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━Autora Independente do Cosmos.
Atualizada em: 31.10.2024

"Quando não houver mais espaço no inferno, os mortos caminharão sobre a terra.”
— Despertar dos Mortos


Eles estavam atrás de mim.
E não era só por uma ou duas horas. Na verdade, eles estavam atrás de mim o tempo todo. Não importava onde eu estivesse, eles apareciam sem cerimônia, como se o conceito de tempo e espaço não fizesse diferença para eles. Quando eu estava em casa, dava para ignorar. Ou se estivesse sozinho em outro lugar, tudo bem também. Mas aí eles decidiam dar as caras na cafeteria ou no meio de uma aula, e aí não havia nada que eu pudesse fazer. Porque se eles quisessem me chutar ou puxar o cabelo, podiam. E faziam isso, com frequência.
Posso vê-los desde que me entendo por gente. Não só ver. Podia senti-los, ouvi-los e até tocá-los. Eles eram tão reais para mim quanto qualquer pessoa viva, e por isso, não era nenhuma surpresa o rótulo de “esquisitão” que ganhei dos outros. Afinal, o que você faria se alguém, aparentemente normal, começasse a conversar sozinho no meio da rua? Pois é.
Por sorte, distinguir os mortos era fácil. Eles tinham uma aura... bem, mórbida. Estavam sempre pálidos e perdidos, perambulando pelas multidões. Os novatos eram os piores; gritavam aos quatro ventos, exigindo saber por que ninguém podia vê-los. Esses eram os que mais atrapalhavam a minha paz.
Basicamente, os mortos vinham até mim para resolver suas pendências aqui na Terra, como se eu fosse uma espécie de atendente de SAC do Além. Se isso te parece legal, recomendo uma consulta psiquiátrica. Porque não tem nada de legal em ser perseguido por um fantasma que quer que você leve um pedido de desculpas a alguém do outro lado do Estado, ou que implora para que você encontre um bom lar para o cachorro que deixou para trás. Ou, pior ainda, quando uma adolescente morta resolve que você vai ser o substituto do namorado que ela nunca teve.
Nunca considerei essa habilidade como um dom. Na verdade, ajudar os mortos só me dava dor de cabeça e distanciamento social. Jordan, meu melhor amigo, era a exceção. Ele era o único que nunca se importou com meu hábito de falar sozinho e desaparecer do nada. Nos conhecemos no ensino médio, e acabamos indo para a mesma universidade, o que foi um alívio. Fazer novos amigos nunca foi o meu forte. Fora o Jordan, as únicas pessoas vivas com quem eu mantinha contato recorrente eram meus pais, Naomi e... minha avó. Tá, talvez essa última não estivesse tão viva assim.
Eu estava no quarto ano de Medicina na Universidade de Columbia. Escolhi o curso e o campus por motivos práticos. Queria me especializar na Oncologia, o que significava trabalhar com pacientes que provavelmente encarariam a morte de frente. Eu poderia, quem sabe, ajudá-los a resolver suas pendências em vida, evitando que se tornassem mais uma voz na minha cabeça depois que partissem. Egoísta? Talvez. Mas parecia uma solução eficiente. E Nova York, uma cidade cheia de gente, me dava a esperança de que haveria outros como eu por perto. Nunca entendi bem como os mortos nos "escolhiam", mas torcia para que fossem distribuídos de forma justa. Era mais um plano para mantê-los longe.
A faculdade de Medicina pelo menos deixava meus pais felizes. Desde que me adotaram no Orfanato Melbourne, sempre fizeram questão de demonstrar o quanto se orgulhavam de mim, mesmo quando meus "sumiços" e acessos de rebeldia eram constantes. Ou quando precisavam me buscar na delegacia por invasão de propriedade ou desacato. Mesmo nos piores momentos, quando tentavam fazer com que eu me abrisse e eu respondia com o silêncio indiferente que aprendi a reproduzir quando era confrontado sobre os fantasmas e as consequências que causavam, eles se vestiam de uma paciência inacreditável e raramente me criticavam. Minha mãe chorava baixinho à noite, e meu pai bebia mais whiskey do que o habitual, mas sem gritos ou caras feias. Sempre me perguntei se eles se arrependiam de ter adotado um garoto tão... estranho. Mas no fundo, sabia que a frustração deles era por não conseguirem se conectar comigo, e admito que aquilo era totalmente culpa minha.
A família possuía uma próspera firma de advocacia em São Francisco, onde o nome do meu pai, Maximus , aparecia em toda cerimônia de premiação empresarial da Califórnia. Ele era o tipo de exemplo de liderança que outras empresas usavam como referência em qualquer lugar do país. Mas, para mim, tudo aquilo — os flashes dos eventos de gala, os jantares executivos que invadiam a sala de jantar e até as empregadas escolhendo minhas roupas — era um lembrete constante de que eu não pertencia àquele mundo. Mesmo com o novo sobrenome, novos documentos e um quarto irado com espaço para os meus pôsteres dos Lakers, eu era o peixe fora d'água. A solução? Me esconder atrás do estereótipo de garoto prodígio que estava sempre estudando, correndo contra o tempo para se preparar para a próxima olimpíada de matemática ou um novo prêmio da feira de ciências.
Funcionou. Meus pais ficaram mais que satisfeitos com a ideia de ter um filho tão dedicado em passar longe de uma nota vermelha. No entanto, convencê-los a me deixar ir para uma universidade do outro lado do país foi outra história. Passei semanas ouvindo os soluços da minha mãe antes que eles finalmente cedessem, com a condição de que me visitariam regularmente e que eu teria que ligar com frequência. A distância também fazia parte do plano — era muito mais difícil frustrar seus pais com suas atitudes quando se está a quase 5 mil quilômetros de distância.
