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━Autora Independente do Cosmos.
Atualizada em: 28.02.2025

"Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos caminharão sobre a terra.”
— Despertar dos Mortos


Eles estavam atrás de mim.
E não era só por uma ou duas horas. Na verdade, eles estavam atrás de mim o tempo todo. Não importava onde eu estivesse, eles apareciam sem cerimônia, como se o conceito de tempo e espaço não fizesse diferença para eles. Quando eu estava em casa, dava para ignorar. Ou se estivesse sozinho em outro lugar, tudo bem também. Mas aí eles decidiam dar as caras na cafeteria ou no meio de uma aula, e aí não havia nada que eu pudesse fazer. Porque se eles quisessem me chutar ou puxar o cabelo, podiam. E faziam isso, com frequência.
Posso vê-los desde que me entendo por gente. Não só ver. Podia senti-los, ouvi-los e até tocá-los. Eles eram tão reais para mim quanto qualquer pessoa viva, e por isso, não era nenhuma surpresa o rótulo de “esquisitão” que ganhei dos outros. Afinal, o que você faria se alguém, aparentemente normal, começasse a conversar sozinho no meio da rua? Pois é.
Por sorte, distinguir os mortos era fácil. Eles tinham uma aura... bem, mórbida. Estavam sempre pálidos e perdidos, perambulando pelas multidões. Os novatos eram os piores; gritavam aos quatro ventos, exigindo saber por que ninguém podia vê-los. Esses eram os que mais atrapalhavam a minha paz.
Basicamente, os mortos vinham até mim para resolver suas pendências aqui na Terra, como se eu fosse uma espécie de atendente de SAC do Além. Se isso te parece legal, recomendo uma consulta psiquiátrica. Porque não tem nada de legal em ser perseguido por um fantasma que quer que você leve um pedido de desculpas a alguém do outro lado do Estado, ou que implora para que você encontre um bom lar para o cachorro que deixou para trás. Ou, pior ainda, quando uma adolescente morta resolve que você vai ser o substituto do namorado que ela nunca teve.
Nunca considerei essa habilidade como um dom. Na verdade, ajudar os mortos só me dava dor de cabeça e distanciamento social. , meu melhor amigo, era a exceção. Ele era o único que nunca se importou com meu hábito de falar sozinho e desaparecer do nada. Nos conhecemos no ensino médio, e acabamos indo para a mesma universidade, o que foi um alívio. Fazer novos amigos nunca foi o meu forte. Fora o , as únicas pessoas vivas com quem eu mantinha contato recorrente eram meus pais, Gina e... minha avó. Tá, talvez essa última não estivesse tão viva assim.
Eu estava no quarto ano de Medicina na Universidade de Columbia. Escolhi o curso e o campus por motivos práticos. Queria me especializar na Oncologia, o que significava trabalhar com pacientes que provavelmente encarariam a morte de frente. Eu poderia, quem sabe, ajudá-los a resolver suas pendências em vida, evitando que se tornassem mais uma voz na minha cabeça depois que partissem. Egoísta? Talvez. Mas parecia uma solução eficiente. E Nova York, uma cidade cheia de gente, me dava a esperança de que haveria outros como eu por perto. Nunca entendi bem como os mortos nos "escolhiam", mas torcia para que fossem distribuídos de forma justa. Era mais um plano para mantê-los longe.
A faculdade de Medicina pelo menos deixava meus pais felizes. Desde que me adotaram no Orfanato Melbourne, sempre fizeram questão de demonstrar o quanto se orgulhavam de mim, mesmo quando meus "sumiços" e acessos de rebeldia eram constantes. Ou quando precisavam me buscar na delegacia por invasão de propriedade ou desacato. Mesmo nos piores momentos, quando tentavam fazer com que eu me abrisse e eu respondia com o silêncio indiferente que aprendi a reproduzir quando era confrontado sobre os fantasmas e as consequências que causavam, eles se vestiam de uma paciência inacreditável e raramente me criticavam. Minha mãe chorava baixinho à noite, e meu pai bebia mais whiskey do que o habitual, mas sem gritos ou caras feias. Sempre me perguntei se eles se arrependiam de ter adotado um garoto tão... estranho. Mas no fundo, sabia que a frustração deles era por não conseguirem se conectar comigo, e admito que aquilo era totalmente culpa minha.
A família possuía uma próspera firma de advocacia em São Francisco, onde o nome do meu pai, Anakin (sem julgamentos, ele nasceu junto com Star Wars), aparecia em toda cerimônia de premiação empresarial da Califórnia. Ele era o tipo de exemplo de liderança que outras empresas usavam como referência em qualquer lugar do país. Mas, para mim, tudo aquilo — os flashes dos eventos de gala, os jantares executivos que invadiam a sala de jantar e até as empregadas escolhendo minhas roupas — era um lembrete constante de que eu não pertencia àquele mundo. Mesmo com o novo sobrenome, novos documentos e um quarto irado com espaço para os meus pôsteres dos Lakers, eu era o peixe fora d'água. A solução foi me esconder atrás do estereótipo de garoto prodígio que estava sempre estudando, correndo contra o tempo para se preparar para a próxima olimpíada de matemática ou um novo prêmio da feira de ciências.
Funcionou. Meus pais ficaram mais que satisfeitos com a ideia de ter um filho tão dedicado em passar longe de uma nota vermelha. No entanto, convencê-los a me deixar ir para uma universidade do outro lado do país foi outra história. Passei semanas ouvindo os soluços da minha mãe antes que eles finalmente cedessem, com a condição de que me visitariam regularmente e que eu teria que ligar com frequência. A distância também fazia parte do plano — era muito mais difícil frustrar seus pais com suas atitudes quando se está a quase 5 mil quilômetros de distância.
Mesmo assim, a superproteção deles se manteve firme e forte. Insistiram que eu não poderia ficar em um alojamento universitário qualquer, cercado por desconhecidos. Então, graças à obsessão da minha mãe por segurança (e também um pouco de conforto), acabei em um apartamento nada estudantil em Manhattan. Quinto andar, janelas enormes do chão ao teto, com uma vista deslumbrante da cidade que nunca dorme. Ela escolheu cada detalhe, e eu não me atrevi a opinar. Afinal, apesar de todo o drama, eu gostava do meu espaço próprio. E, dado o meu... probleminha com os mortos, talvez ter um lugar só meu tenha sido a melhor decisão que deixei que eles tomassem por mim.
Era mais uma quinta-feira qualquer quando saí da biblioteca Augustus, equilibrando o telefone entre o ombro e a orelha enquanto colocava alguns livros na mochila.
— O que é agora, ? — perguntei, sem muito ânimo. Estava tentando fazer com que a borda do exemplar de Brain Metastases não arranhasse a tela do iPad.
— Onde você se meteu? Eu tô faminto e você ainda não deu as caras para o almoço. E hoje tem hambúrguer de costela!
— Você não tem membros ou dinheiro? Caso tenha membros, acho que você pode comer sem mim.
— Ah, qual é, ? Minha grana foi dizimada no Queens semana passada. Pelo menos me diz onde você tá.
Suspirei e olhei ao redor.
— Bem aqui.
Ele estava de pé bem no meio do refeitório, o rosto iluminado pelo alívio.
— Por que demorou tanto? Achei que você não tinha aula agora. — disse ele, enquanto eu me aproximava.
— Estava na biblioteca, trabalhando num artigo novo.
— Ah, é? Sobre o quê dessa vez? Bactérias que produzem plástico? — perguntou, digitando algo no celular.
— Isso é super empolgante. Mas não, é só um artigo sobre saúde pública. O Natal e a Influenza são a dupla de dezembro, e o Citizen se interessa por esse tipo de coisa. Agora vamos te alimentar.
Entramos na fila semi organizada ao lado das estações de comida, que estava mais longa do que de costume. Não sabia que o hambúrguer de costela tinha toda essa magia para alguém além de e eu. Talvez porque a gente não se importava muito com o que colocava pra dentro do estômago — ele menos ainda. Tudo que fosse comestível, era minimamente aceitável.
— Você viu o ranking semestral? Saiu hoje. — ele comentou, sem tirar os olhos do telefone. — Parabéns, você está no top 5 de novo.
Revirei os olhos em resposta. Todo semestre, a Columbia divulgava o ranking dos alunos mais bem-sucedidos, com base no semestre anterior. Havia um para cada departamento e um geral da universidade. Eu fazia parte dos cinco primeiros desde o 1º ano, então aquilo já tinha perdido o impacto. Na verdade, só de pensar no inevitável telefonema de parabéns dos meus pais mais tarde, eu já me sentia exausto.
Estar entre os cinco primeiros significava receber elogios incansáveis de professores e colegas, embora eu não me importasse nem um pouco. Ainda assim, tinha suas vantagens: meus artigos eram reconhecidos pelos acadêmicos mais respeitados, e até o reitor já havia me convidado para jantar, colocando o meu nome na sua provável “lista dourada”. Aparentemente, meu desempenho era inspirador para todos. Todos, menos eu.
Não era legal receber tanta atenção quando seu plano de vida era ser completamente invisível. Principalmente, se você estivesse suscetível a passar por situações como a que eu iria passar… agora.
Enquanto estava distraído, rolando o feed do celular, senti um vento gelado percorrendo a minha nuca, arrepiando na hora. Antes mesmo de entender o que era, uma voz rouca sussurrou bem perto do meu ouvido:
— Oi!
Continuei olhando para frente, fingindo que não tinha ouvido nada. Talvez se eu a ignorasse, ela se tocasse e fosse embora. Abri o celular e comecei a zapear por qualquer coisa, deixando o tempo passar. Ela ia perceber o que todos percebem: que ninguém podia vê-la. E enquanto eu não desse a primeira mordida naquele hambúrguer duvidoso com bastante ketchup, faria parte da maioria sim, com muito prazer. Não era uma boa hora para lidar com fantasmas.
Mas é claro que ela não desanimou. Saiu do meu lado e começou a tentar tocar e tudo o que estivesse ao seu alcance. Só para esclarecer, quando fantasmas tocam pessoas comuns, o máximo que elas sentem é um arrepio ou um frio súbito que logo passa. Para os mortos, não era muito diferente; é como tentar pegar uma massa cinzenta e pegajosa que escapa pelos dedos. Já com objetos, eles são bem mais habilidosos — meus hematomas podem confirmar isso.
Pessoas como eu, no entanto, conseguiam senti-los completamente. Não me pergunte por quê. Isso fazia com que os fantasmas nos achassem com facilidade e nos usassem para resolver suas pendências, como se fôssemos seus assistentes pessoais. Por isso, apesar da minha postura indiferente, eu estava aterrorizado com a ideia de que aquela garota decidisse me tocar naquele momento.
Vi se encolher com os calafrios causados pelo toque da fantasma e reclamar do frio. Continuei fingindo que nada estava acontecendo, enquanto nos aproximávamos das bancadas. Mas, no momento seguinte, quando deu um passo à frente e eu o segui, o fantasma não se moveu, o que fez com que nossos braços roçassem um no outro por um breve segundo.
Como um amador, acabei olhando para ela e, no mesmo instante, desviei o olhar. Tarde demais. Senti os dedos dela apertando meu braço direito.
— Você consegue me ver! Ei! Você tá me vendo, né?
Balancei o braço, tentando me livrar do aperto, mas ela ignorou o recado. Fechei os olhos, tentando manter a calma, e implorei mentalmente para que ela não começasse a fazer um escândalo.
— Por favor, me ajuda! Eu não sei o que aconteceu... Ninguém consegue me ver... Parece que eu, e-eu… morri…
Os olhos dela estavam arregalados e perdidos, o rosto pálido como um papel, e os cabelos ruivos desgrenhados caíam sobre o moletom com o brasão da faculdade de Direito da Columbia. A garota parecia ter uns vinte e poucos anos. E, por mais que estivesse desesperada no momento, não podia dar atenção pra ela. Tentei sinalizar discretamente com a cabeça para que desse o fora, mas, em vez disso, ela apertou meu braço ainda mais forte.
— Por favor, eu te imploro! Me ajuda! Eu estava no meu quarto no alojamento e, de repente... — a voz dela falhou, os olhos mais esbugalhados, e senti o pânico crescendo dentro de mim. Ela parecia prestes a surtar. Surtar de um jeito nada legal.
A fila avançava e ela não soltava meu braço de jeito nenhum. Eu podia sentir as unhas dela cravando na minha pele, com uma força que só os mortos pareciam ter. Ao nosso redor, as pessoas riam e conversavam, sem fazer ideia do caos invisível que estava se desenrolando ali. Mas, se ela continuasse assim, todo mundo logo perceberia. Eles sempre percebiam.
— Agora não... — murmurei, o mais baixo que consegui, sem sequer olhar para ela, torcendo para que ninguém tivesse notado. Mas a coisa só piorou.
Ao perceber que eu realmente podia vê-la e ouvi-la, ela cravou as unhas ainda mais fundo, e senti o sangue começar a escorrer. Em seguida, fui puxado com força para o lado, bem na direção das pessoas que seguravam suas bandejas já prontas e cheias. Quando me dei conta, vi suco de laranja se espalhar pela minha camiseta, seguido pelo impacto dos meus joelhos no chão. Ouvi o grito agudo de uma garota que caiu diante de mim, com molho de tomate e abobrinha grudada na roupa.
Todos os olhares se voltaram para nós. estava imóvel, com uma expressão que variava entre o riso e o choque. Eu, por outro lado, sentia uma mistura de raiva e incredulidade. Girei a cabeça para procurar a maldita que tinha causado isso, mas, claro, ela já havia desaparecido.
Senti um empurrão no peito e caí para o lado, o caos ao meu redor voltando como um balde de água fria.
— Você é maluco? — a garota à minha frente grunhiu, tentando se levantar sem escorregar nos restos de macarrão e torta de legumes espalhados pelo chão. — Tem ideia do que acabou de fazer? Isso não pode ser sério...
Ela bufou com indignação, e algumas garotas se juntaram ao redor dela, estendendo guardanapos como se fossem paramédicos em um campo de batalha. Suas mãos tatearam o piso até puxarem uma pasta cheia de suco e o que parecia ser babaganush. Todas me olhavam com aquele olhar típico de “meu Deus, qual é o problema desse cara?” Levantei rápido, desejando que, por algum milagre, todo mundo seguisse em frente e esquecesse o espetáculo que eu acabara de proporcionar.
— Me desculpa, foi totalmente minha culpa. — Na verdade, não foi. — Deixa que eu te pago outro almoço, ou…
— Você é epilético? Ou simplesmente decidiu me atropelar? Isso foi de propósito? — ela ia aumentando o tom a cada pergunta, as bochechas ficando cada vez mais vermelhas. Ótimo, porque o que eu precisava agora, além de estar coberto de suco e brócolis, era de problemas com desconhecidos na única parte do meu dia onde eu tentava manter minha vida minimamente normal: o almoço.
— Claro que não! Foi um acidente, sinto muito, mas eu posso pagar…
— Pelo amor de Deus, não quero seu dinheiro. — ela fez uma careta antes que eu levasse a mão para o bolso da carteira. — Tenho uma apresentação importante hoje e você pode ter acabado de estragar tudo com essa sua… síndrome de Tourette, sei lá. Olha, se eu nunca mais te encontrar na minha vida, vai ser um favor. Agora me dá licença.
Ela passou por mim com um empurrão no ombro e foi embora, seguida por pelo menos três amigas, que me lançaram olhares ligeiramente menos hostis. Fiquei ali parado por um segundo até ser expulso pelas funcionárias da limpeza, que já começavam a limpar a bagunça ao meu redor. De repente, percebi o quão exposto eu estava, com todos os olhares fixos em mim, buscando entender a mesma coisa que aquela garota: como eu tinha feito aquilo? Como caí do nada sem explicação?
Quando senti me puxar pelo ombro em direção à saída, agradeci em silêncio. Minha fome já tinha desaparecido há muito tempo.


— Cara… O que foi aquilo? — perguntou assim que entramos no banheiro mais próximo. O lugar estava vazio, e eu não perdi tempo: tirei a camiseta encharcada e a joguei na pia.
— Não sei, não foi de propósito… acho que escorreguei.
— Escorregou? Tá doido? O chão tá tão limpo que dava pra comer nele, sério! Não tinha nada pra te fazer escorregar, .
É, só tinha um fantasma.
— Sei lá, eu me distraí, só isso. — dei de ombros, torcendo para que mudasse de assunto tão rápido quanto o acidente aconteceu. — Anda, me empresta uma camisa. Ainda tenho mais duas aulas antes de ir pra casa.
Ele tirou uma camiseta azul estampada com a letra de More Than a Feeling do Boston e jogou pra mim.
— Você tá legal? Não tá tomando nada estranho pra “ajudar na concentração”, né? Essas coisas são perigosas, cara. E que negócio é esse no seu braço? Tá sangrando.
— Nada demais, deve ter sido da queda. — ri engasgado, arrancando meu braço da linha de visão dele. — Sério, tô bem. Só um acidente básico.
— Você tem ideia em quem resolveu causar um acidente básico? — perguntou, e eu fiquei calado. — Cara! Aquela era a !
— Esse nome deveria me dizer alguma coisa?
Ele bufou.
— Já te falei dela várias vezes. Das noites de quinta no Amity Hall, no Beerkeeper em dias de jogo, do
— Ah, é… — o único momento em que não falava de mulheres era quando estava comendo (salvo exceções) ou jogando, então eu já sabia que não conseguiria lembrar de todas elas, mesmo que tentasse. — Bom, foi uma merda, mas espero que ela esqueça disso tudo bem rápido.
— Eu também espero, mas essa galera do Jornalismo não esquece nada fácil. Teve uma vez que saí com uma garota do departamento que…
Como um botão invisível, apertei “desligar” e deixei as palavras dele escaparem pelo outro ouvido. Nada contra a vida amorosa agitada do meu melhor amigo, mas meu cérebro já era sobrecarregado demais com equações moleculares e referências do PubMed. Ah, e um pouquinho de discurso básico para dizer a homens mortos que não, eles não podiam voltar a vida rapidinho só pra buscar uma jaqueta vermelha da Balenciaga para levar na viagem para o Outro Lado.
Foi exatamente no que eu pensei: o fantasma. Ela iria me procurar de novo, era questão de tempo. Pelo uniforme da Columbia e o visual… era óbvio que tinha morrido perto daqui, talvez há menos de 2 horas. Aquilo se espalharia pelo campus mais cedo ou mais tarde, e agora eu estaria pronto para a interceptação. Torcia para que ela só quisesse saber a nota de um teste ou se seu artigo foi aceito em algum congresso de verão.
Vesti a camiseta de , dei uma ajeitada na mochila e fui pra aula. As próximas três horas passaram num borrão, com a minha concentração sendo colocada à prova cada vez que um ventinho gelado tocava a minha nuca, pensando em como ignoraria uma aparição que já sabia que eu não podia ignorá-la. A não ser que ela me pegasse na aula de Psicologia Médica, onde 98% das pessoas dormiam — se fosse um dia em que eu não tivesse tomado meu expresso duplo do Blue Java, eu fazia parte dessa porcentagem.
Assim que a última aula acabou, me livrei do professor de Histologia, que estava com um discurso interminável sobre minha última análise de cápsula renal, e fui direto para o estacionamento do campus. O sol estava quase sumindo, e as luzes ainda não tinham acendido, o que me garantiu uns minutos de solidão na escuridão de concreto de Washington Heights. Meu Jeep Renegade estava bem ao fundo, escondido atrás de uma pilastra e longe de outros carros.
Entrei, fechei a porta e esperei.
Exatos dois minutos depois, senti o ar pesar, frio e macabro, dentro do carro.
— Tá legal, quem diabos é você?
A primeira coisa que ela fez foi esticar o braço e tocar em mim. Não daquele jeito violento e desesperado de antes, mas leve e rápido, só pra constatar que eu era de verdade.
— Eu... Você está mesmo me vendo? M-mas…
— Ok, vamos pular a parte óbvia da coisa. Sim, eu te vejo, te escuto, até te sinto, como ficou bem claro. E, sim, você está morta. O que posso fazer por você?
— Morta? Mas como... — o rosto dela começou a enrugar, lágrimas enchendo os olhos. — Como isso aconteceu? Eu só estava-
E mais choro. Eram poucos os que não choravam.
— Olha, preciso que você me conte exatamente do que se lembra. Ainda dá tempo de ir pra confraternização no Outro Lado, então preciso saber por que você ainda não foi pra lá
Era nessas horas que eu tinha que reunir o que minha avó chamava de compaixão, mas eu chamava de teste de paciência. Era quase uma entrevista de admissão, onde eu não exercia o papel de aceitar ou rejeitar ninguém para o Paraíso, mas de apenas agir como o gênio da lâmpada e me dispor a realizar o último desejo de almas encarnadas que não eram lá muito silenciosas até enxotá-las para o próximo nível. Não era um trabalho fácil e nem muito agradável, ainda mais porque, honestamente, a última coisa que eu queria era passar horas com um fantasma que ainda não tinha percebido que... bem, que estava morto.
A garota passou um tempo confusa até começar a pensar.
— Ash... Ele disse que as pílulas eram só pra dormir. Eu estava exausta com o projeto de final de curso, o trabalho, as inscrições pra pós, tudo isso. Então tomei as pílulas. E, bem... adormeci. — ela parecia perdida, os olhos desfocados enquanto tentava se lembrar de mais.
— Quem é Ash?
— Um cara da Dungeons. Faz Farmácia, eu acho, ou pode ser qualquer outra coisa. Não sei muito sobre ele, e esse nem é o seu nome verdadeiro. Estávamos saindo há 3 semanas, e ele me deu uns comprimidos pra dormir...
— E que comprimidos eram esses?
— Eu não lembro. Ele me entregou em uma caixa sem nome.
Revirei os olhos, já vendo o tamanho da confusão que viria pela frente.
— Tá, vamos começar pelo básico: qual é o seu nome?
— Sandy. Sandy Silo.
— Beleza, Sandy, aqui vai a notícia: você morreu, e esses comprimidos provavelmente são a causa. Agora precisamos descobrir o que está te segurando aqui, o que falta pra você finalmente atravessar o... limbo.
— Mas eu não tomei tantos assim. Ele disse pra tomar dois comprimidos, que isso bastaria pra eu dormir o dia todo. Ele disse... — as lágrimas voltaram, agora com força. — Eu confiei nele. Ele disse que não me fariam mal.
Confiou em um cara que não disse o próprio nome?
Suspirei, guardando o pensamento, tentando reunir argumentos que pudessem fazer sentido e ajudá-la a se acalmar. Talvez fosse mais complicado do que eu pensava.
— Tudo bem, então... o que você quer? Vingança? A gente pode discutir os detalhes.
— O quê? Não! Eu só... estou confusa. Eu tinha planos, sabe? Um emprego no Departamento de Polícia de Nova York, meu apartamento em Manhattan, apresentar o Ash aos meus pais...
— Ei, foco. Você precisa se concentrar no que está te prendendo aqui, descobrir o que ainda falta pra finalmente seguir em frente. Tem algo que ainda precisa resolver?
— Não sei. Minha vida foi sempre estudo e trabalho; fui em uma única festa de fraternidade, fui beijada só uma vez no ensino fundamental e agora pelo Ash, nunca fiquei de porre, ainda sou virgem...
— Vai sonhando. — minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, e uma pessoa que passava alguns metros adiante do meu carro me olhou como se eu fosse um lunático. — Olha, meu contrato não cobre orgias nem reencenações de American Pie. Então eu sugiro que você pense em algo mais... profundo.
— Não é isso! Eu... eu preciso achar o Ash. Preciso descobrir o que eu tomei, e... e como eu... — ela engoliu seco, balançando a cabeça, o rosto numa expressão de dor. — Ele é popular, vive dando festas e vende de tudo. Não vai ser difícil encontrá-lo, só preciso... preciso saber se ele foi o responsável por... por isso. — sua voz vacilou, quase um sussurro.
— Ei, calma. — relaxei os ombros e me aproximei um pouco. Pensei em fazer aquele toque amigável engraçado que Gina costumava fazer com os novatos, mas um olhar pacato era tudo o que eu conseguia oferecer. — Você parece... bem, como alguém que acabou de morrer. As pessoas provavelmente já estão sabendo da sua morte. E quanto ao que causou ela, é pra isso que existem autópsias, certo? Logo vai ser divulgado, Ash vai ficar sabendo e pode poupar nosso tempo se entregando. Entendeu?
Ela apenas balançou a cabeça, teimosa.
— Não. Não é suficiente, eu preciso saber o que era aquela coisa. Se ele sabia o que estava me dando. É a única forma de... de eu descansar, eu acho.
Ela cobriu o rosto com as mãos, e eu vi seus ombros começarem a tremer. Outro choro vindo. Nesse instante, meu celular vibrou, iluminando a tela com mensagens insistentes de : "Onde você está?", "Estacionamento, né?", "NÃO DIZ QUE FOI EMBORA SEM ME DAR CARONA", "Me deixa na Broadway", "HELLOOOO????", "VOCÊ NÃO VAI ACREDITAR NO QUE EU ACABEI DE SABER".
Ótimo. Mesmo que eu não respondesse, ele estaria no estacionamento de qualquer forma, o que significava que aquela garota tinha que vazar dali agora mesmo.
— Tudo bem, vou procurar o Ash. Descobrir o que ele te deu e se ele sabia o que estava fazendo. Mas agora você precisa sumir do meu carro.
— Espera... Qual é o seu nome?
, muito prazer. Agora... — Inclinei a cabeça em direção à porta.
Ela arregalou um pouco os olhos.
Você é ?
Ah, caramba.
— É, sou eu.
— Minha nossa, mas… você é o aluno número 1. Como você, como isso…
— Acredite se quiser, mas eu não tenho uma história pra te dar. É assim que as coisas são e pronto. Agora que tal fazer aquela coisinha de sair?
— Ah… Certo. — ela disse e, pela primeira vez, esboçou um sorriso meio desajeitado. — Você parece ser um cara legal, . Posso mesmo confiar em você?
— Se não pudesse, você nem teria me achado.
Ela assentiu.
— Tudo bem. Eu vou. E… sinto muito pelo seu braço.
Antes que eu pudesse responder, ela desapareceu, evaporando como uma miragem. As luzes do estacionamento finalmente se acenderam, e eu vi a cabeça de surgir ao longe, correndo no meio dos carros.
Ele me avistou rapidinho e já veio, ofegante, pressionando o peito com a mão e abrindo a janela assim que entrou.
— Cara... Tem um cigarro?
— Que foi? O prédio não é tão longe. — respondi, procurando um maço no porta-luvas e entregando pra ele. — Você devia parar de fumar.
— Como você conseguiu parar? — ele acendeu um cigarro, o tom ligeiramente sarcástico.
— Não parei. — dei de ombros e acendi o meu também.
Depois de algumas tragadas e uma respirada, ele olhou pra mim com uma expressão mista de choque e animação.
— Cara, você não vai acreditar. Acabaram de encontrar uma garota morta no alojamento feminino. Parece que foi há pouco tempo, antes do almoço. Tá uma confusão lá dentro...
Fiz a melhor cara de interessado que pude.
— Sério? Quem era?
— Uma tal de Sandy, da faculdade de Direito. Cara, você não tem ideia do que falaram sobre o corpo. Foi... horrível. Dizem que ela teve uma overdose, tinha vômito por todo lado, ela estava roxa, os olhos abertos… — ele tremeu. — Cena de filme de terror. Nem imagino a reação de quem a encontrou.
— Overdose? Eles disseram que foi isso?
— Ah, ainda não sabem nada com certeza. A ambulância acabou de levar o corpo. Devem fazer a autópsia lá no Presbiteriano. A universidade tá tentando não chamar atenção até resolverem isso. Mas o assunto já explodiu no Twitter e no Fórum, e eu acho que enviaram pro Jimmy Fallon, mas não sei por-
Enquanto falava, eu me esforçava para juntar as peças. Aparentemente, Sandy tomou os remédios na noite anterior e morreu antes do almoço, o que significava que o que quer que sejam aqueles comprimidos, a ação era lenta. Só que não dá pra ter uma overdose com dois comprimidos de tarja preta, mesmo se fosse codeína. Depressão respiratória era um objetivo final que a pessoa precisava se esforçar muito pra alcançar.
Me obriguei a afastar a estranheza de tudo aquilo da cabeça e a focar em bolar um jeito de encontrar Ash. Precisava fazê-lo me contar se ele sabia que o que ofereceu para Sandy poderia matá-la. Claro que não dava para perguntar assim, direto — o cara ia me achar um completo maluco, ou então se assustar o bastante para abrir o jogo.
Deixei na Broadway, a algumas quadras de distância de onde morava uma tal de Betty. Ele estava apavorado demais para voltar ao alojamento naquela noite, e, sinceramente, se soubesse que eu tinha sido notificado do "incidente" pela própria vítima, acho que o trauma seria ainda maior.
Minha rua estava silenciosa e calma, o que era bem atípico em qualquer parte de Nova York, seja residencial ou não. A badalação da cidade começava cedo, e mesmo que eu não fizesse ideia do cronograma das festas e nem de qualquer coisa que envolvesse 8 ou mais pessoas dividindo um teto em mansões antigas de Manhattanville, teria que arrumar um jeito de saber, pelo menos até encontrar Ash.
Claro, mesmo na era digital, encontrar uma pessoa que usa nome falso não é fácil. Sandy não tinha me dado muitos detalhes sobre ele, e eu não estava exatamente animado em procurá-la de novo antes de ter as informações que ela queria. Pensei em perguntar ao , mas sob qual pretexto? E aí, você tá sabendo desse traficante meio famoso que andou se envolvendo com a garota morta? Sabe onde ele mora? Nunca. Jamais. não era tão avulso quanto eu queria que fosse pra não estranhar esse interesse repentino.
Quando finalmente entrei no apartamento, tratei de limpar o ferimento no braço — cortes em formato de pequenas luas das unhas de Sandy — e fui direto para o banho, tentando relaxar, mas sem muito sucesso.
Depois, entrei no Fórum e busquei informações sobre a confusão daquela tarde. A única coisa que encontrei foi um resumo seco: Sandy tinha sido encontrada pela colega de quarto, uma garota chamada Janice Griffin, do curso de Arquitetura, que mal conseguiu falar com a polícia de tanto que chorava. A única foto publicada mostrava o corpo de Sandy envolto em um saco preto, com uma faixa amarela de isolamento estendida na porta do dormitório. No final da matéria, um comunicado dizia que a autópsia só ocorreria depois da autorização dos pais dela, que já haviam sido avisados, mas não deram respostas sobre quando chegariam — parecia estar rolando uma tempestade bizarra na região da Virginia, cancelando voos e trens em sequência.
Apesar disso, era uma boa notícia. A autópsia explicaria tudo. Daria fim naquilo logo, bem logo. E enquanto isso, o dormitório de Sandy seria o mais triste e cinza de todos os outros prédios da Columbia.
Porque agora ele estava assombrado.

