já era pai, porém, ele queria ser pai dos meus filhos. – Contou.
Meu pai havia tido um filho antes de ele e minha mãe casarem. Adrien era um cara legal e essa parte da história não envolvia muitos dramas. Meu pai tentou ser o mais presente possível, mesmo que nunca tenha tido um relacionamento concreto com a mãe do rapaz.
– Então, você cedeu. – Conclui, fazendo-a rir novamente.
– Não! Acabamos voltando porque você sabe que seu pai não vive sem mim. – Brincou. – Então, acidentalmente, aconteceu. E pensando melhor agora, é uma puta brincadeira do destino comigo que minha filha tenha engravidado da mesma forma que eu. – Bufou, balançando a cabeça negativamente. – Após anos de casamentos e relacionamentos em geral, é necessário fazer concessões e Clarissa foi a minha melhor concessão. O meu problema nunca fora crianças, filhos e a instituição familiar, mas sim o que isso representava.
"Antes eu tinha essa opinião fechada de que a mulher doméstica, a mãe, era como se fosse uma falha. É um absurdo, não é? Agora eu vejo isso, mas antes foi difícil conseguir conciliar a mulher independente com a dependente. Até hoje há discussões e mais discussões sobre o papel da mulher na sociedade e na entidade familiar ao mesmo tempo. E na época isso ferrou minha cabeça! Mas eu pensei que amava o Jim, acima de tudo, e se aquele bebê era o amor dele vivendo fisicamente dentro de mim, não podia ser errado".
– Ah, mãe! Que bonito isso. – Suspirei, sorrindo encantada com suas palavras.
– Eu só contei quando estava com cinco meses porque a barriga começou a aparecer, eu não queria que ele ganhasse a discussão. – Confessou, presunçosa e eu gargalhei com sua petulância. Era exatamente o tipo de coisa que eu faria. – E eu tive muita sorte. A Clarissa foi o bebê mais incrível que eu poderia ter naquele momento. Ela era tão calminha, quase não chorava, parecia que tinha sido feita na medida certa, para mim naquele momento! Com ela, eu nunca me assustei, sabe? Ela nunca me causou nenhum sentimento de arrependimento.
– Diferente dos seus outros filhos? – Arrisquei, bufando.
– Argh, você era um pesadelo! – Confirmou, balançando os ombros.
– Mãe! – Reclamei, indignada. Ouvimos a gargalhada suave de Clarissa surgir por trás de nós, fazendo-nos pular no lugar com o susto. Ela descia as escadas devagar, o rosto estava inchado e ela abraçava o próprio corpo. Veio em direção ao sofá, sentando ao nosso lado.
– Eu só era um bebê legal porque eu tive a melhor mãe. – Assegurou, piscando para nossa mãe, que lançou uma piscadela de volta. Sorri com o ato carinhoso entre as duas. Eu temia muito que a relação entre elas acabasse abalada, mas acabei estando errada. É provável que aquela gravidez as aproximasse ainda mais, devido as similaridades dos casos. – Mas é verdade, você era um pesadelo.
– Por que?! – Questionei, aborrecida com o fato.
– Porque você amava muito a mamãe, filha! – A mulher zombou, passando um braço em volta dos meus ombros, puxando-me para um abraço ladino, causando risadas conjuntas. – Você chorava toda vez que saia do meu colo, sempre queria dormir mamando, não aceitava o colo do seu pai, trocava o dia pela madrugada. Era exaustivo! Patrick só me deu problemas durante a gravidez, era o mais agitado, mas depois que nasceu, dormia no berço, então eu conseguia descansar.
– Eu só queria um pouco de atenção, ok? – Rebati, cruzando os braços.
– Brincadeiras a parte, eu tirei a sorte grande. Eu sei que toda mãe fala isso, mas fala sério, olha só para vocês! São perfeitos! – Sorriu calma, transbordando amor no olhar. – Vocês são os melhores filhos que eu poderia pedir. É claro que lidar com três crianças extremamente diferentes, com idades diferentes, não foi fácil. Mas eu sou uma filósofa que acredita em Deus e frequenta a igreja, estou acostumada a enfrentar grandes e atribulados debates.
Gargalhamos juntas. Minha mãe era completamente distinta e improvável. Deveriam escrever livros em sua homenagem tamanha a grandeza dessa mulher.
– Me desculpe pelo susto, mãe. – Minha irmã proferiu, tristonha. – Eu não queria te desapontar.
– Jamais diga isso, você não me desapontou, querida! Você é uma mulher adulta, ciente de suas próprias escolhas e eu tenho muito orgulho de você ser quem você é. Eu que tenho que me desculpar pelos gritos e acusações infundadas. – Virou-se para mim, sorrindo quase envergonhada. – E me desculpe também, por ter exposto você pro seu pai.
– Você é louca, mãe! Eu não acredito que você fez isso. – Lastimei, incomodada com a ideia do meu pai saber sobre minha vida sexual existente.
– Inclusive, ele me mostrou a página de Instagram do menino, o nome dele, não é? Filha! – Exclamou, animada e admirada. – Ele é lindo!
– Eu arrasei, eu sei! – Estalei os dedos, desinibida e convencida.
– E por falar em homens bonitos, me explica essa história de você com o Adam. Você não é lésbica? Tivemos toda uma conversa sobre isso, Clarissa! – Nossa mãe indignou-se, torcendo os lábios e provocando gargalhadas altas em nós.
Quando olhei nossas mãos entrelaçadas, a sensação de liberdade se apoderou de mim. Apesar de estarmos na sala da nossa minúscula casa, em um sofá apertado, eu nunca me senti tão livre e a vontade. Eu quase podia ver o mundo inteiro abrir caminho para que pudesse ser eu mesma. Era como se nada, absolutamente nada, pudesse me atingir ali, com aquelas duas fortalezas ao meu lado.
Mesmo com as adversidades da vida nos levando para outros caminhos, eu sabia que nada destruiria nossos sonhos. E parte da minha força, vinha das duas mulheres inabaláveis ao meu lado, que sempre me serviram de exemplo de resiliência e resistência. Aprendi a me reinventar todos os dias, compreendi o que era padecer no paraíso e no inferno, simultaneamente. Enfim, aprendi as dores e as delícias de ser mulher.



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Nota da autora: Esta história é de inteira responsabilidade de sua autora.
O principal é o único interativo. Foi escrito e inspirado no Shawn Mendes, mas pode ser lido com qualquer pessoa.

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