Mesmo assim, a superproteção deles se manteve firme e forte. Insistiram que eu não poderia ficar em um alojamento universitário qualquer, cercado por desconhecidos. Então, graças à obsessão da minha mãe por segurança (e também um pouco de conforto), acabei em um apartamento nada estudantil em Manhattan. Quinto andar, janelas enormes do chão ao teto, com uma vista deslumbrante da cidade que nunca dorme. Ela escolheu cada detalhe, e eu não me atrevi a opinar. Afinal, apesar de todo o drama, eu gostava do meu espaço próprio. E, dado o meu... probleminha com os mortos, talvez ter um lugar só meu tenha sido a melhor decisão que deixei que eles tomassem por mim.
Era mais uma quinta-feira qualquer quando saí da biblioteca Augustus, equilibrando o telefone entre o ombro e a orelha enquanto colocava alguns livros na mochila.
— O que é agora, Jordan? — perguntei, sem muito ânimo. Estava tentando fazer com que a borda do exemplar de Brain Metastases não arranhasse a tela do iPad.
— Onde você se meteu? Eu tô faminto e você ainda não deu as caras para o almoço. E hoje tem hambúrguer de costela!
— Você não tem membros ou dinheiro? Caso tenha membros, acho que você pode comer sem mim.
— Ah, qual é, ? Minha grana foi dizimada no Queens semana passada. Pelo menos me diz onde você tá.
Suspirei e olhei ao redor.
— Bem aqui.
Ele estava de pé bem no meio do refeitório, o rosto iluminado pelo alívio.
— Por que demorou tanto? Achei que você não tinha aula agora. — disse ele, enquanto eu me aproximava.
— Estava na biblioteca, trabalhando num artigo novo.
— Ah, é? Sobre o quê dessa vez? Bactérias que produzem plástico? — Jordan perguntou, digitando algo no celular.
— Isso é super empolgante. Mas não, é só um artigo sobre saúde pública. O Natal e a Influenza são a dupla de dezembro, e o Citizen se interessa por esse tipo de coisa. Agora vamos te alimentar.
Entramos na fila semi organizada ao lado das estações de comida, que estava mais longa do que de costume. Não sabia que o hambúrguer de costela tinha toda essa magia para alguém além de Jordan e eu. Talvez porque a gente não se importava muito com o que colocava pra dentro do estômago — ele menos ainda. Tudo que fosse comestível, era minimamente aceitável.
— Você viu o ranking semestral? Saiu hoje. — ele comentou, sem tirar os olhos do telefone. — Parabéns, você está no top 5 de novo.
Revirei os olhos em resposta. Todo semestre, a Columbia divulgava o ranking dos alunos mais bem-sucedidos, com base no semestre anterior. Havia um para cada departamento e um geral da universidade. Eu fazia parte dos cinco primeiros desde o 1º ano, então aquilo já tinha perdido o impacto. Na verdade, só de pensar no inevitável telefonema de parabéns dos meus pais mais tarde, eu já me sentia exausto.
Estar entre os cinco primeiros significava receber elogios incansáveis de professores e colegas, embora eu não me importasse nem um pouco. Ainda assim, tinha suas vantagens: meus artigos eram reconhecidos pelos acadêmicos mais respeitados, e até o reitor já havia me convidado para jantar, colocando o meu nome na sua provável “lista dourada”. Aparentemente, meu desempenho era inspirador para todos. Todos, menos eu.
Não era legal receber tanta atenção quando seu plano de vida era ser completamente invisível. Principalmente, se você estivesse suscetível a passar por situações como a que eu iria passar… agora.
Enquanto Jordan estava distraído, rolando o feed do celular, senti um vento gelado percorrendo a minha nuca, arrepiando na hora. Antes mesmo de entender o que era, uma voz rouca sussurrou bem perto do meu ouvido:
— Oi!
Continuei olhando para frente, fingindo que não tinha ouvido nada. Talvez se eu a ignorasse, ela se tocasse e fosse embora. Abri o celular e comecei a zapear por qualquer coisa, deixando o tempo passar. Ela ia perceber o que todos percebem: que ninguém podia vê-la. E enquanto eu não desse a primeira mordida naquele hambúrguer duvidoso com bastante ketchup, faria parte da maioria sim, com muito prazer. Não era uma boa hora para lidar com fantasmas.
Mas é claro que ela não desanimou. Saiu do meu lado e começou a tentar tocar Jordan e tudo o que estivesse ao seu alcance. Só para esclarecer, quando fantasmas tocam pessoas comuns, o máximo que elas sentem é um arrepio ou um frio súbito que logo passa. Para os mortos, não era muito diferente; é como tentar pegar uma massa cinzenta e pegajosa que escapa pelos dedos. Já com objetos, eles são bem mais habilidosos — meus hematomas podem confirmar isso.
Pessoas como eu, no entanto, conseguiam senti-los completamente. Não me pergunte por quê. Isso fazia com que os fantasmas nos achassem com facilidade e nos usassem para resolver suas pendências, como se fôssemos seus assistentes pessoais. Por isso, apesar da minha postura indiferente, eu estava aterrorizado com a ideia de que aquela garota decidisse me tocar naquele momento.
Vi Jordan se encolher com os calafrios causados pelo toque da fantasma e reclamar do frio. Continuei fingindo que nada estava acontecendo, enquanto nos aproximávamos das bancadas. Mas, no momento seguinte, quando Jordan deu um passo à frente e eu o segui, o fantasma não se moveu, o que fez com que nossos braços roçassem um no outro por um breve segundo.
Como um amador, acabei olhando para ela e, no mesmo instante, desviei o olhar. Tarde demais. Senti os dedos dela apertando meu braço direito.
— Você consegue me ver! Ei! Você tá me vendo, né?
Balancei o braço, tentando me livrar do aperto, mas ela ignorou o recado. Fechei os olhos, tentando manter a calma, e implorei mentalmente para que ela não começasse a fazer um escândalo.