⫘⫘⫘


O jornal da Columbia era tipo o paraíso das fofocas estudantis, só que com uma pegada de responsabilidade social. Preocupados em preservar as florestas e fazer bonito nas avaliações da Ivy League, eles tinham abandonado o papel faz tempo, tornando a redação inteira digital. Foi daí que nasceu o "Fórum" — nada criativo, mas a marca já estava registrada. Lá estava basicamente tudo o que você precisaria saber sobre a Columbia: eventos, simpósios, congressos... até um certo ranking dos cinco melhores alunos, em que meu nome aparecia no topo.
Dentro do Fórum, cada aluno tinha um login próprio, o que o transformava basicamente em uma rede social, mas só para quem era da Columbia. Os funcionários do jornal eram os únicos autorizados a fazer postagens, e se você precisava saber algo de um colega (como, por exemplo, informações básicas sobre um certo Ash enigmático), o Fórum era o lugar perfeito pra começar a procurar. O nome verdadeiro do jornal era Citizen Co., mas, depois de 4 anos, e eu achávamos mais fácil chamá-lo de “o Google dos escândalos acadêmicos.”
Eu não planejava vasculhar o Citizen só para saber algo sobre o Ash (não seria tão descarado assim), mas não custava nada ver se uma ideia brilhante surgia no caminho. Já tinha ido até lá algumas vezes, geralmente quando precisava pedir correção de uma publicação e me deslocava para a sala do professor responsável, o Sr. O'Donnell, que tinha uma certa felicidade escancarada toda vez que me via. Hoje era um dia ótimo para fazê-lo sorrir.
Chegar ao Citizen era como fazer as provas da autoescola de novo. O lugar era uma zona completa, com bicicletas e motos espalhadas para todos os lados, sem nenhuma faixa delimitando vagas (porque eles acreditavam mesmo que as pessoas deveriam parar de poluir o meio ambiente com carros e começar a pensar em outras alternativas). Era logo ali, ao lado do Pulitzer Hall, onde a quantidade de gente correndo para cima e para baixo era, honestamente, meio assustadora. Os jornalistas em treinamento tinham quase a mesma vibe de caos que os futuros médicos.
O prédio em si não era grande, mas ainda assim, tinha a beleza que o dinheiro podia comprar. A pintura das paredes estava em dia, e as janelas de vidro mostravam um escritório bem equipado, cheio de equipamentos modernos, funcionando a todo vapor. O Citizen era uma referência em jornalismo universitário no país, e pelo menos uns 15 alunos ali um dia seriam âncoras na CNN ou editores-chefe do New York Times.
Parei diante da porta branca no final do corredor e espreitei pela janela ao lado. Lá dentro, era uma correria: gente atendendo telefonemas, digitando, berrando de um lado para o outro — ninguém me notou quando entrei. Virei à direita e fui direto para a porta marcada com "Prof. Dr. Buddy O’Donnell". Bati duas vezes e ouvi um "entre" abafado.
— Senhor ! — ele me cumprimentou, tirando os óculos e abrindo um sorriso enorme e caloroso.
— Como vai, senhor O'Donnell? — apertei a mão dele, e ele apontou para a cadeira na frente da sua mesa, que, aliás, estava tão cheia de papéis, canecas vazias e, quem sabe, um fóssil ou dois, que eu quase duvidei que ele pudesse realmente me ver dali.
Diferentemente do restante do prédio, a sala do senhor O'Donnell era um resquício dos anos 70, uma década tecnicolor pela qual eu tinha um grande carinho. Duas poltronas em amarelo canário estavam ajustadas bem embaixo da janela, a mesa de pinheiro polida e envernizada, os abajures largos, e ele ainda tinha um modelo de rádio Grundig Satellit dos anos 60, com antena e pilhas D. De vez em quando, dava pra ouvir Sweet Home Alabama tocando em loop no aparelho, e fiz uma piada uma vez de que, se fosse pra ouvir apenas uma coisa até morrer, que essa coisa fosse Lynyrd Skynyrd. Ele se apaixonou por mim depois disso.
— O que o traz aqui tão cedo, meu jovem? — ele ajustou os óculos e deu uma olhada rápida para o relógio, como se o próprio horário o tivesse traído. — Ainda não trouxeram meu café, estamos um pouco... corridos hoje. Mas aceita uma água, um chá...
— Não, não, tudo bem. — pousei a pasta em cima da pilha já caótica de documentos, torcendo pra que não virasse um tsunami de papéis. — O professor Hughes pediu pra eu escrever mais um artigo. É sobre os últimos dados das cepas recentes da Influenza no inverno de Nova York. Ele pensou que seria uma boa ideia transformar em uma coluna pro Fórum, então vim deixar pra revisão.
— Ah, o artigo de saúde pública! — ele passou os olhos pela primeira página, balançando a cabeça com uma expressão tão solene que cheguei a pensar que ele estava rezando pelo manuscrito. — Claro, claro... Hughes me contou ontem. Vou dar os toques finais, mas… — ele tirou os óculos e olhou por cima deles, com um ar quase dramático. — Infelizmente, hoje isso não vai acontecer, receio. Você está sabendo do que houve ontem, no campus?
— A garota? Fiquei sabendo sim.
— Uma tragédia. — ele suspirou, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. — Toda a equipe está focada nisso, tivemos que suspender praticamente tudo para nos concentrarmos no caso da Silo. A CNN veio e foi um pesadelo lidar com eles... Uma dor de cabeça atrás da outra, sabe? Mas não se preocupe. Vou garantir que o artigo saia a tempo, mesmo que um pouco atrasado.
— Sem pressa, professor. — forcei um sorriso, tentando não parecer tão interessado. — Logo tudo se resolve, né? O culpado vai aparecer…
— Culpado? — ele riu com um toque de sarcasmo, como se tivesse ouvido uma piada boa. — Ah, meu jovem... Não há culpado. Esse é um caso claro de suicídio! Encontraram a pobre garota sufocada no próprio vômito. Os pais até agora estão empurrando para vir reconhecer o corpo, e tenho quase certeza de que vão se recusar a autorizar uma autópsia. O uso de drogas entre os alunos está fora de controle. Seria um ótimo tema para o próximo artigo, inclusive. Os riscos disso tudo, entende? Vou fazer uma ligação para o Travis logo mais…
Ele continuou falando, divagando sobre a juventude e os perigos das drogas, enquanto eu assentia e tentava manter uma expressão preocupada. Ter deixado ele se empolgar com o assunto e me "explicar" o caso foi um movimento certeiro — afinal, ele acabara de confirmar o que eu temia: a autópsia não sairia tão cedo. E eu precisava de respostas antes de ser perseguido por outro fantasma.
Depois de um papo rápido sobre minhas notas e a possível residência no hospital universitário de Berlim, me despedi do professor O'Donnell e me preparei para sair. Do lado de fora da sala, o escritório estava um caos, e o telefone não parava de tocar. Fechei a porta atrás de mim, aliviado, e avistei um bebedouro ali perto. Minha garganta parecia seca como o Saara, mas logo reparei na plaquinha acima do galão: "NÃO USE COPOS PLÁSTICOS, TRAGA SUA PRÓPRIA CANECA". Suspirei. Nada como mais um obstáculo — até a água nesse lugar parecia exigir um esforço extra.
Como se tivesse brotado de alguma parede invisível, uma pessoa passou por mim com a precisão de um cometa. Eu estava saindo de perto do bebedouro quando fui atingido por um esbarrão de alta potência. Papéis voaram, meu braço se esticou tentando segurar alguma coisa, qualquer coisa, e, bem... o que eu agarrei foi o galão d’água, que teve a gentileza de me dar um banho completo — e, aparentemente, dar o mesmo tratamento à pessoa que caiu em cima de mim.
Antes de mais nada: dessa vez, fantasmas não tiveram nada a ver com isso. A garota que estava em cima de mim era bem real, com um olhar tão estupefato quanto o meu. Cabelo meio molhado, meio seco, ela piscava em choque enquanto o telefone no ambiente continuava tocando e as conversas ao redor tinham se extinguido, mostrando que todo mundo estava de olho na gente. Um segundo depois, percebi quem ela era.
— Não acredito. — ela bufou, saindo de cima do meu peito como se eu fosse o chão imundo de um estacionamento. — Como é que você consegue aparecer pra arruinar o dia aqui também? Toda aquela comida não foi suficiente?
— Eu acho que você é quem deveria olhar por onde anda, sabe? — eu murmurei, tentando resgatar alguns papéis que ainda não estavam completamente encharcados.
— Ah, então eu deveria olhar por onde ando? Igual ontem? — ela deu um sorrisinho sarcástico antes de arrancar os papéis da minha mão. — Tem ideia do trabalho que foi coletar esses depoimentos? Tem ideia do tanto que ainda temos pra fazer hoje? Aliás, você é algum aluno perdido aqui atrás do professor O'Donnell pra pedir revisão de trabalho malfeito? Porque se for, pode tirar o cavalo da chuva. Ele tá ocupado, e não vai sair pra...
— Mas o que está acontecendo aqui? — O'Donnell, o próprio, abriu a porta, olhando alternadamente pra mim e pra garota. — , por que está brigando com o rapaz?
se endireitou, vermelha de raiva, mas recuou um pouco.
— Professor, esse... esse cara acabou com os depoimentos que eu consegui sobre a ação da polícia. Eu ia levá-los pra revisão e agora...
O professor O'Donnell levantou a mão como quem afasta uma tempestade. se calou instantaneamente, com as bochechas ainda mais vermelhas, lutando pra não pressionar o maxilar. E aí eu percebi que a água gelada tinha sido implacável: ela estava sem casaco, e se controlava para não tremer os lábios.
O'Donnell se voltou para nós dois.
— Não façam disso um drama. Há trabalho demais pra isso. , eu sei que você não fez isso de propósito, e estava de saída, não estava? — ele deu umas batidinhas no meu ombro, depois olhou para . — Quanto a você, senhorita , tenho uma nova tarefa. — ele entrou rapidamente na sala e voltou com uma pasta. — Digitalize, edite e finalize o envio do artigo do jovem aqui. Isso deve responder sua dúvida sobre a presença dele. É a coluna especial sobre saúde pública do centro médico de Irving.
olhou da pasta pra mim, depois para o professor, folheando rapidamente as páginas.
?
— O próprio. — O'Donnell assentiu. — Agora, se me dão licença, tenho que lidar com o inferno dos e-mails e chamadas de emissoras sem mais o que fazer, querendo informações que nem temos ainda. — ele suspirou e se virou para o resto da sala, onde todos ainda estavam assistindo ao show. — E vocês aí! Voltem ao trabalho, ou vão levar pontos de demérito! , sei que você vai resolver a questão do senhor . É uma das nossas melhores alunas. E chame a moça da limpeza pra dar um jeito nessa bagunça. Senhor , desculpe o transtorno. Volte em segurança ao departamento. — ele me deu um sorriso caloroso e entrou em sua sala, desaparecendo tão rápido quanto surgiu.
olhava para mim como se eu fosse uma barata que acabara de pousar bem no meio da sua sopa — olhos arregalados, lábios franzidos em desgosto e algo que parecia muito com choque. Era óbvio que nunca tinha visto o senhor O'Donnell falar assim com alguém. Aliás, nem eu.
— Então… você tá bem?
A garota suspirou.
— Você pode ir agora, por favor? Preciso chamar o serviço de limpeza e, bem, você está meio no caminho. Pode deixar que seu artigo será publicado assim que possível.
Sem esperar por mais reações, ela se virou e saiu pela porta de outra sala, me deixando sob o olhar atento dos poucos que ainda estavam presentes, como se eu fosse alguma atração de zoológico. Balancei a cabeça, voltando a mim, e fui em direção à saída, ciente de que, pela segunda vez naquela semana, estava no meio de uma confusão completamente evitável. Tinha um certo talento em criar esses momentos constrangedores, e o mais surpreendente era que geralmente eles envolviam apenas os mortos.
Na saída do prédio, me lembrei do novo problema: eu estava sem roupas extras, de novo. Não sabia se era cedo demais pra aparecer no dormitório de e implorar (pela segunda vez) por uma camiseta limpa. Nessa época do ano, deixava um casaco morando no meu banco de trás, um elemento acessível muito bem aproveitado nessa cidade que logo mais estaria se afogando em neve. De repente, pensei em oferecê-lo à tal — afinal, ela parecia precisar tanto de um casaco quanto de um calmante, mas a ideia desapareceu tão rápido quanto veio.
Porque algo mais urgente chamou minha atenção.
No mural de madeira ao lado da entrada, onde os panfletos de eventos jornalísticos se amontoavam, havia um cartaz bem maior e mais chamativo: “FESTA NA DUNGEONS! VENHA E TRAGA MAIS UM & A CERVEJA! SEXTA 21H!” O pôster parecia até piscar, como um sinal de neon para os desavisados (ou para os bem avisados que sabiam o que era bom).
Uma ideia, louca e impossível, começou a se formar. As palavras de Sandy ecoaram na minha cabeça: “Ele é popular, vive dando festas e vende de tudo”.
É, o jeito seria tentar.
Sem realmente acreditar no que eu estava prestes a fazer, entrei no carro e disquei o número do .


Eu estava realmente preocupado que não conseguisse encontrar a biblioteca nem com a ajuda do Google Maps. A demora já dizia tudo, e considerando o histórico de desprezo dele por qualquer coisa que envolvesse letras em papel... bom, as chances não estavam ao seu favor.
Quase meia hora depois, ele apareceu na porta da frente, com um olhar meio perdido e girando a cabeça como se estivesse num labirinto (a Augustus nem era tão grande assim). Acenei do fundo do salão, e ele começou a caminhar na minha direção com passos cada vez mais rápidos, e fiquei convicto de que a razão disso fossem os olhos muito retos e dentes ligeiramente trincados da bibliotecária ranzinza, que reconhecia um “arruaceiro do T.I.” de longe. Palavras dela, não minhas.
— E aí, cara? Que foi? — ele praticamente berrou enquanto puxava a cadeira à minha frente, chamando a atenção geral e recebendo um “shh!” agressivo. Suspirei, me perguntando por que exatamente eu achara que marcar encontro com numa biblioteca era uma boa ideia. — Foi mal. — murmurou em direção aos nossos vizinhos. — Galera bem nervosinha, hein?
— Eles ficam ariscos com qualquer um que provavelmente insultaria os povos sumérios por terem inventado os primeiros livros. Tipo você.
— Ei, esse negócio é coisa do passado. Isso aqui é mórbido, cara. Já inventaram o Kindle há mais de uma década, esse prédio inteiro podia estar sendo usado pra fazer mais um pub.
— No meio do centro médico?
— Vocês precisam relaxar de vez em quando, não? Pra abrir mão das orgias nos congressos e coisa assim. — ele deu uma olhada cética ao redor. Quis perguntar da onde ele tinha tirado isso, mas lembrei que eu é que tinha contado essa fofoca. — Mas e aí, o que tá pegando? Falta pouco para o almoço, quer ir no Amadeus? Eu vi o cardápio do John Jay, e hoje definitivamente não é um grande dia. Aliás... o que houve com a sua roupa?
Ignorei a última pergunta.
— Vamos numa festa na sexta.
piscou duas vezes.
— Como é?
Abri o banner de divulgação da festa na Dungeons no computador e o virei para . Ele se debruçou sobre a tela, os olhos brilhando.
— Festa na Dungeons? Uma das maiores fraternidades do lado leste? Cara, você tá falando sério? — riu alto, e mais um “shh!” se fez ouvir. Ele ergueu as mãos em rendição, mas o sorriso continuava. — Não brinca. Você tá legal, ? Desde quando o menino de ouro do ranking decidiu bancar o universitário comum?
— Sei lá, de repente quero ir nessa. — dei de ombros, tentando soar casual. — Vai dar bastante gente?
— Pode apostar que sim. Festa na Dungeons nunca decepciona, e dessa vez não vou ter que aturar os fracassados do meu departamento. — ele puxou o celular e começou a digitar freneticamente. — Preciso postar isso pra já.
Revirei os olhos.
— Não precisa sair publicando qualquer coisinha, infeliz digital. Que exagero.
— Qualquer coisinha? . Numa festa. Isso é uma notícia, meu amigo.
— Nem pense nisso, . Que parte de privacidade você não entendeu?
Ele ergueu as sobrancelhas, como se eu estivesse sendo o estranho ali.
— Ah, você quer falar de privacidade? Deixa eu te lembrar que o “estudante do ano” também é o nome mais comentado no Fórum, principalmente no início do semestre quando os Lions ainda não começaram a temporada e nenhuma outra fofoca do verão estourou por aí. E ah, algumas pessoas acham que você não existe porque é meio deprê não ter rede social hoje em dia, mas algumas garotas acham isso o máximo, elas amam um carinha low profile. E todo mundo vai à loucura quando souberem que o não é um nerd cheio de espinhas que usa camisa xadrez de botão e óculos fundo de garrafa.
Franzi o cenho, um pouco… chocado.
— Eu não sou “deprê” por não ter uma conta no TikTok. Que papo é esse? Desde quando esse tipo de discussão existe?
parou de digitar e arregalou os olhos, como se eu estivesse realmente por fora da hora, do dia e do ano atuais do calendário romano.
— Você é o aluno número 1, ! E estamos em uma das arenas de guerra da Ivy League, aqui as pessoas se preocupam com estudos e notas de teste. E pra chegar lá no topo, a galera no mínimo imagina um cara meio estranho que nunca sai do quarto e cria baratas num aquário. Esse tipo de gente nunca prega um sutiã na maçaneta da porta do dormitório quando quer trepar ou tatuam a letra de Dreams no ombro. Esse é o estereótipo que Gatinhas e Gatões deixaram dos verdadeiros nerds pra gente, infelizmente. Por isso que quando te verem… bem, eles vão gostar. Provavelmente até demais.
Ele abriu um sorriso sugestivo. Queria não fazer ideia do que ele dizia, mas infelizmente me lembrei da expressão de Sandy e de quando ouviram meu nome e entendi tudo. Aparentemente, eu não me parecia com alguém trancado o suficiente.
— Não era exatamente isso que eu tinha em mente. — murmurei, vendo meu plano de ser invisível encontrando um enorme obstáculo: a internet. Eu não estava nem um pouco a fim de ser observado e avaliado por qualquer par de olhos fora da minha bolha, onde até meu jeito de andar poderia virar pauta para uma efervescência social.
balançou os ombros com desdém.
— Isso é irrelevante. Vai acontecer de qualquer jeito.
— Se você diz... — fechei o computador e me levantei. — Agora, vamos. O almoço está garantido no Amadeus.
soltou um gritinho animado, fazendo com que recebêssemos nossa última advertência antes de finalmente deixarmos a biblioteca.

⫘⫘⫘


Morte no campus nunca é algo simples. No minuto em que a notícia corre, é como se o próprio ar mudasse: conversas baixas no final das aulas, trocas de olhares durante o almoço, cochichos nos laboratórios e até um silêncio que paira no corredor. Sandy era o nome no epicentro disso tudo, ainda que o mundo lá fora parecesse um pouco alheio. Para o resto do país, ela era apenas uma garota que “não suportou a pressão” — de acordo com as palavras frias de sua mãe em uma entrevista ao Citizen, que rapidamente se espalhou pela cidade. Os pais de Sandy não quiseram nem saber de autópsia; apenas sacudiram a cabeça e disseram que não queriam mais prolongar aquele pesadelo.
Não iria julgá-los por isso, mas também não iria apertar suas mãos e dizer “muito bem, vocês são o exemplo de bons pais” porque eles negaram a autópsia. O que significava que sua filha ficaria no meu pé por mais um tempo.
Na entrada do dormitório feminino, flores e velas se amontoavam, junto a uma pequena homenagem deixada em seu armário. A faculdade de Direito fez questão de honrar a aluna formanda com um recap do seu único artigo publicado e participações em projetos de voluntariado para crianças de rua em Chinatown. O reitor também organizou uma palestra sobre saúde mental e os perigos dos opióides, um discurso cheio de palavras educadas e classudas, mas que escapou a todos que já estavam chapados de alguma mistura de benzodiazepínicos às 7 da manhã para valer de alguma coisa.
Não conversei muito com Sandy desde aquele nosso trato no carro. Pensei que, depois da notícia de seus pais, ela ficasse ainda mais ansiosa e virasse um carrapato em mim, mas não aconteceu. A garota só vagava pelo campus, seus olhos inexpressivos observando as pessoas que deixavam flores, ou ficava parada ao fundo do John Jay, olhando as tortas do dia e prestando atenção em todo mundo que chegava perto. Sabia o que ela estava procurando: ser vista. Encontrar, por algum milagre divino, outra pessoa com a habilidade esquisita de ver além da névoa de normalidade desse mundo.
Não demorou muito pra ela saber que teria de se contentar comigo. E como eu não podia ignorá-la, dei um jeito de mostrar o cartaz da festa na Dungeons e explicar o que eu pretendia fazer — ou tentar. Esperava sinceramente que ela me respondesse com um “você é mesmo bem burro se acha que isso vai dar certo”, mas em vez disso, recebi seu total apoio imediato, o que era preocupante porque o plano era uma merda.
Seja como for, depois disso a garota parecia mais calma. Em paz. Nem chorou tanto quando as flores começaram a murchar no corredor. Tudo voltou a um ponto perto do normal, pelo menos até quinta-feira.
Porque na sexta, só se falava de uma coisa.
Nunca tinha me arrumado para uma festa antes. Digo, não uma festa que não envolvesse vinho Tignanello, lustres de cristal e ternos sob medida que escondiam minhas tatuagens. A galera de Vagelos fazia mais o tipo “noite de Jangga no Bard Hall, traga seu próprio kit de sobrevivência”, o que acabava se tratando de horas em uma discussão sobre quem trapaceou no jogo, quem ultrapassou a dosagem de álcool no drink de frutas, quem transou escondido no laboratório de análises clínicas e estragaram a amostra até o fim de tudo, quando os veteranos precisavam voltar correndo para o hospital, e o restante estava bêbado demais pra jogar, rir ou flertar. E sem um fiapo de música sequer.
Isso tudo não chegava perto de noites malucas ao estilo Arquivo X que eu já tinha ouvido falar de ou minha zona de conforto: sofá de casa e jantar no restaurante de fast-food mais próximo — e, se for pra ser honesto, só com duas pessoas: e Gina. Minha ideia de uma boa aventura era ir a algum lugar novo, de preferência recém-construído, lugares onde dava pra ter certeza de que ninguém tinha morrido e deixado algo para trás, empurrando cadeiras, furtando talheres e perguntando a qualquer um se teriam bons dentes para doar.
Então, dá pra imaginar minha empolgação ao descobrir que a tal Dungeons ficava em uma propriedade do século XVIII restaurada, no pé de uma pequena colina na extremidade mais afastada de Manhattanville.
É, nada como a perspectiva de fantasmas com perucas coloniais para animar a noite.
Quando finalmente estacionei o Jeep, uma quadra inteira separava a gente da entrada da casa. A rua estava abarrotada de carros e o jardim da frente lotado de gente que parecia mais animada do que eu conseguiria fingir em mil anos. Mesmo dali, dava pra ouvir a música ribombando como o apocalipse lá dentro.
— Eu disse! Hoje vai ser épico! — anunciou, já fora do carro, esticando os dois braços para cima em um alongamento especial.
Soltei uma risada, me inclinando para pegar meu casaco no banco de trás, até que me parou com a mão no meu braço.
— O que você tá fazendo?
— Pegando meu casaco? — respondi o óbvio. — Estamos a um passo do inverno, caso você não tenha notado.
— Tá maluco? — ele se aproximou e arrancou o casaco das minhas mãos, jogando de volta no carro. — Lá dentro vai estar um forno, , eu garanto. Vai ser tipo QUEN-TE. — ele soletrou a palavra lentamente, como se eu de repente tivesse me transformado em um neanderthal. — Deixa alguém além do seu espelho ver um pouco mais desse corpo, tá legal? — ele ajustou minhas mangas até o cotovelo e deu um sorriso satisfeito. — Pronto, agora com as tatuagens à mostra e um sorriso convincente, você tá vestido pra matar. Um homme fatale, entendeu? Vamos lá.
Não acredito que ele acabou de falar homme fatale.
Ele agarrou meu braço e me puxou, apressando o passo. A cada metro quadrado, a enorme porta dupla de madeira parecia mais ameaçadora, deixando escapar uma mistura de sons, cheiros e a promessa de contato exagerado. estava quase correndo quando, finalmente, chegamos à entrada, os ombros roçando nos das outras pessoas que se espremiam para entrar. Uma vez lá dentro, fui obrigado a concordar com sobre o lance do calor. O frio congelante que Nova York já começava a despejar na população em pleno novembro não tinha a menor chance ali, onde a energia era pura combustão: gente dançando, se esbarrando e se esfregando ao som ensurdecedor de Black Eyed Peas, com garotas em roupas mínimas dominando o espaço em cima das mesas.
Não se passaram nem cinco minutos e eu e já estávamos com aqueles famosos copos vermelhos nas mãos, cada um com um líquido suspeito dentro.
— Vai, ! — gritou, levantando o copo com entusiasmo. Fez uma contagem com os dedos, e quando chegou a três, um pequeno grupo em volta gritou e viraram o copo, ele inclusive. Entendi a deixa e segui o movimento. O líquido desceu rasgando como fogo, quente e amargo. Pelo bem da minha sanidade, nunca quero saber o que acabei de tomar.
Antes que eu me recuperasse, já estava gritando que precisávamos de mais bebidas e marchando na direção da cozinha. O lugar estava tão lotado quanto a Times Square no ano novo, e um mar de gente acabou tendo a mesma ideia que nós: pegar qualquer bebida pra abater o gosto daquela coisa tenebrosa que se parecia muito com gasolina.
Chegando lá, percebi a quantidade de opções: vasos e garrafas térmicas improvisadas transbordavam de cervejas e vodkas, sem falar nas mesas cobertas de copos e garrafas vazias. rapidamente pegou duas Budweiser de uma das bolsas ao lado da pia e me entregou uma, junto com um cigarro, que aceitei sem hesitar.
Aparentemente, dizer "não" naquele lugar te transformaria em um exilado.
Meu amigo estava explodindo de animação. Desde o ensino médio, eu já tinha visto todos os seus lados, e sabia que, mesmo sendo um cara legal, nunca foi exatamente aquele que se enturmava de primeira. Ainda mais se estivesse vestindo os mesmos jeans manchados de agora, junto com uma jaqueta bomber com estampa de vômito (uma maneira educada de ilustrar). Eu, pessoalmente, nunca passaria meus braços e a cabeça por uma roupa daquelas. Ele analisava cada garota que passava com um olhar sugestivo, tentando engatar uma conversa, embora, honestamente, todas as tentativas caíssem por terra.
Depois de um tempo, conferi o relógio no celular. Uma hora perdida naquele lugar. Decidi que era agora ou nunca: precisava encontrar Ash. Eu não tinha um plano brilhante, mas nem o mais merda dos planos poderiam ser executados sozinhos. O que significava que eu precisava colocar em prática um antigo martírio pessoal: interagir com as pessoas. Sair distribuindo um “olá, tudo bem?” como se eu estivesse totalmente interessado na resposta.
Mas, bem, em uma hora eu ainda não tinha topado com nenhuma assombração, então talvez o lugar estivesse limpo de verdade, sem andarilhos da Segunda Guerra Mundial ou cemitério indígena construído embaixo desse piso. Isso tornava tudo 10% mais agradável.
Num piscar de olhos, se afastou e já estava em uma rodinha de garotas a poucos metros, provavelmente achando que essa era a chance da vida dele. Ele já tinha bebido o suficiente para ultrapassar a linha entre “engraçado” e “constrangedor", mas dessa vez, eu não iria julgar. Pelo menos ele estava distraído, o que me deixava livre para focar no meu objetivo e me mandar daqui o quanto antes.
Comecei a examinar o ambiente. Desde que chegamos, eu e já tínhamos rodado pelos corredores da casa, e agora estávamos em uma área ampla, entre o jardim com piscina e a cozinha de inox. A quantidade de pessoas zanzando por ali diminuiu um pouco depois que as bolsas térmicas com bebida foram distribuídas pelo restante dos cômodos. À esquerda, uma escadaria enorme levava ao segundo andar, onde existia um espaço mínimo pra passar, cercado de gente se pegando sem pudor, envolvidos em luz baixa e fumaça, sem nem pensarem por um segundo em terminar de subir para irem aos quartos. Era provável que não poderiam? Ash proibia libertinagem nos espaços feitos pra dormir? Ou cobrava por isso também, tipo uma locadora do sexo?
Existia esse tipo de coisa nas festas universitárias? Nova York era mesmo a cidade mais brilhante do mundo.
Mas aquela iluminação baixa, com luzes de LED girando loucamente com seus feixes coloridos, realmente estavam dificultando muito a minha visão. Me afastei um pouco de e do grupo alheio, andando sorrateiramente pela galera bêbada, tentando não esbarrar em ninguém (da última vez que aconteceu, uma garota com uma tiara de chifres do diabo soltou um grito: “EI! VOCÊ É MESMO AQUELE LÁ?”), apertando minha cerveja e o cigarro entre os dentes até escapulir por uma área em que meus ombros estavam mais livres e uma geladeira improvisada ficava bem ao lado de uma máquina de lavar (que estava transbordando de camisinhas). Criativo.
Foi bem ali, quando terminei de tomar o último gole daquela coisa quente e pegava a primeira cerveja em temperatura ambiente da geladeira, que eu a vi. Foi de relance, enquanto eu escaneava os arredores disfarçadamente pela 8º vez. Ela estava parada junto das mesmas garotas do refeitório, com o quadril apoiado na bancada, um copo vermelho na mão e um sorriso leve nos lábios. O primeiro que vi nela, aliás. Legal saber que ela tinha a capacidade de sorrir, e não de só rosnar como um animal furioso.
Foi só completar esse pensamento para que ela virasse a cabeça na minha direção e me visse na mesma hora. Mesmo naquela quase escuridão, deu pra ver muito bem seu protótipo de sorriso derreter e sumir como se nunca tivesse existido. Tive quase certeza que franzi as sobrancelhas, encarando ela sem desviar o olhar. A garota parecia estar desejando ter um poder de Dracarys e soltar fogo em cima de mim. Ou, se fosse possível, virar aquela máquina de lavar em cima da minha cabeça, porque estava revezando seu olhar de desdém entre mim e ela.
Ah, porra.
Segui seu olhar e notei que eu estava esticado quase em cima daquela coisa, apoiando o quadril do mesmo jeito que ela estava fazendo na bancada. Não sei em que horas fiz isso e nem quanto tempo fiquei encarando ela naquela pose um tanto perturbadora, mas me ajeitei depressa, limpando a garganta, tentando sugar um pouco mais da nicotina no cigarro quase apagado enquanto sentia o rosto arder por alguns milésimos de segundos. revirou os olhos e mudou a posição, me dando as costas completamente, deixando claro que o próximo sorriso agora viria quando ela tivesse um aneurisma severo e se esquecesse completamente da minha presença ali.
Nunca fui odiado desse jeito. Quero dizer, não sei se ela me odiava de verdade, mas estava há anos-luz de me ver como uma presença indiferente ou razoável. Tomar um banho de suco de laranja era tão grave assim? E da segunda vez, ela esbarrou em mim. Dois encontros desastrosos que me pintaram como um idiota completo, mesmo que eu não quisesse. Agora, estava muito claro que, se o ser adorável que era desprezava alguma coisa, essa coisa era eu.
Bom, não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso.
Dei meia volta para sair de perto daquela distribuidora bizarra de preservativos e consegui dar 3 passos até surgir como um furacão, trazendo umas quatro garotas com ele à tiracolo. Elas me cercaram como predadoras, sorrindo para mim primeiro com simpatia, depois com exaltação.
— E aí, ! Adivinha só: falei pra essas gatas que vim com meu melhor amigo, ninguém menos que em pessoa, mas elas acharam que eu tava mentindo. Dá pra acreditar? — ele riu com perplexidade, e então fez um gesto para as garotas. — Digam oi, meninas! Juro que ele não morde!
Uma das garotas — ruiva, cabelo liso caindo até a cintura e um batom vermelho que a deixava a cara da Rowena uns trilhões de anos mais jovem — empurrou levemente para o lado até ficar bem na minha frente.
— Então, você é o . — ela lançou um sorriso daqueles de cinema, claramente bem treinado. E, pelo jeito que as amigas se alinharam atrás dela, parecia a líder do grupo. — Caramba, é um prazer. A gente tá no primeiro ano de Medicina, e, bom, você já deve saber que as pessoas em Vagelos falam bastante o seu nome. Você é tipo uma celebridade de Irving. — ela deu um risinho e ajeitou o cabelo. — Sei que o seu negócio é terapias-alvo de câncer, mas pensei que a gente poderia conversar. Sobre o internato, ou qualquer outra coisa mais difícil…
Dali em diante, as palavras dela se perderam quando o som disparou para um nível quase desumano. Fiz o que pude para ouvir, mas acabou que fui levado, ou melhor, arrastado para fora da pista de dança, rumo ao jardim, onde o volume era menos ameaçador para os tímpanos e o número de pessoas diminuiu drasticamente. Também estava mais frio, o que explicava.
Olhei para as garotas, ponderando. Parte do meu trabalho extracurricular era mesmo reparar nos mínimos detalhes — nos olhares, nos gestos, nas pretensões não tão disfarçadas. Claro que a ruiva já tinha deixado as segundas intenções bem claras. Talvez até terceiras ou quartas. Mas, se eu já guardava toda a minha paciência e compaixão para lidar com os mortos, sobrava pouco para o resto da humanidade. E, sinceramente, eu não achava que a caloura bonita claramente rica, geniosa, cheia de opções e que nunca deve ter entrado em um transporte público estivesse precisando de compaixão.
Mas eu finalmente estava falando com alguém.
Por isso, dei meu melhor para treinar as expressões mais genuínas de interesse — precisava parecer que estava totalmente absorvido em cada palavra que saía da boca daquela garota. Nós nos acomodamos um pouco longe de e das outras, que, de algum modo, pareciam totalmente envolvidas com meu amigo. Ótimo. Aquilo tinha que ser rápido.
Enquanto ela falava sem parar sobre tudo o que a fascinava — sempre dando um jeito de incluir a mim e meus “supostos” interesses na lista —, eu tentava manter um ar de paciência. Tudo isso enquanto ela deslizava as mãos na cara dura por onde quer que pudesse alcançar de mim na fraca iluminação à beira da piscina. A cada minuto, a menina se aproximava um pouco mais na espreguiçadeira, e lá pelas tantas, eu já tinha perdido a conta de quantas vezes afastei sua mão boba, tentando passar a impressão de que só queria conhecê-la melhor primeiro e não a intenção real, que era, de jeito nenhum, me atracar com uma desconhecida numa festa que eu nem queria estar.
Provavelmente, não ia querer dar uns amassos nela nem fora daquela festa. Questão de princípios. Ela só estava interessada no cara do ranking, o que significa que estava articulando todas aquelas frases e citações mirabolantes porque pensava que eu me impressionaria. Como se eu fosse um cara que só daria importância a pessoas que soubessem o que é um dendrito e botões sinápticos.
— Então… Jessie. — soltei um suspiro de alívio no meio de uma de suas frases, satisfeito por lembrar o nome dela. — Aquela história sua sobre o experimento de difusão na célula foi… uau. Sério, deve ter dado um trabalhão, fiquei impressionado.
— Jura? Que incrível ouvir isso de você. — ela iluminou os olhos. — Peguei a ideia de um artigo seu, que, aliás, é um dos melhores que já li. A forma como você explicou osmose e as aquosas foi tão didática… e profunda. Sei que foi voltado para os alunos do preparatório, mas tinha um certo quê avançado que mal deu pra notar. Foi brilhante. — e lá veio outra mão deslizando sem qualquer permissão pelo meu braço.
— Mas então… — limpei a garganta, tentando aumentar a distância. — Imagino que foi difícil fazer tudo isso e ainda apresentar. Sei muito bem como a professora Hannah pode ser exigente.
— Bom, ela é uma vaca.
— É… meio que é. — sorri amarelo. — Aposto que você passou várias noites em claro, com aquela pressão toda. No ano passado, um cara saiu chutando a porta da sala e abandonou tudo no mesmo dia.
Ela riu, meio sem graça.
— Acho que todo mundo ouviu essa história. Teve uma hora que pensei em fazer o mesmo, sim. Se sentir exausta é uma merda, ainda mais em vários dias da semana. E eram tantos dados, caramba. Onde ela vai enfiar aquelas porras de números? Levar pra ONU? — ela resmungou com os lábios na borda do copo. Quase abri a boca e perguntei se ela tinha alguma noção de quem era Andy Hannah e de sua ligação real com a ONU, mas fiquei quieto. — Enfim, foi uma fase fodida. Mas dei um jeito, fiquei ligada por dois dias seguidos, e deu tudo certo.
Curvei os lábios para baixo.
— Sério? Que truque foi esse?
Ela retribuiu com um sorriso, um pouco conspiradora.
— Só uma coisinha que a galera faz. Segredo. Não precisamos falar disso. Mas queria contar o que a técnica do laboratório falou sobre o anatômico no meu primeiro dia…
— Qual é o segredo? — insisti, agora mais firme, inclinando-me um pouco para perto. Vi o impacto que isso teve, porque ela logo arfou um pouquinho. — Eu não tô por dentro da galera. As pessoas mal me conhecem e devem achar que eu sou uma cópia do Robocop, mas esses dias eu tô acabado. Tá na hora de mandar formulários para o internato, e eu não faço a mínima ideia de pra onde ir, qual hospital vai ser o melhor, em qual deles vou poder guardar minhas culturas, onde tem as melhores bolsas e esse tipo de coisa. Metade do departamento surge com propostas e vivem me lembrando que o tempo tá acabando. E eu só queria dormir. — dei uma risada seca e irônica, me aproximando só mais um pouco. — Então… será que eu também não mereço um descanso?
Jessie respirou fundo, como se tentasse acalmar o próprio coração ou talvez ganhar tempo para decidir se deveria ou não me contar. Mas a hesitação não durou muito; meu olhar deixava bem claro que eu não estava exatamente pedindo, e que, talvez, ela poderia receber algo em troca se dissesse. Pelo menos, queria que ela pensasse isso.
— Comprei uns remédios com um cara do campus. — ela começou, balançando o líquido dentro do copo. — Ele vende de tudo, mas sabe, nada exatamente... legal. Não faço ideia de onde ele consegue as coisas, mas o povo jura que é coisa de primeira. Pura, top de linha.
— Hum… — murmurei, me esforçando para parecer casual, quase desinteressado. — E esse cara, tem nome? Algum ponto de encontro ou algo assim?
Ela olhou ao redor, e uma pontinha de sorriso se formou no rosto dela, talvez impressionada com minha falta de sutileza.
— As pessoas o chamam de Ash. Mas todo mundo diz que esse não é o nome verdadeiro dele. — ela tinha uma expressão meio cúmplice, meio provocadora. Com certeza estava pensando que antes das 3 da manhã, eu estaria com ela no meu colo em uma das duas camas do quarto que ela compartilhava com alguma das outras no dormitório. — Tenho um e-mail, se precisar. Só dá pra falar com ele por lá. Mas, sério, gatinho, com certeza você não precisa se meter com esse tipo.
Ah, você nem faz ideia.
— Na verdade, eu preciso, sim. — respirei fundo, tentando demonstrar uma exaustão que, com sorte, parecia autêntica. — Eu não queria falar, mas… Quero muito ir pra Oxford, Jessie. E eles não responderam meu formulário até hoje, mesmo com as 3 cartas de recomendação mais fodas que alguém nesse país pode conseguir. Harvard é uma boa opção, até o Texas é uma ótima escolha, mas Oxford… eu quero eles, sabe? Mas eles não parecem se importar e a ansiedade tá me comendo vivo. É aquela que tira o sono, entende?
Ela assentiu com uma compaixão exagerada. Percebi que ela ficaria muito bonita se tirasse toda aquela maquiagem pesada.
— Claro. Meu Deus, não sabia que Oxford eram uns merdas completos. Nem parece que formaram o Stephen Hawking. — disse, com os dentes um pouco trincados. — Claro que dá pra te entender. Algumas pessoas podem ter medo de você ser o número 1 fora daqui também.
— Então, você pode me arrumar o e-mail? — perguntei, dando meu melhor sorriso de quem está à beira do abismo, mas tentando parecer digno.
Ela hesitou, mas mantive aquela expressão compenetrada que Gina vivia dizendo que a deixava molhada na mesma hora, e foi o suficiente. Rapidamente, a garota puxou uma caneta da bolsa, olhou ao redor como se fosse cometer um crime e começou a escrever as informações na palma da minha mão.
— É só mandar e aguardar a resposta dele. — ela diminuiu o tom de voz. — Ele vai te dizer onde encontrá-lo.
— Jessie, você acabou de salvar minha vida. — coloquei entusiasmo nas palavras, e ela sorriu de um jeito derretido. — Prometo que vou te recompensar com uma bebida. Duas, na verdade. É o mínimo, não?
— Só uma bebida? — ela ergueu uma sobrancelha e chegou mais perto, segurando minha mão e reduzindo a distância entre nós até que seu rosto ficou a poucos centímetros do meu. Tentei disfarçar o desconforto e toquei seu rosto de leve, numa tentativa de suavizar a situação.
Duas bebidas, gata. — sussurrei, adotando um tom abafado. — E você sabe que compartilhamos um segredo aqui, né? Então, sem comentários sobre isso por aí. Sei que entende o que quero dizer.
Ela assentiu, rápido o suficiente para que eu me perguntasse se estava bem, e logo puxou o lábio inferior para os dentes. Dei um beijo leve na bochecha dela, agradecendo sem exageros, e senti os olhos dela me observando enquanto me afastava, sem dizer uma palavra.
Sempre fui um mentiroso de primeira. Tipo bastante. Tenho que ser, considerando que nasci com um defeito grave de ver o que as pessoas não veem e interagir com elas. Passei a vida inteira inventando desculpas e traçando estratégias para me misturar e não ser internado junto com pacientes de esquizofrenia no hospital psiquiátrico, fazendo meus pais acreditarem que eu era só… bem, o cara mais desastrado do universo. Explicava os machucados estranhos, as saídas abruptas e até as crises de "rebeldia", quando eu me metia numa briga com alguém ou precisava, sorrateiramente, invadir uma propriedade de Pacific Heights pra pegar uma fotografia de uma família que nunca vi na vida. Meus pais, a polícia e a assistente social diziam o mesmo: ele está naquela idade. Daqui a pouco as coisas se ajeitam. Não sabia exatamente o que significava “aquela idade”, mas concordava com tudo, dispersando o interesse.
Então, é lógico que fingir interesse em uma garota qualquer que conheci há menos de duas horas não era nada. Fácil. Meio chato, mas fácil. Assim que me afastei o suficiente de Jessie, mandei uma mensagem para , avisando que estava dando o fora, mas não valia a pena esperar sua resposta. Mesmo se estivesse transtornado de bêbado, o cara me mataria se eu o tirasse do seu harém particular, então só informei que ele precisaria voltar de táxi e fui apreciar minha liberdade.
No entanto, sair daquela festa foi mais difícil do que eu pensei, porque o número de pessoas na casa tinha triplicado. Atravessar aquilo foi ruim, melequento e um pouco assustador, considerando que um cara com metade do cabelo pintado de azul raspou a bunda exposta na minha calça. Ignorei os olhares espichados pra cima de mim, e os burburinhos que começavam e acabavam depressa. Impressionismo da minha mente, eu esperava. Normalmente, as pessoas só olhavam pra mim quando me viam no meu habitat natural de ser um completo esquisito.
Já passava das duas da manhã e o ar do lado de fora estava congelante, com vapor branco escapando da minha boca assim que respirei o ar puro. Abaixei as mangas da camisa e dobrei na rua, andando rápido na direção do carro, dando uma última olhada para trás, vasculhando as bordas das janelas vitorianas, a chaminé de tijolos desgastados e o quintal com gramíneas fracas, prontas para serem soterradas pela neve, procurando algum sinal de fantasma na redondeza, qualquer coisa que aquela gente bêbada não estava vendo e jamais veria.
Mas não tinha. A casa estava mesmo limpa. Uma casa velha e que deve ter sido reformada pela última vez em 1987. Uma raridade boa de se ver.
Finalmente alcancei o Jeep, só que, claro, tinha um problema. Porque é claro que tinha. Porque aquilo ainda era uma festa, e eu estava em Nova York.
Por algum motivo que jamais vou entender, um grande Toyota RAV4 preto estava parado bem na frente da porta do motorista do meu carro, bloqueando não só a minha entrada, mas também grande parte da rua. Não que alguém fosse se queixar àquela altura, já que eu era o único a sair da festa enquanto ainda havia pessoas chegando. Mas com aquele carro naquela posição, eu não conseguiria ir embora nunca, nem mesmo se chamasse um táxi.
E como se a situação não pudesse piorar, lá estavam eles: um casal, claramente se engolindo vivo, encostado na porta do carona do Toyota, bem entre meu Jeep e o carro ao lado. A garota estava prensada contra a janela, o vestido a bons quilômetros acima dos joelhos. E o jeito que o cara estava beijando ela… definitivamente era o caso de usar a palavra “engolir” com todas as letras.
Limpei a garganta, uma, duas vezes. Até que finalmente eles pararam e me olharam. E pra completar o nível de constrangimento, a garota era ninguém menos que . Ela pareceu extremamente desconcertada ao me ver, ruborizando da cabeça aos pés, fazendo toda aquela fachada de durona cair por terra.
— E aí, amigo. — o cara se virou para mim, com uma voz completamente embriagada, os olhos quase fechados. Ele não era tão alto, mas tinha postura, um cabelo claro farto e um nariz romano bastante distinto. Gina teria dito que ele parecia bem-apessoado. Pra mim, ele só era um cara fedendo a álcool barrando meu caminho. — Alguma coisa interessante pra você aqui?
— O carro é seu? — apontei para o Toyota, tentando me manter o mais educado possível. Ele balançou a cabeça afirmativamente, ainda um pouco confuso. — Poderia, por gentileza, abrir um espacinho pra eu sair? Aqui não é bem a Avenida Madison. — falei, fazendo um gesto na direção do Jeep estrangulado no meio-fio.
Ele olhou para mim, depois para o Jeep, depois de volta para a SUV, como se estivesse tentando resolver um cálculo complicado de Física. Finalmente, soltou , deu um passo em minha direção e disse, com um tom impaciente:
— Isso precisa ser agora? Eu estou no meio de uma coisa aqui.
— É, deu pra ver. Mas ainda precisa ser agora.
— A gente já vai. — disse, pegando na mão do cara com certa pressa. — Vamos, , me dá as chaves.
— O caralho de chaves. — ele soltou a mão dela abruptamente, e deu um passo pra trás, surpresa. — Sério, você acha que vai embora agora? Tá cedo demais! Fica aí e aproveita mais um pouco. Você deve ser calouro, né? Então esse é o seu momento! Vai lá, participa da bebedeira de ponta-cabeça no tanque, agarra uma gata na suíte… é disso que você vai realmente lembrar da CCU, sabia? — um sorriso enorme e afiado se abriu nos seus lábios meio vermelhos. Gina também diria que ele tinha dentes excelentes.
No meu caso, odiei todos eles instantaneamente.
— O cara entende a nossa língua? Pode fazer uma mímica ou explicar pra ele que eu tô com um pouco de pressa aqui?
Olhei para de soslaio.
...
— Cara, quem você pensa que é, falando assim com a namorada dos outros?
!
O grito dela me fez virar na hora. ainda estava vermelha, mas não parecia constrangida pelo fato de eu ter flagrado seu amasso radical. Era um desconforto diferente — como se estivesse amedrontada com o grito que acabou de dar.
— Vamos embora, anda. Podemos ir pra sua casa, que tal? — sugeriu ela, quase num murmúrio.
A proposta fez o cara parar e encará-la com aquele tipo de olhar que só piorava as coisas. Mesmo tentando soar casual, a tensão no rosto de era clara, assim como seu desinteresse real em dizer aquilo. Mas é óbvio que, no estado do idiota, ele não ia perceber nada.
Em seguida, ele deu uma risada estranha, alta, tipo uma gralha, e então, sem mais nem menos, agarrou o glúteo da garota e a deu um beijo forte na sua boca antes de caminhar até a porta do motorista do Toyota. Ela ficou lá parada, os olhos fugindo dos meus por alguns segundos, até que finalmente, sem escolha, levantou o queixo pra me encarar. E foi naquele segundo que alguma coisa mexeu comigo de um jeito muito errado. Nem sei bem de onde veio, mas o instinto de dar um soco na cara do tal e desmanchar aquele sorriso de atleta bateu forte.
sumiu do meu campo de visão e abriu a porta do carona quando o motor foi ligado. Antes de entrar no carro, ela olhou nos meus olhos de novo, como se quisesse dizer algo, mas não fez. E daí, algo estranho aconteceu.
Atrás dela, vi uma sombra, meio indefinida, sem rosto, só… uma presença pesada, espreitando bem perto dela. Cravou o que pareciam ser olhos em seus movimentos, observando desde o momento em que ela subia e se acomodava no assento, puxando o cinto de segurança e murmurando algo ininteligível para o namorado imbecil que nem sequer virou a cabeça para olhá-la.
O som do motor reverberando no escuro me tirou do transe, e pisquei. O vulto desapareceu tão rápido quanto tinha surgido. Vi o carro cantar pneus e ganhar velocidade, se afastando depressa enquanto meus olhos ainda tentavam processar o que acabaram de ver.
Olhei para a fachada da casa, soltando o ar tão forte que me envolveu em uma enorme névoa branca.
Talvez aqui não estivesse tão limpo assim.


