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Revisada por: Saturno 🪐

Última Atualização: 19/02/2025.

Leis de Newton é uma história de suspense colegial que possui personagens moralmente questionáveis, não recomendo que se apegue a nenhum deles. Espero que se divirta lendo da mesma forma que me diverti escrevendo (ou não rs).



Lei da inércia: Um objeto em repouso permanece em repouso, ou se estiver em movimento, permanece em movimento com velocidade constante, a menos que uma força externa atue sobre ele.

Lei da Superposição de Forças: Quanto maior a força aplicada a um objeto, maior sua aceleração, e quanto menor a massa do objeto, mais fácil é acelerá-lo.

Lei da Ação e Reação: Para toda ação, há uma reação igual e oposta. Isso significa que se um objeto exerce uma força sobre outro objeto, o segundo objeto exercerá uma força igual e oposta sobre o primeiro objeto.



A primeira lei de Newton, ou lei da inércia, diz que um objeto que está em repouso, permanece em repouso, e o que está em movimento, permanece em movimento; e só sei disso porque tento prestar atenção na aula do Sr. Russell, enquanto Willa tagarela ao meu lado sobre o quanto ele é o maior gostoso que ela já viu. Não dá para negar que ele é bonito, jovem e tem muitos músculos para um professor de física, mas não é lá tudo isso. Desde que veio substituir o Sr. Dicker – um senhor de 76 anos, que se aventurou a subir em uma escada para limpar as telhas de casas e acabou se desequilibrando, precisando ficar em casa por alguns meses –, as coisas dentro da St. Louis High School haviam ficado mais agitadas. Entretanto, quando se tratava de dar aula, Sr. Russell era excelente. Talvez parecer que foi esculpido pelos deuses ajudasse na concentração dos alunos.
— As leis das físicas nunca foram tão fáceis como agora. — Era quase perceptível a ouvir suspirar enquanto fingia prestar atenção nas anotações do quadro, e não em quem estava anotando.
O sinal indicando o fim da aula chegou logo depois, para a frustração da maioria. Juntei os materiais calmamente e fui em direção ao refeitório com Willa ao meu lado.
Ela foi minha primeira e única amiga desde que mudei para St. Louis, no Missouri, e comecei o ano letivo. Tenho que admitir que nossa junção era fascinante: Willow Bennett é aquele tipo de pessoa que não está envolvida com nada, mas sabe de tudo que está acontecendo ao seu redor, enquanto eu tentava de tudo não chamar atenção dos outros alunos, apenas seguir a vida em paz e sem muito mais danos.
Quando entramos no refeitório, seguimos reto para nossa mesa habitual, que ficava na fileira central do ambiente, porém mais ao fundo.
Se entrasse naquele ambiente no horário de almoço, você conseguiria enxergar perfeitamente todo o ecossistema existente no colégio, era único, funcionando perfeitamente sem existir nenhuma quebra nessa ordem por anos – segundo Willa –, quase como a lei da inércia que o Sr. Russell estava explicando na aula: todos estão distribuídos nos seus grupos sociais e assim ficará, como o objeto em repouso que tende a ficar em repouso.
— Aqueles são os populares, os mais importantes. Entre eles, são Kai Hernandez e Audrey Montgromey, o casal da realeza do St. Louis High School. Faça o que quiser, mas não pise no calo dela, podem existir consequências que nem conseguiria imaginar — ela disse uma vez, enquanto explicava a dinâmica interna, apontando para nossa esquerda, um pouco mais à frente. — Aqueles são os mais problemáticos. — Apontou para nossa direita. — Dizem que o Brian vendia drogas para outros alunos e parou depois que o irmão dele morreu por overdose. A verdade é que ninguém nunca conseguiu comprovar nada, então é só especulação. — O tom dela é que não estava tão convencida do que falava, como se acreditasse nos boatos. — Aquele dali é o Josh, a pessoa perfeita para qualquer trabalho em dupla ou grupo, já que o cérebro dele é suficiente para cobrir todos os outros, porém a superinteligência pode ser intimidadora para os outros alunos, por isso não o dão tanta atenção — ela sussurrou dessa vez, já que a pessoa em questão estava na nossa mesa, mas na outra ponta. As mesas do refeitório são enormes, cabendo no mínimo doze pessoas em cada uma. — E, por último, temos Carrie, o que é um pouco irônico, já que a consideram como estranha por falar sozinha e usar lápis de olho muito marcado. Uma vez espalharam boatos que ela aplicara alguma bruxaria na Audrey, a fazendo quebrar todas as unhas “por inveja”. Acredito que a rainha do colégio só estava precisando comer algumas vitaminas mesmo.
O resto de nós era como se flutuasse através desse ecossistema, a maioria não tinha relevância suficiente, seja para o bom ou ruim, para sermos notados diante do resto. Particularmente preferia assim, quanto menos atenção, melhor.
, você está me escutando? — Willa me trouxe de volta para o presente e tentei me esforçar ao máximo para fingir que estava ouvindo, sim, tudo que disse antes. Estávamos sentadas, devorando nossos almoços, enquanto Bennett passava todo o jornal matinal, que eu nunca fui interessada, mas ouvia, já que sou uma boa amiga. — Tanto faz, você já decidiu qual fantasia vai usar hoje à noite?
Ah, era sobre isso que estávamos falando: uma das inúmeras festas de Halloween que aconteceria entre setembro e outubro, apenas com desculpa para vários adolescentes se embriagarem em uma casa abandonada qualquer.
— Não, estou sem ideias.
— Como que alguém fã de todos os filmes de terror existentes no mundo não tem uma ideia para fantasia?
— Não sei, acho que já esgotei da fonte.
Era mentira, filmes de terror eram algo relativamente novo para mim, mesmo com tanta paixão, mas não admitiria isso agora. E a verdade é que estava muito pouco animada para essas festas, não fazia meu estilo.
— Você não vai conseguir escapar dessa festa igual das outras vezes. Vai comigo e ponto final!
As fontes de desculpas estavam se esgotando rapidamente, nem minha mãe estava me ajudando mais, concordava que eu precisava “sair mais e ver pessoas”. Por isso, a única coisa que fiz foi balançar a cabeça em afirmação, mesmo sendo completamente contra.
— Mudando de assunto… Você acha que o Kai não está um pouco sério demais?
— Ele sempre está assim.
— Certo, mas… ele não tá sério demais agora?
Desviei meu olhar dela por um instante para focar na mesa atrás. Hernandez era o típico adolescente americano, cabelos loiros bagunçados como se tivesse acabado de sair do mar e olhos castanhos-claros, às vezes você podia vê-lo abrindo o mínimo sorriso, nada muito chamativo. Na minha teoria, aquele garoto não gostava tanto do mundo que o cercava, mas não tinha como sair dele, por isso vivia de cara fechada o tempo todo.
— Acho que ele está o mesmo de sempre.
— Falaram que ele e a Audrey terminaram.
Provavelmente esqueci de mencionar que minha amiga tem uma quedinha no Kai. Nele e na metade do corpo estudantil.
— Não acho que seja novidade para quem tem um relacionamento ioiô. — Voltei a atenção para lasanha à frente, dando mais uma garfada.
— Hoje é dia de festa, né. Talvez fosse ser interessante. — Deu os ombros, enquanto voltava a atenção para a salada de frango que trouxe de casa.
Em alguns segundos de desvio de atenção para a mesa atrás novamente, visualizei o exato momento em que Audrey esticou o pescoço para depositar um selinho nos lábios de Hernandez, para a tristeza de Willow. — Viu só? Já voltaram.

