Codificada por: Cleópatra
Finalizada em: 20/02/2025Graças a ele, eu havia desenvolvido uma técnica, que metade da sala já havia aderido: Anotar cada palavra do professor. Eu apostava comigo mesma que conseguiria anotar um parágrafo inteiro sem interrupções, para isso eu tinha que escrever bem rápido. O professor Victor ajudava bastante, já que ele sempre falava como se estivesse com cinco batatas na boca e numa lentidão terrível. No final, todos comparavam seus cadernos, se alguém estivesse com uma frase a menos que todo mundo, já sabíamos que essa pessoa havia perdido um parágrafo.
Eu já estava igual um zumbi, sentia meus olhos arderem, mas esse método mantinha todos acordados, gerava uma divertida competição e ainda éramos obrigados a prestar atenção na aula. Às vezes, ficava um pouco confuso, mas na prática geral, funcionava direitinho.
– Julie? – Ouvi a voz de Toni chamar meu nome em uma cadeira atrás da minha, mas não quis me mover. Olhei para o lado, preocupada com a disputa e notei que Bela escrevia tão rápido que já tinha uma frase inteira antes da minha. – Quer que eu passe na sua casa hoje?
Franzi a testa, em dúvida sobre o que ele estava falando. Inclinei meu corpo um pouco para trás, tentando ouvi-lo melhor. Toni foi um dos primeiros amigos que fiz em Hillswood. Fizemos nosso primeiro projeto de área juntos, nos tornamos bem próximos após isso e eu até conheci sua adorável família.
O "adorável" foi ironia.
– Para quê? – Questionei, confusa. Resmunguei quando precisei pular uma grande quantidade de palavras para chegar na frase atual do professor.
– O aniversário da Heide. Você esqueceu? – Reclamou, cutucando meu ombro. Eu tinha esquecido completamente, é claro. Com o semestre chegando ao fim e minha vida amorosa explodindo de uma forma diferente a todo final de semana, eu acabava ficando bem alheia a tudo em minha volta. – Droga, Julie! Você me prometeu...
Toni era o típico "pobre menino rico". Ele não se adequava aos padrões que sua família, podre de rica, impunha sobre ele.
Começando pelo fato de ser uma família cristã ortodoxa e ele era bissexual assumido. Acho que só não o expulsavam de casa pois ele era inteligente e estava sempre salvando a editora da família de afundar-se em polêmicas e mal gosto. Apesar de todo o dinheiro e status, o homem não gostava nada da vida que levava. Ele, na verdade, sempre quis ser pintor.
Heide, sua irmã mais velha, era diferente dele. Ela era atriz e cantora, já havia até participado de um musical na Broadway. Heide era uma mulher legal, mas sua criação no meio do luxo e riqueza acabaram deixando marcas fortes em sua personalidade. O nariz empinado e o esnobismo era uma delas. Apesar de eu ter problemas com gente rica, acabamos nos tornando amigas. Eu adorava musicais e Heide encontrou em mim uma parceira em potencial para suas festas musicais, já que Toni fugia dos padrões impostos sobre gays/bissexuais e odiava musicais.
– Ah! É claro que eu não esqueci! É que eu estava concentrada aqui. – Larguei a caneta, olhando para os lados, vi Bela e Ed sorrindo debochados ao perceberem minha desistência. Aceitei a derrota no jogo que eu mesma criei. – Que horas? É hoje mesmo?
– Posso passar às 22h? – Concordei, assentindo. Sorria, mas por dentro, quis morrer.
Quando voltei às aulas, após o acidente, a psicóloga da faculdade achou melhor que eu me focasse apenas em uma coisa de cada vez. Na semana seguinte, eu já havia pedido demissão do Daily, jornal em que eu trabalhava e que era culpado pelos meus recentes surtos. Mas é claro que eu não ficaria quieta, focada em apenas uma meta. Agora eu era monitora da disciplina Ética Jornalística. Com meu recente desemprego, eu tive tempo o suficiente para melhorar minha situação na faculdade e agora eu tinha tempo para dar aulas todas as quintas e sextas.
A aula terminaria 20h e eu tinha monitoria até às 21:30. Como diabos eu ia ficar apresentável para uma festa de aniversário da família Hall em 30 minutos? Eu já tinha experiência o suficiente com eles para saber que não importava o quanto diziam que as festas eram simples, eu não acreditava. Sempre envolviam gente rica, vestidos elegantes e ternos caros. Eu só queria saber disso na primeira vez que fui em uma festa deles.
Saí correndo pelo campus até meu carro assim que minha monitoria chegou ao fim. Fui o caminho inteiro arriscando minha segurança, procurando fotos de penteados no celular. Quando cheguei, entrei correndo no apartamento, mas parei no meio do caminho. Jack, Cam e estavam na sala com Dana. Já tinha se tornado um costume vê-los ali. Era até estranho eu chegar em casa na sexta-feira e eles não estarem na minha sala, planejando ficar bêbados ou já bêbados, o que parecia ser o caso naquele dia.
– Julie girl! Finalmente! Vem beber com a gente. – Empolgado, Jack esticou os braços para cima assim que me viu entrar no local. – Hoje é uma noite de comemoração!
– Comemoração? – Questionei, confusa. Apressada, quase não prestei atenção no que meus amigos falavam. Fui em direção a geladeira, abrindo-a, sem realmente pegar nada lá de dentro.
– Eu e Dana fomos contratados, como você já sabe. – Cam citou e eu assenti. Cameron e Dizzy, que viviam fazendo bicos em uma empresa de marketing, foram contratados, finalmente. Observei que minha mesa estava cheia de porcarias, embalagens de lanches, refrigerante, garrafas de cerveja. Me perguntei desde que horas eles estavam ali. – Jáck conseguiu transar com a polaca e vai viajar amanhã!
– Viajar? Polaca? Vocês não estão fazendo sentido algum. – Reclamei e antes de abaixar para desamarrar o tênis, dei uma olhada em . Ele desviou o olhar assim que o olhei, não parecia estar cintilando de felicidade, para falar a verdade.
Á alguns dias atrás, havia me contado que iria ficar fora durante seis meses (ou mais). Desde então, nós não havíamos tido muito tempo sozinhos. Ele estava ocupado demais com a preparação para a pequena turnê e nos dias livres, saíamos todos juntos, curtindo nossos momentos juntos antes da ausência de .
– Ele vai viajar hoje, lembra? Ah, Julie, só faltava você aqui! – Jack abraçou-me pelos ombros e virou um shot de vodka na minha boca, de surpresa. Fiz uma cara feia quando senti o líquido arder no meu estômago, lembrando-o que eu não comia nada desde o almoço.
Turnê de seis meses.
– Lembro, sim. – Afirmei, atordoada. É claro que eu lembrava, porém parecia fazer anos desde que comentou a data de sua ida. Não consegui nem pensar direito, o fato dele estar indo despertou uma queimação em meu estômago. Ou talvez fosse a vodca pura. Talvez. – H-hoje eu não posso.
– Mas eu comi a polaca! – Jack gritou, como se estivesse lidando com o maior e melhor feito da face da terra.
– Ele comeu a polaca! – Dana tentou, mas eu neguei com a cabeça. Eu não conseguia desviar os olhos de , este, porém, não desviava os olhos do celular.
– Hoje é aniversário da Heide. Eu esqueci, mas vou ter que ir. – Esclareci a todos. – Já havia prometido.
– Então, você vai trocar a gente por aquele bando de gente fresca que gosta de cantar? – Dana perguntou, fazendo careta para mim.
– Ei, cadê o respeito? é um cara fresco que gosta de cantar! – Cameron abraçou de lado. Olhei para o tempo todo, mas quando ele me olhou, desviei o olhar.
– Está tudo explicado agora, oras.
Julie gosta de gente fresca, é um cara fresco, logo...
– Desculpa, gente. Hoje não dá. – Interrompi Jack antes que ele completasse a frase e eu morresse de vergonha. – A gente pode curtir se vocês ainda estiverem aqui quando eu voltar...
Corri para o meu quarto antes que alguém falasse mais alguma coisa. Tudo o que fiz em seguida foi como se eu estivesse no modo automático, pois eu só conseguia pensar em um duas palavras.
Seis meses.
Tomei um banho em tempo recorde, enrolei-me na toalha e fiz a melhor maquiagem que eu sabia fazer, o que não era muito. Depois de um tutorial rápido na escola de moda chamada YouTube, fiz um penteado no meu cabelo de modo em que ele ficasse amarrado, quase como um coque. Parecia meio solto, mas a moça do YouTube garantiu que estava tudo bem. Coloquei minhas lentes de contato e só não sabia passar a porra do delineador, porque isso já era pedir demais da minha coordenação motora recém afetada. Corri até a sala, segurando a toalha em meu corpo.
– Amiga, me ajuda? – Pedi, entregando o delineador na mão dela e me sentei ao seu lado no sofá.
– Belo vestido, Julie. – Cam debochou da toalha amarela do Piu Piu que cobria meu corpo. – Vai conquistar todos os rapazes da festa desse jeito.
– Cala a boca. – Resmunguei, tentando não me mexer enquanto Dana fazia a mágica em meus olhos.
– Pelo menos é fácil de tirar. – Jack também entrou na brincadeira, puxando a barra da minha toalha.
– Sai! – Empurrei-o com uma perna, sem me importar com minha calcinha aparecendo. Todos riram de Jack, que continuava a beliscar minha perna. O interfone tocou nesse instante, devia ser Toni. Ele e sua mania de ser irritantemente pontual. Dana anunciou que estava pronta e eu corri para atender seu segundo toque.
– Estou aqui, vamos. – Toni, irritantemente pontual.
– Estou quase pronta, Toni. Quer subir? – Não esperei sua resposta, apenas desliguei e apertei o botão para abrir o portão.
– Espera, você vai acompanhada? – Jack perguntou, meio surpreso e sendo nenhum pouco discreto, olhando de esguelha para .
– Com o Toni? – Dana ergueu uma sobrancelha, também curiosa.
– É só uma carona, gente. A festa é da irmã dele. – Justifiquei, não conseguindo não olhar para . Ele desviou o olhar antes que eu o olhasse, abriu a garrafa de vodca e se serviu.
Desde a notícia da partida de , parece que suspendemos todos nossos assuntos pendentes e passamos a apenas aproveitar os momentos com o grupo todo reunido. Nossa situação com Dana acabou ficando para trás. Dana já não comentava nada. Nem ele insistia em querer conversar. Parece que todos nós entramos em um acordo silencioso de ignorar tudo que se passou.
E entre nós... Bom, eu fiz merda, como sempre. Na noite em que o cantor me contou sobre a turnê, não conversamos. Eu apenas disse que estava com sono, e ficamos os dois ali, deitados lado a lado, fingindo estar dormindo para não ter que falar sobre o nosso futuro.
Corri até meu quarto, jogando a toalha na cama. A campainha tocou e eu gritei para que Dana abrisse a porta e torci para que eles não massacrarem o coitado do Toni. Sofri um pouco para colocar o vestido já que era bastante apertado no busto, fazendo surgir uns peitos que eu não costumava ter. Peguei uma bolsa carteira prateada, colocando o necessário ali e um scarpin preto comum e confortável.
Olhei-me no espelho mais uma vez, analisando meu corpo inteiro. A barra do vestido estava quase no meio de minhas coxas, fazendo-me questionar quantos quilos eu havia engordado desde a última vez que usara aquele vestido. Eu estava bonitinha demais para quem arrumou-se em 20 minutos.
– Anthony, cuidado com minha garota! – Voltei a sala no momento em que Dana ordenava, com a fala já arrastada e apontando o dedo para o loiro ao meu lado.
– Ela que costuma cuidar de mim, mas eu faço o possível. – Lembrei que quem havia deixado a minha viagem com Neil paga, no fatídico dia do meu porre, havia sido Toni. E não havia sido a primeira vez, cuidávamos um do outro o tempo todo.
– Uau, olha você! Nem parece que estava usando um poncho na aula. – Brinquei, vendo Toni todo elegante em seu terno, encostado no balcão, já com um copo na mão. Meus amigos não suportavam ver ninguém sóbrio.
– Você estava dormindo de olho aberto e com o cabelo na cara, garota. – Nós dois rimos da nossa situação deplorável na aula do Sr. Victor Callam. – Não vem me humilhar, não!
– Então? – Dei uma voltinha na frente dos meus amigos, fazendo meu vestido girar e eu me sentir a melhor pessoa do local.
– Você está tão linda que quando você chegar em casa, eu vou te dar uns beijos! – Dana apontou para mim e sibilando um "prepare-se".
– Eu também! – Jack falou e recebeu um tapa de Cam, negando com a cabeça.
– Você está um poço de lindeza, pequena Julie. – Cameron abaixou a cabeça em reverência, do jeito que sempre fazia, sorrindo. Ele bateu no ombro de Jack e depois no próprio peito, como se dissesse "assim que se fala".
Olhei para , agora em pé, encostado na janela. Esperei que ele falasse algo, mas ele apenas olhou-me dos pés à cabeça, com uma sobrancelha erguida e aquele sorrisinho irritante. Revirei os olhos bem visivelmente, mas não desviei o olhar. Queria obrigá-lo a me elogiar, mas a frase que veio em seguida não me deixou reagir.
– Eu odeio quando você não se comunica comigo. – Arregalei os olhos, sentindo o peso da sua fala me abater imediatamente. O cantor me provocou da forma que mais me envergonhava. Falou sobre nossas pendências na frente de nossos amigos. Meus lábios abriram-se levemente em entendimento quando o rapaz deu de ombros, sorrindo de lado. Era uma cilada.
Eu sabia que ele havia falado isso justamente por conta da minha falta de ação com o seu afastamento. Ele sabia que se estivéssemos sozinhos, eu desviaria o assunto, mas com sua atitude de "chamar minha atenção" na frente de todos, eu teria que falar sobre isso.
Um silêncio constrangedor instalou-se na sala, ninguém sabia o que falar ou fazer para quebrar o clima estranho. encarava-me, sério e inabalável. E eu não desviei o olhar nem por um segundo. Pareciam sair faíscas de provocação e desafio de nossos olhos e nós podíamos nos matar ali menos, só com o olhar.
Céus, como eu sentiria falta dos nossos jogos maliciosos. A maioria das pessoas era contra joguinhos e provocações em relacionamentos, mas e eu vivíamos disso. Era estranho pensar que para muitos isso significava imaturidade, manipulação, mas entre nós não era bem assim que funcionava. Nos chamem de loucos e dissimulados, mas não tinha jeito. Éramos o sinônimo de paixão desavergonhada.
– Uau, eu tenho certeza de que seria divertido ficar aqui, mas... – Toni pigarreou, tentando chamar minha atenção. – Atrasados, lembra?
Assenti, ainda encarando , sem abaixar minha cabeça. Me corroía por dentro não responder sua provocação, mas eu não daria esse gostinho a ele. Ele revirou os olhos, prendendo um sorriso entre os dentes ao notar que eu não revidaria sua afronta. Acenei para meus amigos, querendo ficar ali com eles, mas eu prometi a Toni e também não ia aguentar uma noite inteira de provocações como aquela.
Os pais de Toni faziam questão que ele ficasse até o final da festa, mas já eram quatro da manhã e já tinha tocado a discografia inteira de Rent e vários outros musicais. Eu gostava muito de Rent, mas quando começou a tocar Mamma Mia, sabíamos que era hora de sumir dali ou alguém ia acabar empolgando-se na hora de Voulez Vous. O único jeito de sair sem que os pais dele vissem e nos impedissem era saindo pela porta de entrada, que pelas quatro da manhã, ficava desprotegida. Eu gargalhava enquanto Toni me girava pelo salão ao som de Mamma Mia até chegarmos lá.
Ficamos dançando na porta até Heide parar de fitar-nos, provavelmente entendendo nosso plano, e saímos correndo pelo lobby do hotel até chegarmos no estacionamento. Joguei-me no banco do carro, ofegante e sentindo minhas pernas dormentes por ter corrido com um salto de 15 cm.
– Eu queria entender o porquê que em toda festa que vamos juntos, nós saímos assim, na correria. – Questionei, tentando normalizar minha respiração e ignorar a dor intensa nos meus membros inferiores.
– Eu trago emoção para sua vida. – Riu e deu partida com o carro. Liguei o rádio, ainda arfante. – Se bem que eu acho que você tem emoção o suficiente na sua vida. Não tivemos tempo de conversar hoje, mas foi impressão minha ou era lançando indiretas para você na sua sala?
– Somos amigos... Éramos. – Tentei responder, mas acabei mais confusa. – Eu não sei mais.
– Ok, eu entendi tudo. – Balançou a cabeça em entendimento, olhando-me de esguelha.
– Entendeu o que? – Franzi o cenho, não tendo a certeza se queria ouvir a conclusão de seus pensamentos. – Não há nada para entender.
– Ele quebrou seu coraçãozinho? – Imediatamente, fechei meu rosto em uma carranca. Tudo que eu menos queria era Toni, que não sabia cuidar nem da própria vida, dando uma de conselheiro amoroso para cima de mim.
– Eu, possivelmente, quebrei o dele, mas sabe, isso não é da sua conta. – Enunciei, séria. Mexi meus pés, esticando-os e estalando meu calcanhar ainda dolorido.
– Ok, assunto ruim? – Toni tomou meu silêncio como resposta e parou de questionar sobre o que eu, obviamente, não queria falar. Comecei a puxar assunto com Toni sobre a festa e sobre os vestidos bizarros que vimos por lá, tudo que fosse capaz de tirar da minha cabeça e minha ansiedade em relação a ele.
Dei um abraço forte em Toni antes de sair do carro quando ele estacionou em frente ao meu prédio. O loiro quase chorou em meu ombro depois de me agradecer mais uma vez por ido à festa com ele. Os pais estavam tratando-o como se ele fosse um merda, mas a conta bancária daquela família só respirava por causa dele. Eu desconfiava que esse fosse o único motivo que Toni ainda não havia sido completamente excluído daquele círculo social. Os pais eram uns interesseiros, que não sabia nada sobre finanças e economias, mas também não se importavam em aprender. Apenas queria esbanjar e ostentar.
Observei a Ferrari de Toni afastar-se e continuei em pé, no meio da rua, brincando com o barulho que meus saltos faziam no asfalto úmido, adiando minha subida até aquele andar. Olhei para cima, as luzes do meu apartamento ainda estavam acesas. Eu não queria voltar lá e ser obrigada a aceitar a existência de . Acabei indo de escada, apenas para prolongar o momento ainda mais, no entanto, quando cheguei a porta do 305, não tinha volta.
Quando entrei em casa, dei de cara com uma cena nada inusitada. Cameron dançava em cima da mesa de centro, Dana filmava com seu celular e estava deitado no sofá, gargalhando. O primeiro que eu quis agredir foi Cam, por estar com aqueles pés imundos em cima da minha mesinha. O segundo foi por ter parado de rir e assumido uma postura mais séria assim que entrei na sala. O terceiro foi Jack, que nem estava na sala, mas eu já desconfiava do motivo de sua ausência.
Provavelmente, já tinha apagado de tão bêbado.
– Você chegou! – Dizzy veio correndo até mim, trôpega. Segurou meu rosto entre suas mãos e beijou-me, arregalei os olhos com a atitude inesperada. Cam e começaram a gritar, como se estivesse comemorando um gol.
Os vizinhos deviam estar querendo nos matar e eu definitivamente ia pagar uma multa por perturbar a paz.
– Tira a roupa dela! – Cam gritou, empolgado. Dana desgrudou os lábios dos meus rapidamente e depois juntou-os novamente, sugando meu lábio inferior de leve.
– Eu estou ficando com ciúmes! – acompanhou a gritaria de Cam. Afastei-me dela, rindo. E ela gargalhou, jogando a cabeça para trás, abraçando-me.
– Você está bem? – Segurei seu corpo, que se curvava cada vez mais para trás, pela cintura. – Vamos parar por hoje? Começou a me beijar significa que já está na hora de parar!
– Agora que você chegou, eu posso me retirar desse aposento. – Dana assentiu várias vezes para si, sob reclamações de Cam e . – Jack vomitou até o fígado dele e está dormindo no seu quarto.
Joguei meus sapatos longe, sentindo meus pés quase agradecerem e coloquei a bolsa em cima da bancada. Eu só rezava para que Jack não vomitasse na minha cama, como da vez em que ele vomitou na cama de Dana. Ajudei-a desencostar-se da parede sem cair, Cam e cochichavam entre si, mas não consegui entender nada já que Dana chamava minha atenção.
– Eu vou ali... – A morena foi cambaleante até o banheiro, ela parecia muito concentrada em não cair. Tentei segui-la com os braços em sua volta, mas ela desvencilhou-se de mim. – Dorme no meu quarto, Julie.
Ofereci ajuda, mas ela não respondeu, apenas se dirigiu ao banheiro. Olhei a sujeira que estava minha sala e me surpreendi com o número de garrafas vazias. Eles tinham bebido muito e misturado vários tipos de bebida. Não era de se estranhar que Jack estava quase morto na minha cama. Todo mundo estava destruído demais, não tinha como continuar com a "festa", meu trabalho agora era só deixar todos dormirem seguros.
– E você, garoto? Vamos parar? – Fui até Cam, que ainda estava em pé na minha mesa, e peguei a garrafa de cerveja de sua mão.
– Você acabou com a festa. – Reclamou, fazendo um biquinho triste e pulou da mesa.
– Pode ir dormir no quarto da Dana. – Direcionei ele, que me parou no meio do caminho. O rapaz estava em um estado deplorável. O cabelo todo para cima, olheiras profundas e um short jeans que parecia curto demais para ele. Espera aí... – Cameron, esse short é meu?
– Claro que não! – Bufei. É claro que era! – Espera, eu preciso que você me faça um favor. Eu preciso que você leve em casa – Olhei para jogado no meu sofá, acenando pra mim com um sorriso insolente e bêbado. – Ele vai viajar amanhã, o voo dele sai às 6h.
– Já são 4h! – Constatei, olhando para o relógio na parede oposta.
– E ele ainda nem fez as malas. Eu disse que ia levar ele, mas no momento, eu acho que não é uma boa ideia porque eu estou vendo três de você e você não está bêbada, você está? – Não entendi metade das coisas que Cam disse, mas imaginei que ele queria que eu desse carona para .
– Ele pode pegar um táxi. – Ignorei a verborragia de Cam, pensando num método mais fácil de deixar longe de mim. Eu não queria ter que lidar com um bêbado, provavelmente falante e o pior, irritado comigo.
– Está vendo, Cam? Ela não consegue ficar sozinha comigo. – debochou e eu revirei os olhos. Aproveitei a garrafa de cerveja de Cam ainda pela metade e virei o resto do líquido em minha boca. Se eu tivesse que lidar com agora, teria que ter um pouco mais de álcool no meu sangue.
– Agora é a hora em que eu saio e deixo vocês resolvendo o problema de vocês. – Cameron riu das nossas feições raivosas. Eu nem sei mais o porquê de estarmos irritados um com o outro. Era pura implicância. – Vou dormir com um pijama seu, Julie.
– Chega de usar minhas roupas, Cameron! – Reclamei, rolando os olhos.
Cam ignorou-me totalmente e foi até , eles se abraçaram e beijou sua testa. Mais uma vez, as palavras "seis meses" voltaram a minha mente. O último dia do rapaz na cidade e eu não fiquei com ele nem cinco minutos. Eu definitivamente não chamaria um táxi.
– Cara, amo você. – Cam segurou o rosto de próximo ao seu. Olhei com a expressão debochada para a cena que os dois bebuns dramatizavam em minha frente.
– Eu também amo você, irmão. – Eu não sei dizer se estava emocionado ou apenas bêbado.
– Não, é sério. Você precisa me ligar todo dia! – Apontou um dedo, em tom de ameaça.
– Não pira, Cam! Não vou virar seu namoradinho. Jack vai me matar se eu ligar mais para você do que para ele. – empurrou Cam e ambos começaram a rir. Eu sorri com cena, era invejável o carinho entre eles. A masculinidade nada frágil ou tóxica de ambos deixava tudo ainda mais adorável.
– Verdade, você já tem uma namoradinha. – Perguntei-me de quem ele falava. Eu ou Dana? Ou Jack? – Boa viagem, cara. Avisa quando chegar!
Cam foi cambaleante em direção ao banheiro, mas a porta estava trancada, provavelmente Dana ainda estava lá, então ele simplesmente se abaixou e deitou ali mesmo. Eu ri da situação, sendo consumida pela preocupação com minha melhor amiga e o nervosismo de ter que lidar com .
– Você vai vomitar no meu carro? – Questionei, tentando manter a expressão fechada para esconder minha ansiedade.
– Eu, sinceramente, não sei! – Gargalhou alto como se fosse a coisa mais engraçada já dita.
– Só vou pegar um casaco, aí nós vamos. – Avisei, virando o corpo para procurar o meu casaco.
Foi difícil alguém do meu tamanho ter que praticamente carregar até o carro, foi difícil até chegar no elevador, mas difícil mesmo foi fazê-lo desistir da ideia de ir comprar milk-shake de morango. Eu falo sério quando eu digo que ele abriu a porta do carro em movimento quando eu passei em frente ao McDonald's 24h, ignorando seus pedidos. Acabei dando a volta e comprando-o o maldito milk-shake.
A cena tornou-se sutilmente nostálgica para mim. Eu, dirigindo pela chuva fina, enquanto cochilava no banco ao meu lado, o mesmo que havia acontecido a meses atrás, quando o conheci no Carté. Nas mãos dele, o milk-shake pela metade, quase derretido. Revirei os olhos, odiando-me por ceder as vontades dele. Peguei o copo da sua mão e tomei, sentindo o gosto do nosso beijo no píer.
Talvez essa fosse a intenção, me fazer lembrar do início agora que parecíamos estar no fim.
– Julieta? – A voz baixa e rouca de me chamou de modo suave, arrancando-me da minha lembrança. Eu amava que apenas me chamava pelo nome inteiro. Nem meus pais me chamavam de Julieta, todos só me chamavam de "Julie". Eu gostava disso, pois parecia uma coisa só dele. Coisa nossa.
Eu só conhecia duas Julietas. Julieta Capuleto e Julieta Sobanitela.
De Julieta Capuleto, eu só tinha o azar e o dedo podre para relacionamentos, mas eu tinha muito de Julieta Sobanitela. Ela era uma cantora argentina que tinha os cabelos vermelhos e em todas as vezes que a vi, ela usava um vestido amarelo. Eu sempre a via quando ia à feira do outro lado da cidade aos sábados pela tarde. Eu amava vê-la xingando as pessoas e furtando peras das barracas.
Acho que eu era a única pessoa que gostava de Julieta, o resto do mundo só a via quando ela cantava. E como cantava! Ela dizia que era triste, referia-se a Etta James como Deus e me disse que o amor era superestimado e supérfluo. Um mês depois, eu vi Sobanitela de novo. Estava apaixonada e casada.
Uma vez, contei a ela que meu nome também era Julieta. Ela sorriu, entregou-me uma de suas peras roubadas e disse: "O fardo de ser Julieta só existe graças ao Shakespeare, aquele cuzão". Identifiquei-me pela referência literária, pela incoerência e pela leve inclinação ao antagonismo.
– Você estava simplesmente deslumbrante hoje. – Articulou, lentamente. Estranhei não estar falando exageradamente, talvez ele não estivesse tão bêbado assim.
– O elogio que eu esperei a noite inteira. – Confessei, sem conter um sorriso.
– Você me desculpa não ter falado antes? – Perguntou, achei adorável ao extremo ele estar receoso comigo.
– Antes tarde do que nunca, não é? – Virei o rosto para olhá-lo no mesmo segundo em que ele virou também. Como dois adolescentes envergonhados, viramos o rosto para frente logo em seguida, não suportando o nosso próprio peso.
Parei no início da rua de pedras já tão conhecida por mim. Estacionei e apoiei as mãos no volante. Pela segunda vez, eu não sabia como agir perto dele. Não sabia como dizer adeus, não sabia se o abraçava, acenava. Não sabia o que nós éramos, o que não éramos mais.
Antes que eu fizesse algo, abriu a porta, mas pensou por dois segundos e fechou a porta novamente. Olhou-me interessado, estudando minha expressão.
– Sobe comigo? – Eu não sei o que acontecia comigo quando se tratava de . Eu travava, tropeçava, me atrapalhava, meus pensamentos se tornavam incoerente.
O que era isso, afinal? Eu costumava ser uma pessoa centrada e calma, mas era apenas falar algumas palavras a mais e eu me perdia completamente. Nem era minha intenção tratá-lo mal ou algo assim, eu tinha plena consciência que não o merecia, mas não conseguia evitar questionar suas intenções comigo.
O universo brincou comigo várias vezes, me colocando em histórias de amor como coadjuvante e antagonista, que quando chegou minha vez de ser protagonista, eu acabava pisando na bola e me tornando uma babaca gigantesca.
– ... – Interrompeu-me, provavelmente percebendo que eu ia dar para trás. Eu nem sabia por que ia dar para trás! Eu estava desesperada para pular no colo dele e beijá-lo a noite inteira.
– Que porra, Julieta? Eu vou embora amanhã, vou sumir da sua vida por um tempo! Será que dá para subir comigo e deixar eu te beijar? Porque eu acho injusto você aparecer assim, estupidamente linda e sair com outro. – Retrucou, meio embolado. Ok, talvez eu estivesse errada e estava um pouco bêbado, sim. Era fácil medir seu nível de álcool quando falava sem parar. – Eu sei que tem alguma coisa acontecendo, e que Dana está no meio disso tudo. Só que eu ainda estou tentando entender muito coisa e você deve achar que eu sou o maior idiota da face da terra, mas será que você pode fazer o favor de deixar eu me despedir de você do jeito que eu quero?
– Você não vai embora para sempre. – Tentei argumentar, sentindo o nervosismo cada vez maior conforme ele aproximava-se. Estremeci quando ele citou Dizzy na conversa, ele sabia? Dana avisaria se falasse com ele. Ambos estavam bêbados demais hoje, poderia algo ter saído sem querer.
– Você é impossível. – Riu sem humor, bagunçou o próprio cabelo e saiu do carro, batendo a porta com força. Trombei a cabeça no volante, sentindo-me uma completa idiota.
estava ali, vulnerável e pedindo por mim. Por mim. Ele passou a noite ao lado de Dana e pediu para ficar comigo. Ele sempre voltava para mim e eu voltava para ele. Eu o queria tanto quanto ele me queria, por que era tão difícil para mim simplesmente deixar essa angústia de lado? Eu não tinha mais dúvidas de meus sentimentos por ele, por que eu não ligava o foda-se e arriscava?
Eu só precisava de dois segundos de coragem.
Sem importar-me com a chuva, sem me importar em estar descalça, estacionei o carro do melhor jeito que pude, sem conseguir conter a tremedeira em minhas mãos. Saí do carro, dando uma corridinha para alcançá-lo e quando cheguei ao seu lado, segurei sua mão. Ele não me olhou de volta, mas deixou que eu segurasse sua mão desajeitadamente. E isso já significava muito.
A casa dele era a última da viela de pedras, então até lá, fui apenas sentindo as gotas de chuva tornarem-se fortes e geladas contra o meu rosto, embaçando minha visão. Tudo o que fizemos desde que entramos em sua casa foi automático e não trocamos uma palavra sequer. fora direto para o banheiro e eu fiquei meio em dúvida do que fazer a seguir, mas lembrei que estava ali para levá-lo até o aeroporto então fui até o quarto dele. Uma mala aberta em cima da cama e uma mochila por fazer deixavam a área ainda mais bagunçada do que de costume. Aproveitei para dobrar algumas roupas amassadas e controlar a ansiedade enquanto ele não saía do banheiro. Engoli em seco quando abri o armário dele e notei-o quase vazio.
Seis meses. Eu ainda não conseguia lidar com a ideia de ficar tanto tempo longe dele. Sentiria uma falta absurda.
entrou no quarto poucos minutos depois. A neutralidade em sua expressão era tradição. Não parecia ter mudado muita coisa, só estava mais esperto. Agradeci baixinho quando me entregou uma toalha. Parou ao lado da cama, encarando-me suavemente enquanto eu parei a ação de colocar suas calças de moletom na mala de modo que não ocupasse muito espaço, para secar meus braços. Não parecia raivoso, nem magoado. Apenas parecia estar esperando por mim, como sempre.
Não me atrevi a fitar seus olhos, com medo de toda a verdade e os variados sentimentos que eu poderia encontrar ali. O silêncio entre nós era incômodo, ele parecia esperar que eu tomasse uma iniciativa, provavelmente, por pirraça. Então, eu só precisei de mais dois segundos de coragem para responder suas perguntas de algumas noites atrás.
– Você a beijou. – Proferi, subitamente, sentindo meus músculos se enrijecerem. Apertei a toalha em minhas mãos, definitivamente nervosa e preocupada com o rumo da conversa.
– Ela me beijou. – Afirmou, já ciente do que eu estava falando, e eu assenti, ainda sem levantar a cabeça.
Eu sabia que sim, mas o que me incomodava em toda essa história, não era tendo lances com outra garota, e sim com Dana, especificamente. Eu nunca tive inveja da minha melhor amiga, mas quando ela chamou atenção dele, mesmo que inconsciente, as coisas mudaram em mim. Se fosse qualquer outra pessoa, como Rachel (a groupie nova iorquina de peitos gigantes), eu provavelmente não ficaria tão mal. Mas era Dana. Eu entendia todos os motivos de alguém apaixonar-se por ela e até achava estranho que alguém não sentisse uma queda por ela.
O controverso de tudo isso é que se fosse qualquer outra pessoa, eu aceitaria a derrota. Mas com Dana, eu me recusava.
– Ela gosta de você! – Cobri minha boca com uma mão assim que percebi a besteira que eu tinha feito ao contar, impulsivamente, o segredo da morena justamente para quem não deveria saber.
Felizmente, (e infelizmente para Dizzy), o cantor não se interessou com o que foi dito.
– E eu gosto de você! – O tom de voz dele parecia o de quem estava explicando 2+2 para uma criança e eu não sei se fiquei feliz com isso. Ele parecia seguro demais de si e de seus sentimentos. Seria mais difícil fugir dele, se ele estivesse certo do que queria.
– Mas ela é linda e incrível, e... – Novamente, fui interrompida.
–Sim, ela é, mas... Que inferno, Julieta! Só você não percebe! Você está sempre aí, achando-se melhor que tudo e que todos, você precisa parar de ficar ditando o sentimento alheio. Você parece incapaz de entender que eu sou louco por você. Nunca sei como devo agir, não entendo seu jeito de pensar. Eu não sou, nunca fui assim, mas você me deixa inseguro como eu nunca fiquei com ninguém. Eu nunca sei com qual das suas 30 personalidades eu vou ter que lidar. Mas adivinha só? Eu gosto de todas elas. Eu sou apaixonado por você, Julieta!
Meus olhos não conseguiram segurar o amontoado de lágrimas que se formaram e eu senti meu rosto umedecer assim que ouvi proferi, suave e contidamente, o que eu sempre quis escutar e nem sabia. Sentou na cama e começou a atirar as peças de roupa restantes de qualquer jeito na mala, o que faltava guardar. Fiquei uns segundos paralisada no mesmo lugar, impactada com suas palavras. Quando percebeu que eu não iria me mover, continuou:
– Nós nos damos bem e seria estranho alguém não a querer, Dana é uma garota linda e qualquer cara daria tudo para ficar com ela. Mas eu olho para você e... É ridículo falar isso, mas parece que meu coração pula no meu peito toda vez que você aparece.
Desde o início, até mesmo quando contei que estava apaixonada por ele, nunca tinha se declarado para mim daquele jeito. Tão seguro de suas escolhas, falava cada palavra com propriedade. E fazia isso com tranquilidade, enquanto jogava as roupas dentro da mala. Eu parecia estar flutuando, então resolvi me mexer e ajudá-lo.
– Você nunca disse nada sobre ela ter te beijado. – Comentei de um jeito que não parecesse acusatório, apenas curioso. Estendi a ele algumas roupas dobradas, que ele atirou na mala de qualquer jeito.
– Porque eu nunca sei o quanto do que a gente tem é real, Julie. – Explicou, pacientemente. – Eu não sabia se você ia ficar chateada, se você não ia ligar, fiquei preocupada com a amizade de vocês. E teve dias em que eu realmente esqueci que esse beijo tinha acontecido. Eu literalmente nunca sei como você vai reagir as coisas, você me deixa...
Ele não completou a frase, apenas esfregou o rosto (coisa que ele fazia constantemente, principalmente quando se sentia cansado ou confuso) e deitou-se na cama, empurrando a mochila preta com o pé para o outro lado e jogou a mala grande no chão, assustando-me com o barulho. Parecia desgastado depois de ter falado tudo o que eu nunca pensei que ele pensava.
Eu subestimei e seus sentimentos, agora estava sentindo-me terrivelmente negligente com o rapaz. Achava que éramos apenas um sexo casual, umas confusões com uma garota sem noção como eu e ponto. Aparentemente, para ele, era mais. E agora eu estava querendo arrancar cada fio de cabelo só de pensar que talvez eu tenha sido tóxica e abusiva com ele.
– Vocês conversaram sobre isso? – Questionei, não aguentando a dúvida. Precisava saber com o que eu lidaria quando chegasse em casa e encontrasse uma Dizzy sóbria. – Você e ela.
– Hoje mesmo, na verdade. Pediu desculpas pelo beijo, estava se sentindo culpada. Falou que tinha estragado tudo para você. – Neguei com a cabeça. A garota só era aberta demais para ignorar e esconder seus próprios sentimentos. – É, eu também não concordei. A culpa disso não foi dela, você ia arranjar um jeito absurdo e estranho de ferrar com a gente.
– O que?! – Abri a boca, indignada, mas meu corpo não obedeceu aos meus comandos e não consegui segurar a risada.
me conhecia bem, mesmo que eu negasse.
– Você sabe que é verdade, por isso está rindo! – Peguei uma camisa dobrada que estava na cama e joguei nele, meio indignada, mas ainda sem conseguir controlar a gargalhada. – Você é neurótica.
Balancei a cabeça, ainda rindo. Eu e , era tão fácil.
Aos poucos, nosso riso foi se dissipando e as dúvidas e lacunas entre nós foram voltando a nossa mente.
– Foi por isso que você sumiu nos últimos meses? Por causa da Dizzy? – Assenti, quase imperceptivelmente. Não queria dar mais informações sobre o sentimento alheio. – Me magoou, Julie.
– Eu sei. – Fechei os olhos, sentindo agonia por conta de sua confissão. O murmuro dolorido, os olhos magoados, foi um golpe baixíssimo. – Na minha cabeça, era o certo a se fazer.
– Talvez até fosse. Eu sei que é sua melhor amiga, que vocês se conhecem a anos e que amizade é acima de tudo para você, mas... – Proferiu, pensativo. – Sei lá, você não pensou duas vezes de me descartar.
Franzi o cenho, confusa. De início, tive dificuldades, mas quando entendi seu raciocínio, suspirei profundamente. Dei a volta na cama, sentando ao lado dele, que continuava deitado. Sorri tristonha, encarando seus olhos, que não deixaram meu rosto por um segundo sequer.
– , quantas vezes estivemos juntos desde que você e Dana...? – Não completei a frase, pois ainda era estranho demais dizer em voz alta, então apenas gesticulei.
– Nunca paramos de nos ver. – Respondeu.
– Exatamente. Foi por isso que eu e Dana brigamos na semana passada. – Revelei, finalmente. – Eu nunca consegui me manter longe de você, .
– Então, você gosta de mim. – Concluiu, sua feição se iluminou e mordeu os lábios para segurar um provável sorriso.
– Que pergunta, ! – Rolei os olhos, mas no fundo, senti uma terrível tristeza. Afastei-o tanto que o rapaz chegou a pensar que eu não era apaixonada por ele. – Eu só não queria ficar com alguém que poderia vir a preferir outra pessoa.
– Mas eu não... – Tentou falar, mas eu o impedi.
– Quem me garante que você não vai mudar de ideia completamente? – Exaltei-me. Olhou-me com pena quando me viu com os olhos lacrimejados. – Vai ser demais para mim, ! Não seria a primeira vez, sabe?
Pensei em todo o meu histórico e em todas as minhas histórias de amor que não deram certos. Eu não suportaria perder o cara de novo, e dessa vez, minha melhor amiga ia de bônus.
– Ninguém nunca pode garantir nada, Julieta. Assim como eu não posso te prometer nada, você não pode prometer que sempre vai me querer por perto. Você precisa deixar essa sua insegurança de lado e... – Parou abruptamente, sentando-se.
– E...? – Estendeu uma mão para mim antes de completar. Aceitei e ele puxou-me para sentar ao seu lado. Encostei-me na cabeceira estofada de sua cama, tremi quando ele jogou seu braço por cima das minhas pernas, acariciando minhas coxas levemente.
– Ficar comigo. – Os olhos de pareceram maiores e mais dourados quando emitiu o pedido. Nossa posição apenas reforçou nosso contato mais próximo. Ele estava meio sentado e deitado ao mesmo tempo, de modo que seu rosto ficou na altura do meu ombro quando sentei ao seu lado. – Caralho, Julieta, eu quero ficar com você.
– E eu quero ficar com você, mas... – Não suportei o seu olhar afetuoso em minha direção e não o olhei de volta. Coloquei os dedos pelos seus fios de cabelo na nuca, acariciando suavemente, fazendo-o suspirar fortemente, como se estivesse expelindo toda a exaustão que eu estava causando nele. – Você vai embora, .
A sua feição, habitualmente serena, mostrou-se conturbada e chateada. Eu estava novamente negando os pedidos de , mas dessa vez, eu não estava tendo motivos puramente egoístas.
era um cara de vinte e poucos anos, iniciando a carreira, entrando em uma turnê de seis meses pelo país. A última coisa que ele precisava era de uma namorada prendendo-o. Eu também não estava pronta para ser classificada como namorada de cantor.
Ambos respirávamos pesado e estávamos absortos em nossos próprios pensamentos. Cada um tentando lidar com seus monstros e sentimentos sem forçar nada ao outro. Me peguei considerando aceitar seu pedido, mas eu sabia que precisava ser madura em relação a nós. Perdemos nosso tempo, eu sou a culpada pelo nosso atraso e agora era tarde demais para ficar ao seu lado.
– Você ficaria, se eu ficasse? – Insistiu.
– Você não vai ficar! – Balancei a cabeça e apertei meus olhos. Eu não tinha dúvidas que repetir isso doía mais em mim do que nele. Doía pensar no que poderíamos ser se não fosse por mim. Doía pensar até no que nós costumávamos ser.
– Não vou, mas eu preciso saber se você ficaria! – parecia implorar por uma resposta minha quando eu o olhei. Seus olhos ternos procuravam pelos meus, ansiavam por uma resposta que ele já tinha.
– Eu estou aqui, . – Inclinei meu rosto em sua direção e encostei meus lábios em sua testa.
– Você ficou. – Concluiu, com a expressão exalando entendimento do meu ato. Assenti de leve, sendo avaliada por ele constantemente.
Estar ali com ele, naquele momento, já significava algo. Aquilo já era o meu "sim". Desde o momento que eu decidi descer do carro e correr atrás dele, eu havia dito "sim".
– Eu estou aqui desde o dia em que você apareceu na minha faculdade, afim de me levar para um encontro. Não sei bem o porquê, mas toda vez penso nesse dia quanto tento lembrar quando minha obsessão por você começou. – Deu risada leve com a minha declaração, pegando minha mão e entrelaçando nossos dedos.
Era a segunda vez no dia em que ele fazia isso. Só um recente casal, em exploração de seus próprios sentimentos, saiba dizer que um entrelace de dedos pode ser mais íntimo que um ato sexual em si. Eu e nunca andamos de mãos dadas. Fora a primeira vez que eu senti que eu era dele e ele era meu.
Subitamente, passou o braço em volta do meu pescoço, puxando-me para baixo de seu próprio corpo, deitando e deixando-me por cima dele, em nossa habitual posição. Fez um carinho na minha nuca, fazendo-me fechar os olhos tamanha foi sua ternura. Cegamente, mapeei seu rosto com meus lábios, sentindo cada pedaço de sua pele. Meus lábios, finalmente, tocaram os seus e antes de aprofundarmos o beijo, movi minha língua delicadamente pelo seu lábio superior e me afastei. Ri quando ele grunhiu, irritado.
– Que horas nós vamos sair? – Questionei, preocupada com o horário do voo do rapaz. Revirou os olhos, frustrado com a minha interrupção.
– Não vamos. – Franzi a testa, confusa e ele sorriu ladino. – O pessoal da banda vem para cá às 5h e vamos todos sair juntos.
– Eu achei que fosse precisar te levar no aeroporto. – Comentei, bagunçando seu cabelo, estranhando os novos planos.
– Nah! – Sorriu sapeca e eu revirei os olhos, sabendo o que vinha a seguir. – Foi só mais um dos planos malignos de Cameron Koernig.
– É claro que foi! – Balancei a cabeça negativamente. – Não sei por que não pensei nisso antes.
– Aparentemente, nossos amigos são nossos maiores admiradores. – O rapaz riu, deixando-me com a feição abobalhada. – Já estou com saudades desses idiotas...
Seis meses.
– Eu não acredito que você vai embora! – Exclamei ao fazer um biquinho triste porque senti que ia chorar. A ideia do garoto longe não me agradava em nada. – Uma turnê! , você vai ser famoso!