foi o nome que usei no e-mail enviado para Ash. Eu sei, zero criatividade, mas não era como se pudesse colocar meu nome verdadeiro. Não naquela situação. Não com o risco de exposição — e, sendo honesto, talvez algo muito pior. Foi surpreendentemente fácil conseguir uma resposta dele: bastou a performance de estudante emocionalmente esgotado, e Ash estava se prontificando a me receber praticamente no dia seguinte. Pensei, por um instante, em pedir ajuda ao para rastrear o IP daquele e-mail e me poupar de um encontro formal, mas descartei a ideia tão rápido quanto ela apareceu. Pelos seguintes motivos:
a) Não tinha como alguém que comandava um esquema daquele tamanho no campus ser tão descuidado.
b) faria perguntas que eu definitivamente não queria responder.
c) não ia sossegar até conseguir as respostas, e elas provavelmente destruiriam a sanidade mental dele — e meu status de melhor amigo na mesma tacada.
Preferi focar no caminho mais tradicional. O e-mail dizia para estar à 1 da manhã no segundo andar da Dungeons, última porta do corredor. Não me admirei com a continuidade da festa por hoje também, mas não fiquei animado de ter que voltar àquela mesma casa — não depois que tinha literalmente escapado dela ontem, e não depois de ver aquela… coisa no final. Uma coisa esquisita que não tive tempo de pensar ou pesquisar sobre (lê-se: perguntar à minha avó), mas eu não tinha escolha. Decidi que tudo acabaria naquela noite, e ainda com tempo de sobra para assistir os irmãos Soprano brigando por um pedaço de torta na reprise da HBO.
Cheguei a pensar em abordar Ash de forma mais inteligente, mas me lembrei de uma coisa que Gina vivia me dizendo: todo mundo acredita no invisível, , e todos têm medo quando são confrontados por ele. Não que isso deixasse a minha decisão mais racional. Era um plano péssimo. Terrível. Tinha tudo para dar errado. Só esperava que não desse tão errado a ponto de ser irreversível.
O som estridente do interfone me tirou dos pensamentos concentrados nas gotículas de café na máquina. Suspirei, já sabendo quem era só pelo padrão dos toques.
— Cara! — entrou pela porta antes mesmo de eu abrir direito, se jogando no sofá retrátil. — Você não vai acreditar onde eu estava.
— Então nem precisa contar. — avisei, voltando para a cozinha. Eu sabia onde morava, e se tinha batido ali bem depois das 9 da manhã e usando a mesma roupa de ontem, dava pra saber que estava bem longe de casa. — Tá com fome?
— Sempre. — respondeu, ofendido, como se eu tivesse perguntado algo óbvio. — E deixa eu te dizer: você é oficialmente o melhor amigo do mundo. Acabei de riscar o ménage da minha lista de coisas pra fazer antes de morrer.
— Que galanteador. Pretende plantar uma árvore também?
— O mundo já tá fodido, . Uma árvore a mais não vai salvar a gente do próximo meteoro.
— Faz sentido. — dei de ombros, despejando o café na caneca preta com a logo de Vagelos. — Mas ménage? Achei que tinha te visto com quatro garotas.
— Uma delas estava mais interessada nas outras do que em mim. Fica quieto e respeita minha vitória.
Ri enquanto terminava o prato favorito de : pão e geleia (sem preferência de sabor). Coloquei dois em cima da bancada e ele se levantou do sofá, faminto.
— Mas e você, sumiu ontem. — disse, enquanto mastigava como um sobrevivente no apocalipse zumbi. — Procurei por você que nem doido e nada. Meu celular até descarregou. Sorte que as garotas me deram carona pra casa. Pra alguma casa.
— Fiquei cansado, te avisei na mensagem. Parece que meu professor precisava de um relatório de última hora urgente.
Isso não era totalmente mentira ou totalmente verdade. sabia que, se existia um grupo em todo aquele campus que poderia ser visto trabalhando ou perambulando de madrugada além dos mendigos em volta dos portões, essa era a corja da faculdade de Medicina. Era normal o seu orientador te mandar um e-mail às duas da manhã pedindo coisas urgentes e você respondê-lo na mesma hora.
— E a Jessie? Ela era a mais gata das quatro. Tava na cara que você tinha tudo pra se dar bem.
— Sei lá. Não rolou. — dei de ombros, agora fazendo um sanduíche pra mim. ficou parado, o canto da boca sujo de geleia de amora, a testa franzida como se eu tivesse acabado de dizer que ia platinar o cabelo.
— Ah, fala sério. Isso é por causa da Gina?
Agora eu estava franzindo a testa.
— O quê? Como a Gina veio parar nessa conversa?
— Não sei, talvez porque ela é a única garota que ocupa algum espaço sexual na sua vida?
— Ela é só uma amiga, . Não faz sentido trazer ela pra esse contexto.
— Amigos que transam, entendi. — ele ergueu uma sobrancelha enquanto lambuzava o pão com mais pasta de amendoim. — O “clube” onde ela trabalha tem mais amigas assim? Será que ela me apresenta?
Balancei a cabeça, pegando meu café e voltando para a sala. Encerrar assuntos ignorando era meu talento especial, e ele já sabia quando parar. Especialmente se o tópico fosse Gina.
Gina Lasser era minha melhor — e única — amiga de verdade. E, sim, nosso relacionamento podia parecer complicado à primeira vista, mas, na verdade, não era. Crescemos juntos no orfanato Melbourne, duas crianças totalmente diferentes que gostavam de uma brincadeira muito peculiar: quem ajudava o Sr./Sra. Fantasma primeiro.
Sim, Gina era igual a mim.
Isso, mais do que tudo, já era um dos principais motivos do porquê éramos amigos. Nos 22 anos da minha vida, nunca conheci outra pessoa que enxergasse os mortos como eu e, por mais que eu reclame do fardo que isso às vezes se torna, é muito mais fácil lidar com ele quando você não está sozinho.
Gina nunca conseguiu ser adotada definitivamente. Eu era o oposto dela: quieto, retraído, a cara enfiada em algum livro aleatório, enquanto ela falava e agia sem pensar. Era desbocada, bagunceira, teimosa. No dia em que meus pais foram me buscar, ela gritou uma série de palavrões para eles, chorando, e até correu atrás do carro enquanto íamos embora. Aquilo me despedaçou. Por meses, cada vez que eu fechava os olhos, revivia aquela cena, o rosto dela ficando menor no retrovisor. Mas eu sempre me lembrava da promessa que fizemos um ao outro: nunca deixaríamos de ser amigos, e com certeza iríamos nos encontrar de novo. Gina tinha sido a primeira pessoa a me arrancar da concha onde eu tinha me trancado, me dando algo que eu nem sabia que precisava — a chance, mesmo que mínima, de ser eu mesmo.
Nos anos seguintes, eu dava um jeito de me esgueirar até o telefone preso na cozinha escondido dos meus pais e ligava para o orfanato sempre que podia. Queria contar a Gina sobre a minha nova vida, minha nova casa, sobre meus avanços, especialmente com os "senhores fantasmas" que estavam em peso por toda a São Francisco — especialmente na ponte Golden Gate. Fiquei sabendo que lá era tipo o point dos suicidas de toda a Califórnia —, e essas eram coisas que só nós dois entendíamos. Mas as notícias que chegavam pela senhora Drager eram sempre preocupantes: Gina tinha fugido de mais um lar temporário, brigado na escola, tentado escapar do orfanato, passado a comprar cigarros. Ela não podia ter celular, então, nossas conversas eram raras e espaçadas, até desaparecerem de vez quando cheguei ao ensino médio.
Os primeiros anos sem ela foram insuportáveis. Ninguém mais entendia o lado estranho da minha vida, aquele que só Gina conhecia e aceitava. Era literalmente como esconder uma parte enorme de mim mesmo, guardar uma raquete de tênis em uma caixa de fósforo — não dá. Então, precisei fingir que ela não existia, focar em ser um adolescente normal com problemas normais de espinhas, puberdade, pôsteres do Aerosmith e karaokê na sala com meu pai, ferindo os ouvidos de toda a vizinhança com I Don’t Wanna Miss a Thing. Para todos, eu estava bem, mas também estava sufocando. E, quando esses momentos de descontração passavam, eu automaticamente voltava pra minha concha e me lembrava da alma penada zanzando pelo jardim dos fundos da escola que eu não poderia mais ignorar, revelando a realidade a qual eu estava fadado a viver.
Foi difícil para os meus pais. É claro que eles notaram que tinha algo de errado comigo, e tentaram ajudar com o melhor que seu amor e dinheiro conseguiam oferecer, mas eles jamais poderiam. Não era algo que eu podia simplesmente explicar, colocar pra fora.
Então conheci , no primeiro ano da escola católica. Ele era o tipo de pessoa que fazia tudo parecer mais leve, como se a vida fosse o seu cenário de sitcom e ele precisasse fazer a plateia rir. Foi quando eu comecei a me envolver em conversas aparentemente normais entre outros garotos, como namoradas, jogos, Pornhub e “ei, quer ir dar um trago lá na quadra?”. Ele não ligava para as minhas "esquisitices" — como falar sozinho no vestiário da educação física, ser detido por invasão de domicílio e odiar museus com todas as forças. Ele fazia perguntas, claro, mas tinha uma habilidade incrível de deixar as coisas pra lá. me lembrava Gina, de certo modo. Não na aparência ou nos trejeitos, mas na maneira como me fazia sentir. Com ele, aquela sensação de estar sozinho diminuiu um pouco, abrindo espaço para que eu tivesse outros amigos também.
E foi por causa dele que tudo mudou. No dia da formatura do colegial, sugeriu que a gente, junto com dois outros caras da nossa turma, explorasse o subúrbio de São Francisco. Depois de algumas decisões questionáveis e subornos improvisados, acabamos em um clube noturno. Era um lugar pequeno, mal iluminado, e ninguém pareceu se importar com um grupo de adolescentes desajeitados vestindo smoking e cheirando a ponche de cereja se infiltrando. Eu estava seguindo o fluxo, já meio bêbado com a vodka que o cara de aparelho tinha roubado do estoque do pai, e nada preparado para o que vinha a seguir.
Estávamos sentados em uma mesa, esperando o show começar, quando as luzes diminuíram. Um holofote brilhou no palco. E lá estava ela. Gina.
Ela usava lingerie coberta de brilho e lantejoulas. Mesmo com anos de distância e maquiagem pesada cobrindo o rosto, eu a reconheci imediatamente. Foi como se o tempo congelasse, me levando de volta ao orfanato. Meus amigos estavam agitados, mas eu mal conseguia respirar.
Depois do show, nossos olhares se cruzaram. Ela me viu na multidão, e então tudo aconteceu rápido demais. Num instante, eu estava sentado, tentando processar; no outro, já estávamos juntos no bar, falando sem parar. Gina me contou tudo o que aconteceu desde que perdemos contato: como saiu do orfanato aos 17, os bicos que teve, as viagens por impulso, uma brevíssima fase nômade até, finalmente, acabar ali. Provavelmente, ela esperava que eu dissesse alguma coisa. “Nossa, mas stripper? O que você pensa que tá fazendo? Achei que estaria vendendo planos dentários ou abrindo uma sorveteria”. Mas não disse nada, porque nada daquilo me incomodava. Gina era alguns poucos anos mais velha do que eu e sempre foi esperta e decidida, sempre fez o que queria fazer. O fato de ela dançar seminua em um pole dance não mudava um terço da imagem que eu tinha dela. Pelo contrário, admirava o quanto ela era boa naquilo.
Isso também leva a outra parte da noite, onde ela me pagou drinks coloridos, me chamou pra dançar e acabei acordando em um quarto de hotel do outro lado da cidade 6 horas depois, pelado e arranhado. Com ela.
disse que aquele dia foi muito importante pra eu acabar com o burburinho de que eu fazia parte do espectro aroace.
Desde então, Gina e eu sempre mantivemos contato, mesmo que isso significasse trocar longos e-mails porque, de alguma forma inexplicável, ela sempre estava sem celular. Há cerca de um ano, ela se mudou para Nova Jersey, onde começou a trabalhar em um clube mais badalado e, agora, que não exigia suas habilidades de dança. Pelo jeito, a mudança tinha sido um upgrade: mais dinheiro, mais amigos e, claro, mais responsabilidade. Agora que estávamos mais próximos, conseguíamos nos ver com mais frequência. Às vezes, ela até me ajudava com... bem, assuntos envolvendo os mortos. Eu adorava isso — na verdade, valorizava cada segundo ao lado dela, porque com Gina eu podia ser eu mesmo, sem máscaras e sem pessoas prontas pra te colocar em uma camisa de força.
nunca conseguiu entender essa dinâmica. Para ser justo, poucas pessoas entenderiam só olhando de fora. Eu e Gina tínhamos uma conexão... peculiar. Havia um carinho mútuo, e sim, algumas dessas noites de bebedeira ou aquelas em que a vontade batia, eu acabava acordando com ela na minha cama, mas não era algo que eu via necessidade de rotular. Não era romântico, não era exclusivo, não era aquele tipo de coisa que você selaria com uma aliança. Era só... eu e Gina. Gastando tempo juntos. Vivendo o que só a gente podia viver.
Mas, pra — e provavelmente pra qualquer pessoa com um senso de normalidade mais convencional — ela parecia minha namorada. Ou, no mínimo, alguém por quem eu deveria estar apaixonado. O que, claro, só tornava as coisas mais complicadas, porque, honestamente, eu nem sabia direito o que significava se apaixonar.
Sentei no sofá e puxei o laptop da mesa de centro, planejando estourar Imagine do John Lennon e fingir que estava interessado em ler os artigos que o doutor Hughes tinha me passado, enquanto se jogava na poltrona. Abri primeiro meus e-mails, mas nada de Gina responder o último que mandei. Fazia só dois dias, então não era grande coisa, mas sabia que ela teria algo a dizer sobre o caso de Sandy. Ah, e provavelmente também me daria um sermão por ter ido a uma festa sem ela.
— E aí, o que vai fazer hoje? — perguntou, agora com as migalhas de pão caindo no peito.
— Vou voltar pra Dungeons. — respondi, sem desviar os olhos do laptop.
O silêncio que se seguiu foi tão expressivo quanto a cara de choque que eu podia imaginar no rosto dele.
O quê? — ele praticamente gritou. — Espera aí... Como assim? Você se divertiu tanto ontem assim e eu nem percebi?
— Não tinha como você perceber alguma coisa com duas línguas simultâneas entrando na sua boca.
— Eu sabia que aquele beijo triplo não tinha sido minha imaginação. Obrigado. — ele esticou o braço, e deu um suspiro de alívio. — Mas ainda não sei onde tá a lógica de você querer repetir uma noite que você encerrou cedo demais.
— Sei lá. Foi mais legal do que eu esperava. — dei de ombros, tentando soar indiferente.
— Legal tipo… muito legal? — ele insistiu, com as sobrancelhas quase se unindo na testa.
Suspirei.
— Tá bom. Foi bem legal assim. Se quiser, pode ir comigo de novo.
levantou tão rápido que parecia que alguém tinha enfiado um alfinete na bunda dele.
— Cara, eu não sei o que você anda tomando esses dias, mas a resposta é sim. Pra qualquer coisa que você sugerir! Se eu encontrar mais três gatas como aquelas, juro que meu nome vai parar no Guinness. “Maior recorde de pegação da CCU”. O que acha?
— Acho que o Guinness tem mais classe do que isso, Jung.
— Cala a boca! Vamos te vestir direito dessa vez, pra você arrasar mais que ontem. Sério, as pessoas vão até querer tirar fotos, e todas aquelas garotas…
, segura a onda. Se você se empolgar demais, elas vão sair correndo.
Ele deu de ombros, com um sorriso maroto.
— Tudo bem. Aí eu deixo você trazer todas elas de volta.