O resto das aulas ocorreu tudo da forma tediosa de sempre, então consegui chegar em casa no meu horário habitual, o que me dava tempo de sobra para minha corrida de rotina.
St. Louis fica na divisa entre o estado de Missouri e o estado de Illinois, o que separa ambos os estados é o famoso rio Mississippi. A orla de St. Louis não é igual as outras cidades americanas que todos conhecem: do lado em que morava, ao norte, possuía muita indústria, ferro e maquinário próximo às margens, a deixando mais deserta no horário mais noturno por não ser tão residencial nas redondezas. Já do lado sul, depois da ponte que unia ambos os estados, é onde conseguiria encontrar mais movimentação, principalmente por conta do Getaway Ach Nacional Park.
Não sou uma pessoa muito atlética, mas as corridas diárias haviam sido uma indicação da psicóloga, com a desculpa de que seria bom para colocar a mente no lugar e focar nas coisas positivas. Segundo ela, exercícios físicos liberavam endorfinas, o que auxiliaria no meu processo de recuperação após o trauma. Minha mãe não teria ficado tão feliz com a decisão do local em que pratico as atividades físicas, principalmente pelos horários, mas desde que tudo aconteceu, ela tem tentado não agir como superprotetora, por isso me fazia ir às festas colegiais.
Era o motivo pelo qual, quando decidi voltar para casa, já era um pouco mais de uma hora do horário em que costumava chegar. Minha mãe, H. , estava apoiada na bancada da cozinha, olhando para porta principal com um vinco entre as sobrancelhas. Sua expressão para mim quando atravessei a sala e fui até a cozinha beber água era de preocupação, mas, ao mesmo tempo, querendo me colocar de castigo pelo resto da vida.
— Me desculpa, precisava de mais um tempo sozinha. — Apressei para falar enquanto enchia um copo na pia, sem a encarar. A senti soltar o ar atrás de mim e entendi com a deixa segura para virar.
— Você poderia ter me avisado que atrasaria pelo menos.
— Não foi minha intenção.
Ela balançou a mão como se dissesse ser melhor deixar para lá. Notei que ela já estava pronta para começar o plantão do trabalho, blusa social azul clara com o símbolo da Divisão de Homicídios de St. Louis e calça de tecido azul-escuro.
— Estava me esperando para sair?
— Não. — Sim, sabia que sim. — Estou atrasando de propósito porque tenho muita papelada para resolver ainda.
A vi torcer o pescoço para o lado e para o outro, como se já tivesse voltado de um plantão e não estava indo. Desde que nos mudamos, quando ela foi transferida para a divisão de homicídios daqui, vinha reclamando da situação catastrófica que encontrou na delegacia, e organizar as papeladas ao mesmo tempo que resolvia crimes e tentava ganhar a confiança do pessoal de lá vinha sendo algo bem desafiador.
Uma notificação chegou ao meu celular e vi a Willa perguntando se queria que ela passasse aqui em casa ou não. Respondi que preferia que ela me encontrasse na festa.
— Você não deveria estar pronta para sair?
— Eu não quero ir. — Fiz drama enquanto me aproximava dela, colocando a cabeça em seu peito e fazendo bico. — Me obriga a estudar.
Ela riu, abraçando-me.
— É sexta noite, precisa se divertir um pouco também.
— Devo voltar à meia-noite, então?
— Você não é a Cinderela, mocinha! E não é como se eu fosse estar aqui para supervisionar também. Apenas prometa que vai tentar se divertir.
— Tudo bem. — Levantei as mãos em forma de redenção, enquanto me desvencilhava do abraço e caminhava para escada.
— Vou saindo, tenha cuidado.