— Por favor, me ajuda! Eu não sei o que aconteceu... Ninguém consegue me ver... Parece que eu, e-eu… morri…
Os olhos dela estavam arregalados e perdidos, o rosto pálido como um papel, e os cabelos ruivos desgrenhados caíam sobre o moletom com o brasão da faculdade de Direito da Columbia. A garota parecia ter uns vinte e poucos anos. E, por mais que estivesse desesperada no momento, não podia dar atenção pra ela. Tentei sinalizar discretamente com a cabeça para que desse o fora, mas, em vez disso, ela apertou meu braço ainda mais forte.
— Por favor, eu te imploro! Me ajuda! Eu estava no meu quarto no alojamento e, de repente... — a voz dela falhou, os olhos mais esbugalhados, e senti o pânico crescendo dentro de mim. Ela parecia prestes a surtar. Surtar de um jeito nada legal.
A fila avançava e ela não soltava meu braço de jeito nenhum. Eu podia sentir as unhas dela cravando na minha pele, com uma força que só os mortos pareciam ter. Ao nosso redor, as pessoas riam e conversavam, sem fazer ideia do caos invisível que estava se desenrolando ali. Mas, se ela continuasse assim, todo mundo logo perceberia. Eles sempre percebiam.
— Agora não... — murmurei, o mais baixo que consegui, sem sequer olhar para ela, torcendo para que ninguém tivesse notado. Mas a coisa só piorou.
Ao perceber que eu realmente podia vê-la e ouvi-la, ela cravou as unhas ainda mais fundo, e senti o sangue começar a escorrer. Em seguida, fui puxado com força para o lado, bem na direção das pessoas que seguravam suas bandejas já prontas e cheias. Quando me dei conta, vi suco de laranja se espalhar pela minha camiseta, seguido pelo impacto dos meus joelhos no chão. Ouvi o grito agudo de uma garota que caiu diante de mim, com molho de tomate e abobrinha grudada na roupa.
Todos os olhares se voltaram para nós. Jordan estava imóvel, com uma expressão que variava entre o riso e o choque. Eu, por outro lado, sentia uma mistura de raiva e incredulidade. Girei a cabeça para procurar a maldita que tinha causado isso, mas, claro, ela já havia desaparecido.
Senti um empurrão no peito e caí para o lado, o caos ao meu redor voltando como um balde de água fria.
— Você é maluco? — a garota à minha frente grunhiu, tentando se levantar sem escorregar nos restos de macarrão e torta de legumes espalhados pelo chão. — Tem ideia do que acabou de fazer? Isso não pode ser sério...
Ela bufou com indignação, e algumas garotas se juntaram ao redor dela, estendendo guardanapos como se fossem paramédicos em um campo de batalha. Suas mãos tatearam o piso até puxarem uma pasta cheia de suco e o que parecia ser babaganush. Todas me olhavam com aquele olhar típico de “meu Deus, qual é o problema desse cara?” Levantei rápido, desejando que, por algum milagre, todo mundo seguisse em frente e esquecesse o espetáculo que eu acabara de proporcionar.
— Me desculpa, foi totalmente minha culpa. — Na verdade, não foi. — Deixa que eu te pago outro almoço, ou…
— Você é epilético? Ou simplesmente decidiu me atropelar? Isso foi de propósito? — ela ia aumentando o tom a cada pergunta, as bochechas ficando cada vez mais vermelhas. Ótimo, porque o que eu precisava agora, além de estar coberto de suco e brócolis, era de problemas com desconhecidos na única parte do meu dia onde eu tentava manter minha vida minimamente normal: o almoço.
— Claro que não! Foi um acidente, sinto muito, mas eu posso pagar…
— Pelo amor de Deus, não quero seu dinheiro. — ela fez uma careta antes que eu levasse a mão para o bolso da carteira. — Tenho uma apresentação importante hoje e você pode ter acabado de estragar tudo com essa sua… síndrome de Tourette, sei lá. Olha, se eu nunca mais te encontrar na minha vida, vai ser um favor. Agora me dá licença.
Ela passou por mim com um empurrão no ombro e foi embora, seguida por pelo menos três amigas, que me lançaram olhares ligeiramente menos hostis. Fiquei ali parado por um segundo até ser expulso pelas funcionárias da limpeza, que já começavam a limpar a bagunça ao meu redor. De repente, percebi o quão exposto eu estava, com todos os olhares fixos em mim, buscando entender a mesma coisa que aquela garota: como eu tinha feito aquilo? Como caí do nada sem explicação?
Quando senti Jordan me puxar pelo ombro em direção à saída, agradeci em silêncio. Minha fome já tinha desaparecido há muito tempo.


— Cara… O que foi aquilo? — Jordan perguntou assim que entramos no banheiro mais próximo. O lugar estava vazio, e eu não perdi tempo: tirei a camiseta encharcada e a joguei na pia.
— Não sei, não foi de propósito… acho que escorreguei.
— Escorregou? Tá doido? O chão tá tão limpo que dava pra comer nele, sério! Não tinha nada pra te fazer escorregar, .
É, só tinha um fantasma.
— Sei lá, eu me distraí, só isso. — dei de ombros, torcendo para que Jordan mudasse de assunto tão rápido quanto o acidente aconteceu. — Anda, me empresta uma camisa. Ainda tenho mais duas aulas antes de ir pra casa.
Ele tirou uma camiseta azul estampada com a letra de More Than a Feeling do Boston e jogou pra mim.
— Você tá legal? Não tá tomando nada estranho pra “ajudar na concentração”, né? Essas coisas são perigosas, cara. E que negócio é esse no seu braço? Tá sangrando.
— Nada demais, deve ter sido da queda. — ri engasgado, arrancando meu braço da linha de visão dele. — Sério, tô bem. Só um acidente básico.