⫘⫘⫘


Eu estava ridículo.
Não era uma conclusão difícil de chegar, já que eu parecia uma versão carnavalesca de um leprechaun. sabia que eu odiava verde. Sabia que eu odiava mocassins. E, ainda assim, lá estava eu, parecendo um cartaz vivo de St. Patrick’s Day, pronto pra ser a estrela principal do desfile de Boston. Quis queimar tudo aquilo, ou talvez me queimar, considerando que jamais esqueceria da imagem de mim mesmo que vi no espelho.
Eu sei que era só por uma noite, e só por um trabalho extracurricular que eu fazia pelos mortos, mas aquele verde não ia rolar.
Acabei me virando com algo mais próximo de mim: camiseta branca, jaqueta de couro e jeans escuros com botas. Não era exatamente o que eu usaria em dias normais, mas pelo menos não era... verde. , por outro lado, parecia cada vez mais confiante — ou absolutamente alheio — com sua bomber estampada de animal print (um tigre, pra ser específico) que, honestamente, me fez desistir dele. Culpei o ménage pelo excesso de autoestima.
Quando chegamos à festa, percebi que havia ainda mais gente do que no dia anterior, entupindo cada ponto cardeal da casa. , com sua eficiência em viver com o nariz no celular, comentou que a divulgação das fotos de ontem no Instagram tinha feito a maior parte do serviço em atrair toda aquela gente. Disputando espaço e oxigênio em menos de 30m², havia pessoas de cidades vizinhas, atletas de universidades locais e até de nossos famosos rivais de Princeton, fazendo com que eu precisasse lidar com um mar de ombros, cotovelos e hálitos duvidosos para conseguir atravessar o salão principal.
Antes de se perder na multidão, virou-se para mim.
— Vou pegar bebidas. Fica aqui. E se te oferecerem um cigarro vermelho, foge.
Assenti, sabendo que era exatamente o que eu não faria. Assim que ele desapareceu na massa humana, nem hesitei em ir para o outro lado, direto para onde eu me lembrava ter visto as escadas. me perdoaria depois. Subi os degraus largos em semi-espiral, desviando de um montão de cenas de beijos diferentes e pessoas que já tinham perdido a batalha contra o álcool.
Marchei pelo corredor inteiro até a última porta. Ash estaria lá. Se tudo corresse bem, resolveríamos aquilo hoje, e Sandy — e tudo o que ela representava — seria coisa do passado. O que, diga-se de passagem, era uma das únicas vantagens de lidar com mortos: eles despejavam seus problemas de uma vez só e depois desapareciam, nos largando aqui com as consequências de seus escândalos.
À medida que eu caminhava, tive de novo aquela impressão de estar sendo observado. mencionara algo sobre meu nome estar circulando no Twitter depois da festa anterior, criando certo burburinho. Ótimo. Mais uma camada de desconforto. Não era o tipo de atenção que eu precisava hoje enquanto estava prestes a ter uma conversa um pouco difícil com um cara que trabalhava com tráfico de tarja preta.
Quando cheguei ao quarto, a porta estava fechada e, curiosamente, vazia de espectadores ao redor dela, como acontecia nos quartos vizinhos. Dei dois passos para o lado, me preparando para esperar, quando ela se abriu de repente. Antes que pudesse reagir, uma mão me puxou para dentro com uma rapidez instantânea. A porta se fechou atrás de mim com um clique perturbador.
A atmosfera do cômodo era medonha. A luz fraca limitava minha visão, mas o ponto mais claro estava à direita: uma grande mesa de madeira escura e polida. Atrás dela, um homem com os pés apoiados, como se estivesse em uma pausa casual no meio de uma reunião de negócios ilegais. Ao redor, mais duas figuras quase invisíveis. Por um breve segundo, me senti em uma cena deletada de O Poderoso Chefão.
Então ele se levantou, com uma calma ensaiada, e caminhou na minha direção. Sobretudo preto, jeans escuros e coturnos tão surrados que dava pra perceber mesmo a meia-luz. A fumaça de um cigarro abandonado na mesa pairava no ar, dando o toque final no cenário clichê de mafiosos.
? — ele perguntou, com um sorriso quebrado que não prometia coisa boa.
Estendeu a mão.
— Sou o Ash.
Apertei a mão dele, tentando não parecer tão desconfortável quanto me sentia.
— Relaxa, não precisa ficar tímido. Todo mundo aqui é amigo. — disse, despreocupado, mas não serviu pra me passar um pingo de confiança. — Trouxe a grana?
Assenti com a cabeça e puxei os 100 dólares do bolso. Cada nota parecia pesar mais que deveria. Se eu visse Ash no campus pilotando uma Harley ou dirigindo um Audi, não me surpreenderia nem um pouco. O cara cobrava bem caro pelo serviço.
Ele contou nota por nota devagar, meteu o dinheiro no bolso e fez um gesto discreto com a cabeça para um dos caras encostados na porta. O sujeito sumiu por uns segundos antes de voltar com uma maleta preta, colocando-a em cima da mesa com um baque seco.
— Certo. — Ash voltou para trás da mesa, com a maleta entre nós. — Vamos ao que interessa. Do que você precisa? Relaxar? Curtir? Apagar? A gente tem de tudo. Só falar.
Eu já tinha ensaiado essa conversa na minha cabeça umas mil vezes, mas agora, cara a cara, minha garganta parecia feita de areia. E as pessoas extras na sala só complicavam tudo — não que eu tivesse medo de briga, mas sair no tapa com dois brutamontes enquanto tentava lidar com Ash não era exatamente um plano brilhante. Já não era muito brilhante agora. E queria acreditar que eu estaria preparado caso as coisas chegassem àquele ponto, mas na verdade não estava — eu nunca estava.
— Tá tudo bem aí? — a voz de Ash era casual, mas seus olhos analisavam cada pedaço do meu rosto, procurando algo.
"Que se foda", pensei. Eu estava ali, já tinha entregado o dinheiro. Tinha que ir até o final, mesmo se fosse um final onde eu teria que relembrar os golpes básicos de defesa pessoal que eu usava contra os mortos.
— Quero a mesma coisa que você deu à Sandy Silo.
Não sei como minha voz saiu tão firme e clara.
O rosto de Ash congelou por um segundo antes de ele mascarar o choque com um risinho nervoso. Do meu lado, os dois grandalhões na porta começaram a se mexer, claramente interessados na conversa.
— O quê? — ele riu de novo, mais forçado dessa vez. — O que você acabou de falar?
— As pílulas que você deu pra Sandy. A garota suicida da semana passada. Quero o mesmo que ela ganhou. Pelo visto, dá o maior barato.
Ash apoiou as duas palmas abertas em cima da superfície amadeirada da mesa, forçando a expressão a permanecer do jeito que eu tinha encontrado no início: fria, autoritária.
— Eu não faço ideia do que você está falando, amigo. Vendo coisas pra várias pessoas todos os dias, então se você não quer nada e veio até aqui pra ficar de papo furado, melhor sair logo.
— Então a gente precisa ter algum tipo de relacionamento amoroso pra eu conseguir o produto também? — dei de ombros. — Isso é uma pena, porque não vai rolar. Se existir outra maneira, talvez-
Ash estava na minha frente antes mesmo de eu terminar de falar, sua mão segurando a gola da minha camiseta com tanta força que senti o tecido ameaçar rasgar.
— Como você sabe disso? — ele sussurrou, a tensão escorrendo por cada palavra. Um leve pânico foi muito perceptível naquele rosto de pedra. — Quem é você?
— Você não precisa mesmo saber.
— O que você quer?
— Quero saber se você a matou.
— Sandy? Eu jamais faria isso. — ele estava se esforçando para parecer ofendido, mas o suor na sua testa contava outra história.
— Faria, sim. — estreitei os olhos. — Ela morreu depois de tomar suas balinhas "inofensivas".
— Que porra?! — ele me soltou em um impulso tão forte que me fez segurar nos calcanhares pra não cair. Seus ombros não paravam de tremer. — Tá sabendo disso como? Ela saía com você também? Eu devia saber que ela não era tão monogâmica quanto dizia.
— Esse é o menor dos seus problemas, cara. Você sabia o que estava dando pra ela? Sabia que ela morreria por isso?
— Mas é claro que não! — ele passou as mãos na cabeça e andava de um lado pro outro. — Eu dei Lorazepam pra ela, mas foi só isso! Nem disse pra ela tomar tantos assim. Eu também fiquei surpreso quando soube, porque não tinha nada naquela porra além do que a bula já diz. Eu nunca imaginei que ela faria uma coisa dessas.
— E ela não fez. Ela tomou exatamente os três comprimidos que você disse, e acordou morta. Não é possível que você não tá vendo nada de errado nisso. Vai lá, cara, confessa.
— Opa, o que está havendo aqui? — uma nova voz interrompeu, profunda e grave, vindo da porta.
Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Aquela voz, carregada de irritação, vinha dele: ; o cara bêbado que eu tinha expulsado da frente do meu carro ontem à noite. Hoje, pelo menos, ele parecia sóbrio. Quer dizer, tão sóbrio quanto alguém com a cara dele pode parecer.
Minha cabeça virou automaticamente em direção ao som, e só então me dei conta de como minha última frase havia saído alta demais. Não era só ; estava logo atrás dele, parecendo tão surpresa quanto eu.
Ah, ótimo. Era exatamente disso que a situação precisava agora: plateia.
cruzou o cômodo em passos largos, parando bem na minha frente. Seus olhos alternaram entre mim e Ash.
— Alguém pode me explicar que porra tá acontecendo? — a pergunta era mais direcionada a Ash do que a mim. — Posso saber o que esse bosta tá fazendo aqui?
Ah, então ele se lembrava de mim.
— Como… Como você sabia? — Ash ignorou completamente o surto de , seus olhos ainda fixos em mim, a voz carregada de incredulidade. — Como sabia que eu disse três comprimidos?
Engoli em seco. Tinha me preparado para confrontar Ash, mas nada na minha mente calculou esse cenário ridículo com personagens extras e luz de fundo dramática. Como eu explicaria aquilo? Na frente de toda essa gente?
Mas eu também não conseguia ir embora, então a situação estava pior do que eu pensava. Janelas? Eu não conseguia enxergar direito naquela escuridão. A porta estava fora de cogitação, pelos dois caras parados que não iriam relaxar enquanto não me socassem até a morte. Armas? Nada que pudesse neutralizar quatro pessoas de uma vez. De repente, desejei mais do que tudo que , em seu momento pleno de embriaguez, abrisse mais uma porta errada na vida e me desse uma brecha.
cutucou Ash para que ele "acordasse" do transe de olhar pra mim e levantou as sobrancelhas. Ash balançou a cabeça e, de repente, a mesma expressão de bad boy que tinha assim que entrei retornou.
— Esse cara veio aqui me perguntar se eu matei a Sandy. — Ash finalmente murmurou, o rosto endurecendo novamente.
— O quê? — riu, mas foi aquele tipo de riso que não combina com diversão. Era mais cínico, afiado. Ele se virou para mim. — Você é maluco? O que te faz pensar uma coisa dessas?
— Ele sabe que eu saía com ela. — Ash quase sussurrou e revirou os olhos.
— E daí que ele sabe disso? Foi um lance passageiro, não foi? Você nem estava mais com ela quando ela decidiu fazer merda. Não tem que deixar esses cretinos entrarem aqui e perguntarem isso. — deu mais uma risada e Ash permaneceu mortalmente sério. Depois de um segundo, o rosto de também mudou. — Você não estava mais com ela, não é? A gente conversou sobre isso, eu te disse pra largar aquela infeliz.
— Ele não fez nada disso. — falei pela primeira vez, chamando a atenção de todos. — E não só isso, mas enfiou Lorazepam nela, que provavelmente foi a causa da morte, mas ela nunca quis se matar. Na verdade, ela nem sabia o que estava tomando. Ela só confiou nele. — joguei os braços para apontar para Ash. Pelo canto do olho, vi atrás de , na escuridão, o rosto pálido de choque. parecia mais com raiva.
— Que porra é essa? — ele resmungou para si mesmo. — Então, aquela meretriz também tava dando pra esse aí? — com um riso maldoso, ele se aproximou de mim, colocando uma mão nos meus ombros. — Qual é, cara? Vai pra casa. Tem coisas muito mais interessantes nessa festa do que bancar o Sherlock por uma garota morta. Você tá estragando todo o clima do lugar.
A voz dele era suave e calma, mas por que ao ouvi-la eu sentia uma força sombria prestes a me engolir?
— Ei, não acredita em tudo que aquela garota te disse. Não vê que ela estava te enganando?
— Quero que ele confesse. — falei firme, olhando em seus olhos. A expressão de tornou-se séria de novo.
— Vai pra casa, tô te avisando.
— Eu já disse que não a matei. — Ash disse, o desespero novamente salpicando seus olhos. — Eu menti, . Não terminei com ela. Eu... sei lá, não lembrei disso.
— Cala sua boca! — rangeu os dentes ao falar com o amigo, seu olhar generosamente assustador. — Olha o que a sua estupidez tá causando. Quer foder com tudo mentindo pra mim assim?
— Com tudo? O que você tem a ver com isso? É mais um integrante da trupe do mal desse cara que não fez questão de falar com a polícia? — perguntei, e só depois de meio segundo percebi o que fiz.
Na verdade, também pareceu perceber o que tinha feito. Mas não tive tempo de questioná-lo por mais tempo porque, sem mais nem menos, o cara resolveu me socar. Mas não um simples soco. Foi um baita soco de alguém que parecia ter alumínio entre os dedos. Foi tão forte na minha boca que me fez perder o equilíbrio e ser lançado para trás, batendo o canto da testa em um tipo de quina e desabando no chão logo em seguida.
A primeira reação do meu cérebro foi ficar embaralhado com o baque e minha visão ficar turva, então eu sabia que alguém tinha gritado alguma coisa assim que caí, mas era como se eu estivesse embaixo d'água. E antes que eu pudesse me recuperar, senti a gola da minha camiseta sendo puxada e mais um soco. Depois outro. E mais outro. Ele nem me dava tempo de sentir dor.
Se há algo que os socos fizeram por mim — além de me garantir uma dor do caralho —, foi me ajudar a clarear os ouvidos e a mente. A confusão deu lugar a um entendimento maior do que estava acontecendo. Aquela voz aguda, entrecortada por gritos era de , sem dúvidas. Mas, antes que eu pudesse processar direito, um impacto forte atingiu minha barriga. O ar me fugiu dos pulmões. Todo o universo inchou e sangrou diante dos meus olhos.
Os socos sozinhos não estavam mais sendo suficientes para aquele boçal.
Foi quando percebi que estava mesmo levando uma surra. O sangue escorrendo da minha testa nublava minha visão, pingando no chão. Ainda assim, ouvi as risadas de . Elas pareciam... distantes, o que não fazia sentido para alguém que deveria estar me acertando. Então lembrei: as outras pessoas do recinto. Dois caras guardavam a porta, ambos estudantes e não muito brutamontes, mas, na desvantagem de dois contra um, fugir era uma estratégia risível.
A voz de seguia ao fundo, mas as palavras eram indistintas, como se estivessem no fundo de um abismo. Não era comigo que ela falava. Não podia ser. Talvez, se parassem de me espancar por um segundo, eu conseguisse ouvir melhor. Mas, entre tentar me defender e me agarrar à consciência que insistia em escapar, ouvir era um luxo que não podia me dar.
Então, como por um milagre, eles pararam.
A dor inundava cada parte do meu corpo. Parecia que eu nunca mais seria capaz de levantar a cabeça de novo, mas fiz mesmo assim. Forcei os olhos, como se fingir que minha visão estava intacta fosse disfarçar meu estado deplorável. estava sorrindo, o tipo de sorriso que não alcança os olhos e faz você se perguntar como a humanidade chegou até aqui. Ele segurava pelo braço. Ela gritava meu nome, desesperada, e lutava para se soltar. Depois de algumas tentativas frenéticas, conseguiu.
Ela correu até mim, abaixando-se e me forçando a olhá-la nos olhos.
— Ei, ei, olha pra mim. Você está bem? — ela me balançou, apesar de não ser o certo a se fazer, mas reconheci o seu desespero: ela também não queria que eu apagasse. — Por favor, aguenta firme. Diz alguma coisa. Qualquer coisa!
, o que você pensa que tá fazendo? — ouvi a voz de . — Vem pra cá agora mesmo.
— Já chega! — gritou, virando-se para ele. A coragem na voz dela estava tingida de medo, trêmula, mas estava lá. — Para com essa loucura! Você tem noção de quem ele é? Se ele mostra a cara desse jeito no campus, pode rolar até uma investigação e então a casa vai cair pra vocês! Uma coisa vai ligar à outra, será que vocês não entendem isso? Ele é , caramba!
Sei que quis me dar uma mãozinha, mas aquele silêncio pesado e sufocante que tomou o ambiente depois da menção do meu nome não era exatamente uma ajuda. Muito pelo contrário. Revelar minha identidade não era me fazer um favor.
— Quê? — murmurou Ash. — O que um cara desse tá fazendo aqui? — então, o silêncio foi quebrado por sons bruscos: uma mochila sendo fechada, passos apressados.
— Você está saindo? — soou indignado.
— Claro que estou! Se seu pai descobrir essa merda, vai ser muita sorte se eu só perder a bolsa de estudos. — Ash disparou, já na saída.
— Meu pai é um idiota, vai encobrir tudo. Ninguém vai sair prejudicado.
— Só se for pra você, Park. Ele continua sendo o reitor, e não vai deixar barato pra nenhum de nós. Vamos nessa. — Ash lançou, antes de sumir, acompanhado pelos outros dois.
Apenas permaneceu, tremendo tanto que quase podia ouvir os dentes batendo. Uma luz forte me indicou que ela estava tentando discar algo no telefone, mas minhas costas contra o chão dificultavam o ângulo. Então, passos. Sombrios, ameaçadores. voltou.
— Vamos embora, . Agora. Larga esse idiota. — ele a puxou pelo braço novamente.
— Não. — ela sussurrou, a voz trêmula voltando a aparecer.
— Não vou repetir.
— Não! — se desvencilhou com força, surpreendendo-o. — Se eu o deixar aqui, só vão encontrá-lo amanhã. E você sabe disso. Ele precisa de um hospital urgente.
Por um instante, o quarto ficou em silêncio. se aproximou, colocou uma mão nas bochechas dela, forçando-a a olhá-lo. Sua voz saiu baixa, perigosa:
— Você vai se arrepender disso, .
Algo no tom dele me fez querer me mexer. Com dificuldade, muito mais raiva do que força, empurrei meu corpo para cima, tentando me colocar de pé. Mas ele já tinha saído, as palavras ainda pairando no ar como ameaça.
, ofegante, pegou o telefone de novo. Desta vez, juntei o que restava de energia para segurar sua mão antes que ela completasse a ligação.
— Nada... de hospital. — consegui balbuciar, cada palavra um esforço, muito mais dor do que eu pensava envolvida. Eu tinha 95% de certeza que meu nariz estava quebrado.
Ela piscou, atônita.
— Nada de hospital? Olha pra você! Você enlouqueceu? Você está sangrando e... Ei! Você não pode se levantar!
— Eu preciso ir. — fiz um esforço sobre-humano para conseguir segurar na mesma quina onde havia batido, que percebi agora que se tratava de uma pequena mesinha de cabeceira. A dor no abdômen foi tão aguda que me arrancou um gemido, me puxando de volta para o chão. Algo quente e metálico encheu minha boca antes que eu pudesse evitar; o sangue jorrou, confirmando o que eu já temia. Ótimo. Além dos socos, eles provavelmente me deram de presente uma contusão pulmonar de leve. Ou não tão leve assim.
! — gritou novamente, e pelo menos agora sua tremedeira era pelo medo de que eu morresse a qualquer momento e ela fosse a única testemunha. — Por favor, aguenta, não apaga! Que se dane o que você diz, você vai pra um hospital agora mesmo.
— Não... por favor. — minha mão encontrou os pulsos dela antes que ela alcançasse o celular. Não sei como consegui. — Você não entende... eu não posso.
Os olhos dela estavam brilhando, quase transbordando lágrimas. E, honestamente, eu a entendia. Estava sendo um completo idiota por fazer isso com ela, mas a última coisa que imaginei era estar numa situação dessas com , uma garota que não me conhecia e que não sabia o quanto hospitais eram o lugar errado para eu pisar agora. Pelo menos como paciente.
O problema é que ela tinha um ponto: eu sozinho não conseguiria nem chegar na porta. Mas envolver mais alguém não era uma opção.
— O que você quer dizer com "não pode"? Por que não pode? — a voz dela quebrou, e a garota sacudiu meus ombros com mais força do que eu achava possível para alguém tão pequena. — Ei, acorda! Você não pode dormir, entendeu? Onde tá aquele seu amigo? Como é o nome dele? Posso chamar ele… Fala comigo!
Mas a escuridão já tinha decidido que era minha hora. A cada segundo, o peso nos meus pulmões aumentava, como se alguém tivesse decidido estacionar um caminhão lá dentro. A dor irradiava por todo meu corpo, e o som da voz de parecia vir de muito, muito longe.
Nos meus últimos instantes de consciência, o mundo ficou enevoado, quente e vermelho. Só lembro de murmurar algo que soou como "Irving" antes de tudo desaparecer.


Nunca subestime o poder da dor de se levantar rápido demais depois de ter sido atingido em quase todas as partes do corpo. É quase como ter o cérebro rachado de ponta a ponta e depois fechado de novo. Mas, quando abri os olhos e percebi que não estava na minha casa, a lógica foi embora junto com o bom senso. Tentei me sentar.
Erro. Grande erro.
A dor foi como uma onda de choque, me forçando a cair de volta. Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo, e percebi o ambiente ao meu redor. Escuro. Alguns feixes fracos de luz entrando pelas persianas. Frio, graças ao ar-condicionado (como se lá fora já não estivesse frio o suficiente). E eu, sem camisa, deitado em uma maca no canto da sala com uma faixa enrolada no abdômen. Legal. Minha noite claramente tinha dado uma guinada inesquecível.
Havia três outros leitos espalhados, atrás de cortinas azuis puxadas para o lado, e uma mesa de madeira com uma poltrona preta na frente perto de um deles. A memória da noite anterior voltou como um tapa: a confusão, o caos, me arrastando para longe daquela caverna de feiticeiro. Ela tinha mesmo me trazido para o centro médico de Irving, como eu e minha voz gorgolejada tinham dito.
Com um grunhido, me forcei a sentar novamente. A dor foi tão violenta que minha visão quase ficou preta. Mas não podia ficar ali para sempre — ainda mais que não fazia ideia de como tinha entrado. Depois de uma batalha épica contra o meu próprio corpo, consegui ficar de pé. Cada movimento parecia demorar 1 hora para ser feito, mas pelo menos consegui me autoavaliar: a respiração estava mais fácil, nenhuma costela quebrada. Provavelmente um monte de contusões. Mas definitivamente, nenhum plano de ir ver um médico tão cedo.
No canto da sala, avistei uma pia com um espelho. O que vi no reflexo me fez gemer. Meu rosto parecia… o irmão gêmeo do gigante Sloth. O nariz estava inchado como uma bola de tênis, a ponte levemente curvada para o lado. Sem dúvidas, quebrado. Um curativo torto na testa, hematomas vermelhos espalhados como se eu fosse um quadro abstrato. As marcas roxas abaixo dos olhos já estavam chegando com força total. Ótimo. Perfeito. Se não fosse por esse detalhe, talvez eu conseguisse disfarçar as demais fraturas. Infelizmente, aquilo teria de ser resolvido da única forma rápida e não recomendada que eu conhecia.
Respirei fundo. Hora do show.
Com um estalo assustador — e um grito que certamente acordaria qualquer um num raio de dois quilômetros — coloquei o osso de volta no lugar. Era tão horrível quanto parecia. Na verdade, era muito mais horrível do que isso.
— Meu Deus, o que tá fazendo de pé? — a voz de entrou na sala, e nunca fiquei tão feliz em ouvi-la.
Ela correu até mim e segurou meu braço, me guiando de volta para a maca. Não existia nenhuma possibilidade de eu resistir a isso — minhas pernas já estavam prestes a desistir de mim.
— Gelo. — murmurei, ainda pressionando o nariz recém-reconfigurado com as mãos.
Ela olhou para mim como se eu fosse o maior idiota do mundo, e provavelmente não estava errada. Mas não disse nada. Em vez disso, saiu da sala quase correndo e voltou poucos minutos depois com uma compressa improvisada feita de gaze.
Chiei um agradecimento enquanto pressionava aquela coisa no meu rosto. tirou o casaco que usava e se sentou ao lado das minhas pernas no leito.
Pela primeira vez, prestei atenção nela. Ela estava exausta, o vestido manchado de sangue — meu sangue, aliás. As sobrancelhas loiras estavam paradas em uma expressão contínua de irritação, e o cabelo tinha sido penteado com os dedos em algum dos banheiros desse prédio, com certeza.
Meu olhar seguiu para o casaco que ela tinha jogado no colchão. Meu casaco.
Ela percebeu.
— Ah… Foi mal, peguei emprestado pra ir à cafeteria. Espero que não se importe.
— Não me importo. Mas… você tá bem? — apontei para os braços dela, onde marcas vermelhas eram visíveis perto dos cotovelos.
Ela olhou e deu de ombros.
— Isso? Não é nada. Eu estou bem. Deveria se preocupar com você mesmo. Tem ideia do quanto me assustou?
— O que aconteceu? — tirei a compressa. — Como eu cheguei aqui?
— Você estava determinado a não ir pra um hospital e mencionou essa enfermaria antes de apagar. Tive que te arrastar até o carro. E quando eu digo arrastar, foi literalmente isso. Ainda bem que todo mundo estava bêbado demais pra reparar, porque foi vergonhoso.
— Você dirigiu?
— De jeito nenhum. Chamei um Uber. O motorista não era de fazer perguntas. Mas trouxe sua chave comigo. — ela apontou para a bolsa vermelha apoiada em uma cadeira.
Fiquei olhando para ela, confuso, e talvez, um pensamento nada urgente ou nada útil tenha se passado pela minha cabeça na hora: por que largou meu carro pra trás? Justo em um lugar cheio de pessoas com grande potencial ao vandalismo?
Meu Deus, eu ainda não estava recuperado.
— Eu já entendi esse seu olhar. — ela balançou a cabeça e soltou uma risadinha sem graça. — Antes que você pergunte, eu não dirijo.
— O quê? — não acreditei que ela tinha mesmo captado aquilo. — Mas… Naquela noite, com o boçal, você parecia bem confortável em dar uma de Ayrton Senna.
— Não disse que não sei dirigir. — ela deu de ombros, um pouco teatral demais. — Só não dirijo.
A explicação parecia absurda, mas, sinceramente, meu cérebro estava cansado demais para discutir a lógica falha.
— Pode relaxar, eu avisei uma amiga que estava na festa pra ficar de olho no seu carro algumas vezes. Claro, isso gerou algumas perguntas que eu não soube responder, mas, sinceramente, esse é o menor dos problemas.
— Você não precisava ter feito isso.
— Eu sei. Mas já que eu me propus a ajudar, não ia desistir por causa de... sei lá, falta de mobilidade.
— Não, eu quis dizer isso. — apontei para mim mesmo. — Você não precisava ter se envolvido nisso, entendeu? Essa era uma situação minha, algo que eu precisava resolver sozinho.
Ela inclinou a cabeça, avaliando minhas palavras.
— Hum. Entendi. — sua voz era séria agora, mas havia algo curioso no jeito que ela estreitou os olhos. — Bom, acho que é tarde demais pra isso, né? Na verdade, já era tarde demais a partir do momento em que eu te vi naquele quarto. Sabe, as pessoas que vão lá têm um certo objetivo, e eu não pensei que fosse desse grupo de pessoas.
Eu quase ri, mas o cansaço venceu.
— Tá falando do gabinete do traficante de dipirona? Relaxa, não é o que você tá pensando. Não tenho interesse em me envolver nisso.
— Difícil de acreditar. Quem marca um encontro com o Ash geralmente não tá só “olhando”.
— É, eu imaginei. — dei de ombros, encerrando a conversa ali. Ou pelo menos era o que eu esperava. — Mas isso é um problema meu, você não entenderia. Assim como nunca vou entender o que você fazia lá.
desviou os olhos, mas logo os voltou para mim de novo.
— Tá bom, não vou perguntar sobre isso. Mas... Eu ouvi umas coisas lá. Sobre a Sandy. Não sabia que você tinha um lance com ela, ela parecia bem apaixonada pelo Ash.
Eu pisquei, confuso.
— Um o quê? Não, pera... Não. Nada disso. Nunca tive nada com a Sandy. Na verdade, eu nem a conhe-
Droga.
Parei com a boca aberta. Idiota!
— Espera aí, o quê? Você ia dizer que nem a conhecia?
— Não é isso. — minha voz saiu defensiva, apressada. — Só não éramos tão próximos quanto seu namorado pensou.
Ela estreitou os olhos.
— Você sabia coisas demais pra quem não era tão próximo dela.
— Eu também sei coisas demais sobre saxofones, e não quer dizer que eu já tenha chegado perto de um.
— Ela encontrou com você naquela noite? Te contou sobre algum problema que estava passando? Vocês eram amigos de biblioteca ou coisa assim?
Um vinco se abriu na minha testa. Meu nariz doeu com isso.
— Você é da polícia? Tá querendo me interrogar, ? Amanhã eu vou acordar e descobrir que você vendeu essa história pro jornal?
— A gente só tá conversando, . Nem tudo precisa ser tão preto no branco. Você me deixou curiosa, só isso. — ela respondeu, mas engoliu em seco. De uma coisa eu podia estar certo: aquela garota não estava ali por ninguém além de si mesma. Provavelmente, devia ser uma dessas meninas metidas à Nancy Drew, sedentas por um mistério alheio, com um quarto separado em casa onde guardava mapas e equipamentos de observação montados em um tripé. Esse tipo de gente que eu não podia me envolver. — Eu tô acompanhando o caso da Sandy desde o início e até agora não surgiu nenhuma nova informação. E daí você aparece dizendo aquelas coisas…
Porque aparentemente, eu sou um imbecil.
— Pois é, mas eu não posso te ajudar com isso. — me levantei, ignorando a pontada de dor que subiu pela lateral do meu corpo, e comecei a procurar as minhas roupas.
— Você já vai? E os seus machucados? — soou exasperada, como se eu fosse um adolescente rebelde saindo pela janela no meio da noite. — Eu te trouxe aqui porque eu não ia discutir com um cara inconsciente, mas você precisa de um hospital urgente.
— Eu me viro. Obrigado. Agora, preciso chamar um Uber pra buscar meu carro. — comecei a procurar meu celular. Não estava achando a camiseta de jeito nenhum, nem os sapatos.
— Calma aí. — deu um passo à frente e colocou a mão no meu peito, me forçando a parar. — Olha, eu realmente não quero me meter nos seus problemas malucos mais do que já me meti porque já notei o quanto você é um Billy the Kid disfarçado, mas você não pode mesmo sair desse jeito.
— Você saiu desse jeito. — gesticula com o queixo para o vestido dela, ainda com manchas de sangue.
— É por isso que seu casaco ajudou. Mas a questão aqui é que já amanheceu, e se alguém nos ver e começar a tentar adivinhar o que aconteceu, a gente tá ferrado. Então, que tal você sentar por mais uns minutinhos nessa bendita cama e me esperar trazer umas roupas emprestadas clandestinamente do achados e perdidos? Aproveita e toma o seu café. Não andei até o Taszo’s e implorei por desconto de 1 dólar à toa.
Ela nem me deu tempo de protestar antes de desaparecer pela porta, deixando um rastro de perfume adocicado no ar. Por um lado, estava certa: ninguém poderia descobrir o que aconteceu ontem — e digo ninguém, mesmo. Por causa da briga e de tudo que resultou dela. impunha isso como ameaça velada só pelo olhar apreensivo e amedrontado: "Mantenha a boca fechada, ou o animal que chamo de namorado pode acabar com você — e talvez comigo também, caso eu esteja por perto e sinta pena da sua estupidez de novo."
Eu não tinha a menor intenção de abrir a boca. Meus problemas agora eram outros, muito maiores. Como resolver as novas complicações que surgiram da falha monumental em resolver as antigas. Uma grande merda que eu pensaria melhor depois de terminar aquele café.
Alguns minutos depois, estava de volta. Desta vez, trajava uma camisa listrada de meia manga e um macacão branco, como se estivesse pronta para ir tomar café num daqueles bistrôs parisienses dos filmes Before Sunrise. Sem cerimônia, jogou um jeans e uma camiseta limpa na minha direção, junto com um moletom.
— Toma. Veste isso. — ela não esperou uma resposta. Apenas começou a recolher as roupas manchadas do chão e enfiá-las em uma sacola de pano que dizia "Enfermaria da Irving" em letras desbotadas.
— Vou lá fora apagar mais alguns rastros da nossa presença aqui enquanto você se troca. — disse, agora recolhendo itens aleatórios de cima da mesinha ao lado da maca, que, só agora percebi, estava um caos.
— Você que fez o curativo? — perguntei, raspando uma mão no peito.
— Fiz. Nada ao nível Grey’s Anatomy, mas o Google era o único professor que eu tinha, então espero que não se importe. Pra ser honesta, achei que você fosse sangrar até morrer, então andei rápido. Não tava afim de carregar esse trauma.
— É, nem eu.
Assim que saiu, troquei de roupa. O jeans era simples, e a camiseta preta, boa e confortável o suficiente para não parecer que estava prestes a ir para o lixo. Coloquei as roupas sujas na sacola que ela havia separado, amassei o copo de papel da cafeteria e o joguei na pequena lixeira, e saí da sala. estava encostada na parede, com os olhos perdidos no teto, balançando a perna direita sem parar.
Assim que me viu, remexeu na bolsa e me entregou minha carteira, chaves e meu celular.
— Tive que desligar isso. Um tal de não parava de ligar. Acho melhor você acalmá-lo antes que ele tenha um ataque.
— Mais tarde eu ligo. Valeu.
— Beleza. Olha, só porque é domingo não significa que o campus está deserto. O movimento é baixo, mas existe. Então vamos sair separados e bem na surdina. Já foi complicado o suficiente arranjar um jeito de meter a gente aqui de madrugada. Não quero criar mais burocracia pra sair.
— Tudo bem.
Ela fez um gesto com a cabeça, pronta para ir embora. Mas eu a chamei antes.
, espera.
Ela se virou com uma expressão que dizia “o que foi agora?”.
— Obrigado. Como eu disse, você não precisava ter feito tudo isso. E... espero que isso fique só entre nós.
Ela soltou uma risada curta, carregada de ironia.
— Pode ficar tranquilo. Ninguém vai saber que eu carreguei em um Uber até a enfermaria da Irving. Mas, convenhamos, daria uma ótima matéria pro CJ.
Meu olhar deve ter sido suficientemente assassino, porque ela levantou as mãos em rendição.
— Tô brincando! Acredite, eu não quero ser associada a isso em momento nenhum.
— Ótimo. Ficamos entendidos.
— Ficamos. — ela deu um passo para ir embora, mas parou de novo, girando nos calcanhares como se tivesse lembrado de algo. — Mas sabe, , você é mais estranho do que eu pensei. E tudo bem ser estranho, contanto que você não derrube todo mundo no caminho como sempre. Mas uma coisa que eu não consigo sossegar foi o jeito que você falou da Katherine, e acredite, eu não tô interessada em te chamar pra uma entrevista e nem nada disso. Mas eu sei que você sabe de alguma coisa. E essa matéria é muito importante pra mim, não que isso seja do seu interesse. Também sempre achei essa história muito suspeita e mal contada, e pra casos assim eles geralmente arquivam na pasta do suicídio, mas tem mais coisa nisso aí, eu sei que tem. E eu tô afim de descobrir. E você foi um dos responsáveis por me motivar a voltar a mexer nisso, então na verdade eu que tenho que te agradecer.
— Espera aí, eu não queria...
— Adeus, senhor . — ela acenou, dando um tchauzinho, e saiu apressada.
— Você não vai achar nada! — gritei.
Mas duvido que ela tenha escutado.