Quando cheguei ao meu quarto, continuei me preparando para atrasar a ida para festa. Abri meu guarda-roupa e encarei todas as roupas que estavam à vista, sem conseguir visualizar nada que daria uma boa fantasia de Halloween.
“Ainda não sei o que vestir, acho que vou me atrasar.” Digitei para Willa, enquanto me apressava para tomar banho. Bem, apressar era uma palavra forte para o que realmente fazia. Levei cerca de dez minutos apenas para passar sabonete em todo corpo. Se a água do mundo tivesse acabado no outro dia, seria certamente a culpada. Ao sair, vesti meu pijama e sentei na cadeira da escrivaninha.
Chequei meu celular mais uma vez e percebi que Willow não me respondeu.
Respirei fundo e encarei o teto, tentando criar coragem para começar finalmente a me arrumar.
Um ruído no andar de baixo chamou minha atenção e prendi a respiração instantaneamente.
Pensei que poderia ter sido algo da minha cabeça perturbada e deixei para lá, mas continuei atenta só por precação.
Escutei mais um ruído, como se algo tivesse sendo arrastado levemente pela madeira do térreo, notando então que não era imaginação. Imediatamente, senti o ar pesar em meus pulmões e a respiração ficou descompensada.
— Mãe? — Tentei, mas não tive resposta. — Esqueceu algo?
Continuei sem resposta. Tentei dizer ao meu cérebro que foi apenas ela voltando para buscar algo que esqueceu ao sair, mas me senti traída por ele quando consegui perceber os batimentos cardíacos na boca e, no mesmo instante, fui transferida para alguns meses antes.
Escutei o ruído de passos no andar inferior, se aproximando da escada, e só então acreditei que realmente tinha mais alguém em casa.
Vasculhei o quarto rapidamente, tentando achar algo com que conseguisse me defender. A primeira coisa que notei foi um abajur antigo, que era da minha avó e estava desligado sobre a escrivaninha. Fiz movimentos lentos ao pegar o objeto para que outra pessoa não conseguisse adivinhar minha intenção. Escutei a madeira frouxa do terceiro degrau da escada ranger e caminhei devagar até a porta, ficando na lateral, esperando quem quer que fosse entrar a qualquer momento.
Fui obrigada a segurar o abajur com as duas mãos, porque o suor frio nelas o fez escorregar, as palpitações cardíacas se intensificaram ainda mais, e me questionei se era possível outra pessoa escutar além de mim. Minhas vistas ficam turvas e, por um momento, acreditava que ia desmaiar. Quando a maçaneta da porta começou a se movimentar, apertei ainda mais o objeto em meus dedos, ao ponto em que senti doer. A única coisa que me impediu de acertar a pessoa à frente foi o grito fino e os olhos arregalados da minha amiga, no momento em que ela pisou o cômodo.
Uma onda de alívio percorreu pelo meu corpo e consegui abaixar a pseudo arma que tinha nas mãos.
— Ia me atacar com o abajur? — Ela estava horrorizada.
— Você quem entrou na minha casa de fininho. — Deixei o abajur na mesa novamente e voltei a sentar na cadeira, sentindo a alma finalmente voltar para o corpo. — Aliás, não era para estar a caminho da festa agora?
— Primeiro, só queria te dar um sustinho. — Ela estava parada com a mão na cintura, igualzinho minha mãe quando estava dando uma bronca. — E segundo, senti cheiro de toco assim que li sua mensagem. Por que está de pijama? Já falei que não vai fugir dessa!
Observei ela jogar um taco de beisebol na cama, enquanto ia em direção ao guarda-roupa. Estudei a fantasia que ela estava vestindo: meia arrastão, short curto metade azul e a outra vermelha, tênis cano alto e uma blusa branca, rasgada, escrita “daddy little monster”.
— Você poderia ter trançado o cabelo um lado de cada cor dessa vez, para combinar com a Arlequina. — Era raro ver Willa sem estar com o cabelo trançado, principalmente porque estava em transição capilar. Ela me contou que, a cada três meses, trocava a cor do jambo e do estilo. Agora estava com um modelo twist em tom preto.
— E virar uma fantasia por meses? Não, obrigada. St. Louis já tem muita fofoca para lidar.
Assisti ela puxar uma camisa social enorme do móvel e uma bandana.
— Acho que dá para improvisar uma fantasia de pirata.
— Desde quando pirata tem algo a ver com terror? — Mesmo de lado para mim, percebi quando revirou os olhos, como se dissesse que a pergunta foi estúpida.
— Família Addams não é terror e as pessoas ainda consideram algo do Halloween — argumentou, ainda futricando minhas coisas.
— Desde quando você virou perita em Halloween?
— Assisto algumas coisas, tá? Só não gosto de sentir medo. — Ela se virou, atirando as peças de roupas sobre mim. — Agora vai logo se arrumar.
A fantasia no final foi bem improvisada. Coloquei a camisa social longa, um short curto de malha por baixo e um corset preto por cima para fazer a parte principal, uma meia-arrastão cheia de buracos que tinha, uma bota preta até o joelho e, por fim, a bandana na cabeça. A maquiagem deixei a cargo de Willow. Alguns minutos depois, estava dentro do Uber, em direção a uma casa abandonada mais ao norte da cidade.


Mal cheguei à festa e já estava arrependida.
Quando falaram que seria em uma casa abandonada, imaginei apenas uma propriedade normal sem ninguém morando, não uma caindo aos pedaços. Ela tinha uma aparência de que foi construída na Era Vitoriana, a tinta das paredes estava completamente desgastada e os vidros da fachada todos quebrados, as trepadeiras haviam tomado de conta de quase toda a estrutura. E, mesmo assim, não foi por isso que me arrependi.
Muitos dos que estavam aguardando para entrar soltavam fumaça como uma chaminé, e, veja bem, vape pode até ser mais cheiroso que cigarro em si, mas levar fumaça na cara não é legal, principalmente para alguém que tem rinite como eu.
E se fora já tava ruim, dentro daquele ambiente era quase como um verdadeiro cenário de terror: muita gente e pouca luz. As únicas fontes de iluminação do ambiente eram uma bola pequena no teto do pé direito duplo com luzes coloridas e um refletor piscando logo acima da porta principal. Assim que coloquei meus pés na propriedade, senti um bafo quente de ar me abraçar, roubando o ar dos meus pulmões. A música alta zumbia, balançando o que sobrou das janelas, com a mistura de vozes e melodias. Quase não consegui ouvir o gritinho de felicidade que Willa soltou quando ouviu tocar Somebody’s Watching Me, me agarrando pelo braço e andando em direção ao meio das pessoas.
Falar que não queria estar no meio da pista de dança já era bem redundante nesse ponto da história, entretanto, como já estava ali, precisava dar o meu melhor para não ser apenas aquela amiga rabugenta. Tentei acompanhar ao máximo os movimentos de Willow em uma coreografia improvisada, enquanto cantávamos em plenos pulmões cada letra da música.
— Você parece a Wandinha! — debochou de mim, rindo dos meus passos desajeitados.
— É Halloween! E você certamente não serve para Enid. — Ela me mostrou a língua, ainda entre as risadas, fingindo logo depois que estava me observando através dos dedos das mãos, enquanto girava em torno de mim, tentando equilibrar o taco de beisebol na outra.
O DJ emendou Rock With You logo em seguida, e não consegui sair da pista de dança.
Meus quadris se mexiam por conta própria, minhas mãos deslizaram por todo meu corpo, subindo da barra da blusa até os cachos. Fechei os olhos e deixei os vocais do Michael Jackson me levarem. Por um momento, tudo parecia certo, como se tivesse voltado um ano atrás, antes de tudo acontecer, quando conseguia viver o momento presente sem muito sofrimento. Sonhava com o dia que conseguiria fazer as coisas mais leves e por impulso novamente. Quando paramos de dançar, já era umas sete músicas à frente. Minha amiga me puxou para um canto mais reservando, enquanto tentávamos recuperar nosso fôlego, mas com ar quente do ambiente e a luz piscando que deixava tudo em câmera lenta, senti meu corpo perdendo as forças, a visão turva, implorando para que fechasse os olhos só um pouquinho…
— Vou pegar bebida para gente — a voz de Willow soou mais distante.
Tentei me recuperar puxando uma lufada de ar, tateando entre as pessoas até conseguir apoiar em uma parede. Andei mais um pouco, utilizando a estrutura de muleta até finamente encontrar uma porta. Quando abri, fui automaticamente transportada para a vida. Uma corrente de ar soprou no rosto e senti gradativamente minha respiração regularizar.
Estava em uma espécie de jardim que ficava na lateral da casa. Era aberto, amplo e possuía vários bancos, como uma praça qualquer da cidade, se não fosse por aquelas estátuas estranhas de ninfas espalhadas. Sentei-me em um dos assentos de pedra e observei ainda mais ao redor. Tinha algumas pessoas fofocando à esquerda, alguns casais se agarrando, encostados na parede imunda casa, e outros na parede do muro de visão das casas. Ao meu lado, tinha dois estúpidos fumando cigarro e, quando jogaram a fumaça para cima, mordi a língua para não os mandar para a casa do caralho.
Reconheci Audrey digitando freneticamente no celular, enquanto uma das amigas dela tagarelava sobre algo que não consegui escutar. Estavam bem à frente, próximas a uma cerca viva.
— O que está olhando? Perdeu algo aqui? — Escutei ela falar quando desviou o olhar do aparelho em minha direção. Observei-a erguer uma das sobrancelhas, reafirmando sua pergunta, o odor da nicotina invadiu minhas narinas e dei por saco cheio daquela festa. Levantei-me sem falar uma palavra e decidi caminhar pelo jardim. Alguém murmurou um “estranha” quando dei as costas, mas já não me importava.
Recebi uma mensagem de Willow dizendo que teve um “delicioso atraso”, mas que me encontraria em breve. Dei risada e bloqueei a tela.
Existia um tempo em que agia assim o tempo todo, agora não tinha vontade nem de frequentar espaços como aqueles.
Andei mais até os fundos da casa e percebi que existia um corredor, me virei à direita e notei a presença de uma figura masculina encostada na parede da casa, olhando para cima.
Não tive muito tempo para raciocinar todas as ações terríveis que decidi fazer, sem saber se culpava o ambiente, a nicotina ou a mensagem de Willa, mas puxei a jaqueta que estava vestindo e grudei meus lábios nos dele.
O primeiro sentimento foi choque. Senti seu corpo tencionar pela surpresa e fui empurrada para o arrependimento quase que instantâneo.
Quando pensei em quebrar o beijo, fui pega de surpresa quando senti um braço forte enlaçar minha cintura, me puxando mais para perto, enquanto a outra mão se enroscou nos meus cachos, aprofundando o beijo.
Sua língua se enroscou com a minha, enviando uma mensagem para meu cérebro. Meu corpo inteiro faiscou, pedindo por mais.
Esqueci tudo ao redor – festa, barulho, calor –, me concentrei apenas no gosto dos seus lábios, algo doce misturado ao álcool barato. O escutei gemer suavemente quando enrosquei os dedos na gola da jaqueta de couro, o puxando mais para perto, deixando tudo mais intenso. Meu corpo entrou em combustão, como se precisasse daquilo por tanto tempo. Saboreei cada segundo das sensações. Ele mordiscou meus lábios, puxando o inferior delicadamente ao encerrar o beijo.
Precisei de um tempo para recuperar o fôlego, pisquei algumas vezes para me acostumar com a escuridão, me afastando só um pouco para descobrir quem era a pessoa à frente. Assisti ele encostar a cabeça na parede, enquanto me encarava por cima, curiosamente.
Seus olhos castanhos-claros eram inconfundíveis.
A realidade me atingiu como um raio e percebi a merda que fiz. Acabei de beijar Kai Hernandez.