– Eu não quero ser famoso. Só quero fazer o que eu gosto e ganhar um pouco de dinheiro com isso. – Deu de ombros, colocando uma mecha solta do meu cabelo atrás da orelha.
O penteado permanecia o mesmo e isso me fazia querer deixar um comentário positivo no vídeo do YouTube que me ensinou.
– A consequência disso é a fama, ! – Exclamei. Eu não sei se estava pronta para dividir com o resto do mundo, mas é o preço que se paga, certo? – Eu vou sentir tanto a sua falta...
Antes de ser o cara que eu beijava pelos corredores, era um amigo. Um que eu via quase todos os finais de semanas, que jantava no meu apartamento nas quintas-feiras. Fazia maratonas Marvel com Cameron e eu. Comprava brownies para Dana e sempre era cuidadoso quando Jack ficava bêbado. Seria difícil não sentir saudades.
– Só por uns dias, baby. – Encostou os lábios nos meus, beijando-me rapidamente.
– 182 dias é muito, ! – Choraminguei e prendi minhas pernas na cintura dele. Ficar presa ao corpo dele, enrolada em seus lençóis, não era uma novidade para mim. Tornou-se minha atividade preferida, inclusive.
– Envio nudes para você todos os dias. – Apertou meu nariz, rindo suavemente.
Algo se alertou em minha mente e fui direcionada para a última vez que tínhamos transado.
Flashback.
Eu já sou uma pessoa distraída por natureza, já era bem difícil manter a concentração em algo, mas com o barulho de várias pessoas falando e música no apartamento ao lado tornava-se quase impossível. Naquela noite, eu experimentei o que os meus vizinhos sentiam quando nós fazíamos festas em casa. A irritação acumulava-se em mim a cada gargalhada alta de alguém na sala ou uma batida remixada de alguma música horrível, mas eu explodi em nervos quando alguém se empolgou e começou a fazer um sexo barulhento no cômodo que dividia parede com o meu quarto. O barulho era tanto que me deixou com a boca escancarada pelo choque e susto de uma pessoa desconhecida gemendo alto demais.
Em segundos, guardei meus materiais em uma mochila, coloquei um short jeans e por cima do pijama, coloquei um moletom gigante que havia ganhado de Tom, o empresário de . Era preto e na parte de trás, estava escrito "" em letras garrafais. Enquanto saia do quarto, Dana estava fazendo o mesmo. Rimos ao notar que estávamos vestidas quase da mesma forma.
– Estamos provando do nosso próprio veneno, não é? – Brincou e eu concordei. – Estou indo para a casa do Cam.
– Eu vou...
– A gente se fala depois, beijo! – Não deu tempo para minhas explicações, apenas saiu quase correndo, batendo a porta de casa. Suspirei, sabia que ela não queria ouvir o que eu tinha para falar e contar para onde eu ia.
Procurei outras alternativas que não fossem . Mandei mensagem para Jack e ele demorou demais para responder, então segui em frente e mandei mensagem para Toni, que respondeu com um mísero: "estou acompanhado". Procurei em minha agenda pelo nome de pessoas que eu fosse próxima o suficiente para surgir durante a noite em sua residência. Eu não conhecia tanta gente assim, muito menos tinha tantas amizades.
A biblioteca municipal já estava fechada, eu não tinha dinheiro nem para comprar uma água em alguma lanchonete e não conseguia pensar em qualquer lugar público. Meu dedo automaticamente deslizou para a letra F da minha agenda e eu sorri de lado. Eu sabia que acabaria lá e eu, inconscientemente ou não, desejava por isso. Disquei seu número em um impulso, demorou três toques e ele atendeu.
– Baby! – Aquelas palavras já tão familiares e amadas por mim.
– Está em casa? – Mordi uma unha enquanto chegava a garagem do prédio.
– Não, por que? – Questionou.
– Eu tenho coisas para fazer e não tenho para onde ir, também não dá para ficar em casa agora.
– Você sabe onde fica a chave, ué. – Respondeu sem hesitação e eu sorri com sua frequente gentileza.
– Estou indo para lá, então. Tudo bem mesmo, não é? – No fundo, eu esperava que ele dissesse que não, aí eu cairia na real e voltaria para casa. E desistiria dessa ideia de ficar provocando minha melhor amiga.
Mas nunca seguia meus roteiros imaginários. Sempre indo na minha contramão.
– Claro, Julieta! Anh... Talvez eu demore um pouco. – Sua voz parecia um pouco apreensiva ao me informar.
– Tudo bem, eu posso ir só depois. – Dei uma risadinha, achando fofo sua tentativa de justificativa, tentando não parecer estar dando uma.
– Pode ir agora, sem problemas. É que eu vou num pub com uns amigos e...
– , você não precisa me dar satisfações. – Garanti. Sentei no banco do motorista, ligando o carro. – Vou dirigir, a gente se fala depois.
Desliguei o celular, pensativa. Ir para casa de seria sacanagem com Dana? Seria. Eu estava me importando? Não. Eu estava frustrada comigo mesma por não estar me importando? Sim.
Dirigi até o apartamento de , cheia de pensamentos conflitantes, como o usual. Assim que entrei, joguei-me no sofá, liguei o carregador no notebook e mergulhei nas palavras por horas. Eram duas da manhã quando eu finalmente levantei a cabeça e percebi que já tinha estudado tudo. Comemorei igual uma criança, pulando no sofá de sem me importar com o barulho eu poderia estar fazendo ou com os danos ao móvel.
Era a primeira vez desde que eu tinha iniciado a faculdade que eu havia conseguido finalizar várias matérias e revisar tudo. E a melhor parte: Sem me distrair, sem procrastinação, sem enrolação, sem surtar por não entender algo. Eu sabia que isso era efeito dos novos remédios que o psiquiatra havia receitado, então isso se tornou um terceiro motivo para comemorar: Remédios que me deixam viva, sem bater em postes e sem sonolência. Eu precisava tomar remédio para dormir, mas levando tudo em consideração, valia a pena.
Sentia-me muito cansada então voltar para casa nem era uma opção enquanto eu tinha a cama grande e confortável de .
Tomei um banho quente, procurei por alguma roupa intima minha nas gavetas de , porém, não achei nenhuma. Acabei ficando apenas com o moletom. Soltei meus cabelos e me joguei em sua cama. Eu não senti o sono até encostar a cabeça no travesseiro e apagar quase que imediatamente.
Eu teria um sono longo e renovador se eu não sentisse algo cutucando o meu nariz uns dez minutos depois que me aconcheguei entre os lençóis grossos que continham o familiar perfume. Abri os olhos e dei de cara com próximo demais do meu rosto. Seu rosto estava vermelho e ele só ficava assim quando tomava bebidas destiladas, o que parecia ser o caso já que um forte cheiro de vodca emanava dele.
– Oi, meu amor! – Saudou alegremente e esmagando meus lábios em um beijo apertado.
– Você está bêbado. – Empurrei–o, pronta para ignorá-lo e aproveitar meu merecido sono.
– Só um pouquinho. – Exemplificou com o dedo indicador e o polegar. – Como você está? – Perguntou e soltou um soluço logo depois, que me fez rir.
– Com sono e cansada. – Assegurei, voltei a fechar os olhos e tentei dar as costas ao bebum ao meu lado, mas seus braços me impediram.
– Acredita que o Tom me obrigou a tocar no Jaiskai Club? Ele sabe que eu odeio aquele lugar! – ignorou o que eu disse e continuou falando sem parar.
era o segundo pior bêbado de todos nós, Jack continuava invicto no primeiro lugar.
– Eu disse que eu estou com sono, . – Tentei mais uma vez, mesmo sabendo que era quase inútil.
– Você não sabe o quanto eu odeio aquele lugar. Eu lembro de um dia que... – Começou a reclamar, sentando no chão, ao lado da cama e encostando a cabeça na cômoda.
– Eu sei, baby, você passou três horas reclamando quando fomos lá. – Eu o interrompi antes de ele começar a falar e terminar só no outro dia. A melhor estratégia era essa, não o deixar começar a contar histórias.
Ele ficou em silêncio por mais de 5 segundos e eu logo estranhei. Eu não estava brincando quando disse que era o bêbado falante. Nós contamos uma vez. Ele falou sem parar por quatro horas seguidas e a festa durou apenas três. Abri os olhos e ele me olhava sorrindo de canto, seu rosto sempre juvenil me fez sorrir também.
– O que foi? – Questionei, sem conseguir não sorrir por conta do seu sorriso infantil.
– Não consigo odiar nada quando estou com você. – Declarou, com a cabeça um pouco inclinada, como se fosse um filhotinho de cachorro.
Eram por momentos assim que eu explodiria Dana e ficaria com ele só para mim.
– Vem dormir, vem. – Bocejei. Puxei seu queixo para mais perto de mim. Beijei-o de leve, mas logo me afastei ou ele se empolgaria e eu ainda estava cansada e com sono.
– Só vou tomar um banho e já venho. – Depositou um beijo em meu rosto e levantou. Rápido demais, acabou esbarrando em tudo, derrubando a sua estante de quadrinhos e eu também escutei mais alguns sons de coisas caindo vir de dentro do banheiro.
– Nem fodendo que eu vou levantar daqui para arrumar a bagunça dele. – Resmunguei sozinha e me aconchego novamente debaixo dos cobertores.
Cochilei gostoso até meu corpo se arrepiar ao sentir o corpo gelado e emanando o cheiro gostoso do sabonete grudar-se ao meu por debaixo do edredom. Encostei a cabeça em seu peitoral e joguei minha perna em sua cintura.
– Boa noite. – Deixei um beijo leve em sua clavícula, mas é claro que não ia parar de falar.
– Vou passar alguns dias em Chertsey, a gente podia ir à praia quando eu voltasse, que tal? Eu, você, uma pousada, sexo, comida legal, sexo, praia, um pouco de sol, sexo... – Sugeriu, acariciando minhas costas e brincando com meus cabelos.
– Eu disse que estava com sono, . – Reclamei mais uma vez, lembrando-o novamente.
– É só dizer sim ou não, Julieta! – Choramingou enquanto brincava com meu cabelo.
– O que você quiser, baby. – Enunciei, sem realmente confirmar minha presença na sua pequena viagem.
– Preciso tirar uma foto sua depois! – Inclinou-se, murmurou ao pé do meu ouvido antes que eu questionasse seus motivos: – Você, com a bunda de fora e meu nome grafado nas suas costas, é o tipo de coisa que eu gosto de ver quando chego em casa!
Sorri abertamente com seu enunciado. Virei um pouco o rosto para facilitar o caminho dos seus lábios até os meus. As mãos de desceram da minha cintura e infiltraram-se dentre minha camisa, aproveitando-se mais uma vez d'eu não estar usando calcinha. Arfei quando senti Felipe e seus dedos atrevidos brincando de um jeito inocente numa área do meu corpo não tão inocente assim. Meu corpo entrou em alerta geral no momento que apertou seu corpo contra o meu ainda mais.
Soube ali, que nossa noite estava apenas começando.
A lembrança do sexo devasso, lotado de lascívia, provocado pela breve embriaguez de , fez meu corpo esquentar e as partes do mesmo que estavam em contato com ele, pulsaram.
– Por falar nisso, faltam quinze minutos para as 5h. – Olhei o visor do celular de , que tinha uma mensagem de Tom, perguntando se ele estava acordado. – Consegue fazer milagres? – Levantei e fiquei ao lado da cama, de pé e de costas para ele.
– Você está falando do zíper ou...? – Perguntou, confuso e eu quis ver sua feição.
Ainda de costas, eu mesma abaixei o zíper do vestido até o final e deixei o escorregar no meu corpo. Inclinei-me um pouco para sair de dentro do vestido e no ato, fiz questão de empinar meu traseiro do modo mais sensual possível. Quando virei de frente, cravava um olhar totalmente arrepiante em meu corpo. Mordeu os lábios quando viu meus seios à mostra, já que eu não usei sutiã aquela noite.
foi o único homem que conseguiu a proeza de me fazer esquecer todas as minhas inseguranças. Olhava-me como se eu fosse a maior gostosa de todos os tempos. Eu odiava atribuir essa responsabilidade a ele, mas não tinha como negar.
– 182 dias, . – Soltei meus cabelos do penteado improvisado e baguncei-os. Abri sua mesa de cabeceira e tirei dois preservativos de dentro, jogando-os no peitoral do rapaz. – Você tem 15 minutos para me manter satisfeita por 182 dias.
– Talvez eu precise de 20 minutos. – Engoliu em seco quando me viu engatinhando pela cama até chegar a ele. Quis cravar meus olhos nos dele, mas ele estava perdido demais analisando o meu corpo, parado na mesma posição quando cheguei à sua frente. – Meu desempenho pode não ser dos melhores. Me deixa nervoso pensar que tem pessoas vindo para cá nesse momento. Tom tem a chave da casa, sabe? Ele entra quando eu não atendo de primeira...
– Eu não me importo em ter plateia. É até pecado que a população não veja o jeito bonito e gostoso que só a gente sabe fazer... – arfou, jogando a cabeça para trás. Talvez não suportando em me ver na sua posição favorita sem ele por trás, como de costume. Ou talvez estivesse apenas surtando com minha libertinagem.
Soltei um suspiro de aprovação quando, sem aviso prévio, o rapaz puxou meu rosto para si com as duas mãos e logo em seguida eu senti sua língua quente enrolar-se na minha. Afastou-se apenas para dizer:
– Um dia, você ainda vai me matar. E de várias formas diferentes, Julieta Young.
Sabia que, mesmo exausta, não conseguiria pregar os olhos enquanto eu não deixasse aquele lugar, pelo menos, habitável. Comecei separando todos os lixos em categorias. Vidros, plásticos, louça suja e restos de comida. Achei que me ocupando com a limpeza, a imagem de acenando para mim naquele portão de embarque não ia perseguir meus pensamentos. Eu não poderia estar mais errada.
Não conseguia parar de pensar nele e em tudo o que ele me disse naquela madrugada. Em tudo que nós conseguimos fazer em 15 minutos, eu ainda sentia seus toques por todo meu corpo. E o abraço apertado do adeus, tão dolorido. Ainda era difícil acreditar que era tão apaixonado por mim quanto eu era por ele.
– Julie? – Dana apareceu na sala. O rosto amassado e inchado, o cabelo bagunçado, denunciavam seu estado pós álcool. Seus olhos baixos denunciavam uma possível ressaca que estava por vir.
– Oi, como você tá? – Cumprimentei-a. Agachei para pegar uma fatia de pizza que estava grudada no chão e xinguei qualquer um que tenha feito aquilo. Após essa, eu nunca mais arrumaria a bagunça daqueles selvagens.
– Mal, eu vomitei logo depois que você saiu. Chegou agora? – Perguntou-me, confusa ao me ver com as roupas da noite passada.
– Estava com . – Olhei-a de soslaio, atenta a sua reação. A morena apenas deu um meio sorriso e seguiu para a cozinha, indo em direção a cafeteira. – Fui ao aeroporto com ele e o pessoal da equipe.
– E como foi? Aposto que você chorou. – A morena brincou. Sentou no balcão após pegar uma garrafa de água grande e bebeu na boca mesmo, desistindo da ideia do café.
– Eu sou de chorar com despedidas, realmente. – Debochei, revirando os olhos. – Chorei antes, na verdade. Nós conversamos.
– Como foi? – Perguntei, atenciosa.
– Difícil e... Esclarecedor, como eu imaginei que ia ser. – Enunciei, jogando o saco de lixo do outro lado da porta. Desviei o olhar para Dana, que encarava a janela em nossa frente, pensativa. – Como você se sente? Tudo bem eu ter ido lá, não é?
– Eu conversei com ontem, Julie. Eu pedi desculpas por tudo, falei que no dia do beijo, eu estava confusa e estressada. Acabei usando-o, confundindo tudo e etc. – Explicou.
– Você mentiu para ele, então? – Questionei. Dana não estava confusa, nem estressada. Ela nutria sentimentos verdadeiros por , eu sabia disso.
– Claro! Julie, é você. Ele é louco por você. E você nunca esteve tão apaixonada e uma pessoa nunca gostou tanto de você como ele. Talvez Hani, mas ele foi otário e estragou tudo. – Exclamou e gargalhei ao notar ressentimento contra Haniel em sua voz. – Eu conversei com Cameron ontem, sobre algumas coisas. Relacionamentos, a história dele com a ex...
– E você chegou a alguma conclusão?
– Ele falou tudo o que eu estava sentindo sem nem saber, Julie. – Soltou uma risadinha, quase envergonhada. – Eu não sei como ele entrou na minha cabeça dessa forma. Mas cheguei à conclusão de que eu não posso forçar a ter sentimentos por mim, sabe? Eu posso ter me apegado ao imaginário de ser o cara para mim porque eu não tenho ninguém. Ou talvez eu realmente tenha sentimentos por ele. Mas tanto faz, não importa! – Exclamou, coçando os olhos. – Eu acho que você não percebeu, mas vocês já estão em outro patamar! Seria desrespeitoso da minha parte ficar entre vocês agora. Por isso, eu pedi desculpas a ele. E tenho que pedir a você também.
– Você não tem que pedir nada, Dana! – Retruquei, arrancando as luvas de plástico das minhas mãos e fui até a morena. – Tudo o que eu fiz foi por você, sim! Mas também foi por espontânea vontade minha.
– Exatamente, você fez por mim. Você faz tudo por mim desde quando nos conhecemos! Está na hora de me deixar retribuir e fazer algo por você também. E é o começo da minha quitação com você.
O olhar carinhoso que eu via na face de Dana era o motivo de eu não ter dúvidas em relação a mulher. Ela era minha relação mais recíproca, verdadeira. Assim como todos os relacionamentos do mundo, tínhamos nossas diferenças e algumas desavenças, mas no final do dia, ela era por mim.
Me matava notar que Dana Tomanzio, minha melhor amiga, a garota mais bonita do colégio, era tão (ou talvez mais) solitária que eu. Eu não precisava dizer que ela poderia ser muito mais, porque ela já era algo de outro mundo. Mas ela merecia mais, muito mais.
Impactada com as palavras da morena, estanquei no lugar. Estive tão presa em meu egoísmo e em meu mundo que nunca notei a solidão de Dana. Nunca notei que a garota tinha tantas histórias de amor falhas quanto eu. E foi por puro azar que a vida nos fez nos encantarmos pela mesma pessoa.
Larguei a vassoura e ignorei a limpeza e fui me sentar ao seu lado, no balcão. Abracei-a pela cintura, antes que eu pudesse falar alguma coisa, ela enunciou:
– Desculpa por ter feito você desistir dele por mim. Eu sei que compliquei tudo para vocês. – Murmurou, de cabeça baixa.
– Eu faria tudo de novo. – Afirmei, convicta. Encostei meus lábios em sua bochecha e recebi um delicado afago no cabelo. – Eu faria qualquer coisa para você ser feliz, Dana.
– Eu não mereço isso, Julieta. – Retrucou, sentida.
– Você salvou minha vida algumas vezes, pode ter qualquer homem que você quiser! – Exclamei, bem-humorada. Fui bem-sucedida na missão de arrancar uma risada da moça ao meu lado.
Isso era eu e Dana. Como eu disse a algum tempo atrás, sem muitas complicações. Eventualmente, tudo ficava bem.
– Esse é o preço da sua vida? Homens? Porque eu acho que você vale o preço triplo de todos os homens do mundo. – Dizzy exagerou nas estatísticas e acabamos gargalhando juntas.
– Esse é o melhor elogio que uma feminista pode receber! – Sorri quando ela encostou a cabeça em meu ombro. Olhei em volta, prestando mais atenção a minha volta do que o normal.
O lugar ainda estava um nojo, mas o silêncio das 6h da manhã trazia uma calmaria necessária a nós duas, Cameron ainda dormia no chão em frente a porta do banheiro e nossas janelas de vidro gigantescas nos ofereciam o nascer do sol como um espetáculo particular. Parecia perfeito.
Eu, ela e nosso pequeno (e imundo) mundinho.
Também nos dias seguintes, Dana e eu conversamos muito sobre tudo o que havia acontecido nos últimos meses. Dana deixou claro que ainda tinha uma queda (um abismo) por , mas eu também fiz questão de avisar que desistir dele não era mais uma opção. Ela sempre mudava de assunto, alegando estar envergonhada, disse que nunca mais queria falar sobre aquilo e propôs fingir que nada nunca aconteceu. Nós tentamos resolver até nossas antigas pendências. Conversamos sobre coisas que nunca tínhamos falado antes, como nossa primeira grande briga na época da escola, quando ela se envolveu com um delinquente juvenil da nossa área. No fim, Dana aceitou minha teoria de que ela só havia se metido nessa confusão por conta da reprovação de seus pais com o rapaz. Ela nem sequer gostava dele mesmo, era pura provocação.
A quarta-feira estava agradável, o tempo ameno e, o melhor, sem nuvens. O meu dia estava sendo completamente normal. Eu estava realizando todas as minhas atividades costumeiras: Acordei cedo, fui para a fisioterapia e para a psicoterapia, preparei minhas aulas durante a manhã quando voltei para casa, arrumei a sala, preparei o almoço com o auxílio de minha linda mãe via chamada de vídeo. Fui para a faculdade e assisti minhas primeiras aulas do dia. Até que Gina Callaway, a mulher de longas tranças nagô por todo o cabelo, solicitou minha presença em sua sala.
E meu mundo inteiro virou de cabeça para baixo pela segunda vez no ano.
– Não acho que eu esteja entendendo muito bem, Dra. Callaway. – Pisquei repetidas vezes, alisando minhas mãos ansiosas em minha saia jeans. A sala amarela da reitoria da Universidade Nacional de Hillswood parecia menor a cada palavra da mulher sentada do lado oposto da mesa.
– Toda a direção mudou, Srta. Young. Com isso, nós perdemos grande parte dos fiadores e... – Tentou explicar o que eu já havia compreendido.
– Não, isso eu já entendi. Eu só queria ter a certeza de que estou sendo mandada embora! – Engoli em seco, falando um pouco mais grosseira com Callaway. Minha garganta parecia seca demais, mesmo depois de ter dado um longo gole de água do copo que me foi servido.
– Você foi uma das melhores acadêmicas financiadas que tivemos aqui. Vimos o quão longe você chegou, acompanhamos sua luta contra você mesma, te apoiamos e você foi...
– Ah, meu Deus! Eu realmente estou sendo expulsa. – Obstruí a fala da mulher novamente quando senti o tom de despedida em sua voz. Levantei da cadeira, retirando meus óculos e comecei a ofegar. De repente, parecia não haver oxigênio algum ali. Comecei a mover meus braços para cima e para baixo, afim de gastar toda a adrenalina que meu corpo havia reunido após a notícia.
Eu sabia que a diretoria da universidade havia sido modificada, é normal, acontece sempre que o governo também muda. Eu só não sabia que essa mudança poderia afetar a mim, não sabia que existia mais alguma forma do universo me ferrar. Dra. Callaway contou que, com a mudança de todo o corpo docente do lugar, eles perderam muitos fiadores por conta da mudança política no local e para cortar os gastos, eles decidiram acabar com alguns programas. E como a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco, o financiamento estudantil interestadual fora o primeiro a ser cortado.
Em outras palavras, significava que a minha hora de voltar para casa chegara (bem!) antes do que eu imaginei.
– O que eu faço? O que eu vou fazer agora? – Murmurei para mim mesma várias vezes, sentindo minha cabeça rodar, como se eu tivesse tomado taças de vinho o dia inteiro.
– Julieta... – Chamou, parecendo alarmada com minha agitação preocupante até para mim.
– Eu não sei o que fazer agora... E-eu tenho provas para fazer! – Rebati em tom de questionamento. Eu buscava razões absurdas para ficar, mesmo sabendo que nada do que eu falasse faria diferença.
– Bom, você não é mais alun... – Parou bruscamente, notando que sua frase provavelmente seria bruta demais para mim. A reitora tomou uma grande quantidade de ar antes de continuar. – Você agora é estudante da UN de Springfield, então, todo o processo vai continuar lá...
– Mas a minha irmã, Clarissa, está morando com meus pais de novo. E ela está dormindo no meu antigo quarto. E foi embora um dia desses, não é justo eu ter que ir também! – Desatei a falar em um claro ato de desespero e pânico. A mulher em minha frente suspirou profunda e pesarosamente. Eu sabia que a reitora não fazia ideia de quem eram as pessoas que eu estava citando, mas não liguei. Só precisava pôr em palavras meu desatino. – Eu tenho meus alunos, a monitoria...
– Srta. Young! – Interrompeu-me com uma voz grave, que me assustou. Imaginei que eu devia estar torturando a mulher com meu surto. – Você precisa ir para casa.
– Eu nem sei mais onde fica minha casa. – Minha voz falhou quando proferi tal frase.
– Eu faria o possível por você, Julieta, mas para ser bem sincera, eu não sei nem se eu vou sobreviver a tudo isso. – Ela parecia aflita ao ver meu breve estado de desespero. Eu andei pela sala de um lado para o outro, meus cabelos já quase não sobreviviam ao ataque constante de minhas mãos.
Eu não acreditava no que estava acontecendo. Faltava menos de um ano para eu me formar, eu não podia simplesmente desistir agora, mesmo que eu não quisesse mais uma carreira no jornalismo. Minha mente trabalhou rapidamente, buscando por soluções para meu infortúnio.
Eu daria tudo para ficar em Hillswood, mas minha graduação é minha prioridade. Em poucos segundos de raciocínio, eu comecei a aceitar a minha ida. Eu poderia voltar depois de formada, as coisas definitivamente seriam diferentes sem o auxílio do governo, apenas com uma boa ajuda dos meus pais. Eu nem sei se daria certo, porém, eu precisava ter um conforto, uma esperança de que eu voltaria um dia.
– Eu sei, Drª. Eu só estou... – Respirei fundo antes de voltar a sentar, colocando meus óculos novamente. Toquei em uma mão de Callaway, que repousava sobre a mesa. – Graças a você, eu tenho um ótimo psicólogo, pude voltar as aulas logo após o acidente que sofri...
Obrigada por tudo, de verdade. É só que...
– É difícil de aceitar, eu entendo. Já tive essa conversa com alguns alunos antes de você... – Confidenciou, bebericando um pouco de algo em sua xícara de porcelana.
Conversamos por mais uns minutos, onde ela me passou as informações e instruções do que aconteceria comigo nos próximos dias. Tentou meu convencer a ficar, mas sem a bolsa, eu não tinha condição alguma. Eu dependia inteiramente da bolsa de auxílio para viver em HW. Em Springfield, querendo ou não, seria bem mais fácil de continuar a graduação. Eu só precisava de alguns papéis para finalizar minha transferência para minha cidade natal, já que eu havia finalizado a maioria das matérias daquele semestre. Após o recesso de Natal, no mês de janeiro, eu já estaria oficialmente integrada a uma unidade da Universidade Nacional no meu estado.
Logo Gina pediu licença, já que precisava ter a difícil conversa com outros bolsistas. A mulher pediu-me desculpas mais uma vez antes que eu saísse da sala. Eu não queria deixá-la pior do que ela parecia, então eu fingi que eu não estava em pânico quando despedi-me dela. Pelo menos até a hora em que encontrei Bela, sentada no chão, esperando por mim no corredor.
– E aí? O que ela queria? – Bela levantou e veio em minha direção, limpando a calça com as mãos. Não falei nada, apenas me joguei em seus braços, abraçando-a com força. – Ah, não. Tem algo errado.
– Você não vai acreditar... – Proferi, magoada.
Expliquei para a garota tudo o que tinha acontecido, repetindo as mesmas palavras que a reitora. Até mesmo para tentar aceitar melhor, mas a cada vez que eu falava que estava indo embora de HW, parecia uma ideia ainda mais absurda.
– Não tem mesmo como...? – Balancei com a cabeça, negando. Bela suspirou fundo, jogando os braços sob meus ombros. – Caramba, amiga. E agora?
"E agora?"
Essa pergunta vinha me assombrando demais esse ano. Foi a mesma pergunta que Dana fez quando eu descobri sobre seus sentimentos. Foi a mesma pergunta que fez quando me contou que estava indo embora. Foi a mesma pergunta que Jack fez quando nós deixamos o celular de Cam cair no vaso sanitário tentando tirar umas selfies divertidas. A verdade é que eu não sabia o que fazer agora.
Eu estava totalmente desnorteada. Voltar para o Jeins – distrito onde eu morava – não estava em meus planos pelos próximos quatro ou cinco anos. Eu tinha planos de ficar em HW mesmo depois da formatura. Agora, eu sentia que a cidade estava me expulsando, deixando-me na porta com minhas malas já prontas. Fazia um mês desde que se fora, agora faltavam duas semanas para eu ir também. Eu voltaria a Springfield no recesso, iria celebrar o natal no Jeins, como de costume. Entretanto, dessa vez eu não voltaria alguns dias depois e essa veracidade estava me matando.
Tive que repetir a mesma explicação mais três vezes para o resto dos meus colegas de classe, já que muita gente não estava entendo porque eu, dois alunos da mesma sala e vários de outras salas, estavam desolados após sair do escritório da reitoria.
– Você não vai se formar com a gente? – Sid, um cara ruivo e bom demais para seu próprio bem, um grande amigo meu, choramingou e abraçou-me pelos ombros. Encostei a cabeça em seu ombro e fechei os olhos porque senti que ia começar a chorar ali mesmo.
Passar a formatura ao lado de outra turma, em outra cidade, com pessoas que eu sequer conhecia, deixava-me destruída. O que seria pior que isso?
– Julie? – Abri os olhos ao ouvir o chamado de Toni, que me olhava consternado. – Você já falou com a Dana?
Isso seria absolutamente pior.
Dirigi calmamente pelas ruas da cidade, tentando retardar minha chegada em casa. Eu só conseguia notar que caiam alguns fracos pingos de chuva por conta das marcas que apareciam no para-brisa do meu carro. Deixei as janelas abertas, aproveitando o tempo gélido que fazia para me afundar em um casaco que havia deixado para trás.
Não tinha mais seu cheiro, mas a lembrança dele ali quase parecia um conforto. A voz melancólica de Beck Hansen era a minha companhia, eu murmurava baixinho a letra, esperando que o cover da música de Daniel Johnston desse um pouco de vazão à minha dor.
Enquanto esperava o semáforo mudar de cor, comecei a pensar nas tantas mudanças que haviam acontecido comigo nesse ano, que eu começaria a classificar como o mais intenso da minha vida dali em diante. Eu sentia que minha vida era uma grande quebra cabeças, onde eu encaixava duas peças e quatro saiam do lugar. Eu costumava quebrar as regras que me eram ditadas, mas agora, todas as regras que eu ditava acabavam sendo quebradas pelas outras pessoas.
Eu não costumava ser uma pessoa de choro fácil, porém, desde que eu comecei a frequentar as consultas com o psicólogo assiduamente, eu havia aprendido que chorar não era sinal de fraqueza e sim, sinal de que você sente. E está tudo bem em sentir. Então, eu chorei durante o meu caminho inteiro até em casa. Logo meus devaneios sobre mudanças tornaram-se esmagadores quando dobrei a esquina e vi meu prédio, desbotado e caindo aos pedaços. Minha casa.
Tentei recompor-me quando cheguei em frente ao 305, tentei engolir aquele bolo de angústia que estava preso em minha garganta, mas minha tentativa falhou quando abri a porta e vi a habitual cena que sempre aquecia meu coração.
Jack estava sentado no chão, olhando atentamente para a TV, com um prato em mãos. Dana estava deitada no sofá e mexia no celular e Cameron mexia nas panelas em minha cozinha, como sempre. Fiquei parada na porta, encarando a todos ali presentes. Aquilo ali era meu lar, minha casa e ninguém me faria pensar o contrário. Fechei a porta, respirando lentamente. O apartamento de Jack era bem localizado, nunca estava em casa e a casa de Cam era a maior de todas, mas ainda assim, meu apartamento ainda era o ponto de encontro preferido do grupo. Eu entendia, eu também era apaixonada por aquele lugarzinho.
– Você chegou bem na hora. Hoje é Itália! – Cam comemorou e veio até mim, beijando minha testa, já entregando um prato em minhas mãos. A cada semana, para aperfeiçoar seus dotes culinários, o rapaz nos fazia escolher um país e ele faria algo relacionado ao lugar. – Eu fiz lasanha de frango com molho de provolone! Modéstia à parte, é o melhor que eu já fiz.
– Maratona The Fresh Prince na NBC, corre! – Jack informou, com a boca cheia e sem desviar o olhar. Isso explicava a atenção fixa na TV, era a série preferida dele.
Senti minha cabeça oscilar, senti minhas emoções e sentimentos todos virem à tona e eu não sabia com o qual deles lidar primeiro. Meus olhos encheram-se de lágrimas. Eu tentei me controlar de todas as formas possíveis, tentei usar as técnicas de respiração que minha psicóloga havia ensinado caso eu sentisse que estava prestes a ter um ataque de ansiedade, porém, minha agitação chamou a atenção de Dana, que me encarava, confusa.
– Você está bem? – Questionou, franzindo o cenho.
– Eu vou embora. – Arrependi-me no exato segundo em que as palavras saíram da minha boca sem que eu sequer notasse.
– Você acabou de chegar. – Dana estranhou, levantando do sofá e indo até mim. Comecei a expirar o ar fortemente, parecia ser um ataque de pânico, mas eu só estava tentando parar de chorar, pois já estava ficando irritante até para mim.
– Julie, você está bem? – Jack questionou e diminuiu o volume da TV. Senti a mão de Cam acariciando minhas costas e guiando-me até o sofá. – Você está pálida!
– Eu perdi, e-eu não tenho como ficar aqui. – Fui dando-me conta das coisas à medida que fui falando e me arrependo, porém, eu não conseguia parar. Era informação demais para lidar, eu precisava expelir tudo. Dana levantou e veio em minha direção, com uma expressão confusa. Cam parecia ter entendido tudo e deixou-me no caminho, indo sentar no sofá com uma expressão pensativa.
– Você não está fazendo sentido algum. – Jack perguntou novamente, parecendo preocupado ao extremo. Quando tentei explicar, apenas um soluço alto escapou de meus lábios e como uma criança assustada, virei meu corpo, escondendo meu rosto no torso de Jack, começando a chorar copiosamente. – Julieta, alguém fez alguma coisa com você?
– Você está nos assustando, Julie. O que houve? – Dana exclamou, aflita.
– Tem alguma coisa a ver com a UNH? – Cameron perguntou, preocupado. Balancei a cabeça, afirmando.
– E-eu... – Respirei fundo, limpando meu rosto. Jack me levou até o sofá, massageando meus ombros, tentando me oferecer conforto. – Eu perdi a bolsa de estudos, vou ter que terminar a faculdade em Springfield. Se eu voltar para lá, não terei que pagar minhas últimas mensalidades. Vai ser como se o dinheiro da interestadual fosse pagar minhas mensalidades. E eu vou ter que ir porque eu não tenho dinheiro, eu até liguei para os meus pais, mas... Eu não tenho nada!
– Isso tem a ver com a mudança de governo? – Cam questionou, não parecendo muito surpreso. Assenti e questionei-o com o olhar sobre como ele sabia disso. – Me formei na UNH, ainda recebo e-mails com as notícias de lá. Não imaginei que algo assim fosse acontecer...
O silêncio absoluto na sala fez-me ficar arrependida de ter falado na frente de todos de uma vez, eu devia ter preparado cada um deles e principalmente, ter conversado com minha amiga e companheira de quarto antes de tudo. Devia ter pensado direito no que eu faria antes de surtar, mas meus sentimentos estavam todos a flor da pele. Subi o olhar, procurando por Dizzy. Ela estava em minha frente, de braços cruzados e com a testa franzida.
– Espera, deixa eu ver se entendi. – Jack esfregou o rosto, apoiando os cotovelos nos joelhos, apreensivo com sua própria conclusão. – Você não tem mesmo como continuar aqui?
– Não, Jack Jack. – Suspirei profundamente, sentindo as lágrimas inundando meus olhos novamente. – Eu vou para casa.
Após minutos em silêncio, Dana se pronunciou. Foi como uma avalanche, forte e destruidor, quando ela proferiu categoricamente:
– Você está em casa.
Senti meu coração quebrar-se em vários pedaços quando ela nos deu as costas e foi em direção ao seu quarto. Fechei meus olhos, sentindo extrema tristeza quando ouvi-a bater a porta de seu quarto com violência, deixando seus sentimentos bem claros. Jack passou um braço pelos meus ombros, abraçando-me e me permitindo voltar a chorar.
– Julie? – Cam chamou, pesaroso. – E agora?
A pergunta de um milhão de dólares estava ali novamente. E agora?
As batidas de Let It Bleed do Rolling Stones começaram cutucando meu ombro e eu os mexi no mesmo ritmo. Meu quadril acompanhou o as batidas ritmadas e quando me dei conta, eu já dançava na ponta dos pés ao redor da mesa de centro. Joguei meus cabelos de um lado para o outro, não notando a confusão que aquilo acarretaria a mim mesma.
As luzes psicodélicas piscavam rápido demais e mesmo com os olhos fechados, elas continuavam lá. As luzes começaram a causar uma sensação horrível de confusão, então esfreguei os olhos com força, usando as palmas das mãos. Tudo parece ter gosto de terra e pensando bem essa minha afirmação não tem sentido algum.
– Você achou que íamos acabar assim? – A voz arrastada de Dana tirou-me do meu delírio de luzes estroboscópicas e quando virei para vê-la, tudo parecia normal. Sem luzes e sem gosto de terra.
– A maconha é uma surpresa. – Murmurei, encarando meus pés, que ainda se mexiam incessantes. Gargalhei ao notar que eu ainda dançava e nem havia percebido.
Eu não sei exatamente que horas eram, mas eu sabia que já devia ser madrugada, pois Dana e eu estávamos na sala de nossa casa pelo que pareciam ser algumas horas. Desde que cheguei em casa, já pela noite, após passar um dia inteiro em cartórios, bancos e afins, encontrei uma Dizzy personificando a palavra "tristonha". Estava deitada no sofá, ouvindo rock antigo e bebendo vinho de segunda. Extremamente convidativo, óbvio que me juntei a ela.
Logo, o vinho transformou-se em vodka e a partir daí, eu já tinha perdido o controle de mim mesma, então não entendi muito bem como os baseados surgiram.
– Não deveria ser uma surpresa. Nós devíamos fazer isso mais vezes. – Sugeriu, sentando e procurando pelo isqueiro em cima da mesinha de centro.
– Ficar bêbadas em plena quinta-feira? Nós fazemos isso desde que viemos para cá. – Gargalhei, nostálgica. Lembrar de nossas primeiras noites sozinhas na cidade me causava uma enorme melancolia.
Éramos duas adolescentes vivendo longe de casa, morando sozinhas pela primeira vez. A empolgação com a recém liberdade nos fez extrapolar algumas vezes e acabamos perdendo o limite. Sempre prometíamos que íamos mudar, que logo o sentimento de novidade ia passar e nós viveríamos como adultas e responsáveis. Esse dia nunca chegou. Quase seis anos depois, Dana e eu ainda abusávamos de nossas liberdades, principalmente quando o assunto era diversão.
Senti que as luzes fortes iam voltar aos meus olhos, então sentei no chão também, o que fora uma péssima escolha pois senti um enjoo terrível. A mistura de álcool com a cannabis não fora exatamente uma boa ideia.
– Você odeia fumar. – Comentei, observando Dizzy acendendo um cigarro.
– Minha melhor amiga vai embora, eu posso fazer o que eu quiser. – Embolou-se toda para falar e após dar uma baforada para cima, tossiu vigorosamente. – Que saco, eu odeio fumar!
– Então, para de fumar! – Puxei o cigarro da mão dela, tragando um pouco. Isso só piorou minha situação. Antes a sala apenas oscilava, agora a sala fechava-se em minha volta. – De onde surgiu isso, afinal?
– Minha melhor amiga vai embora, eu acho que tenho todo direito de fumar umas coisas que Cam guarda na bolsa. – Replicou, puxando o cigarro de volta.
– Para de falar isso! – Reclamei, colocando minha cabeça entre as pernas. Eu não gostava de ficar lembrando a cada minuto que eram meus últimos dias na cidade. A música ainda ecoava pelo apartamento, o disco do Rolling Stones quase no fim e eu sentia que estava chapada demais para conseguir, ao menos, brigar com minha garota.
– Me lembra de novo do seu itinerário? – Pediu, curiosa e arrastadamente.
– Amanhã, ou hoje, eu acho... – Olhei no meu relógio de pulso, mas até os ponteiros resolveram sair para brincar. – É meu último dia de aula e a bendita festa, sábado é o dia da ressaca e domingo...
– O dia da ida. – Completou, empurrando meu ombro de leve e sorrindo tristemente. – Você tem noção disso, Julieta? Você vai embora em três dias!
– Nós vamos passar o Natal juntas, como sempre. – Tentei acalmar a morena ao meu lado, que já demonstrava irritação, passando o braço pelo seu ombro e acariciando seu braço.
– Não me interessa o Natal, Julie. – Vociferou. Seus olhos cheios de lágrimas fizeram-me perder a fala. – Meu problema vai ser voltar para casa e você não!
Achei que ao longo dos dias, enquanto eu arrumava minha vida, resolvia toda a burocracia e planejava minha nova vida, eu aceitaria e ficaria inteiramente pronta para voltar. Porém, passou-se exatamente um mês desde que eu havia recebido a notícia que estava sendo despachada de Hillswood e ainda era difícil digerir. Ainda mais difícil quando eu olhava para Dizzy. Às vezes, estávamos no meio de uma conversa, gargalhando ou fazendo brincadeiras idiotas e a garota ficava subitamente triste. Eu sabia que ela tentava disfarçar, mas Dana nunca foi boa em esconder seus sentimentos.
– Tem um cachorro na sua cabeça! – Apontou para mim, mudando de humor bruscamente. Gargalhei ao notar que os efeitos da erva começariam a aparecer na mulher ao meu lado.
– Eu odeio cachorros. – Coloquei a mão na boca, ainda rindo, porém receosa quando senti a náusea tomar conta de mim.
– Eu sei! Por isso é engraçado. – Gargalhou alto.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, um bolo surgiu em minha garganta, implorando para sair. Levantei correndo, esbarrei em várias coisas até chegar ao banheiro. Joguei-me no chão sem necessariamente senti-lo e despejei todo o liquido nojento que saiu da minha boca no vaso sanitário. Senti Dizzy atrás de mim, segurando meus cabelos.
– Eu não acho que nós ainda sejamos jovens o suficiente para misturar essa quantidade de drogas. – Reclamei, sentindo o gosto amargo na minha boca, deixando-me grogue. Estiquei-me até conseguir chegar à pia para lavar a boca com o máximo de enxaguante bucal possível.
– Eu não acredito que vamos estar de ressaca na sua festa de despedida. – Encostou-se na parede oposta, ainda sentada no chão. Posicionei-me entre as pernas dela depois que enxaguei minha boca. Eu ficava imprestável depois que vomitava, tinha certeza que estava pálida como a parede. Meus olhos pesavam e eu podia dormir ali mesmo que nem me daria conta.
– Eu não acredito que vou ter uma festa de despedida. – Comentei, aconchegando-me nos braços de Dana.
– É a melhor produção de Cam, segundo ele mesmo. – Rimos da famosa prepotência de Cameron. O rapaz tomou a frente da ideia de Jack de fazer uma festa de despedida para mim e planejou a pândega em sua própria casa no sábado, um dia antes da minha viagem. – Jack está responsável pelas bebidas, então você já sabe que vem variedade por aí.
– Eu ainda lembro do aniversário do que ele cuidou das bebidas, você lembra? Aquela...
– Bebida azul! – Falamos juntas e caímos na gargalhada em seguida.
Jack era a pessoa que realmente não se importava em gastar todo seu salário com bebidas diferentes que as pessoas nunca costumavam beber. Uma simples cervejinha não tinha vez com ele. Uma vez, quando lotou um show em uma grande casa de shows pela primeira vez, Jack surgiu com um absinto polonês para comemorar. Eu não lembro absolutamente nada desse dia.
– E por falar nele, você já contou? – Questionou, prendendo meu cabelo em um rabo de cavalo com uma liga.
– Não. – Suspirei, esforçando-me para não cair no sono ali mesmo. – Ele já deve saber pelos garotos, mas eu não falei nada.
– Ele vai ficar puto com você. – Deu uma risadinha e eu concordei, dando de ombros. Já não era novidade para ninguém que eu me tornava uma completa covarde com/por . – Argh, que saudades dele!
– É, eu também tenho saudades...
Não falei nada a mais pois a última coisa que eu queria era perceber o quanto eu sentia falta dele enquanto estava alta. Até acompanhar suas publicações nas redes sociais era um inferno para mim.
Aparentemente, Tom só era um cara estressado em HW, pois em turnê, ele estava todo gracioso e folgado. Assumiu com louvor o posto de amigo irritante, sempre me mandando fotos, vídeos e notícias do cantor, como por exemplo: "Oi, Julie. está extremamente bêbado e não para de falar. O que eu faço?". Ou então: "Oi, Julie. Hoje fez o show sem fazer os aquecimentos vocais. Briga com ele."
– Julie? – Chamou e eu atendi, virando a cabeça levemente para olha-la. – Você me perdoou?