⫘⫘⫘


Estacionei o Jeep em frente ao prédio e soltei um suspiro pesado, o tipo que faz os ombros caírem de cansaço. Não encontrar plantado na porta da minha casa já foi um alívio imediato. Isso me dava um pouco mais de tempo — tempo para pensar em uma desculpa convincente sobre o meu estado. Na verdade, quanto mais tempo eu o evitasse, melhor.
Entrei direto no apartamento, correndo para um destino certo: o banheiro. Em questão de segundos, já estava enchendo a banheira com gelo. Esse era o meu protocolo de emergência: machucado? Gelo. Dúvidas existenciais? Gelo. Vida desmoronando? Gelo.
Quando finalmente me joguei na banheira, uma dor familiar me abraçou. Não que eu estivesse reclamando. Já tinha passado por isso tantas vezes que ela não me incomodava mais. Mas, dessa vez, algo parecia... diferente. Não nos machucados em si — aqueles caras podiam ter me transformado em carne moída, sim, mas os mortos teriam feito muito pior. Era outra coisa. Uma sensação estranha. Uma parte de mim sabia que devia prestar atenção, mas a outra estava ocupada congelando as ideias.
A dor do gelo ajudava a reorganizar os pensamentos, e eu precisava disso. estava martelando na minha cabeça de um jeito enjoado e repetitivo. Tinha certeza que ela acabaria deixando a história de Sandy para lá, mas ao mesmo tempo, ficava preocupado de tudo não ser apenas fogo de palha. Honestamente, esperava muito que fosse. Não porque me importava com vê-la dando com a cara na parede, mas porque, em algum momento, sua curiosidade viria para cima de mim, o que significava que chegaria perto de uma verdade assustadora para ela, e isso, é claro, seria um problemão.
Ainda assim, tinha algo que ela disse que eu não conseguia ignorar: a história estava mal contada.
Mal contada é um eufemismo, aliás. Sandy não se suicidou. Eu sabia disso porque ela mesma me contou, mas, caso eu fosse uma pessoa normal e ficasse sabendo por outro veículo, pensaria a mesma coisa. E , se tivesse coragem suficiente para seguir adiante naquilo, precisaria enfrentar perguntas que provavelmente nem queria as respostas. Os amigos do namorado, por exemplo. Ash, e o resto do grupo. A sujeira deles era visível até de longe. Mas , estando naquele quarto, ligada a Ash... a garota não estava tão por fora quanto gostava de fingir. Era o suficiente para eu concluir que ela tinha falado aquilo no calor do momento. Ou pelo menos era isso que eu precisava acreditar para conseguir dormir.
Saí da banheira quando comecei a sentir que os meus dedos estavam muito perto de cair. Refiz novos curativos — os de não estavam ruins, mas estavam longe de ser ideias. O gelo reduziu os inchaços, o que foi um ponto positivo. Meu nariz, porém, continuava uma obra-prima do Salvador Dalí, mas histórias para narizes quebrados existem aos montes. Os hematomas nas costelas também estavam seguros, longe dos olhos de por baixo do meu moletom. E com um bom estoque de analgésicos, eu talvez conseguisse fingir que estava em ótimas condições. Minha mentira ainda não estava completa e eu não tinha clareza sobre todos os acontecimentos porque, bem... Eu estava desmaiado na maior parte deles
Mesmo assim, algo me dizia que não estava tudo sob controle. E eu odiava essa sensação. Minha vida dependia de controle. Controle era como eu conseguia manter uma vida dupla funcionando sem explodir. Não podia me dar ao luxo de pontas soltas. Nem de pessoas curiosas (qualquer coisa que pudesse se tornar uma bola de neve e fazer homens de branco invadirem o meu apartamento).
Era simples: menos pessoas na minha vida significavam menos perguntas, menos mentiras e menos desculpas. Uma matemática que sempre funcionou.
Exceto com .
Ele era a exceção. E por mais que me incomodasse mentir para ele, a outra alternativa era pior. Não é que eu achasse que ele sairia gritando meu maior segredo aos quatro ventos. Era só que... bom, ele correria. De mim. E eu não queria que ele corresse.
Por isso, fiz o que sempre faço: afastei a sensação de descontrole, guardei as verdades num lugar bem fundo e fingi que estava tudo bem. Porque, na minha vida, é assim que as coisas funcionam. Sempre foi.
Com isso, dormir se tornou um conceito abstrato demais para a bagunça na minha cabeça. Então, fiz o que qualquer pessoa sensata faria: liguei o celular. provavelmente tentaria me ligar de novo, e dessa vez eu atenderia. Era o mínimo, certo? Mas meia hora passou, e nada. Nem uma chamada. Concluí que ele devia estar apagado — ou pior, vindo para cá. Suspirei, resignado. Já que o inevitável estava a caminho, decidi que esperaria com uma cerveja na mão. Péssima ideia, considerando os analgésicos que eu já tinha tomado, mas quem estava preocupado com coerência?
Levantei, fui até a cozinha e alcancei a garrafa. Antes que pudesse dar o primeiro gole, um grito ensurdecedor atravessou o ar como uma faca, fazendo com que eu largasse a cerveja. O som do vidro se estilhaçando no chão foi seguido pelo estrondo de copos explodindo na bancada.
Eu virei tão rápido que quase desloquei o pescoço.
— Sério, vó? Essa era minha última cerveja!
Ela estava lá, no meio da bagunça, me analisando de cima a baixo com o olhar de quem já sabia que ia sobrar para mim.
— Santo Deus, mas o que foi que aconteceu com você?! — gritou, indignada. — O que você aprontou dessa vez, moleque?
— Ah, é uma história longa. A senhora morreria de tédio.
— Muito engraçado. Fala logo, seu insolente. — ela me deu um tapa no braço, e eu, é claro, aproveitei para exagerar na reação.
— Ai, vó! — fiz uma careta digna de Oscar.
— Meu Deus, me desculpa, querido. — a preocupação genuína durou exatamente meio segundo antes de voltar ao modo interrogatório. — Mas quem fez isso com você? Me diz o nome dessa alma penada que eu mesma resolvo!
— Calma aí, Viúva Negra. — comecei a catar os cacos de vidro no chão. — Iso não foi trabalho de nenhum fantasma. Foi só uma briguinha normal, com gente de carne e osso.
— Briguinha?! — ela quase teve uma convulsão. — Desde quando você virou um delinquente? O que você estava fazendo, rolando no chão com brutamontes? Ah, se seu pai soubesse disso…
— Qual pai? — dei de ombros, jogando os cacos na lixeira. — Se for o Anakin, ele não vai saber de nada. Sou bom em apagar meus rastros, lembra? Agora, se a senhora tá falando do meu outro pai…
— Não tô falando de ninguém! — a voz dela tremeu, como sempre quando o assunto virava para isso. — Qual o motivo de tudo isso? Foi por causa de alguma garota? Não me diga que Gina te meteu em outra encrenca.
— Não tem nada a ver com garotas. Quer dizer... talvez um pouquinho.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Um pouquinho? O que isso significa?
Suspirei, cansado daquilo, mas contei tudo. Sandy, os capangas de Ash, a surra e, claro, a ajuda inesperada de . Minha avó ouviu cada detalhe com a paciência que só um fantasma centenário poderia ter. Quando terminei, ela balançou a cabeça, claramente desaprovando cada parte da história.
— Então você ajudou essa tal de Sandy?
— Acho que sim. Consegui o que ela queria, mas não sei se é o suficiente.
— Bom, você fez sua parte. Se ela continuar aqui, eu mesma mando ela pro outro lado. — nós dois rimos. — Mas essa ... Ela namora o ignorante que te bateu? E agora quer brincar de detetive? Você confia nela?
— Não confio em ninguém, vó. Já disse isso. é curiosa demais e tem um puta mau gosto pra relacionamentos. Mas vai cansar logo e desistir, tenho certeza.
Ela não pareceu tão convencida quanto eu esperava, mas deixou o assunto morrer. Por alguns minutos, pelo menos.
Então, claro, a campainha começou a tocar incessantemente. Suspirei, sabendo exatamente quem era.
chegou. — murmurei.
Minha avó deu um último olhar de julgamento antes de desaparecer no ar, não sem antes resmungar algo sobre "moleque pervertido".
Abri a porta, e lá estava , entrando sem pedir licença, como sempre.
— Eu espero que você tenha uma boa explicação pra ter me deixado plantado no meio da festa e que ela diga como você sumiu deixando seu carro pr… — ele virou na minha direção, e o olhar dele congelou no meu rosto. — Mas que porra é essa, ?! Você não atende as ligações a noite toda e agora parece que se meteu em briga de gangue?
— Sabia que isso podia facilmente ser interpretado como briga de casal? — provoquei, tentando desviar o foco.
Ele olhou para os lados, como se alguém realmente pudesse nos ouvir dali.
— Cara, o que tá pegando? — ele disse, num tom entre irritado e preocupado. — Eu passei horas achando que você tava, sei lá, num necrotério ou coisa pior. Achei que ia ter que identificar seu corpo e explicar pra sua mãe como você foi parar lá.
— Um necrotério? Muito dramático, não? — dei uma risada curta, mas o olhar que ele me lançou era de quem não ia achar graça nem das próprias piadas. — Tá, ok. Tive uma noite complicada, só isso. Me perdi na festa, bebi um pouco demais, e talvez tenha rolado uma briga. Essas coisas normais de festa.
— “Talvez” uma briga? — ele arqueou as sobrancelhas, incrédulo. — Você tá com a porra de um curativo no nariz, . Não parece o cacete de um “talvez”.
— É, pois é. — tentei dar de ombros, mas o movimento fez meu nariz doer ainda mais. — Nada grave. Só um nariz fodido, mas em uma semana já vou estar novo em folha.
Eu tentei rir de novo, numa tentativa patética de minimizar a situação. Não funcionou. cruzou os braços, e seus olhos estavam tão arregalados que eu achei que ele ia explodir.
— O quê? — ele praticamente gritou. — Como pode tá rindo com isso? Você levou uma surra! E agora eu quero nomes. Anda, quem foram os idiotas que te bateram? Vou descobrir um monte de podre deles e jogar no Fórum. Vou hackear o Wi-Fi da casa deles e mudar a senha pra “eu sou um zé boceta”. Ninguém vai escapar, .
— Ei, calma aí, Mr. Robot. — coloquei as mãos na frente, como se isso fosse conter a avalanche que era irritado. — Tá tudo bem. Juro. Foi só uma briga de bêbado, nem lembro direito quem começou e porquê. Pode relaxar.
— Relaxar? — ele me olhou como se eu tivesse perdido completamente o juízo. — Ah, claro. Não lembrar de uma briga é sempre um sinal de que ela foi super tranquila. Se toca, olha pra você, cara. Como pode chamar isso de “uma briga de bêbado”? O que eles fizeram pra você? Você precisa me contar.
, eu já contei. Ou, pelo menos, o que eu lembro. Foi rápido, bagunçado e, sinceramente, não importa mais. — suspirei, esfregando as mãos no rosto. — Eu só quero dormir um pouco antes de terminar os relatórios pra amanhã. Então, você veio pelo café ou...?
— Você tá maluco? — ele segurou meu ombro com força, me forçando a encará-lo. — Desde o ensino médio eu não te vejo com tantos curativos, e você era uma máquina de arrumar briga naquela época. Se tava com problemas, por que não me ligou? O que você arrumou dessa vez? Derrubou cerveja em alguém e chamou o cara de "irmão perdido do Nick Carter"?
— Eu podia ter feito isso. É o meu estilo. — sorri. Ele não se convenceu. — Qual é, cara. Não foi nada. Sei que eu sumi, foi vacilo. Mas não ia te meter numa confusão dessas. Não tinha nada de grave. Você tinha coisa melhor pra fazer, não tinha?
— Não tenta desviar o assunto. — ele me olhou sério, mas sua expressão suavizou um pouco. — Desde que viemos pra Nova York, você tava tão tranquilo, tão... de boa. E agora aparece assim? Já imaginou o que sua mãe faria se recebesse uma ligação da polícia?
— Iria surtar. — suspirei, derrotado. — Tá bom, vou tomar mais cuidado. Prometo.
Tentei sorrir, mais confiante do que antes. Ele pareceu engolir minha história, embora eu soubesse que não ia escapar de mais perguntas depois.
— Certo. Mas não teve mesmo nada a ver com zoar o Nick Carter ou o cabelo de alguém, né? Sabe que nem todo mundo entende suas piadas.
...
— E que horas foi isso? — ele continuou, ignorando minha tentativa de mudar de assunto. — Saí da festa às cinco da manhã e seu carro ainda tava lá.
Passei as mãos pelos cabelos, tentando pensar rápido. Eu sabia exatamente o que faria ele acreditar, mas isso só ia complicar ainda mais as coisas.
— Eu tava ocupado. Com... uma garota.
Seus olhos se iluminaram como os de uma criança que acabou de ganhar a nova pista lava-jato da Hot Wheels.
— Uma garota? Como assim uma garota? Você tava beijando alguém enquanto levava uma surra? Isso é multitarefa em outro nível.
Revirei os olhos.
— Eu não tava beijando ninguém enquanto levava uma surra. Foi antes. Ou depois. Nem sei mais.
— Não acredito! — ele praticamente saltou pra mais perto. — Tá, mas quem é ela? Qual o nome dela? Quero saber tudo.
— Não lembro. — minha voz saiu firme, mas ele não pareceu notar. — E nem vou lembrar agora porque tô exausto e cheio de OxyContin no sangue. Então, se puder me deixar descansar...
— Mentira! Foi tão bom assim? Cara, como você não me conta isso assim que cheguei? Eu perdoava a briga sem mim na mesma hora.
Foi muito difícil me livrar dele depois disso. Repeti várias vezes que não lembrava quem era a tal garota, nem o que tinha rolado, e acabou aceitando, mais porque adorava brincar com minha “frieza emocional” do que por acreditar em mim.
Depois que ele saiu, o efeito dos analgésicos começou a passar, e a dor voltou com força total. Antes de pensar demais, tomei mais dois comprimidos, apaguei na cama e caí no sono antes de chegar ao quinto carneirinho.


Não coloquei nenhum despertador, mas nesse trabalho minha mãe era a melhor. Nem o sono mais profundo era capaz de se manter à insistência telefônica de Adrian . Alcancei o celular na mesa de cabeceira, sem abrir os olhos, dando fim ao Jack the Bear insuportável de Duke Ellington que enchia meus ouvidos.
— A partir de hoje vou mudar esse toque. Isso é tortura. — resmunguei, assim que consegui arrastar o ícone verde para o lado. Ainda estava sentindo um estranho embrulho no estômago, as pontas dos dedos frias como gelo.
— De jeito nenhum! Esse toque é perfeito. — Adrian respondeu em sua voz normal, mas para os meus ouvidos recém acordados, soaram umas três oitavas a mais. — Como mais você vai saber que sou eu? Um clássico do Duke que ninguém com menos de 60 anos toleraria só pode ser a sua mãe.
— Já ouviu falar em identificador de chamadas, mãe? É uma invenção moderna. Revolucionária, até.
— E daí? Nosso toque é uma declaração. Vou saber se você se livrar dele e ficar muito triste. — sabia que ela estava fazendo um biquinho de desaprovação, mesmo sem ver. Ela sempre fazia isso quando eu tentava argumentar contra seus costumes bregas e ultrapassados.
Barulhos repetitivos em cima de uma superfície de madeira e, em seguida, o chiar de uma panela no fogo indicavam que Adrian estava na cozinha. Fui relaxando lentamente os músculos, sufocando um gemido de dor tardio por ter levantado rápido demais. A escuridão estava menos impenetrável no quarto, mas ainda era muita escuridão. Não fazia ideia de que horas eram.
— Eu te acordei? — ela continuou, e pude ouvir o tilintar de talheres e outras conversas baixas ao seu lado. — Por que está dormindo uma hora dessas?
De que horas estávamos falando?
— São as aulas — de qualquer jeito, a resposta estava sempre na ponta da língua. — Travis anda me mandando ler mais do que o normal. E ando virando umas noites no plantão do HICCC. Eles falsificam minha carteirinha.
— É o quê?
— Brincadeira — falei antes que ela ficasse nervosa. Ainda estava com muito sono pra irritar Adrian hoje. — Você imagina porque quero agarrar qualquer horinha livre pra dormir.
— Ah, querido, é claro! Como pude esquecer! Você foi o número 1 de novo, meus parabéns! Ingrid, foi o número um de novo! Estou criando um prodígio! — ela afastou o telefone para chamar nossa empregada. Pude ouvir as felicitações dela ao fundo. — Seu pai está em uma reunião importante com convidados de Londres na sala de estar, mas ele também ficou feliz! Com certeza vai te ligar amanhã — e com certeza ela estava com um sorriso de ponta a ponta por isso. — Já escolheu seus orientadores do internato? Eu e seu pai estávamos fazendo uma lista, e vimos que Ashley Gómez da pediatria do Hospital Memorial de Chicago está disponível e adoraria te conhecer! Tenho certeza que se eu conversasse com o diretor…
— Você não vai fazer isso — interrompi em um tom calmo, porém sério. Estava ali um dos maiores motivos que me deixavam nervoso em relação à Adrian nos últimos 5 anos. Estava sempre precisando pará-la antes que ela assumisse o banco do motorista da minha vida e me rebaixasse a um mero passageiro, ditando as direções e decisões por mim. — Ainda faltam uns 3 meses antes que eu comece o internato, e não sei se crianças choronas seriam minha primeira opção.
— Mas você é ótimo com crianças.
— Não sei de onde tirou isso.
— O sobrinho de Ingrid. Não se lembra? Você o ajudou com matemática.
— Ele não era uma criança — rebati, lembrando-me daquele carinha de 15 anos que estava quase passando do meu tamanho e que ainda estava na escola primária por ter repetido o ano umas zilhões de vezes, tendo uma dificuldade absurda em fazer contas de multiplicação com números quebrados. Adrian sabia que cálculos não eram muito a minha área — a não ser que envolvessem medidas, fórmulas prontas e um acervo gigante de regras de três — mas achou que eu poderia ajudá-lo — e eu realmente ajudei, pelo menos com os números. Com as drogas e as gangues, aí já não tinha muita coisa que eu pudesse fazer. Ocorreu-me que ele sempre agia de modo nervoso e inquieto toda vez que precisava pisar lá em casa, mas se roubou alguma coisa de valor, nunca fizeram o favor de me contar. — E de qualquer forma, vou precisar passar por elas até a formatura, não preciso me apressar pra conhecê-las agora. Prometo que vou decidir isso antes de fevereiro, tá bom? O que está cozinhando?
— Adivinhe só! Vieiras com parma! — ela riu e aceitou bem a mudança brusca de assunto, tagarelando um pouco sobre os temperos, tempo de cozimento e a importância do tipo de louça que precisava ser usada para servir uma porção de comida tão insignificante, mas que era um prato cheio para a etiqueta. Em 2 minutos, tinha esquecido o assunto do internato. — O doutor Bardini trouxe uma louça tailandesa de presente e seria falta de educação não usá-la no jantar, apesar de eu particularmente preferir aquela que compramos em Roma, você lembra? Mas seu pai insistiu que usássemos a dele — ela bufou e pude sentir seus olhos se revirando nas órbitas.
Ouvir minha mãe papeando sobre jantares executivos em casa enquanto picava os legumes, preparava o molho, conversava com Ingrid e ouvia jazz baixinho, me deixava nostálgico e com saudades de casa. Podia visualizá-la usando seu avental rosa com bolinhas brancas, um coque perfeitamente alinhado, preparando uma comida deliciosa usando salto e maquiagem. Parecia uma bolha de perfeição onde nada, nenhuma única coisinha ruim poderia acontecer.
— Não vejo a hora de ver você em casa, meu bem! Sua avó vem para o Natal e vamos preparar aquele clam chowder que você adora. E por falar nisso, como está o clima por aí? Aqui o inverno se aproxima, mas as pessoas continuam indo à praia, você bem sabe como. Um cliente do seu pai da Flórida nos convidou para passarmos o feriado de ação de graças na fazenda, e eu estaria melhor se você pudesse ir junto — ela suspirou tristemente, já imaginando minha resposta.
— Ação de graças em um lugar deserto cercado de cavalo, grama e cigarras? Vou precisar de um tratamento psiquiátrico depois — soltei uma risadinha, e ela resmungou algo como “idiota”. — Já conversamos sobre isso antes. As pesquisas no HICCC precisam muito de mim nesse semestre, e não vai fazer mal você e papai passarem o feriado com outras pessoas. A sua comida fará todos bem mais felizes, aposto que nunca provaram um molho de cranberry como o seu.
— Eles provavelmente devem contratar uma cozinheira — resmungou.
— Eles vão te provocar desse jeito? Que gente mais sem coração — joguei as pernas para fora da cama, esticando mais os ombros. Percebi que uma fresta particularmente grande da cortina estava aberta, jorrando uma luz forte e branca dos postes para dentro do quarto, o que causaria um grande déficit do meu sono dependente da escuridão total, e como não havia ninguém para fazer isso além de mim… — Dá essa chance pra esses manés executivos, vai. A esposa desse cara não é aquela que é professora de yoga?
— Na verdade, ela é especialista em Niyama e Pranayama.
— Nomes difíceis de coisas que doem o corpo, que seja. Vai pro meio do mato e mostra pra ela os seus 6 dias por semana de pilates. Vou ligar duas vezes para ter certeza que você está se comportando.
Ouvi uma risada e uma fungada ao mesmo tempo. Adrian estava finalmente começando a ficar emotiva.
— Vai ser a primeira e última vez — disse, com a voz embargada, mas que logo se recuperou. — Não gosto dessa ideia. Sinto sua falta. Eu e seu pai vamos te ver assim que ele conseguir fechar esse contrato hoje, fiquei sabendo que o reitor Park está organizando um recital de Natal. Aí podemos voltar para São Francisco todos juntos.
— Combinado.
Eu esperava ter resolvido todos os meus problemas antes do Natal.
Ouvi Ingrid falar algo sobre pôr a mesa e mais tilintar de talheres.
— Vou ter que desligar, querido. Parece que a reunião terminou.
— Tudo bem, mãe. Manda um abraço e boa sorte ao papai.
— Você está bem, não é? Estou tão atarefada que até me esqueci de perguntar… — sua voz agora estava estourada, provavelmente porque estava equilibrando o telefone no ombro com a cabeça tombada enquanto andava pela cozinha e organizava os petiscos. — Está precisando de alguma coisa? Você está se alimentando direito? Comidas de delivery e restaurantes de universidade não se enquadram como direito, caso você esteja pensando nessa resposta.
— Abriu uma barraquinha ótima de churrasco na Rua 88, você ia adorar, janto lá toda semana. Mas acho que os vizinhos começaram a reclamar que seus gatos estão desaparecendo…
— Não tem graça — ela cortou, e não pude aguentar uma risada que doeu cada milímetro de músculo do nariz. — Está correndo ainda? É importante se exercitar, mesmo que você não tenha muito tempo. E não quero te ver com um cigarro na boca de novo!
— Cheguei aos 70kg no supino, é um número importante aos 21 anos — não pretendia contar quando foi a última vez que eu tinha feito um supino.
— E o ? Está te fazendo companhia? Besteira, esse garoto não larga do seu pé — ela suspirou e ouvi os pratos sendo empilhados um a um. Ouvi mais uma vez a voz de Ingrid.
— Está tudo em ordem, mãe. Vai servir o jantar antes que papai comece a ter de contar as piadas de golfe para entreter os convidados, ninguém merece isso.
— Você tem razão! — ela riu. — Te amamos, querido. Estou com muitas saudades!
— Eu também, mãe.
O visor do celular marcava 8:00 da noite quando desliguei. Ainda não me sentia completamente descansado. Além das dores no corpo, tinha aquela confusão mental, o esforço que meu cérebro estava fazendo para tentar lembrar de alguma coisa. Uma sensação esquisita demais.
Andei até o banheiro, ligando a torneira e jogando um pouco de água no rosto. A palidez continuava ali, nada convidativa, dando um aspecto doente e mirrado. Os hematomas diminuíram de tamanho, mas permaneciam da mesma cor, o que significava que eu precisaria de outra banheira de gelo.
Voltei para a cama com o intuito de tentar dormir de novo. Senti que poderia dormir por pelo menos dois dias inteiros, procurando as melhores desculpas pra minha ausência nas aulas práticas, nas reuniões com Travis, nas pesquisas do HICCC e tantas outras coisas que enchiam minha agenda imaginária, mas de repente estava sendo alvo de pensamentos desenfreados. Os mesmos de antes, aqueles que começaram fracos porque minha mente estava fraca e cansada, mas que agora estavam mais nítidos, vivos e urgentes.
Saltei da cama, colocando jeans, tênis e um moletom preto estampado com o desenho do dedo do meio torto e ossudo do E.T. de 1982. Puxei a cortina para cobrir a luz e saí, não sabendo exatamente o que estava fazendo, mas já estava fazendo. Precisava falar com Sandy — afinal, era aquilo que eu fazia. E daria fim aquela história hoje mesmo. No fim das contas, ela só queria saber a resposta de Ash, não é mesmo? Uma resposta que ela mesma não poderia conseguir sozinha. Depois disso, não conseguia ver motivos para que ela estendesse o assunto.
Hoje, Sandy Silo iria finalmente partir em paz.