Foi na segunda que percebi o ar esquisito de St. Louis High School.
Havia chegado ao colégio no mesmo horário habitual de sempre, os quinze minutos necessários para pegar meus livros nos armários, encontrar Willa e seguir para a primeira aula sem atrasos.
Demorei mais do que o normal para pegar o caderno de física.
Do outro lado do corredor, avistei Kai cercado de alguns amigos, rindo de alguma piada que eles tinham contado. Nossos olhares se cruzaram por um instante, meu sangue foi bombeado mais rápido pelas veias à medida que as lembranças dos seus braços em volta da minha cintura preencheram o espaço. Ele foi quem quebrou o contato visual primeiro. Fechei os olhos e os apertei, me obrigando a retirar essas sensações constantes desde sexta-feira.
Perguntei-me o quão chateado ele teria ficado depois que praticamente fugi ao perceber quem era a pessoa à minha frente. Sentia-me como se tivesse saído com alguém e esquecido de ligar no outro dia.
Willow foi quem me trouxe de volta à realidade no corredor, com um olhar carregado de curiosidade enquanto se aproximava.
— Está melhor? — Quase me senti uma amiga pior do que já era quando ela perguntou.
Em meio à minha fuga, tinha mandado uma rápida mensagem avisando que não estava me sentindo bem e precisava voltar para casa. Em partes, era verdade. No outro dia, ela mandou milhões de mensagens perguntando como eu estava e se queria companhia. A mentira me fez ficar enjoada o resto do final de semana. Não consegui olhar naqueles olhos escuros brilhantes após omitir a maioria das coisas.
Inclusive, decidi sozinha no quarto, enquanto remoía o que aconteceu, que Kai Hernandez era um assunto proibido entre nós.
Tentei sorrir e respondi vagamente que estava bem.
Ela me abriu um de seus sorrisos aliviados e começou a tagarelar sobre as atitudes bêbadas dos alunos na festa, seguindo nosso roteiro habitual. Após fechar o armário, desviei o olhar apenas para descobrir que Hernandez não estava mais no corredor. Suspirei um pouco aliviada e segui Willow até a sala de aula.


— Vou passar uma atividade sobre o assunto e quero que façam em duplas — o Sr. Russell anunciou, assim que terminou de explicar a lei da ação e reação.
Virei-me para minha amiga, que piscou para mim, mas seu sorriso se desfez quando o professor de física continuou:
— A primeira fileira vai se juntar com a segunda, a terceira com a quarta, e assim por diante.
Acabei fazendo dupla com Mateo Cobell.
— Vocês deverão apresentar uma situação qualquer que consiga ser representada com as leis de Newton, porém ela não pode ser coisas já comumente aceitas, como um acidente de carro, por exemplo. Quero algo metafórico, para me provar que entenderam o cerne do assunto. Usem a imaginação de vocês.
Queria que o Sr. Dicker nunca tivesse caído da escada.
O barulho de mesas sendo arrastadas preencheu a sala de aula assim que o Sr. Russell terminou de explicar todas as exigências que queria para o trabalho.
— Você já tem alguma ideia? — Mateo perguntou, quando parou ao meu lado.
Eu nunca tinha reparado muito na existência dele até aquele momento. Sua pele era tão branca que se fundia ao cabelo descolorido cacheado, ressaltando a íris quase tão escura quanto carvão. Os óculos que usava eram redondos com armação bem fininha, e vestia uma camisa de tecido de gola polo. Vasculhei na memória algum resquício que Willa pudesse ter comentado sobre ele, mas sem sucesso.
Neguei com a cabeça, e o vi sorrir minimamente. Percebi os dentes levemente amarelados e me questionei se era porque ele bebia café demais ou era um dos muitos fumantes do colégio.
O sinal tocou, indicando o final da aula, e todos ao nosso redor começaram a se levantar.
— Toma. — Ele anotou algo às pressas em uma folha do caderno e rasgou, me entregando. — É meu número. Manda mensagem e pensamos em algo — disse, já se levantando também. — Trabalho no Cine Galleria até umas seis horas da noite. Podemos nos encontrar por lá. Dias de semana é vazio.
— Tudo bem. — Foi tudo que falei antes de seguir para a próxima aula.