– Pelo o quê? – Questionei, confusa.
– Toda a confusão com . – Explicou, mordendo os lábios. – Às vezes, eu penso que seria melhor se eu nunca falasse nada, sabe? Mas eu não saberia viver mentindo para você.
– Eu acho que tudo aconteceu da forma que deveria acontecer. – Balancei as mãos e voltei a deitar a cabeça em seu ombro, fechando os olhos.
– Eu não acho. Acho que tudo entre vocês já estaria certo se não fosse por mim. – Supôs, pensativa.
– Mesmo que não houvesse a história com você, nós ainda estaríamos cheios de problemas com essa nossa súbita partida. – Refleti.
Eu nunca iria querer um relacionamento a distância, e a julgar pela forma que não se opôs a minha ideia de ficar na mesma, ele também não queria. Nosso afastamento era inevitável.
– Eu gostei dele de verdade, Julie. – Comentou, murmurando em tom de confidência. Puxei seus braços de forma que me abraçassem, segurando suas mãos.
– Eu sei, amiga. Você não se sujeitaria a nada que aconteceu por apenas uma queda. Ou como os jovens dizem: "Um crush!" – Declarei, afirmando, causando risadas na garota.
– Depois que tudo aconteceu, eu fiquei me perguntando: E se meus pais estão certos? E se eu realmente for mimada e egoísta? – Questionou, visivelmente abalada. – Você acha que eu devia ter voltado para Springfield quando eles me pediram? Eu devia agradecer de alguma forma tudo o que eles fizeram por mim.
– Eu acho errado o que eles fizeram você pensar de si mesma, Dana. Adoção não é empréstimo onde você tem que pagar por tudo o que eles fizeram por você. E você pensar assim só mostra o quanto eles manipularam você e te chantagearam emocionalmente. Eles não, ele. Porque eu sei que sua mãe não concorda com isso. – Discursei, extrapolando na sinceridade e na indignação.
Era errado e triste, ver Dana se torna uma mulher submissa, pequena, amuada e retraída quando estava perto dos pais. A adoção não é algo para se usar como agressão quando as coisas ficam difíceis.
– Vamos dormir? – Sugeriu, fraca, mas ainda estava com o cigarro na mão e baforava tranquilamente.
– Você não parece querer dormir. – Olhei-a, levantando a cabeça, confusa. O rápido corte na conversa mostrou que Dana estava incomodada, lidar com aquele assunto nunca fora fácil, mas ela sabia o que era certo e o errado.
– Não quero, mas não consigo parar de pensar que daqui a uns meses, quando eu quiser ficar bêbada e chapada sem motivo algum no meio da semana, você não vai estar aqui para me acompanhar. E eu fico triste de pensar isso. E eu não quero ficar triste. – Apertou os braços em volta de mim e eu encostei a cabeça em seu ombro, suspirando. – Eu não vou saber viver sozinha, Julie. Eu nunca vivi.
– Eu queria dar algum conselho, confortar você de alguma forma, mas... – Murmurei, mordendo os lábios. Engoli o choro, mais uma vez.
– Você também não vai saber viver sem mim, não é? – Suspirei e não respondi. Limpei meu rosto antes que as lágrimas caíssem e eu não conseguisse mais segurar por muito tempo. – Vem, Julie, vamos tomar um banho e dormir. Vão ser dias agitados, precisamos descansar.
Eu concordava com Dana, eu não queria mais ficar triste. O mês havia sido exaustivo. Eu sentia que passava a maior parte do tempo engolindo o choro e isso era agoniante. Tiramos nossas roupas em meio a tropeços, ambas quase não aguentando ficar de pé. A fumaça de vapor quente juntou-se a fumaça dos cigarros.
Nós deveríamos tomar um banho gelado, mas estava quase 14° lá fora, não tinha como não morrer de hipotermia. Assim que saímos do banho, fomos direto para o quarto de Dana. Dormimos juntas a semana inteira, apenas alternando nos quartos. O clima de despedida já completamente instalado na casa.
– Eu já venho, preciso tomar um pouco de água. – Avisei assim que terminei de colocar meu pijama de flanela.
– Espera! – Me afastei dois passos quando Dana me chamou de volta. A garota já estava confortavelmente deitada, coberta por um grosso cobertor e estendia um celular em minha direção. – Liga para ele. – Choraminguei, meus ombros caídos demonstravam a minha falta de vontade. Agradeci mentalmente que meus sentidos e reflexos já estavam voltando ao normal após o banho, já que Dizzy soltou o aparelho livremente e antes que chegasse ao chão, o peguei. – Agora!
Fui até a sala em passos lentos, como se aquilo fosse me impedir de falar com ele. Notei que o aparelho de som ainda estava ligado, mas agora tocava alguma música desconhecida por mim, parecendo ser um daqueles rocks clássicos que Dana amava. Não me importei em desligar o aparelho, apenas diminuí o volume. Me preparei para uma conversa do mesmo jeito que meu garoto costumava fazer. Coloquei uma jarra de água na mesinha e um copo quase cheio ao lado.
Desliguei as luzes, deixando apenas a luz mínima que vinha do corredor e sentei no sofá, posicionando um travesseiro em meu colo.
Olhei fixamente para o nome do rapaz na tela do celular, o brilho máximo iluminava o breu da sala. Toquei rápida e impulsivamente no ícone verde na tela, sem nem ensaiar o que falar. Eu só sabia que precisava contar ao rapaz.
– Alô? – A voz rouca de fez-me abrir os olhos. Após cinco toques, eu não achei que ele atenderia. – Alô?
– Oi, baby. – A ligação teve delay e eu ri quando ouvi a reverberação da minha própria voz. Extremamente bêbada e arrastada.
– São 2h da manhã aqui, Julieta. Aconteceu alguma coisa? – Parecia impaciente e irritado. Eu, provavelmente, estava atrapalhando seu descanso.
– Eu preciso falar com você. – Mordi o lábio, estiquei a mão para pegar o copo e dei uma longa golada.
– Aconteceu alguma coisa? Sua voz está estranha…
– Talvez eu esteja bêbada. E um pouco alta. – Confidenciei, rindo.
– Você nunca foi de me ligar bêbada, Julieta. – Declarou, desconfiado e sonolento. Eu o imaginei acomodando-se no travesseiro, pronto para escutar qualquer idiotice que eu viria a falar.
– Mas você sim! – Acusei-o.
– Apenas uma vez e você prometeu que a gente nunca mais ia falar disso. – Gargalhei com a lembrança e acho que acabou rindo também. – Vai, me conta, o que aconteceu?
Permaneci em silêncio, ainda perdida nas lembranças. Fora extremamente engraçado e inesquecível quando ficou bêbado e insistia em falar comigo, perturbando os garotos insistentemente para que me ligassem. Cam o torturou durante uma semana inteira por conta da situação.
– Julieta... – Chamou.
– Ok... – Respirei fundo, tomando mais um gole de água, impedindo que minha garganta ficasse seca. – Alguns dias atrás, eu soube que...
– Eu estou a quase um mês, desde que Cameron me contou da sua festa de despedida, esperando o dia que você ia me contar que está indo embora.
Cortou minha fala abruptamente, mas não parecia irritado. Sua voz era puro ressentimento e sono. Eu não pude dizer nada mais do que "desculpa".
– Eu não sabia como falar. – Murmurei, confessando, mordendo minha própria unha. Me sentia extremamente envergonhada de minhas ações, mas de alguma forma estranha, isso não me impedia de continuar errando com .
– Ainda dá tempo de me contar como se eu já não soubesse a história toda. – A voz soava calma, mas eu tinha certeza que se estivéssemos frente a frente, ele estaria de braços cruzados e de maxilar travado.
Então, eu contei, desde o início, desde a minha conversa com a Dra. Callay até a noite anterior, quando Jack e Cam me ajudaram a empacotar as últimas coisas.
– , você dormiu? – Estranhei, pois, a linha ficou em silêncio por uns segundos após o fim do meu monólogo.
– Não, desculpa. Eu só não sei muito bem o que falar. – Revelou.
– Diz que vai sentir minha falta, ué. – Disse, manhosa, jogando-me de costas no sofá.
– Quem disse que eu vou sentir sua falta? – Ironizou e eu revirei os olhos. Eu ainda estava morrendo de sono, mas ultimamente quase não tinha tempo de falar comigo ao telefone, então eu não via problemas em sacrificar umas horinhas de sono por ele. "Idiota", resmunguei baixinho. – Baby? – A voz do rapaz chamou-me, apreensiva. Murmurei em resposta. – E a gente? O que vai ser de nós? Quer dizer, eu vou voltar para casa um dia…
Eu entendia o ponto dele, era exatamente como eu pensava. Ele iria voltar para casa e eu não estaria lá. Esse talvez tenha sido o principal motivo de eu não ter falado logo para que eu estava de mudança. Eu não gostava da ideia de ter que mudar todo meu relacionamento com ele. O combinado era: ele voltaria e nós iriamos nos resolver.
– Eu não sei, . Acho que continuamos na mesma. – Dei de ombros, tristonha.
– Eu nem sei qual é a nossa mesma. – Riu sem humor. A voz ainda preguiçosa me deixava morrendo de vontade de estar com ele, abraçada ao seu corpo.
– Acho que agora, mais do que nunca, é algo que a gente não pode decidir. – Constatei.
Ficamos em silêncio. Eu sabia que não concordava totalmente comigo. Ele deveria estar querendo totalmente o contrário que eu, mas eu sabia que ele não me pressionaria a nada, principalmente agora, que eu estava lidando com uma grande carga emocional.
– Então, a minha festa! – Mudei de assunto. Não por desconforto, mas por que se eu passasse mais um minuto em silêncio, eu dormiria. – Cameron está empenhado nessa. Você.... Tem como você aparecer?
– Ele está empolgado, já me mandou uns 5 convites diferente. – Rimos juntos. Nosso amigo estava realmente ansioso para a tal festa. – Eu posso tentar.
– Promete? – Pedi, exagerando na meiguice. – Eu meio que tenho que ver você antes de ir.
– Tem, é? – Riu, debochado.
– Eu estou na minha sala e aqui tem muitas coisas para fazer. – Olhei em volta, observando a breve bagunça. O sono já estava me deixando desconexa, então, achei melhor levantar do sofá, pois se eu continuasse ali, dormiria. – De tudo que tem aqui, a única coisa que eu não posso fazer agora é ver você. Então... Eu meio que preciso que você venha.
– Eu prometo, linda. Vou fazer o possível e o impossível para ir. – Sorri abertamente, mas logo senti meu sorriso se desfazer.
Perguntei-me internamente se a gentileza e o afeto de comigo ainda estaria ali futuramente. – Vá dormir, amanhã a gente se fala melhor, tudo bem? Boa noite, Julieta.
– ? Desculpa não ter contado antes. Contar parecia real demais, então, eu fui adiando, adiando... – Suspirei profundamente, sentindo meus olhos fechando-se sozinhos. – Enfim, foi difícil falar sobre.
– Tudo bem, baby. Foi difícil de ouvir também.
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– Dizzy! Eu não sei se você lembra, mas eu já sofri um acidente automobilístico esse ano e, ai meu Deus! – Gritei, desesperada. – Eu não estou afim de sofrer outro, Tomanzio!
Dana nunca andava em alta velocidade, sempre gostou de segurança, mas desde que se envolvera em um acidente de carro, a preferência por motos reinava. Dizia que com moto era mais provável machucar a si mesma do que aos outros, esse pensamento partiu do fato de que o homem que ela atropelou havia quebrado um braço e ela não havia sofrido nenhuma escoriação. Após meu acidente, eu discordava veemente dessa teoria. A baixa velocidade de Dana ainda era demais para mim, que tinha fama de "marcha lenta". Segurei-me com força em sua cintura, já que minhas pernas não pareciam oferecer a segurança que eu precisava.
– Já estamos chegando! – Gritou de volta.
– Não estamos, nã...Puta merda! – A morena fez uma curva tão fechada que eu quase senti meu joelho tocar no chão. A maldita apenas gargalhou do meu desespero.
Estávamos a caminho da casa de Cameron, onde seria a minha festa de despedida. O fato de ter uma festa me deixava extasiada, pois eu finalmente tinha amigos que se importavam o suficiente comigo para me fazer uma festa. Uma festa em minha homenagem! Eu nunca me senti tão especial e amada, mesmo que fosse em uma ocasião especial.
Vacilei quando desci do veículo e senti minhas pernas molengas e fracas. Passei a mão pelo cabelo, tentando conter as ondas indesejados no lugar dos cachos. Eu estava toda desarrumada e até um pouco suada por conta dos momentos de tensão que passei em cima daquela moto. Quando chegamos em frente ao local, eu sorri maravilhada. Eu havia esquecido a quão grande e linda era a casa de Cam.
– Ok, agora eu entendi por que você me fez colocar um vestido. – Declarei, um pouco surpresa e assustada. A casa de Cameron parecia abarrotada de gente. Eu sabia que a festa mesmo era no pequeno quintal do fotógrafo, mas tinha tanta gente que as pessoas estavam acomodando-se na porta de entrada mesmo. Era minha festa de despedida, mas eu tinha certeza que não conhecia metade das pessoas ali. – Quem são essas pessoas todas?
– Um pouquinho de cada. Uma galera que eu conheço, uma galera de Cam, Jack, ... – Dana comentou, retirando o capacete.
A menção ao nome de me fez suspirar e estremecer. Eu sabia que o garoto estava fazendo de tudo para que conseguisse aparecer essa noite. Só me restava torcer – eu estava morrendo de saudades do meu garoto – e ficar extremamente ansiosa.
– A minha realeza chegou! – Cameron surgiu entre as pessoas, correndo até mim. Abraçou-me até me tirar do chão, o cheiro forte de seu perfume misturou-se com o cheiro de álcool que emanava dele.
– Uau, a festa mal começou e você já está bêbado! – Gargalhei e segurei meu casaco grosso contra o meu corpo quando ele se afastou. As noites de dezembro sempre eram frias demais, mesmo com o calor humano que aquela casa transmitia, eu ainda sentia frio. O céu estava bem estrelado, considerando que havia chovido a semana toda e até umas horas antes do evento.
– Cameron, bêbado no início da festa? Está querendo roubar o lugar de Jack? – Dizzy brincou, guardando a chave da moto na bolsa.
Cameron virou-se para ela, encarando-a de cima a baixo e voltou a olhar em seu rosto, meio sério. – O que?
– Você está... – Olhou novamente para o corpo todo de Dana, que parecia excepcional com o vestido azul de mangas longas, colado ao seu corpo, indo até um pouco antes de seu joelho, deixando-lhe elegante e sexy e o all star completava o seu look do jeito certo.
– Eu estou o que, Cameron? – Dana cruzou os braços enquanto um sorrisinho ladino aparecia em seus lábios. Ergui uma sobrancelha quando captei a presença do flerte inocente dos dois a minha frente.
– Bonita, ué. Você está bem bonita. – O fotógrafo pareceu meio embasbacado, mas logo se recuperou, dando duas tapinhas amigáveis no ombro de Dizzy e nos puxando pelo braço. – Vamos entrar!
Olhei para Dizzy, com uma sobrancelha erguida, procurando explicações pela cena, mas ela olhava para baixo, com os lábios entre os dentes, como se estivesse prendendo o riso.
Não era de hoje que eu vinha sentindo um clima diferente entre Dana e Cameron. Dana não fazia questão de esconder que o achava super gostoso (nem tinha como, o cara realmente era). E Cam, apesar de estar sempre nos elogiando e brincando, nunca tinha nos faltado com respeito e nem tinha realmente dado em cima de nenhuma de nós ou tentado algo. Grande parte disso era culpa da ex, eu sabia. Cameron amou e ficou com a mesma mulher por muito tempo, ele estava se acostumando com a vida de solteiro de novo. Mas eu não via a hora do rapaz superar completamente a ex para começar a prestar atenção nas garotas a sua volta.
Eu não sabia muito bem a quantas andava os sentimentos de Dana em relação ao . Ela dizia que o rapaz fora apenas um refúgio de seus monstros internos, mas eu não sei. Muito do discurso dela parece ter sido criado apenas para esconder os seus sentimentos por minha causa. Eu queria muito ser altruísta e perguntar sobre, dizer que esconder seus sentimentos e vontades não faziam bem, porém eu não me importava o suficiente. Estava sendo ótimo para mim o jeito que estávamos lidando com as coisas.
Mesmo que fosse completamente errado jogar a sujeira para debaixo do tapete.
As poucas pessoas que eu conhecia foram me cumprimentando pelo caminho enquanto eu entrava na residência. As agradáveis batidas de Tame Impale me confundiam enquanto Cam ia apontando para as coisas e pessoas, falando empolgado sobre seu trabalho. A casa inteira estava sendo iluminada apenas pelo mais variados e coloridos pisca-pisca. Demorei um tempo para perceber que essa era a decoração e o tema da festa: Luzes de natal. Agradeci-o mais uma vez por ter feito uma festa pra mim em sua própria casa, visto que seria mais fácil e menos trabalhoso todos irmos para uma boate ou algo do tipo.
Distribui uns tapas nele quando cheguei a cozinha e vi que algumas fotos minhas – aquelas que eu nunca autorizava, mas ele sempre tirava quando eu estava distraída – espalhadas pelo local serviam de decoração. "Você tem sorte que o dinheiro não deu, senão eu ia espalhar pela casa toda", afirmou quando eu reclamei das fotos.
– Jack Jack! – Gritei quando encontrei Jack na cozinha, encostado na geladeira, com uma garrafa de cerveja em uma mão e uma ruiva na outra.
– Hey! Finalmente! – Abracei-o e Dana fez o mesmo. – Não está com frio? – Estreitou os olhos, apontando para minhas pernas. Meu vestido era consideravelmente mais curto que o de Dana, mas ele era bem soltinho e com mangas longas. Eu não estava sentindo tanto frio assim, as botas de cano alto que eu usava que ajudaram bastante.
– E ela, quem é? – Dana, ciumenta invicta, perguntou antes de qualquer tentativa de apresentação de Jack. Apontou para a ruiva, entrelaçada no braço de Jack, com um sorriso até agradável no rosto.
– Essa é Victoria, minha... – Ele deu um sorrisinho envergonhado, apresentando a garota, mas aparentemente, sem saber seu status de relacionamento.
– Sua o quê? – Dana questionou, cruzando os braços. Estiquei o braço, oferecendo um aperto de mão a ela, que não parecia assustada com a atitude de Dana. Pelo contrário, parecia estar achando engraçado a reação da garota.
– Quase um mês e ele nem mencionou meu nome. – Victoria revirou os olhos e deu uma tapinha na cabeça do rapaz. – Você deve ser a Julie, a festa é sua, não é? É uma pena nós estarmos nos conhecendo só agora, já ouvi falar muito de você!
– Não tive oportunidade! – O loiro se justificou, levantando as mãos.
– Estivemos juntos ontem! – Dana reclamou, entretanto, todos rimos. Antes que eu pudesse me apresentar formalmente, a garota entrou em minha frente, esticando o braço para cumprimenta-la. – Eu sou Dana e pelo jeito, vocês se conhecem o suficiente para você saber da gente, mas nós não sabemos nada de você.
Eu sabia que Dizzy iria dificultar a vida deles quando ela a cumprimentou com um aperto de mão e apresentou-se como Dana. Que ela era ciumenta, todos sabiam, o problema era Jack, que se tornou o "xodó" da morena. A pobre Victoria sofreria nas mãos dela. Ou talvez não.
– Victoria. – Apertou a mão de Dizzy, olhando-a de forma gentil, mas ainda assim, encarando-a. – E não se preocupe. Eu sei quem é a Julie, você quase não apareceu nas conversas.
– Uh, Jack Jack! – Gargalhei vendo a expressão de Dana transitar entre a indignação e irritação. E o desespero de Jack. – Você está com problemas! – Apontei para as duas, que agora estavam lado a lado, olhando para o loiro. Ri da expressão nervosa dele enquanto me afastava. – Eu vou procurar alguns amigos. Victoria, bom te conhecer. Dizzy, comporte-se!
– Eu sempre me comporto. – Ouvi Dizzy murmurar de longe e quase senti pena de Jack e sua nova "amiga". Quase. Eu também não gostava nada da ideia do nosso mascote andar de romance por aí e não contar nada a ninguém.
Avistei e acenei para alguns conhecidos enquanto atravessava a casa em direção ao quintal, onde – teoricamente – seria a festa. Abri um sorriso enorme quando vi minha turma da faculdade em um canto. Estavam todos juntos, conversando alegremente e até dançando entre eles. Corri e atirei-me nos ombros de Toni, mesmo ele estando de costas para mim. Fui recebida com gritos e festejos pelos mesmos, senti-me imensamente querida.
– Eu já disse que não quero contato nenhum com você hoje, Julieta. Sai! – Toni desfez-se do meu abraço desengonçado, virou com uma expressão irritada, que logo transformou-se em um biquinho tristonho.
– Não, bebê! – Resmunguei, apertando as bochechas dele com uma mão. – Já disse que não quero choro hoje... Mackenzie, o que você está fazendo aqui? Eu não convidei você, garoto!
Mac, que estava com o braço em volta do ombro da namorada, revirou os olhos com minha provocação. Eu gostava de Mac, era um cara engraçado, gentil e dedicado a minha grande amiga. Nossa maior diversão era fingirmos que sentíamos ódio um do outro, mas todos sabiam que nós nos dávamos bem de verdade.
– Vai ter que me engolir... Vaca! – Lançou um beijo debochado em minha direção.
– A única que engole você aqui é a Bela, querido! – Proferi, sarcástica.
– Literalmente. – Toni murmurou, mas não baixo o suficiente. Logo todos começaram a gritar provocações entre gargalhadas e palmas.
– Já começou a difamação! – A garota reclamou, causando-nos risos. Puxei-a dos braços do jogador e a abracei fortemente.
– Não é difamação quando se é apenas a verdade! – Hugo, outro amigo nosso, gritou, causando ainda mais risos e bochechas coradas no simpático casal.
Faltavam poucos dias para o natal. A faculdade tinha entrado em recesso, e mesmo assim, a maioria dos meus colegas de classe foram para a minha festa de despedida. Alguns que moravam em outros distritos, como Bela, até atrasaram a sua volta para casa por conta da festa. Toda vez que eu olhava para meus amigos reunidos, eu engolia o choro. Não conseguia acreditar que não subiria no palco para pegar o meu diploma no mesmo dia que eles.
Comecei bebendo apenas cerveja, mas ao meio da noite, depois que Jack me fez beber uns goles de rum Bacardi, eu já estava aceitando um pouco de tudo.
Nós dançávamos no meio do quintal ao som de algumas músicas dos anos 90, gritando, cantando e com as mãos para cima. Eu já nem sentia frio, apenas jogava meu quadril e minha cabeça de um lado para outro. Quando o ápice da festa chegou, quando todos já estavam com um alto teor de álcool em seu corpo, todos resolveram imitar a mim e meus amigos e foram para o quintal dançar. Tinha tantas pessoas no apertado quintal de Cameron que até parecia uma rave.
Eu e Sid tentávamos um passo de dança – arriscado demais para pessoas que continham álcool no sangue – quando olhei para o outro lado e dei de cara o maior plot twist da noite. Dizzy (aparentemente bêbada) dançava agarrada ao pescoço de Victoria (também aparentemente bêbada). De boca aberta, soltei o ruivo no meio do local e fui até a outra ruiva. Assim que me viu, Dizzy indagou rapidamente:
– Amiga, fala para a Vic que, na vida, é necessário se experimentar de tudo. – Ordenou, com um sorriso malicioso. – Ela nunca beijou uma garota antes.
– "Vic"? – Repeti, embasbacada.
Não faziam muitas horas que eu deixei aquelas duas na cozinha a ponto de se estrangularem, como passamos de hostilidades para um aparente flerte? Já estavam até se tratando por apelidos. Ambos se entreolharam, Dana com uma sobrancelha erguida e Victoria parecendo ponderar.
– Você acha que Jack vai se importar? – Victoria me olhou, mordendo os lábios. Victoria era uma mulher charmosa, seus cabelos ruivos eram grossos, ela era corpulenta, mas apesar disso, seu rosto era lotado de traços finos, parecia ter saído de um filme sobre anjos.
– Por que se importaria? Vocês... – Pensei por uns segundos antes de concluir a frase. É claro que Victoria e Jack tinham algo, ele não levaria alguém para um compromisso com a gente, se a pessoa não fosse especial. A conclusão do pensamento me levou a dar uma tapa no braço de Dizzy. – Para de se meter entre os casais, inferno de mulher! – A minha indignada revolta causou uma explosão de gargalhas em nós três.
– Quantas risadas! O que está rolando? – Bela surgiu por trás de mim e entrelaçou nossos braços.
– Bela! – A expressão de Dizzy iluminou-se quando viu a cabeleira roxa de Bela na rodinha. – Você já ficou com uma mulher! – Afirmou, apontando para ela.
– Eu namorei uma! – Bela riu, mas revirou os olhos. Eu não sabia muito sobre o antigo relacionamento de Bela, mas sabia que havia sido abusivo e traumatizante, por isso a demora da garota em ver Mackenzie como um potencial namorado. Dana olhou para Victoria, insinuante. – Por que? Vocês estão pensando em fazer algo divertido depois daqui? – Bela brincou, analisando nossos rostos.
– Deixem a Julieta fora dessa suruba, – A voz de Cameron surgiu ao fundo, mas logo se aproximou, enfiando-se entre Bela e eu. O rapaz já estava com os cabelos bagunçados e olhos baixos, parecendo mais ébrio. – A noite dela vai ser ocupada!
Antes que eu questionasse, o fotógrafo apontou com a cabeça para o portão de saída do quintal. Se eu não estivesse de salto, eu não conseguiria enxergá-lo por contas do aglomerado de pessoas. E seria trágico se eu não conseguisse vê-lo.
entrando pelos fundos, estava com uma mochila nas costas e usava um boné preto. Parecia cansado, mas estava ali, como prometido. Ergueu a cabeça, provavelmente procurando algum de nós, mas não demorou muito para o seu olhar encontrar o meu.
Coração descompensado. Mãos suadas. Sorriso inevitável. Saudades, muitas saudades.
– Até hoje eu não acredito que você tem um caso com ! – Ouvi o comentário descrente de Bela, mas até o som parecia abafado depois da chegada do cantor.
– Você tem?! – Victoria questionou, completamente surpresa e exaltada.
Gargalhei alto e corri em direção a ele, esbarrando em todas que estavam no meu caminho, fazendo com quem a maioria das pessoas procurassem saber para quem eu estava correndo com tanto afinco. O cantor riu quando percebeu meu entusiasmo. Quando cheguei até ele, pulei em seus braços e prendi minhas pernas em sua cintura. Fui recebida como se tivesse sido criada para aquele abraço.
Cheiro de . O tempo sem ele parecia ter sido uma vida, por mais clichê que isso soasse.
– Julieta, sua calcinha está aparecendo! – Ouvi Dana gritar, mas não me importei, apenas apertei meus braços em volta do rapaz mais ainda. Senti a mão de puxando o tecido do meu vestido, provavelmente cobrindo minha bunda. Afastei-me um pouco para olhar em seu rosto, mas sem desprender minhas pernas dele.
– Posso beijar você? – Pedi, manhosa, tocando em seu lábio inferior com o dedo indicador. – Vai ser incrível as pessoas descobrirem que eu beijo essa boca justo agora que eu estou indo embora!
gargalhou e antes que eu falasse algo mais, ele puxou-me pela nuca e me beijou. Fora apenas um selinho demorado, mas o suficiente para me acender por inteiro. E o suficiente para todos prestarem atenção em nós e começarem a gritar em comemoração. Antes que eu me afastasse dele e descesse do seu colo, senti mais braços nos sufocarem em um abraço grupal.
– Gente, é sério, nosso último dia juntos, eu vou chorar! – Dana choramingou. Nos afastamos e eu desci dos braços de . Dana correu até o garoto, abraçando-o da mesma forma que eu.
– Agora sim, estamos completos. Preparem-se para destruir esse lugar hoje! – Cam gritou e balançou a saia do meu vestido. Gargalhei, empurrando-o e logo puxando-o de volta para um abraço.
– Esse lugar é sua casa! – , como sempre sensato, alertou a Cam, que não se importou. Sem qualquer prévio aviso, rasgou a lata de cerveja com uma chave e posicionou a lata na boca de quando a bebida estourou por todo lugar.
A partir de então, eu lembro de rir bastante. Eu ria de tudo e de todos. Eu ri quando Toni teve uma crise de choro e começou a gritar comigo por eu estar indo embora. Ri mais ainda quando Jack, como sempre, começou a vomitar nos arbustos de Cam, o que iniciou uma briga entre os dois, apesar de eu achar que Jack não estava falando dos arbustos quando gritou: "Se quer tanto o arbusto por aqui, porque não casa com ele?". Sem seriedade nenhuma, mas não deixou de ser engraçado. A imagem de e Cam levando Jack nos braços até o sofá sempre iria me fazer rir, pois era uma imagem recorrente. Eu também ri muito enquanto gravava Toni dançando Grease com sua irmã, cena está que ficou no meu celular para quando ele quisesse fingir que não curtia musicais.
– É sério isso? – Questionei, apontando para o sofá, entediada. – Eles estão realmente jogando vídeo game no meio da minha festa?!
Eu estava sentada no sofá oposto, com a cabeça de Jack em minhas pernas. O loiro ainda se recuperava do breve mal-estar, mas estava quieto demais. Geralmente, ele ficaria cutucando e brincando com os garotos, até eles se irritarem e o trancarem em um quarto qualquer.
– Nós estávamos morrendo de saudades, Julieta! – Cam respondeu minha provocação dando um beijo na testa e passando um braço em volta do pescoço de um cara que eu nunca havia visto na vida.
Rolei os olhos, virando todo o conteúdo do meu copo na boca. Perdi todos de vista por uns minutos enquanto ajudava Bela, que se sentiu mal no mesmo minuto que Jack. Quando voltei ao recinto, Dana e Vic estavam em outro patamar, nem se falava, apenas gargalhavam. Cameron, e o cara que eu não sabia quem era estavam sentados no sofá, com os olhos fissurados na TV, quase quebrando o joystick tamanha a empolgação. E Jack estava do lado, observando tudo com uma expressão entediada e (um pouco) raivosa.
– Quem é esse cara? – Perguntei, torcendo os lábios.
– Sabe quando você tem um namorado muito legal e seus amigos são loucos por ele? A ponto de vocês virarem ex-namorados e seus amigos idiotas ainda convidarem ele para as festas? – Jack murmurou ao pé do meu ouvido. Parecia ficar furioso a cada palavra, estava com os braços cruzados e lábios cerrados.
– Esse é o tal do Victor? – Perguntei, surpresa. – Você não contou que eles vivem grudados? Se ele está aqui, então... – Supus e ele assentiu, apontando com a cabeça para o lado oposto da casa, onde uma mulher estava, encostada na parede, olhando em nossa direção.
Nosso pequeno Jack teve um único relacionamento. Ele e Victor namoraram por um tempo, o suficiente para que ele conhecesse a família dele e, consequentemente, sua irmã. Ela parecia legal, entretanto, apesar de ser uma defensora dos animais e se dizer feminista, mostrou ser uma pessoa extremamente preconceituosa e intolerante. Ela não acreditava em bissexualidade e Jack nunca teve problemas em assumir suas preferências afetivas.
Ao contrário do que deveria ter acontecido, Victor nunca defendeu seu namorado das declarações odiosas e debochadas da própria irmã. A mulher era um monstro e Victor – que não era assumido para a família – acabava acatando as ofensas da mulher por puro medo da exposição, o que causou o fim de seu relacionamento.
Sobre Victor, eu preferia me abster de opiniões. A história dele era composta por vários aspectos – como pressão da sociedade, homofobia e famílias disfuncionais – que me deixavam totalmente de fora do meu lugar de fala. E afinal, quem somos nós para julgar as ações de alguém injustiçado perante a sociedade?
– E por que ela está aqui? – Indaguei, confusa e irritada. Eu não queria aquela mulher no mesmo lugar que meus amigos nunca mais. – O convite não foi apenas para ele?
– Ela não perde a oportunidade de encher a porra do meu saco! – Rolou os olhos, raivoso, ainda falávamos baixinho.
– Espera um momento... Você está aqui com Victor e Victoria? – Questionei, encantada com a coincidência dos nomes de pares de Jack. Mal segurei a risada quando vi o rosto de Jack se contorcer em uma careta, atentando-se ao fato pela primeira vez. – Meu Deus, Jack. Você é um mito!
– Não! – Ele virou meu rosto com a própria mão, fazendo um "shhhi", certificando-se que ninguém havia escutado minha risada estrondosa. – Que inferno! A letra V me persegue! E o pior é que Victor costumava encrencar com a Vic quando nós namorávamos. Se ele a ver aqui... – Contou, balançando a cabeça e desviando o olhar para o sofá, observando o seu ex. – Acho que ele estava certo, afinal.
– Está vendo? Nós sempre sentimos quando alguém tem segundas intenções com nossos cônjuges! – Dei de ombros, falando em um tom mais alto, apenas para fins de implicância com . – E esse garoto ainda tenta dizer que não tinha nada com a nova iorquina! – Provoquei, chamando a atenção dos rapazes no sofá e recebendo beliscões de Jack para que eu ficasse quieta.
– Quase um ano, Julieta. Supera. – proferiu, rolando os olhos, voltando sua atenção para a TV.
– Depois nós que somos malucos... – Cruzei os braços, injustiçada, mas me arrependi do comentário quando notei que Victor analisou meu comentário por mais tempo que o normal. Nos entreolhamos por uns segundos antes de ele sorrir de leve e lançar uma piscadela a mim.
Ótimo, ajudei o cara contra o meu próprio amigo.
Seu sorriso se desfez quando Cameron e , pularam no sofá, abraçando-se em comemoração à partida finalizada e provável vitória por conta da distração que eu causei no rapaz. Antes que eu me inclinasse para comentar com Jack sobre minha bola fora, vi Dizzy e Victoria chegando juntas na sala. Nem notei que carregavam a mesma expressão diabólica. – Estão vindo para cá, pensa rápido!
– Ei! – Levantou rapidamente, indo até elas, abraçando-as de uma só vez, mas acho que seu plano de as afastar da sala deu terrivelmente errado quando Vic simplesmente puxou o rosto de Dana, beijando-a bem visivelmente. Arregalei os olhos com sua atitude.
O número de pessoas chocadas no recinto aumentou de 0% para 80%. Jack nem piscava, parecia não acreditar no que estava vendo e todos nós estávamos da mesma forma. Logo, todos estavam rindo e comemorando o beijo cinematográfico dos dois. Victor também ria e gritava palavras de incentivo, até notar que conhecia uma das duas moças que estavam se beijando e logo suas expressões mudaram.
– Eu não sabia que vocês conheciam a Victoria. – Victor comentou, parecendo incomodado.
– Nós... Anh... – Cameron tentou formular algo.
Como explicar para ele que suas suspeitas a respeito de Jack e Victoria estavam certas?
– Uau! – Vic exclamou ao soltar o rosto de Dana e finalizar o beijo. – Obrigada por isso! Acredita que tem gente que não consegue entender que qualquer forma de amor é amor? – Declamou em alto e bom som, extrapolando no nível de sarcasmo na voz. A expressão dela era de escárnio e nojo, e eu jurei que se ela continuasse ali por mais tempo, eu iria até lá e a tiraria do lugar com minhas próprias mãos. Puta merda, drama de primeira bem em nossa frente. – Sem preconceitos, sabe? – E falou isso virando o corpo e olhando diretamente no rosto da garota, sem nem piscar.
Foi assim que eu descobri o porquê de Dana e Victoria se darem tão bem e tão rápido. Elas carregavam o mesmo nível de veneno e escárnio dentro de si.
Não consegui me controlar e, novamente, eu ri. Soltei uma gargalhada tão alta ao ver a cara de tacho da ex-cunhada escrota de Jack, que precisou levantar e foi cobrir minha boca com a mão, pois parecia muito que eu estava desdenhando. E eu estava mesmo, os homofóbicos que se fodam!
– Obrigado por emprestar sua garota, Jack! – Dana enunciou, soprando um beijo para o músico e voltou para o quintal.
Simplesmente fez a cena e saiu do recinto. Maravilhosa, sem mais!
Victor pareceu reparar bem na frase de Dana, refletindo por uns poucos segundos antes de sorrir de modo sarcástico. – É claro... – Levantou do sofá e saiu, indo em direção a porta de entrada.
– Victor! Você está aqui!? – Victoria questionou, completamente surpresa ao ver o rapaz, seus olhos já mostravam arrependimento.
– E você também, não é? Como sempre! – Bufou, rolando os olhos.
Não consegui ver o desfecho da história, pois eu ria tanto que, imediatamente, senti vontade de ir ao banheiro. Fui correndo em direção ao cômodo, agradecendo novamente por Dizzy ter me feito colocar um vestido, assim eu não tive muitos obstáculos para fazer xixi. Eu tenho vergonha de admitir, mas eu soube que estava mesmo bêbada quando ao finalizar minhas necessidades fisiológicas, ao invés de sair do banheiro, abaixei a tampa do vaso e acabei cochilando sentada ali mesmo.
Acordei sobressaltada com as batidas fortes na porta. Rapidamente levantei-me de supetão e fui me desequilibrando, toda estabanada.
– Moça, você já está aí tem um tempo. Eu preciso mijar! – Alguma voz masculina gritou do lado de fora e eu rolei os olhos, indo abrir a porta. O rosto do homem se iluminou quando ele pareceu reconhecer meu rosto. – Ei, você é a mulher das fotos na cozinha!
– A festa é para mim, cara! – Resmunguei. Ele estava de mãos dadas com uma garota. "Preciso mijar". Ah, tá. Eu bem sei o que ele ia fazer dentro daquele banheiro. – Divirtam-se. – Dei dois tapinhas em seu ombro e parti.
Quando voltei, a festa parecia ter entrando a um patamar que eu me recusava a permanecer. Apenas algumas pessoas estranhas andavam pelo quintal e outras dormiam dentro da casa. Jack e todas as outras pessoas pareciam ter desaparecido em um passe de mágica. Até cheguei a procurá-los, mas o único que achei foi Toni, dormindo no escritório de Cam.
O único em minha vista era , que infernizava a vida de um pobre coitado na cozinha, falando 1000 palavras por minuto, muito empenhado em contar uma história nem um pouco interessante ao cara ao seu lado, que, sinceramente, parecia já estar dormindo a uns bons minutos.
Resolvi salvar a vida do homem desconhecido e fui até , puxando-o pela mão e saindo da casa de Cam. Ri por um bom tempo quando o cantor tentou me convencer que o homem que ele falava estava acordado e que foi rude ter saído no meio da conversa.
era gentil e pensava no próximo até em leve estado de embriaguez.
– Por que estamos só nós dois nesse carro? Cadê todo mundo? Cadê a Dizzy? O Jack ficou no Cam? Para onde estamos indo? – desatou a falar e me tirou dos meus pensamentos. Parecia que todo o álcool que estava em mim tinha ido embora após o meu soninho e eu já estava sentindo a ressaca chegando.
– Estamos indo para a sua casa, eu pedi um Uber. Tudo bem? – Situei , que descansava a cabeça na minha coxa.
– Isso é bom, eu amo que só posso ficar bêbado assim com vocês. Eu só consigo com vocês, na verdade. Por que estamos em um Uber? Eu sou a favor dos táxis, você sabe...
Revirei os olhos. Antes que falasse mais alguma merda que faria o motorista expulsar-nos do carro, inclinei-me e encostei meus lábios nos dele pela segunda vez na noite. Beijei-o do jeito que eu queria desde a hora que eu o vi. Ele segurou minha cabeça, não deixando-me afastar para respirar. Eu estava agradecida por ele estar deitado no banco e nós não estarmos tendo muito contato abaixo do pescoço, mesmo que a mão dele escorregando pela minha perna algumas vezes tenha me feito tremer. Nos beijávamos com voracidade, matando toda a saudade que se fazia presente. Eu já sentia meus lábios inchados e eu sabia que os dele não estavam muito diferentes, talvez até mais que o meu.
O motorista avisou que já estávamos em nosso destino. Paguei e pedi desculpas pelo inconveniente enquanto enrolava-se todo para sair do carro. E ainda tinha esquecido a própria mochila. Saí do carro com a bolsa em meus ombros e fui até ele, que estava encostado no poste, encarando-me e esperando por mim.
– O que foi? Por que você tá me olhando assim? – Aproximei-me, puxei o boné preto de sua cabeça e coloquei em mim.
Eu amava quando ele me olhava daquela forma. A cabeça meio baixa, um pouco debochado, mas sempre muito saudoso. Como se estivesse me ironizando, mas ainda estenderia a camisa sob uma poça d'água para que eu passasse.
– Devia ser proibido. – Ele virou a aba do boné para trás e me puxou pelo quadril, encaixando nossas pernas. – Você. Pessoas como você deveriam ser proibidas.
Tratei de puxá-lo pelas mãos em direção a sua casa antes que ele me beijasse. Eu já sabia onde nós acabaríamos quando começava a falar assim. A viela de pedras que levava até a casa dele sempre me deixava nostálgica.
– Pessoas como eu? – Indaguei.
– É, você é difícil demais de entender. – Procurou as chaves na própria jaqueta, embromando na procura.
– Nem tanto assim. É só prestar atenção... – Encostei-me no vão enquanto destrancava a casa.
– Eu acho que presto bastante atenção, Julieta. – Proferiu bem sério, abrindo a porta e me dando passagem. – Mas você sabe ser bem problemática.
Eu sempre soube que não era a pessoa mais fácil de se lidar, mas eu sentia muita diferença quando Dana e falavam isso. Quando ela falava sobre a dificuldade de lidar comigo, parecia uma crítica, parecia que ela ainda tinha esperanças que eu mudasse de alguma forma. Não é que ela não me aceitasse, mas amizades sinceras estão aí para te tirar do pedestal de vez em quando. Quando pontuava o mesmo, parecia que ele estava apenas me exaltando. Parecia que o que menos queria era me ver de outra forma. Era como se nada que eu fizesse o faria gostar menos de mim. Ao meu ver, as duas coisas são boas, pois e Dana eram meu equilíbrio.
Joguei a mochila no chão e corri até o sofá para tirar as botas, louca para sentir o interior quentinho da casa. A chuva voltara a atormentar e a temperatura havia diminuído drasticamente. Entretanto, agora que eu estava com , eu não me importava nem um pouco com os 10° que estava lá fora. O mundo poderia explodir e eu não ligava. Deitei no sofá macio de e estiquei minhas pernas em direção a ele, fazendo sinal para que ele tirasse meus sapatos.
Quando retirou o último par, prendi meus pés no seu quadril e puxei-o para mim. Apoiou os braços ao meu lado para não deitar em cima de mim completamente.
– Você quer saber qual é meu problema? V-você. – Emiti em um sussurro.
veio em minha direção como se fosse me beijar, mas desviou o caminho, virando minha cabeça para o lado e beijando meu pescoço lentamente. Arfei quando senti ele juntar nossos quadris, pressionando-se contra o meio de minhas pernas. O tecido áspero do jeans em atrito com o tecido fino da minha calcinha fez com que eu abrisse minhas pernas instantânea e urgentemente. Ele puxou um lado do meu vestido completamente para baixo e eu até ouvi a costura estalar devido a força. Quase tive problemas para completar meu raciocínio quando abocanhou meu seio direto com maestria.
– É vergonhoso o que eu me torno quando se trata de você, .
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– Você está quietinha demais. – comentou, notando minha expressão pensativa.
– Eu vou embora daqui a algumas horas. – Respondi e puxei o zíper da minha bota, fechando-a completamente.
– Eu também. – Quase me perdi na visão de , vestindo apenas uma calça jeans e prendendo o relógio em seu pulso. Eu me perguntava se algum dia eu não me perderia na beleza do meu garoto.
– Mas você vai voltar! – Refutei, indo até ele e pedindo silenciosamente para ele fechar os botões do meu vestido.
– E você não. – Concluiu, jogando todo meu cabelo para frente, fazendo carinho em meu ombro exposto pelas mangas caídas e depositou um breve beijo no local, antes de começar a realmente abotoar. Após meu vestido estar completamente fechado, senti sua mão segurando meu cabelo pela nuca, fazendo-me fechar os olhos enquanto ele virava minha cabeça em sua direção. – Eu queria mandar toda e qualquer responsabilidade para longe e ficar aqui, com você.
– Eu não pensaria duas vezes. – Assegurei, subindo minhas mãos em seus braços, acariciando-os. Antes que nos aproximássemos mais, seu celular tocou.
se afastou, indo atender a ligação desesperada de Tom, seu empresário, que havia constatado que o cantor não estava em seu quarto de hotel, como o esperado. Sim, fugira de sua turnê, do seu empresário, sendo acobertado pelos colegas de banda, apenas para ir a minha festa, para cumprir um desejo meu.
Mordi os lábios, tentando controlar o sorriso quando notei alguns pontos arroxeados no seu quadril e suas costas. Quando comecei a pensar que, talvez, eu não conhecesse minha própria força, lembrei que ontem nós não nos importamos muito com os modos e rolamos no chão algumas vezes quando o sofá se tornou pequeno para nossas ações indecentes. Desci o olhar, procurando alguma alteração em meu próprio corpo, mas nada estava diferente.