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Eu nunca tinha pisado no campus fora do horário letivo desde que me mudei para Nova York, e agora estava aqui, quebrando regras pela segunda vez no mesmo dia. Sair não tinha sido difícil — os estudantes ainda circulavam aos finais de semana, já que a biblioteca, os laboratórios, restaurantes e as demais instalações com projetos ativos continuavam funcionando. A enfermaria de Irving não era uma delas, o que me fez questionar, mais uma vez, como diabos conseguiu nos colocar lá dentro da última vez.
Agora eu estava duplamente arrependido de não ter perguntado. Ela parecia saber todos os atalhos, todos os segredos, enquanto eu só sabia que estava prestes a me meter em mais problemas. deveria dar aulas sobre como burlar o sistema.
Estacionei o carro do outro lado da avenida, longe o suficiente das grades pretas do portão principal. Um único vigia noturno estava na guarita, mais concentrado no celular do que em qualquer outra coisa. Sorte minha, porque meu cérebro estava esgotado para inventar desculpas convincentes.
Desci do carro e contornei as grades, mantendo distância suficiente para ficar fora de vista. Com um olhar rápido, analisei o portão. Tinha uns cinco metros de altura, mas as barras horizontais formavam uma espécie de escada improvisada. Fácil.
Assim que meus pés tocaram o chão do outro lado, puxei o capuz sobre a cabeça e segui em frente, com passos rápidos e olhar fixo no chão. As luzes do campus brilhavam ao longe, refletindo no concreto, e meu coração disparou quando avistei dois vigias com lanternas. Respirei fundo e passei por eles, rezando para não ser notado.
Dois minutos depois, vi as luzes acesas dos dormitórios e soltei um suspiro de alívio. Talvez fosse um sinal de que eu não estava completamente fora de lugar. Algumas pessoas passavam por mim, provavelmente estudantes voltando de festas clandestinas. Não era o único a quebrar regras naquela noite.
Cheguei ao John Jay Hall sem ser notado, o que já parecia um milagre. O prédio era imenso, com seus 15 andares e fachada imponente. O tipo de lugar que parecia dizer “você não pertence aqui.” Mas eu precisava entrar. Tirei um grampo do bolso e comecei a trabalhar na fechadura da porta lateral, agradecendo silenciosamente por ela ainda não ser digital. Em menos de um minuto, estava lá dentro.
O interior era escuro, as luzes reduzidas ao mínimo. O silêncio era denso, perfurado por algumas mínimas vozes nos andares de cima. Subi pelas escadas de emergência, segurando a lanterna do celular. Cada degrau parecia gritar sob meus pés, mas não havia outra opção. O elevador estava fora de cogitação.
O restaurante estava vazio e silencioso. Olhando-o dessa forma, parecia muito maior do que era normalmente, com a aglomeração de pessoas impedindo uma visão panorâmica do local. As mesas de madeiras vazias, os pilares também de madeira, o pé direito alto com o teto em mármore branco, os lustres espalhados pelo lugar totalmente apagados. Foi aqui que eu encontrei Sandy pela primeira vez, naquela cena infame de queda. Hoje, se eu caísse, contava que pelo menos ninguém veria.
Não é que eu pudesse chamar os mortos a hora que eu quisesse. Mesmo se eu pudesse, isso seria algo que eu definitivamente nunca faria. E não era como se eles pudessem me encontrar onde quer que eu esteja. Se eu não soubesse que eles ficavam presos aos arredores de onde haviam morrido, ficaria preocupado de receber uma visita indesejada na minha casa, mas felizmente sabia que não era possível. Eles até poderiam, mas não sabiam como. Não tinham lembranças para isso.
Em situações como aquela, bastava que eu chamasse seu nome. Sempre eficaz, não demorou muito para que a garota se materializasse no escuro, pálida e com uma expressão confusa, como se ainda não entendesse muito bem como aquilo acontecia.
, é você? — ela olhou para os lados. — Está sozinho?
— Como vai, Sandy?
— Estou bem. — ela abriu um sorriso, que logo desapareceu. — Quer dizer, na medida do possível. Eu queria olhar os jogos de sinuca do JJ’s, mas eles estão fechados hoje. Muitos colegas meus jogavam ali.
— Escuta, vou ser breve. — interrompi-a antes que começasse um monólogo. — Precisamos conversar sobre Ash.
— Você o encontrou?
— Encontrei. Ele foi bem gentil. — meu tom sarcástico fez com que ela inclinasse a cabeça curiosa. Em um piscar de olhos, ela estava próxima do meu rosto, quase encostando em meu nariz, e abaixou meu capuz.
— Meu Deus! — sua boca se abriu em choque enquanto ela dava um passo para trás. — O que aconteceu com seu rosto? Você brigou com Ash?
— É, mais ou menos. Pode-se dizer que ele tem muitos amigos.
Ela abriu ainda mais a boca.
— Não acredito que ele mandou Jorge e Rodney fazerem isso! Eu devia imaginar que ele teria esse tipo de atitude covarde. Nem sei o que dizer, … — ela respirou fundo, claramente indignada.
— Relaxa, não é a primeira briga que eu meto. Mesmo que essa tenha sido um trabalho em conjunto, eu já estou bem. O mais importante é que confrontei Ash, e ele negou a história toda.
— Negou?
— Ele disse que não te matou. E… — hesitei. Não acredito que eu ia falar isso. — Parecia estar dizendo a verdade.
Ela ficou em silêncio e andou um pouco em círculos. Pensei em mais alguma coisa para dizer, mas não havia nada. Ela deveria sumir agora, certo? Deveria sim.
— Então… Agora está tudo bem? — perguntei, após vários minutos de silêncio.
Ela parou de andar, mas ainda mantinha os olhos no chão.
— Isso não faz o menor sentido. — murmurou em voz baixa. Ela levantou a cabeça e havia algo novo e estranho nos seus olhos: uma raiva que não estava ali antes. — Tem que ter sido ele!
Engoli em seco. Aquilo não era um bom sinal.
— Sandy, olha… Ash te deu Lorazepam. É um remédio forte para ansiedade, mas com três comprimidos você no máximo perderia suas aulas do dia seguinte. Na sua idade, uma overdose estava fora de cogitação. O que não deixa de ser uma irresponsabilidade tomar, mas ele não te mataria.
— Ele pode ter alterado o medicamento. Sabia que Ash produz algumas de suas drogas? Deve ter feito essa especialmente pra mim. — sua boca se curvou em uma careta de choro, apesar de seu corpo tremer em raiva.
— Sendo racional, uma overdose só seria possível se você já estivesse sob efeito de outra droga antes de tomar o remédio. O seu corpo não aguentou.
Ela olhou para mim estupefata.
— O que você disse? — havia um vinco em sua testa. Pude ver que ela começou a dar passos em minha direção. — Está dizendo que eu usei drogas naquele dia? — abri a boca para responder, mas ela foi mais rápida. — Não que te interesse, mas eu nunca usei drogas. Aquela era a primeira vez que eu iria embarcar nessa. Se eu adivinhasse que nunca mais voltaria dessa maldita experiência, eu jamais teria aceitado, você me entendeu?!
Ela aumentou a voz na última frase, não que mais alguém pudesse ouvir. Sua raiva e frustração eram explícitas, ela não estava levando o assunto muito bem.
— Como você pode pensar isso de mim?! — continuou. — Janice me dizia que eu era sem graça por não ceder ao estilo de vida de Ash, mas eu não conseguia. Mesmo assim, eu sentia que nós… — ela respirou fundo, tentando não chorar. — Ele negou completamente sua participação nisso tudo? Eu devia saber que ele pularia fora de uma forma ou de outra!
O problema não eram os gritos e a expressão furiosa de Sandy. O problema é que quando um fantasma resolvia se revoltar, eles não tinham muita pena do lugar ao redor — e nem das pessoas. Então, quando algumas cadeiras voaram acima de mim e os vidros do salão começaram a balançar, eu notei que precisava tomar uma providência.
— Sandy, se acalma...
— Me acalmar?! Eu fui assassinada, ! Eu tinha planos, tinha um futuro brilhante pela frente! E tudo isso foi tirado de mim da noite pro dia! Para as pessoas ainda pensarem que eu fiz isso comigo mesma. — ela recomeçou a chorar, e isso fez com que os vidros tremessem com mais intensidade. — O que meus pais devem estar pensando, toda a minha família na Virginia, devem estar decepcionados comigo...
— Tenho certeza que sua família também sabe que você jamais faria isso.
— Mas eles não liberaram a autópsia, não é mesmo? Como era de se esperar! Minha mãe quer evitar a vergonha de ter uma filha que se drogou e não aguentou a pressão de uma universidade de prestígio, que não soube ir em frente!
— Agora não é hora de se preocupar com o que sua mãe pensa ou deixa de pensar! Se você me disser exatamente o que aconteceu naquele dia, talvez possamos chegar a uma conclusão…
— Não está claro?! Ash fez isso comigo! Ele fez isso comigo! — uma cadeira da lateral do salão voou acima do chão e se espatifou no teto, e aquilo com certeza foi ouvido por toda a área do corredor. — Ele vai me pagar, ele vai...
— Sandy, se acalma! — falei, entre dentes, olhando para trás em direção à porta de entrada. Alguém com certeza havia escutado. — Por que Ash te mataria? Você não me contou-
— Eu já te contei tudo, mas você não vai me ajudar! Ninguém vai me ajudar a fazer com que ele pague! Ele me avisou que seria assim, que você não estava do meu lado. — ela me encarou, o ódio escancarado em seu rosto. — Pois agora eu mesma vou resolver essa história! — ela deu as costas para sair, mas a peguei pelo braço antes que ela fizesse isso.
— Do que está falando? Quem é ele? — ela me ignorou e tentou se soltar. — Eu tô falando muito sério, Sandy. Ou você se acalma e acaba com esse show, ou-
Eu não era tão ingênuo a ponto de pensar que ela me escutaria. Mas também não esperava que ela fosse me dar um empurrão e eu seria literalmente jogado pelos ares até bater na parede ao lado da porta de entrada do restaurante. A dor foi tamanha que eu tenho certeza que apaguei por três ou quatro segundos, mas quando abri meus olhos, ela já tinha desaparecido. Uma explosão do lado de fora, quebrando o restante dos vidros e janelas de pé e em seguida um apagão mostravam a extensão das atitudes de Sandy: a energia já era.
As mesas antes perfeitamente enfileiradas agora estavam dispostas em uma confusão de balbúrdia. Uma das cadeiras foi parar janela afora, e outra estava pendurada no vidro da cozinha. Um dos lustres espatifou-se no chão. Agora literalmente o prédio inteiro estava um breu.
Xinguei-a mentalmente, e confesso que não esperava que as coisas fossem chegar àquele ponto. Essa era a bola de neve que eu tanto queria evitar. Sandy havia desaparecido e, do jeito que estava transtornada, eu tinha certeza que ela tinha saído do prédio — e isso era a coisa mais perigosa que poderia acontecer com ela naquele estado. Felizmente, ela não conseguiria chegar à casa de Ash naquele dia, já que suas memórias ainda deveriam estar turvas e ela precisaria de um tempo para se adequar lá fora. Infelizmente, agora Ash era um alvo e de fato estava em perigo.
Sandy havia deixado o salão em caos, e não demoraria muito para que alunos e seguranças chegassem ali, e isso significava que eu tinha que sair o mais rápido possível. Me levantei com dificuldade e tentei ligar minha lanterna novamente, mas a queda havia deixado meu celular em frangalhos, e não sabia se ele funcionaria novamente. Completamente no escuro, tateei as paredes até achar a porta por onde havia entrado e ao tocar na maçaneta, um choque na minha testa fez com que eu fosse jogado novamente ao chão e gemer de dor. Avistei um fio de luz chegando perto de mim, que vinha da boca de uma lanterna e um rosto conhecido se ajoelhando ao meu lado.
— Não acredito. — gemi, tentando me levantar.
— Era só o que me faltava. — bufou, sussurrando. — Mas o que raios você está fazendo aqui, garoto?
— Eu que pergunto, você acabou de literalmente bater com a porta na minha cara.
— A minha bola de cristal quebrou, então não deu pra adivinhar que você estivesse aqui. — ela revirou os olhos. — Posso saber por que você está nesse breu parecendo um marginal e fazendo... — ela parou de falar assim que iluminou o restante do salão. — Mas que merda aconteceu aqui?! Eu ouvi uns barulhos e vim...
— Não dá tempo de explicar, temos que sair daqui agora.
— Não é possível que você tenha feito tudo isso. Eu ouvi vozes antes de chegar, com quem você tava falando?
Antes de responder, ouvi passos correndo e mais feixes de luz porta afora.
— A gente precisa correr!
Antes que ela protestasse, peguei em sua mão e puxei-a porta afora, em direção contrária às escadas por onde eu havia subido — e por onde agora subia uma quantidade considerável de pessoas pela falta do elevador.
As escadas eram a única saída existente do prédio àquela altura. Se alguém nos visse naquela cena ao lado da destruição, não precisava pensar muito para saber quais conclusões tirariam. Os dormitórios ficavam muitos andares acima, o que me dava tempo de abrir a segunda saída de emergência, ouvindo os gritos estarrecidos dos alunos ao longe. Desci os dois lances o mais rápido que consegui, estabilizando as costas na porta vermelha e tentando pensar o mais rápido que podia. Eu não sabia exatamente o que teria no corredor à minha frente, mas os guardas não iriam descansar agora que já tinham visto nossas silhuetas (e depois de verem a bagunça que estava no restaurante). Maldita Sandy, lançou um convite a pessoas de fora com todo aquele circo.
Eu e não tínhamos muito para onde correr. Àquela altura, os guardas já deveriam ter acionado mais colegas de trabalho e até mesmo a polícia, não por conta de dois penetras mas sim pelo vandalismo no John Jay — fora todo o desespero dos alunos que com certeza teorizavam um ataque terrorista. Eu precisava urgentemente lidar com aquela reviravolta.
, o que está acontecendo? — sussurrou e pude ver que ela estava com medo. — Foi você…
— Não, mas seria difícil explicar às pessoas caso elas nos pegassem.
O barulho de vozes na rádio patrulha ia ficando mais alto. Era questão de tempo até que eles chegassem àquela porta. Estávamos no térreo e mapeei a direção da entrada dos fundos por onde eu havia entrado. Não muito longe dela, existia uma sala estreita de almoxarifado com uma porta azul na frente. Poderia não ser uma ótima ideia, mas também não era ruim. Eu contava com a aglomeração de pessoas reunida principalmente à frente do restaurante, três andares acima. Meu peito arfava e cada respiração eram como lascas de pedra nas minhas costelas, mas eu não podia descansar. Encostei na parede antes de entrar no corredor, e pude ouvir os passos dos guardas a pouco mais de 50 metros.
... — respirava acelerado, ainda segurando minha mão. — O que você tem na cabeça? Ainda não estou entendendo.
— Precisamos nos esconder. Se formos pegos aqui hoje vai ser um desastre, e eu vou precisar da sua ajuda pra isso.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos antes de concordar. sabia perfeitamente que aquela era a verdade; e ela também estava envolvida.
— Vou colocar na sua conta. — ela se endireitou, encostando na parede ao meu lado. — O que você quer fazer?
— A gente precisa chegar ao almoxarifado.
— Sem chance, ele está trancado uma hora dessas.
— Isso não é problema.
Dessa vez eu não pude observar o olhar que ela me lançou — como se eu fosse louco — e rapidamente a puxei na primeira brecha que as vozes ficaram mais distantes. Andamos rápido, sem correr, rente à parede e um pouco abaixados para as luzes que vinham do pátio não correrem o risco de nos pegar e chegamos à pequena porta azul. De joelhos, puxei novamente o grampo do bolso e entreguei a lanterna à , que apontou para a fechadura enquanto eu fazia o trabalho de destrancá-la.
— Uau. — ela disse, assim que ouviu o clique. — O que mais você esconde embaixo desse capuz?
— Vá por ali. — uma voz não tão distante soou como se estivesse ao nosso lado, e de repente passos correndo pareciam vir em nossa direção.
Em um impulso, empurrei para dentro da sala e entrei logo em seguida, fechando a porta e apagando a lanterna mais rápido que consegui. Segundos depois, pelo menos quatro guardas passaram em frente à porta e começaram a vasculhar o corredor à nossa frente minuciosamente. Olhei para e imediatamente tapei sua boca com minha mão ao ouvir sua respiração tão acelerada e alta, a ponto de surtar.
Havia uma pequena fresta de vidro em forma de quadrado na porta azul, não grande o suficiente para ver algo no escuro, mas se eles ficassem curiosos o suficiente a ponto de abrir a porta, não teríamos saída. Um suor escorreu pelo meu rosto ao ver uma lanterna passeando perto do vidro, e senti as mãos de agarrarem com força em meu casaco. Ela estava com medo. Olhei em seus olhos, que estavam arregalados e visíveis mesmo no breu, e lhe lancei um olhar firme, tentando acalmá-la de alguma forma.
O feixe de luz parou por alguns segundos ao lado do vidro e se afastou depressa, junto com as vozes. Suspirei aliviado e soltei meus ombros, como se um caminhão tivesse saído das minhas costas. Tirei a mão da boca de e pela primeira vez reparei como estávamos grudados. Não que a sala desse vazão para que ficássemos muito mais longe do que aquilo — era um cubículo que já estava um pouco abarrotado pelas vassouras e produtos de limpeza. Mas ao ver que, sem o obstáculo da minha mão, nossos narizes estavam quase se encostando, dei um passo pra trás, de repente constrangido pelo momento.
— Foi mal. — sussurrei, passando as mãos pelo cabelo.
— Isso foi uma loucura. — ela balançou a cabeça, atônita com a situação. — Quando vamos sair daqui?
— Quando eles derem uma brecha pra gente chegar até os fundos.
— Ah sim, Kim Possible. E quando seria isso? Você viu o estado do John Jay, daqui a pouco vamos ter que nos esconder da polícia, e não apenas dos vigias noturnos.
— Pois é, e se você resolver ajudar podemos fugir dos dois. — disse, enquanto me abaixava para revirar umas caixas de papelão.
— O que você tá fazendo agora? Tem certeza que tá em condições de se mexer desse jeito?
— Esse é o menor dos meus problemas agora. — levantei e peguei um dos esfregões, quebrando a ponta pelo joelho e amarrando um pano branco em uma de suas extremidades.
— Tá legal, é sério, o que é isso? Não... Você poderia me dizer o que raios está fazendo aqui pra começo de conversa?
— E você? O que tá fazendo aqui? — me virei para ela.
— Vim ver uma amiga. — ela deu de ombros.
— Os dormitórios estão no sétimo piso, você deveria estar presa no elevador a essa hora.
— Não ando de elevadores. Pelo visto foi a coisa certa a se fazer.
— Não precisa inventar desculpas pra mim. O que tá investigando aqui uma hora dessas?
Ela levantou as sobrancelhas surpresa, e uma vermelhidão aparente até no escuro mostrou que ela estava constrangida.
— Bem... De qualquer forma é um assunto confidencial, pra minha matéria. Não preciso te responder sobre isso, pelo menos a minha vinda aqui não causou um crime ao patrimônio.
Revirei os olhos e voltei ao que estava fazendo. Achei um vidro de álcool na primeira prateleira, já que era algo que era bastante usado e estava sempre à vista, e despejei sobre o pano.
— Tá legal, o plano é o seguinte: um de nós vai jogar esse pedaço de madeira bem perto da porta de entrada e isso vai chamar a atenção dos guardas por perto. Enquanto eles se concentram nisso, nós corremos até o portão dos fundos e os guardas que estão lá já vão ter sido acionados pelos guardas daqui da frente, então vamos ter exatamente pouquíssimos segundos de brecha pra ir embora. Você me entendeu?
Ela me olhou chocada por alguns segundos, mas assentiu. Procurei um isqueiro nos meus bolsos e bufei ao perceber que eu estava realmente levando a sério o plano de parar de fumar. pareceu perceber o que eu procurava e sacou um isqueiro da bolsa, entregando-o pra mim. Automaticamente, olhei em dúvida pra ela.
— O quê? Eu sou precavida.
Assenti e me preparei pra ligar o fogo no pano, quando ela segurou minha mão.
— Deixa que eu faço.
— Não precisa, é melhor eu fazer.
— Quer parar de ser teimoso? Olha seu estado, você vai nos atrasar até chegarmos aos fundos. Pode me dar isso.
Ela agarrou o bastão de mim e abriu a porta devagar, me lançando um último olhar antes de correr para a direita. Sem perder tempo, corri para o lado contrário em direção aos fundos.
Ouvi algumas vozes dos guardas do lado de fora gritando para prestarem atenção ao fogo, e visualizei a porta dos fundos por onde eu tinha chegado. De repente eu parei, tomado por uma preocupação com , a garota enxerida que deixei para trás. Olhei para fora, onde já conseguia ver a silhueta das grades, e depois para trás, onde não tinha nem sinal de . A sirene da polícia já estava estourando ao longe. Em um dilema como esse, eu precisava escolher o meu lado sem dúvidas. Se eu fosse pego no meio daquela confusão, as consequências seriam tão fodidas que mal podia descrever. Eu mal poderia adivinhar a reação dos meus pais. O reitor me daria tantos pontos de demérito fossem necessários, isso se eu não fosse detido na delegacia mais próxima e tivesse que pagar uma fortuna de fiança, ou talvez fazer trabalhos voluntários durante toda a minha vida, quem sabe. E não sei porque, depois de citar exatamente todas as possibilidades de merdas que poderiam acontecer daquela situação, eu decidi voltar atrás pra buscar .
A minha perna já não estava funcionando muito bem, e a dor que eu sentia não me deixava pensar direito. Para minha sorte, andei só alguns passos e avistei correndo com os olhos arregalados em minha direção. Sem dizer nada, ela agarrou meu braço e me puxou direto para a porta de saída, onde saímos pelo pátio extenso, nos embrenhando no escuro até o portão.
Tenho certeza que alguém nos viu. Jurei escutar um “Eles foram por ali” e uma lanterna pegar a ponta do meu capuz, o que me fez correr a plenos pulmões. Segui em direção à Riverside Dr, saindo de Morningside Heights, entrando em Washington Heights, próximo ao centro médico. Cheguei às grades mais afastadas do hospital, onde com certeza seríamos vistos. Meu carro estava há pouquíssimos metros de distância dali.
— Droga. — murmurou ao ver o muro, e jurei que ela estava tremendo um pouco.
— Está tudo bem? — perguntei, já posicionando meu pé nas linhas horizontais.
— Ah... Sim.
— Ei, olha pra mim. — fiquei de frente pra ela, falando baixo. — Eu vou primeiro e você vai atrás de mim, do outro lado eu te seguro. Ok?
Ela acenou, mas parecia nem estar respirando.
— Promete? — sua voz falhou e eu mal a escutei, mas assenti do mesmo jeito. — Anda, eles estão chegando.
Consegui escalar o muro de 5 metros facilmente assim como na chegada, só que dessa vez tive que morder os lábios pra não gemer de dor. Ao chegar do outro lado, a bolsa de voou em minha direção e por pouco não a deixo cair; isso sinalizava que ela estava pronta para subir.
— Toma cuidado. — tentei falar o mais alto que a situação me permitia. Ela não respondeu e, depois de alguns segundos, escutei um grito agudo vindo do outro lado das grades e um estrondo no chão. — ! , tá tudo bem? — ok, dessa vez eu gritei.
— Cala a boca! — ela reclamou entredentes. — Eu estou bem! Foi só um mau jeito.
Depois de quase 2 minutos, a cabeça de apareceu no topo do muro onde ela de apoiava com o braço esquerdo, que estava sangrando na área do cotovelo. Como ela havia se machucado daquele jeito de uma distância tão pequena?
Estendi os braços, pronto para pegá-la, esperando que ela fosse cair objetivamente, mas ela simplesmente se desequilibrou ao tentar se sentar e caiu de qualquer jeito em cima de mim, que já não estava na máxima capacidade por causa dos filhos da puta da Dungeons. Quando me dei conta, ela já estava em cima de mim, e nós dois no chão.
— É sério... Você precisa parar de fazer isso. — resmunguei, e fiquei extremamente nervoso ao perceber sua respiração pesada em minha boca. Por que ela sempre tinha que ficar tão perto de mim?
— Merda, foi mal. — ela rapidamente saiu de cima de mim, estendendo a mão para me ajudar a levantar. Reparei que um dos seus joelhos também estava sangrando.
— Você tá legal? — apontei para seus machucados.
— É, parece que sim. Só está um pouco dolorido, mas nada que um curativo não resolva.
As sirenes começaram ao longe com mais força e voltamos à realidade.
— O que a gente faz agora?
— Entra no carro! — falei e não dei tempo de ela protestar. Corremos um pouco até achar o Jeep no mesmo lugar. Ela rapidamente abriu a porta do carona e dei a partida para finalmente sair dali.


Uma garoa inesperada começou a cair assim que a Columbia foi ficando cada vez mais distante na imagem do retrovisor.
Gostaria de dizer que tinha um destino em mente, mas quando se dá a partida e chuta a embreagem com tanta força a ponto de cantar os pneus pelo asfalto, a gente só torce para não encontrar nenhuma velhinha de andador querendo atravessar a faixa de pedestres. Quando me dei conta, já estava atravessando a ponte Robert Kennedy pelo Rio Harlem e seguindo pela rodovia eterna através de pontos que não me eram exatamente estranhos, mas eu estaria mentindo se dissesse para onde levariam.
permaneceu calada durante todo o percurso, mesmo quando me viu acelerar com mais vontade nas imediações da Ilha de Randall, onde os assaltantes não hesitavam em roubar nem padres e noivos de casamento. Nas poucas vezes que observei a garota, ela estava pálida como se fosse vomitar e segurava o cinto de segurança com as duas mãos. Na falta de ter algo mais inteligente para dizer, apenas continuei dirigindo pela Grand Central, torcendo para que nenhum policial de uniforme preto estivesse esperando na primeira rodovia.
Era por volta de meia-noite quando finalmente estacionei na rua semi vazia debaixo da placa que indicava Avenida Rockaway, nº 133, bem na frente de um restaurante genérico com letreiro branco em um toldo verde empoeirado e portas de correr de vidro fosco engordurado chamado Simmer Down, dividindo a calçada com paredes velhas e completamente pichadas. Dava para ouvir o barulho da linha do metrô a menos de 10 metros à frente, e alguns gritos misturados com música vindo do prédio residencial logo acima, de tijolos raspados encardidos e milhares de escadas de emergência entre uma janela e outra, assim como eram todos os outros prédios de tijolos ao redor.
Brooklyn. Quem diria.
Mais especificamente, em Ocean Hill. E pela minha pouca e até um pouco superficial experiência de Nova York, sabia que Ocean Hill nunca estava em nenhum catálogo de turismo.
Voltei a olhar para . Ela ainda não tinha se mexido um centímetro sequer, mesmo que agora eu percebesse que o aperto no couro do cinto tinha diminuído bastante desde que passamos pela Ilha de Randall. A luz amarelada que conseguia escapar para fora da janela do estabelecimento conseguia ser mais forte do que os postes da avenida, fazendo sombras e reflexos um tanto endurecidos nas poças da chuva recente no meio-fio. Novamente, a imagem daquelas ruas lotadas de neve me veio à cabeça, e senti um frio súbito antes de suspirar e dizer:
— Você tá legal? — perguntei, quebrando o silêncio quase esférico que tinha englobado aquele carro. Só depois que abri a boca e ouvi minha voz, percebi o que tinha feito, o que tinha acontecido e onde eu estava agora, com quem estava. Quase tive a certeza de que quem estava tremendo agora era eu.
Não recebi uma resposta dela por um tempo.
— Acho que estamos em Brownsville. — comentei, como se para organizar os fatos na minha própria cabeça. — Ou num lugar muito parecido com ele. Tenho certeza que passamos por uma filial da Dollar Tree logo ali atrás, e eu não saberia disso caso eles não vendessem cartões de saldo do Xbox Pass. Meu Deus, não acredito que dirigi 30km em 25 minutos, ficaria orgulhoso. — e Anakin também, mesmo que descobrisse sobre a multa de trânsito que eu com certeza receberia por causa disso. Acabei ficando em silêncio de novo, sentindo vontade de morder a língua por tagarelar qualquer coisa inútil quando o que eu mais precisava perguntar era: — Você está bem?
— Você só sabe perguntar isso? — finalmente respondeu, a rispidez na voz quase me cortando como faca. Na mesma hora, ela soltou os dedos do cinto e suspirou forte, balançando a cabeça lentamente enquanto virava o rosto para mim. — Foi mal, eu… é, estou bem. Acho que sim. Você sempre dirige como um maluco? E que ideia é essa de vir parar no Brooklyn? O Astoria Park estava bem ali do lado, podíamos só esperar.
— Astoria Park? O lugar cheio de seguranças e que é tão minúsculo que não esconde nem um carrinho de Hot Wheels? Quanto mais o meu carro.
— Tinha o Central Park…
— Ah, claro, eu também prefiro ser esfaqueado a responder umas perguntas da polícia. Boa escolha.
inflou as narinas sob a semi escuridão, mas conseguia ver as bochechas dela corando de nervoso. Eu não tinha culpa se a garota parecia ser completamente alheia à criminalidade dessa cidade. Ela não saía de casa?
— Mas concordo com a velocidade. Talvez eu tenha exagerado. — completei, dando de ombros. Realmente me sentia no dever de reconhecer aquilo e pedir desculpas, porque a garota parecia que ia mesmo vomitar.
Em vez disso, baixou os ombros e revirou os olhos.
Exagero é uma forma muito gentil de chamar. Eu assisto ao jornal, . Como Ocean Hill pode ser uma ideia melhor do que o Harlem? — olhou em volta rapidamente, baixando um pouco a voz, mesmo que não tivesse mais do que três cabeças passeando pela calçada, ensacadas com sobretudos e botas pesadas, correndo para entrar no primeiro lugar que parecesse quente o bastante, como a estação do metrô e outros estabelecimentos espalhados com luzes ainda acesas e que exalavam um cheiro quente e confortável.
O que me deu uma ótima resposta.
— Porque aqui pelo menos tem café.
franziu o cenho, sem entender minha colocação. Talvez nem eu estava entendendo direito, só quis perguntar:
— Você está com fome? — pareceu ainda mais confusa, de um jeito até mais profundo. Como se fosse uma insanidade completa pensar em comer uma hora daquelas, depois de tudo. — Provavelmente vão passar algum tempo tentando vasculhar Morningside Heights até se tocarem que restabelecer a energia é uma prioridade principal. E sem energia, não tem câmeras. Acho que a gente tem um tempinho.
— Ah. É. Faz sentido. — sua postura fraquejou. Ela me encarou, não mais achando a ideia do café maluca, mas sim a ideia de confiar em mim uma completa insanidade. Engoliu em seco, olhando a rua relativamente deserta e aceitando nosso destino. — Acho que posso aceitar um café.
Soltei o cinto de segurança e desliguei o aquecedor, sentindo pela primeira vez a intensidade do frio lá fora. Um puta frio. Nem tinha aberto nenhuma janela e já conseguia sentir a temperatura escrota de novembro entrando por cada porozinho do Jeep. voltou a tremer, e duvidava muito que aquele suéter cardigan cheio de furinhos que ela usava resolveria alguma coisa sobre isso. Lembrando-me na hora certa do casaco que eu sempre guardava no banco de trás, curvei o corpo para pegá-lo e coloquei-o no colo dela no momento em que ela desatava o cinto.
— Veste. — e sem esperar resposta, abri a porta e saí.