No intervalo, encontrei minha amiga na mesa de sempre.
— Ela quer falar sobre o filme Carrie, acredita? Não sei se ela tem muito amor à própria vida — Willa reclamava repetidamente sobre ter que fazer dupla com Carrie, e a única coisa que consegui foi achar graça.
— O clássico ou o remake? — provoquei, e seu olhar me intimidou como se me desafiasse a repetir.
— Isso importa? Não vou deixar isso acontecer. É suicídio social!
— Sabe alguma coisa sobre minha dupla? Mateo Cobell? — Mudei de assunto e notei quando ela hesitou em responder, mordendo mais um pedaço do sanduíche e mastigando lentamente, dividindo a comida em mil pedacinhos. — Willa?
Nos meses em que conhecia Bennett, ela nunca hesitava em comentar sobre nada. Quando cheguei no primeiro dia de aula, me apresentou o que chamou de “intensivão do St. Louis High School”, contando as principais fofocas que rolavam pelo colégio. Das mais bestas, como quem era pego colando nas provas, até as mais cabeludas, como a do ex-diretor, que foi pego traindo a esposa com uma professora 15 anos mais nova do que ele, e por isso ambos foram demitidos.
Por isso, quando ela hesitou em fofocar sobre Mateo, meu estômago revirou e percebi que era capaz de colocar meu almoço para fora ali no meio do refeitório.
— Nada com que deva se preocupar…
Antes mesmo que eu conseguisse insistir mais um pouco, fui interrompida por uma gritaria à nossa direita.
O refeitório inteiro desviou o olhar para a cena que estava acontecendo na frente do balcão principal: Brian Stimson segurando outro garoto pelo colarinho. Brian era imponente, possuía um braço cheio de tatuagens, mesmo que ainda fosse menor de idade, e o seu cabelo era totalmente raspado. Já seu adversário, era ossudo e pequeno, seus pés quase não tocavam o chão à medida que o outro o levantava do chão e grudava seus rostos durante o ataque de fúria, evidentemente em desvantagem. As lentes de grau evidenciavam ainda mais os olhos arregalados do garoto.
— Foi você? Não foi? — ele repetiu várias vezes, antes de soltar o garoto e encarar todos os presentes. — Eu não sei quem fez isso, mas vou descobrir! — Levantou um papel amassado. Sua raiva era quase palpável; a pele ao redor do pescoço estava intensamente vermelha, uma veia sobressaltou-se tão nitidamente que parecia que iria infartar a qualquer momento. — E essa pessoa está ferrada!
Ele fez uma bolinha com o papel que estava segurando e o jogou na lixeira antes de sair esmurrando a porta principal do refeitório.
Esse era o tipo de coisa que eu ainda não tinha presenciado.
Fiquei com uma leve vontade de levantar e desamassar o papel do lixo, mas nem precisei de tanto esforço quando outra folha impressa bateu na lateral do meu tênis. Afastei-me da mesa o suficiente apenas para pegá-la. O refeitório permaneceu em um silêncio tão absoluto após a cena que consegui ouvir mais papéis sendo passados de mão em mão por todas as mesas. Antes de ler, encontrei o olhar assustado de Willa à minha frente. Suas íris pareciam aumentar gradativamente à medida que ela lia o que estava escrito em uma folha. Seus óculos de grau escorregavam devagar pelo nariz, mas ela parecia não se importar, lendo e relendo várias vezes.
“Todos os alunos do St. Louis High School devem dirigir-se imediatamente ao ginásio.”
O aviso ecoou dos rádios do colégio, e só então tomei coragem para ler o que estava escrito no papel:

“Brian Stimson forneceu a droga que levou seu irmão a morrer de overdose.
Ele matou o próprio irmão.”



Foi Willa quem me arrastou pelo braço em direção ao ginásio quando fiquei imóvel.
E só durante a minha corrida da tarde que consegui repassar todos os fatos que aconteceram pela manhã.
Nunca tinha visto tantas pessoas juntas em um lugar amplo conseguirem fazer tanto silêncio quanto tinham ficado na arquibancada; era perceptível ouvir as respirações de cada um e até mesmo se alguém ousasse engolir. Brian tinha sido dispensado do colégio por uns dias e ficamos ouvindo por pelo menos trinta minutos o Diretor Kane dar um daqueles sermões, afirmando que acharia o responsável.
Não consegui mexer mais do que o necessário enquanto relia mentalmente o que estava escrito naquele bilhete. Pensei que se todas aquelas letras em conjunto me chocavam, não conseguia imaginar o que se passava na cabeça de Stimson.
A culpa era um dos piores castigos que alguém poderia carregar em vida.
Ela te consumia aos poucos, impregnava nas suas veias, infectava seu sangue como se fizesse parte do DNA. Fazia você duvidar de quem era até te levar ao limite e destruir tudo.
Não conseguia calcular o quanto ele teria ficado afetado ao ver essa dor sendo exposta.
Porém, eu sabia o quanto isso me destruiria no lugar dele.

Cheguei em casa depois do horário de costume novamente, mas, dessa vez, não encontrei Hannah me aguardando no balcão. Em vez disso, ela estava de joelhos no chão da sala, mexendo em alguns fios.
— Isso é um leitor de DVD? — Notei o aparelho em que ela mexia, assim que me ajoelhei ao seu lado. Seu cabelo recém-lavado pingava no tapete, e ela usava shorts e um casaco de moletom, denunciando que não era dia de plantão.
Decidi não comentar com ela sobre o incidente mais cedo no colégio, mas sabia que era questão de tempo até que ela descobrisse algo.
— Aham. — Ela estava tão concentrada que nem me olhou ao responder. — Um policial estava vendendo, e pensei que seria legal trazer.
— Você sabe que nossa TV é smart e tem, no mínimo, uns dez serviços de streaming disponíveis, certo?
— Sim, mas nem todos os filmes do mundo estão disponíveis nesses aplicativos. Lembro bem de ouvir alguém nesta casa reclamar porque queria assistir O homem que enganou a morte e não achou em canto nenhum.
— Só que consegui assistir depois, quando… — Estava prestes a completar que tinha visto o filme baixado de um site pirata, mas minha mãe levantou uma das mãos para me interromper, me encarando com uma das sobrancelhas erguidas.
— Não quero saber os meios ilegais que minha filha usa para assistir, ainda sou policial.
Um riso escapou da minha garganta e assenti com a cabeça, voltando a focar no aparelho que ela segurava.
— Como pretende conseguir os filmes? Best Buy?
Você é quem vai alugar os filmes que preferir em um blockbuster que tem próximo à sua rota de caminhada. — Sua ênfase deixava claro que não era uma sugestão, mas, sim, uma ordem.
— Achei que todas essas lojas já tinham falido antes de eu nascer — enquanto falava, já estava de pé, pronta para subir ao meu quarto.
— Vi uma no caminho para a delegacia, por isso decidi comprar isso aqui. — Ela terminou de fixar os cabos e foi sentar-se no sofá, com o controle na mão, para testar se estava funcionando.
— Preciso ir ao cinema adiantar um trabalho, tem como me deixar lá?
— Não precisa mentir quando está indo para um encontro. — Rolei os olhos, enquanto me dirigia para a escada. Felizmente, estava de costas para o móvel em que ela estava sentada, se não levaria bronca.