— Você tem ideia em quem resolveu causar um acidente básico? — Jordan perguntou, e eu fiquei calado. — Cara! Aquela era a !
— Esse nome deveria me dizer alguma coisa?
Ele bufou.
— Já te falei dela várias vezes. Das noites de quinta no Amity Hall, no Beerkeeper em dias de jogo, do Billy…
— Ah, é… — o único momento em que Jordan não falava de mulheres era quando estava comendo (salvo exceções) ou jogando, então eu já sabia que não conseguiria lembrar de todas elas, mesmo que tentasse. — Bom, foi uma merda, mas espero que ela esqueça disso tudo bem rápido.
— Eu também espero, mas essa galera do Jornalismo não esquece nada fácil. Teve uma vez que saí com uma garota do departamento que…
Como um botão invisível, apertei “desligar” e deixei as palavras dele escaparem pelo outro ouvido. Nada contra a vida amorosa agitada do meu melhor amigo, mas meu cérebro já era sobrecarregado demais com equações moleculares e referências do PubMed. Ah, e um pouquinho de discurso básico para dizer a homens mortos que não, eles não podiam voltar a vida rapidinho só pra buscar uma jaqueta vermelha da Balenciaga para levar na viagem para o Outro Lado.
Foi exatamente no que eu pensei: o fantasma. Ela iria me procurar de novo, era questão de tempo. Pelo uniforme da Columbia e o visual… era óbvio que tinha morrido perto daqui, talvez há menos de 2 horas. Aquilo se espalharia pelo campus mais cedo ou mais tarde, e agora eu estaria pronto para a interceptação. Torcia para que ela só quisesse saber a nota de um teste ou se seu artigo foi aceito em algum congresso de verão.
Vesti a camiseta de Jordan, dei uma ajeitada na mochila e fui pra aula. As próximas três horas passaram num borrão, com a minha concentração sendo colocada à prova cada vez que um ventinho gelado tocava a minha nuca, pensando em como ignoraria uma aparição que já sabia que eu não podia ignorá-la. A não ser que ela me pegasse na aula de Psicologia Médica, onde 98% das pessoas dormiam — se fosse um dia em que eu não tivesse tomado meu expresso duplo do Blue Java, eu fazia parte dessa porcentagem.
Assim que a última aula acabou, me livrei do professor de Histologia, que estava com um discurso interminável sobre minha última análise de cápsula renal, e fui direto para o estacionamento do campus. O sol estava quase sumindo, e as luzes ainda não tinham acendido, o que me garantiu uns minutos de solidão na escuridão de concreto de Washington Heights. Meu Jeep Renegade estava bem ao fundo, escondido atrás de uma pilastra e longe de outros carros.
Entrei, fechei a porta e esperei.
Exatos dois minutos depois, senti o ar pesar, frio e macabro, dentro do carro.
— Tá legal, quem diabos é você?
A primeira coisa que ela fez foi esticar o braço e tocar em mim. Não daquele jeito violento e desesperado de antes, mas leve e rápido, só pra constatar que eu era de verdade.
— Eu... Você está mesmo me vendo? M-mas…
— Ok, vamos pular a parte óbvia da coisa. Sim, eu te vejo, te escuto, até te sinto, como ficou bem claro. E, sim, você está morta. O que posso fazer por você?
— Morta? Mas como... — o rosto dela começou a enrugar, lágrimas enchendo os olhos. — Como isso aconteceu? Eu só estava-
E mais choro. Eram poucos os que não choravam.
— Olha, preciso que você me conte exatamente do que se lembra. Ainda dá tempo de ir pra confraternização no Outro Lado, então preciso saber por que você ainda não foi pra lá
Era nessas horas que eu tinha que reunir o que minha avó chamava de compaixão, mas eu chamava de teste de paciência. Era quase uma entrevista de admissão, onde eu não exercia o papel de aceitar ou rejeitar ninguém para o Paraíso, mas de apenas agir como o gênio da lâmpada e me dispor a realizar o último desejo de almas encarnadas que não eram lá muito silenciosas até enxotá-las para o próximo nível. Não era um trabalho fácil e nem muito agradável, ainda mais porque, honestamente, a última coisa que eu queria era passar horas com um fantasma que ainda não tinha percebido que... bem, que estava morto.
A garota passou um tempo confusa até começar a pensar.
— Ash... Ele disse que as pílulas eram só pra dormir. Eu estava exausta com o projeto de final de curso, o trabalho, as inscrições pra pós, tudo isso. Então tomei as pílulas. E, bem... adormeci. — ela parecia perdida, os olhos desfocados enquanto tentava se lembrar de mais.
— Quem é Ash?
— Um cara da Dungeons. Faz Farmácia, eu acho, ou pode ser qualquer outra coisa. Não sei muito sobre ele, e esse nem é o seu nome verdadeiro. Estávamos saindo há 3 semanas, e ele me deu uns comprimidos pra dormir...
— E que comprimidos eram esses?
— Eu não lembro. Ele me entregou em uma caixa sem nome.
Revirei os olhos, já vendo o tamanho da confusão que viria pela frente.
— Tá, vamos começar pelo básico: qual é o seu nome?
— Sara. Sara McDormand.
— Beleza, Sara, aqui vai a notícia: você morreu, e esses comprimidos provavelmente são a causa. Agora precisamos descobrir o que está te segurando aqui, o que falta pra você finalmente atravessar o... limbo.
— Mas eu não tomei tantos assim. Ele disse pra tomar dois comprimidos, que isso bastaria pra eu dormir o dia todo. Ele disse... — as lágrimas voltaram, agora com força. — Eu confiei nele. Ele disse que não me fariam mal.
Confiou em um cara que não disse o próprio nome?
Suspirei, guardando o pensamento, tentando reunir argumentos que pudessem fazer sentido e ajudá-la a se acalmar. Talvez fosse mais complicado do que eu pensava.