– Eu não acredito que fizemos isso com você. – Quando desligou a ligação, fui até ele, abraçando-o pelas costas e descendo minhas mãos levemente pela sua cintura. Olhou-me confuso, logo, apontei as marcas mais visíveis em seu quadril, fazendo-o erguer as sobrancelhas e rir logo em seguida.
– Uau. Estava mesmo com saudades de mim, não é, linda? – Brincou, virando de frente para mim e encaixando suas mãos em minha cintura, analisando meu corpo. – Você também sofreu alguma escoriação?
– Que nada, só você que estava bêbado além da conta e caiu do sofá, eu não tive nada com isso. – Dei de ombros, sorrindo.
– Estou cansado de cair por você. – Informou, assumindo uma postura e um tom de voz mais sério.
– O que mais eu preciso fazer para você acreditar que eu também caio por você, ?
Passei meus braços em volta do seu pescoço, e mesmo de salto alto, tive que ficar na ponta dos pés para aproximar nossos rostos. Senti sua respiração ficar irregular e sorri travessa. Tínhamos transado a noite inteira, usou meu corpo da forma que bem entendeu, mas me agradava que apenas um simples beijo o deixava tão desnorteado quanto o ato em si. Eu gostava de pensar que eu tinha culpa disso.
– Lembra da última vez que estivemos aqui? – Tocou meus lábios em um rápido selinho, descendo seus beijos castos pelo meu pescoço. Assenti, é claro que eu lembrava da nossa noite de conversas sinceras e declarações honestas. – Fala de novo? Diz que é louca por mim?
– Eu sou louca por você! – Pronunciei articuladamente, deixando o sentimento explodir em minhas palavras.
afastou-se e segurando meu rosto entre suas mãos, beijou-me urgentemente. Seria difícil deixá-lo ir novamente.
Após alguns minutos de pegação moderada, lembrou que tinha um voo para pegar e, por conta do horário, me convidou para almoçar com ele no aeroporto. Acabei aceitando, pois, cada minuto com ele ainda não seria o suficiente para mim. Depois que trancamos sua casa inteira, ficamos esperando por dez minutos algum táxi aparecer, já que – como sempre – se recusava a usar a modernidade ao seu favor.
– Eu tenho um aplicativo especialmente para isso. – Resmunguei após um táxi nos ignorar novamente, apertando o casaco grosso dele contra meu corpo. Mais um para a minha coleção. – Qual seu problema com aplicativo de transportes, afinal? Você não via problema nenhum em me fazer de motorista particular quando precisava ficar indo de estúdio em estúdio.
– Não é minha preferência. – Deu de ombros. Encarei-o tediosa, não aceitando sua resposta automática. – Minha mãe trabalhou como taxista por muitos anos, eu sou a favor da causa, só isso.
– Táxis não são uma causa, amor. – Dei risada. – Mas tudo bem, eu entendo, sua mãe é maravilhosa!
– Você conhece minha mãe?! – Indagou, confuso.
Eu havia esquecido que não sabia da minha breve comunicação com a sua progenitora. Foi um dia de domingo qualquer, em que eu tentava cozinhar algo agradável e rápido enquanto ainda dormia. Eu acabei atendendo seu celular por engano, deslizando para o "aceitar" ao invés de "silenciar". Eu não podia desligar na cara da mãe dele, então, decidi atender mesmo.
Quase uma hora de ligação depois, desliguei tendo uma receita de lasanha em mão, uma benção e um convite para o jantar.
– Conversamos numa ligação uma vez. – Respondi sem muito entusiasmo.
– E falaram sobre o quê? Por que eu nunca soube disso? – Questionou. Olhei de um lado para o outro, a procura de algum táxi a vista.
– Nada demais, falamos sobre sua teimosia, ela me chamou para jantar e me passou a receita de lasanha...
– De abobrinha! – Concluímos, juntos, rindo brevemente.
– Ela passou a receita e ainda chamou você para jantar?! Por que nunca fomos a esse jantar? – Questionou e eu apenas dei de ombros. Na época, não parecia grande coisa, eu e ele ainda não éramos algo e eu sequer me apresentei como namorada ou algo assim. – Eu não acredito que você é a primeira garota que mamãe tem conhecimento!
- "Mamãe". – Debochei até perceber o tom descrente em sua voz. – Ei! Por que? Qual o problema comigo?
– Eu mereço coisa melhor. – Sarcástico, olhou-me de forma zombeteira. Abri a boca em indignação, ele gargalhou, puxando-me para mais perto e tentando fugir dos meus beliscões vingativos ao segurar meus braços.
Não continuei com a briga infantil pois notei um táxi aproximando-se e logo me pus no meio da rua e abri os braços, deixando claro para o motorista que ele me levaria ao meu destino ou ele me atropelaria. Sorri vitoriosa quando o carro parou ao nosso lado. Abri a porta, estendendo a mão para , que apenas sorriu debochado e entrou, dando as coordenadas ao motorista. Quando me inclinei para sentar ao seu lado, fiz uma careta ao sentir minhas costas doloridas, entretanto, não pude controlar o gemido sôfrego quando sentei e senti uma pontada dolorida em minhas pernas e nádegas.
– O que houve? – Perguntou, preocupado. Não respondi, apenas fingi que não ouvi. Senti seus olhos analisando-me por inteiro e soube que ele havia notado meu incômodo quando abriu um sorriso ladino e inclinou-se para falar baixinho no meu ouvido. – Eu não sou o único com escoriações, não é?
– Você anda muito engraçadinho! Geralmente, quem tira uma com a sua cara sou eu! – Murmurei, resmungando e puxando o boné preto da sua cabeça e colocando em mim.
Após um almoço cheio de carinho e implicância, chegou a hora de ir e enquanto íamos até o portão de embarque, pensei que logo mais, eu estaria fazendo o mesmo caminho. Suspirei audivelmente, ir embora não estava em meus planos e agora eu estava assustada, refletir sobre os meus próximos passos não estava sendo tão empolgante. Eu amava fazer planos e gostava de mudanças, mas quando eu as queria. Fazer por obrigação nunca fora o meu forte.
– E esse suspiro? O que foi? – Indagou, acariciando minha mão.
Encarei nossas mãos encaixadas uma na outra. Andar de mãos dadas parecia ser um ato tão íntimo e sincero quanto um beijo na testa. Andar de mãos dadas com era ainda mais recompensador.
– Nós estamos mesmo indo embora de HW? – Questionei, desacreditada.
A cidade sempre foi tudo o que eu queria e o que eu esperava. Viver lá foi como um sonho realizado. Não era cidade grande, não era metrópole, mas havia se tornado o meu lugar. Um universo perfeito e feito para mim.
– Não é um adeus. – Afirmou, parando no meio do caminho, apoiando as mãos em minha cintura, puxando-me levemente. – Logo, logo vamos estar por aqui de novo, estremecendo a cidade com nossas brigas sem sentido algum. – Brincou, beijando-me suavemente.
– ? – Afastei-nos e olhei em seus olhos, procurando e esperando a resposta certa para a minha pergunta. – E a gente? O que vai ser de nós?
– Vamos achar nosso caminho de volta. Como eu disse, isso não é um adeus, não é o nosso fim, Julieta Young. – Assegurou, colocando algumas mechas de cabelo atrás da minha orelha.
Achei a resposta em seus lindos e sinceros olhos caramelados, que não deixavam dúvidas de que era o cara certo para mim. O encarei por alguns segundos, abrindo um sorriso radiante, aproximei nossos rostos e o beijei, segurando em seu rosto para manter o contato mais pessoal e intimo possível. Fui diminuindo com beijos leves em seus lábios, afastando-me quando ele tentava recomeçar.
– Uau, e você não gosta de demonstração pública de afeto. – Brincou, ironizando minha falta de jeito para gestos românticos.
– Idiota! Preciso te pedir uma coisa. – Anunciei. Encarou-me, atento, esperando minha fala. – Toma os seus remédios direitinho? – Pedi e gargalhei quando o rapaz revirou os olhos, mas também sorria. – Sua voz é seu instrumento de trabalho, não custa nada! O Tom me manda mensagem o dia inteiro e ele vai continuar a me avisar, caso você não esteja se cuidando...
– Ah, é? E você vai fazer o quê? Pegar um avião para enfiar algumas pílulas na minha boca? – Debochou. Pegou a carteira de dentro do bolso, tirando algumas notas de dinheiro e me entregou. Fiquei em dúvida por alguns segundos, mas lembrei que eu havia ido para a festa sem nada, apenas com meu celular.
– Não, vou tirar de você algo que você gosta. – Ergui uma sobrancelha, desafiadora.
– Vamos estar separados. – Semicerrou os olhos, como se não acreditasse em mim.
– Você mesmo disse que ainda vamos nos encontrar. Não duvide de mim, . Quando esse dia chegar, vamos estar louco de saudades um do outro e se houver uma reclamação do Tom, você não vai ver nem a cor da minha calcinha. – Ameacei-o. O cantor riu, tentando puxar o seu boné da minha cabeça, mas eu o segurei.
– Eu cuido bem daqui... – Apontou para a própria garganta. – Se você cuidar bem daqui. – Apontou para a minha cabeça, tocando minha testa com o dedo indicador. Abri a boca para falar, mas fui interrompida. – Você vai estar sozinha lá, Julieta. E nós dois sabemos muito bem que você gosta de fingir que nada está errado.
– Eu sei me cuidar muito bem! – Resmunguei, assegurando e afastando seu dedo de mim.
– Argh, essa atitude... – Rosnou, usando o tom de voz irritado que eu já conhecia. Geralmente, só era direcionado a mim. – Me avisa quando chegar? Em Springfield.
– Você também. – Pedi, arrumando as alças da sua mochila, verificando se estava tudo certo, tal qual uma mãe zelosa.
– E você, rainha dos problemas, não se meta em confusão, ok? Vou sentir sua falta. – Inclinou e murmurou no meu ouvido, me fazendo estremecer. – Desesperadamente.
E assim como chegou, se foi. Celeremente. Andando apressado, pois o seu portão já estava quase fechando. Mordi os lábios, vendo-o cada vez mais longe, pedindo internamente que ele não olhasse para trás ou eu desabaria. Sentia meu peito apertado, não sabia que eu seria uma dessas pessoas que é capaz de sentir saudades de outra, mesmo que a pessoa ainda estivesse em seu campo de visão. Como sempre, indo contra todas as minhas vontades, sempre fazendo o contrário do que eu queria, olhou para trás. Sorriu e acenou.
E como sempre, ele acabou fazendo o que eu queria sem que eu nem soubesse disso.
Andei para a saída do aeroporto, abraçando meu corpo e apertando o casaco contra mim mesma. Puxei meu celular do bolso, pronta para abrir o aplicativo de transporte, porém, sorri quando um táxi parou em minha frente sem que eu nem pedisse. Parecia até que tinha planejado.
Quando cheguei em casa, todas as cortinas da sala estavam abertas e a claridade do local (mesmo nublado lá fora, nossas janelas sempre deixavam mais claro do que realmente estava) fez minha cabeça quase explodir. Retirei o boné preto da minha cabeça e corri para fechar as cortinas, tropeçando em meus próprios saltos. Meu corpo inteiro estava dolorido, eu sentia a ressaca emergindo como se fosse um iceberg.
Estar com me deixava em um estado de torpor tão grande que até a ressaca custava a aparecer.
Olhei em volta, prestando atenção em cada detalhe. Haviam algumas caixas e algumas malas pelo local e isso acabou provocando um sentimento misto em mim. Seria muito triste se Dana também estivesse indo embora, pois a sala estaria completamente vazia.
Nossos quadros não estariam lá, nossas cortinas, nossas fotos. Tudo estaria dentro de caixas, tudo impessoal. Mas era ainda mais dolorido, ver apenas minhas caixas, minhas fotos, minhas coisas fora do lugar. Era como se fosse um lembrete de que eu estava indo, mas a vida por ali continuaria.
O sentimento ruim de despedida voltava intensamente. Suspirei, apoiando as mãos na cintura e fazendo uma careta logo em seguida. Meu corpo estava dolorido a ponto de meu próprio toque incomodar. A noite que passei com fora extremamente prazerosa, mas acho que a saudade acabou nos forçando a ultrapassar o limite de força.
Dizzy já havia avisado por mensagem de texto que estava em casa, então fui ver se a garota estava bem e o que havia acontecido para que todos sumissem da casa de Cam na noite passada. Bati na porta do quarto dela, mas não houve resposta. Afastei-me, pronta para ir para meu quarto e hibernar até domingo de noite, quando Dana gritou um "entra".
– Oi, está tudo bem? – Andei até a cama onde a garota estava deitada e digitava freneticamente no celular. – Você sumiu ontem. Na verdade, todos sumiram.
– Foi você quem sumiu. – Refutou sem nem me olhar. – achou que você estava dando para alguém no banheiro e queria invadir, mas eu expliquei que você estava apenas dormindo.
– Quem disse que eu estava dormindo? – Cruzei os braços, sarcástica. Dana levantou a cabeça, erguendo uma sobrancelha e duvidando da minha cara de pau de ainda negar o fato. – Foi só um cochilo.
– Quase uma hora. – Voltou a olhar para o celular, mexendo os dedos incessantemente. – Perdeu toda a briga.
– Briga? Teve briga? – Indaguei, confusa e curiosa.
– Victor e Jack começaram a discutir. Aí Victoria foi se sentindo culpada e começou a chorar. E aquela filha da puta veio tirar satisfação! – Exclamou, rolando os olhos. – E eu já estava alcoolizada, você sabe como eu fico, mas os meninos me seguraram.
– Você ia bater nela?! – Questionei, gargalhando. Poxa, uma briga em que eu não estava envolvida? Deve ter sido uma cena e tanto. – E a sororidade?
– A sororidade só existiu até ela ser uma completa imbecil e homofóbica com o meu melhor amigo! – Exprimiu, severa, entretanto, ainda sem desviar o olhar do celular.
Cerrei os olhos, eu estava sem saber muito bem o que estava acontecendo. Já era estranho eu chegar e a garota estar acordada. Pelo nível em que ela estava, eu esperava que ela dormisse, no mínimo, 24 horas. Ou pelo menos 10 horas, que era o tempo que tínhamos para ir para o aeroporto no domingo.
– O que está acontecendo? Você está bem? – Notei sua expressão estranha ao ouvir meu questionamento. – Dana, o que houve? O que você fez? – Tudo bem que Dizzy tinha uns momentos estranhos durante a ressaca, mas não havia nem sinal de ressaca no rosto da morena. Ela só estava agindo como se estivesse preocupada com alguma coisa.
Minha mente imediatamente me levou a Jack e sua nova namorada.
– Me insulta você pensar que eu fiz algo. – Indignou-se, virando de costas para mim. Insisti mais uma vez, chamando-a pelo nome. – Ok, talvez eu tenha... – Sentou na cama, mordendo o lábio inferior, parecendo nervosa e ansiosa para me contar algo. – Quero dizer, não talvez, porque realmente aconteceu, mas...
– Dana!
– Eu transei com Cameron! – Proferiu, num ímpeto.
– Você o quê?! – Quase gritei indignada e logo explodi em risadas.
É claro que isso ia acabar acontecendo. Dana e Cameron eram os tipos de pessoas que iriam transar duas vezes na vida, no mínimo. Eu até gostei que Cam perdeu um pouco a cabeça e parou de tentar resistir a Dana. O rapaz sempre fora bem observador sobre a minha vida, mas parecia esquecer que eu também o observava. E não era difícil perceber a admiração mais que amigável dele por nossa querida e amável Dizzy.
Ela também acabou rindo da minha crise de risos que parecia incessante. Tirei minhas botas e com um pouco de dificuldade, sentei ao seu lado na cama.
– Parece que não fui a única que transou ontem, não é? – Brincou, sarcástica, notando meu desconforto ao sentar.
– O álcool nos anestesiou e a gente não sentiu tanta coisa, a dor veio toda hoje. Dizzy, você não vai me distrair, me conta tudo o que aconteceu agora! – Exigi, batendo minhas mãos na cama.
– Ah, Julieta... Estou com vergonha. – Cobriu o rosto com as mãos, puxando o lençol para cobrir-se inteira.
– De mim? Fala sério! – Desdenhei.
– Não de você, de tudo! – Estiquei-me para desligar o abajur, deixando o quarto escuro. Lá fora, chovia tanto que parecia noite mesmo. – Eu não sei o que aconteceu. Ele estava muito bonito e eu estava... E ele começou a jogar aquele maldito charme para cima de mim. – Falava cheia de pausas e incertezas, esfregando o rosto e balançando as pernas. Tudo isso me fazia rir, é claro. – Sabe quando ele dizia que nunca havia, realmente, tentado algo com alguma de nós e apenas por isso nós achávamos que éramos imbatíveis? Bom...
– É o Cameron. – Conclui junto com Dana, entendendo-a completamente. Cameron era o cara mais legal, gentil e bonito de Hillswood. Era apenas uma obra do acaso o meu coração já estar totalmente nas mãos de outra pessoa, senão fosse por isso, eu teria uma queda por Cam, com certeza. – E como foi?
– Ah, Julie... – Enrolou para falar, cobrindo o rosto com as mãos.
– Dana, você está com vergonha? De mim? Nós já fizemos um ménage, por favor! – Gargalhei, puxando suas mãos para longe do rosto. – Eu vivi para ver você envergonhada! Então, quer dizer que esse é o efeito de Cameron Koernig?
– O problema não é ele. – Confessou, tímida. – É que um dia desses eu estava apaixonada pelo seu namorado, e agora eu dormi com o melhor amigo dele, e roubei uns beijos de Victoria, e... Minha própria inconstância está me matando, Julieta!
– E daí? Você é uma mulher adulta, solteira, com várias facetas e vontades distintas. Não critique a si mesma usando um estigma social machista e idiota. Não querendo apontar o óbvio aqui, mas e se você fosse um homem? Eu aposto que estas questões nem estariam passando pela sua cabeça. – Discursei, afirmando que o que incomodava Dana eram os valores conservadores que a família Tomanzio implantara na garota. – Já que resolvemos isso, vamos falar sobre o fenômeno Cameron. O tamanho do...
– Vamos só dormir, ok? – Interrompeu minhas curiosidades em relação a sua noite entre risadas e tapando a minha boca com a própria mão, não querendo oferecer mais nenhum detalhe. – Ainda temos umas horinhas antes de ir.
Todo o clima leve e engraçado pareceu ter virado pó. Senti Dana posicionar o edredom sobre mim de forma mais adequada e murchei completamente. Por um minuto, eu havia esquecido que iria embora. Por um minuto, parecia apenas uma noite qualquer de inverno. Uma noite qualquer de aventuras nossas, o momento que nós deitávamos juntas e falávamos sobre os fatos da noite anterior. Por um minuto, parecia apenas minha melhor amiga e eu conversando sobre garotos no nosso quarto. A realidade logo surgiu, lembrando-me que em algumas horas, Hillswood não seria mais minha casa.
– Vou até deixar você dormir sem tomar banho. – Rimos levemente com a implicância da mulher.
– Eu já tomei banho! – Informei, chutando a perna dela.
Dana abraçou-me por trás e encaixei meu corpo encolhido em seu tronco. Eu sentia sua bochecha contra o meu ombro e agarrei seus braços. Agradeci ao universo por ter Dana Tomanzio. Nós éramos complicadas, mal resolvidas, diferentes e acabávamos nos enfrentando de alguma forma, mas ao mesmo tempo, nos completávamos. A morena de longos cabelos ondulados sempre sabia exatamente do que eu precisava e quando precisava. Parecia que nós estávamos compartilhando pensamentos, perdidas em nossas bolhas. Apesar de estar com uma ressaca acumulada de três dias, eu não sentia sono algum.
Eu sentia muito medo. Estava completamente ansiosa para voltar a minha vida anterior. Recomeçar no lugar onde eu nasci estava sendo assustador e ainda mais preocupada eu ficava quando pensava em como estaria minha relação com Dizzy daqui a um ano. Um ano inteiro separadas pela primeira vez desde que nos conhecemos seria um divisor de águas em nossa relação, eu sabia disso.
Senti uma dor quase física quando senti um líquido quente escorrer do meu ombro pelo meu braço. Me neguei a falar alguma coisa ou, ao menos, tentar ajudá-la. Tudo o que ela sentia, eu também estava sentindo. Não tinha muito o que fazer, então ficamos ali, chorando baixinho, procurando conforto no abraço apertado, no quentinho das cobertas, até o sono nos abater definitivamente.
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– Ok, suas malas, mochila, bolsa... Pegou seus documentos? – Cameron contabilizava, analisando a mala do seu carro e contando cada item nos seus dedos. Apenas assenti, afirmando. Eu estava sentada no chão da garagem, vendo Cam arrumar minhas malas e de Dizzy no porta malas do seu carro. Ele iria nos dar carona até o aeroporto. Eu só iria resolver como levar meu carro para Springfield quando eu chegasse lá. – Identidade, passaporte... O que foi?
Fiquei em silêncio por um tempo antes de responder. Desde que acordei no domingo à noite, olhei para minhas malas e para as caixas espalhadas na sala, e senti um bolo agoniante na garganta. A ansiedade estava me deixando louca e o que eu mais fazia era me concentrar para não chorar. Ver Cameron fazendo seu papel de amigo só piorava minha situação.
– Vou sentir sua falta. – Respondi, simplesmente, mesmo com a voz falha.
– Não. – Cam falou antes mesmo que eu terminasse a frase, apontando um dedo para mim. – Você não vai fazer isso comigo.
– O que? – Rimos do seu rompante e ele virou-se de costas para mim, voltando a mexer nas malas.
– Você não vai me fazer chorar a essa altura do campeonato. – Meus olhos imediatamente encheram-se de lágrimas só de imaginar Cameron chorando.
Abaixei a cabeça, respirei fundo e levantei do chão. Fui até o rapaz e o abracei por trás, enfiando meu rosto em suas costas, onde depositei um beijo leve, escondendo minhas lágrimas e afastei-me, não olhando para trás. Se eu olhasse, nós dois iríamos chorar e era o que eu menos precisava agora. Fui para o elevador, mas assim que cheguei no meu andar, Jack e Dana já estavam esperando.
– Só estava pegando minha bolsa, trancando a casa. Deixou a chave com a vizinha? – Dana perguntou a mim quando eles entraram no elevador. Confirmei, assentindo. A garota observou meu rosto e perguntou: – Você estava chorando?
– Não acho que eu tenha parado de chorar desde que acordei. – Confessei, rindo e passei a mão pelo rosto. Jack, que carregava uma caixa que deixaríamos nos Correios, passou os braços pelo meu ombro e depositou um beijo em minha testa.
A ida ao aeroporto foi quase silenciosa, apenas fomos escutando umas músicas e eu agarrada no peito de Jack, quase me afundando no meio dos nossos casacos. Estava muito frio e a chuva não tinha dado trégua. Observei Cam e Dana sentados na frente e perguntei-me como ficaria a relação deles agora que tinham pulado umas regras de convivência. Espero que nada fique estranho, Dizzy precisaria de Cam quando voltasse para Hillswood sozinha.
Passamos vinte minutos apenas esperando, sem realmente conversar, cada um perdido em seus próprios pensamentos, até que o nosso portão de embarque foi aberto, ocasionando uma pequena fila, mostrando que estava na nossa hora. Nosso voo fora anunciado no autofalante e eu não consegui conter a emoção. Agarrei a camisa de Jack, que estava sentado ao meu lado e recebi um abraço cheio de comoção e sentimento.
– Não vai colocar Jeins de cabeça para baixo, hein? – Brincou, mas sua voz tremia e eu sabia que ele estava segurando o choro de todas as formas possíveis.
– Só se você prometer ser legal com Victoria. Não seja um babaca, fica com ela! – Rimos juntos e ele passou a mão pelo meu rosto, limpando minhas lágrimas grossas. – Vou sentir muito a sua falta, muito!
Abracei-o de novo, soluçando. Eu odiava despedidas, eu já estava exausta mentalmente e ainda nem tinha chego em Cam. Afastei-me de Jack, que foi abraçar Dana.
– Amo você, Cameron. – Abracei-o pelo pescoço.
– Amo você, pequena Jay. – Ele se afastou, colocando meus cabelos para trás da orelha. – Não se meta em confusões, ok?
– Por que vocês me falam isso? Eu não sou tão ruim assim. – Bati o pé no chão, contrariada e eles riram.
– Apenas tente não estourar o carro em um poste. – Jack brincou, rindo da minha feição emburrada.
– E também não seja expulsa da faculdade. – Cam completou, fazendo-nos gargalhar.
– Nem foi expulsão. – Murmurei, resmungando e colocando minha bolsa no ombro, causando mais risadas.
– Também tente não ser presa, ok? – Jack zombou e cutuquei seu braço, fingindo estar ofendida.
Dana passou por mim, indo abraçar Cam. Observei os dois pela minha visão periférica e pude notar quando o rapaz falou algo no ouvido dela, fazendo-a rir e dar uma tapa de brincadeira nele. Eu e Jack nos entreolhamos, sorrindo enviesados. A tensão sexual entre aqueles dois era quase palpável.
– Fiquei sabendo que o movimento estudantil da cidade está precisando de novas lideranças, talvez eles estejam precisando de alguém com ideias anarquistas. – Brinquei, dando de ombros.
– Julieta, pelo amor de Deus, não me faça ir vender minha passagem de volta e ficar lá com você. – Dana me repreendeu, preocupada com meu bem-estar. Ela sabia que eu estava brincando, mas que tinha um fundo de verdade. – Já está na nossa hora, vamos? Vejo vocês após o natal. – Dana segurou minha mão e com a outra, empurrava o carrinho com minhas malas.
Demos alguns passos em direção ao portão, mas impulsivamente, soltei a mão de Dana e corri de volta até os rapazes. Meus olhos embaçados de lágrimas me impediram de ver o rosto de ambos, mas abracei os dois ao mesmo tempo.
– Não a deixem ficar sozinha por muito tempo nos primeiros dias, ok? – Implorei, minha voz estava trêmula e preenchida por soluços. Olhei para baixo ao ver que Jack chorava comigo. – Vejo vocês algum dia.
Voltei a Dana, que nos olhava de longe e também parecia segurar as lágrimas. Inconsciente, olhei para trás, vendo os dois rapazes um ao lado do outro. Não era besteira dizer que Cameron e Jack haviam mudado a minha vida. Eu os amava tanto, tanto! Eu me sentia a mulher mais sortuda do mundo por ter a oportunidade de ser amiga dos dois caras mais incríveis que eu já conheci. Acenei enfraquecida.
Achei que nunca mais pararia de chorar quando avistei Cam limpando o próprio rosto e Jack confortando-o com uma mão no ombro, olhando-o pesaroso.
Eram em momentos como aquele que eu parecia sair do meu corpo e me questionar. Como eu voltei para cá? Eu estava lá, caminhando novamente pelas ruas apertadas do Jeins, pisando firme para não correr o risco de cair por conta do chão desnivelado. A visão panorâmica do local ainda era a mesma: as casas pequenas, apertadas e compridas, coladas umas às outras, vivendo entre o caos e a paz. A população fingindo viver à margem da sociedade para praticar suas barbaridades sem ser julgado por isso. As luzes amareladas das casas transbordavam nostalgia em mim, lembrava minha infância, em que eu andava pela rua, brincando, sem medo de nada. Agora eu não era mais a mesma, andava pelo bairro me agarrando a fé de que nada de ruim aconteceria comigo.
Dois meses atrás, eu achei que deixar Dizzy no aeroporto, vê-la voltar sozinha para a nossa casa, seria a coisa mais difícil do meu ano. Achei que a parte difícil seria sair de HW. Infelizmente, eu estava errada. A parte difícil era se manter no Jeins. Um mês após o meu regresso, eu já havia voltado a viver minha realidade de antes. Eu era novamente a garota certinha no meio errado. Sentia-me deslocada, mal-acostumada com a boa vida que eu tive em Hillswood. Essa deveria ser minha dificuldade diária. Minha readaptação a cidade etc., mas é claro que eu tinha que estar metida onde não devia.
Praguejei para mim mesma enquanto eu descia a rua a caminho da delegacia municipal. Max havia sido pego fazendo pichações no Centro Histórico de Springfield. Max era um cara alto, que jogava futebol todos os dias às 16h, morava sozinho desde os doze anos, era irritado, quase não falava e muito marrento. Nos conhecíamos desde a infância, assim como todos com quem eu convivia atualmente. Vivia dizendo que não precisava da ajuda de ninguém e que sabia se cuidar sozinho, porém era o meu número que o mesmo concedia como contato de emergência em todos os DPs da cidade.
Agarrei a bolsa contra o meu corpo quando meus sentidos entraram em alerta e eu notei que já não andava sozinha na rua estreita. O ruído de um motor se aproximava mais de mim a cada segundo. Era início de noite, o céu já estava tomado de nuvens, deixando tudo ainda mais escuro e perigoso. No geral, o Jeins não era um bairro de extrema periculosidade, mas a predominância de gangues rivais no distrito sempre deixava a população mais atenta, visto que todo mundo que residia lá tinha uma história de convivência com a violência urbana.
– Se andar mais rápido, vou começar a achar que está com medo.
Eu estava pronta para correr, mas reconheci a voz grave que veio por trás de mim. Virei para trás, dando de cara com Santiago. Ele também era um amigo de infância, fazia anos que não nos falávamos e eu sempre achei que ele não ia muito com a minha cara, mas desde que retornei, eu estava tendo mais contato com ele do que eu deveria.
– Ah! É você. – Desdenhei, relaxando a tensão do meu corpo, soltando a bolsa e deixando meus braços caírem ao lado do corpo.
– Cuidado com esse desprezo, garota! – Ameaçou-me, tirando o capacete vermelho e desligando a moto. Bufei com sua ameaça malfeita, cruzando os braços. – Eu conheço esse visual. E esse olhar.
– Que visual? – Perguntei, abusando do tom esnobe. Eu não tinha muita paciência para fingir que tinha medo do Santiago. Era um pouco incoerente quando eu lembrava que o cara costumava ter medo de gatos quando criança. E amava desenhar borboletas.
Nada contra quem tem medo de gatos e gosta de borboletas, é claro.
– Essa bolsa, esse olhar preocupado e raivoso. Você está indo na polícia pegar algum dos seus protegidos, não é? – Zombou, cutucando minha bolsa com o dedo.
– Dá licença, Gabriel. Estou atrasada. – Continuei andando e ele continuou parado no mesmo lugar.
– Vai ser caminho perdido. – Parei ao ouvir sua sentença e olhei para trás. Expirei profundamente, pois já sabia onde isso iria acabar me levando. Ele sorria, desdenhoso e sarcástico, como se já soubesse meus próximos passos. – Você precisa parar de me chamar assim.
– É seu nome. – Mudei de direção, seguindo o caminho contrário e indo em direção a ele. Esticou o capacete em minha direção, com a expressão entediada. – Não era o nome do seu pai?
– Você fala demais, Julieta! – Apontou o dedo indicador em direção ao meu rosto, empurrando meu queixo para o outro lado com um pouco mais de força. Estremeci, mas eu preferi apenas soltar uma gargalhada sarcástica, colocar o capacete e subir na motocicleta.
Toda vez que Santiago me tratava de forma um pouco mais brutal, toda vez que a outra personalidade dele aparecia para mim, eu ficava receosa. Me fazia refletir e considerar se valia a pena manter essa amizade. Eu sabia que muita coisa não estava certa, porém, eu não estava dando a mínima.
Seguimos o caminho de volta em silêncio, fiquei apreensiva quando dobramos na minha rua. Analisei bastante quem estava passando pelo local, imaginando se alguma daquelas pessoas iria me reconhecer e contar para os meus pais que eu estava passando direto da minha casa e indo em direção ao Forte – que era como Santiago e seus colegas chamavam o local –, uma casa comprida que ficava distante do resto das casas coladas umas às outras.
– Você está de sacanagem?! – Bradei, irritada ao ver Max sentado no sofá, jogando videogame tranquilamente. Nem um pouco preocupado com a minha preocupação. Não hesitei em soltar umas tapas em sua cabeça quando me aproximei. – Você tem sorte que eu não cheguei à delegacia!
– De nada. – Santiago sorriu sarcástico, lançando-me uma piscadela. Max não falou nada, apenas deu de ombros e voltou a jogar, me fazendo bufar de raiva.
– E você? Por que também não me avisou que ele já estava liberado? – Questionei Sun, que estava sentado do lado do outro imbecil, enfurecida com suas expressões calmas.
– Eu não tenho como, não tenho celular! – Defendeu-se, assustado com meu tom de voz enraivecido.
– Uma televisão que cobre a parede inteira, um videogame de última geração e você não tem coragem de dar um mísero celular para esse garoto? – Virei-me para Santiago, protestando aos berros.
– Quer cuidar da contabilidade para mim? – Debochou, jogando-se esparramado em um poltrona larga. Revirei os olhos, indo em direção ao mini frigobar e pegando duas latinhas de cerveja. Fiz questão de passar na frente da TV, provocando reclamações. Joguei uma das latas em direção de Santiago quando passei por ele, indo sentar em outra poltrona. – Você é muito abusada, cara! Relaxa aí...
Tomei o conteúdo da latinha quase todo em uma só golada, tamanha era minha sede e irritação. Acomodei-me no sofá, tirando meus tênis e procurando uma posição confortável. Não era a primeira vez que eu ficava no Forte, lugar considerado intocável e o mais perigoso por ser a residência de um dos líderes de uma das gangues de Springfield.
Eu disse que estava metida onde não devia.
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"O que sua mamãe faria se te visse agora?". As palavras de Gabriel Santiago não saiam da minha mente.
Entre um convite para ir ao bar e encontros aleatórios pela rua, acabei tornando-me íntima demais das pessoas erradas. Íntima demais ao ponto de continuar no Forte depois de Sun e Max irem embora. Íntima ao ponto de ver Santiago com a cabeça entre as minhas pernas. Fora em um desses momentos que o mesmo questionou o que minha mãe faria se soubesse que eu estava no quarto com o maior arruaceiro da cidade. Nós não conversávamos muito, o ato era puramente carnal, físico. Nos beijamos pela primeira vez em uma festa na vizinhança e as coisas foram ficando mais quentes, porém, nunca tínhamos ido até os "finalmentes". Eu nunca conseguia, nunca queria, pois um certo cara de Hillswood continuava impregnado em minha carne.
Fazia pouco tempo que eu estava em casa, mas minha vida já estava ficando de cabeça para baixo. Outra vez.
Pela janela do meu quarto, – que ficava na parte de trás da casa – eu tinha a visão "privilegiada" de um pequeno lago sujo e um antigo prédio destruído na beira, onde havia muito lixo e fora ocupado por moradores de rua. Ia seguir meu caminho até a estante de livros no lado contrário, mas voltei para a janela quando a visão de Santiago sentado em uma das construções quebradas chamou minha atenção. Como se soubesse que eu estava lá, também olhou em direção em minha direção. O cara que estava ao lado dele também, apontou para mim e pareceu fazer algum comentário. Santiago o empurrou e agora parecia brigar com o mesmo. Eu sabia que ele estava me defendendo de algum comentário maldoso feito pelo rapaz estranho ao lado dele. De alguma forma, eu me sentia segura com Santiago, sabia que ele nunca me faria mal (fisicamente), nem deixaria que ninguém me fizesse mal.
– Julie? Ouviu alguma coisa que eu disse? – Dana berrou, fazendo-me voltar a olhar para a tela do notebook.
– Desculpa, me distraí. – Balancei a cabeça, obrigando-me a parar de pensar em Santiago e suas provocações, dispersando meus devaneios.
– já vai aparecer, corre para a TV! – Exclamou, animada. Fechei as persianas do meu quarto, obrigando-me a não olhar em direção ao lago novamente, levei o aparelho comigo e fui para a sala da minha casa, único lugar onde tinha uma televisão.
Patrick estava sentado no sofá, mas não olhava para a TV, estava concentrado demais mexendo no celular. Quando voltei, Pat foi o primeiro a vir correndo em minha direção quando cheguei no aeroporto de Springfield, demorei uns segundos para me dar conta que aquele garoto alto e atlético era meu irmãozinho de 18 anos.
– Vou usar a TV. – Puxei o controle remoto para meu lado e ele puxou de volta.
– Estou assistindo! – Reclamou, subitamente interessado na tela que não era do seu celular.
– Não está, não! – Antes que ele começasse uma discussão, joguei meu notebook em seu colo. – Fala com a Dana.
– Oi, Dizzy. Tchau, Dizzy. – Cumprimentou, entediado, e logo me devolveu o aparelho. Revirei os olhos com o seu mal jeito.
– Patrick na adolescência está me dando nos nervos. – Queixei-me, fazendo Dana rir. Posicionei o aparelho na pequena mesa de centro e sentei no sofá, encolhendo as pernas.
– Você perdeu a pior época. – Pat admitiu e deu de ombros, esquecendo sua implicância e voltando a mexer no aparelho celular.
Procurei pelo canal onde o meu novo cantor preferido iria aparecer. , maior promessa musical do ano, seria convidado de um famoso talk show nacional, ocasionando explosões de orgulho em seus amigos bobinhos. Fazia uns dias que não nos falávamos, mas fiz questão de mandar uma mensagem de boa sorte para o meu rapaz.
– Os meninos chegaram! – Dizzy avisou e eu logo ouvi o barulho familiar de Cam e Jack andando pela casa.
O coração apertou de saudades quando eles sentaram no sofá, em seus lugares costumeiros. Eu sempre achava engraçado e maravilhoso quando eles cumprimentavam e começavam a conversar comigo como se eu estivesse sentada no sofá com eles. Os primeiros dias longe de HW foram os mais fáceis. Eu sentia que estava apenas cumprindo o recesso, mas os dias iam passando e logo a ficha que eu não iria voltar estava caindo. Estava começando a ficar difícil de lidar com a saudade.
– O que vai passar aí? – Pat questionou, apontando para a TV com a cabeça.
– vai participar, acredita nisso? Não é legal? – Exclamei, totalmente empolgada e Pat rolou os olhos, entediado.
Ele sabia sobre e toda a minha história com o mesmo. Quando percebi que Pat já não era mais um garotinho irritado que brincava no chão do meu quarto enquanto eu estudava, passei a dividir com ele minhas histórias e a tratá-lo como igual, como adulto. Passou a ser meu melhor amigo, conversávamos sobre tudo e ele sempre me atualizava sobre suas descobertas acerca da própria sexualidade. Patrick acabou mostrando-se um cara mente aberta e muito confortável com suas próprias escolhas. Um orgulho de irmão, eu diria.
– Pai, o namorado da Julieta vai aparecer na TV!
Porém, ele ainda sabia exercer muito bem o seu papel de irmão mais novo.
– Haniel? Por que? – Dana gargalhou alto com a pergunta talvez não tão inocente do meu pai. O homem de meia idade apareceu na sala, trazendo um caderninho em mãos. Meu pai era contador e sempre estava anotando alguns números em um de seus variáveis cadernos. Ele era um homem tranquilo, que sabia fazer comentários ácidos como ninguém.
Eu achava adorável a forma como ele e minha mãe estavam aderindo, juntos, seus cabelos brancos.
– Não é meu namorado, é meu amigo, ! Eu comentei sobre ele. – Expliquei, aconchegando-me melhor no sofá apertado, jogando minhas pernas por cima de Pat e dando espaço para nosso pai sentar ao nosso lado no sofá pequeno.
– Ah, claro! O músico. – Assentiu, guardando o pequeno caderno no bolso e sentando-se. – Dizzy, meninos. – Acenou para a tela, cumprimentando-os.
– Oi, sr. Young! – Os três pronunciaram juntos, como ensaiavam e sempre cumprimentavam meus pais.
Sorri quando o programa iniciou, apresentando como o convidado do dia. Ele estava sentado no sofá do apresentador tranquilamente, parecia até que fazia aquilo todo dia. era natural demais e nasceu para trabalhar com entretenimento.
– Olha como ele está bonito! – Comentei, sorrindo encantada, apoiando meu queixo na mão. Pat fez um barulho de vômito e Dana gargalhou, mas concordou comigo.
Aumentei o volume da TV, ignorando a tudo e todos. Suprimi um sorriso durante toda a entrevista. estava bonito demais, só de vê-lo em alta definição parecia que eu conseguia sentir seu perfume. A jaqueta de couro preta era minha peça de roupa preferida dos seus shows, ele ficava um pedaço de mal caminho quando colocava aquela peça.
falava sobre os próximos projetos, a gravação de um disco (que eu não sabia da existência!) e brincava de um jeito leve, deixando até mesmo o apresentador encantado com seu jeito suave e leve de conduzir a entrevista.
– Músicos... Não são confiáveis. – Meu pai cruzou os braços, intercalando seu olhar desconfiado entre mim e a televisão.
– é confiável. – Sorri quando se posicionou no palco para tocar. Senti-o analisando minha expressão apaixonada por alguns segundos.
– Você já beijou esse garoto, Julieta? – O homem questionou seriamente, olhando-me severo. Todos irromperam em risadas, me deixando em maus lençóis.
– Pai! – Reclamei. Escondi meu rosto entre as mãos, envergonhada. Meu pai nunca fora rígido, mas ainda era estranho falar sobre minha vida íntima de forma aberta com ele.
– Muitas vezes, sr. Young! – Jack respondeu gritando do outro lado da tela e todos riram novamente.
– Ótimo! – Resmungou, sarcástico, puxando o celular do bolso. – Por que você não se envolveu com o menino Cameron? Ele é mais aprazível para você, filha.
Pois é, lembram quando eu sofri o acidente e minha mãe usou deste momento para dar em cima de Cameron por via celular? Acontece que meu pai também havia adquirido uma grande simpatia pelo nosso britânico, e agora vivia lançando indiretas para mim, usando-o. E quando perguntado sobre, Cam apenas dá de ombros e diz: "Pais me amam!".
– Obrigado, Sr. Young, sempre pontual e certeiro em seus comentários! – Cameron agradeceu, fazendo uma reverência.
– Estou no Google procurando a ficha criminal desse rapaz agora mesmo. – Eu via pelas lentes dos óculos dele que realmente estava.
– Pai... – Reclamei, rolando os olhos.
– com ficha criminal, é até engraçado. – Dana debochou, rindo. – A sua filha deve ser mais fichada que ele. – Provocou, causando risos em todos. O pior é que era a mais pura verdade.
– Você está rindo do quê? – Zombei, sarcástica, olhando para meu pai rindo. – Eu tenho uma ocorrência, sim, do protesto estudantil em que eu apanhei e ainda fui culpada por isso, mas e você, "Sr. Vamos Tomar Os Meios de Produção"?! Quantas? – Provoquei, vendo o sorriso do meu pai se desfazer.
– É por isso que a Celia não queria ter filhos! – Provocou, mencionando a antiga vontade de mamãe.
– E teve logo três, se ferrou! – Pat zombou, rindo.
A história dos meus pais era uma das histórias de amor que eu mais gostava. Conheceram-se em uma assembleia estudantil na universidade, que acabou em protesto contra a reitoria da época. Conheceram-se por meio de amigos em comum, confeccionando cartazes de reivindicações. Fala sério, tem coisa mais incrível que isso?
Minha mãe conta que ela – estudante das ciências sociais e militante do movimento estudantil – se perguntava o que um cara de economia estava fazendo no meio de uma revolta universitária. Ficaram amigos e sempre gostavam de ficar juntos. Porém, um não assumia seus sentimentos para o outro, sempre haviam impedimentos. Um desses obstáculos fora um primo do meu pai, que minha mãe passou a namorar. Foi na mesma época em que ele teve seu primeiro filho. Perderam o contato até alguns anos se passarem e eles começaram a trabalhar na mesma empresa de telemarketing. Então, finalmente, deu certo.
Isso tudo só me deixava mais ciente do fato de que quando é para ser e acontecer, até os ventos são a favor.
– Sem arrependimentos. Se for para ter algo na ficha, que seja pela luta de seus direitos! – Meu pai passou o braço pelo meu ombro e deu um beijo estalado em minha testa. Não consegui conter o sorriso e o abracei de volta.
Era importante e incrível o quanto meus pais me apoiavam, eu me sentia extremamente sortuda em ter pais que sabiam da importância de se lutar pelo o que acredita.
– Eles realmente são uma família de comercial de margarina... – Jack comentou, descrente ao ver a cena. Rimos, orgulhosos de nossa boa fama.
Assistimos o resto do programa sem interrupções, apenas comentando e rindo dos comentários engraçadinhos de Jack e Cameron. Quando chegou ao fim, enviou vários palavrões no nosso grupo de mensagens e após isso, mandou: "Gente, estou tremendo até agora, me digam se deu pra ver na TV que eu estava mijando nas calças!". Mandamos várias fotos, textos e gifs em comemoração, comentando o quanto ele estava incrível.
E só para não perder o costume de me deixar com o coração aquecido, logo uma mensagem dele aparecer no meu individual, dizendo: "Usei a jaqueta que você gosta! (:"
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– Estou falando sério, Dana! Eu não sei quanto tempo vou ficar fora e você não tem mais como arcar com as despesas desse apartamento sozinha. – Já fazia quase uma hora, desde que o talk show chegou ao fim, que eu estava tentando convencer minha melhor amiga a conseguir uma nova colega de casa, mas ela parecia não estar convencida. – Você lembra que não tem tanto dinheiro assim, não é?