Alguns minutos mais tarde, estava dentro do Cine Galleria.
Minha ideia inicial era ter vindo após o horário de saída do Mateo, para não o atrapalhar durante o expediente, só que ele teria um compromisso depois.
O cinema em questão era um cinema de rua, ficava a cerca de seis quadras da minha casa.
Apesar de ser um local pequeno e com apenas quatro salas de exibição, nada me prepararia para estar dentro daquele ambiente.
O Cine Galleria ficava em um prédio histórico, o pé direito da recepção era duplo, um lustre clássico enorme cheio de cristais pairava sobre minha cabeça. Possuía duas escadas laterais com tapete vermelho de veludo, que levavam para o mesmo patamar, só então mais uma escada para o primeiro andar. No saguão, a bilheteria ficava no meio dessas duas escadas, e a bomboniere na lateral esquerda, justamente onde estava apoiada no balcão. Mateo me explicou que possuía duas salas em cima e duas salas embaixo, e ainda, ao passar pelas portas, existia uma espécie de cortina, finalizando todo o charme do ambiente.
— Assistir a filmes no cinema é uma das minhas atividades favoritas, e assistir aqui é uma experiência ainda maior.
Ele usava uma farda em tom vermelho vivo, a jaqueta possuía botões dourados duplos em fileiras distribuídos de forma simétrica, nos ombros tinha dragonas também douradas, uma de cada lado, e a gola alta vermelha ia até o meio do pescoço. A calça, pelo que podia ver pelo balcão, possuía o mesmo tom avermelhado.
A roupa remetia aos lanterninhas de teatros clássicos, para combinar com todo o ambiente.
Não sabia se eram as luzes amareladas, as roupas ou o fato de estarem em um ambiente diferente, tive a sensação de que Cobell estava muito mais bonito do que quando conversamos mais cedo. O tecido destacava os músculos do peitoral, seus cachos estavam mais desalinhados e seus olhos pareciam estar mais brilhantes, talvez mais dilatados? Não saberia dizer bem. E, com a nossa proximidade, consegui sentir um leve perfume amadeirado que usava, longe do cheiro de nicotina que imaginei que teria.
Percebi que estava o admirando demais quando percebi que me encarava com o olhar carregado de curiosidade.
— E então, pensou em algo?
Por uma fração de segundo, esqueci como se falava por ser pega no flagra, gaguejando um pouco antes de respondê-lo:
— Não. Eu...
Respirei fundo, tentando reformular internamente uma frase mais coerente. Não tinha pensado exatamente em nada. O ambiente causou um efeito nostálgico, me relembrando da conversa com Willow pela manhã, então fingi que sim.
— E se fizermos relacionado a filmes? Uma leitura diferente dos atos ou algo assim?
O loiro balançou a cabeça, considerando a ideia.
— Filmes em geral ou algum específico?
— Específico.
Nossa conversa foi interrompida por uma garotinha que veio buscar um balde de pipoca para entrar na sessão. Observei ele se afastar para atendê-la com um sorriso simpático nos lábios. Um leve indício de ciúmes me invadiu quando apenas pensei que queria aquele sorriso direcionado para mim, entretanto, voltei a racionalizar quando Cobell voltou para o seu posto de frente para mim.
— Sugestão? — Ele retomou a conversa de onde paramos. Neguei. — O que você gosta de assistir? Podemos começar daí.
— Gosto de filmes de terror. — Esperei sua reação. Seus olhos se iluminaram um pouco mais e aquele sorriso apareceu mais uma vez, só que dessa vez para mim.
Senti um resquício de orgulho subir e rapidamente o afoguei com saliva.
— Ótimo — concluiu então. — Nós podemos pensar separadamente em filmes que façam sentido na ideia principal e partirmos desse ponto.
Concordei, e ele foi atender mais um cliente.
Uma garota mais ou menos da nossa idade surgiu de trás da cortina que ficava no fundo da bomboniere. A primeira coisa que notei foi uma fileira de belos piercings na orelha esquerda, que prendiam uma parte do cabelo preto e liso atrás. Seu rosto era fino e o nariz levemente pontudo, os olhos estavam cobertos por óculos escuros. Irritantemente me segurei para questioná-la se percebeu que já era noite lá fora. Ela usava a mesma roupa que Mateo, só que um pouco mais folgada. Quando se aproximou do loiro, que estava servindo bebidas na máquina, foi quando percebi que ela era mais alta que ele.
— Essa é Becca — Mateo apresentou a garota. — Ela quem assume o turno depois de mim.
A garota em questão me cumprimentou rapidamente, antes de voltar para trás da cortina.
Alguns minutos depois, fiquei aguardando Cobell largar o turno em pé, no centro do saguão.
Aproveitei o tempo sozinha e encarei o lustre mais uma vez.
Quão drástico seria se ele caísse?
Ele era tão grande e, provavelmente, tão pesado, que tremeria completamente o prédio. O metal das hastes amassaria e partiria, o chão de pedra aos meus pés ficaria cheio de rachaduras, os cristais se despedaçariam em milhões de pedacinhos, atingindo todos ao meu redor.
Seria um baile de sangue e horror.
— É lindo, não é? — Cobell foi quem tirou os meus pensamentos. Abaixei a cabeça para olhá-lo, admirando o objeto acima de nós. Os botões da farda já estavam abertos, revelando uma regata branca fina grudada em seu peitoral. Uma leve rajada de vento entrou pela porta principal e balançou seus cachos. — É a minha coisa preferida daqui, além de poder assistir a filmes de graça, claro.
Seu olhar desceu do lustre para mim.
Balancei a cabeça para afastar uma imagem real à minha frente. Precisava parar urgentemente com aquilo. Não tinha nem 24 horas que conhecia Cobell, caramba!
— Quer carona para casa?
— Não precisa, vou aproveitar que vim aqui e assistir a algum filme.
Não consegui dizer em voz alta que toda aquela conversa de trabalho poderia ter sido resolvida em quinze minutos de mensagens trocadas no WhatsApp, mas me peguei na contradição de ter adorado conhecer aquele lugar.
— Vejo você por aí então — ele se despediu, e logo depois fui em direção à bilheteria.