— Tudo bem, então... o que você quer? Vingança? A gente pode discutir os detalhes.
— O quê? Não! Eu só... estou confusa. Eu tinha planos, sabe? Um emprego no Departamento de Polícia de Nova York, meu apartamento em Manhattan, apresentar o Ash aos meus pais...
— Ei, foco. Você precisa se concentrar no que está te prendendo aqui, descobrir o que ainda falta pra finalmente seguir em frente. Tem algo que ainda precisa resolver?
— Não sei. Minha vida foi sempre estudo e trabalho; fui em uma única festa de fraternidade, fui beijada só uma vez no ensino fundamental e agora pelo Ash, nunca fiquei de porre, ainda sou virgem...
— Vai sonhando. — minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, e uma pessoa que passava alguns metros adiante do meu carro me olhou como se eu fosse um lunático. — Olha, meu contrato não cobre orgias nem reencenações de American Pie. Então eu sugiro que você pense em algo mais... profundo.
— Não é isso! Eu... eu preciso achar o Ash. Preciso descobrir o que eu tomei, e... e como eu... — ela engoliu seco, balançando a cabeça, o rosto numa expressão de dor. — Ele é popular, vive dando festas e vende de tudo. Não vai ser difícil encontrá-lo, só preciso... preciso saber se ele foi o responsável por... por isso. — sua voz vacilou, quase um sussurro.
— Ei, calma. — relaxei os ombros e me aproximei um pouco. Pensei em fazer aquele toque amigável engraçado que Naomi costumava fazer com os novatos, mas um olhar pacato era tudo o que eu conseguia oferecer. — Você parece... bem, como alguém que acabou de morrer. As pessoas provavelmente já estão sabendo da sua morte. E quanto ao que causou ela, é pra isso que existem autópsias, certo? Logo vai ser divulgado, Ash vai ficar sabendo e pode poupar nosso tempo se entregando. Entendeu?
Ela apenas balançou a cabeça, teimosa.
— Não. Não é suficiente, eu preciso saber o que era aquela coisa. Se ele sabia o que estava me dando. É a única forma de... de eu descansar, eu acho.
Ela cobriu o rosto com as mãos, e eu vi seus ombros começarem a tremer. Outro choro vindo. Nesse instante, meu celular vibrou, iluminando a tela com mensagens insistentes de Jordan: "Onde você está?", "Estacionamento, né?", "NÃO DIZ QUE FOI EMBORA SEM ME DAR CARONA", "Me deixa na Broadway", "HELLOOOO????", "VOCÊ NÃO VAI ACREDITAR NO QUE EU ACABEI DE SABER".
Ótimo. Mesmo que eu não respondesse, ele estaria no estacionamento de qualquer forma, o que significava que aquela garota tinha que vazar dali agora mesmo.
— Tudo bem, vou procurar o Ash. Descobrir o que ele te deu e se ele sabia o que estava fazendo. Mas agora você precisa sumir do meu carro.
— Espera... Qual é o seu nome?
, muito prazer. Agora... — Inclinei a cabeça em direção à porta.
Ela arregalou um pouco os olhos.
Você é ?
Ah, caramba.
— É, sou eu.
— Minha nossa, mas… você é o aluno número 1. Como você, como isso…
— Acredite se quiser, mas eu não tenho uma história pra te dar. É assim que as coisas são e pronto. Agora que tal fazer aquela coisinha de sair?
— Ah… Certo. — ela disse e, pela primeira vez, esboçou um sorriso meio desajeitado. — Você parece ser um cara legal, . Posso mesmo confiar em você?
— Se não pudesse, você nem teria me achado.
Ela assentiu.
— Tudo bem. Eu vou. E… sinto muito pelo seu braço.
Antes que eu pudesse responder, ela desapareceu, evaporando como uma miragem. As luzes do estacionamento finalmente se acenderam, e eu vi a cabeça de Jordan surgir ao longe, correndo no meio dos carros.
Ele me avistou rapidinho e já veio, ofegante, pressionando o peito com a mão e abrindo a janela assim que entrou.
— Cara... Tem um cigarro?
— Que foi? O prédio não é tão longe. — respondi, procurando um maço no porta-luvas e entregando pra ele. — Você devia parar de fumar.
— Como você conseguiu parar? — ele acendeu um cigarro, o tom ligeiramente sarcástico.
— Não parei. — dei de ombros e acendi o meu também.
Depois de algumas tragadas e uma respirada, ele olhou pra mim com uma expressão mista de choque e animação.
— Cara, você não vai acreditar. Acabaram de encontrar uma garota morta no alojamento feminino. Parece que foi há pouco tempo, antes do almoço. Tá uma confusão lá dentro...
Fiz a melhor cara de interessado que pude.
— Sério? Quem era?
— Uma tal de Sara, da faculdade de Direito. Cara, você não tem ideia do que falaram sobre o corpo. Foi... horrível. Dizem que ela teve uma overdose, tinha vômito por todo lado, ela estava roxa, os olhos abertos… — ele tremeu. — Cena de filme de terror. Nem imagino a reação de quem a encontrou.
— Overdose? Eles disseram que foi isso?
— Ah, ainda não sabem nada com certeza. A ambulância acabou de levar o corpo. Devem fazer a autópsia lá no Presbiteriano. A universidade tá tentando não chamar atenção até resolverem isso. Mas o assunto já explodiu no Twitter e no Fórum, e eu acho que enviaram pro Jimmy Fallon, mas não sei por-
Enquanto Jordan falava, eu me esforçava para juntar as peças. Aparentemente, Sara tomou os remédios na noite anterior e morreu antes do almoço, o que significava que o que quer que sejam aqueles comprimidos, a ação era lenta. Só que não dá pra ter uma overdose com dois comprimidos de tarja preta, mesmo se fosse codeína. Depressão respiratória era um objetivo final que a pessoa precisava se esforçar muito pra alcançar.