Balcio, pai de Dana, diminuiu consideravelmente a mesada da garota durante o Natal, na intenção de fazê-la voltar para casa, mas isso só a irritou profundamente. Ainda bem que ela tinha economias guardadas e um bom salário atualmente, senão ela teria que mudar de apartamento, apesar do nosso não gerir um gasto muito alto.
– Eu sei, Julie, mas eu não quero outra roommate! – A birra da garota me fez rir.
– Não é querer, você precisa! – Assegurei, firme. Terminei de arrumar minha cama e passei a arrumar a cama de Clarissa ao lado da minha.
Até hoje não entendi muito bem o motivo de Clarissa voltar a morar com nossos pais. Ela quase provocou a terceira guerra mundial ao sair de casa com apenas 16 anos, não imaginei que um dia ela voltaria. Mas eu também nunca pensei que, com 25 anos, eu estaria novamente dividindo quarto com a minha irmã de 31 anos.
– E eu vou ver minha conta bancária, dependendo do saldo, eu anuncio que estou procurando uma companheira para dividir o aluguel. Argh, parece traição com você! – Dana continuava a falar e ao que parecia, havia cedido. Antes que eu confessasse que não estava prestando atenção no que ela dizia, alguém bateu na porta do meu quarto.
– Não é traição, é sobrevivência. – Desviei o olhar da tela e fui até a porta. Era Clarissa, carregava uma bolsa preta gigante e parecia ter saído do trabalho naquele instante.
– Posso conversar com você? – Pediu timidamente, sorrindo de boca fechada. Franzi a testa, meu senso de irmã gritava em minha cabeça. Problemas à vista. Confirmei e me despedi de Dana, avisando que ligava no outro dia.
Agora que eu estudava de manhã, minhas tardes e noites eram quase que inteiramente livres. E por falar em estudo, a minha nova turma da faculdade não era de todo ruim, mas era o último semestre e todos tinham uma intimidade que eu jamais conseguiria ter. Eram todos bem inclusivos, eu até já participava de algumas festas e reuniões.
Entretanto, ainda me sentia uma estranha no ninho.
– O que houve? – Questionei, sentando na cama, observando o jeito como ela apertava as mãos uma na outra. – Desde quando você bate na porta do seu próprio quarto?
– Estou com problemas! – Proferiu com a voz trêmula. Eu não disse?
– Que tipo de problemas? – Perguntei novamente, preocupada. Ela bufou nervosamente, tirou os sapatos e sentou ao meu lado na cama. Abriu a bolsa, jogando uma sacola de plástico em meu colo.
– Esse tipo de problema. – Quando abri a sacola, quase pude sentir meu queixo encostar no chão.
Três testes de gravidez.
– Puta merda, Clari! – Exclamei totalmente surpresa enquanto abria as caixas de teste um por um, tendo a confirmação de que ela já havia feito todos. Para a minha surpresa e para o desespero dela, todos positivos.
– Eu tenho trinta e um, já estava na época, certo? – Tentou falar, mas sua frase acabou saindo como um choramingo. Abri a boca para falar várias vezes, mas nada saia tamanho choque. Ela ergueu as sobrancelhas, me forçando a ter alguma opinião sobre. – Julie!
– Eu não sei o que dizer! – Confessei, já sendo contagiada pelo seu aparente nervosismo. Mexi os palitinhos nas minhas mãos e comecei a balançar minha perna ansiosamente.
– Patrick! Vem aqui, rápido! Rápido! – Começou a gritar com urgência, batendo as pernas no colchão e me assustando com sua agitação. Ouvimos passos fortes vindo do corredor até Pat aparecer na porta do meu quarto, ofegante.
–O que houve? Você está bem? – Questionou, entrando no cômodo. Clarissa apenas deitou–se e esticou os braços em direção ao garoto.
– Eu preciso de um abraço! – Lamuriou-se, fazendo um bico.
– Eu vou te matar. – Ameaçou-a, apoiando as mãos na cintura e respirando profundamente. – Você quase me matou de susto, Clarissa! – Esbravejou.
– Você ainda não viu nada. – Mostrei os testes em minha mão. Patrick encarou os testes, depois subiu o olhar, intercalando entre mim e nossa irmã.
– De quem é? – Perguntou, embasbacado.
– De quem você acha? – Rolei os olhos, apontando para Clarissa ao meu lado.
A mulher revirava-se na cama, tal qual uma adolescente passando por uma crise, findando de bruços, com a cabeça enfiada no travesseiro e puxando os próprios cabelos loiros. Eu detestava vê-la daquela forma, especialmente por aquela situação ser uma total novidade. Clarissa nunca se desesperava com nada. Era conhecida por ser calma e confiante, era ela que sempre oferecia segurança em tempos difíceis.
– Puta merda, Clari! – Pat exclamou o mesmo que eu segundos atrás e estendeu a mão para pegar o palitinho.
Clarissa era o sonho de toda mulher independente e todo escritor de autoajuda. Aos 30, tinha uma carreira sólida em uma multinacional, era pós-graduada e, apesar de estar morando com nossos pais novamente, ela tinha seu próprio apartamento. Minha irmã nunca reclamava de seus problemas, ela nem sequer via seus problemas como problemas de fato. Eram apenas umas tarefas mais difíceis de resolver.
Exceto pela gravidez, isso sim parecia ser um problema para ela. Começando pelo fato de que eu nem sequer sabia que ela curtia homens.
– Clari, não precisa se desesperar. – Tentei reconfortá-la, passando a mão pela sua testa franzida.
– Puta merda, Clari! – Pat exclamou, ainda olhava estupefato para o objeto em mãos. O repreendi rapidamente com o olhar. A mulher já parecia desesperada o suficiente, ela não precisa de mais reações chocadas. – Eu estou confuso para caralho! Você não é gay?!
– Patrick! – Recriminei novamente, mas sinceramente, eu estava me perguntando a mesma coisa.
Aos vinte e poucos anos, eu assisti Clarissa se apaixonar e desapaixonar várias vezes pela mesma mulher. Elas viviam como gato e rato, personificando aquelas histórias de amor e ódio que vemos por todo canto. Logo após, Clarissa foi promovida, seu estilo de vida mudou e eu logo soube bem pouco da sua vida amorosa.
– Foi a minha... Primeira... Vez... – Recitou tímida e pausadamente, a voz diminuindo aos poucos.
– Você engravidou de primeira!? – Descompensei, acidentalmente.
– Julieta! – Agora foi a vez de Patrick me censurar.
– Você acha que a culpa foi minha? Acha que eu queria isso? Eu fiz algo por curiosidade e vou acabar com a porra de um bebê! – A mulher gritou, desesperada. Patrick fez um "shiu" nervoso, apreensivo com a possiblidade de nossos pais estarem nos escutando.
– Como isso foi acontecer? – Questionei, assustada.
– Eu sei lá, a camisinha estourou ou não funcionou. Eu não sei, Julieta. Acredite ou não, eu não entendo muito bem de sexo hétero! – Vociferou, inquieta e exasperada.
– Como um teste de farmácia sabe até de quantas semanas você está? – Pat questionou, encarando um deles.
– Vocês estão cheios de perguntas complicadas hoje. – Clarissa resmungou, rolando os olhos.
– Sério que diz isso aí? – Estiquei a mão, pedindo pelo objeto, curiosa com o resultado. Indicava apenas um "3+", o que eu acredito que signifique mais de três semanas.
– Eu não preciso disso, eu sei exatamente quando aconteceu. – Suspirou, revelando. Ela deu de ombros ao notar que eu a encarava com uma sobrancelha erguida, esperando que ela nos contasse pelo menos algum detalhe pequeno. – Festas de fim de ano deixam as pessoas solitárias, não me julguem.
O meu olhar e de Pat desceu de seu rosto até a barriga dela, procurando pelo menor sinal de protuberância causada por um bebê, mas com seu aparente ganho de peso – o que agora fazia todo sentido – não era possível ver tanta diferença assim.
– Parem com isso! – Exclamou, afetada, cobrindo com um travesseiro aquela parte especifica do seu corpo. Fechou os olhos, envergonhada, voltando a pressionar o próprio rosto contra o outro travesseiro.
– E ele já sabe? – Pat questionou, mudando de assunto. – O cara que... Bem, você sabe...
– Não, eu acabei de descobrir. Eu não sei o que fazer, nem sei se vou ficar! – Exclamou.
Eu sabia que Clari estava desesperada, mas eu não conseguia nem a imaginar fazendo um aborto ou algo relacionado a não ficar com o bebê. Pat mexeu nos cabelos, jogando-se ao lado da loira. Ela choramingou e abraçou o torso magro de Pat. Aproximei-me e abracei por trás.
– Você quer... Resolver isso? – Pat estranhou. Nós conhecíamos muito bem a personalidade afetiva de Clari. Ela nunca julgaria alguém por fazer isso, mas sabíamos que ela mesma não faria.
– Eu não sei! – Confessou, passando a mão pelos fios dourados.
– Quer saber? Não importa o que você vai fazer, saiba que você não vai ficar sozinha. – Afastei seus longos cabelos loiros e beijei sua bochecha. – Estamos aqui para te ajudar com qualquer coisa.
– Isso mesmo, qualquer que seja sua decisão, você não vai passar por isso sozinha. – Patrick concordou, apertando seus braços em volta da mulher.
Clarissa apenas assentiu, de olhos fechados. Foi doloroso assistir suas lágrimas grossas caírem pelo seu rosto perfeito. Gravidez não era uma maldição ou a pior coisa do mundo, mas para Clarissa, que tinha sua vida inteira planejada desde os 14 anos, era um completo desastre.
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As quintas-feiras eram sempre os melhores dias da semana para mim. No Jeins, nós almoçávamos todos juntos nas quintas, já que nos outros dias, isso quase não era possível de acontecer. Uma grande mudança para mim, que estava acostumada a tomar umas cervejas com meus amigos no Carté no mesmo dia da semana. Não foi uma mudança ruim, apenas diferente.
– Patrick, você está com a média baixa em biologia? É sério? – Minha mãe olhava o boletim do menino com uma feição de desgosto no rosto. O mesmo apenas deu um sorriso amarelo.
Minha mãe, Celia Young, era uma mulher extraordinária. Minha mãe era filósofa, formou-se na mesma universidade que eu, mas a vida a levou para outros caminhos e agora ela trabalha como gerente de uma companhia de telemarketing, mas mamãe nunca deixou de estudar, também nunca sentiu que isso foi uma falha em sua vida. Ela costumava promover saraus e encontros literários pelo bairro. Inclusive, meus conceitos de vida eram inteiramente influenciados por ela, que desde cedo nos introduziu a um pensamento independente e crítico.
– Acho que está na hora de ele receber o discurso que eu recebi quando tirei minha primeira e única nota baixa no colégio. – Comentei, fazendo questão de frisar a palavra "única". Não que eu fosse a maior nerd de todos os tempos, mas como já citei antes, eu sempre gostei de estudar, nunca fora um sacrifício.
Estávamos todos na pequena cozinha da minha casa, que também era a sala de estar e a sala de jantar. A minha casa era dividida em quatro cômodos, sem contar o banheiro. O andar de cima, onde haviam o quarto dos meus pais, o de Patrick e o meu e de Clarissa. (Essa mulher não decide onde morar, sério). E o andar de baixo era apenas um grande cômodo, sem paredes, cujos móveis foram organizados de forma que parecesse que haviam divisórias. Era apertado, mas a gente se virava. Eu estava arrumando a mesa para o almoço e Pat havia entregado o boletim para os nossos pais, que cozinhavam juntos.
– É uma boa ideia! Isso pode ser intenso, você está preparado? – Minha mãe concordou e perguntou. Pat assentiu, segurando o riso. – Patrick, meu filho amado, meu caçula. Não nos importamos com as roupas que você veste. Se você beija homens ou mulheres, dane-se. Se você quiser beber, beba. Se quiser fumar, fique à vontade. Não é como se você não soubesse os malefícios do álcool e da nicotina.
– Mas Julieta nos mostrou um estudo bastante convincente sobre a marijuana uma vez. – Meu pai comentou, salpicando algo na panela.
– De nada. – Murmurei, piscando para Pat, que já estava vermelho de tanto rir com o discurso engraçadinho de nossa mãe.
– Se for cocaína... – Meu pai quis continuar, mas logo foi interrompido.
– O que nós estamos querendo dizer, – Minha mamãe falou antes que o homem grisalho partisse para um lado mais sombrio. – É que a única coisa que nos importa (no momento) é onde você está, que horas vai chegar e suas notas. Nós precisamos dessas notas altas. Pois quando os vizinhos vierem fofocar sobre você estar bebendo e fumando por aí, nós vamos poder dizer: "Ele é o primeiro da turma, dona Josepha! Ele pode fazer o que quiser!"
Começamos a bater palmas ao término do discurso, estourando em gargalhadas. A velha Josepha definitivamente era a detentora do posto de maior fofoqueira da rua.
– Eu prometo que vou recuperar, mãe! – Pat assegurou, enquanto os ajudava a levar as travessas de comida para a mesa. – Eu perdi o foco por um tempo, só isso.
– Você também não pode engravidar ninguém. – Minha mãe apontou um dedo para Pat, que apenas revirou os olhos e seguiu de volta para o lado de nosso pai.
Como uma cena digna de uma sitcom, ouvimos o tilintar de chaves na porta e logo Clarissa entrou no local, cumprimentando a todos. Eu e Pat nos entreolhamos, apreensivos. Ela estava exalando a "Clarissa-vai-ao-resgate", era a expressão que nós criamos para descrever o semblante que ela usava quando entrava em um local pronta para fechar negócio. Consistia em seu rosto sério e formal, mas nada agressivo. Era a expressão que costumava usar para mediações de brigas e discussões em nossa residência.
Eu desconfio que foi assim que ela chegou na diretoria da empresa.
– Oi, estou atrasada? Já começamos? – Questionou, jogando a bolsa no sofá e indo lavar as mãos.
– Que nada, estamos esperando esses dois pararem de brincar com a comida! – Minha mãe resmungou. Patrick e meu pai haviam se empolgado na decoração do fricassê e não queria parar de desenhar coisas com os tomates cortados.
– Ótimo, nós podemos conversar, então. – Clarissa enunciou, com uma formalidade impressionante para quem ia anunciar uma gravidez. Por isso ela tinha um currículo invejável para qualquer administrador.
Algumas noites atrás, após muitos surtos e pesquisas, Clarissa havia decidido manter o bebê. Eu e Patrick havíamos passado horas fazendo uma lista de prós e contras – coisa que eu amava fazer! – para tentar ajudar nossa irmã a decidir seu futuro. Enquanto ela, como a boa planejadora que era, sentou na frente do computador e pesquisou tudo sobre bebês, maternidade, gravidez, pais, parto, aborto, adoção e bissexualidade.
Pois é, ela havia curtido o sexo hétero mais do que achou que iria curtir.
Havia uma lista enorme de contras, porém, uma lista de prós ainda maior. Logo, ao final da noite, tínhamos uma bissexual, dois tios e três pessoas extremamente empolgadas com um bebê em suas vidas. Eu e Patrick já tínhamos até planos com a criança. E umas apostas envolvendo o sexo e o pai também. E por falar no pai, descobrimos a maior confusão. O cara era melhor amigo de Clarissa – bonitão, diga-se de passagem –, mas também era o chefe dela!
E eu achando que minha vida era agitada.
– Na mesa, vamos comer agora! – Minha mãe foi empurrando todos em direção à mesa, já possivelmente irritada com a constante brincadeira entre nosso pai e Pat.
– Estou grávida. – Clarissa anunciou impetuosamente, ocasionado uma breve paralisia em todos no local. Droga, a mulher nem nos deu tempo de sentar à mesa.
Aí começou o pandemônio. Meus pais começaram a gritar feito loucos. Não necessariamente com ela, mas sim, um com o outro.
Depois partiram para as perguntas, só que perguntavam de uma vez, um falando por cima do outro e ninguém entendeu nada. Berraram umas cem palavras por segundo quando tudo, finalmente, ficou em silêncio de novo. Meu pai apoiava o corpo na mesa, ofegante, como se tivesse acabado de sair de uma luta corporal. Minha mãe encarava Clarissa com os braços cruzados e uma expressão dura. Notei que Pat e Clarissa, que estavam mais próximos, estavam com as mãos entrelaçadas e tão apertadas que eu podia ver os dedos de Pat ficando esbranquiçados.
– Julieta, nunca faça sexo! – Meu pai alertou, do nada. Eu definitivamente não estava esperando que ele falasse isso.
– Você chegou atrasado, querido. – Minha mãe debochou, ainda sem deixar de olhar para Clari. Arregalei os olhos com a frase da mulher, vendo meus irmãos também se chocarem com a fala. Mama Celia era uma mulher muito intimidadora quando queria.
– Ah, não... – O homem lastimou e sentou na cadeira que ficava na cabeceira da mesa, encostando a testa na madeira, desacreditado de tudo que estava acontecendo.
– Pai, eu... – Tentei falar alguma coisa, mas não queria ficar desatenta a minha mãe, que parecia querer voar no pescoço da minha irmã a qualquer minuto. Ela sabia que eu a defenderia e provavelmente usou a minha virgindade para tirar minha atenção. A loira segurava as lágrimas e não soltava a mão de Pat de forma alguma.
– Foi o garoto da TV, não foi? Músicos... – Resmungou, ainda de cabeça baixa, como se não conseguisse nem me olhar.
– Não, pai. Já faz tempo... – Ele abriu a boca, indignado e eu imediatamente me arrependi de ter falado alguma coisa.
– Você está grávida? – Mamãe perguntou-me, debochada.
– Não! Faz tempo que eu... Não faço isso. – Fiquei extremamente envergonhada de falar sobre isso na frente do meu pai.
– Então não me interessa! – Voltou-se para Clarissa, que engoliu em seco ao constatar que a mulher estava realmente irritada.
– Você precisa levar essa garota ao médico! – Meu pai apontou o dedo para mim, ainda descrente.
– Tem uma filha grávida aqui! – Mamãe frisou enquanto ia até a geladeira e voltou com duas garrafas de cerveja, entregando uma para meu pai, que bebeu metade em menos de dois segundos.
– Eu preciso de algo mais forte que isso. – Reclamou e foi em busca de seu famoso uísque de 20 anos, o qual ele só tomava em ocasiões especiais. E aquela estava sendo uma ocasião bem inesquecível. – E você, moleque? Onde estava enquanto estavam inseminando suas irmãs?
– Eu sou a única inseminada, deviam estar falando sobre mim! – Clarissa tentou e ninguém ligou muito.
– Cuidando da minha vida? – Pat respondeu, exalando obviedade.
– Eu estou grávida, um bebê! Uma boca para alimentar. Pai indefinido! Podemos falar sobre isso? – Clarissa perdeu a paciência e esgoelou-se, assustando a todos.
A situação fora tão cômica, tão típica da minha família, que eu não aguentei e gargalhei, quebrando o silêncio. Eram tão parecidos comigo e tão minha família que era reconfortante. Agora eu já sabia de onde vinha toda a minha dramaticidade. Meu pai me olhou, negando com a cabeça, recriminando minha risada. Cobri a boca e pedi desculpas, segurando o riso.
– Vão para o quarto, vamos conversar com Clarissa. – Nosso pai ordenou e eu neguei com a cabeça.
– Estamos com fome! – Reclamei. Eu nem estava, só não queria deixá-la sozinha na sala, pronta para ser devorada pelos leões, tal qual Daniel na cova.
– Podem comer no quarto hoje. – Mama Celia rapidamente jogou a comida de qualquer jeito em dois pratos e entregou-os para nós.
- Mas... – Pat tentou, eu sabia que ele também não queria deixar a irmã só. Nós olhamos para Clarissa apreensivos e solícitos.
– Tudo bem, vocês podem ir. – Passou a mão de leve pelos fios de cabelo castanhos de Patrick. Assentimos com sua "permissão" e pegamos nossos pratos e subimos as escadas, ainda apreensivos.
Pat foi em direção ao seu quarto e eu segui-o, sentei na sua cama e saquei meu celular do bolso, já abrindo a conversa de Dana, pronta para contar as últimas confusões para ela, quando Patrick começou a falar, chamando minha atenção.
– Então... – Pat iniciou. Olhei-o e ele estava de costas para mim, sentado na sua escrivaninha, mexendo no prato de forma desinteressada. – Eu vi você hoje.
– Moramos juntos, você me vê todo dia. – Brinquei, sem desviar o olhar do celular.
– Julieta... – Chamou minha atenção e eu levantei a cabeça, franzindo o cenho ao encontrar seu olhar sério em minha direção. – Você estava no Forte.
– O que você estava fazendo lá? – Retruquei imediatamente, deixando meu celular de lado e questionando o óbvio.
– Estava com Sun. Fomos jogar um pouco. Ele me disse que você vive por lá agora. – Dei de ombros, querendo fingir que estava tudo bem, mas no fundo eu estava preocupada. O Forte era um local perigoso até para mim, imagina para o meu irmãozinho. – Julie, eu não quero ser chato, mas... É perigoso.
– Eu sei me cuidar, Pat. – Peguei meu celular novamente, não querendo olhar para a possível expressão julgadora do menino.
Ficamos em silêncio após isso, acho que minha resposta atravessada acabou causando estranhamento em nós. Eu sabia que ele estava genuinamente preocupado, mas não queria ter que explicar meu envolvimento com Santiago, pois não parecia muita coisa. Eu trocava umas carícias com o cara, não era como se estivéssemos vivendo algo maior.
Eu já estava quase cochilando na cama de Pat, enquanto ele jogava no computador, quando Clarissa entrou no quarto, procurando por nós. Seu rosto estava vermelho e inchado, a conversa provavelmente tinha sido regada a choro. Levantei rapidamente e abracei–a. Tive vontade de chorar por ela ter chorado um pouco no meu ombro.
– E aí? – Pat perguntou, pausando o jogo e indo até nós.
– Foi um susto para eles, – Confessou, suspirando e passando a mão pelo rosto. – Mas eu acho que vai ficar tudo bem. – Deu de ombros, sentando na cama.
– E o que eles falaram? – Questionei, curiosa.
– Bom, em síntese, só perguntaram as coisas básicas. Quanto tempo eu estou, quem é o pai, o que eu pretendo fazer... – Explicou. – Pediram um tempo para pensar e se adaptar a ideia. Acho que preciso desse tempo também, sabe? Pensar no que eu realmente quero fazer. Se quero incluir o Adam nisso e... Enfim, pensar em tudo.
Passamos o resto da tarde conversando sobre tudo, menos sobre o futuro, não queríamos sobrecarregar ainda mais a situação. Clarissa logo ficou cansada demais, talvez devido todo o esforço e desgaste emocional, e decidiu não voltar para o trabalho naquele dia, principalmente pois teria que ver Adam, o pai, e segundo ela, ainda não estava pronta para contar ao homem que sua noite de curiosidade e álcool tinha resultado em um baby. Acabou aconchegando-se em minhas pernas e dormindo, enquanto Patrick dedilhava alguma melodia no violão, pensativo.
Eu acariciava os cabelos loiros de Clarissa, pensando no quanto ela parecia fragilizada naqueles dias. A mulher era seis anos mais velha que eu e não era pouco dizer que eu cresci venerando-a. Clarissa era tão forte e independente quanto nossa mãe e isso era extremamente significativo para mim. Vir de uma família que mulheres priorizavam seus estudos e empregos majoritariamente sempre foi motivo de orgulho para mim, mas agora que Clarissa estava saindo um pouco da reta (assim como minha mãe), eu me questionava quando seria a minha vez.
Desviei a atenção de Clarissa quando uma melodia família me despertou dos pensamentos. Pat tocava uma música de , aquela antiga melodia inacabada que tocava no player do meu carro. Sorri com a visão dos meus dois mundos colidindo. Eu desconfiava que o sorriso ladino não era apenas pela gozação com a minha paixonite, também servia como um pedido de desculpas pelo nosso pequeno estranhamento.
Eram por momentos como esse que eu não me arrependia, nem me sentia triste por ter saído de Hillswood. Nenhum lugar no mundo me proporcionaria o abraço caloroso que eu só achava nos braços de meus irmãos.
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Apertei os olhos, franzindo-os antes de conseguir abri-los totalmente. Pisquei algumas vezes, sentindo-me desnorteada e incomodada com o quarto tomado pela escuridão. Quando minha visão se acostumou ao escuro, notei que ainda estava no quarto de Pat e tinha caído no sono. Rolei os olhos pelo local, notando que Clarissa ainda dormia, agora enrolada em um cobertor. Peguei meu celular, procurando pelo horário e lendo minhas notificações. Senti minha barriga reclamar de fome, já devia ter passado horas desde a minha última refeição, tendo em vista que já estava de noite. Resolvi procurar algum alimento, desci as escadas na ponta dos pés, sentindo minha casa exalar tensão. Mesmo que toda a agitação e adrenalina já estivessem distantes agora, a casa ainda parecia ressonar inquietude.
Quando cheguei à sala, encontrei minha mãe sentada no sofá, com as pernas esticadas e lendo algum livro grosso. Levantou a cabeça, fitando-me quando notou minha presença.
– Onde está todo mundo? – Questionei, aproximando-me da mulher com olhos de águia.
– Seu pai foi trabalhar e Patrick foi para o judô. – Analisou me por uns instantes antes de perguntar: – E Clarissa?
– Dormindo, estava muito cansada. – Informei, receosa em me aproximar.
O lance com a minha mãe é que ela vai rodear você, como uma águia, e quando você menos esperar, ela vai atacar. Ou não. Celia Young era uma mulher implacável. Sempre fazia o queria, sempre conseguia o que queria.
– Como você está, vovó? Grandes notícias hoje, hein? – Brinquei, fazendo a mulher retorcer o rosto em uma careta.
– Vocês sabem a quanto tempo? – Questionou, estreitando os olhos.
– Isso me parece uma armadilha. – Estremeci, reproduzindo seu estreitar de olhos também.
– E é mesmo, não responda. – Admitiu, balançando as mãos. Fechou o livro e encolheu as pernas, chamando-me para sentar ao seu lado.
– Foi difícil? – Perguntei, curiosa. – Receber a notícia... – Expliquei ao notar sua confusão.
– Eu não usaria essa palavra... Foi apenas inusitado. – Raciocinou, esticando as mãos para tocar meus cabelos, afagando em um carinho gostoso.
Minha mãe nunca quis ter filhos. Ela dizia que gostava de sua independência e no momento em que gerasse alguma criança, ela seria totalmente dependente e fiel. Mas então ela conheceu meu pai, que sempre quisera ter filhos, e logo se viu cuidando de três crianças. Eu nunca entendi essa transição, mas senti que esse seria o momento certo para questionar o porquê.
– Mãe, posso perguntar uma coisa? – Pedi, apreensiva. Ela assentiu em concordância. – Por que é tão difícil para você aceitar filhos? Como você chegou aqui com, – não um, nem dois –, mas três filhos?!
– Sinto uma mágoa nessa voz? – Riu, sarcástica, ainda mexendo em meus cabelos.
– Não, até porque esse é exatamente o meu ponto. Você sempre teve uma grande ressalva com criança, porém, nunca nos negligenciou, apesar de sempre ter deixado claro que não queria ter filhos. – Explanei minha dúvida de modo claro e sincero.
– Porque vocês são perfeitos! – Proferiu em um tom infantil e maternal, apertando minhas bochechas. Rolei os olhos, fazendo-a rir com minha reclamação. – O seu pai queria ter filhos.
– Ok, e porque você cedeu as vontades dele? Você não faz isso nem atualmente! Ele obrigou você ou algo assim? – Indignei-me, confusa. Não era do feitio dele obrigá-la a fazer algo.
Ela suspirou, tirando o livro do colo e deixando-o no criado mudo ao lado do sofá. Carregava no rosto um sorriso de gente sábia, um sorriso leve de boca fechada, mas nada arrogante. Soube neste momento que eu sairia daquela conversa com uma visão de mundo diferente.
– Seu pai nunca me forçou a nada, Julie. A primeira vez que rompemos foi justamente por este motivo. Já tínhamos uns anos nas costas e ele já era pai, porém, ele queria ser pai dos meus filhos. – Contou.
Meu pai havia tido um filho antes de ele e minha mãe casarem. Adrien era um cara legal e essa parte da história não envolvia muitos dramas. Meu pai tentou ser o mais presente possível, mesmo que nunca tenha tido um relacionamento concreto com a mãe do rapaz.
– Então, você cedeu. – Conclui, fazendo-a rir novamente.
– Não! Acabamos voltando porque você sabe que seu pai não vive sem mim. – Brincou. – Então, acidentalmente, aconteceu. E pensando melhor agora, é uma puta brincadeira do destino comigo que minha filha tenha engravidado da mesma forma que eu. – Bufou, balançando a cabeça negativamente. – Após anos de casamentos e relacionamentos em geral, é necessário fazer concessões e Clarissa foi a minha melhor concessão. O meu problema nunca fora crianças, filhos e a instituição familiar, mas sim o que isso representava.
"Antes eu tinha essa opinião fechada de que a mulher doméstica, a mãe, era como se fosse uma falha. É um absurdo, não é? Agora eu vejo isso, mas antes foi difícil conseguir conciliar a mulher independente com a dependente. Até hoje há discussões e mais discussões sobre o papel da mulher na sociedade e na entidade familiar ao mesmo tempo. E na época isso ferrou minha cabeça! Mas eu pensei que amava o Jim, acima de tudo, e se aquele bebê era o amor dele vivendo fisicamente dentro de mim, não podia ser errado".
– Ah, mãe! Que bonito isso. – Suspirei, sorrindo encantada com suas palavras.
– Eu só contei quando estava com cinco meses porque a barriga começou a aparecer, eu não queria que ele ganhasse a discussão. – Confessou, presunçosa e eu gargalhei com sua petulância. Era exatamente o tipo de coisa que eu faria. – E eu tive muita sorte. A Clarissa foi o bebê mais incrível que eu poderia ter naquele momento. Ela era tão calminha, quase não chorava, parecia que tinha sido feita na medida certa, para mim naquele momento! Com ela, eu nunca me assustei, sabe? Ela nunca me causou nenhum sentimento de arrependimento.
– Diferente dos seus outros filhos? – Arrisquei, bufando.
– Argh, você era um pesadelo! – Confirmou, balançando os ombros.
– Mãe! – Reclamei, indignada. Ouvimos a gargalhada suave de Clarissa surgir por trás de nós, fazendo-nos pular no lugar com o susto. Ela descia as escadas devagar, o rosto estava inchado e ela abraçava o próprio corpo. Veio em direção ao sofá, sentando ao nosso lado.
– Eu só era um bebê legal porque eu tive a melhor mãe. – Assegurou, piscando para nossa mãe, que lançou uma piscadela de volta. Sorri com o ato carinhoso entre as duas. Eu temia muito que a relação entre elas acabasse abalada, mas acabei estando errada. É provável que aquela gravidez as aproximasse ainda mais, devido as similaridades dos casos. – Mas é verdade, você era um pesadelo.
– Por que?! – Questionei, aborrecida com o fato.
– Porque você amava muito a mamãe, filha! – A mulher zombou, passando um braço em volta dos meus ombros, puxando-me para um abraço ladino, causando risadas conjuntas. – Você chorava toda vez que saia do meu colo, sempre queria dormir mamando, não aceitava o colo do seu pai, trocava o dia pela madrugada. Era exaustivo! Patrick só me deu problemas durante a gravidez, era o mais agitado, mas depois que nasceu, dormia no berço, então eu conseguia descansar.
– Eu só queria um pouco de atenção, ok? – Rebati, cruzando os braços.
– Brincadeiras a parte, eu tirei a sorte grande. Eu sei que toda mãe fala isso, mas fala sério, olha só para vocês! São perfeitos! – Sorriu calma, transbordando amor no olhar. – Vocês são os melhores filhos que eu poderia pedir. É claro que lidar com três crianças extremamente diferentes, com idades diferentes, não foi fácil. Mas eu sou uma filósofa que acredita em Deus e frequenta a igreja, estou acostumada a enfrentar grandes e atribulados debates.
Gargalhamos juntas. Minha mãe era completamente distinta e improvável. Deveriam escrever livros em sua homenagem tamanha a grandeza dessa mulher.
– Me desculpe pelo susto, mãe. – Minha irmã proferiu, tristonha. – Eu não queria te desapontar.
– Jamais diga isso, você não me desapontou, querida! Você é uma mulher adulta, ciente de suas próprias escolhas e eu tenho muito orgulho de você ser quem você é. Eu que tenho que me desculpar pelos gritos e acusações infundadas. – Virou-se para mim, sorrindo quase envergonhada. – E me desculpe também, por ter exposto você pro seu pai.
– Você é louca, mãe! Eu não acredito que você fez isso. – Lastimei, incomodada com a ideia do meu pai saber sobre minha vida sexual existente.
– Inclusive, ele me mostrou a página de Instagram do menino, o nome dele, não é? Filha! – Exclamou, animada e admirada. – Ele é lindo!
– Eu arrasei, eu sei! – Estalei os dedos, desinibida e convencida.
– E por falar em homens bonitos, me explica essa história de você com o Adam. Você não é lésbica? Tivemos toda uma conversa sobre isso, Clarissa! – Nossa mãe indignou-se, torcendo os lábios e provocando gargalhadas altas em nós.
Quando olhei nossas mãos entrelaçadas, a sensação de liberdade se apoderou de mim. Apesar de estarmos na sala da nossa minúscula casa, em um sofá apertado, eu nunca me senti tão livre e a vontade. Eu quase podia ver o mundo inteiro abrir caminho para que pudesse ser eu mesma. Era como se nada, absolutamente nada, pudesse me atingir ali, com aquelas duas fortalezas ao meu lado.
Mesmo com as adversidades da vida nos levando para outros caminhos, eu sabia que nada destruiria nossos sonhos. E parte da minha força, vinha das duas mulheres inabaláveis ao meu lado, que sempre me serviram de exemplo de resiliência e resistência. Aprendi a me reinventar todos os dias, compreendi o que era padecer no paraíso e no inferno, simultaneamente. Enfim, aprendi as dores e as delícias de ser mulher.
O Festival do Patrimônio Cultural de Springfield acontecia todo ano, em todos os finais de semana do mês de junho no parque Repine, religiosamente. Lotado de música, cultura e arte, era a melhor opção de diversão que a cidade proporcionava naquele mês. Meus pais eram voluntários do evento e sempre participavam da organização. Choveu forte nos dois primeiros dias e Pat apostou comigo que no terceiro final de semana, o sol iria aparecer e nós deveríamos ir.
Eu insisti que a chuva iria estragar tudo, como vinha acontecendo desde então, mas agora estou aqui, andando pela grama e arrependida de ter vindo com um vestido longo simples. Era lindo, totalmente estampado, mas minhas coxas estavam quase derretendo por debaixo do tecido, mesmo que fosse bem leve. Pisquei algumas vezes, forçando minha visão a se acostumar com a claridade, as lentes grossas dos meus óculos não protegeram meus olhos do sol e comecei a lacrimejar. Esfreguei os olhos, tentando fazer as manchas brancas sumirem de minha visão.
Eu estava melhorando muito na convivência social e já estava bem adaptada ao meu antigo novo meio. Entretanto, havia dias que tudo que eu queria era estar em casa, debaixo dos meus lençóis, no meu sofá e olhar pela minha janela. Em Hillswood.
Patrick sumiu nos primeiros cinco minutos depois que chegamos ao parque. Afastou-se para cumprimentar uma "amiga" e quando eu vi, o garoto acenava longe, gritando que não ia demorar. Toda vez que nós saíamos juntos isso acontecia. Pat encontravam uma "conhecida", sumia por algumas horas e voltava como se nada tivesse acontecido. Eu ficava bastante irritada, mas ainda assim, nós nos divertimos bastante. Agora, com Pat mais velho e maduro, ele havia se tornado meu parceiro oficial, já que Clarissa já não tinha mais tanta paciência para nossos programas juvenis e imprevisíveis. E, bom, estava grávida.
Percebi que fui abandonada pelo meu irmão novamente, então não tive escolha a não ser começar a andar pelo lugar, procurando pela tenda em que meus pais costumavam ficar.
Havia várias bandas e artistas independentes espalhados pelos lugares e quem estivesse interessado ficava por ali mesmo, em volta dos artistas. Só tinha um palco principal, onde tocaria as bandas mais conhecidas, mas era onde estava mais lotado e eu não estava nem um pouco afim de ir até lá. Tinham vários stands de atividades e vendas. Eu estava até pensando em ir à tenda das tatuagens, estava mesmo querendo marcar minha pele mais uma vez.
Eu adorava aquele clima, adorava aquele parque. Sempre aconteciam aqueles tipos de festivais ali e eu sempre ia com meus amigos de escola. Parei ao lado de um trio de rapazes que cantavam Indie rock e contemporâneos em geral, empolgados que estavam sendo assistidos por tantas pessoas que um círculo já se formava em volta deles.
Aproveitei para comprar uma cerveja, já não aguentava mais de sede e aquele calor e a música pediam por uma bebida.
Os ventos estavam bem fortes, mas isso não diminuía o calor. E o céu de junho... Ah! O céu de junho, completamente sem nuvens, de um azul tão singular que dava inveja em qualquer outro azul. O céu de junho nunca decepcionava. Lembrei de , porque a um ano atrás, eu estava com ele sob o mesmo céu.
Perdidos no meu apartamento quente, no nosso próprio espaço-tempo.
Como se quisesse se fazer presente não só em meu pensamento, ouvi os primeiros acordes de uma música dele e várias pessoas estavam cantando junto com eles. Quem diria que já era conhecido em Springfield? Não pude deixar de sentir orgulho, afinal, é muito empenhado e merece todo o reconhecimento do mundo. Lutava com unhas e dentes por seu sonho de fazer sua música sem se importar com o que pensavam e eu admirava isso nele. Eu não conseguia ter toda essa teimosia para fazer o que eu bem entendesse.
Abri a câmera do celular e fiz um pequeno vídeo no momento em que as pessoas estavam cantando o refrão e filmei em volta, mostrando todos cantando junto. Enviei o vídeo no grupo de mensagens que eu tinha com Dizzy, Cameron, Jack e . Instantaneamente, senti saudades de todos. Eles adorariam aquele lugar. Iriam em todos os stands e ver todos os músicos, e nós provavelmente sairíamos bêbados de lá também. Eu não gostava de ser dependente da amizade deles, mas nosso grupo eram tão completo, tão único e especial, que eu não me via conhecendo mais pessoas que fossem tão incríveis quanto.
Recebi uma mensagem de Pat, avisando que havia encontrado Clarissa do outro lado do parque e frisando em caixa alta que o tal Adam – o patrão/pai/amigo – estava com ela. Como uma boa apreciadora da vida alheia que sou, corri para comprar uma nova bebida e ir até eles, assistir de camarote Clarissa sendo hétero.
O lado esquerdo do parque era onde a grama predominava e era lotado de árvores, geralmente onde as pessoas estendiam suas toalhas e as crianças brincavam. E foi cortando o caminho por entre os carvalhos, aproveitando a sombra e o vento, observando o céu anil, que eu o vi.
Haniel.
Primeiro, eu duvidei que fosse ele. Achei que fosse apenas uma impressão causada pela minha vista embaçada, porém, a postura e o jeito de se vestir pareciam demais. Continuei andando normalmente, torcendo para que minha resistência ao álcool tivesse diminuído e eu já estivesse vendo coisas, mesmo que só tenha tomado um copo de cerveja. Minhas pernas pareciam bambas e meu coração começou a bater mais rápido, então, eu não tinha mais dúvidas. Ele estava encostado em uma árvore, mexendo no celular. Era ele mesmo e não mudara nada desde a última vez que o vi, no dia em que terminamos.
O fato dele estar usando os óculos de sol que eu lhe dei de presente de aniversário só fez o coração da Julieta de 18 anos balançar de vez.
Como se sentisse que eu estava olhando, levantou a cabeça, me enxergando logo de primeira. Paralisei no lugar quando nossos olhos se conectaram novamente.
Estagnei. Travei.
Eu estava na direção dele, não tinha como desviar, nem fingir que não nos vimos. Ele sorriu, ladino e ajeitou a postura. Ele iria me cumprimentar, não ia fingir que não me viu – que era o que eu provavelmente faria –, então, eu apertei os lábios em um sorriso fechado e fui até ele. Afinal, era Haniel ali. O cara que foi meu melhor amigo por mais de dez anos. Eu ainda nutria um enorme carinho e admiração por ele – e talvez uma pequena queda também, eu confesso –. A cada passo que eu dava, cada vez que me aproximava mais e tinha uma visão mais definida do seu rosto, uma lembrança antiga surgia em minha cabeça. Minha vontade era de correr e abraçá-lo com força, mas acho que nós não tínhamos mais aquela intimidade.
– Oi, Julie. – A voz dele. Puta merda, a voz dele! Eu não escutava aquela voz a tanto tempo.
"Oi". Uma mísera sílaba, foi o que ele disse depois de quase seis anos sem me ver.
– Oi... – Eu não sabia o que fazer. Eu acenava, apertava a mão dele, abraçava? Ele também parecia indeciso sobre o que fazer, mas mantinha o sorriso gentil no rosto. – Quanto tempo, não é?
– O tempo passa rápido. – Respondeu, dando de ombros. Para mim, parecia que tinham se passado 300 anos. Puxou uma lufada de ar antes de continuar: – Está sozinha aqui?
– Eu vim com Pat, mas ele está do outro lado. E você? – Tirei o cabelo que insistia em voar no meu rosto, querendo ignorar todos aqueles sentimentos que estavam dentro de mim agora. Eu estava bem nervosa, as palmas das minhas mãos estavam suadas e frias ao mesmo tempo. Odiei ele ter aquele efeito em mim, pois, quando nós estávamos juntos, as coisas não era assim.
Hani era a pessoa com quem eu mais me sentia confortável. Lembro que eu costumava trocar de roupa na frente dele mesmo quando éramos apenas amigos e não era um problema. Isso ajudou bastante quando eu tive minha primeira vez com ele.
– Com a Ana. – Pareceu envergonhado de falar, seu tom de voz baixou um pouco e eu fiquei um pouco chateada, não vou negar. – Uau, seu cabelo está enorme!
Eu nunca tive o costume de usar cabelos longos. O mais longo que eu já tive chegou até um pouco abaixo dos meus ombros. Agora ele chegava em minha cintura e eu estava apaixonada por ele assim. Estava meio desbotado, mas acabou ficando em uma tonalidade normal e estava cada dia mais ondulado. Toquei as pontas do meu cabelo, até encantada por ele ter notado.
Deus, tire esse homem de perto de mim ou vou me apaixonar novamente em 20 minutos.
– Vocês ainda estão juntos? Que legal! – Sorri, meio absorta e completamente falsa, e ele riu.
– Pois é, achei que não ia durar uma semana, mas aqui estamos nós. – Confessou, risonho.
– E onde ela está? – Olhei em volta, procurando-a. Não queria ter uma surpresa e achar a garota nos observando. Já era estranho o suficiente ter que lidar com Haniel, com os dois juntos eu não sei se conseguiria.
– Na tenda de ioga. Preferi esperar aqui. Eu gosto do barulho, sabe como é... – Deu de ombros e eu apenas assenti, engolindo em seco.
Eu tinha a impressão de que estava tudo errado. Eu fantasiava com esse momento a muito tempo. O nosso primeiro encontro após o término tinha que ser cheio de tensão e constrangimento. Ele tinha que estar nervoso por me ver, visivelmente abatido, solteiro e me querendo de volta, obviamente. E eu devia estar rodeada de amigos, ele veria que eu estava bonita e estava bem sem ele, que eu tinha conseguido, afinal, me tornar uma pessoa melhor.
Mas a realidade do encontro foi totalmente diferente. Eu estava sozinha, com o cabelo todo bagunçado, um copo de cerveja vazio, totalmente perdida na vida. E ele estava ali. Lindo, cheio de saúde, com um relacionamento saudável e duradouro.
– Como estão as coisas? – Ele quebrou o breve silêncios entre nós, coçando a nuca, visivelmente constrangido. – Encontrei sua mãe uns minutos atrás, sabia? Ela está na administração lá na entrada.
– Jura? Ela não te supera. Ainda acha que a gente vai casar. – Forcei uma brincadeira, apenas para que a gente risse e o gelo se quebrasse. E funcionou.
Assim como meu pai agora tinha uma fixação por Cameron, minha mãe tinha uma fixação por Haniel. Sempre fora louca por ele, mesmo antes de sermos um casal. O nosso término abalou mais a ela que a mim. E cá entre nós, eu ainda acho que eu e Hani vamos casar algum dia. Quer dizer, eu não acho..., mas espero, secretamente, que sim.
Era engraçado porque eu costumava fugir de relacionamentos como gato foge de água, mas com ele, eu fantasiava até nosso casamento.
– Sua família é incrível! Sinto falta deles... – Confessou, amuado.
– Só deles? Qual é, você me odeia tanto assim? – Gracejei, dando um soquinho leve em seu ombro.
– Claro que não! – Ele riu, acariciando meu braço. Meus olhos se arregalaram minimamente com seu toque imprevisto. Eu espero muito que ele não tenha sentido o quão rápido eu me arrepiei.
– Nós sempre fomos grandes amigos, Hani. As coisas só não deram certo entre a gente. – Me afastei, puxando meu braço levemente porque senti que se demorasse mais um pouco sob seu toque, eu choraria.