⫘⫘⫘


A sub inscrição no letreiro do Simmer Down dizia que funcionava como “restaurante e padaria”, mas pelo lado de dentro a realidade parecia muito mais ampla do que isso. O aroma de massa fresca, café, cigarro e uma boa dose de álcool sem passar despercebido enchia qualquer metro quadrado de chão e parede até que você não soubesse mais qual era a verdadeira denominação do lugar. Uma frase grafitada logo abaixo do desenho de uma xícara de chá em uma das paredes com tijolos de tinta lascada na esquerda dizia, em letras um pouco menores: Aberto para qualquer ocasião. Isso finalmente explicou tudo.
Tinha mais gente do que eu esperava para um dia qualquer perto do final de semana. Uma enorme quantidade de fumaça vagava em um canto específico perto da janela, dentro de um grupo de caras grandalhões que conversavam baixo, uma mistura de cigarro normal com cigarro de palha, com charuto barato e até aroma doce de cigarro eletrônico, mesmo que isso não combinasse em nada com a estética street daquelas luzes que sofriam uma metamorfose conforme você ia avançando para dentro: começavam amarelas lá fora e iam pouco a pouco se transformando em vermelhas até o interior do balcão na outra extremidade, tornando ele um pouco mais legal à primeira vista, mesmo que passasse bem longe de ser um lugar limpo. Flores azuis e mosqueadas artificiais pendiam de cactos nos beirais das janelas; três homens jogavam cartas em uma mesa nos fundos e um casal entrelaçava as pernas um no outro por baixo da mesa a alguns lugares de onde eu e nos sentamos, no meridiano de toda aquela diversidade. Se eu fosse chutar, diria que ele pegou aquela garota na Avenida Alabama ou na Wortman, e com aquele mega hair ela não podia cobrar menos de 100 dólares a hora.
se ajustou no banco acolchoado verde oliva na minha frente e, graças ao tom laranja da luz — que já seria vermelha se nos sentássemos a duas cadeiras depois —, consegui ver melhor o seu rosto.
A palidez estava melhorando, e meu casaco — grande demais para sua estatura, mas honestamente, tudo parecia grande para — tinha conseguido fazê-la parar de tremer, mas ela ainda parecia incomodada, fechando o maxilar como que para segurar a própria língua. Surpreendentemente — muito surpreendentemente —, o incômodo não parecia ser por causa do nosso cenário underground que estava mais para uma casa de cassino que tocaria uma marchinha de hip-hop a qualquer momento, ou pelo cheiro de uma miríade de coisas que ela e sua meia dúzia de brincos de ouro nas orelhas não deveriam passar perto. Não. Ela estava incomodada enquanto olhava para mim.
Antes que eu dissesse alguma coisa, uma garota alta e de cabelo azul se aproximou de nós dois com um bloquinho de papel.
— Boa noite, pombinhos. O que vão querer? — ela abriu um largo sorriso no rosto enquanto se inclinava um pouco sobre a mesa, deixando o decote extremamente à vista até para quem tinha o maior grau de astigmatismo do mundo. A garota tinha costurado alguns metros de renda preta barata sobre uma camiseta verde do mesmo tom oliva dos assentos, e juntado tudo em um vestido que mais mostrava do que escondia coisas. Não que eu estivesse olhando.
— Pode me trazer um hambúrguer e um café, por favor. — respondi e a garçonete girou ainda mais o corpo em minha direção para anotar o pedido, me concedendo um sorriso ainda maior do que o anterior.
— Só um café pra mim, por favor. — sibilou de seu lugar. A garçonete de cabelo azul, que agora percebi que brilhava como fogo contra a luz, apenas rabiscou apressada no bloco de notas amassado, disse "Já volto" e seguiu para além do balcão, parecendo ajeitar o cabelo e caminhar de forma não natural.
soltou uma risada brusca pelo nariz.
— Uau. Até com a cara arrebentada você consegue seduzir as garotas.
— É o preço de ser naturalmente atraente. — abri um sorriso sarcástico. Ela apenas revirou os olhos. — Tem certeza que não quer comer nada?
— Eles não devem ter nada sem carne por aqui. E eu acho que não vou conseguir engolir alguma coisa até amanhã, então... — ela deu de ombros e abaixou os olhos, brincando com os guardanapos.
— Você realmente parece que vai vomitar.
— É a minha primeira vez fugindo da polícia, o que você queria? — ela parou com guardanapos e me olhou.
— Não fugimos exatamente da polícia.
— Você entendeu. — ela rangeu os dentes, irritada. Parecia estar doida para soltar um grito. — É inacreditável as situações que eu tenho passado toda vez que você aparece na minha frente. Como eu ia adivinhar que eu acabaria essa noite em um bar estranho tão longe da minha casa?
— Como assim? Achei que fosse seu maior sonho. — cerrei os olhos. me encarou com tanta raiva que aquele grito ficou muito, muito próximo de acontecer, se a garçonete não tivesse aparecido antes.
Ela colocou os pedidos à nossa frente e pegou o bloquinho mais uma vez, virando-se inteiramente para mim.
— Desejam mais alguma coisa? — perguntou, sorridente.
— Por enquanto é só isso, obrigado. — assenti com a cabeça e ela se retirou, ainda com seu caminhar peculiar. não parecia disposta a tirar sarro dessa vez.
— Tá legal, Ethan Hunt, precisamos conversar. Posso guardar todos os segredos possíveis sobre você que, acredite, são mais dos que os que eu tenho com minha melhor amiga, mas nada é de graça. Eu preciso que você me conte sobre o que estava fazendo lá.
— Vai voltar a me interrogar como se eu fosse um criminoso?
— Isso é sério, ! Amy já deve ter enchido minha caixa postal, todos do jornal já estão sabendo da baderna que aconteceu no John Jay, e eu vou participar da execução dessa matéria, e por mais que você duvide disso, eu minto muito mal. Então, pra eu não me sentir tão culpada por ter estado na cena do crime e mais, por ter encontrado você lá, eu preciso não ficar no escuro nessa situação.
— Eu já disse que eu não fiz aquilo. — dei de ombros enquanto dava uma mordida no hambúrguer. Eu sabia que as perguntas dela viriam mais cedo ou mais tarde.
— Mas você estava lá antes que eu chegasse, e tenho certeza de ter te ouvido falando com alguém. Você está acobertando outra pessoa, não é?
Suspirei, tentando pensar em alguma coisa.
— Não tinha mais ninguém lá. Você deve ter me ouvido falar sozinho, já ouviu falar nisso? Cheguei em um lugar que parecia ter sofrido um ataque terrorista, acho que tive todo o direito do mundo de murmurar.
Arqueei uma sobrancelha, como se o que eu disse estivesse fazendo total sentido — quando é claro que não estava.
— Isso ainda não explica-
— Olha, eu fui ao laboratório pra ver um experimento pro meu relatório. Células cancro, metástase, mitose desgovernada, caso queira mais detalhes. Era em Irving, e lá não é tão longe assim do John Jay, um amigo vive lá. Queria pegar um livro de volta, então passei pelo restaurante. Não é nada tão alarmante, fora o horário que eu resolvi fazer isso. — levantei as sobrancelhas. — Satisfeita?
Ela inflou as narinas um pouco, ainda desconfiada, mas sem mais a pose de quem iria me alvejar de acusações.
E aí, senti que era a minha vez.
— E será que eu posso devolver a pergunta? O que você estava fazendo lá?
— Você já não sacou lá naquela salinha? — ela puxou a caneca de café, bebendo um gole devagar.
— Ainda o caso da Sandy?
— É claro que sim. Não achou que eu desistiria, achou? — achei! Achei que uma boa noite de sono daria conta do recado, espantaria essa ideia de merda da sua cabeça! — Eu estava relendo os depoimentos e não achei nada de… anormal. Não sei qual palavra usar. Nada que mostrasse que Sandy teria qualquer motivo pra fazer o que fez. Aliás, o que não fez. Então, vim olhar uns arquivos dela no Citizen, e queria ver se no JJ’s-
ficou em silêncio e ergueu o queixo rápido, arregalando os olhos para mim, percebendo o que fez.
— N-não, eu não quis dizer-
— Você foi olhar os arquivos da Sandy. No meio da noite. Escondida. — fiz uma cara de espantado, cruzando os braços. — , quem diria. Que menina má.
, em hipótese alguma isso pode sair daqui! É sério, isso é caso de expulsão!
Dei uma risada mais alta, apoiando os cotovelos na mesa.
— Fica tranquila, justiceira. Você abriu arquivos sigilosos de outro aluno e eu fui visitar um traficante. Nós dois fugimos de uma cena de crime e estamos no Brooklyn à meia-noite, já temos o bastante pra guardar um do outro.
— Também acho que não precisamos de mais. — vi ela corar um pouco e abaixar a cabeça. — E seus machucados? Estão melhorando? Porque sua cara eu te garanto que não está.
— Valeu pelo feedback. — dei uma risada seca. — E considerando que ganhei eles há tipo 24 horas atrás, a resposta é não. Eles não estão melhorando, mas qualquer coisa, eu sei usar uma base.
— Você foi ao hospital?
— Fui. — menti, tomando um gole do café. — Bandagens e analgésicos no esquema.
Foi claramente uma piada, mas de repente, os olhos de não saíram de cima dos meus por um minuto longo demais até ela desviá-los para as próprias unhas e engolir em seco.
— Aquele dia foi uma droga. Nunca imaginei que Ash ou fariam… isso. — ela espiou meu rosto de novo, especificamente no nariz dessa vez. — Machucar alguém assim, do jeito que fizeram, foi injusto. Seria injusto com qualquer um. Queria que soubesse disso.
Pisquei, tentando esconder a surpresa.
Nunca imaginou? Podia jurar que você já estivesse acostumada a ser plateia dos ataques de raiva do seu namorado.
— Não preciso que você acredite, mas ele não é sempre assim. — ela disse, me olhando através dos cílios longos. — Isso não justifica o que ele fez na Dungeons, mas-
— Ele nem sempre parte pra cima de quem o contraria? Ah, é claro que dá pra acreditar nisso. Se não fosse, como ele e Ash continuariam com a parceria amigável no esquema do tráfico, né? — pareceu em choque, abrindo a boca pra falar algo, mas logo a interrompi. — Qual é, , acha que eu sou idiota? Vai tentar lançar um papinho que não tá por dentro de tudo?
— Eu nunca disse-
— Não disse porque mentiria. E vamos lembrar que você mente muito mal.
A cara dela fechou, as costas escorregaram no banco. Ela devia estar com tanta raiva de mim que seria capaz de levantar e ir embora no primeiro táxi, mas se saísse agora, só serviria para confirmar coisas. E tinha orgulho demais para isso.
Mas dava para testá-la mais um pouco.
— Você também sabe de tudo, justiceira. — arrastei a caneca de café para o lado, aproximando o corpo. — Devo perguntar se você tem algum cargo ou sociedade no negócio?
Ela revirou os olhos, sacudindo a cabeça.
— Você não sabe do que tá falando.
— O que eu sei é que não dá pra acreditar que você seja um elemento de fora que não faz ideia do que rola no ninho do mal do maior traficante do campus. E é simplesmente conivente com tudo isso, mesmo sabendo que eles podem ter algo a ver com a morte de Sandy?
— Como você tem tanta certeza disso? — perguntou com o olhar duro.
— Seguindo informações, . Fazendo o que ninguém mais fez: perguntar ao Ash. Infelizmente, ele não leva perguntas muito na boa. — dei de ombros e gesticulei para o nariz. deslizou os braços pelo tampo da mesa e se aproximou de mim, agora os dois inclinados um para o outro como um casal fofocando.
— Você não fez perguntas ao Ash, você acusou ele. E o que no mundo te faz pensar que Ash faria uma coisa dessas com Sandy? Se você os conhecesse-
— Não mudaria nada.
— Porque Sandy te disse alguma coisa, não foi? Ela disse alguma coisa sobre o Ash que te faz pensar agora nele com o maior suspeito.
Quis quebrar aquela caneca na minha testa, ou eu ser a pessoa que iria embora no primeiro táxi. Me sentia dando munição para maluco.
— Isso não é bem da sua conta, , mas te garanto que se Sandy estivesse aqui, ela gostaria de fazer a mesma pergunta para o seu amigo. — dei de ombros, e vi os olhos dela vasculhando o meu rosto como raios laser, procurando pescar qualquer coisa fora do lugar. — Mas pela reação dele, ou Ash é um puta ator e soube fazer um papel lindo de um cara fazendo nas calças, ou ele realmente não matou a Sandy.
arqueou as sobrancelhas.
— Então quem faria isso? — ela abaixou mais o tom de voz. — Estamos falando de homicídio aqui. Homicídio mascarado em suicídio.
— Não sei. — respondi. — Não é você que está encarregada desse trabalho?
— Qual é, . — como se fosse possível, ela aproximou ainda mais o rosto de mim. — Sei que você conhecia a Sandy, o que é estranho porque ela nunca mencionou sobre conhecer o número 1, mas isso quer dizer que você sabe de algo que não quer me contar. E acho que já provei o bastante que não vou espalhar suas maluquices por aí, porque, né... De certa forma eu estou envolvida também. Então, de algum jeito, nós podemos trabalhar juntos nisso. Eu publico a matéria e pego de volta a visibilidade desse assunto quem sabe a nível nacional, e posso até citar seu nome pra ganhar mais bajulações. O que você acha?
— Acho que você não deveria se meter nisso. — eu disse sério, e ela me olhou confusa. — Se liga, . Nada garante qual será a reação de se ele souber que você está mexendo com isso. Nem ele e muito menos Ash.
Ela revirou os olhos, voltando a se encolher no banco.
não tem nada a ver com isso, por que insiste em falar dele?
— Porque você já tem um caso gigantesco bem embaixo do seu nariz e não mexe nisso pra proteger seu namoradinho. Eu te garanto que toda aquela zona acontecendo no escurinho da Dungeons vai alimentar a sua fome de mídia mais rápido do que você pensa.
— O que você disse? — ela riu pelo nariz, os dentes cerrados um no outro. — Em primeiro lugar, não estou protegendo ninguém. Ash está aqui há muito mais tempo do que eu e só tô interessada em coisas maiores do que universitários fumando maconha e tomando pílula sem receita, o que aconteceria com ou sem a existência do Ash por aqui. E jamais imaginei que isso mataria algum deles. — ela respirou fundo, mas dava para ver que estava nervosa. — E vou repetir, : você não sabe nada sobre . Ou sobre mim. Vai ser bem mais feliz nesse lugar se ignorá-lo, eu te garanto.
Quis dizer de novo que ela estava protegendo ele, que estava sendo capaz de tudo, de inventar todas as mentiras para que não precisasse usar seu nome na sua investigação fajuta, mas os olhos de … Aquela ondulação das íris era uma coisa que eu já tinha visto antes. Mais vezes do que eu gostaria.
— Você tem medo dele. — afirmei, e ela abriu a boca para continuar falando, mas logo se calou.
— Eu não tenho medo dele. — seu lábio tremeu.
— Mentirosa.
— Conheço há muito tempo. Sei que ele se estressa fácil, que tem um temperamento difícil, que pode gritar e humilhar as pessoas quando elas-
— Olha como ele trata você. Isso é um diagnóstico para idiotas com toda certeza. Garota nenhuma merece isso.
Vi seu rosto corar um pouco por baixo da luz. parecia ser o tipo de garota que odiava corar.
— Não importa. Ele é filho do reitor, um dos homens mais importantes do Estado, então automaticamente ele vira uma peça inatingível. Não é tão simples assim acusá-lo de ser cúmplice no esquema de Ash.
Dei uma risada, que pareceu deixá-la mais nervosa ainda.
— Obrigado pela informação, mas seu namorado e todo esse império de Rivotril são o menor dos meus problemas. Eu só quero saber quem matou a Sandy.
— Então nós dois queremos a mesma coisa. Por que não podemos nos ajudar?
— Nos ajudar. — ri de novo, mais amargo dessa vez. — Temos objetivos completamente diferentes com essa história.
— Pelo menos eu te disse qual é meu objetivo. Qual seria o seu?
— Isso continua não sendo da sua conta.
As narinas dela inflaram, frustradas.
— Tudo bem, lobo solitário, pode fazer isso sozinho. Também consigo fazer perguntas ao Ash, e aposto que de uma forma bem menos agressiva do que você.
— Eu não faria isso se fosse você. — disse, sério, pensando sobre a promessa de Sandy sobre encontrar Ash. Não acredito que ela conseguiria isso tão depressa, mas se ele estivesse vagando pela Columbia…
arranhou uma risada ácida pela garganta.
— Porque os capangas dele podem me calar de algum jeito? Tenho certeza que não preciso me preocupar com essa parte.
Não foi Ash que os mandou me baterem!, eu quis gritar. O que ela pensava que estava dizendo, planejando? Não tinha estado lá na noite anterior, não tinha tinha se tocado de que, se não fosse por ela, talvez eu estivesse pior? E ela pretendia jogar contra essa sorte sozinha?
Isso me irritou. Pra caralho. Mais do que pensei.
— Que droga, . — resmunguei. — Afinal, por que raios está tão obcecada com esse assunto? Tenho certeza que vão ter outras oportunidades de você cair nas graças do senhor O’Donnell e conseguir publicar um outro ótimo furo, com seu nome estampado nos melhores noticiários do país. Podem até divulgar uma foto sua, essa gente ama garotas de boa aparência com ativismo social na veia e que sabem recitar Jane Austen.
— Você é um babaca. — ela revirou os olhos de novo. — Pode duvidar o quanto quiser dos meus objetivos nesse caso, mas ele não deixa de ser injusto. Eu sempre tive certeza que Sandy não faria isso com ela mesma, por mais que eu a conhecesse pouco. Só que sozinha, não consigo ir pra lugar nenhum, provar coisa nenhuma. Mas quando vi que você pensava a mesma coisa que eu, pensei que era possível. Que a história dela poderia ganhar uma nova narrativa e, quem sabe assim, amolecer aquele coração de pedra da mãe dela. — suspirou. — Conversamos bastante enquanto ela saía com Ash. Ela e a mãe, bom… Posso dizer que entendo. Eu e Sandy tínhamos muitas coisas em comum.
— Namorar idiotas está incluso nessa lista?
— Engraçadinho. Vai bem além disso. Tínhamos os mesmos ideais.
— Ah, você diz de toda essa coisa vegana? Deve existir algum clube desses no centro médico pra pessoas como você, com noites de massagem em porquinhos, pintura de cartazes e jantar especial com aquela coisa que tem gosto de sola de sapato.
Se eu não estava louco ou vendo coisas, podia jurar que segurou um riso.
— Já existe um clube para veganos na CCU, e tofu não tem gosto de sola de sapato. Você devia experimentar uma ou outra coisinha do John Jay. Dá pra comer praticamente tudo que você come sem derivados.
— Os sorvetes são péssimos.
— Todos os sorvetes do John Jay são péssimos. — disse. Fui obrigado a concordar. — Mas eles seguem o ritual da segunda sem carne. Então você-
— Nas segundas eu como no Hewitt.
me olhou espantada e, dessa vez, soltou uma risada mais alta, uma que escapou dela sem a sua permissão, como uma rolha escapando de um champagne.
— O Hewitt não é uma opção. — ela colocou uma mão na boca, ainda rindo. A maioria dos restaurantes na Columbia aderiam à segunda sem carne, menos o Hewitt, um estabelecimento lotado de gordura e cerveja 12 horas por dia bem no subsolo do Barnard College na Broadway. — Qual é a sua comida favorita? Tenho certeza de que pode encontrá-la na minha versão.
— Quer saber mesmo? — ela assentiu. — Bolo de carne. Panqueca de carne. Guisado de carne. Viu? Não dá.
balançou a cabeça. A essa altura, suas risadas já tinham diminuído, mas o sorriso não sumiu completamente. Senti aquele quentinho no peito ao lembrar do bolo de carne da senhora Drager no Melbourne. Não era nada igual às iguarias que Adrian passaria a me servir a vida toda, mas o sabor da comida de Grace estava em outra coisa. Outra camada da minha vida.
— Isso não é justo. Achei que seu gosto fosse mais… — procurou a palavra.
— Refinado? — completei, vendo-a concordar lentamente. — Achou que eu só bebesse vinho do Porto e fumasse Nat Shermans? Ou melhor, deve ter achado que eu passo meu tempo livre em um campo de golfe usando camisa polo e balançando um sininho pra pedir limonada.
— Infelizmente, não consigo me segurar para julgar as pessoas. — ela estreitou os olhos. — Sempre pensei que o notável aluno número 1 fosse um cara sério, sofisticado, com gostos elegantes bem diferentes de tatuagens, piercings e X-Burguer de bares suspeitos no meio da noite. — ela deu uma risadinha quase adorável. — É incrível como um cérebro brilhante pode habitar em um cara boêmio, delinquente e um tanto esquisito. Não dizem que médicos não podem fumar?
— Todo mundo pode fumar. Tirando crianças e gestantes, esses é melhor evitar. — puxei a caneca de café. Tinha quase me esquecido dela. — Mas eu diria que você ficaria chocada com a quantidade de médicos que fumam. De tudo. Toda essa expectativa e ilusão em cima de pobres mortais que dormem menos do que a maioria, é de dar dó. — fiz uma careta quando senti o líquido já frio do café. — Mas não precisa se preocupar comigo, sou só um cara que quer desbravar o câncer e viver dentro de um laboratório. Não vou precisar cuidar de você.
Dei um sorriso divertido e ela corou, desviando os olhos para o café. Depois de um segundo, percebi que talvez, muito talvez, ela tenha ficado constrangida. Mas como eu era péssimo nessas coisas…
Dei um pigarro antes de continuar:
— Então… — falamos ao mesmo tempo. Fiquei em silêncio para que ela falasse.
— Câncer, é? Tem algum motivo especial pra isso? — ela gesticulou a mão, hesitante.
Tinha um motivo. Não um que eu pudesse contar.
Levantei os ombros, descontraído.
— Gosto de ler. — puxei minha mão para baixo, brincando com a barra da minha jaqueta. — E você? Por que a profissão mais enxerida de todas?
— Esses são os detetives. E informação é uma coisa importante. Sempre gostei de saber em primeira mão coisas que outros não sabiam. Quer dizer, na maioria das vezes. — ela baixou os olhos repentinamente e encarou o café, a expressão se esfriando. Esperei que ela complementasse o que disse, mas aquilo pareceu tudo. O fim do assunto.
Ficamos em silêncio novamente. Fiquei com vontade de perguntá-la se havia algo errado, mas era óbvio que havia.
Talvez fosse a hora certa para dizer que precisávamos ir. Mas daí uma música baixinha começou a tocar no fundo e me atrevi a prestar atenção. Reconheci os acordes de Something, o segundo verso soando com a voz arranhada e estourada de um rádio com defeito: I don’t wanna leave her now, you know I believe and how… Cantarolei uma parte dela e automaticamente tamborilei os dedos de leve na mesa, acompanhando o ritmo da música.
Olhei para . Ela inclinou os ouvidos e também pareceu ter reconhecido a música. Seus olhos cintilaram na minha direção e, de repente, não consegui desviar. Uma sensação estranha me tomou, como se toda aquela gente do Simmer Down tivesse desaparecido e só deixassem a gente, livres para andar, comer e beber todo o café que a gente quisesse. Porque, de repente, não existia café melhor do que o do Simmer Down. Não existia lugar melhor.
A boca de repetiu baixinho um You’re asking me, will my love grow? I don’t know, I don’t know distraidamente, e comecei a entender porque meu pai, de repente, em momentos aparentemente normais, se levantava da mesa e tirava minha mãe para dançar.
Um berro ensurdecedor calou a música ao redor e me fez pular de susto, acordando do que seja lá o que foi aquela sensação esquisita, eliminando-a o mais rápido possível da minha mente. Olhei para trás e um dos caras na mesa do baralho pareceu ter levado toda a grana da noite.
— Beatles, é? — deu um sorriso de canto, um pouco envergonhada. — Você é realmente uma caixinha de surpresas.
Franzi o cenho. Ela tinha voltado com a missão de me zoar?
— Vai, me fala. Achou que eu escutasse Mozart, tocasse piano e batesse ponto no Opera House?
— Eu não fui tão longe assim a ponto de fazer suposições sobre o seu gosto musical.
— Mentirosa.
Cerrei os olhos e estava rindo de novo. Foi tão contagioso que me fez rir junto, e de repente estávamos rindo um do outro sem motivo algum — e foi tão bom, divertido e… estranho. Foi inexplicável o que senti na boca do meu estômago. Devia ser o X-Burguer duvidoso.
Foi então que todos os acordes da melodia e qualquer clássico dos anos 60 rolando pelo ambiente foi bruscamente interrompido nos meus ouvidos pela mais nova onda de frio bizarro que pesou o ar em volta. E, dessa vez, entendi perfeitamente de onde vinha.
Entre a senhorita de aplique da Avenida Alabama e , havia uma pessoa. Uma pessoa que não estava ali antes.
Diminuí a risada, pouco a pouco, músculo por músculo, tensão por tensão.
É só mais um morto, pensei. Eles estavam por toda parte, em cada centímetro quadrado de Nova York, em lugares antigos e nos não tão antigos assim. A estrutura do Simmer Down não era lá uma modernidade arquitetônica como os arranha-céus de Manhattan. As infiltrações nas paredes acima do balcão e perto dos ventiladores enferrujados tinham lá a sua história. É só mais um morto. Se não lhe der atenção, eles vão embora rápido, sempre vão. É só mais um, é só mais um…
Mas aquele não era um fantasma normal.
Ele surgiu em meio à um vulto negro e espesso, materializando-se em um homem alto e magro, de roupas igualmente pretas da cabeça aos pés e grandes rodelas escuras embaixo dos olhos, pálido como... Bem, um fantasma. Se me concentrasse, conseguiria ouvir os cochichos gerais de pedidos em uníssono pedindo para que fechassem aquelas janelas por causa do frio, mesmo que todas já estivessem fechadas, e a garçonete de cabelo azul passaria os próximos 20 minutos virando a cabeça para todos os lados, tentando encontrar a fonte de tal frio congelante em um lugar sem nenhuma fiação de ar condicionado. E aquele frio… era muito frio. Uma corrente de ar que parecia quase sólida, atravessando a pele, penetrando nas veias.
Estava imóvel, vazio, indiferente, olhando fixamente para um ponto à sua frente. Para . Nada mais. Seu olhar era firme, arrisco dizer que até furioso, acompanhando cada mísero movimento dela, enquanto passava a mão por uma das nesgas de renda do suéter por debaixo do casaco, tentando ver se tinha deixado alguma parte de pele exposta à todo aquele frio bizarro. De repente aquela sensação ruim, esmagadora, angustiante que tinha sentido há dois dias atrás veio à tona. Uma lembrança quase apagada, soterrada no meio de todos os eventos que aconteceram depois, mas que agora parecia tão viva quanto o gelo maciço pairando no ar.
Ansiedade começou a tomar conta do meu peito. ainda balbuciava algumas palavras, e eu fazia o possível para agir normalmente, mas não dava para mentir: nunca vi uma coisa dessas antes. O que estava acontecendo? Por que esse cara não parava de olhar para ela?
— Mas o que você está olhando... — ela perguntou depois de alguns minutos, virando a cabeça para trás.
— Vamos embora! — falei abruptamente, tirando minha carteira do casaco e jogando algumas notas na mesa.
me olhou confusa e, em seguida, olhou o relógio na parede.
— Nossa, você tem razão, temos que ir. Ainda nem pensei na desculpa que vou dar à minha mãe caso ela resolva acordar no meio da noite. Será que existem pontos de táxi por perto?
— O quê? — parei, perplexo. — Olha, sei que eu não sou sua pessoa favorita do mundo, mas não precisa descontar na boa educação que ganhei dos meus pais. Jamais te deixaria pegar um táxi sozinha uma hora dessas.
— Nada pessoal, meu caro cavalheiro, mas se alguém por acaso me ver saindo de um carro desconhecido de madrugada, isso não vai ser nada-
— Levanta antes que eu te carregue, .
Ela arregalou os olhos para mim, mas levantou. Nosso momento descontraído, ou seja lá o que foi aquilo, tinha acabado.
— O que você tem?
Peguei na mão de e andei a passos largos para fora do bar. Escondi-a atrás de mim ao passar do lado do fantasma estranho, e ele não olhou para mim nem sequer uma vez; continuava com seus olhos cravados nela a cada passo. Mas que merda era essa?
Felizmente, ao sairmos do bar, ele continuou lá. Depois de 2 minutos, olhei de novo e ele tinha sumido. Fui tomado por um alívio instantâneo, mesmo sem ter a mínima porra de ideia do que tinha acabado de acontecer.
! — gritou, me fazendo acordar e voltar para o presente. Olhei para ela, que parecia irritada, e notei que ainda estava segurando a mão dela. Acabei puxando a minha tão rápido que ela franziu toda a testa. — Meu Deus, o que foi aquilo? Como você me arrasta de um lugar assim? As pessoas ficaram olhando.
— Foi... Foi instinto, me desculpa. Podemos ir agora?
— Instinto? — abriu a boca, abismada, com um toque de desprezo. — Seu instinto é sair pegando na mão de garotas pra fugir de bares no meio da noite? O que acontece depois? Um amasso no carro?
— É o quê? — não fazia ideia do que ela estava falando. Meu coração estava batendo no meu ouvido.
revirou os olhos.
— Tanto faz. Não me surpreenderia se você fosse um galinha de primeira.
Ela se virou e entrou no carro. Chequei o bar lá dentro uma última vez e fui para o banco do motorista.
— Onde você mora? — perguntei, puxando o cinto de segurança.
mal tinha acabado de responder o Queens e eu já estava dando a partida, talvez indo mais rápido do que quando saímos da Columbia. Estava com pressa de deixar aquele lugar, apavorado pelo desconhecido — e eu não me lembro a última vez que fiquei daquele jeito. Talvez quando vi meu primeiro fantasma ao pé da escada no Melbourne quando eu tinha 3 anos, e por isso não consegui controlar muito a questão do comportamento, mas me saí melhor do que Gina. Ela gritou e chorou tanto que Grace precisou medicá-la para se acalmar.
Mas aquilo lá dentro… eu não sabia o que era aquilo, mas sabia o que eu estava vendo: o fantasma estava na cola de e isso me perturbava mais do que a própria aparição.
Quando dei por mim, estava estacionando na frente da enorme mansão onde morava, nos arredores de Bayside. Não que me interessasse quanto dinheiro ela tinha, mas olhando para a fachada colonial, o enorme jardim cercado e o teto de pináculos altos, pelo visto era muito. As luzes estavam apagadas e uma faixa de neblina atravessava as luzes fracas dos postes como gelo seco, adiantando o frio que devia estar fazendo do lado de fora.
— Bem... Obrigada pela carona. — ela desatou o cinto de segurança e virou uma parte do corpo para mim. — Não preciso dizer que não podemos contar nada disso pra ninguém, não é? Nada mesmo. — ela tirou a jaqueta devagar e estendeu para mim, os olhos brilhando sob a iluminação em apenas um lado do rosto. — Valeu pelo café também, e tudo mais. Tomara que seus machucados sarem logo. Tudo fica pior no frio. Então, eu vou… — ela colocou a mão na maçaneta, mas não abriu. Parecia esperar que eu dissesse alguma coisa, mas não abri a boca. Ainda estava olhando para ela e pensando. Olhando para ela e para a escuridão bizarra do seu quintal. Olhando para ela e para as sombras das casas vizinhas.
Por fim, ela apenas se virou para ir.
, espera! — falei no último instante. — Sobre o assunto da Sandy... Acho que podemos trabalhar juntos.
arregalou os olhos.
— O quê? Você tá falando sério? — de repente, apareceu um sorriso, um muito maior do que no Simmer Down. — Não brinca. O que aconteceu? O que te fez mudar de ideia?
— Isso não importa. Você topa ou não?
— É claro que eu topo! Isso é demais! — ficou tão extasiada que se aproximou de mim para, talvez, me dar um abraço, mas desistiu disso na última hora. Em vez disso, a garota abriu a bolsa e rabiscou um número em uma folha quadrada sem pauta, colocando-a na palma da minha mão. — Liga pra mim amanhã bem cedo, manda mensagem, o que for. Precisamos discutir sobre isso urgentemente. — ela deu mais um sorriso e voltou a abrir a porta. — Se não me ligar até 12:00, vou aparecer no seu departamento. Não dá mais pra voltar atrás. — e com uma piscadinha, saiu do Jeep, saltitando até a entrada do enorme portão de ferro batido.
Meu estômago fez aquilo de novo, aquela torção esquisita que lançava um arrepio para minha nuca. Meu Deus, talvez eu precisasse mesmo de um médico.
Depois de ver entrando em casa, ainda aguardei mais uns minutos antes de ir embora.


Queria poder dizer que tinha dormido bem, mas duas horas não é tempo suficiente para isso. A imagem daquela aparição medonha não saía da minha cabeça, e nunca desejei tanto ver minha avó. Ela poderia não ter respostas definitivas, mas com certeza saberia do que eu estava falando. Acima de tudo: saberia que eu não estava louco. Quando chamar por ela não adiantou — nunca adiantava —, tentei falar com Gina, mas, sem surpresa nenhuma, encontrei a voz eletrônica da caixa postal. O jeito foi ficar andando de um lado a outro tentando lembrar de qualquer referência sobre tudo que eu vivi até hoje com os mortos, e se eu pudesse fazer uma ligação com aquilo.
Mas não havia referência. Eu nunca vi uma coisa daquelas antes, e pensei bastante nisso. Na maioria das vezes, eu era procurado pelos fantasmas que acabaram de morrer, e eles geralmente tinham problemas bem simples, apesar de irritantes: retire os botões de ouro do meu cardigã furado e enterre pra minha família não achar; coloque uma moeda naquela jukebox e toque “What a Wonderful World” uma última vez; diga à loira do drive-thru do McDonald’s que ela parece ser bem gostosa, e por aí vai. Vez ou outra sempre tinham aqueles mais pirados, que já estavam aqui há tanto tempo que mal se lembravam de sua própria identidade. Era com esses que eu ganhava grande parte das minhas cicatrizes e fazia minha mãe pensar que eu era completamente problemático, porque era um saco tentar despachar um fantasma que não queria ser despachado.
Mas eu nunca, jamais tinha topado com um espectro com aquela aura negra e perturbadora. Sua presença era tão sufocante que eu ainda podia sentir minha garganta fechando, o ar me esmagando. Totalmente sinistro. E saber que era o alvo dessa coisa estranha não ajudava em nada. É claro que fantasmas tinham lá suas desavenças com os vivos — ninguém era tão iluminado assim a ponto de morrer sem odiar ninguém. Mas essa gente não andava por aí perseguindo suas mágoas. Eles nem podiam se deslocar assim livremente. Mas esse cara… Ele esteve presente naquela festa e estava presente no bar, e deveria estar presente agora mesmo ao lado dela enquanto ela dorme. Isso começou a me deixar maluco, resistente a qualquer fio de sono. Aquilo… não estava só observando ela, parecia querer matá-la.
E não dava para deixar isso acontecer.
Pensei que ficando perto dela, talvez, eu pudesse vê-lo de novo e decifrar aquela coisa, tentar mostrar que o planeta Terra não tinha mais vaga para ele ou coisa assim. No momento do impulso, falei que me juntaria a ela no caso de Sandy, o que foi uma completa insanidade, mas agora não tinha mais volta. Em um final de semana, eu acumulei todos os problemas que evitei a vida inteira.
Antes de dormir, consegui ligar meu celular com algum custo e mandei uma mensagem para o número que havia anotado na folha branca. “Espero que saiba que seu número termina com 69”, digitei, desejando por um segundo que ela respondesse na mesma hora, mas eram 4 da manhã e isso seria mais preocupante do que bom, então engoli a ansiedade e deixei minha mente apagar.

⫘⫘⫘


A Columbia estava um caos naquela manhã. Tinham avisos e congestionamento por toda parte, meia dúzia de caminhões com caçambas e alguns rostos conhecidos dos principais noticiários locais. Todos se perguntavam como o restaurante do John Jay Hall tinha sido destruído na noite anterior justo em um momento de maior falha de energia desde o inverno de 1994, onde as câmeras não conseguiram filmar nada e nenhum elemento do cenário catastrófico apontava para alguma causa acidental. Aparentemente, a polícia falaria com pelo menos umas 10 pessoas que se auto intitularam como testemunhas oculares e juravam ter visto delinquentes escapando da cena de estragos, mas aparentemente, não conseguiam descrever seus rostos.
Tudo isso estava na primeira página do Fórum e nas conversinhas de corredor, fazendo eu me perguntar se tinha algo a ver com isso. Ela devia ser melhor mentindo atrás da tela de um computador do que pessoalmente.
E, claro, graças à grande faixa amarela na frente do John Jay, todo mundo ia ter que se apertar no Ferris Booth, onde o hambúrguer era mediano e a batata frita era murcha.
Mas antes disso, dirigi até o centro médico de Irving e bati na salinha da senhora Meals, a enfermeira titular do departamento, que quase teve um ataque ao ver meu estado. Pedi sigilo a ela como sempre e me coloquei aos seus cuidados mais experientes — Nova York já tinha me trazido problemas com os mortos antes, o que significava que a expressão chocada da velha Mila Meals deveria diminuir cada vez mais, mas aquela mulher era muito facilmente surpreendida. E não sei se é porque ela já era idosa, mas a desculpa dos meus supostos treinos de boxe sempre funcionavam muito bem.
Depois de meia hora, me sentia muito melhor com os curativos e remédios certos, mas Mila deixou claro que eu precisava ir para casa e descansar — e, claro, parar de lutar. Mesmo que eu não estivesse pensando em fazê-lo, agradeci a ela e me preparei para a próxima resolução de problemas do dia.
Não consegui ligar para porque meu celular tinha decidido funcionar a hora que queria, então fui direto para o Mudd Building, em uma sala no subsolo onde a galera do T.I. costumava chamar de "biblioteca”, que na verdade se parecia com uma lan house. O cômodo tinha várias mesas compridas e computadores de ponta, paredes de cor preta fosca, um carpete igualmente preto e uma prateleira com livros grossos de linguagem binária. Era aqui que meu amigo gostava de passar o tempo quando não estava comigo, então foi quase imediato enxergá-lo nos fundos, usando um headphone enquanto se concentrava em um jogo online.
Puxei uma cadeira e me joguei ao seu lado, dando uma leve cutucada no seu ombro. virou o rosto para mim por um segundo e estalou a língua.
— Não se pausa jogos online. — murmurou, voltando a olhar a partida.
— Se você estivesse ganhando, eu aceitava numa boa. Mas… — espiei a tela bem na hora em que ele acabou de receber um dano quase letal. — Tenho umas perguntas pro meu hacker particular.
não disse nada por alguns segundos, e em seguida digitou rápido algumas palavras no chat e retirou o fone, fechando a tela.
— Você sabe que eu recebo multa por abandonar a partida, né? Então, se for pra você me pedir pra baixar um dos seus livros de Anatomia na deep web, pode transferir o dinheiro pra minha conta agora.
— Tenho todos os livros que eu preciso, só quero bater um papo. — arrastei a cadeira para mais perto. — Na verdade… Meio que menti pra você. Sobre a surra que eu levei na festa. Eu sei quem foram os caras.
— Como é que é? — ele sussurrou, cruzando os braços. — Eu devia saber, ninguém mais sai batendo nas pessoas sem nem dizer o nome antes, isso é tão ensino médio. E por que não me contou isso quando te perguntei? Eles te assustaram tanto assim?
— Não foi esse o caso. Eu vou te contar, mas você precisa me prometer que além de não contar pra ninguém, não vai fazer nenhuma gracinha como ficar ligando e desligando o telefone deles ou clonar o cartão pra fazer compras em sex shop.
— Ei, eu só fiz isso uma vez! E o babaca mereceu.
— Você lotou o porta-malas dele de pintos de borracha e fez todo mundo pensar que ele era gay.
— Ele era gay. Por que acha que ele enchia tanto o seu saco? Queria chamar sua atenção e não tava sabendo pedir.
— Tá bom, que seja. Promete que não vai fazer nada. — cerrei os olhos, tentando parecer sério o suficiente. revirou os olhos até as órbitas e acabou assentindo. — Ok, eu… tive uma discussão com o filho do reitor. Ele e a -
— Você brigou com Park? — falou um pouco alto demais, e duas das únicas pessoas que não usavam fones enormes na cabeça se viraram para nós com uma cara feia. Dei um soco de leve na perna de e abri um sorrisinho amarelo de desculpas. — Foi mal, cara, mas... Como uma coisa dessas aconteceu? Você dançou perto demais da garota? Olhou demais? Foi vingança por ter enchido o cabelo dela de comida? Ele é bem mais medonho do que eu pensei.
— Não, não foi só ele. Tinha um cara chamado Ash, e mais dois-
— Ash?! Você está falando do Ash do esquema dos entorpecentes?
Shiu! — alguém balbuciou ali perto e eu escondi meu rosto entre as mãos, me perguntando porque eu insistia em ter conversas reveladoras com em lugares fechados.
— Espera aí, , como você sabe da existência do Ash? Só quem sabe sobre ele já... Você sabe... — ele fez um gesto ridículo de alguém aplicando uma seringa no antebraço e explodindo depois.
— Não foi pra nada disso que você está pensando. E como você conhece o Ash?
— Eu não o conheço necessariamente, só vi o cara uma vez numa festa aleatória em Marble Hill onde o Alvy comprou a melhor erva de todas as ervas. Só assisti tudo, mas pareceu aquelas cenas de 8 Mile, com seguranças grandões e tudo. Eu teria medo se ele me olhasse por mais de um minuto, se… — parou, ficando meio pálido de repente. — Ah que merda, não me diga que Ash estava junto com ! Não me fala que os dois te deram a surra juntos.
— Não foi bem assim… — suspirei e fechei os olhos por um instante. Eu não sabia como explicar aquilo sem ter que falar tudo. — Eu estava interessado em uma coisa que Ash vendia, foi isso. Mas na hora, o entrou no quarto e acabamos discutindo. Foi aí que rolou a briga.
agora virou o corpo quase inteiro para mim, os olhos arregalados no seu pico.
— Você é completamente maluco mesmo. — por um momento, eu não sabia se ele queria rir ou me sacudir. — Vai mexer desse jeito com gângsteres, cara. Quer dizer, não que faça parte de uma gangue, mas Ash sim, e eles andam juntos, e ninguém é idiota pra não ligar uma coisa na outra. Olha o estado em que ele te deixou. Ah, mas eu juro que se ele aparecer na minha frente-
— Você não vai fazer nada, esqueceu o que eu acabei de falar? Fora que ele só deu o primeiro soco, o resto do trabalho foi concluído pelos dois grandalhões que você disse.
— Covardes! — rangeu os dentes, e tinha uma expressão realmente furiosa. — Mas por que você brigou com o ? Teve mesmo alguma coisa a ver com a ? Cacete, não me diga que você e ela-
— Tá maluco? — neguei rápido, franzindo a testa. Fiquei um pouco horrorizado demais com o pensamento. — Claro que não, a garota não tem nada a ver com a história, eu nem conheço ela. Acho que eu só fui... exigente demais com o atendimento, só isso. E já tinha rolado um estranhamento entre eu e no primeiro dia da festa, então ele não deixou passar.
— Estranhamento?
— O cara queria usar meu carro de motel, me vi no direito de reclamar. — dei de ombros. ainda estava com a boca entreaberta e o queixo caído como se encarasse o paciente mais insano do hospital psiquiátrico. Isso porque, no meu lugar, ele com certeza teria se sentado na calçada naquele frio e esperado fazer o que quisesse fazer com de muito bom grado só para não ter que enfrentá-lo. — Eu já tava bêbado nessa hora, não importa. O que importa é que eu quero saber o que você sabe sobre o Ash.
primeiro me olhou como se eu tivesse falado que queria comer metal. Depois, voltou a esbugalhar os olhos daquele jeito e balançou a cabeça em negação várias vezes.
— Não. Não, não, não. De jeito nenhum. — ele moveu o dedo indicador de um lado para o outro. — Você não vai marcar uma revanche e nem ir tentar comprar essas porcarias sozinho de novo. Ficou doido de vez, ? Esse cara fabrica drogas, fabrica, igualzinho em Breaking Bad ou até pior. Todo mundo fala-
— O que todo mundo fala?
— Não, eu não vou falar.
— Eu não vou comprar nada dele, pelo amor de Deus. Tenho acesso ao estoque do Presbiteriano com uma assinatura, acha mesmo que vou me arriscar a ir atrás do Ash de novo?
— Então por que foi lá da primeira vez?
— Porque… ele faz personalizado, não faz? — lembrei na mesma hora das palavras de Sandy. E lembrei que eu não tinha acreditado nela. — O cara é tipo o aprendiz do Jesse Pinkman. Faz literalmente o que você quiser.
soltou um suspiro longo e apoiou um dos cotovelos no braço da cadeira, girando o pescoço rapidamente para olhar para os lados.
— Olha só, não tem muito segredo sobre o que o Ash faz ou não, o cara literalmente te apresenta os serviços quando te encontra. Ele pode misturar cannabis com aspirina e te deixar viajando por horas. O ecstasy dele é o melhor da região, e dizem que ele só não vende metanfetamina 100% pura porque os carteis de verdade não iam gostar. É um cara que tá literalmente no limite do perigo, fazendo tudo de um jeito discreto, mesmo que não tão discreto assim. Dizem que até os professores compram dele, e eu duvidava disso, mas depois que vi o treinador do time de Lacrosse dar aquele ataque no meio do campo, eu não-
— E sobre ele? O que tem sobre ele? — interrompi , tentando disfarçar minha pressa. Não queria saber de verdade sobre os prêmios de Ash de “melhor traficante estudantil de drogas”, queria o cara. A pessoa.
demorou um pouquinho mais para entender o que eu queria.
— Nossa, nada. — ele deu uma risada seca. Pela sua cara, eu poderia estar fazendo uma piada. — Na verdade, acho que nem os amigos dele sabem alguma coisa. O cara é conhecido por um nome falso e ninguém é interessado o bastante pra consultar a pauta de presença das aulas dele. Todo mundo sabe o que todo mundo sabe: que ele vende todo tipo de coisa. Que tudo dele é bom. E, por algumas opiniões alheias, que ele é descolado. Fora isso, nada.
Suspirei, coçando um dos olhos. Nada daquilo ajudava.
— Não achei ele nada descolado. Sabe se ele andava namorando alguém?
— Não faço a mínima ideia, . Caras descolados saem com uma garota diferente a cada festa, isso é o básico. Tenho certeza que elas se animam com essa coisa de bad-boy-que-provavelmente-carrega-uma-arma, o que é muito injusto com as pessoas de bem aqui. Mas, espera, eu acho que… — ele juntou as sobrancelhas, lembrando de algo. — Tenho quase certeza que já o vi com a Sandy. Sabe a Sandy Silo, a garota que morreu semana passada? — um arrepio passou pela sua espinha.
era o tipo de cara que acreditava que falar o nome das pessoas mortas automaticamente era um ritual de invocação. Bom, pelo menos ele poderia ficar tranquilo com relação a isso.
— Sei… — assenti. — Então todo mundo sabia deles?
— Não todo mundo, até parece. Ela era a maior nerd, o Ash não sai com esse tipo de garota. O negócio dele são líderes de torcida gostosas ou motoqueiras gostosas. Mas eles foram vistos juntos, mais de uma vez. Talvez ele tenha feito uma caridade, vai saber. — deu de ombros distraído, e pareci compenetrado enquanto me lembrava do rosto de Ash quando foi questionado sobre ter matado Sandy. E do jeito como falou dela para . Um jeito que não combinava com alguém que estivesse fazendo caridade. — Mas por que o interesse agora em quem ele namorou? Se ele já é assustador, imagina só com quem ele dorme.
— Você quer mesmo julgar com quem as pessoas dormem? Já olhou o seu histórico? — arqueei as sobrancelhas. Ele me deu um soco no braço imediatamente, praguejando. — O quê? Só tô dizendo que talvez também fosse interessante pra você viver no anonimato em pleno século XXI se quer tanto fazer sucesso com as garotas.
— Desculpa te decepcionar, mas quero uma garota pra quem eu possa contar tudo, inclusive da minha rota favorita do League of Legends. E pelo menos eu tenho um histórico. — resmungou e começou a desligar o computador. — E viver assim é conveniente pro negócio dele. Afinal, como iriam entregar alguém que ninguém sabe o nome? E mesmo que soubessem, é quase impossível provar isso por causa do nas costas dele, o que já é ameaçador para qualquer um por si só. Ninguém chega perto do filho do reitor. — ele puxou a mochila debaixo da mesa. — Onde vamos almoçar hoje? Com todo esse circo sinistro que aconteceu no John Jay. — tremeu. — Não quero chegar perto de lá, cara. Fica muito perto do alojamento feminino. Parece estar até… mal assombrado.
Dei um sorriso de lado e caminhamos para fora da sala. Ele mal fazia ideia.