Me obriguei a afastar a estranheza de tudo aquilo da cabeça e a focar em bolar um jeito de encontrar Ash. Precisava fazê-lo me contar se ele sabia que o que ofereceu para Sara poderia matá-la. Claro que não dava para perguntar assim, direto — o cara ia me achar um completo maluco, ou então se assustar o bastante para abrir o jogo.
Deixei Jordan na Broadway, a algumas quadras de distância de onde morava uma tal de Marci. Ele estava apavorado demais para voltar ao alojamento naquela noite, e, sinceramente, se soubesse que eu tinha sido notificado do "incidente" pela própria vítima, acho que o trauma seria ainda maior.
Minha rua estava silenciosa e calma, o que era bem atípico em qualquer parte de Nova York, seja residencial ou não. A badalação da cidade começava cedo, e mesmo que eu não fizesse ideia do cronograma das festas e nem de qualquer coisa que envolvesse 8 ou mais pessoas dividindo um teto em mansões antigas de Manhattanville, teria que arrumar um jeito de saber, pelo menos até encontrar Ash.
Claro, mesmo na era digital, encontrar uma pessoa que usa nome falso não é fácil. Sara não tinha me dado muitos detalhes sobre ele, e eu não estava exatamente animado em procurá-la de novo antes de ter as informações que ela queria. Pensei em perguntar ao Jordan, mas sob qual pretexto? E aí, você tá sabendo desse traficante meio famoso que andou se envolvendo com a garota morta? Sabe onde ele mora? Nunca. Jamais. Jordan não era tão avulso quanto eu queria que fosse pra não estranhar esse interesse repentino.
Quando finalmente entrei no apartamento, tratei de limpar o ferimento no braço — cortes em formato de pequenas luas das unhas de Sara — e fui direto para o banho, tentando relaxar, mas sem muito sucesso.
Depois, entrei no Fórum e busquei informações sobre a confusão daquela tarde. A única coisa que encontrei foi um resumo seco: Sara tinha sido encontrada pela colega de quarto, uma garota chamada Valerie Harris, do curso de Arquitetura, que mal conseguiu falar com a polícia de tanto que chorava. A única foto publicada mostrava o corpo de Sara envolto em um saco preto, com uma faixa amarela de isolamento estendida na porta do dormitório. No final da matéria, um comunicado dizia que a autópsia só ocorreria depois da autorização dos pais dela, que já haviam sido avisados, mas não deram respostas sobre quando chegariam — parecia estar rolando uma tempestade bizarra na região da Virginia, cancelando voos e trens em sequência.
Apesar disso, era uma boa notícia. A autópsia explicaria tudo. Daria fim naquilo logo, bem logo. E enquanto isso, o dormitório de Sara seria o mais triste e cinza de todos os outros prédios da Columbia.
Porque agora ele estava assombrado.

⫘⫘⫘


O jornal da Columbia era tipo o paraíso das fofocas estudantis, só que com uma pegada de responsabilidade social. Preocupados em preservar as florestas e fazer bonito nas avaliações da Ivy League, eles tinham abandonado o papel faz tempo, tornando a redação inteira digital. Foi daí que nasceu o "Fórum" — nada criativo, mas a marca já estava registrada. Lá estava basicamente tudo o que você precisaria saber sobre a Columbia: eventos, simpósios, congressos... até um certo ranking dos cinco melhores alunos, em que meu nome aparecia no topo.
Dentro do Fórum, cada aluno tinha um login próprio, o que o transformava basicamente em uma rede social, mas só para quem era da Columbia. Os funcionários do jornal eram os únicos autorizados a fazer postagens, e se você precisava saber algo de um colega (como, por exemplo, informações básicas sobre um certo Ash enigmático), o Fórum era o lugar perfeito pra começar a procurar. O nome verdadeiro do jornal era Citizen Co., mas, depois de 4 anos, Jordan e eu achávamos mais fácil chamá-lo de “o Google dos escândalos acadêmicos.”
Eu não planejava vasculhar o Citizen só para saber algo sobre o Ash (não seria tão descarado assim), mas não custava nada ver se uma ideia brilhante surgia no caminho. Já tinha ido até lá algumas vezes, geralmente quando precisava pedir correção de uma publicação e me deslocava para a sala do professor responsável, o Sr. Norton, que tinha uma certa felicidade escancarada toda vez que me via. Hoje era um dia ótimo para fazê-lo sorrir.
Chegar ao Citizen era como fazer as provas da autoescola de novo. O lugar era uma zona completa, com bicicletas e motos espalhadas para todos os lados, sem nenhuma faixa delimitando vagas (porque eles acreditavam mesmo que as pessoas deveriam parar de poluir o meio ambiente com carros e começar a pensar em outras alternativas). Era logo ali, ao lado do Pulitzer Hall, onde a quantidade de gente correndo para cima e para baixo era, honestamente, meio assustadora. Os jornalistas em treinamento tinham quase a mesma vibe de caos que os futuros médicos.
O prédio em si não era grande, mas ainda assim, tinha a beleza que o dinheiro podia comprar. A pintura das paredes estava em dia, e as janelas de vidro mostravam um escritório bem equipado, cheio de equipamentos modernos, funcionando a todo vapor. O Citizen era uma referência em jornalismo universitário no país, e pelo menos uns 15 alunos ali um dia seriam âncoras na CNN ou editores-chefe do New York Times.
Parei diante da porta branca no final do corredor e espreitei pela janela ao lado. Lá dentro, era uma correria: gente atendendo telefonemas, digitando, berrando de um lado para o outro — ninguém me notou quando entrei. Virei à direita e fui direto para a porta marcada com "Prof. Dr. Leonardo Norton". Bati duas vezes e ouvi um "entre" abafado.