Cada sala de cinema exibia um filme, percebi isso quando tentei escolher entre eles. Havia três lançamentos mais recentes e um com cartaz dourado escrito "relembre", de 1973. Balancei a cabeça em negativa. Coisas antigas eram realmente a praia de St. Louis, como blockbusters e cinemas de rua em prédios do século passado, mesmo que fosse uma cidade bastante industrializada e com muitos arranha-céus no centro, uma parte parecia estar vivendo como incas e maias.
No fim, o filme antigo foi minha decisão. Não há nada melhor do que um filme de terror em qualquer horário.
Durante a compra do ingresso, enviei uma mensagem para Hannah, avisando que ficaria mais um tempo para ver o filme.
Depois, fui encontrar Becca novamente, no balcão no qual estava encostada mais cedo, para pegar o que provavelmente seria minha janta.
— Qual filme vai assistir? — questionou, enquanto selecionava algo no computador, antes de começar a preparar o balde de pipoca.
— O Homem de Palha — comentei, me debruçando um pouco no balcão, já um pouco mais à vontade com o ambiente, enquanto brincava com os guardanapos expostos.
A garota soltou um gritinho de animação e sorriu para mim, mostrando todos os seus dentes perfeitamente alinhados.
— Eu amo filmes de terror, principalmente os antigos. Assisto sempre que entram em cartaz aqui.
Abri um sorriso em resposta.
— É a melhor coisa! — concordei.
— Volte mais vezes. Podemos trocar mais figurinhas sobre filmes — ela disse, me entregando o balde e o copo de refrigerante.
Entrei em uma das salas de baixo.
Foi a primeira vez que vi O Homem de Palha. Esse era um dos filmes sobre os quais tinha reclamado com minha mãe por não achar em lugar nenhum para assistir.
E assim, fluidamente, comecei a gostar da ideia de ter um aparelho de DVD em casa, fazendo uma nota mental para ir até a loja que ela tinha comentado.
Aquele filme era exatamente o meu tipo de filme.
Não era só sobre terror gráfico, era sobre a estranheza e o desconforto te consumindo a cada cena que se passava. Uma enorme teia de aranha que ia se embolando cada vez mais.
Não que eu não amasse filmes mais gráficos, slashers sempre estariam em segundo lugar no meu coração, mas o teor macabro com aquele suspense era um prato cheio.
Saí da sessão uma hora e alguns minutos depois quase revigorada. Já fazia algumas semanas que eu não via nada naquele estilo. Procuraria depois para rever e capturar mais detalhes. Conferi as notificações do celular assim que saí da sala de cinema. A primeira que apareceu foi da minha mãe, avisando que não poderia vir me buscar, porque tinha surgido algo urgente do trabalho.
A segunda notificação era de Willow e talvez explicasse a anterior:


“Brian Stimson está morto.”