Tudo nele era extremamente familiar para mim e me doía não o ter nem como amigo.
– Eu estraguei tudo, é o que você quer dizer. – Expressou, sarcástico.
– Exatamente! – Rimos novamente, mas cada risada acabava com um suspiro estranho entre nós dois.
– Não sabia que você estava na cidade... – Comentou antes que o silêncio nos abatesse novamente.
– Pois é... – Contei resumidamente o que tinha acontecido, conversamos por alguns minutos sobre nossa vida profissional. Ele contou que agora trabalhava na Defensoria Pública e eu falei que estava desempregada e me sentindo meio sem norte e ele mencionou que estavam precisando de pessoas para trabalhar no Centro Comunitário do Jeins. Fiz uma nota mental para pensar na possibilidade mais tarde.
Eu estava até meio frustrada em ver que ele estava muito bem. Eu esperava que a vida dele estivesse destruída depois que nos deixamos, queria que ele percebesse que eu era a única no mundo que servia para ele, e sim, eu ainda acreditava nisso. Mas acho que era esperar demais depois de anos. Ele me contava sobre sua família quando fomos interrompidos pelo som do meu celular, que tremia incessante na minha mão. Vi a foto de na tela e gargalhei com o timing perfeito daquele idiota.
Ia ser até estranho se isso não acontecesse.
– Você se importa? – Perguntei para Haniel, sinalizando meu celular. Com a turnê de , era difícil ele me ligar assim, do nada, então eu atendia sempre.
– Claro que não, fique à vontade. – Mesmo que eu estivesse fazendo o possível para esconder, Hani inclinou a cabeça, forçando a vista para ver olhar a tela, desinibido. Ele nunca foi de esconder suas vontades mesmo. – É um cara bonito. – Riu, apontando para foto piscando na tela.
– Você não faz ideia do quanto. – Assumi, gargalhando. Deslizei o dedo na tela e atendi a ligação. – Big boy, a que devo a honra?
– Eles estavam tocando minha música? De verdade? Não foi você que pediu? – questionou com a voz transbordando empolgação.
Ouvir a voz de , com Haniel bem ali na minha frente, olhando-me e sorrindo, deu um pequeno no bug no meu cérebro. Haniel sempre foi meu cara preferido e nesses pouco minutos de conversa, eu achei que nada tinha mudado, que ele ainda era o cara. Mas ao lembrar de , percebi que ele ameaçava o lugar de Hani seriamente.
– Não, quando eu me aproximei eles já estavam tocando. – Expliquei, sorrindo.
– Ah, cara, isso é incrível! Eles tocando minha música, na sua cidade! – Comemorou, entusiasmado. Springfield não era o fim do mundo, mas o talento de ultrapassar as barreiras de HW era mesmo incrível. – Uau! Eu preciso ir aí.
– Precisa mesmo... – Exprimi, pensativa. Queria falar que estava com saudades dele, mas não com Haniel ali na minha frente. Ele podia achar que eu estava tentando fazer ciúmes nele, era melhor não. – Se estiver livre, me liga mais tarde? Eu vou estar em casa.
– Ah, é! Você não tá em casa. Eu só precisava te ligar para... Enfim! – Nós dois rimos e logo nos despedimos.
– Futura conquista? – Haniel perguntou sorrindo, não parecendo nem um pouco incomodado. O que me incomodou, é claro.
– Nah, eu já o tenho! – Brinquei, balançando a mão. – Na verdade, eu espero que ainda tenha.
– Você merece um cara legal, Julie. Ele é bom para você? – Questionou. Suspirei profundamente, pois falar da minha relação com era complicado. Falar dele enquanto eu sentia sua falta é ainda pior.
– Ele é... Incrível. Ele espera por mim, sabe? Ele é bastante paciente também, porque, você sabe, eu posso ser difícil de lidar.
– Verdade, você é meio louca. – Novamente, riu e eu revirei os olhos. Era um combinado entre todos os meus casos me chamarem de louca?
– Ele nunca me deixou sozinha para ir assistir uma corrida de galos! – Provoquei, mas a lembrança idiota nos fez rir.
– Ei, foi só uma vez! – Refutou, levantando um dedo e rimos de novo.
– Ele roubou seu lugar de melhor cara do mundo, sabia? – Ele fingiu indignação. – Sinto falta dele. – Confessei, encarando o celular novamente.
Minha cabeça estava borbulhando com as novas informações que eu estava adquirindo. Como, por exemplo, eu querer estar com mesmo que o cara que eu achava que amava estivesse em minha frente.
– Ah, ele é de Hillswood? – Perguntou, surpreso. Balancei a cabeça, assentindo. Ele franziu o cenho, confuso, antes de perguntar: – Você está namorando a distância?!
– Não, nós não temos nada sério. E ele não... Eu falo sério quando digo que ele é bom demais para mim. – Expliquei, sentindo-me estranha demais.
– Uau, nunca pensei que eu fosse ouvir você falar que alguém era bom demais para você! – É, eu também não, Hani. – Ele parece ótimo, por que você parece triste?
– Você provavelmente não sabe o que é ter a pessoa perfeita e não poder tê-la ao seu lado. – Mordi os lábios, sentindo uma leve fraqueza me abater. O nome da fraqueza? Saudades. – E acabou de me ocorrer que com você, eu não tinha medo ou dúvidas...
– Ele te deixa incerta? – Perguntou.
– Não, você me deixou assim. Ele só colheu as consequências. – Respondi, encarando seus lindos e malditos olhos verdes. Não segurei a risada quando o silêncio perdurou por mais de quatro segundos e Haniel passou a mão em seus cabelos, constrangido.
– Você não muda, Julieta. – Bagunçou os cabelos, envergonhado e eu sorri. – Sua intensidade ainda vai matar um.
– Eu preciso ir, Patrick já deve estar preocupado. – Anunciei e me aproximei, abraçando-o, sem cerimônias.
O abraço que nós dois queríamos, mas não parecia certo antes.
Agora, com o terreno reconhecido, nós podíamos tocar um no outro. Fiquei chateada em constatar que ele mudou de perfume, mas feliz pelo abraço dele ainda me oferecer um certo conforto.
– Se você quiser, a gente pode tomar um café algum dia... – Ofereceu. Eu assenti, sorrindo, mesmo sabendo que aquele café nunca iria acontecer. – Sinto muito. – Murmurou, com a cabeça enfiada no meu pescoço.
– Por...?
– Por nós. Até hoje eu sinto que estraguei tudo. – Suspirou e se afastou.
– Você está feliz? – Perguntei, ajeitando um fiozinho cacheado de seu cabelo. Ele sorriu de lado e assentiu. – Então, nada foi estragado. Está tudo bem, Hani. Não era para ser, certo? Até logo!
– Espero que sim. – Sorriu, simpático enquanto eu me afastava. À medida que fui me afastando, fui sentindo algo se manifestar dentro de mim, que eu não sabia bem o que era, até olhar para trás e ver que Haniel ainda me olhava e acenou para mim.
Era saudades. Eu sentia falta de Haniel, sentia falta do que nós éramos. E sem , eu tinha dúvidas se teria algo tão especial assim de novo.
Apertei minhas mãos uma na outra, tentando dissipar o suor e minha tensão pós encontro com ex. Enquanto me dirigia ao outro lado do parque, notei um jovem casal sentado debaixo de uma árvore. A mais baixa parecia irritada, gesticulava, falando sem parar. A outra, apenas a olhava, com um sorriso tranquilo no rosto, como se ouvi-la reclamar era o que mais gostava de ouvir na vida. Recordei-me do meu relacionamento com Haniel. Enquanto eu estivesse falando pelos cotovelos, ele estaria com aquela expressão de satisfação por simplesmente estar ao meu lado. Inconscientemente, comparei com meu relacionamento com , pois eu sabia que se estivesse resmungando, ele estaria reclamando 20x mais do que eu. E nós entraríamos em alguma discussão sem sentido, parando segundos depois apenas para rir da nossa própria loucura. Jack até costumava zoar , dizendo que ele era um guru na arte da serenidade e tranquilidade, até me conhecer, e perder totalmente sua estabilidade.
Sorri levemente com a cena e com meus pensamentos, tentando me convencer que as lágrimas se acumulando nos cantos de meus olhos eram por culpa do sol, mas na verdade, eram (novamente) por causa dele: o amor.
Eu havia acabado de reencontrar meu primeiro amor. Mais que amor, era meu melhor amigo. Ele jamais seria esquecido e eu estava bem com isso, o problema era essa dor incomoda que vinha junto com a lembrança dele. As lágrimas tinham um gosto mesclado, confuso. O pranto indeciso entre a tristeza – por saber que eu havia perdido uma grande amizade para a lista de grandes amores – e alegria pois eu havia descoberto ali, naquele encontro despretensioso no parque, que havia vida após Haniel, e que era possível amar novamente.
Não é fácil perceber que você está amando. Não é fácil se desprender de sua liberdade e reconhecer que você não lembra muito bem como era a vida antes daquela pessoa. Há um certo tipo de amor que a gente não percebe até estar do outro lado do país, olhando para o cara mais importante da sua vida amorosa e perceber que ele já não é mais tão importante assim.
– O parque não é tão grande assim. – Pat comentou quando me aproximei dele. Franzi o cenho, sem entender muito bem a sua sentença. – Você demorou.
– Você não vai acreditar... Encontrei o Haniel. – Contei, abalada, prendendo meus cabelos em um rabo de cavalo alto.
– Por isso que seu nariz está vermelho. – Apertou a ponta do meu nariz, fazendo um barulho com a boca. Rolei os olhos e em seguida ergui um biquinho tristonho. – Ô, irmã! Foi tão ruim assim?
– Foi bom, mas... Foi horrível, Pat! – Choraminguei, aceitando seu abraço apertado.
– Um pouco de comédia romântica vai melhorar suas condições? – Questionou, brincalhão. Afastei-me, encarando-o, confusa. Meu irmão apontou com a cabeça para atrás de nós.
– Está rolando?! – Perguntei, já esquecendo meus questionamentos e me concentrando na fofoca a minha frente.
– Cara, veja com seus próprios olhos... – Patrick comentou, puxando-me pelo braço e me levando até os dois.
Clarissa e seu... indivíduo (eu ainda não sei como me referir a ele, chamá-lo de "amigo" parecia pouco, de "chefe" menos ainda, de romance era muito, então...) estavam sentados em um banco ao lado de uma árvore e dividiam um sorvete. Sim, dividiam um sorvete, tal qual um casal dos anos 60. Aparentemente, seria o primeiro encontro de Adam com os meus pais após todo o Caso Gravidez. Eles já conheciam o homem por conta da empresa e da amizade dele com Clari, mas ia ser divertido vê-los conhecendo-o como papai do ano.
– Olha quem chegou. – Pat anunciou, fazendo os dois desviarem o olhar um do outro e me encarar.
– Onde você estava? Estamos aqui já tem um tempo! – Clarissa reclamou, levantando do banco.
– Passando sufoco. – Clarissa olhou-me confusa e eu apenas dei de ombro. – Depois te conto. Não sabia que estavam me esperando! – Comentei, virando meu corpo em direção ao homem alto ao lado de Clarissa. Ergui uma sobrancelha quando o vi engolir em seco, parecendo até nervoso em me conhecer. – Oi.
– O-oi, eu sou Adam! – Esticou a mão para me cumprimentar, sorrindo ansioso. Minha sobrancelha permanecia erguida quando aceitei seu cumprimento. – Você é a irmã.
– E você é o pai. – Constatei.
– Julieta! – O grito esganiçado de Clarissa me fez gargalhar.
Adam era alto, simpático, mais charmoso do que bonito e seu porte físico era atlético, mostrando que ele praticava – ou já havia praticado – algum tipo de esporte. A linguagem corporal dele era incrível (aperto de mão firme, ombros alinhados, cabeça erguida. Essas baboseiras, sabe?), o cara devia fazer sucesso em entrevistas de emprego. Não que ele precisasse, ele já era o chefe. Ademais, eu ainda não sabia se podia confiar nele com a minha irmãzinha. E por falar nela, Clarissa sempre teve uma beleza delicada e marcante por conta dos olhos puxadinhos e a boca carnuda, mas agora, com a barriguinha marcando na blusa e o famigerado "brilho da gravidez", ela parecia uma nova mulher.
– E esse é o meu nome! – Apontei, rindo. – Nossos pais estão lá no posto de organização, vamos até lá? – Sugeri, sem paciência para esperas.
Dei alguns passos, mas percebi que ninguém me acompanhava. Olhei para trás, vendo Pat encarar o casal enquanto prendia o riso. Adam ainda estava paralisado no lugar, parecendo assustado, enquanto Clari tentava puxá-lo pelo braço.
– O que foi? Adam, foi você que sugeriu que fosse em público! – Ela o recordou, batendo o pé no chão. Gesto muito parecido com o que eu fazia quando me sentia contrariada.
– Eu sei, Clarissa! – Parou para respirar fundo por uns segundos, antes de seguir em frente. Ela o observou e rolou os olhos, entrelaçando o braço no dele.
Ela mordia a casquinha do sorvete distraidamente, nenhum pouco preocupada com o encontro que estava por vir, quando meu olhar atento captou os olhos dele. Admiração e carinho, puramente. Ele olhava para Clarissa como se ela pudesse resolver os conflitos do Oriente Médio, como se ela fosse capaz de deixar o planeta em ordem em dois dias.
– Você viu isso? – Murmurei no ouvido de Pat, entrelaçando nossos braços como o casal que agora andava em nossa frente.
– O que? – Perguntou.
– Ele gosta dela. – Afirmei, sorrindo emocionada.
– Eu disse que estávamos assistindo a uma comedia romântica.
❍❍❍❖❍❍❍
– Você está quieta. – constatou ao perceber que eu estava distraída e quase não prestando atenção em sua história de como ele conseguiu fugir de entrevistas para ir comer o Space Cake de Amsterdam. Troquei o celular para o ouvido esquerdo, suspirando audivelmente, rolando na cama.
Desde que voltei do parque, eu estava absorta em meus pensamentos. Após assistir Clarissa se complicando ao tentar explicar seu relacionamento para nosso pai, decidi arrastá-los para tomar umas cervejas antes que Adam cavasse um buraco no chão e decidisse ficar por lá. Ficamos o dia inteiro andando pelo parque e bebendo, e no final da tarde, nossos pais se juntaram a nós e ficamos juntos até a hora de ir embora. Quando cheguei em casa, já meio alterada, decidi ligar para Dizzy e relatar os acontecimentos do dia. Aí, a ficha caiu.
Ela surtou, disse que queria estar do meu lado e confirmou minhas teorias de que éramos almas gêmeas quando ela revelou como queria que o reencontro fosse. Sabe? Julie rodeada de amigos, sorrindo, parecendo a pessoa mais feliz do mundo...
Até hoje, eu ainda não tinha aceitado muito bem meu fim com Haniel. Eu achava que tinha volta, achava que assim que nós nos encontrássemos de novo, a velha chama ia se acender e a gente ia perceber que ainda se gostava. O que eu não entendia é porque que depois que me afastei de Haniel, eu não conseguia parar de pensar em .
Minha cabeça estava uma confusão e nem eu mesma estava entendendo muito bem o que estava acontecendo. Como de praxe.
– Encontrei meu ex-namorado hoje. Eu estava com ele quando você ligou. – Contei, torcendo para que ele não surtasse e entendesse que eu precisava começar a falar ou então ia enlouquecer.
A linha ficou em silêncio e eu olhei para a tela do celular, vendo se a chamada não tinha caído.
– ? – Chamei, prendendo meus lábios para não começar a rir. Eu simplesmente joguei essa bomba em cima dele, coitado!
– E aí? – Perguntou, tentando não parecer receoso, e eu resolvi fazê-lo sofrer um pouco.
– Ele está bonito...
– Está me confundindo com a Dizzy? – Gargalhei ao ouvir seu brado estressado. – Você acha mesmo que eu estou afim de ficar escutando você falando bem de ex?
– Posso continuar falando ou vai ficar de mimimi? – Provoquei-o.
– Vai, fala. – Ele ainda parecia contrariado, o que só me deixava com mais vontade de rir.
– É que... Eu sempre achei que ele era o melhor cara para mim e...
– Eu vou desligar. – Interrompeu-me novamente e eu gargalhei com seu tom de voz exalando revolta.
– Espera eu terminar de falar, por favor? – Pedi, pacientemente.
– Ah, Julieta! Sou mesmo obrigado? – Resmungou e eu quase conseguia enxergá-lo, mexendo nos cabelos, tentando conter a irritação.
– Eu sempre fui apaixonada por ele, mas sei lá... Depois que eu o vi, só aumentou minha vontade de... – Eu apenas continuei a falar até perder a coerência totalmente. Eu detestava falar com gente prolixa, mas com , eu sempre acabava me tornando uma confusão de frases inacabadas e pensamentos sem nexo.
– De...?
– De você. – Surpreendi-me ao perceber que meu primeiro pensamento foi ele.
– ... Ok, estou escutando.
– Você ainda vai morrer sufocado com o tanto de drama que faz. – Rolei os olhos e rimos juntos. – Eu preciso de uma explicação.
– Vamos ver se eu posso te ajudar. – Gracejou, solícito.
– Você pode me explicar porque eu sempre tive tanta certeza de que ele era... O certo e agora eu só consigo pensar em você?
– Eu vou chorar. – Fingiu uma voz alterada e eu o repreendi, gritando pela sua atitude idiota. – É sério, eu não acredito que estou longe justamente agora que você está percebendo as coisas.
– Que coisas? – Questionei, desorientada.
– O quanto a gente se gosta, Julieta. Eu sei que para você sempre foi apenas um caso e eu sempre tive a impressão de que eu queria mais a você do que você queria a mim, mas você nunca percebeu que nós somos um casal de verdade.
Não era verdade, eu sempre quis , desde a primeira foto dele que apareceu no feed do Explorar do meu Instagram.
– Eu sempre quis você, mas... É complicado, eu não sei como explicar e nem sei se você vai entender. – Afirmei, triste por ainda ter aquela visão de mim, mesmo que eu já tenho afirmado meus sentimentos por ele mais de uma vez.
Era mais fácil falar de meus sentimentos por pelo telefone, a dimensão do olhar dele me distraia facilmente.
– Tenta? – Pediu, carinhosamente. Pensei por alguns minutos antes de começar a falar.
– Como eu disse, eu acho que tinha medo, por causa dele. Eu sempre fui apaixonada por ele, , de verdade. Por ele, eu era o tipo de garota que você nem imagina e eu não ligava, de verdade. E quando eu te conheci... Ele ainda estava muito na minha mente.
– Estava ou está? – Perguntou, receoso. – Ou voltou a estar?
– A única coisa que volta na minha mente o tempo inteiro é você, . – Confessei, mordendo os lábios.
– Eu realmente vou sair chorando dessa conversa hoje. – Brincou, rindo. – Eu penso em você o tempo todo também, Julieta. Hoje mesmo, vi uma barraca com vestidos estampados em uma feirinha de rua e pensei logo no quanto você ia querer comprar, pelo menos, uns cinco.
Gargalhei, olhando para baixo e vendo meu corpo coberto por um vestido estampado, que passei o dia reclamando do quão calorento era. Levantei da cama e fui até o espelho comprido, posicionando a câmera do celular e tirando uma foto, evidenciando a roupa, e enviando-a a .
– Você me conhece tão bem, baby. – Assegurei, rindo. Ouvi a notificação chegando no celular dele e esperei por sua reação.
– Ah, que coisa mais linda! – Seu elogio sincero fez minhas entranhas todas se revirarem. Ou romanticamente falando, borboletas no estômago.
– , sinceramente? Eu ainda não acredito muito que um cara como você esteja interessado em mim. – Confessei, envergonhada com minhas próprias inseguranças.
– Um cara como eu? – Perguntou.
– Ah, você é lindo, famoso, pode ter qualquer garota... Podia ter a Dana, que é a garota mais bonita que eu já vi! Me desculpe se é difícil acreditar que você me queira. – Exprimi.
– Me deixa puto o quanto você se deprecia. Eu já disse que você não faz ideia do quanto é linda! – Reafirmou.
– Você já me comeu, , não precisa mais ficar fazendo média. – Rolei os olhos e encarei meu reflexo no espelho.
O tempo ia passando e a insegurança com o meu corpo ia junto. É claro que eu sabia que minhas incertezas eram baseadas nos padrões que a sociedade impunha sobre as mulheres da atualidade, entretanto, havia dias que tudo parecia redondo e eu clamava por uma lipoaspiração. Aí eu lembrava que não estava no mundo para ser mais um produto do capitalismo e logo mudava de ideia.
– Você realmente devia falar para o seu psicólogo sobre essa mania irritante de achar que é pior do que todo mundo! – Reclamou, bufante.
– Alguns meses atrás você me acusou de me achar melhor que todo mundo, decida-se! – Retruquei.
– Você consegue fazer os dois! Está vendo? Isso me deixa louco! Você consegue ser dois extremos ao mesmo tempo, eu não faço ideia como você faz isso. Você me tratava quase com desprezo, mas transava comigo como se eu fosse o único cara do planeta.
– Eu nunca te tratei com desprezo, . – Repliquei, quase indignada com sua fala.
– Fala sério, Julieta! Tinham dias que eu realmente ficava em dúvida se você me queria ali ou não. E estive pensando esses dias e percebi que posso ter dado abertura, inconscientemente, para Dizzy quando aquilo aconteceu justamente por isso. – Confidenciou.
– Ok, assunto perigoso, vou desligar. – Fiquei absurdamente nervosa com a menção ao nome de Dana.
– Não, falar sobre seu ex também é desconfortável para mim, mas eu ouvi mesmo assim. Você não acha que já está na hora de nós falarmos sobre isso? – Questionou.
– Não por telefone, . – Suspirei, cansada daquele assunto. Tudo bem, ainda não havíamos conversado sobre aquilo mais vezes, porém, nada nesse debate me agradava.
– Claro, vamos fazer o que você quer fazer... Mais uma vez. – Senti uma pontada de chateação e ironia na sua voz. Afastei o celular da orelha, encarando a tela tão incisivamente quanto encararei , se ele estivesse em minha frente.
– , você está procurando briga?! – Questionei, já me preparando para um possível confronto.
– Não, Julie, eu nunca estou. – Ouvi-o suspirar. – A gente pode conversar civilizadamente, sabia?
– O que você quer, então? – Perguntei.
– Como a gente fica?
– Do mesmo jeito, ué. Estamos longe, . Eu nunca fui fã de relacionamentos a distância. Não tem como a gente começar alguma coisa agora. – Expliquei.
– E se a gente estivesse perto? – Fiquei em silêncio, pois eu não sabia se estivéssemos perto um do outro, nós estaríamos tendo aquela conversa. – Seu silêncio é minha resposta?
– Não! Eu não sei, . – Choraminguei, cansada demais para aquela conversa séria e necessitada demais de um abraço dele naquele momento. – A única coisa que eu tenho certeza no momento é que eu estou sentindo muito sua falta.
– Sua resposta não me agradou, que fique claro. – Ri com a expressão de sua insatisfação. – Também sinto saudades. Enquanto estou na estrada, eu sinto sua falta como sinto de todos, mas vai ser difícil quando eu chegar em casa e você não estiver lá.
– Você... Já esteve com alguém? – Mordi minha unha, apreensiva. Eu odiava parecer ciumenta, dependente e paranoica. Tudo em que eu me transformava quando estava com .
– Eu beijei algumas pessoas, se é isso que você saber. Mas você foi a última garota com quem eu dormi. E você? – Confessou.
– Hm... Quase. – Pensei em Santiago e todo o sexo oral que tínhamos feito, mas nunca chegando aonde ele realmente queria.
– Como assim?
– Eu tentei, mas... Acho que você fez seu trabalho direitinho demais comigo. – Ouvi a gargalhada gostosa de estourar em meus ouvidos e rir junto foi inevitável.
– Ah, que pecado você falar isso quando eu não estou do seu lado para te…
– Me...? – Questionei, mordendo os lábios.
– Beijar...? – Tentou, rindo.
– Vou fingir que acredito. – Rimos juntos mais uma vez. – Eu preciso ir, se eu não dormir agora vou ficar com uma ressaca terrível.
– Você está bêbada? – Perguntou, parecendo surpreso. – Eu sabia que tinha algo errado com essas declarações.
– Eu só bebi algumas, já estou quase sem efeito. – Expliquei.
– Como eu não percebi isso antes? – Gargalhou, divertido. – Então, me conta. Quem é melhor na cama: Eu ou seu ex?
– Boa noite, !
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É possível morrer de tesão acumulado? É realmente algo que irei pesquisar no Google quando chegar em casa. Se você não sabe o que é isso, é uma sensação terrível. Uma comichão na sua pelve que não parece sumir até você transar com quem sabia o que estava fazendo. É quando você parece entrar na menopausa mais cedo e começa a sentir um calorzinho que não pertence ao seu habitual corpo. Eu estava tão cheia de vontades que até o toque entre minhas pernas quando eu andava estava me causando desconforto.
Eu estava doida para transar, mas a única pessoa que eu estava tendo intimidades nos últimos meses era Santiago. Eu já havia até tentado algo a mais no Tinder, mas não deu certo. Ao que parece, eu não era tão moderna assim. O tesão acumulado faz a gente perder o senso das coisas, não é?
Após passar o dia inteiro desassossegada, não hesitei em passar direto pela minha casa e ir até o Forte, em busca do cara que deveria saciar minha vontade. Passei horas trancada no quarto com Gabriel e acabou acontecendo, o ato havia sido consumado. Nós tentamos, ele tentou, eu tentei, de verdade! Porém, agora eu descia a rua até minha casa em passos firmes, completamente enfurecida.
E sem um orgasmo sequer naquela lastimosa noite de segunda-feira.
– Onde você estava? – Mamãe cruzou os braços, me encarando raivosa. Já passava de uma da manhã e eu não ligava, estava estressada demais para me importar se a mulher gritasse comigo.
– Com um amigo. – Respondi, irritada. Esses momentos me lembravam de quando eu morava só e não tinha que dar tantas justificativas. Voltar a morar com os pais após tanto tempo sozinha era, no mínimo, diferente.
– Que amigo? – Questionou.
– Mãe! Hoje não, amanhã você pode cagar na minha cabeça. Só me deixa ir para o meu quarto logo. – Implorei, passando direto pela sala.
– Seu pai pediu a documentação do carro, deixa na mesa quando sair amanhã. – Falou duramente, indo para o seu quarto. Fiz um lanche rápido na cozinha e fui direto para o banheiro.
Quando sai do banho, queria logo dormir, só para não ter que lidar com meu próprio mal humor, mas achei melhor procurar o documento que meu pai pediu. Na manhã seguinte, eles estariam prontos para me escorraçar, eu tinha que aparecer com meu respaldo em mãos.
Estranhei meu quarto vazio, pois Clarissa costumava estar em casa naquele horário, jogada na cama, coberta por papéis e pastas. Peguei meu celular, enviando uma mensagem em busca da minha irmã.
Clari ♥ (01:21): Saí do trabalho muito tarde, perigoso pra voltar só, vou ficar na casa do Adam (:
"Ok, cuidado aí, ele já te engravidou uma vez..."
Recebi apenas um emoji raivoso como resposta, então decidi ir em busca de meus documentos. Abri meu guarda-roupa e comecei a procurar nas caixas de organização que eu tinha, mas que não estavam nada organizadas. Ainda tinham algumas coisas empacotadas desde Hillswood, coisas ali que eu sequer lembrava, uma dessas era uma camisa social azul marinho. Peguei a camisa em minhas mãos sem entender. Forcei minha mente mais um pouco até eu ter a imagem de com aquela camisa.
Talvez ele seja o motivo do meu bloqueio. Querendo ou não, eu passei meses transando apenas com , talvez eu estivesse acostumada, sei lá. Não é possível que seja um deus do sexo a ponto de me deixar incapaz de ter relações com outras pessoas. Talvez a culpa nem fosse dele, talvez a culpa fosse completamente minha por sempre o projetar em minha mente quando estava com qualquer outro cara.
Bom, não custava nada tentar.
Tirei meu roupão felpudo e coloquei a camisa. Fui até o meu espelho grande e soltei meus cabelos, bagunçando-os um pouco. Peguei meu celular, tirei uma foto e procurei pelo número de .
"Queria entender como isso veio parar aqui."
Olhei para sua última visualização e tinha sido a três minutos, assim não demorou para a resposta chegar.
Baby (01:31): eu sabia que estava com você!! procurei por essa camisa como um louco
"Não tem mais seu cheiro 😥"
Baby (01:31): Justo. Se eu não tenho nada seu para agarrar durante a noite, você tb não deveria ter ué! Você tem sorte de ter pelo menos a camisa...
Sentei na beirada da cama, sorrindo. era adorável demais.
Baby (01:32): Já viu a hora?
"Desculpa. Estava dormindo?"
Baby (01:32): Significa que está na hora da minha camisa acidentalmente sumir do seu corpo.
Mordi os lábios, já sentindo todos meus poros dilatarem só com a possibilidade. Fazia tempo que eu e não flertávamos assim, eu sabia que eu tinha ido atrás e provocado, mas agora estava um pouco receosa. Não pelo ato em si, pois eu confiava muito em , mas por não me sentir tão confortável com meu próprio corpo.
"A camisa some se algo aí sumir também", Arrisquei.
Em menos de 2 minutos, uma foto dele deitado com a calça de moletom caindo mais nos seus quadris do que deveria e revelando estar sem roupa de baixo alguma. Revirei os olhos e me joguei de costas na cama. Eu preciso de sexo. Mas não sexo com qualquer um, eu precisava de sexo com . Já com todos os meus sentidos acesos e sentindo muitas coisas lá em baixo, com a mente já prejudicada pelo tesão acumulado desde cedo, sentei em um pufe em frente ao espelho comprido. Diminuí um pouco a luz, deixando apenas um abajur aceso.
Posicionei à beira da camisa estrategicamente para cobrir o centro das pernas, a camisa que ficava grande demais no meu corpo caia pelos meus ombros, deixando meus seios um pouco amostra. Dava para ver que eu estava completamente nua por debaixo da camisa. Posicionei meu celular em frente ao meu rosto e tirei a foto, logo enviando-a, sem pensar muito.
Baby (01:34): Eu acho que não quero mais brincar disso, é maldade demais
"Maldade é tá longe de você agora. Lembra que a gente costuma transar quase todas as segundas?" Relembrei, sorrindo nostálgica. Geralmente, não tinha muito o que fazer nas segundas, então era o nosso dia.
Baby (01:34): Você não faz ideia de que eu daria qualquer coisa pra tá com você agora
Meus lábios já estavam machucados do tanto que eu mordia. Posicionei o celular para tirar outra foto, mas dessa vez não me importei com a parte de cima, deixando meus seios completamente a mostra.
Baby (01:37): Ah não, dormir hoje sem te chupar vai ser um pesadelo!!
E anexado uma foto da protuberância entre as pernas do rapaz.
Quase arfei, jogando minha cabeça para trás, completamente desorientada. Levantei e tranquei a porta do quarto. Em seguida, fui até a janela e dei uma olhada no prédio destruído, me perguntei se Santiago era uma daquelas sombras rondando por ali. Fechei as cortinas, desliguei o abajur, deixando meu quarto num breu total. Retirei a camisa enquanto eu ligava para .
A diferença era quase assustadora.
Quatro horas com Gabriel Santiago enfiando a língua em mim não foram nada perto de 20 minutos de falando sacanagem comigo pelo telefone. Ele recitava as mais deliciosas obscenidades nos meus ouvidos e eu quase não conseguia falar nada de volta, apenas me enrolava em meus lençóis, pressionando minhas pernas contra minhas pernas, meus dedos contra outros lugares.
Gargalhei de satisfação quando consegui chegar lá, conquistando o que eu queria desde cedo. Graças a . Eu posso ter feito tudo sozinha, mas eu sei que não seria tão arrebatador e envolvente se ele não estivesse me conduzindo. Mesmo longe, me causava uma sensação indescritível. E isso me assustava demais, pois mostrava que o meu nível de dependência dele já estava maior do que o previsto.
Apesar de me sentir mais leve e não mais amargurada e indisposta com a minha falta de sexo, não dormi muito bem. Acordei várias vezes durante a noite, sentindo-me irritada e nervosa e eu não sabia o porquê. É estranho demais quando a gente simplesmente sente que algo vai acontecer.
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Julho
O centro comunitário do Jeins era uma das únicas instituições de Springfield que eram ativas e funcionavam bem, talvez fosse o único centro comunitário da cidade que funcionava. O meu primeiro contato com o local fora no meu último ano escolar. Comecei a fazer parte da comissão social, que tratava diretamente dos assuntos "da rua". Na época, eu não dava muita importância. Eu achava que só estava lá por obrigação e o título ficava bonito no meu histórico estudantil. Os responsáveis pelas ações só me mandavam ficar brincando com as crianças e conversar com os adolescentes nos dias de acolhimento. Na época, eu tinha apenas 17 anos e não era dificuldade alguma brincar de bola com as crianças ou conversar com meus antigos amigos.
Hoje em dia, eu entendo o quão importante é esse elo de ligação. Muitas pessoas só iam ao Centro por conta de mim e de outros jovens agentes que estavam por lá. De convite em convite, quase todas as crianças e adolescentes do bairro ficavam no Centro as quintas e sextas.
Surpreendentemente, segui o conselho de Haniel e fui até o Centro Comunitário e eles realmente estavam precisando de pessoas por lá. Assim, voltei a trabalhar na associação no final de junho, quando foram abertas algumas vagas para ajudar na colônia de férias, e desde então, eram incontáveis as vezes em que eu chegara chorando em casa.
Eu sempre soube que era extremamente privilegiada, que em comparação com as pessoas que passavam no Centro e\ou que moravam no mesmo bairro que eu, eu tinha ótimas condições de vida. Mas essas constatações tornavam o trabalho extremamente prejudicial para minha saúde mental, pois ao final do dia, eu era uma pessoa cheia de frustrações.
Eu estava pronta para explodir aquele dia. Estava com a cabeça a mil, tudo que queria era voltar para minha cama após a situação delicada em que me encontrei.
Tudo começou quando uma garota de 15 anos procurou por mim no Centro. Era franzina, parecia indefesa e tinha rosto tão delicado quanto o de uma boneca. Estava grávida de três meses, porém, queria não estar. De início, achei que fosse mais um caso de irresponsabilidade, falta de instruções. Entretanto, infelizmente, não era. Eu nunca estaria pronta para ouvir o que a garota me confidenciou. O feto em seu ventre era fruto de estupro.
Ela chorou, gritou, quase me obrigou fazer alguma coisa tamanha a determinação em mudar sua própria situação. Nunca tinha lidado com algo assim, não tive o treinamento certo para saber o que fazer em tal situação. Quando perguntei quem fizera tal barbaridade, ela contou que o monstro foi o seu próprio tio. Fragmentou meu coração ter que deixá-la ir para casa e tive que assistir a menina pequena voltar ao seu inferno particular.
Quando perguntei a ela porque tinha ido pedir ajuda no Centro, ela respondeu: – Eu estou tentando de tudo, moça.
Então, eu não poderia fazer nada menos do que... tudo. Falei com meus superiores, falei com a polícia e absolutamente ninguém se prontificou a me ajudar. O tal homem era um deputado qualquer, figurão no ramo imobiliário, que enriquecia às custas da população, financiador de todos os projetos locais. O desgraçado era intocável. Voltar para casa foi tão dolorido, que quase não pude conter as lágrimas no caminho.
Eu olhava para os lados e não conseguia ver esperança alguma de onde eu estava. As casas despedaçadas, as pessoas pareciam andar com os ombros caídos. Eu queria ter o poder de mudar tudo, mas o que me fodia a cabeça era o fato de eu não poder fazer absolutamente nada para isso, nem que eu tentasse. Seria eu lutando contra o resto do mundo.
Julieta, a menina que tinha esperanças em tudo, morreu um pouco naquele dia. Agora eu era uma mulher, que tinha visto o rosto feio da injustiça. Se era injusto comigo – aos vinte e quatro – ter visto o lugar feio que vivíamos, era ainda pior para Alana – aos quinze – ter que lidar com toda a maldade do mundo.
Uma chuva torrencial caia enquanto eu corria pela calçada, querendo apenas chegar logo em casa. Ainda era de tarde, mas com a chuva forte, logo já parecia estar de noite. Quando finalmente entrei em casa, eu estava encharcada dos pés à cabeça, meu cabelo pingava e meus tênis pareciam dois blocos de cimento de tão pesados.
– Alguém em casa? – Perguntei alto, mas não obtive respostas. Decidi ir direto para o meu quarto e tranquei a porta, sem me preocupar com Clarissa, já que a mulher havia adicionado mais um lugar para morar em sua lista: a casa de Adam.
Joguei minha bolsa no chão e tirei meus sapatos, arremessando-os para o outro lado do quarto. Meu quarto estava perfeitamente arrumado, a janela estava fechada, deixando o interior do espaço ainda mais escuro. O barulho da chuva costumava me trazer calmaria, agora parecia aumentar minha tormenta. Estanquei no meio do quarto, sem saber o que fazer em seguida. A angústia veio como um jato, rápido e forte. E chorei. Chorei alto, feio, até gritei, irritada com meu próprio descontrole. Sentei-me no chão, procurando meu celular na bolsa.
Eu não podia ficar só naquele momento, não devia. Iria surtar, eu tinha certeza. O problema era que as segundas-feiras eram o dia que eu menos via a minha família, era o dia mais ocupado para todos, exceto para mim, que não tinha aula, apenas monitoria pela noite.
Pensei em ligar para minha mãe, mas ela sairia do trabalho imediatamente ao ouvir a primeira falha em minha voz. Decidi ligar para Dana, mas sem sucesso, apenas tocou várias vezes. Tentei ligar mais duas vezes, mas ela não atendeu novamente. Deitei no chão, sentindo uma poça formar-se embaixo de mim. Eu havia levado toda a chuva para dentro do quarto. O próximo número que procurei foi o de na minha lista e não hesitei em ligar. Infelizmente, foi direto para a caixa postal.
– Oi, é a Julie. Eu... – Achei que eu não queria falar nada, até eu começar a falar e perceber que eu tinha muito a dizer. – Uma garota me pediu ajuda hoje e eu não pude fazer nada. Quem deveria lutar comigo não está comigo de verdade. Eu sempre soube o que queria fazer da minha vida, agora nem um dos meus planos parece o suficiente para suprir minha vontade de salvar o mundo. E talvez eu não esteja fazendo sentido, mas eu desabei no choro quando tive que desistir e dizer não para aquela menina e ela... Ah! Poderia ser eu, . Eu sei que eu só estou lotando sua caixa de mensagens e sua paciência, mas eu precisava falar, precisava expulsar tudo isso que está dentro de mim. E tinha que ser você... Desculpa te incomodar.
Permaneci deitada no chão após desligar o celular, reavaliando toda a minha vida. O choro causou-me uma forte dor de cabeça. Retirei minhas roupas molhadas e ficando apenas de calcinha, me entreguei ao sono, desfalecendo por conta do extremo cansaço, que eu suspeitava não ser físico. Precisava deixar todos os meus arrependimentos para o amanhã, pois por agora, eu só precisava fugir do mundo.
Quando despertei, estava completamente desorientada. O meu quarto ainda estava completamente escuro, eu não sabia que horas eram e eu tinha a impressão de que havia dormido tanto que já haviam se passado dias. Estiquei o braço para abrir as persianas e ver que o sol estava nascendo. O nascer do sol estava tão incrível que nem parecia que um temporal tinha caído horas atrás. Um breve sorriso surgiu em meu rosto, sem motivo algum.
Eu estava com o corpo todo dolorido. Sentia o meu rosto inchado e meu cabelo estava armado e cheio de cachos já que eu realmente não me importei em secá-lo antes de deitar. Busquei pelo meu celular e surpreendi-me com o número de ligações. Cinco ligações de meus pais, cinco ligações de Dana e sete de . Abri minhas mensagens e o dia – que já estava extraordinário – ficou ainda mais quando eu li a única mensagem de .
Baby (04:19): Eu sei que você sempre se frustra quando as coisas não funcionam do jeito que deveria ser, mas está tudo bem perder a cabeça às vezes, está tudo bem desistir! Você não precisa carregar o mundo inteiro nas costas, meu amor. Existem lutas que são feitas para serem perdidas. Mas acredite, se existisse alguém que pudesse salvar esse mundo fodido, esse alguém seria você, Julieta Young.
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A capacidade de criação e a criatividade de um estudante na hora de responder as questões de uma prova discursiva deveria ser estudado pelos cientistas. Às vezes, as coisas descritas eram tão absurdas, que eu preferiria que a pessoa nem tivesse tentado. Entretanto, há vezes em que a pessoa protela tanto a resposta, que incrivelmente acaba dando certo e a pergunta é respondida corretamente.
Eu procurei por modos de preencher os meus dias, me ocupar com novas atividades de tempos em tempo, então tornei-me monitora da faculdade. A diferença da universidade de Hillswood é que em Springfield eu era obrigada a passar provas para os alunos quinzenalmente. Eu amei, pois fazia tempo que eu não me empolgava e realmente me sentia à vontade em um serviço. Eu tinha alunos maravilhosos! Os calouros já tinham até pedido para que eu assumisse a monitoria de outras matérias e eu só não aceitava por não querer tirar o lugar de ninguém.
Desviei a atenção da dúzia de provas em minha frente quando uma notificação surgiu na tela do meu celular. Estranhei, pois eu não costumava receber mensagens durante a madrugada. Pelo menos, não em Springfield, onde minha vida social era quase inexistente.
Santiago (01:35): Desce aqui no forte.
Respondi com um simples emoji, sem dar muita atenção a mensagem. Não era a primeira vez que Gabriel me convidava a sua casa nas altas horas. Franzi o cenho quando duas mensagens chegaram em seguida.
Santiago (01:35): Sunny foi te buscar.
Minhas mãos tremeram de leve. Havia algo de muito errado. Santiago nunca falava sério comigo, nem mandava mensagem e nunca tinha pedido para Sun ir me buscar. Tirei o short do pijama e coloquei um jeans, peguei um casaco verde grande de Pat que estava jogado sobre minha cômoda apenas para vestir por cima da blusa do pijama. Levei os tênis na mão enquanto ia de fininho até a porta da frente. As luzes já estavam todas apagadas e a única pessoa que estaria acordada seria Pat, mas ele estava na casa de um amigo pelo final de semana inteiro.
Também não era minha primeira vez fugindo para o Forte durante madrugada.
– O que houve? – Questionei, curiosa e assustada assim que enxerguei Sun encostado no portão da minha casa.
– Eu também não sei, ele só me mandou vir até aqui. – Respondeu vagamente, entrelaçando o braço no meu.
Diversas histórias do que iria acontecer quando eu chegasse ao local surgiram em minha mente. 15 formas diferenciadas da minha própria morte.
Não havia absolutamente ninguém na rua, coisa incomum para um sábado. Isso acabou me deixando mais paranoica. Chegamos à casa comprida de Santiago, local que havia mais compartimentos do que eu tinha conhecimento. Um dia, descobri que o local comportava várias salas subterrâneas e o mesmo dizia que só dormia realmente tranquilo em um quarto que ficava escondido por lá. Ninguém sabia onde Santiago dormia. Acho que eu nunca tinha visto-o dormir, na verdade. Deve ser o certo a se fazer se você tem pendências e inimigos por todos os lados.
Santiago levantou do sofá assim que coloquei os pés na pequena sala. Fez um sinal para Sun deixar o local e eu quase não soltei o braço do oriental ao meu lado. É agora que ele vai me matar e esconder meu corpo em um dos quartos subterrâneos?
– Julieta, não surta.
Soube então, que nada seria feito comigo.
– O que você fez? – Indaguei, mordiscando meus lábios. – Você me chamou aqui para tentar transar comigo? Se foi, saiba que não vai rolar. – Interrompi seu discurso e ele zombeteou.
– Você precisa ir lá embaixo comigo. – Emitiu, firme.
Dei sorte de estar com a bexiga vazia, pois se não estivesse, eu tenho certeza de que tinha mijado de nervoso ali mesmo. Eu vim o caminho inteiro pensando nos quartos subterrâneos e não é que era isso mesmo? Eu odiava ter começado a me envolver de forma errada com eles, eu sabia que ainda dar problemas para mim, mas a atmosfera perigosa e intensa me deixava curiosa. Eu ficava magnetizada quando acabava comprometida com coisas erradas.
Desci as escadas de madeira sendo seguida por Santiago o tempo todo. Cheguei a um corredor escuro com algumas portas espalhadas e perguntei para onde devia ir. Percebi que eu estava realmente caminhando para o desconhecido sem resistência alguma e se eu morresse, ninguém saberia. Gabriel apontou para a direita e eu respirei fundo ao parar na frente da porta de madeira. O homem riu do meu aparente nervosismo.
Abri a porta e dei de cara com o corpo de um homem jogado no chão de um quarto bem pequeno. Meus olhos arregalaram-se e eu comecei a suar frio imediatamente. Não, eu não podia estar testemunhando um assassinato. Eu não via seu rosto, ele estava de costas para mim e havia alguns móveis quebrados. Eu sabia que seria presa algum dia, mas eu sempre esperei que fosse por ativismo político, não testemunha de um crime. Ou cúmplice.