— Senhor ! — ele me cumprimentou, tirando os óculos e abrindo um sorriso enorme e caloroso.
— Como vai, senhor Norton? — apertei a mão dele, e ele apontou para a cadeira na frente da sua mesa, que, aliás, estava tão cheia de papéis, canecas vazias e, quem sabe, um fóssil ou dois, que eu quase duvidei que ele pudesse realmente me ver dali.
Diferentemente do restante do prédio, a sala do senhor Norton era um resquício dos anos 70, uma década tecnicolor pela qual eu tinha um grande carinho. Duas poltronas em amarelo canário estavam ajustadas bem embaixo da janela, a mesa de pinheiro polida e envernizada, os abajures largos, e ele ainda tinha um modelo de rádio Grundig Satellit dos anos 60, com antena e pilhas D. De vez em quando, dava pra ouvir Sweet Home Alabama tocando em loop no aparelho, e fiz uma piada uma vez de que, se fosse pra ouvir apenas uma coisa até morrer, que essa coisa fosse Lynyrd Skynyrd. Ele se apaixonou por mim depois disso.
— O que o traz aqui tão cedo, meu jovem? — ele ajustou os óculos e deu uma olhada rápida para o relógio, como se o próprio horário o tivesse traído. — Ainda não trouxeram meu café, estamos um pouco... corridos hoje. Mas aceita uma água, um chá...
— Não, não, tudo bem. — pousei a pasta em cima da pilha já caótica de documentos, torcendo pra que não virasse um tsunami de papéis. — O professor Finney pediu pra eu escrever mais um artigo. É sobre os últimos dados das cepas recentes da Influenza no inverno de Nova York. Ele pensou que seria uma boa ideia transformar em uma coluna pro Fórum, então vim deixar pra revisão.
— Ah, o artigo de saúde pública! — ele passou os olhos pela primeira página, balançando a cabeça com uma expressão tão solene que cheguei a pensar que ele estava rezando pelo manuscrito. — Claro, claro... Finney me contou ontem. Vou dar os toques finais, mas… — ele tirou os óculos e olhou por cima deles, com um ar quase dramático. — Infelizmente, hoje isso não vai acontecer, receio. Você está sabendo do que houve ontem, no campus?
— A garota? Fiquei sabendo sim.
— Uma tragédia. — ele suspirou, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. — Toda a equipe está focada nisso, tivemos que suspender praticamente tudo para nos concentrarmos no caso da McDormand. A CNN veio e foi um pesadelo lidar com eles... Uma dor de cabeça atrás da outra, sabe? Mas não se preocupe. Vou garantir que o artigo saia a tempo, mesmo que um pouco atrasado.
— Sem pressa, professor. — forcei um sorriso, tentando não parecer tão interessado. — Logo tudo se resolve, né? O culpado vai aparecer…
— Culpado? — ele riu com um toque de sarcasmo, como se tivesse ouvido uma piada boa. — Ah, meu jovem... Não há culpado. Esse é um caso claro de suicídio! Encontraram a pobre garota sufocada no próprio vômito. Os pais até agora estão empurrando para vir reconhecer o corpo, e tenho quase certeza de que vão se recusar a autorizar uma autópsia. O uso de drogas entre os alunos está fora de controle. Seria um ótimo tema para o próximo artigo, inclusive. Os riscos disso tudo, entende? Vou fazer uma ligação para o Edward logo mais…
Ele continuou falando, divagando sobre a juventude e os perigos das drogas, enquanto eu assentia e tentava manter uma expressão preocupada. Ter deixado ele se empolgar com o assunto e me "explicar" o caso foi um movimento certeiro — afinal, ele acabara de confirmar o que eu temia: a autópsia não sairia tão cedo. E eu precisava de respostas antes de ser perseguido por outro fantasma.
Depois de um papo rápido sobre minhas notas e a possível residência no hospital universitário de Berlim, me despedi do professor Norton e me preparei para sair. Do lado de fora da sala, o escritório estava um caos, e o telefone não parava de tocar. Fechei a porta atrás de mim, aliviado, e avistei um bebedouro ali perto. Minha garganta parecia seca como o Saara, mas logo reparei na plaquinha acima do galão: "NÃO USE COPOS PLÁSTICOS, TRAGA SUA PRÓPRIA CANECA". Suspirei. Nada como mais um obstáculo — até a água nesse lugar parecia exigir um esforço extra.
Como se tivesse brotado de alguma parede invisível, uma pessoa passou por mim com a precisão de um cometa. Eu estava saindo de perto do bebedouro quando fui atingido por um esbarrão de alta potência. Papéis voaram, meu braço se esticou tentando segurar alguma coisa, qualquer coisa, e, bem... o que eu agarrei foi o galão d’água, que teve a gentileza de me dar um banho completo — e, aparentemente, dar o mesmo tratamento à pessoa que caiu em cima de mim.
Antes de mais nada: dessa vez, fantasmas não tiveram nada a ver com isso. A garota que estava em cima de mim era bem real, com um olhar tão estupefato quanto o meu. Cabelo meio molhado, meio seco, ela piscava em choque enquanto o telefone no ambiente continuava tocando e as conversas ao redor tinham se extinguido, mostrando que todo mundo estava de olho na gente. Um segundo depois, percebi quem ela era.
— Não acredito. — ela bufou, saindo de cima do meu peito como se eu fosse o chão imundo de um estacionamento. — Como é que você consegue aparecer pra arruinar o dia aqui também? Toda aquela comida não foi suficiente?
— Eu acho que você é quem deveria olhar por onde anda, sabe? — eu murmurei, tentando resgatar alguns papéis que ainda não estavam completamente encharcados.