Brian chegou em casa um pouco após o pôr-do-sol. Sua roupa era a mesma que escolhera usar quando foi ao colégio mais cedo, mas agora a regata branca canelada encontrava-se imunda e sentia que a calça folgada pesava vinte vezes mais do que antes. Ele sabia que estava completamente fodido, sua mãe havia ligado compulsivamente a tarde inteira, e o garoto não teve coragem de atender uma mísera vez.
Dezenove meses. O tempo que prometera a si que pararia com tudo; as drogas, álcool, com tudo. Fazia um ano e sete meses que Mylo se fora e deixara um buraco vazio na sua vida.
Seus pais lutaram para que a informação do rastreamento da droga que o matou não vazasse e, depois de muitos acordos, a promotoria aceitou. Só que ali estava ele, cambaleando no quintal da própria casa, tentando não fazer barulho para que não fosse notado por alguém da vizinhança. Sua mãe não precisava de mais um problema para lidar naquele momento.
Pelo menos as luzes apagadas da casa sinalizavam que eles não estavam por lá. Provavelmente na delegacia, ele pensou, se lembrando vagamente de ter lido alguma mensagem do pai falando sobre.
Sentou-se em uma das espreguiçadeiras da piscina e deixou o corpo relaxar, fechando os olhos. Péssima ideia. O mundo de Stimson girou rápido, mesmo na escuridão, levando o ácido do estômago até a garganta. Engoliu depressa, impedindo que o vômito chegasse ao destino.
O corpo inteiro do garoto estremeceu em arrepios quando uma corrente de ar fria passou por ele. Aquele lado da cidade costumava ser silencioso, a única coisa que costumava dar sons ao ambiente era o vento forte no final do ano, conversas familiares e o barulho dos motores automotivos. Entretanto, mesmo sabendo isso, quando escutou o farfalhar das folhas mais uma vez, ainda abriu os olhos para conferir, ficando levemente desorientado. Ele não sabia dizer quantas doses de álcool havia tomado naquela tarde, mas mesmo seu estado de embriaguez não deixou passar despercebido. A noite em St. Louis já estava ficando mais fria por conta do inverno que se aproximava, então acreditou que fosse apenas uma corrente de ar.
Entretanto, perturbado com a ideia, se sentou mais ereto na espreguiçadeira e tomou a garrafa de vidro que abandonara no chão, virando mais um gole e a atirando com força na grama depois. A cada golada que dava, o arrependimento o consumia por dentro. Sua mente rodopiava com vários “e se”. E se ele não tivesse bebido naquele dia? E se ele não tivesse começado a vender drogas? E se o irmão dele nunca tivesse achado as pílulas?
Passou as mãos pelo rosto, se obrigando a voltar para a realidade. Remoer o passado não iria mudá-lo, mesmo que o presente fosse a explosão do caos embrulhada em desastre.
Seu olhar focou em algo redondo, branco e pequeno no chão. Sentiu o coração querer saltar para fora do peito. Levantou-se ainda cambaleante, caindo de joelhos perto do mini objeto redondo, o pegando com os dedos. Ele não precisava de muito para entender o que era, já tinha visto várias pílulas iguais àquela, vendido inúmeras.
Havia sido algumas dessas que mataram seu irmão.
Sentiu-se amolecer ainda mais quando as lágrimas invadiram seus olhos, deixando a visão ainda mais turva. Um grito alto saiu do fundo da garganta, enquanto levava a mão ao peito, puxando o tecido branco com tanta força até o ouvir estralar. Como se destruir aquela peça pudesse partir igualmente o coração no meio até não sentir mais nada.
Em seu momento de surto, quase não percebeu a figura do outro lado da piscina. Se deu conta da presença de uma segunda pessoa pelo reflexo da água, que era iluminada perfeitamente no centro da piscina, por conta do refletor virado naquela direção. O choro calou-se na hora. Procurou ar nos pulmões. Não queria ser assistido naquele momento de vulnerabilidade.
Inicialmente, achou que fosse um dos seus pais, mas a figura estava utilizando uma vestimenta preta que ia da cabeça aos pés, esses os quais estavam calçados em uma bota igualmente escura.
— Quem é você? — perguntou indeciso, não conseguiu dizer se era realmente uma pessoa ou apenas algum efeito do álcool. A visão ainda estava borrada por conta do choro, o que não o ajudava.
Foi possível ouvir os passos calmos e calculados, enquanto a figura se aproximava, dando a volta na piscina. O capuz ficou evidente, a ponta da roupa arrastava no chão, e a sombra ficava maior a cada passo. O rosto da pessoa estava escondido por uma máscara branca, imitando um rosto de manequim; os lábios desenhados em tons vermelhos, e havia outra máscara desenhada por cima, daquelas dignas de bailes antigos, com adereços azuis e dourados, cheio de contornos, parecendo galhos retorcidos desenhando as curvas da máscara, envolvendo os olhos.
— O que você quer? — Tentou mais uma vez, paralisado, ainda ajoelhado no chão.
O coração do garoto martelava cada vez mais alto, anunciando que algo estava errado. A ficha do garoto só caiu quando algo reluziu da mão envelopada por uma luva, decidindo que não ficaria ali para ver. Não teria a resposta que queria.
Levantou-se o mais rápido que conseguiu, tropeçando nos próprios pés enquanto corria em volta da piscina. Sentia a borda escorregadia sob os passos e evitava olhar para trás. Do outro lado, a figura mascarada continuava a avançar, passos lentos, como se soubesse que Brian não tinha para onde ir.
— Isso não tem graça — Brian voltou a falar, já do outro lado da piscina, dessa vez na parte iluminada. O silêncio do mascarado o incomodava, esperava que a pessoa fosse tirar a máscara a qualquer momento e afirmar que era apenas uma brincadeira.
Entretanto, em vez disso, o outro continuava a se mover sem tirar o olhar um segundo sequer da direção do garoto. Quando o assassino decidiu acelerar o passo para encontrá-lo, Stimson obrigou-se a correr, independentemente se fosse uma brincadeira ou não, ficar parado não ia aliviar as sensações que sentia.
Contornou a borda da piscina mais uma vez, com tamanha pressa que não notou a espreguiçadeira que tinha deitando minutos antes, tropeçando no objeto. O barulho do osso da canela chocando-se com a madeira ecoou pelo jardim. O garoto tentou levantar rapidamente, mas a dor da pancada o embriagou igualmente ao álcool. Se arrastou pelo chão ao ouvir os passos da figura ficarem mais constantes, correndo em sua direção.
Não demorou muito para sentir um corpo em cima do seu.
As mãos do assassino o seguraram pela gola da camisa, imitando a atitude que tivera mais cedo no refeitório com a primeira vítima que escolheu para intimidar, enquanto os joelhos pousavam de cada lado do corpo de Stimson, o prendendo no chão.
— Me solta, seu filho da puta! — Irritou-se, empurrando o corpo do mascarado para cima, desferindo murros na barriga do assassino.
Uma das mãos envelopadas subiu para o pescoço de Brian, mantendo o corpo do garoto no chão, tentando imobilizá-lo. As pernas dele balançavam embaixo, chutando o ar, na tentativa de se desvencilhar. Mas a mão em volta do seu pescoço continuava aumentando a pressão, dificultando a passagem de ar. Os dedos cobertos brincavam com as artérias da garganta, como se memorizasse a anatomia pelo toque.
Talvez, se não estivesse tão embriagado, conseguira se safar dessa, mas, naquele estado, não tinha tanta força.
Aquietou-se por um instante e sentiu a pressão diminuir, voltando a ficar mais forte quando tentou se soltar mais uma vez.
As lágrimas malditas voltaram a tomar conta do rosto de Brian, uma chuva ácida de frustração. Esse deveria ser o verdadeiro presente do desastre, o seu destino. Lembrou-se que, quando Mylo faleceu, sua mãe se confortava falando que foi assim porque Deus quis, então talvez esse mesmo Deus quisesse acabar com o sofrimento de uma vez. Ela não precisaria lidar com as péssimas escolhas que o filho mais velho fez e trazido consequências piores para dentro de casa.
Quando percebeu algo reluzir novamente em sua visão periférica, entendeu que o caminho certo era aceitar. O objeto limpo, polido e afiado brilhava sob a luz do refletor.
Voltou a encarar a pessoa à sua frente. A tela escura da máscara impedia que a vítima encarasse o assassino nos olhos, mas respiração regulada da figura era perceptível, causava calafrios no corpo do garoto. Brian teve clareza que estava ali para matá-lo e parecia gostar disso.
— Me mata! — implorou, notando a hesitação por um instante, a sentindo afrouxando o aperto. — Não foi por isso que você veio até aqui? Ahn?! — Continuou a provocar. — Me mata!
A voz do garoto saiu firme, mesmo que ele não soubesse dizer como.
Não dava para saber se ele pedia para ganhar tempo, como um ato de misericórdia, ou um convencimento pessoal. Uma vez que a mão esquerda do mascarado escorregou para o colarinho da blusa, a faca afiada perfurou a pele fina do pescoço de forma rápida e precisa, sendo puxada logo em seguida, para, então, repetir o movimento novamente.
Quando pensou em morrer, Brian não imaginou a dor nauseante que sentiria, quase como analgésica. Tentou empurrar a figura mascarada mais uma vez, mas os braços já não respondiam com tanta precisão. O sangue quente corria pela própria pele, jorrando como uma fonte apreciada por turistas, e nesse caso o apreciador era seu próprio assassino. Assim que puxou o ar, piorou a situação, se engasgando com o próprio liquido vermelho. O corpo do garoto começou a dar solavancos, tudo ao seu redor começou a passar em câmera lenta, inclusive quando a figura levantou o objeto cortante novamente, dessa vez com as duas mãos, a empurrando com força no peito de Brian.
Eram audíveis os órgãos do rapaz abrindo-se por dentro. Girou o objeto na tentativa de arrancá-lo o último suspiro, assistindo os olhos do garoto revirarem em angústia. Apreciou o corpo do rapaz amolecer embaixo de si, para só então puxar a faca pela última vez.
O assassino observou a obra de arte de longe; as órbitas frias e paralisadas, o banho de sangue. Molhou a faca na piscina para limpá-la, usando a luva para terminar o serviço, saindo pelo mesmo lugar que entrou. E, enquanto o reflexo da água engolia o brilho vermelho, o silêncio finalmente respondeu às preces de Brian.


Continua...


Qual o seu personagem favorito?


Nota da autora: Oi, gente! Demorei para enviar esse capítulo porque ele mexeu comigo mais do que esperava. Reescrevi várias vezes, reli inúmeras e chorei um pouquinho arrasada com o fim que dei ao Brian. Pensei muitas vezes em descartar ele também, mas, na minha cabeça, faz sentindo ele existir. Espero que tenham gostado desse aqui e prometo não demorar tanto para os próximos! Beijinhos, menor que três.

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