Foi o lugar mais feio e sinistro que eu já entrei e seria extremamente difícil esquecer o frio, o odor, todo o sangue em volta do corpo abatido no piso sujo.
A minha mão, que sequer abandonou a maçaneta, puxou a porta novamente, batendo-a com força. Corri de volta em direção a escada, mas Santiago segurou-me pelos braços, me levando até o quarto que costumávamos ficar no andar superior. Eu achei que ele iria puxar uma arma, me bater até eu ficar no mesmo lugar que aquele homem, mas ele apenas sorriu para mim. Gabriel Santiago sorriu para mim como nunca tinha sorrido. E nem era um sorriso sinistro ou maldoso, era apenas... Um sorriso normal.
– Quem é aquele? O pobre homem está coberto em sangue, Santiago! O que você fez? – Esgoelei-me, sentindo minha garganta arranhar.
Não era a primeira pessoa ensanguentada que eu via na vida. Os índices de violência no Jeins eram grandes o suficiente para que eu já tivesse presenciado algumas coisas. Mas saber que, provavelmente, eu era a única que sabia daquilo, me deixou temerosa.
– "Pobre homem". – Bufou, soltando meus braços e encostando-se na parede oposta. – Ele teve sorte, não está nem morto!
– Por que você faria algo assim? – Esfreguei meu rosto com força. Isso não pode ser real, eu realmente tinha visto a cena de um crime?!
Eu deveria ter escutado Cameron e Jack quando me avisaram para ficar longe de confusão.
– Ouvi dizer que ele estuprou a própria sobrinha...
Antes que eu pudesse ter qualquer reação com a revelação do rapaz, o som de um tiro reverberou pelo local e eu solucei de susto, olhando para trás. Eu e Santiago nos entreolhamos. O meu olhar desesperado não parecia nada com o dele, que estava exalando firmeza.
Esse não é meu mundo. Aquele cara sangrando em minha frente não fazia parte do meu mundo. Eu não devia estar aqui. Hillswood podia até não ser o meu lar, mas o Jeins também não era. Eu não queria estar vivendo isso. Eu não estou em casa. Eu não achava que ainda tinha lágrimas, mas comecei a chorar desesperadamente pela segunda vez em menos de uma semana.
– Gabriel, o que você fez, porra?! – Quase gritei, correndo em direção contrária ao rapaz corpulento. – Eu te contei só porque... Eu estava triste, precisava desabafar. Eu não queri....
– Eu não fiz isso por você, Julieta. – Interrompeu, observando-me andar livremente pelo quarto. – Eu nem sequer fiz isso. Comentei com alguns caras e eles fizeram o resto. Não sei se você notou, mas eu ainda não tenho como estar em dois lugares ao mesmo tempo. Eu não puxei aquele gatilho. – Debochou.
– Isso não pode estar acontecendo! – Lastimei, desesperada. Sentei no divã marrom e enfiei minha cabeça entre as mãos, ainda chorando. Meu corpo inteiro tremia, a adrenalina em minhas veias fazia tudo dentro de mim pulsar. – Não comigo...
– Para de chorar! É a porra de um psicopata ali em baixo! – Seu grito fez-me saltar no lugar por conta do susto e da agressividade. – É um monstro, Julieta! A garota, a pequena, está no hospital, sabia? Ele já bateu na mulher, vai saber quantas ele estuprou e você aqui chorando como se ele fosse seu parente ou o cara mais bonzinho do mundo.
– É uma pessoa. – Meu tom de voz diminuiu quando me peguei confusa. Meus princípios de vida dançavam em minha mente e eu não sabia como lidar com minhas concepções, que até aquele momento, eram bem estabelecidas. Sim, era uma pessoa, mas também era um criminoso. E mais uma vez, fui levada aos grandes questionamentos da sociedade.
– O cara era um monstro, Julie. Nada que você faça ou fale vai fazer eu me arrepender do que fiz.
– Você tem noção do que acabou de fazer comigo? Você não tinha o menor direito! – Expressei, minha indignação. – Você me trouxe para a cena de um crime, Gabriel! Você violou completamente o meu livre arbítrio. Eu não pedi por isso! – Ele aconchegou-se contra a cabeceira do divã. Continuei no mesmo lugar, apoiada com meus cotovelos sobre o joelho. – Por que você me fez ver isso?
– Semana passada você disse que não entendia. Você me perguntou o porquê, lembra? Eu acho que... – Suspirou antes de continuar. Pensativo, como se estivesse organizando as palavras em sua mente. – Talvez eu só quisesse te provar que toda história tem diversos lados, que cada caso é um caso. Nem sempre são caras maus, e às vezes, um inocente pode acabar morrendo. Mas você precisa entender que esse é o meu mundo, Julieta. E diferente do que todo mundo pensa, não é tão distante assim do seu. – Deu de ombros, estendendo a mão em minha direção. Eu escutava e absorvia cada palavra dele como se eu estivesse em uma palestra.
– Os caras maldosos sempre vão existir, mas nem sempre é vilão quem puxa o gatilho. – Respirou fundo antes de continuar. – Eu nunca machuquei ninguém. Fatalmente, eu quero dizer. Mas já estive envolvido em situações piores do que a de hoje. Estou até o pescoço de histórias feias, assuntos mal resolvidos e perdas inigualáveis. Para você, hoje foi o pior dia. Para mim, uma vitória.
Imediatamente, Santiago tornou-se um mistério para mim, outra vez. O rapaz, que eu descobrir ser três anos mais novo que eu, acabou de assumir que nunca tinha matado ninguém. E pensando bem, eu nunca tinha visto-o em situações arriscadas demais. Era como se existisse um parlamento e Gabriel fosse a rainha, estava ali apenas para fins midiáticos, era a imagem à frente de todos. Porém, diferente da rainha, eu sabia que a decisão final – de qualquer coisa – era dele.
Perguntei-me o que o rapaz tinha feito para merecer um cargo tão exclusivo, árduo e surpreendente.
Eu ainda estava indecisa no que pensar sobre o que tinha acontecido a pouco. Sentia-me zonza por conta da grande quantidade de informações que meu cérebro registrou. Eu ainda achava errado a aplicação da "lei da rua e do mais forte", mas ao mesmo tempo, eu não conseguia parar de pensar que Alana, a menina que tinha clamado por ajuda, finalmente ia viver em paz, na medida do possível.
Eu, que sempre fui tão ciente dos meus próprios fundamentos e opiniões, estava ali, beirando a escolha de não me importar nenhum pouco com o falecido homem a dois andares abaixo de nós. Eu não podia me tornar essa pessoa. A morte não podia tornar-se banal para mim, apesar de que agora, eu já me sentia uma pessoa completamente diferente do que eu era.
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Voltar à normalidade após tudo o que tinha acontecido não fora nenhum pouco fácil.
Foram dias em que eu passei quieta demais, calada, sempre perdida em meus próprios pensamentos. As imagens daquela noite passavam em minha mente por horas a fio. Tive pesadelos intensos por três noites seguidas, passei a implorar para Clarissa dormir comigo e Pat também em algumas noites. Eu tinha histórico com ansiedade, então nenhum quis saber de mais detalhes sobre minhas inseguranças e simplesmente cediam as minhas vontades.
Ignorei todas as ligações e mensagens dos meus amigos, simplesmente porque não me sentia digna de falar com alguém.
Quando ignorei a décima sexta ligação de Dizzy, ela me mandou uma mensagem de texto enorme, que basicamente dizia que se eu ignorasse mais uma ligação dela, ela compraria uma passagem para Springfield no dia seguinte. Tive que explicar a ela o que estava acontecendo comigo, mas sem contar detalhes de tudo o que eu vi. Eu não a queria sabendo de toda a sujeira do Jeins. Nem podia compartilhar, afinal, um crime fora cometido. Até que eu percebi que estava tão lotada de sentimentos, que precisei desabafar.
Então, abri meu bloco de notas e escrevi. Passei dias e dias escrevendo e quando terminei, eu tinha em mãos um ótimo material. E foi assim que eu saí da minha bolha de reclusão, fazendo o que eu sabia fazer melhor: Estudar.
Decidi transformar tudo o que eu tinha escrito em um artigo científico documental. Lá, falei sobre o Jeins. Apresentei pontos de análises e expliquei a dinâmica territorial, as controvérsias urbanas. Também falei sobre readaptação a comunidade e principalmente, sobre a sociedade deturpada que me fora apresentada nos dias que voltei. Nos agradecimentos, o primeiro nome que citei fora o de Santiago. Ele não sabia que me ensinava tanto, não encontraria em nenhum livro explicações e exemplos vivos tão bons quanto os que ele me oferecia constantemente.
– Vai passar a manhã inteira encarando essa tela? – Santiago esbravejou. O rapaz sentado ao meu lado já perdia a paciência com a minha demora.
– Você não devia nem estar aqui! – Rolei os olhos, estendendo a xícara em sua direção. Já fazia alguns minutos que nós estávamos sentados naquela lanchonete e desde que cheguei, não conseguia desviar o olhar da tela do celular. – Vai pegar mais café para mim, vai!
O rapaz, que estava jogado na poltrona ao meu lado, olhou-me entediado. Santiago me viu saindo de casa pela manhã e me seguiu durante o caminho inteiro, falando sem parar atrás de mim. Eu vinha percebendo que ele estava sempre me acompanhando ultimamente. Sempre tentando me fazer rir e me oferecendo as mais variadas distrações. Talvez ele se sentisse culpado por ter me exposto ao seu mundo sem meu consentimento. Ele deve ter se penalizado com meu estado de negação após todos os acontecimentos.
– Eu não sou seu empregado, garota! – Bufou, bebericando um pouco da cerveja. 9h da manhã e o cara já estava no segundo copo. – Me explica o que é isso, afinal?
– Eu queria enviar esse artigo para um congresso que vai acontecer em Madri. Eles estão oferecendo todos os custos pagos para ir apresentar, mas só se o artigo for o melhor pontuado. – Expliquei. Olhava apreensiva para a tela do celular. Tudo já havia sido revisado várias, tudo o que eu precisava fazer era tocar no botão de enviar.
– Queria? Não quer mais? – Questionou, parecendo genuinamente interessado. Respirei fundo e sem pensar muito, toquei na tela do celular rapidamente. Levantei a cabeça, olhando-o. Ele sorriu de lado e desviou o olhar. – Enfim... Quando você se forma? – Perguntou, bebericando um pouco do conteúdo no copo.
– Mês que vem. Acho que essa semana os convites chegam. – Ele acabou ficando calado por alguns segundos e eu apenas observei sua expressão pensativa, já imaginando qual era sua aflição. – O que houve? Não precisa usar terno, mas usar uma camisa social por uma noite não vai te matar.
– Do que você está falando? – Questionou, franzindo o cenho.
– Eu já confirmei seu nome na lista, Gabriel. Você vai nem que eu amarre você no teto do carro! – Resmunguei, esticando os braços, sentindo meus músculos reclamarem após tanto tempo na mesma posição. Olhei em volta, vendo o clima nublado cobrir o local. O aquecimento global estava realmente enlouquecendo o clima. Voltei a olhá-lo e o rapaz olhava-me com uma expressão indecifrável. – O que foi agora, Santiago?
– Nada, eu não achei que fosse ser convidado... – Enunciou, pensativo. Sorri ao perceber sua insegurança com nossa amizade.
Eu não pensei duas vezes em colocar o nome de Santiago, Sun e Max na minha lista de convidados. Eram meus amigos de infância, não tinha porquê não os colocar. Claro que meus pais reclamaram um pouco, mas nada que um discurso meu sobre inclusão social não resolvesse. Minha mãe, inclusive, ficou desconfiadíssima e me fez várias perguntas sobre minha antiga nova amizade com Santiago.
– Somos amigos, ué. Não somos? – Questionei, mas ele apenas de ombros e levantou para pagar a conta. Puxei minha mochila para pôr no ombro, enquanto eu o seguia. – Mesmo que você seja um completo idiota e me exponha a coisas desnecessárias, somos amigos.
– Poderia ser pior. – Ponderou quando voltou do caixa e parou ao meu lado. – Eu nunca obriguei você a nada.
– Não, apenas me obrigou a ser testemunha de um crime! – Exclamei, irritada.
– Poderia ser pior. – Deu de ombros, novamente.
– Como?!
– Eu poderia ter obrigado você a cometer o crime. – Retrucou, tranquilamente, abrindo a porta da lanchonete, deixando-me passar na frente. Meu corpo inteiro arrepiou-se quando ele completou: - Não seria a primeira vez que faria isso.
Caminhamos até o ponto de ônibus lado a lado, sem falar nada. Não éramos confidentes, não tínhamos uma amizade invejável. Mas tudo o que eu aprendi com Santiago sobre resiliência e sobrevivência, eu só poderia ter aprendido com ele. Confiava nele, de verdade. Eu sabia que o cara faria mal a si mesmo antes de fazer a mim.
– Gabriel? – Chamei e ele olhou-me de lado. Não consegui esconder o sorriso ao notar que ele já aceitava que eu o chamasse pelo nome de batismo. – E se alguém me viu na rua enquanto eu ia para lá? – Indaguei. Não precisei explicar muito, ambos sabíamos que eu estava falando daquele dia.
– Você vai quase sempre, Julieta. Se fosse para alguém comentar algo, já teria acontecido. – Tudo bem que até hoje os vizinhos fofoqueiros tinham feito um péssimo trabalho e meus pais ainda não haviam descoberto minhas escapadas para o outro lado do bairro, mas ainda assim, esse era um assunto que ainda me tirava o sono. – Aconteça o que acontecer, ninguém nunca vai desconfiar de você. E além do mais, você foi obrigada, certo?
Fiquei em silêncio, pensativa. Se algo desse errado, eu seria a menos prejudicada. Uma gangue inteira teria que cair antes da merda chegar a mim. Eu sabia que toda a preocupação era apenas fruto de minhas neuroses porque no fundo, sabia que eu não era a primeira, nem seria a última pessoa do Jeins a ser testemunha ocular de um crime.
Santiago percebeu que eu estava começando a pirar de novo, então, surpreendentemente passou um braço em volta dos meus ombros, apertando-me de leve.
– Julie? – Chamou-me pelo apelido que raramente usava. – Acredite ou não, se um de nós for preso, acredito que será eu.
Consegui gargalhar com sua piada boba. Entrelacei meus braços em sua cintura, abraçando-o. Sorri ao sentir os braços dele ainda em volta de mim. Se a algum tempo atrás me falassem que eu estaria abraçada em um ponto de ônibus com Santiago, líder da gangue do Jeins, eu definitivamente acreditaria, pois esse era exatamente o tipo de virada que minha vida costumava dar.
Sabe quando uma criança faz birra em algum lugar público quando os pais negam algo? Sabe aquele choro irritante, sentido e sonoro que chega aos nossos ouvidos após a criança se jogar no chão? Pois é, era assim que eu estava chorando.
Toni Hall (16:20): Eu estou puto.
Toni Hall (16:20): Completamente puto!!!!
Toni Hall (16:21): E chorando.
Anabela (16:21): Amiga, Toni está chorando e me fazendo chorar 😭
"Não!!!!!!"
Toni Hall (16:21): droga Julie, era para esse dia ser nosso!
Anabela (16:22): maaaaas, sabemos que a culpa não é sua e estamos muito felizes por você
Anabela (16:23): NÃO É, ANTHONY?
Toni Hall (16:24): É......
Toni Hall (16:24): Eu só tinha esse sonho de que na nossa formatura nós entraríamos de mãos dadas, e vibraríamos ao ouvir o nome um do outro ser chamado no palco. E quando tudo acabasse, a gente ia acabar extremamente chapado na festa e sair correndo por algum motivo, pq você sabe, trago emoção para sua vida
Anabela (16:27): PORRA, TONI!!!! 🤬
Faltavam poucas horas para minha formatura e eu não parava de chorar. Não de emoção pela chegada do momento, mas sim porque tudo o que eu mais queria nesse mundo era me formar com meus amigos.
– Julie, estou ficando preocupada! – Clarissa exprimiu, aflita. Massageava minhas costas, tentando obter algum sucesso em acalmar meu choro sofrido.
– E-eu vou p-parar. C-calma! – Tentei me recompor, apertando minhas mãos contra o meu rosto, como se isso fosse capaz de impedir as lágrimas de caírem.
Senti meu celular tremer em minhas mãos, notificando uma chamada de vídeo de Bela, fiz um biquinho, temendo atender. Mas ela não pararia até me ver, então deslizei o dedo pelo ícone verde e aceitei a chamada.
– Eu sabia que você tinha parado de responder por estar chorando! – Exclamou, revelando sua intuição certeira. Bela virou-se, irritada, lançando várias tapas em um ombro masculino, que eu sabia que pertencia a meu grande amigo, Toni. – A culpa é toda sua!
– Desculpa! Eu estou muito feliz que você vai se formar, Julie! – Assegurou, limpando o rosto com as mãos, como se também estivesse chorando. – Só é triste porque, bom... Não estamos juntos!
Eu me formaria meses antes da minha turma de HW, pois eu consegui adiantar muitas coisas, creditei algumas matérias, então acabei conseguindo finalizar tudo antes do previsto. Seria terrível porque eu não conhecia absolutamente ninguém da turma em que eu me formaria, mas eu não ligava, não via a hora de me livrar de uma vez por todas da faculdade. Bom, eu achei que não ligava, até lembrar que, até o ano passado, o combinado era me formar com meus amigos.
– Está tudo certo, meu bem. Eu também estou bastante triste... – Confessei, fazendo um biquinho e logo senti as lágrimas inundando meus olhos novamente. – E morrendo de saudades!
– Ok! Acho que está na hora de se despedir e dar um jeito nessa maquiagem. – Clarissa veio ao meu resgate novamente, fazendo sinal para meus amigos desligarem ou eu não iria parar de me debulhar em lágrimas.
– Tudo bem, nós já vamos. Só quero dizer que... – Bela assentiu, assustada com o olhar ameaçador de Clari. – Mesmo que as coisas não estejam saindo como o planejado, nós estamos muito felizes por você, Julie. Mesmo longe, é como se estivéssemos formando juntos. Quando estiver lá em cima do palco, pegando seu merecido diploma, nos imagine do seu lado!
Senti a emoção me contagiar completamente e, outra vez, chorei. Agradeci várias vezes, disse que os amava imensamente e continuei chorando após notar os olhos de Bela cheios de lágrimas. Bloqueei o celular, me recusando a abrir a mensagem de Cam, pois eu já estava farta de chorar. Eu estava me formando, finalmente!
– Ok, vamos lá! – Limpei novamente os cantos dos meus olhos e peguei o delineador, decidida a dar continuidade a maquiagem.
– Eu posso fazer para você. – Clarissa ofereceu ajuda ao notar que eu não tinha o menor jeito ao lidar com o objeto.
– Você nem devia estar aqui, Clari! – Reclamei, levando a mulher pelo braço até a poltrona que Adam havia comprado e colocado no nosso quarto.
Clarissa estava beirando os oito meses de gestação e estava naquela fase impaciente e nervosa da maternidade. A mulher não aguentava mais a gravidez, os quilos a mais, o cuidado excessivo de todo mundo, mas também não estava pronta para o nascimento do bebê – que ainda não sabíamos o sexo, pois eles queriam surpresa –, pois isso implicava no recente pesadelo de Clarissa: ser mãe.
– Eu estou bem. Preciso andar, me mexer! – Resmungou, passando a mão pela barriga imensa e bufando irritada. – Sinto que se eu sentar, nunca mais levantarei.
– Eu costumava pensar o mesmo de ... – Comentei, alheia, olhando-me no espelho e arrumando meus cabelos. Refleti e recordei de nossa última aventura telefônica. – Ainda penso.
– Que nojo, você é ridícula! – Xingou ao notar que eu havia distorcido suas palavras para uma conotação mais sexual. Gargalhei, voltando a mexer nas maquiagens espalhadas em minha cama.
– O que eu faço agora? Base ou corretivo? – Questionei, mexendo nos tubos de diferentes tamanhos e coloração.
– Julieta, essa pergunta só demonstra que você não devia estar fazendo sua própria maquiagem! – Reclamou, rindo. – São nesses momentos que Dizzy faz falta por aqui. Ela iria te convencer a aceitar a maquiadora profissional que eu contratei para você. – Fiz um biquinho tristonho a menção de minha melhor amiga, que não poderia comparecer a minha formatura por motivos profissionais e financeiros, visto que agora ela era proletária e deserdada. – Desculpa, eu não vou mais mencionar nenhum amigo seu.
Clarissa começou a tentar dar um jeito na minha pele manchada de base e lágrimas e após alguns minutos de indecisão sobre qual batom combinaria melhor com o vestido rosê curto e rendado, eu finalmente estava pronta.
Visualizei-me no espelho pela última vez antes de sair do quarto e me unir as pessoas que faziam um barulho infernal na sala da residência da família Young. Meu cabelo estava solto e, diferente do normal, caía extremamente liso pelas minhas costas. O comprimento – que quase chegava ao meu traseiro – e a nova coloração acobreada me deixaram extremamente satisfeita com o resultado. Minhas mãos trêmulas seguravam a beca e o capelo que eu usaria daqui a uma hora.
Após muitos anos de enrolação, crises de ansiedade, um acidente de carro, muitos atrasos e duas universidades diferentes, eu iria me formar!
– Por que vocês estão todos gritando? – Perguntei assim que pisei na sala, indignada com tanto barulho. Todos começaram a falar ao mesmo tempo quando me viram e eu gargalhei, animada. Minha mãe veio até mim, com os olhos marejados. – Sem chorar, vovó. Foi difícil chegar nesse resultado.
– Eu já disse o quanto estou orgulhosa? – Perguntou, sem controlar as lágrimas.
– Sim, mamãe. Você falou dez vezes ontem e hoje! – Dei risada apenas para tentar controlar a emoção. – Eu agradeço demais.
– Você está deslumbrante, filhote! – Meu pai se aproximou, me dando um rápido beijo na testa. Patrick estava sentado no sofá, jogando videogame com Max e Sun. Clari estava conversando com meus avós e Santiago, bom...
– Sra. Young, eu não sei mais onde colocar tanta caixa de cerveja! – O rapaz reclamou com minha mãe. Santiago estava muito elegante. Eu achei que ele fosse me provocar e vir vestido de qualquer forma, mas eu até quis beijá-lo quando o vi de trajes sociais.
Eu não teria festa de formatura, mas meus pais insistiram em fazer pelo menos uma reunião em casa para alguns amigos e familiares após a cerimônia de solenidade. O problema é que eles disseram que seria uma "reuniãozinha", mas Santiago já havia carregado a 13° caixa de cerveja para a cozinha.
– Tudo bem, querido. Você checou os bolinhos? – Minha mãe perguntou sem olhá-lo, atenta demais em alisar a parte de baixo do meu vestido, procurando por algum defeito.
– Por que você está fazendo o garoto de empregado, mulher? – Meu pai questionou. Ele gostava de Santiago desde quando brincávamos na rua quando crianças, ele era o preferido dele. Achava-o uma pessoa engraçada.
Eu não entendo a definição de "engraçado" do meu pai.
– Por que ele é o único aqui que tem músculos e entende de bolos! – Respondeu, agachada no chão, verificando as tiras da minha sandália de salto alto.
– Você entende de bolo? – Estranhei, segurei o riso ao ver o rapaz abrir e fechar a boca sem saber o que responder.
– Ela é péssima com segredos, Gabriel. – Meu pai deu dois tapinhas no ombro dele e se afastou. Eu gargalhei com a revelação do tal segredo. Santiago gostava de fazer bolo, quem diria? Puxei minha mãe do chão e a obriguei a ir até a cozinha ajudar Santiago, que parecia perdido.
– Julie! Encomenda para você! – Clarissa, que mexia no celular, chamou minha atenção, apontando para o centro de mesa de jantar. Assenti e fui em direção a mesa.
– Pessoal, vamos sair em 10 minutos! – Apressei a todos, eu não queria chegar atrasada a uma formatura que todo mundo poderia me julgar.
Fui até a mesa, havia um belo arranjo de flores no centro da mesa e uma caixa ao lado. Peguei o cartão preso entre as flores e sorri abertamente ao ler. conseguia balançar meu coração e me deixar inquieta a quilômetros de distância.
"Feliz formatura, baby! Espero que você tenha um dia inesquecível e incrível, você merece o mundo ❤️ ."
Ao lado, havia apenas uma caixa vazia com uma foto colada ao fundo, onde mostrava Dizzy, Cam e com feições engraçadas segurando uma placa que dizia "Pedimos perdão pelo presente, não conseguimos evitar." Franzi o cenho e remexi a caixa procurando algo a mais, sem entender a frase na foto.
– Acho que você deve estar procurando por isso. – Arregalei os olhos ao ouvir a voz conhecida vir por trás de mim. Quando me virei, meu coração quase saiu pela boca quando encontrei Jack, de terno e gravata e com uma garrafa de uísque nas mãos. – Desculpe a demora, eu ainda não sei muito bem onde vendem bebidas baratas aqui em Springfield.
Minha cara de choque devia estar impagável, pois eu não conseguia acreditar que o DJ estava ali. Não consegui controlar minha garganta que emitiu um sonoro grito de animação ao rever meu grande amigo.
– Seu... – Corri até ele, jogando-me em seus braços, recebendo um abraço apertado. Ouvi algumas palmas, várias risadas e flashes em nossa direção. – Idiota! É isso que você é! Você disse que ia trabalhar! – Reclamei, deferindo tapas em seu braço.
– E desde quando eu trabalho, Julieta?! – Questionou, defendendo-se da minha agressão.
– Jack! – Exclamei, animada, como se eu estivesse vendo-o pela primeira vez e voltei para seus braços, depositando vários beijos em seu rosto.
– Você acha mesmo que não mandariam, pelo menos, um representante de HW para a sua formatura? – Brincou, abraçando-me e me tirando do chão. Afastei-me, pousando minhas mãos em seu rosto e respirando fundo, emocionada ao ver um rosto familiar após tantos meses longe do meu lugar de felicidade.
– Por favor, não chora, a maquiagem ainda nem fixou direito! – O clamor de Clarissa me fez rir e quebrou a atmosfera emocionada que estava nos atingindo.
Logo, comecei a fazer vários questionamentos, que Jack prontamente me respondeu. Ele contou que não tinha dinheiro para a viagem, mas ao descobrirem que nenhum dos nossos amigos conseguiriam ir a minha formatura, eles juntaram dinheiro e compraram a passagem de ida para a única pessoa que não tinha compromissos ou um emprego.
A passagem de volta ficou por conta de – adivinhem só? – Adam! Esse cara estava tentando ganhar pontos comigo e estava conseguindo. Adam acabou "contratando" Jack como DJ e a hospedagem ficou por conta dos meus pais, que receberiam Jack de braços abertos.
Enviei a foto minha e de Jack abraçados no grupo de mensagens que tínhamos juntos, dizendo "Entrega feita com sucesso! Queria vocês aqui ):".
Logo várias mensagens começaram a chegar em seguida, a maioria eram Gifs animados e coisas desconexas, elogiando meu cabelo liso e dizendo o quanto eu estava bonita. Gargalhei com , que mandou uma foto de si mesmo jogado no chão, fingindo estar passando mal.
– Você está atrasada! – Jack informou, olhando no relógio. – E aí? Pronta para se tornar, definitivamente, uma jornalista? – Perguntou, batendo as mãos. Respirei fundo, assentindo nervosamente.
Logo, minha mãe começou a apressar e enxotar todas as pessoas de dentro da casa. Meus pais, meus avós e Clarissa foram de táxi até o local da cerimônia e eu fui com Jack, Sun, Pat e Santiago em um carro de procedência duvidosa.
Fui o caminho inteiro me dividindo entre rir das brincadeiras pesadas dos rapazes – que firmaram uma estranha amizade – dentro do carro, passar mal de nervoso e acalmar Dana no telefone, que chorava de verdade, se culpando por não estar no dia da minha formatura.
Cheguei no grande salão me sentindo completamente nervosa e excluída pois não conhecia ninguém da turma em que eu me formaria, porém, me senti mais tranquila quando descobri que havia uns dois ou três alunos que também estavam se formando avulsamente.
Em alguns momentos do discurso da oradora da turma, eu não vou negar que me emocionei, pois Toni seria o orador da minha turma em HW e eu daria tudo para ver o discurso dele.
Eu batia os pés no chão ansiosamente, querendo rasgar cada pedaço daquela beca, não ligando nada para a fala forçada do reitor, eu apenas ansiava pelo grande momento. Quando meu nome foi chamado pelo reitor e eu tive que subir ao palco, nada passou pela minha mente a não ser o fato de que eu precisava me equilibrar naqueles saltos e sorrir. Quando peguei o canudo em mãos, tudo passou em minha mente como em um rápido filme. O processo da minha graduação, minhas longas jornadas de estudos, minha responsabilidade e sacrifícios que tive que fazer ao ir morar em outro estado sozinha aos 20 anos em busca de educação e qualidade de vida.
Meus olhos encheram-se de lágrimas quando procurei pela minha família na plateia e eram os mais barulhentos do local. Gritavam e se abraçavam como se estivesse comemorando um gol da vitória na copa do mundo. Santiago fingia dar tiros com os dedos indicadores apontados para cima, me fazendo gargalhar com a mordacidade do meu amigo.
Ao final da cerimônia, fui recebida com abraços e gritos calorosos de todos. Pat segurava o celular de modo que mostrasse tudo às três pessoas que dividiam a tela de vídeo chamadas. Só então, vendo todas as pessoas que eu amava ali, lado a lado, caiu a ficha e eu comecei a chorar. Dever cumprido e satisfação, era o que eu sentia. Saber que eu havia conseguido cumprir as promessas que fiz aos meus pais me deixava extremamente aliviada e satisfeita.
Agora eu só precisava conseguir um emprego.
Ó, céus.
– Eu quero isso também, Julie. – A confissão murmurada de Sun desviou minha atenção do bolo de chocolate que eu saboreava.
Já haviam se passado algumas horas desde o fim da minha formatura, porém, minha casa permanecia cheia de convidados, alguns vizinhos e antigos colegas apareceram. O meu dia inteiro havia sido extremamente agitado e eu já estava bem cansada, então resolvi me presentear indo (finalmente) sentar e comer algo enquanto todos enchiam a cara de cerveja.
– O que? – Perguntei, confusa. O rosto franzino do pequeno asiático se retorceu em pensamentos antes de me responder de forma quase tímida.
– Uma formatura.
O pedaço do doce pareceu descer amargo pela minha garganta, tornando-se até dificultoso de deglutir. Desviei o olhar para que ele não notasse a emoção e os pequenos pontos de lágrimas em meus olhos. Sun desistiu da escola durante seu último ano no local.
Lembro do dia em que ele me contou, estava temeroso com minha reação e com razão, pois brigamos naquele dia. Nossa única briga em anos. Lembro do menino chorando após eu dizer que eu nunca estivera tão decepcionada com ele. Hoje em dia, vejo que foi uma infeliz escolha de palavras e que talvez eu tenha o magoado profundamente. Porém, naquela época, eu não tinha muita noção do que as atividades ilegais que ele se envolvia tinham grande papel na sua evasão escolar.
– Nunca é tarde para tentar de novo. – Suspirei, largando o garfo no prato e tocando em sua mão.
– A escola não fazia sentido naquele tempo, Julie. – Confessou, amuado.
– Eu sei, eram realidades diferentes. O tempo passou, as coisas mudam... Eu posso ajudar você a voltar, se você realmente quiser. – Ofereci e ele assentiu, sorrindo agradecido. – Desculpe se fui rude com você quando...
– Tudo bem, Julie. Eu mereci. – Afirmou, dando de ombros. – Além do mais, sua mãe pegou bem mais pesado!
Nos olhamos, cada um lembrando das famosas broncas que minha mãe nos dava: – Mulher assustadora! – Balançamos os ombros, como se estivéssemos afastando os arrepios e repetindo nossa piada interna quando se tratava de mamãe.
– Estou orgulhosa de você, irmãozinho. – Sorri, passando um braço pelo seu ombro.
– Por que? O que eu fiz? – Questionou, confuso.
– Você ainda é uma boa pessoa. – Afirmei, dando de ombros.
– Estou orgulhoso de você também. – Afirmou, sorrindo levemente.
– Nós estamos! – Santiago apareceu na cozinha, sentando na cadeira ao meu lado.
– Jura? Você também? – Questionei, surpresa, erguendo uma sobrancelha.
– Claro! – Deu de ombros, expressando animado. Eu desconfiava que o copo contendo um líquido azul estava ajudando em sua eloquência. Bebida azul... Jack. É claro. – Você é uma das nossas, mais respeitada na gangue do que eu. Graduada na faculdade...
– Em pleno Jeins! – Sun complementou em tom de surpresa e comemoração.
– Tinha que ser você. – Gabriel balançou a cabeça negativamente, bebericando em seu copo.
– A propósito, – Virei-me para Santiago, apontando para o bolo com o garfo. – Isso aqui está uma delícia!
– Obrigado. – Assentiu e segundos após arregalou os olhos, se dando conta que tinha perdido sua postura de mau em nossa frente ao assumir a autoria dos bolos da festa, ocasionando altas gargalhadas entre Sun e eu.
O momento divertido e leve entre meus amigos de infância me deixou alegre, satisfeita e levemente nostálgica. Era sempre bom quando nos reuníamos e apenas jogávamos conversa fora. Sem se preocupar com gangues, problemas, armas e violência. Ficamos conversando e brincando um com o outro enquanto bebíamos e comíamos até eu decidir que precisava me livrar dos saltos. Fui em direção as escadas, mas desisti de subir e sentei ali mesmo, massageando meus pés.
Sun e Patrick agora estavam sentados no chão, jogando videogame. Clarissa estava no sofá, com as pernas esticadas sob o colo de Adam, que massageava suavemente os pés da minha irmã, protagonizando uma cena adorável. Santiago estava encostado na porta conversando com alguns vizinhos, provavelmente planejando fugir dali o mais rápido possível. Outro casal sendo adorável eram meus pais, que dançavam no canto da sala ao som de Sade, sorrindo e se balançando.
– Então... Essa é a sua casa. – Jack declarou, sentando-se ao meu lado nos degraus da escada e me oferecendo uma garrafa de cerveja. Eu e Jack sorrimos ao vê-los daquela forma, como se fossem um casal apaixonado de um filme dos anos 50.
– Uma delas. – Considerei, tilintando minha garrafa na dele e piscando um olho.
– Você realmente tem algo especial aqui, Julie. – Comentou, analisando o local minuciosamente. Concordei silenciosamente, pois não tinha como negar. – É difícil acreditar que você vai voltar um dia, tendo tudo isso aqui.
Notei que essa era a preocupação de Jack desde o início do dia e ele havia conseguido expressar, finalmente. Eu o entendia, também era difícil para mim pensar em como seria a minha vida dali para frente.
– Minha outra família também é muito especial. O problema é que eles moram em outro estado. – Refleti, tentando tranquilizá-lo.
– Eu também teria problemas em voltar. – Revelou, sorrindo para meus pais, que se divertiam com meus vizinhos. – Aqui parece ótimo, Julie.
– Não se iluda, hoje só está sendo um bom dia. – Dei de ombros, bebendo.
Observei as nuvens pesadas se moverem calmamente no céu nublado, trazendo uma diversidade de cores anormal. O sol estava se pondo, quase escondido entre as nuvens de chuva, mas o tom alaranjando ainda conseguia se sobressair e contrastava com o céu cinzento, deixando a visão mais aconchegante e melancólica. O lago a nossa frente estava calmo, com algumas leves ondulações de vem em quando, assim como o vento. Senti duas mãozinhas enrolarem meus dedos e aquela sensação fazia absolutamente tudo valer a pena.
– Você é tonta ou o quê? – Clarissa revirou os olhos, irritada com a minha apatia, mas eu não liguei. Apenas acolhi aquela bolotinha de olhos verdes em meus braços, sentindo meu coração quase transbordar com o tanto de amor que eu sentia por aquele menino.
A dois meses atrás, em uma chuvosa noite de terça-feira, Clarissa me ligou completamente desesperada pois estava sentindo suas primeiras contrações. E após os momentos de desordem e agitação extremamente desenfreada que Clarissa dando à luz nos concedeu, eu vi o amor, literalmente, nascer.
O nome dele era Benjamin e tinha nascido com 4,55kg para o desespero de sua mãe. Tinha os cachinhos loiros de Clarissa e os olhos verdes de Adam. E desde que ele passou a existir nesse mundo, foi uma nova esperança que nasceu em mim. Logo eu, que já tinha perdido boa parte dela.
– Julie, presta atenção! – Beliscou meu braço, me fazendo reclamar. – Você está tendo a chance de voltar de onde você nem deveria ter saído. Não acredito que você quer jogar tudo fora por que você tem medo!
– Eu não tenho medo! – Retruquei, depositando beijos na mãozinha gordinha de Ben, meu sobrinho amado.
– Ela não tem medo. – Pat concordou, mesmo que estivesse muito concentrado em comer o bolo de chocolate que nossa mãe colocou em nossas bolsas antes de sairmos.
Era o "mesversário" de Benjamin e nós queríamos fazer algo todos juntos, porém, Adam estava fora da cidade, meus pais tinham seus compromissos e os pais de Adam moravam em outra cidade. Então, eu e Pat nos organizamos para tirar Clarissa de casa e levarmos ela e seu filho ao nosso lago preferido da cidade.
– Então o que é? – Clari questionou, confusa e irritada, limpando os braços. Ela não curtia muito areia e sempre ficava com a pele irritada quando encostava. Para o seu azar, não trouxemos cadeiras, apenas esteiras de piqueniques.
– Eu não sei. – Respondi, estalando os lábios.
– Eu sei, é culpa. – Patrick emitiu tranquilamente, como se não tivesse acabado de revelar um sentimento profundo meu.
Após a minha formatura e uma "reuniãozinha" que durou dois dias, eu recebi a notícia que meu artigo havia sido aceito e eu fui convidada para representar a minha universidade em Madri. Sim, eu consegui! Acabei ganhando a viagem como presente de formatura e passei cinco dias na Espanha. Patrick me acompanhou, foi a sua primeira viagem internacional. Madri é uma cidade agitada e nós curtimos intensamente a capital, ficando bêbados 4 dos 5 dias que passamos lá. O meu artigo fora premiado como o melhor do Congresso Internacional de Comunicação.
Eu só não pensei que isso fosse mudar o trajeto da minha vida.
O meu texto viralizou no meio da galera de comunicação social pela internet e acabou chegando em Hillswood, em uma específica editora: a Editora Hall, cujos donos eram os pais do meu grande amigo e comparsa, Toni. Assim que leu, o rapaz me ligou, oferecendo um emprego na editora, que estava passando por uma repaginada após um grande déficit. Ele ofereceu até um financiamento domiciliar para mim, já que ele sabia que Dana tinha outra roommate. Segundo ele, precisava de mim na empresa agora, pois ele já sabia onde precisaria de mim futuramente.
Foi, literalmente, minha passagem de volta para Hillswood.
– Culpa pelo quê? – Clarissa estranhou.
– Ela se sente culpada por deixar a família novamente em um curto espaço de tempo. – Pat explicou, dando de ombros. Olhei-o, totalmente surpresa.
Eu ainda não tinha parado para pensar e fazer tal análise, mas era esse o exato motivo da minha relutância. Não faziam nem 10 meses que eu tinha voltado a Springfield e olhando para nosso pequeno Ben enrolando os dedinhos na ponta dos meus cabelos, parecia que agora eu tinha muito mais motivos para ficar no Jeins do que antes.
– Julieta, olha para mim. – Clarissa chamou minha atenção. – Você não está em dívida com ninguém aqui. Você é jovem, esse é o momento de pensar apenas em você! Isso pode ser crucial para sua carreira, para o seu futuro.
– Sis, tudo o que conquistei com o artigo foi por causa do Jeins. Não seria justo eu deixá-lo para trás justamente agora. Parece que estava destinado, sabe? Eu voltar para cá, me envolver ainda mais com a comunidade, me envolver com...
Interrompi a frase antes do nome de Santiago escapar dos meus lábios. Pat já tinha deixado claro o que achava do meu relacionamento com o rapaz, imagina o escândalo que Clarissa faria se soubesse que eu andava tendo um contato mais do que físico com Gabriel.
– Julie, eu sei que você ainda não se acostumou a viver aqui. Eu sei que se fosse por escolha sua, você nunca sairia de Hillswood. – Pat começou afirmando, mas eu logo o interrompi.
– Mas eu saí, Pat! E um outro mundo se abriu para mim desde então. Não um mundo melhor, apenas... – Suspirei, coloquei minhas mãos embaixo dos braços de Ben, levantando-o e reprimindo um sorriso com o barulho infantil que ele estava começando a aprender a fazer. – Um mundo diferente do que eu estava acostumada.
Sentia vontade de arrancar cada fio de cabelo meu por tamanha indecisão que me consumia. Levantei com o bebê gordinho em meu colo e fui em direção ao lago. Precisava sentir a água encharcando minha cabeça, que eu sentia pulsar de tanta ansiedade.
Eu entendia o pensamento dos meus irmãos, mas algo me prendia no mesmo lugar. E se eu apostasse minhas fichas novamente em algo e não desse certo? E se eu aceitasse o emprego, para ser demitida e passar por todo aquele processo de novo? Eu não queria mais isso. Deixar Hillswood fora difícil o suficiente para apenas uma vez. Se eu passasse por uma segunda vez, não suportaria.
E principalmente, eu nem sabia se queria voltar à Hillswood. Sinceramente, o único fator que me motivava a voltar a cidade eram meus amigos, pois eu já quase não sentia falta da casa e dos lugares. Apenas morria de saudades de meus grandes amigos.
Não havia lista de alguma de prós e contras que me ajudariam naquele momento.
Sentei na beira da lagoa, sentindo os olhares de meus irmãos em minhas costas. Molhei os pezinhos de Ben, vendo o menininho descobrir todas aquelas novas sensações e sorri.
Eu queria vê-lo descobrindo tudo. Queria acompanhar suas descobertas, sua tão recente vida. Queria ajudar Sun a voltar a estudar e ajudar Pat a entrar na faculdade. Queria aprender mais sobre números com meu pai. Mas também queria voltar a andar com Dana para todos os cantos e escutar as piadas sujas de Cameron. E queria muito, desesperada, escutar a voz e sentir o abraço de novamente.
Fiquei um tempo dentro da água com o menino, sentindo as ondas nos balançarem de um lado para o outro levemente. Eu até desejei que eu fosse assim na vida real, apenas fosse no ritmo das ondas, mas Deus sabe que eu amava nadar contra a maré.
Não falamos mais sobre o assunto pelo resto do dia, apenas conversamos banalidades e babamos em cima do nosso novo mascote. Ben era a criança mais simpática, mesmo com pouco tempo de vida. O sol sumiu completamente e a chuva ameaçava cair, então decidimos voltar para a cidade logo.
Meus irmãos no carro comigo enquanto Patrick cantarolava suavemente para Ben, que dormia em seus braços. Ali, eu tinha os mais variados motivos para não ir embora expostos ali mesmo.
– Foi um dia incrível, mas não vejo a hora de chegar em casa. – Clarissa comentou aos suspiros enquanto dirigia cuidadosamente.
– É, eu também... – Concordei, vagamente. Franzi o cenho assim que proferi tal frase e quando dei por mim, meu rosto estava molhado por lágrimas. Clarissa notou, mas não falou nada. Pat apenas acariciou meu ombro, como se soubesse exatamente o que estava acontecendo comigo.
O aperto doloroso em meu peito era quase agoniante. A frustração e angústia tomaram conta de mim quando eu não consegui parar de pensar em como contar para minha mãe que ao ouvir a palavra "casa", eu imediatamente pensei em meu apartamento com Dana e que eu precisava voltar para casa. Em Hillswood.
– E é assim que faremos. – Minha mãe reafirmou o plano que havíamos feito nas últimas horas.
Eu tinha tomado uma decisão. Eu passaria uns dias em Hillswood, iria até Toni, ouviria os planos dele para mim, iria a entrevista de emprego e após isso tomaria uma decisão definitiva. Dois dias após a ida ao lago, tentei reorganizar minha vida pós formatura.
Quando tive certeza do que eu poderia e queria fazer, liguei para minha alma gêmea, Dana Tomanzio. Depois que ela passou um minuto inteiro quase gritando de excitação com minha possível volta a cidade, colocamos no papel todas os pós, contras e as mais diversas possibilidades. Reuni tudo em uma pasta e durante a noite, enquanto meus pais dividiam uma sobremesa de chocolate na cozinha, pedi um tempo para conversar.
Acho que eles já sabiam o que eu iria falar.
– Ok. E temos dinheiro para isso? As passagens de ida e volta não são necessariamente baratas... – Questionei, preocupada com nossas finanças.
– Seu pai é contador, se formos a falência, a culpa é toda dele. – Brincou e eu soltei um suspiro meio esganiçado e nervoso, apertando minhas mãos. – Querida, nós temos nossas reservas. Vai dar tudo certo, confia na mamãe. – Depositou a mão na minha perna, que não parava de balançar-se quase sozinha tamanha a ansiedade que já tomava conta de mim.
– E se... eu ficar? – Supus, nervosa.