— Ah, então eu deveria olhar por onde ando? Igual ontem? — ela deu um sorrisinho sarcástico antes de arrancar os papéis da minha mão. — Tem ideia do trabalho que foi coletar esses depoimentos? Tem ideia do tanto que ainda temos pra fazer hoje? Aliás, você é algum aluno perdido aqui atrás do professor Norton pra pedir revisão de trabalho malfeito? Porque se for, pode tirar o cavalo da chuva. Ele tá ocupado, e não vai sair pra...
— Mas o que está acontecendo aqui? — Norton, o próprio, abriu a porta, olhando alternadamente pra mim e pra garota. — , por que está brigando com o rapaz?
se endireitou, vermelha de raiva, mas recuou um pouco.
— Professor, esse... esse cara acabou com os depoimentos que eu consegui sobre a ação da polícia. Eu ia levá-los pra revisão e agora...
O professor Norton levantou a mão como quem afasta uma tempestade. se calou instantaneamente, com as bochechas ainda mais vermelhas, lutando pra não pressionar o maxilar. E aí eu percebi que a água gelada tinha sido implacável: ela estava sem casaco, e se controlava para não tremer os lábios.
Norton se voltou para nós dois.
— Não façam disso um drama. Há trabalho demais pra isso. , eu sei que você não fez isso de propósito, e estava de saída, não estava? — ele deu umas batidinhas no meu ombro, depois olhou para . — Quanto a você, senhorita , tenho uma nova tarefa. — ele entrou rapidamente na sala e voltou com uma pasta. — Digitalize, edite e finalize o envio do artigo do jovem aqui. Isso deve responder sua dúvida sobre a presença dele. É a coluna especial sobre saúde pública do centro médico de Irving.
olhou da pasta pra mim, depois para o professor, folheando rapidamente as páginas.
?
— O próprio. — Norton assentiu. — Agora, se me dão licença, tenho que lidar com o inferno dos e-mails e chamadas de emissoras sem mais o que fazer, querendo informações que nem temos ainda. — ele suspirou e se virou para o resto da sala, onde todos ainda estavam assistindo ao show. — E vocês aí! Voltem ao trabalho, ou vão levar pontos de demérito! , sei que você vai resolver a questão do senhor . É uma das nossas melhores alunas. E chame a moça da limpeza pra dar um jeito nessa bagunça. Senhor , desculpe o transtorno. Volte em segurança ao departamento. — ele me deu um sorriso caloroso e entrou em sua sala, desaparecendo tão rápido quanto surgiu.
olhava para mim como se eu fosse uma barata que acabara de pousar bem no meio da sua sopa — olhos arregalados, lábios franzidos em desgosto e algo que parecia muito com choque. Era óbvio que nunca tinha visto o senhor Norton falar assim com alguém. Aliás, nem eu.
— Então… você tá bem?
A garota suspirou.
— Você pode ir agora, por favor? Preciso chamar o serviço de limpeza e, bem, você está meio no caminho. Pode deixar que seu artigo será publicado assim que possível.
Sem esperar por mais reações, ela se virou e saiu pela porta de outra sala, me deixando sob o olhar atento dos poucos que ainda estavam presentes, como se eu fosse alguma atração de zoológico. Balancei a cabeça, voltando a mim, e fui em direção à saída, ciente de que, pela segunda vez naquela semana, estava no meio de uma confusão completamente evitável. Tinha um certo talento em criar esses momentos constrangedores, e o mais surpreendente era que geralmente eles envolviam apenas os mortos.
Na saída do prédio, me lembrei do novo problema: eu estava sem roupas extras, de novo. Não sabia se era cedo demais pra aparecer no dormitório de Jordan e implorar (pela segunda vez) por uma camiseta limpa. Nessa época do ano, deixava um casaco morando no meu banco de trás, um elemento acessível muito bem aproveitado nessa cidade que logo mais estaria se afogando em neve. De repente, pensei em oferecê-lo à tal — afinal, ela parecia precisar tanto de um casaco quanto de um calmante, mas a ideia desapareceu tão rápido quanto veio.
Porque algo mais urgente chamou minha atenção.
No mural de madeira ao lado da entrada, onde os panfletos de eventos jornalísticos se amontoavam, havia um cartaz bem maior e mais chamativo: “FESTA NA DUNGEONS! VENHA E TRAGA MAIS UM & A CERVEJA! SEXTA 21H!” O pôster parecia até piscar, como um sinal de neon para os desavisados (ou para os bem avisados que sabiam o que era bom).
Uma ideia, louca e impossível, começou a se formar. As palavras de Sara ecoaram na minha cabeça: “Ele é popular, vive dando festas e vende de tudo”.
É, o jeito seria tentar.
Sem realmente acreditar no que eu estava prestes a fazer, entrei no carro e disquei o número do Jordan.




Continua...


Nota da autora: Oiê! Bem-vinda ao meu tesouro!
As palavrinhas no dicionário são poucas e muito rasas pra explicar o que toda essa história significa pra mim. Toda escritora que se preze tem um sentimento especial sobre a sua primeira obra, e os meus são tão grandes e expressivos que não cabem aqui nessa notinha. Finalizei GF faz mais de 2 anos, mas sigo falando sobre ela e divulgando pra quem quer que seja porque acredito que esse tipo de história é atemporal, é divertida e instigante ao mesmo tempo. Hoje em dia eu ando reescrevendo essa epopeia, mas acho justo para aquelas que quiserem saber o que esperar, ver tudo que tá contado aqui, nessa fic cheia de WTFs e outros xingamentos, mas também muita risada e até um pouco de tristeza (vamo ser sincera, né).
Se você nunca leu, tenho certeza que seu último pensamento depois do final será: "ainda bem que eu parei aqui." E ainda bem mesmo! Foi um prazer te mostrar isso. ఌ︎.
E eu tenho outras histórias pra contar, caso você tenha ficado interessada! Me segue no instagram (@sialrkive) ou pode ir direto na minha página de autora que lá tem de tudo um pouco.
Beijos,
Sial.


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