⫘⫘⫘


Mais uma sessão de burburinhos e deduções estava acontecendo durante as minhas aulas naquela tarde. Parte delas eram adivinhações em relação ao que poderia ter causado o alvoroço no John Jay e parte sobre a festa na Dungeons. Depois do professor ter de pedir silêncio mais de duas vezes, desisti de prestar atenção, não que eu já não estivesse tendencioso a isso. À medida que qualquer distração acontecia, aquela aparição horrenda voltava a tomar meus pensamentos, fazendo com que eu consequentemente encarasse meu celular e visse que ele continuava sem resposta de . Isso já estava me deixando agoniado, e já eram quase 15h00. Será que ela tinha faltado às aulas? Será que estava tão cansada que dormiu até agora? Será que não estava em casa? Meu Deus, precisava urgentemente focar naquele esquema de biologia molecular para não enlouquecer.
Quando a aula na sala oval finalmente se encerrou, ouvi meu celular vibrar uma, duas e três vezes. Puxei-o do bolso e soltei um suspiro longo quando vi o nome dela no visor, seguido do nome de , que dizia que esperaria na frente do Lerner Hall para irmos ao Super Nice tomar um expresso com urgência. Abri as mensagens de logo depois:
“E o seu número termina com 666, agora cala a boca?”
“Me encontra no almoxarifado, consegui uma chave. Agora.”
Meu coração disparou. Minhas aulas aconteciam no centro médico em Washington Heights, e até chegar em Morningside Heights eram menos de 10 minutos dirigindo, mas ainda assim, esperava que não se importasse de esperar um pouco. Juntei minhas coisas rapidamente e atropelei algumas pessoas ao sair da sala, enfiando mochila e jaleco no banco de trás de um jeito desordenado. Já no banco do motorista, enterrei o pé na embreagem e, em poucos minutos, já estava na frente do lugar.
As autoridades tinham se dispersado da frente do John Jay àquela hora, restando apenas os responsáveis pela reforma dos danos, que andavam para lá e para cá no primeiro piso, sem se atentar em mim, um cara que entrou sorrateiramente sem seguir para a direção do elevador que levava aos dormitórios. Encarei a porta azul já conhecida, observando a escuridão impenetrável de dentro através da abertura de vidro, já pronto para pegar o celular e perguntar à onde ela estava, quando essa mesma porta abriu em um solavanco e quase pegou na minha cara — de novo.
Ela me puxou para dentro com rapidez, fechando a porta logo depois. Uma luz amarela jorrou acima de nós dois, mostrando detalhes do cubículo que não dava para ver ontem, como o quanto ele era pequeno. Se ela desse mais um passo, estaria colada comigo, colada de um jeito desconfortável, então fiquei parado enquanto ela olhava através da fissura da madeira para ver se não existia chance de alguém entrar de repente. Considerando a quantidade de poeira e alvejante vencido naquela prateleira, a resposta era óbvia.
Observei-a sem dizer nada. Ela estava bem. Ao menos parecia bem. Tinha um pequeno curativo no seu cotovelo onde ela havia se machucado ao cair do muro, mas fora isso, a garota estava perfeitamente saudável. O cabelo loiro solto, com duas mechas presas atrás, uma blusa de lã em gola alta, uma saia preta quase camuflada com uma meia calça escura, terminando tudo com uma bota marrom que subia até seus joelhos. Quase perguntei a ela se era normal se arrumar tanto em uma segunda-feira, mas isso poderia soar como um interesse que eu não tinha. Quando ela se virou, vi que não havia olheiras em seus olhos e nem aura diabólica alguma atrás dela.
. — o grito dela furou minha bolha de concentração, e vi seus dedos estalando na frente do meu nariz. — O que deu em você? Tem alguma coisa no meu rosto?
— Tem. Quer dizer, não. Foi mal, estou meio distraído. Não dormi muito bem essa noite. E você?
— Eu o quê?
— Você dormiu bem? Está tudo bem?
— Ah... Sim. — ela franziu o cenho, confusa com a pergunta. — Não dormi as horas necessárias, mas quem se importa? A gente precisa falar sobre-
— E os seus machucados? Deu um jeito neles?
— Eu mesma cuidei disso, tenho um kit de primeiros socorros básico. Não é a primeira vez que eu faço isso.
— Como assim não é a primeira vez? — me apressei. estava torcendo a testa mais uma vez.
— Porque as pessoas se machucam. E nem todas correm pro hospital por causa de um raladinho. Qual seu problema hoje? Vamos direto ao ponto.
Ela estava me olhando como se eu fosse um maluco, e sei que eu estava mesmo parecendo um com toda aquela ansiedade, mas de repente eu não sabia como agir. A qualquer momento, o fantasma poderia aparecer, e quando aparecesse, não sabia se ele faria algo, como jogar uma daquelas vassouras na cabeça de , ou ficaria apenas parado, fitando-a daquele jeito macabro de antes. Conseguiria chamá-lo para conversar em outra hora, sem ela por perto? Ele falaria comigo?
Percebendo meu silêncio, continuou:
— É o seguinte, o que vou te dizer é um pouco chocante, mas isso não saiu da minha cabeça nem por um minuto e eu preciso saber se você está disposto a qualquer coisa pra descobrir quem matou a Sandy.
— Sim... Sim? Isso foi um pouco assustador, o que você está pensando?
— Estou pensando que, antes de irmos atrás de um assassino, precisamos saber como ela foi assassinada. Sei que quando a gente fala em overdose, a polícia não coloca a culpa em alguém, mas sei que Sandy não usava drogas. Também sei da história do Lorazepam. Graças a você. — ela apertou a alça da bolsa com um pouco de força. — Sei que Ash fez isso porque ela pediu, e sei que ela estava passando por uma fase turbulenta, mas… É estranho. Ash entende de medicamentos, aumenta os componentes de um, diminui em outros, personaliza do jeito que você quiser. É muito conveniente ter dado algo para Sandy e ela morrer no dia seguinte.
— Então você acha…?
— Não é sobre isso. Primeiro precisamos saber o que exatamente Sandy tomou. A polícia não achou mais nada no quarto dela depois, nenhuma única pílula de aspirina, então ele não deu uma cartela inteira, só a exata quantidade que agora tá se perdendo no organismo dela. Não dá pra perguntar isso para o Ash, precisamos ver. — ela soltou um longo e pesado suspiro. — Precisamos da autópsia.
— E você acha que essa não foi a primeira coisa que eu pensei? Mas não dá, os pais dela já negaram, e não tem mais-
— Eu estou dizendo de nós fazermos isso, . — ela me interrompeu, abaixando o tom de voz na última frase. — Quer dizer, você fazer isso.
Fiquei sem fala por alguns segundos. me olhava com um certo desespero pela minha resposta. Quando reencontrei minha voz, só consegui proferir a seguinte coisa:
— Você ficou maluca?
— Eu sei, eu sei. — ela respirou fundo, balançando as mãos. — Sei que isso parece loucura, mas eu não sei de que outra forma forma a gente pode descobrir isso, tá legal? Perguntar mais coisas ao Ash sobre esse assunto não é uma opção, ele saberia o que eu estou tentando fazer, e também tem o-
— Se liga, . Talvez você tenha se esquecido de que precisamos de uma coisa muito importante pra fazer uma autópsia, que é o corpo da pessoa! — falei entredentes, ainda com a expressão de choque. — Aliás, depois de um tempo, não seria mais uma autópsia e sim uma exumação! Você tem ideia de que está propondo que desenterremos um cadáver?
— Ela ainda não foi enterrada.
— Que seja, quer invadir o necrotério do hospital e puxar o corpo da Sandy do frigorífico? Pra fatiar em busca de provas? Tem ideia de como isso é uma piração?
— Eu não falei em fatiar…
— Olha, é muita gentileza sua confiar tanto nas minhas habilidades de cortar o corpo de alguém, mas qual é, a garota acabou de morrer. O corpo dela mal começou a deterioração…
— É exatamente por isso! Tenho certeza que ainda dá pra descobrir alguma coisa enquanto ela tá no congelador, porque depois disso, acabou. Sandy vai ser enterrada daqui a dois dias, porque a maluca da mãe dela não quis mover um dedo para transferir o corpo para a própria cidade. Ela nem se importa se a história que contaram sobre a própria filha é verdade, se Sandy não tinha outros motivos, se-
— Foi pra isso que você quis tanto a minha ajuda? Por que não quer ir pra cadeia sozinha? Estou mesmo impressionado, .
Ela torceu a boca, e achei que veria raiva ali, mas não. parecia envergonhada, até frustrada, as bochechas corando e descorando em um instante.
— Eu sei o que parece. Mas eu não quero te ferrar, de jeito nenhum. E talvez eu esteja ficando um pouco desesperada porque o tempo está passando e as pessoas estão esquecendo, mas se nós não conseguirmos nada que prove que Sandy não cometeu suicídio, a polícia nunca vai reabrir esse caso, entendeu?
Abri a boca para protestar, mas as palavras se perderam. Eu realmente não sabia o que dizer, e mesmo sendo totalmente contra aquela ideia de merda, não sabia como convencer disso. Realmente era necessário provar que Sandy não havia cometido suicídio, precisávamos ter um assassino, mas fazer isso daquela forma nos levaria à consequências desastrosas. E eu nem digo da polícia em si, que já seria calamidade o suficiente, mas não sabia do que eu sabia: não se saía mexendo livremente assim nos cadáveres alheios, ainda mais se a alma penada ainda estivesse por aí. Isso era desconfortável para caralho. Fantasmas mantinham certa ligação com seus corpos físicos, e nunca era bom subestimar essa conexão. Já topei com uma fantasma que não queria ir embora de jeito nenhum porque não queria ser enterrada com brincos cor-de-salmão. Outro estava com um humor capengando a cada dia mais que seu corpo era comido embaixo da terra. Um dizia que conseguia sentir o cheiro da putrefação no seu estado espiritual. Era complexo, era chato, e chamaria a atenção de Sandy. A última coisa que ela precisava agora era de dois enxeridos abrindo seu corpo sem mais nem menos.
ainda me encarava, esperando uma resposta.
, olha... Não vamos fazer isso, tá bom? Podemos pensar em outra coisa. Tenho certeza que existe outra solução pra isso, uma não tão radical.
— Então eu imploro que você me diga qual é. — ela deu de ombros, um pouco menos ansiosa do que antes.
Mordi os lábios. Na verdade, realmente havia um jeito, igualmente não muito recomendado. Uma coisa que só eu poderia fazer, mas não sabia como iria convencer disso.
— Você confia em mim? — perguntei sério, me aproximando um pouco de seu rosto para falar mais baixo. Ela abriu e fechou a boca algumas vezes, hesitante.
— Acho que ainda não sei responder isso.
— Eu quero evitar que você se meta em uma enrascada, então só dessa vez, será que pode confiar um pouco em mim?
— Se eu confiar, vai me dizer o que pretende fazer?
— Não vou.
!
— Não posso explicar, mas vai dar certo, eu juro. Pelos próximos dois dias, eu preciso que você não faça nada, me entendeu? Sai com suas amigas, assiste um jogo dos Lions, adianta suas matérias do Natal, mas não faz nenhuma loucura. Por favor? — olhei no relógio do celular e vi que já tinha deixado esperando tempo demais, e eu não estava afim de responder mais perguntas naquele dia. — Tenho que ir, meu amigo está me esperando. A gente pode continuar essa conversa depois.
tentou dizer alguma coisa, mas, por fim, só assentiu e aceitou. Achei que precisaria passar alguns minutos acalmando ela, ou ouvir coisas como: “Se essa sua ideia não der certo, você vai ver só”, mas nada disso veio. Passei por ela e girei a maçaneta, pronto para sair, mas não esperava que ela fosse sair junto comigo ao mesmo tempo. E, infelizmente, o corredor não estava tão vazio como eu esperava.
Tive poucos momentos na vida em que literalmente fui "pego em flagrante". Resultado de muitos cálculos e organização das situações, o que significava que eu mentia e escondia muito bem o que andava fazendo. Mas já estava claro que ultimamente minha vida estava passando por um enorme kamikaze, um que estava preso de cabeça para baixo permanentemente. Então dá para imaginar o quão embasbacado fiquei ao ver que estava passando exatamente na frente da porta azul, no exato momento em que eu e deixávamos a sala.
Acho que chocado era pouco para descrever a cara que ele realmente fez.
? — disse ele, levantando os olhos do celular, olhando de mim para . — Hã… Você…
Ninguém disse nada. Literalmente, fiquei sem palavras diante de tanto constrangimento.
, mas… Como você veio parar aqui? Não disse que ia me esperar lá na frente? — dei uma risada seca, me aproximando dele e dando um tapa leve em seu ombro. Ele me olhou como se estivesse me sacudindo mentalmente.
— É, e você demorou, então eu estava indo até o meu quarto pegar um carregador. — ele olhou novamente de mim para , ainda meio chocado, ainda me pedindo uma explicação.
Fiquei calado novamente, e tampouco falava. Na verdade, ela parecia louca para sair correndo.
— Então, você quer um café, né? Eu também tô morrendo de vontade de um, é melhor a gente se apressar se não as mesas no Super Nice vão estar todas lotadas. Ah, essa é a , você a conhece, né? — apontei para ela sem olhá-la, balançando os braços com agitação. Não esperei que respondesse. — Ótimo. Agora vamos, eles só tem os pretzels recheados nos primeiros 15 minutos. E relaxa, pode usar meu carregador. — falei sem pausas, procurando não dar espaço para uma interação de . Ele ficou ainda mais confuso e se deixou ser arrastado por mim direto para longe do corredor, cumprimentando brevemente antes de sairmos.
Caminhei apressado para fora, até deixando para trás em um momento. Quando chegamos ao meu carro, já estava preparado para o que viria.
— Você quer começar a me explicar o que diabos você estava fazendo preso com em um cubículo agora ou depois do capuccino? — perguntou enquanto entrava no banco do carona.
— Não é nada disso que você está pensando. — respondi enquanto pegava um cigarro do maço que eu guardava no porta-luvas para situações onde eu, bom, não estava afim de falar.
— Já saquei, não quer me contar. — disse enquanto me oferecia um isqueiro ao ver que eu tateava meus bolsos. — Mas se você pensa que eu vou te deixar em paz até saber dessa história, pode parar de sonhar.
— Não tem história nenhuma. Eu e ela só... Nós só estávamos conversando.
— Porra, já viu quanto espaço tem nesse lugar pra conversar? Tá achando que eu sou idiota? — ele soltou uma risada perplexa. Não soube o que responder. — , eu juro que não tô te julgando para o que quer que tenha acontecido naquela salinha. Muito pelo contrário. É a , cara! Ela é tipo a responsável pelas fantasias de qualquer pessoa que goste de mulher nesse campus, sacou? O problema é que ela tem namorado! E não um namorado qualquer, ela namora o , e você já sentiu na pele que não dá pra arrumar um problema com aquele maluco. Tava ciente disso quando resolveu ir conversar com ela?
— Você não tá entendendo-
— Quem não tá entendendo é você, ! Aquele papo da sua briga com ele não ter sido por causa dela foi mentira? Hoje mesmo você disse que nem a conhecia, e agora saem de uma cena totalmente comprometedora juntos. Já imaginou o que aquele maluco faria se tivesse visto aquela cena em vez de mim? Ou outra pessoa, que seja, você sabia que ele tem mais informantes que o FBI? Eu estou te falando, esse mauricinho é um doido de primeira. Já ouviu os rumores sobre ele? São medonhos, dizem que ele já atropelou e matou um cara, mas a história foi toda acobertada e ele nem foi à julgamento. Teve outra vez que ele…
Liguei o carro e deixei falando. Eu não precisava saber do que era capaz; ele já tinha me deixado bem claro que o que ele quisesse, simplesmente teria. Isso não o tornava assustador para mim, pelo contrário. Até achava um pouco de graça, como se olhasse para uma criança mimada buscando qualquer coisa que acrescentasse no ego. Talvez lidar com fantasmas medonhos tenha me tirado o temor dos vivos, vai saber.

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Não falei com de novo pelo resto do dia.
Talvez ela estivesse preocupada demais para me mandar uma mensagem, como se aquilo fosse chamar a atenção de mais alguém. Ela era extremamente cautelosa com imagem e reputação, e acho que deveria ficar um pouco ofendido com isso, porque a garota preferia morrer a ser vista comigo, mas sei que aquele boçal de namorado tinha algo a ver com isso. tratou de me lembrar desse fato o caminho inteiro indo e voltando do Super Nice.
Mesmo assim, senti que ela iria atender o meu pedido. confiaria em mim, seja lá como e porquê. E por conta disso, eu precisava encontrar Sandy de novo o mais rápido possível. Depois da noite passada, não a vi em lugar nenhum do campus, e isso me preocupava — a garota tinha entrado oficialmente no modo fantasma problemático.
Para definir a situação: um fantasma raivoso é algo extremamente incômodo, maçante e desagradável. Eram os responsáveis que mais tinham me ferrado até hoje, porque não se tratava mais de resolver os problemas deles, se tratava de impor limites. Depois de deixarem essa vida, os mortos que ainda não estavam preparados para deixar essa terra geralmente vagavam com uma ideia fixa na cabeça, a pendência que eles tanto precisam resolver para enfim atravessarem o limbo — ou irem para o céu, ou o inferno, ou para a próxima vida, a lista de teorias era infinita. Eles perambulavam por aí até encontrarem um pobre ser humano que, por um infeliz acaso, consegue vê-los e automaticamente ajudá-los — mais conhecidos como eu, Gina e outras pobres pessoas. Um fantasma novato era fácil de ajudar, e até tinham prioridade na minha lista de tarefas. Ao verem que o problema da sua ideia fixa havia sido resolvido, eles simplesmente partiam, e nunca mais apareciam.
O problema era quando um fantasma começava a se desviar dessa ideia fixa. Quando encontrei Sandy no dia em que morreu, ela tinha apenas uma dúvida: descobrir se Ash a matou, com intenção ou não. Porém, mais rápido do que jamais vi antes, a garota esqueceu desse pensamento e fez algo que era a ponta do iceberg de uma enorme dor de cabeça: quis resolver as coisas por conta própria. Da garota assustada que não entendia como sua vida acabou daquele jeito, ela upou para uma versão determinada e furiosa. E isso, além de grave, era muito, muito estranho.
Não é que Sandy deveria acreditar cegamente na resposta de Ash e se mandar. Fantasmas também têm direito a uma dose de justiça. Mas o jeito como ela decidiu não acreditar nele, não foi normal. Isso era de se esperar de fantasmas que estavam vagando há tanto tempo que mal se lembravam de sua identidade e muito menos do porquê ainda estavam aqui; isso os corroía tanto que os deixava totalmente surtados e perigosos, com uma única meta de perseguir, perturbar, assombrar e até matar outras pessoas. 1º regra da função mediador: nunca deixe que um Poltergeist mate uma pessoa. Isso vai além de todas as fronteiras.
Mas uma garota morta há uma semana não tinha todo aquele ódio — até fantasmas brutalmente assassinados levavam um tempo até toda a frustração vir à tona. Então, eu precisava achá-la. Sem chance de deixar uma garota morta barulhenta e despreparada zanzando por aí arrastando mesas, abrindo portas e resfriando salas. Ela podia mandar bem na telecinese, mas eu tinha mais músculos — o suficiente para pará-la por um tempo, pelo menos.
Eu ainda tinha uma aula depois que voltei do Super Nice, mas a Dra. Hannah e sua palestra sobre feminismo teriam que esperar. Deixei no mesmo prédio das engenharias e cruzei o campo de Morningside Heights, desde o primeiro edifício até o último, o que totaliza uns seis quarteirões, chamando por Sandy o tempo todo. Não queria acreditar que ela não estava por perto — isso seria fodido, muito fodido. Mas os métodos padrões de invocação não estavam dando certo, o que era péssimo, porque aí significava que eu teria de usar outro método. E nem preciso dizer o quanto era desagradável invocar um fantasma.
Deixei meu carro no estacionamento e andei até o Blue Bottle Coffee, passando pela porta da entrada bem na hora que uma chuva amena começou a cair. Tinha acabado de tomar um café, mas a verdade é que aquilo que tomei com não era café de verdade. Meu amigo gostava de cappuccino e bebidas que levavam cafeína sem necessariamente ter o sabor puro da bebida amarga, e eu era obrigado a entrar nessa onda e pedir um mocha às vezes, fazendo careta pelo leite e pelo chocolate, mas me esforçando ao máximo para suprir sua linguagem de amor tempo de qualidade. É, ele se importava muito com essas coisas.
Pedi um expresso duplo e me sentei em uma mesa ao lado da janela. A garota da recepção tentou disfarçar o olhar atravessado que lançou para mim e o curativo no nariz, torcendo por dentro que eu não fosse um meliante que, do nada, começaria a quebrar coisas. Não julgava ela — a gente via de tudo em Nova York. Tomei um gole do café e puxei o iPad, sentindo a queimação do gosto fazer cócegas na minha língua.
Decididamente, super apaixonado por café e nada apaixonado por imitações de café.
Mandei mais um e-mail para Gina. Já era o 3º desde o final de semana, e mesmo que eles fossem curtos, já significavam que eu estava um pouco apressado. “... E aí, se a situação ficar feia, vou precisar de você pra cavar uma cova. Botas de látex continuam combinando com o seu cabelo?”, mandei uma carinha sorrindo, mas creio que esse tipo de piada só tinha graça entre a gente.
O céu estava na cor de hematoma quando saí do Blue Bottle e voltei ao estacionamento, desistindo de procurar por Sandy. Quando fantasmas não queriam te atender de forma natural, não havia nada que você pudesse fazer. Aprendi isso com minha avó ao longo dos anos, mesmo que ela seja um caso muito específico na comunidade do além: só vinha quando queria, e ainda com sermão para dar. Talvez ela pudesse me ajudar a acalmar Sandy naquela situação, mas não vou contar com isso. Ela poderia dizer que eu estava sendo preguiçoso. Peguei as chaves no meu bolso ao mesmo tempo que meu celular apitou com uma mensagem, e o nome de na tela apareceu com a pergunta: "Onde você está?"
"No estacionamento, não é? NÃO SE ATREVA A IR EMBORA SEM MIM!"
“Jogo dos Knicks no Bodega 88. Bora?”
“Eu sei que você vai dizer não, mas é meu dever chamar.”
Comecei a digitar uma resposta enquanto entrava no carro, dizendo que estava com muita pressa e que ele tinha menos de 5 minutos para aparecer e não ficar a pé, quando vi uma pessoa conhecida há poucos metros à minha direita.
Estacionar atrás da pilastra todas as vezes te dava o privilégio de ver e não ser visto. Foi assim que, do outro lado do pavilhão, em uma fila de motos que preenchiam as delimitações atrás de linhas amarelas, vi Ash caminhar despreocupadamente com suas botas pesadas até se aproximar de uma Harley-Davidson e montar na sua carroceria. Na mesma hora, me abaixei no banco do motorista até que apenas a parte superior da minha cabeça fosse visível. Ele descartou o cigarro que fumava no chão e remexeu nos bolsos por dentro do sobretudo até pegar um celular. Estava vibrando alto por uma chamada recebida. Ele atendeu com um sorriso — esse cara sorria! — e começou a falar sem parar. Não deu para ouvir muita coisa da conversa; Ash sabia mesmo falar baixo, mas aquele sorriso ainda estava no rosto dele, então não dava para acreditar que estivesse falando sobre o próximo malote de codeína ou quem era o otário que estava devendo ele. Na verdade, sinto que ele não sorriria daquele jeito nem se estivesse ouvindo sobre os lucros do final de semana. Parecia um sorriso diferente, mas que todo mundo reconhece quando vê: o sorriso de quem está falando com alguém que gosta. É um tipo de sorriso que não fica só na boca.
De repente, quis que ele parasse de sorrir. Na verdade, quis que ele calasse a boca, ligasse aquela moto e vazasse dali. Porque nada que ele estivesse fazendo seria tão alarmante quanto ao que estava na sua frente — ou melhor: quem.
Sandy se materializou do nada em frente a Harley-Davidson preta de Ash, e por um momento prendi a respiração. Ele conversava calmamente no telefone, mas os olhos dela estavam fixos, arregalados, completamente medonhos, o que denunciava algo que eu já sabia, e que estava despreparado para ver:
Ela vai surtar, ela vai surtar. Eu tinha certeza disso. Imediatamente, usei toda a força estranha de minha mente para chamá-la, sussurrando quase que inaudivelmente, implorando para que ela fosse embora. Não posso dizer que ela me ignorou; em vez disso, Sandy virou o rosto lentamente para mim, e me fitou por um momento. Estava assustadoramente macabra com aquele olhar, quase abrindo um sorriso sugestivo. Balancei a cabeça inúmeras vezes em negação, cerrando os dentes. Quando ela simplesmente me ignorou e voltou a olhar para Ash, e quando as vigas de metal acima de sua cabeça começaram a tremer vigorosamente, eu soube que aquilo não ia terminar bem.
Ash finalmente pareceu perceber algo errado. Xinguei. Saiu até alto demais, mas ninguém além dela me escutaria, já que as vigas agora estavam tremendo violentamente e tentar bancar o diplomata não estava fazendo a garota parar. Mas antes disso, precisava fazer algo mais urgente, que era impedir que Ash fosse esmagado pela barra de metal que estava prestes a cair na sua cabeça a uns 8 metros de altura.
Saí do carro em um solavanco, vendo que Sandy ainda sorria daquele jeito medonho. Escutei o “crac” da viga justo no momento em que Ash tirou o telefone do ouvido e inclinou a cabeça lentamente para cima, presenciando uma das instalações cederem, e a viga ficando pendurada por um dos lados.
— SAI DAÍ! — gritei a plenos pulmões, forçando as pernas a correrem o mais rápido que conseguiam. — PARA COM ISSO AGORA, SANDY! VOCÊ VAI MATÁ-LO!
Nisso de gritar para alertar o cara, talvez eu a tenha deixado mais irritada — ou até mais ansiosa pra terminar o serviço, porque em seguida a outra instalação da viga se rompeu em um estalo e atingiu em cheio não só a moto de Ash, mas como todas as outras vizinhas à dele, causando um estrondo parecido com uma bomba e fazendo alguns dos carros acionarem o alarme pelo impacto.
A viga estava ligada diretamente a uma pequena parte da rede elétrica do estacionamento, e toda a alarde de faíscas e lâmpadas explodindo me cegaram por uns minutos, me jogando para trás. Automaticamente, protegi meu rosto com os braços, respirando poeira e fuligem. Quando voltei a mim, Sandy ainda estava no mesmo lugar com um olhar carregado de ódio e ouvi claramente um grito vindo do meio dos escombros. Levantei rapidamente e avistei Ash, que tinha conseguido pular para o lado no último segundo da queda da viga, mas não conseguiu salvar uma de suas pernas, que estava presa embaixo do enorme bloco de metal.
Uma poça de sangue começou a se formar na área onde sua perna havia sido soterrada, e vi que a barra de ferro que ligava à viga na pilastra havia penetrado logo acima do joelho. Ele gemia de horror, os olhos agitados de medo, o corpo ainda processando a dor.
— Ei, você consegue me ouvir? EI! — gritei, balanço-o um pouco para testar seus estímulos. Tateei meus bolsos rapidamente e percebi que tinha deixado meu celular no carro na pressa de correr até aqui, o que me deixou frustrado.
— Me... ajuda... — ele disse grogue, as mãos tremendo, o rosto lívido de pavor. Olhei mais de perto. A perna não tinha sido totalmente esmagada por puro milagre, mas o ferro atravessando o fêmur não era um bom sinal. — Tá doendo tanto, por favor, me ajuda! Cara, por favor...
— Fica calmo, eu vou tirar você daí. Aguenta mais um pouco! — arfei, fazendo a primeira coisa que passou pela cabeça: levantei e empurrei a viga para longe, o que não foi nem um pouco fácil. A coisa devia pesar duas toneladas, e ouvi Ash gritando quando a coisa se moveu por cima de seu pé. — Não se mexe. Preciso imobilizar sua perna.
Ele começou a balbuciar reclamações, palavras desconexas, coisas que vinham de seu delírio de dor, mas nenhuma delas foi mais alta do que a voz que disse:
— É tudo culpa sua, . — Sandy decidiu falar, depois de minutos em um silêncio tão brutal que me fez esquecer de sua presença. Ela não tinha se mexido nem um centímetro desde a queda da viga, e ainda olhava fixamente para Ash. — Você fez isso comigo! Agora se arrepende e chora pelos cantos como se eu fosse acreditar, seu miserável? Você não merece nem isso, seu filho da-
? O que você disse? — olhei diretamente para ela, a confusão estampada em meu rosto. Aquele era o nome dele? Como ela sabia o nome verdadeiro de Ash se tinha me deixado claro que ele nunca a contara?
Me pareceu estranhamente pertinente perguntar isso para ela naquela hora, mas é claro que foi uma péssima ideia. No instante seguinte, Ash agarrou com força a barra da minha camisa, me fazendo girar o corpo para ele. As veias em sua testa estavam dilatadas e seu rosto estava contorcido de sofrimento, de forma que eu tinha a certeza de que ele iria desmaiar a qualquer momento. Mas ainda assim, o cara abriu a boca para pronunciar:
— Como... — sua respiração estava ofegante; ele tentava desesperadamente se concentrar na frase ao invés da dor. — Como você sabe o meu nome? Com quem está falando? Sandy...
Mas ele não foi capaz de terminar a frase. Seu aperto afrouxou e o corpo desabou para trás. Merda, merda, merda. Olhei por sobre o ombro e Sandy havia desaparecido, e se eu não tirasse Ash daquele estacionamento naquele momento e o levasse para o hospital, ele poderia dar adeus à uma das pernas. Mesmo ainda debilitado pelo final de semana, fiz o maior esforço que consegui para arrastar de vez o restante do metal em cima de seu pé e consegui ver melhor o sangramento na coxa, escapando da perfuração do ferro e jorrando para o piso, empapando tanto a calça dele quanto a minha. Arranquei o casaco imediatamente, pressionando o ferimento o máximo que consegui. Se arrancasse essa barra aqui, ele morreria, mas se continuasse sangrando daquele jeito, o cara não perderia apenas a perna. Eu só precisava de um minuto para correr até o carro e pegar o celular, só um minuto.
Chequei seus pontos vitais e parei de tocar na sua perna. Me levantei e me preparei para correr de novo. Foi então que uma pancada em algum lugar da minha cabeça embaçou minha visão, me inebriando por alguns segundos. Senti minha cabeça sendo puxada para trás, e de repente estava no chão.
Tudo aconteceu em câmera lenta. Avistei Sandy e seu sorriso horripilante, irônico, debochado. Ao lado dela, um vulto negro, destemido, assustador.
Meus braços não me obedeciam, e eu sentia meu peito se afundando, e minha consciência sendo bifurcada. Como se cordas gigantes e espessas fossem lançadas em minha direção e se agarrassem a mim, e elas me puxavam para uma escuridão desconhecida. Um novo tipo de pânico me tomou. Não era o medo da morte, parecia o medo de ser... tomado. Eu sentia a tentativa de separação do meu corpo com minha alma de forma atenuante. Era desesperador, uma angústia sem fim. A escuridão foi me tomando cada vez mais, e de repente eu não via mais nada, não sentia mais nada, e estava no nada, vazio, escutando apenas uma voz que parecia tão ao longe, mas fazia todos os pelos do meu corpo se eriçarem: uma risada maléfica, inescrupulosa, cortante. E foi ficando cada vez mais longe até que não pude distinguir mais coisa alguma.




Continua...


Nota da autora: Oiê! Bem-vinda ao meu tesouro!
As palavrinhas no dicionário são poucas e muito rasas pra explicar o que toda essa história significa pra mim. Toda escritora que se preze tem um sentimento especial sobre a sua primeira obra, e os meus são tão grandes e expressivos que não cabem aqui nessa notinha. Finalizei GF faz mais de 2 anos, mas sigo falando sobre ela e divulgando pra quem quer que seja porque acredito que esse tipo de história é atemporal, é divertida e instigante ao mesmo tempo. Hoje em dia eu ando reescrevendo essa epopeia, mas acho justo para aquelas que quiserem saber o que esperar, ver tudo que tá contado aqui, nessa fic cheia de WTFs e outros xingamentos, mas também muita risada e até um pouco de tristeza (vamo ser sincera, né).
Se você nunca leu, tenho certeza que seu último pensamento depois do final será: "ainda bem que eu parei aqui." E ainda bem mesmo! Foi um prazer te mostrar isso. ఌ︎.
E eu tenho outras histórias pra contar, caso você tenha ficado interessada! Me segue no instagram (@sialversion) ou pode ir direto na minha página de autora que lá tem de tudo um pouco.
Beijos,
Sial.


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