– Julieta, eu não a criei para ficar presa nesse bairro horroroso, trabalhando no centro comunitário, quando você tem potencial para coisas muito maiores. Tem tanto que você pode fazer ainda, filha. Tanto para conhecer, tanto para estudar... – Acariciou meus cabelos, olhando-me afetuosamente.
– Pai? – Pedi por sua opinião, receosa. Eu sabia que o homem era mais sensível que minha mãe. Ninguém ficou mais feliz com a minha volta do que ele.
– Eu estou com o coração quebrado, mas vou fingir maturidade como a sua mãe. – Proferiu, melancólico. Fiz um biquinho, sentindo meus olhos serem inundados por lágrimas. – Não, não! Meu bem, não chora.
– Desculpa, pai. – Balbuciei, já não conseguindo controlar minhas lágrimas.
– Julieta, não seja ridícula. – Bufou, exasperado. – O que dissemos mais cedo não é papo de pais babões, nós realmente temos orgulho de tudo que você é. Admiro a sua coragem, filha. – Emocionada, encostei a cabeça em seu ombro, aproveitando o carinho do homem que eu mais amava.
Após repassarmos as contas, os planos e mais umas confirmações de que estava tudo bem com minha ida, voltei ao meu quarto, narrando a Dizzy via áudio toda a minha conversa com meus pais. Minha cabeça, como de costume, estava quase explodindo com tantas dúvidas. Eu odiava incertezas, principalmente quando elas envolvem o meu futuro. Minha ansiedade fica a mil, minha propensão a frustração ainda maior e não era novidade que eu não lidar com minhas mudanças bruscas de humor.
Sentei na beirada da janela do meu quarto, com as pernas para o lado de fora, observando a movimentação em volta do pequeno e feio lago. Algumas crianças brincavam no prédio destruído ao lado dos viciados numa serenidade invejável. Suspirei, voltando a atenção para meu celular, discando o número já conhecido por mim.
– Então, o que você acha? – Perguntei, apertando minhas mãos, ansiosa, depois de ter relatado meu plano ao homem que abalava minhas estruturas.
– Bom... O que seus pais acham? – Perguntou. Típico , procurando saber a opinião dos meus pais antes de dar a sua.
– Eles me apoiaram, foram extremamente compreensíveis, não fora uma conversa difícil. Eles choraram um pouco e quando tentei argumentar sobre a possibilidade de não ir, eles fizeram um longo discurso sobre criar os filhos para o mundo e que o maior objetivo da vida deles era esse, a prosperidade profissional e emocional. – Resumi a conversa do jeito que eu pude. – O que você acha?
– Eu acho que sou um pouco suspeito para falar, mas ter você de volta a cidade? Fala sério, eu não vejo a hora de poder te ver de novo. – Eu podia sentir o sorriso de mesmo do outro lado do telefone.
– Profissionalmente falando, . – Insisti, rindo.
– Eu acho que falta uma segunda opção. Você não pode se garantir apenas com Toni, você pode estar arriscando muito em algo sem futuro. – Explicou.
– É exatamente esse o meu medo! O problema é que eu não tenho garantias nem segunda opção em lugar algum. Nem lá, nem aqui. E eu nem sei muito bem o que eu quero ou o que gosto de fazer... – Resmunguei, chorosa. E não sabia mesmo.
Eu me formei, apesar de estar desiludida com o jornalismo. E o diploma na parede do meu quarto não me ajudou em nada a decidir qual caminho eu deveria seguir.
– Eu sei o que você gosta de fazer. – Garantiu, presunçoso.
– Sabe? Então, me diz. Ultimamente todo mundo sabe mais de mim do que eu mesma. – Reclamei, rolando os olhos.
– Você gosta de ensinar, Julieta. De todos os empregos que você já teve, o único que não envolvia lecionar foi no jornal, lugar que você mais odiou. Não só gosta, você é boa nisso.
Paralisei com a linha de pensamento do meu rapaz, minha boca abriu-se sozinha em entendimento. Como caralhos eu nunca tinha pensado nisso? Eu gostava de dar aula, amava ensinar. Poxa, que saudades dos meus alunos! Que saco, .
– Que saco, ! Te odeio, você é um idiota. – Bufei em meio a resmungos, causando uma gargalhada forte no rapaz.
– Só porque eu estou certo e você ainda não havia percebido isso? – Zombou, debochado. – Quando você vem? – Perguntou.
– Agora eu já não sei mais. – Irritei-me com minha displicência. Agora que eu sabia o que eu queria, talvez não conseguisse aceitar menos do que isso.
– Não! Nada disso! Segundas opções, lembra?
– Semana que vem. Vou passar uma semana aí. Dependendo da resposta que eu obtiver, eu... Volto.
– Vou precisar antecipar seu presente de Natal, então. – Brincou e eu sorri, agraciada com sua atenção e carinho.
– Não ganhei no ano passado. Posso escolher o meu desse ano? – Pedi.
– Pode, sim. O que você vai querer?
– Te conto quando eu chegar.
– É sacanagem, não é? – Ele riu abertamente. Meu peito se apertou de saudades de nós.
Fiquei conversando com por mais alguns minutos. Ele me conta como estão as coisas em Hillswood, conta também como estava sendo difícil se acostumar com a nova parceira de quarto de Dana. Após desligar, fiquei encostada na minha janela, olhando para a vista privilegiada que eu tinha ali. O resto da cidade se estendia por trás das construções destroçadas e do lago contaminado e era bastante visível o quanto o Jeins podia ser bonito quando visto dos olhos certos.
Como eu deixaria aquele lugar?
Esperei por Santiago aparecer ali, já que era costume ele ficar sentado na parte mais alta do prédio, olhando para o seu próprio reino. Às vezes, eu me perguntava no que Santiago pensava quando ia para lá. Era quase lei. Todo dia, às 17h30, Santiago ia até o prédio abandonado.
– O que você acha? – Perguntei pela segunda vez no dia, só que para alguém diferente.
Era a primeira vez que eu estava sentada com Gabriel lá em cima e agora eu entendia o porquê de ele ficar ali. Tinha que fazer umas aventuras para conseguir até em cima, já que tudo estava deteriorado, logo alguns andares não tinham escadas e tínhamos que escalar as paredes quebradas. Eu já ia reclamar em como ia descer, até chegar em cima e olhar em volta. Dava para ver a cidade inteira.
Eu me sentia privilegiada em estar sentada ali com ele. Não precisava me preocupar se alguém estava nos vendo, não precisava me preocupar com viciados ou possíveis ameaças de alguém das gangues, já que o "chefe" deles estava ao meu lado.
– Eu acho que até demorou. – Ele deu uma risadinha. Eu estava com as minhas pernas em cima das coxas dele e ele brincava com os dedos do meu pé enquanto falava, sem me olhar.
– O que? – Franzi o cenho.
– Você ir embora daqui. – Deu de ombros, sorrindo de lado. – Esse lugar não serve para você, Julieta.
– Eu nasci aqui, Gabriel. – Refutei, insatisfeita com a suposição de que ali não era meu lugar.
– Sim. E tudo conspira para você ir embora. Não é difícil entender o sinal de que o universo está te mandando. – Explicou.
– Eu vivi para ver você falando sobre sinais do universo. – Gargalhei, passando a mão de leve pelo rosto dele. O papo de ir embora estava nos deixando sensíveis, aparentemente.
– Passo muito tempo com você, acabo absorvendo essas baboseiras hipster que você fala. – Passou um braço pela minha cintura me puxando para mais perto. Encostei a cabeça em seu ombro e suspirei, aproveitando do carinho inesperado.
– É indubitável que nós realmente passamos muito tempo juntos esse ano. – Constatei. Ele deu uma risada e eu perguntei o porquê.
– Só você usa palavras como "indubitável" numa frase e não fica estranho. – Mexeu nos meus cabelos, ainda lisos, e desviou o olhar.
Eu sabia exatamente o momento em que Gabriel Santiago havia entrado em minha vida novamente, mas ainda parecia estranho estar ali com ele. Nunca passaria pela minha cabeça que eu e Gabriel teríamos algo, nem que seriamos amigos, apesar dessa classificação não se encaixar muito bem na nossa relação. Percebi que tínhamos nos perdido em pensamentos por muito tempo quando levantei a cabeça e notei seu rosto sereno demais.
– Você está calmo hoje, quieto. – Observei. – Aconteceu alguma coisa?
– Muita coisa acontecendo, só isso. Ossos do ofício. – Brincou e eu estranhei. Ossos do ofício?
Olhei pelas proximidades e percebi que nenhum dos caras que costumavam andar em volta dele estavam ali. Não havia carros estacionados e estava até silencioso para uma tarde de domingo. Algo devia estar acontecendo, algo provavelmente ilegal.
– Alguém vai se machucar hoje? – Seja qual fosse a ação que Santiago e sua gangue estivessem metidos, eu sabia que era algo grande. Caso contrário, ele não ficaria tão quieto e pensativo assim. Olhou–me com um sorrisinho discreto e agradável no rosto. Inclinou–se e encostou os lábios nos meus, beijando–me delicadamente.
– Olha em volta, Julie. – Fiz o que ele mandou. Uma cidade inteira coberta pelos raios solares do pôr do sol surgiu aos meus olhos. As casas cheias de janelas, apertadas umas às outras, eram o cartão postal da cidade. Olhando de cima, o tom alaranjado acolhedor cobrindo o céu, Springfield podia ser bem bonita quando queria. – Esse lugar é pequeno demais para você.
Eu me sentia aérea, como se tivesse empurrado meia cartela de Prozac goela abaixo. Eu não sei dizer se as palavras dolorosas saiam da boca dele de forma descoordenada ou era eu que não estava conseguindo distinguir nada.
– A gente nem sabia que ele estava por perto. Eu não sabia que ele estava estudando de novo... A gente não sabia que era naquela rua, Julie. Foi rápido e a gente não conseguiu... – Eu conhecia Max a minha vida toda e nunca tinha vista-o falar tanto. Max chorava na minha frente.
Eram 21h44m quando ele entrou na minha casa sem pedir autorização, quase levando a porta da frente ao chão. A camisa branca coberta pelo líquido vermelho familiar me fez largar as louças em cima da mesa sem me importar com o porcelanato. Minha mãe correu até ele, procurando ferimentos, que não foram achados. O garoto falava rapidamente, atropelando as palavras.
Meu pai teve que segurar o rosto dele com as duas mãos para tentar entender o que ele dizia. Eu não me movi, já sabia a resposta. Sabia o que tinha acontecido. As palavras de Max passaram por mim de forma desconexa, mas apenas uma me chamou a atenção.
Sun. O menino já havia sido pego em emboscadas antes, já havia sido surrado intensamente, entretanto, Max nunca havia se desesperado. Dentre a quantidade de palavras arrastadas e chorosas que Max falava, eu distingui apenas a palavra "tiro". Foi quando eu soube o que havia acontecido.
Em um minuto, eu estava tranquilamente jantando com a minha família e no outro, eu estava perdendo parte dela. Meus pais olharem-se assustados e eu vi as pernas de minha mãe fraquejarem. Fechei os olhos, não queria ver o que aconteceria a seguir. O grito sôfrego que saiu da garganta da minha mãe fora uma bela amostra do inferno.
Dei as costas e saí da sala, eu parecia andar sobre um tapete de nuvens, que sugavam meus pés. Parei em frente ao quarto de Pat e bati duas vezes na porta. Ouvi meu irmão reclamar, mas abriu a porta. A expressão estressada mudou para preocupada quando ele viu meu rosto.
– O que houve? Por que você está chorando? – Passei as mãos pelo rosto, assustada por não ter percebido que estava chorando. Não respondi, apenas apontei para a sala e segui em direção ao meu quarto. Ouvi os passos pesados de Pat e seus gritos ao perguntar o que estava acontecendo. Outra visão que eu não precisava na minha cabeça. Eles eram tão próximos.
Sentei na beira da minha cama sem saber o que fazer a seguir. Apoiei minhas mãos nos joelhos e senti minha respiração começar a falhar, meu peito parecia estar se comprimindo a cada minuto.
Ele estava lá desde o início, Sun era parte da minha família desde sempre e eu não conseguia lembrar de um momento que ele não estava. Meu celular começou a apitar incessante no bolso da minha calça, números desconhecidos, alguns nem tanto. Joguei meu celular para debaixo do travesseiro. Eu precisava descobrir como lidar com aquilo para poder começar a lidar com os outros.
Fiquei naquela posição por algum tempo, tentando não surtar. Até que ouvi uma gritaria do lado de fora ainda maior do que estava e não demorou para essa zoada chegar a minha porta.
– Julieta! – Santiago bradou, esmurrando a porta em seguida. Permaneci no lugar, apática. O rapaz parece ter perdido a paciência e entrou sem pedir permissão.
Ficamos nos encarando até alguém ter coragem de dizer algo. Eu odiava isso. Me lembrei do dia em que Santiago decidiu me mostrar um pouco do seu mundo, o desespero que senti pelo desconhecido não era nada perto da dor que eu estava sentindo. A diferença é que agora os olhos assustados não eram os meus. Corri o olhar pelo seu corpo, procurando ferimentos ou algo assim.
– Julie, eu não sabia... – Ele expirava fortemente, como se tivesse corrido até ali. Apenas assenti e voltei a pressionar a palma da mão contra meu peito, tentando segurar meu coração nas mãos. Acho que só assim tudo ficaria bem.
Era estranho. Eu queria gritar, espernear, mas nem vontade de chorar eu sentia, apesar de, aparentemente, já estar chorando. Estava estarrecida com tudo. Santiago parecia na mesma situação que eu, incapaz de entender a avalanche de sentimentos que se fez presente.
– Eu sei o que houve. – Murmurou e veio sentar ao me lado na cama.
– Eu sei que sabe. – O rosto dele se contraiu em uma careta, como se estivesse sentindo dor. – Mas tenho quase certeza de que a culpa não foi sua.
– Eu juro que ninguém sabia que ele estava por perto. Julie, eu nunca o deixo por perto quando existe o perigo de ele se machuc... – A voz de Gabriel falhou e ele cobriu a boca com a mão, quase assustado com sua própria vulnerabilidade.
Fechei os olhos, atordoada. Era difícil lidar com minhas próprias dores, porém, era ainda mais difícil lidar com a dor das pessoas que eu amava. Entrelacei minhas mãos nas dele, meus dedos esbranquiçados tamanho foi seu aperto de volta.
– Eu sei quem foi, Julie. – Sussurrou, olhando-me de esguelha.
– Não.
É claro que isso aconteceria. Ali, era Santiago me avisando que ia passar por cima de todos e qualquer coisa para vingar o óbito do amigo e companheiro. E mesmo sabendo que isso desencadearia uma guerra civil entre bairros e gangues, mesmo indo contra meus princípios, internamente eu torcia para que ele o fizesse. Mesmo que isso resultasse em prisão ou na sua própria ruína.
– Faz o que você tem que fazer. – Concluí, firme. – E nunca mais fale sobre isso comigo.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, até minha mãe aparecer no quarto. Achei que ela fosse querer minha cabeça por estar com Gabriel sozinha no quarto, mas ela apenas o abraçou e ambos começaram a chorar, ele mais contido que ela. Ainda aérea, fui até a sala, procurando por Max.
Havia mais pessoas na sala e na porta agora, todos procuravam por informações e todos sabiam que nós, os Young, éramos o mais próximo de uma família para o Sun. Deixei que meu pai tomasse as devidas providências, eu não estava pronta para lidar com qualquer coisa. Sun era um menino muito querido pela vizinhança, apesar de nos últimos tempos dar mais dor de cabeça que o normal. Eu sempre soube que ele era um menino afável, não foi surpresa quando ele me pediu ajuda para voltar a estudar.
Eu queria que mais pessoas soubessem que ele era bom em química, gostava de ler Allan Poe e que seu nome verdadeiro era Samuel.
Achei Max próximo ao banheiro da área de limpeza. Estava apático, eu suspeitava que ele havia presenciado bem de perto tudo o que aconteceu. Segurei o choro mais uma vez, engolindo a bola de sofrimento em minha garganta e fui até ele. Não falei nada, apenas o levei para o banheiro.
Como se estivesse banhando uma criança, coloquei-o debaixo do chuveiro e passando a mão de leve, tirei o grosso sangue que cobria sua pele. Acariciei seu rosto, afastando as placas vermelhas. Max começou a chorar sobejamente, levando-me junto com ele. Senti o chão sumir abaixo de meus pés quando ele perguntou:
– E agora? O que nós vamos fazer?
Não éramos mais uma ex-universitária e um gatuno, membro da maior gangue do bairro. Éramos Julieta e Marcus, dois amigos de infância, que corriam pela vizinhança atrás de bolas de futebol. No entanto, o terceiro amigo, o menininho asiático, não estava mais entre eles.
Não saiu nota no jornal. Teve um minuto de reportagem no noticiário local e o nome dele nem foi citado. Mas o universo sabia. Eu sei que sabia porque naquele dia choveu bastante. E Max, que não falava, falou por uma hora inteira. Patrick não saiu do quarto e ouvir o choro inconsolável da minha mãe foi doloroso. E eu fiquei no meio de tudo, sem saber muito bem o que fazer, já que eu queria ser por todos, mas não estava conseguindo nem ser por mim.
Alguém cutucou meu braço suavemente e eu despertei de meus pensamentos. A aeromoça, cujo cabelos loiros estavam perfeitamente presos em um coque elegante, sorria simpática para mim. Percebi que ainda estava de fones de ouvido quando ela fez um sinal para que eu os retirasse.
– Já pousamos, senhora. – Informou, gentilmente. Olhei em volta, reparando nas poltronas ficando vazias por todo o corredor. Me desculpei várias vezes com a moça, que fora super gentil comigo.
Tirei minha mala de mão pequena do bagageiro, coloquei minha mochila nas costas e saí do avião. O aeroporto de Hillswood me trouxe lembranças opostas do dia em que cheguei cheia de expectativas e do dia em que fui embora sem nenhuma delas.
O ar gelado, mas ameno – característico de Hillswood – me pegou assim que saí do local. Puxei as mangas da jaqueta para baixo e agradeci mentalmente a Clarissa por ter me lembrado de usar botas. Peguei meu celular para ligar para Dizzy, mas não foi necessário. Logo ouvi o barulho de buzina seguidas vezes. Sorri ao reconhecer o carro de Cam, mas só quem estava dentro era a mulher da minha vida, Dana Tomanzio.
Fui até o outro lado da pista quase correndo, ansiosa para chegar à garota. Dana saiu do carro da mesma forma que eu, disparando em minha direção. Quando cheguei até ela, larguei minha mala no chão e abracei-a fortemente, relaxando ao sentir os braços seguros da minha melhor amiga me acolherem de volta. Ela distribuiu vários beijos na minha bochecha e retribuiu a força do abraço. Suspirei tranquilamente, abraçá-la era como voltar para casa.
– Seu cabelo! – Exclamei, surpresa ao olhando para as madeixas dela, agora cortadas em um lindo longbob, com mechas grossas azuladas. – Está azul!
– Você está loira. E lisa! – Ela se afastou apenas para mexer nas pontas dos meus cabelos. Eu não estava totalmente loira, só estava com o tom bem mais claro do que eu costumava usar. Porém, meus cabelos realmente aparentavam serem loiros quando expostos ao sol. E de vez em quando, eu arriscava usar prancha nos fios. Desde a minha formatura, eu havia simpatizado bastante com meus cabelos lisos. A nova cor e o cabelo liso me deixavam mais madura fisicamente.
– Achei que não fosse possível você ficar mais bonita! – Resmunguei com a injustiça. Ela riu e deu um beijinho de leve no meu nariz. As pequenas ações de Dana que me faziam morrer de saudades dela.
Entramos no carro, joguei minha mala no banco de trás e coloquei minha mochila no colo. Questionei o porquê de ela estar com o carro alheio. Ela disse que sabia que eu não iria querer ir até o aeroporto de moto e o único carro disponível era o de Cam, já que Jack dirigia uma Suzuki igual a dela.
– Eu estava morrendo de saudades! – Expressei, pegando sua mão e beijando-a levemente.
– Eu achei que um ano passava super-rápido. Que nada! Parece que uns nove anos se passaram. – Reclamou, fazendo um afago carinhoso na minha cabeça.
Eu discordava ao olhar pela janela durante o caminho. Apesar de parecer que anos haviam se passado, também parecia que tinha sido ontem que eu fizera o mesmo caminho para voltar para minha cidade. Tudo parecia nostálgico. Os prédios do centro, as ruas bonitinhas e largas. E aproximando-se da nossa área – residencial –, as casas mais simples começavam a surgir. Totalmente discrepante a imagem que existia no Jeins.
– Julie? – Dana tirou minha atenção da paisagem que eu encarava cheia de saudade. – Como você está?
– Bem. Morrendo de fome, para falar a verdade. – Passei a mão de leve pela minha barriga.
Fazia duas semanas desde que tudo tinha acontecido, desde então eu estava me alimentando com líquidos. Café, principalmente.
Ninguém na minha casa estava com cabeça para ir para cozinha preparar algo para comer. Precisou eu ir para outra cidade para perceber que eu estava ávida por uma comida sólida.
– Não sobre isso, meu bem. – Receosa, olhou-me de canto de olho.
– Ah, isso. – Parando para pensar no que falar, percebi que ainda não tinha lidado em nada do que aconteceu nos últimos dias. – Eu não sei, Dana. Eu ainda não parei para pensar nisso, você não faz ideia de tudo o que aconteceu esse ano. Então, toda vez que eu penso nisso, eu ignoro porque vai me destruir, Dizzy. Eu não posso... Pensar nisso.
Não agora.
– Quando você quiser falar, eu estou aqui. – Sorriu de leve para mim e eu retribui. Dana sabia exatamente quando respeitar minhas vontades e quando insistir por mais. – Bom, nós podemos falar sobre a Laura, então.
– Quem é essa? – Franzi o cenho, confusa.
– Minha colega de quarto, Julie.... Você sempre esquece o nome dela! – Gargalhou, levando a mão a própria testa.
– Ah, a Julieta número dois. – Recordei.
Demorou para convencer Dana que ela deveria arranjar uma colega de quarto. Ela sempre dizia que logo eu voltaria para Hillswood, não tinha sentido colocar outra no lugar. Eu queria ter dado ouvidos a Dana e não ter a convencido a achar alguém, assim eu não seria uma sem-teto em potencial no momento. Eu não sabia muito sobre a tal Laura, só sabia que ela era mercadóloga na empresa que Dana trabalhava. Tinha vinte e três anos, ascendência holandesa e uma beleza ímpar, se você curtir loiras de olhos verdes.
– Está longe de ser. Você acredita que ela tem uma queda pelo Cam? – Comentou em tom de deboche. Apenas ri, porque convenhamos, era muito fácil ter uma queda por Cameron. – Cam até deu uns beijinhos nela. – Explicou, torcendo os lábios. – Ela gosta de umas paradas mais políticas, tipo você na época da escola. Às vezes, eu a acho muito julgadora, mas aí lembro que isso também é julgamento. No mais, ela é bem legal.
– E por que Cam não investe? Ela parece ser legal... – Comentei.
– Ele ainda não saiu da fase "estou solteiro e vou quebrar corações em massa". – Resmungou, pisando no acelerador com um pouco mais de afinco, fazendo meu corpo balancear no banco. Levantei uma sobrancelha, encarando a ruga que se formou na carranca que Dizzy fazia.
– Espera, eu senti um pouco de raiva nessa frase? "Coraçõesss"? No plural? O coração de uma certa Tomanzio está no meio? – Cruzei os braços, apertando os lábios em uma risada.
Dana e Cameron na minha festa de despedida era algo que me fazia rir até hoje. Estavam como dois adolescentes cheios de hormônios e amor para dar. Nada me foi dito sobre o que aconteceu depois que os dois consumaram o ato. Vendo a reação de Dana agora, recrimino-me por não ter perguntado sobre os dois mais assiduamente.
– Vamos no Takeo? Já deve ter algo aberto, não é? – Disfarçou, olhando para o relógio. Eram 17h e Dana sabia muito bem que o Takeo abria às 18h. Esse era o nível de desespero da garota.
– Dana, você está fugindo. – Pontuei, rindo.
– Lalala, eu não sei do que você está falando. – Olhou pelo retrovisor, dando a curva em outra pista, que levava ao local.
– Ah, eu vivi para ver o dia que você está fugindo de uma conversa!
O único food truck que estava funcionado naquele horário era o Árabe. Pedi três beirutes, Dana também estava com fome e pediu tabule. Sentamos em uma mesa próxima ao caminhão quase abraçadas. O vento a beira do rio era típico de dezembro avisando que estava chegando. Takeo lembrava-me instantaneamente de , então a primeira coisa que fiz, depois que nos acomodamos, foi perguntar por ele.
– Provavelmente vai chegar hoje de madrugada. – Informou.
– Ontem ele falou no grupo que vai direto lá para casa. – Comentei, lembrando das conversas no nosso grupo de mensagens.
Eu e ainda tínhamos algo um pelo outro, entretanto, nem mesmo nosso fogo incessante sobreviveu aos 348 dias longe um do outro. Não tínhamos brigado nem nada, só estávamos afastados, distantes. As últimas vezes que nos falamos (depois que liguei para saber sua opinião sobre minhas escolhas) foram apenas no grupo. Sem mensagens individuais. E eu estava nervosa com nosso reencontro.
– Sim. Comprei algumas bebidas para gente, os meninos vão lá para casa mais tarde e vamos fazer a social que nós sempre fazemos. – Olhava para o cardápio quando parou e deu um sorriso discreto e meio emocionado. Esticou o braço e entrelaçou a mão na minha. – A diferença é que agora nós estamos completos.
❍❍❍❖❍❍❍
– Você está tremendo. – Dana comentou, segurando minha mão em seguida.
Estávamos no elevador do prédio em que eu morava antes e – me julguem –, eu estava emocionada em voltar. A nostalgia estava me consumindo. Era uma cena tão familiar estar naquele elevador novamente, com Dizzy ao meu lado. Lembrei quando dormi no chão do elevador tão bêbada que não sentia minhas pernas. Lembrei das vezes que fiquei aos amassos com no mesmo cubículo. Meu caminho de todos os dias.
– É ridículo, eu sei. Eu não passei tanto tempo longe assim. – Reprimi uma lágrima, limpando os cantos de meus olhos.
– Um ano é muita coisa, Julie.... – Suspirou, pesarosa. – Vamos!
A porta do elevador abriu-se e em três passos, eu estava na porta do 305 novamente. Meu apartamento, minha casa. Meu lugar. Eu só percebi que passei um ano inteiro no Jeins prendendo a respiração quando entrei no meu antigo apartamento e soltei uma lufada de ar
– Bem-vinda de volta! – Dana deu-me um beijo na bochecha e foi gritando em direção aos quartos. – Laura, chegamos!
Fiquei parada no meio da cozinha, ainda olhando em volta. Paradoxo, mas apesar de tudo estar igual, estava diferente. As coisas da sala estavam no mesmo lugar, mas não era o mesmo sofá. As grandes janelas agora eram cobertas por grossas cortinas. A mesinha de centro também não estava mais lá e não tinham mais fotos e recados na porta da geladeira. Estava minimalista demais, não parecia mais o nosso lugar. Olhei em volta, suspirando. Deixei minha mala no chão próximo ao novo sofá.
Dana voltou a sala com a nova Julieta ao seu lado. Laura era uma mulher baixa – menor do que eu, pasmem –, estranhei os cabelos castanhos e curtos, tatuagens cobrindo um braço inteiro e usava tênis plataforma e saia midi. Não parecia nenhum pouco com a irlandesa que Dana tinha me mostrado a foto uns meses atrás.
– Oi! Eu sou a Julie, prazer. – Ela se aproximou, sorridente. Estendi minha mão em um cumprimento.
– Que bom finalmente te conhecer. Ouvi falar muito de você.
Muito. – Revirou os olhos de leve, dando uma risadinha, porém não deu para não perceber o tom ressentido na voz. – É bom estar em casa? – Perguntou, sorrindo demais.
– É, sim. – Respondi, mas completei num sussurro: – Eu acho que sim.
– Eu fiz uma sobremesa de morango. Vocês querem provar? – Laura perguntou e foi para a cozinha. Quando abriu a geladeira, ela franziu o cenho. – Dana, por que nossa geladeira parece o bar do Edy?
– Ah, nós vamos fazer uma reuniãozinha aqui em casa mais tarde. – Minha amiga explicou, pegando o celular.
– Ah, obrigado por avisar! – Replicou sarcasticamente e se dirigiu a mim: – Dana também dava festas sem comunicar a você ou é só comigo?
– Não se preocupe, acontecia comigo também. – Ri levemente, brincando com as alças da mochila.
– Apenas uma vez! – Dana defendeu-se, resmungando.
– Quem vem? Muita gente? – Ela perguntou, puxando uma vasilha branca de dentro da geladeira. – Quer beber algo, Julie? – Recusei e agradeci educadamente, ainda sem conseguir me mover.
– Só os garotos de sempre. E você! – Dana esticou o braço, dando high five com a garota.
Laura não questionou mais nada. Ela e Dana começaram a falar sobre coisas e pessoas que eu não fazia ideia do que se tratava. Fiquei meio em dúvida do que fazer em seguida. Eu queria tirar minhas botas, ir para o meu quarto, me jogar na cama e ligar para todo mundo de Hillswood. Entretanto, aquela não era mais minha casa, sequer parecia a mesma de antes.
– O que foi? – Dana desviou os olhos do celular e de Laura e olhou-me. Provavelmente não entendendo porque eu estava parada no canto da sala igual uma estátua.
– Nada, estou um pouco cansada. Posso tomar um banho? – Pedi, sentindo-me extremamente estranha.
– Claro! – Jogou-se no seu novo sofá, ainda mexendo no celular. Olhei em volta para pedir licença e a garota, Laura, estava abrindo as portas do armário. Queria dizer a ela que os pratos não ficavam ali, mas logo a vi tirando uma pilha de pratos do mesmo local, então preferi ficar quieta e ir tomar meu banho.
Peguei minha mala do chão e notei que nem mesmo havia tirado a mochila das costas. Fui até o corredor e encarei as portas uma de frente para a outra, para a que costumava ser a minha especificamente. Dei as costas para o meu quarto e entrei no outro, no quarto de Dana. O quarto dela também estava diferente. Ela não tinha mais uma kingsize, agora era apenas uma cama de solteiro e o espaço que foi liberado pela cama, tornou-se um pequeno escritório no canto do cômodo. Entendi que era ali que Dana trabalhava.
Fazia sentido, na verdade. Quando eu parti, eu era a única universitária e dentro do meu mundinho, talvez eu não sentisse a diferença. Mas prestando uma atenção melhor agora, todos eram adultos demais e eu me preocupei como seria quando eu visse os rapazes. Será que estaria diferente? Será que agora nós sentaríamos e falaríamos sobre o trabalho? Porque eu não tenho trabalho. Será que falaríamos sobre suas casas? Porque eu também não tenho uma casa.
Preferi acalmar minhas preocupações com uma chuveirada e foi o que fiz. A água quente até diminuiu um pouco minha tensão. Quando fui descartar minha roupa suja, tive que deixar separada em uma bolsa para lavar depois.
Era estranho ser apenas uma visita.
Sentei na cama e peguei meu celular pela primeira vez desde que cheguei. Liguei para meus pais, avisando que já estava com Dizzy e estava tudo bem e fiz uma chamada de vídeo com Clarissa também. Abri minhas mensagens e o grupo estava abarrotado de mensagens. Dizzy tinha mandado uma foto minha, cobrindo metade do meu rosto com o beirute, avisando que eu estava na cidade. Todos começaram a mandar dezenas de exclamações, coisas sem sentido e fotos.
Cameron ♥ (18:22): quando você começa a fazer seu trabalho de qualquer jeito por motivos de: JULIETA ESTÁ NA CIDADE!
Baby (18:25): o avião não chega ):
Cam tinha mandado uma foto dele mesmo com os cabelos bagunçados e papéis jogados ao seu redor e mandou uma do seu portão de embarque no aeroporto. Sorri e mandei vários emojis de coração em resposta para ambos. Aproveitei para avisar Toni que eu já estava na cidade, ele comemorou e começamos a conversar.
– Julie? – Ouvi Laura chamar meu nome. Levantei da cama e fui até a porta. – Dana quer que você veja como está seu quarto.
– Claro, vamos lá! – Coloquei meu celular no bolso. Estava receosa, mas fui mesmo assim. Eu já estava com ideia de não ir ao quarto, não queria ver meu lugar sendo de outra pessoa.
– Só espero que você não me mate! – Ela brincou e abriu a porta do meu quarto.
Quer dizer, do quarto dela.
O cômodo agora tinha as paredes todas pintadas de preto. Dava para dizer que Laura era uma grande fã de artes plásticas, a parede estava barrotada de quadros. A estante que ficavam meus livros, agora era cheia de discos e cds. Tinhas lâmpadas de led tipo pisca-pisca espalhadas pelo quarto todo e a cama king size de Dizzy.
– Uau! – Exclamei.
– Demais? – Indagou, mordendo os lábios. Nem parecia o mesmo quarto em que tinha apenas um quadro de anotações magnético como decoração.
– N-não, só está bem diferente do que costumava ser. – Até a porta do banheiro estava personalizada! – Você tem certeza de que é mercadóloga, não artista plástica?
– Eu sempre digo a ela que existe uma artista frustrada aí dentro... – Dana comentou, também entrando no quarto.
– O quanto você me odeia por ter mudado todo seu quarto? – Laura ainda parecia receosa e parecia estar sendo sincera. Eu podia ver nos orbes azuis da menina que ela procurava pela minha aprovação.
– Nenhum pouco, está incrível! – Elogiei e notei o alívio da garota. – E o quarto não é meu, Laura. É seu!
– Você tinha razão. – Ela olhou para Dana, sorrindo. – Ela é mesmo legal demais.
Dei risada, abraçando Dizzy de lado. Ela pediu para que ficássemos na sala conversando até os meninos chegarem. Senti-me estranha de estar no mesmo compartimento com duas pessoas bonitas e estilosa ao extremo e eu com jeans, suéter rosa e meias de bolinhas.
Ficamos conversando sobre várias coisas. Elas me contavam sobre as novidades de Hillswood, Laura me contou mais sobre ela e descobrimos várias coisas em comum, como por exemplo, nós duas gostávamos de assistir ao canal do Senado e tínhamos inclinação a se meter em protestos políticos. Laura era uma garota muito simpática, consciente. Era possível sentir um pouco de ressentimento dela comigo, provavelmente ela não queria de se sentir excluída ou ser deixada de lado, já que eu notei que já eram grandes amigas.
Depois da nossa segunda cerveja, ela confessou que estava nervosa em me conhecer, já que a pessoa que ela mais convivia falava muito sobre mim e ela tinha medo de eu ser rude com ela por conta de ela estar no "meu lugar". Eu a tranquilizei e disse que jamais faria isso. Só não disse que era provável que eu estivesse mais desconfortável que ela.
Finalmente criei coragem e fui até as janelas, minha parte preferida da casa, enquanto Laura e Dizzy preparavam salgadinhos. Meu sorriso enorme morreu em segundos quando abri as cortinas grossas e dei de cara com grades.
Minhas janelas preferidas, enormes e lindas estavam com grades! Aquelas barras de ferro acabaram com todo o encanto e perspectiva de liberdade que as janelas deveriam representar. Agora não era mais uma visão da aprazível cidade, cheia de possibilidades e do céu estonteante. Agora era apenas... Uma prisão.
– Dana! – Chamei-a e apontei para a janela. – Grades?
– O corpo de bombeiros veio aqui e fez uma exigência. – Respondeu, dando de ombros e voltou a colocar as pizzas no forno.
Abri a boca, um pouco indignada. Dana realmente balançou os ombros daquela forma? Para nossas janelas perfeitas? Nossa maior idealização de liberdade? A garrafa de cerveja quase caiu da minha mão. Quando procurei um lugar para apoiar, a droga da mesinha não estava ali.
– Cadê nossa mesa de centro? – Questionei sem me sentir culpada em usar o pronome possessivo. Dessa vez, era realmente nossa, nós compramos juntas.
– No meu quarto. – Ela respondia sem dar muita importância.
Ou talvez eu estivesse dando importância demais a pequenas coisas.
– Por que? Se eu bem me lembro, nós a compramos na seção "sala de estar". – Expressei com um pouco de irritação na voz. Ambas perceberam, já que finalmente tiraram a cabeça do forno e olharam-me. – E por falar em quarto, onde diabos eu vou dormir?
Dana e Laura me olhavam assustadas, aí me assustei comigo mesma. Será que eu estava soando mais agressiva do que eu estava me ouvindo? Meu pequeno surto foi interrompido pelo ruído do interruptor, Laura disse que atenderei e Dizzy veio até mim, com o cenho franzido.
– Você vai dormir no meu quarto, comigo. Achei que era óbvio! – Enunciou.
– Como? Sua cama mal cabe você, Dana! – Soltei uma risada de escárnio só de imaginar eu e Dizzy, espaçosas que somos, numa cama de solteiro. – Isso era possível quando a gente tinha uma cama de casal.
– Ei, Cam está subindo! – Laura avisou, voltando para frente do fogão. Dana ignorou completamente a garota e continuou falando. Estranhei, pois assim como , Cameron também tinha uma chave do portão.
– Eu achei que você não se importaria de dormir agarrada em mim, desculpa! – A morena revirou os olhos, agora parecendo mais irritada do que eu.
– Normalmente não me importaria, mas poxa, Dana! Eu acabei de passar 5 horas em um voo cheio de escalas, eu preciso descansar.
– Descansa quando você for para casa, ué! – Rebateu. Proferiu as palavras tão simplesmente que nem deve ter percebido o quanto me machucou. Levantei as sobrancelhas levemente e apenas assenti, falando um "ok" baixinho. Virei de costas para ela, fingindo pegar meu celular e ela foi abrir a porta.
Cameron continuava exatamente da mesma forma que eu o deixei no aeroporto. Ele entrou, pendurou a bolsa nos ganchos do lado da porta. Deu um beijo em Dana e Laura e veio até mim com o maior sorriso.
– Então existem voos de Springfield para Hillswood. – Aproximou-se de braços abertos e eu não me contive e corri até ele. Logo senti seus braços me apertando e me tirando do chão.
– E aí, garoto? – Gargalhei e deferi vários beijos contra sua bochecha. Ele me pôs no chão e mexeu nos meus cabelos.
– Me diz você, loira! Está em casa, finalmente. – Brincou, mexendo nos meus cabelos compridos. Sorri tristemente com a sua escolha de palavras.
– Eu também achei que estivesse... – Sussurrei, no entanto, Cam escutou e me olhou com a testa franzida. Olhei de relance para a cozinha, vendo Laura e Dana rindo entre si, tentando equilibrar bandejas nos braços uma da outra.
– Como assim?
– Nada, não. – Afastei-me e acariciei seu rosto, brincando com sua barba por fazer. Ele me olhou, sabendo que eu estava escondendo algo. – Senti sua falta, garoto.
– E eu a sua, loira. – Beijou minha bochecha e me puxou para sentar no sofá.
Dana não estava equivocada, eu realmente não estava mais em casa. Porém, doeu demais ouvir e doeu mais ainda perceber que eu tinha perdido minha conexão com Dana. Como ela mesmo disse, um ano é muito coisa.
Ficamos sentados no sofá, conversando, rindo e bebendo. A saudade era tanta que eu estava arriscando não ser eu mesma e estava abraçada a Cam, ocasionalmente beijando-o nas maçãs do rosto. Eu acho que Laura estava estranhando um pouco nossos carinhos. Tenho certeza de que foi dito a ela que meu caso era com e ela devia estar confusa de eu estar a carícias com Cam.
Mais alguns minutos passaram e a campainha tocou novamente.
– Eu abro. – Levantei e fui até a porta. Dei um gritinho quando abri e dei de cara com Jack e Victoria, sua namorada. – Jack Jack! – Abracei-o desesperadamente, dando pulinhos. Apesar de ser um dos mais velhos, Jack era considerado o mascote do grupo. Todos amavam Jack, todos protegiam Jack e sempre o queriam por perto.
– Vic! – Abracei a ruiva ao lado dele. Jack me apresentou sua namorada no meu último dia na cidade e garota era tão legal que eu fiquei irritada com Jack por não ter nos apresentando antes.
– Argh, finalmente vamos ser amigas pessoalmente! – Gargalhou, me abraçando de volta.
A noite passou rápida demais, a madrugada chegou rapidamente e com ela chegou à certeza de que eles ainda estavam lá. Meus amigos, os mesmos que viravam as madrugadas na minha sala, bebendo cerveja e falando sacanagem. Rindo das aventuras sexuais de Jack, que encontrou uma namorada a sua altura, que não tinha reservas em falar sobre seus antigos casos sexuais e até mesmo atuais, com seu namorado. O flerte velado de Cam e Dana que ninguém percebia.
Só faltava ele.
– 2h da manhã! Onde você está, seu IDIOTA? – Dana gritou no telefone. Eu desconfiava que estava falando com , que ainda não tinha aparecido.
Eu ri bastante durante a noite e sentia-me extremamente feliz, mas ainda não estava completa, eu não via hora de ver . Eu estava aliviada que todo mundo já estava meio bêbado e ninguém havia me perguntado nada diretamente. Eu não precisei falar muito também, todo mundo estava tão empolgado falando sobre tudo que eu perdi no último ano que provavelmente nem perceberam que eu estava um pouco fora de mim e alheia aquela noite.
– Passa para mim, eu vou comer a cabeça desse filho d... – Cam puxou o telefone de Dana, mas não ficou com o mesmo nem por dois segunda, pois Vic puxou da mão do mesmo.
– , se você não chegar aqui em quinze minutos, eu não vou conseguir controlar a multidão enfurecida que quer a sua cabeça. – Vic avisou ao rapaz e eu ri, por ela ter falado em um tom sério.
Acariciei o cabelo de Jack, que estava deitado com a cabeça no meu colo. Como de costume, Jack foi o primeiro a ficar bêbado e já estava dormindo. Nós dois estávamos no chão, já que o sofá novo não cabia quase ninguém e como não tinha mesa, o espaço no chão estava livre. Vic, Laura e Dizzy acharam um canal no YouTube de coreografias e já estavam suadas e descabeladas depois de dançarem tudo que tinha o nome da Britney Spears. Eu e Cam estávamos explodindo nossos pulmões com o tanto de erva que já tínhamos inalado.
– 10 minutos se o Thomas decidir passar de 40km/h! – Ouvi a voz de quase gritar pelo autofalante do celular.
– Quem é Thomas, filho da puta? – Cam perguntou, passando-me o cigarro de maconha. Coloquei a bituca entre meus lábios e senti uma bufada de tranquilidade entrar em mim quando traguei fortemente o final do cigarro. Joguei a cabeça para trás, estonteada com as sensações causadas pela cannabis.
Eu nem sempre fumava, seja cigarros normais ou os convencionais de Cam. Mas a carga emocional daquele dia estava grande demais para mim. Eu já não era conhecida por saber lidar e ser fraca com as adversidades da vida, não queria surtar na frente de todos de novo. Depois do meu primeiro breakdown, era de se esperar que eu estivesse recuperada e coisa e tal. Porém, desde os últimos acontecimentos, eu não fazia muita questão de estar sã e consciente.
Quem estaria sã, afinal?
– É o motorista do táxi! – Todos gargalhamos com o leve desespero de para dar explicações sobre sua demora.
– Você tem 10 minutos ou vou te expulsar da minha casa! – Cam determinou e esticou a mão para desligar o celular. Vic largou o celular no sofá e juntou-se a Dizzy e Laura em uma coreografia da antiga Hannah Montana. Eu não entendia muito de música, mas aquela menina, Miley, estava diferente.
– Expulsar da sua casa? – Estranhei, brincando com os cabelos loirinhos de Jack, que agora eram uma floresta intensa. A marijuana e seu poder de deixar tudo mais intenso.
– está morando comigo faz um mês. Eu te contei, Julieta! Você não presta atenção nas coisas que eu te conto, toda vez é isso...
Cam começou a reclamar um monte e eu desliguei-me dele tentando lembrar de alguma conversar que isso me foi citado. Após rir descontroladamente das garotas dançando, lembrei que Cam realmente me contou. Após um ano de turnê, conseguiu juntar dinheiro o suficiente para fazer um estúdio na própria casa. Passou a morar com Cam enquanto a casa estava em construção.
– Cameron! – Os olhos verdes do rapaz estavam quase cobertos pela vermelhidão causada pelo fumo. Talvez ele não estivesse tão sóbrio assim. – Preciso ir ao banheiro, você me ajuda? – Ele assentiu e ajudou-me a tirar Jack das minhas pernas, deixando-o deitado devidamente no sofá e me pôs de pé. Minhas pernas tinham se transformado em gelatina e eu quase caí.
– Você quer que eu vá com você no banheiro? – Perguntou quando percebeu minhas pernas moles e eu assenti. Subi em suas costas, entrelaçando minhas pernas em volta dele.
As meninas continuavam a dançar na frente da TV, talvez não atentamente pois senti-me fuzilada com os olhos de Dana e Laura acompanhando meus movimentos com Cam em direção ao banheiro do quarto de Dana.
– Não vai querer que eu te limpe também, não é? – Desci das costas dele, rindo, quando chegamos ao quarto. – Não foi assim que eu planejei ver você nua pela primeira vez.
– Cameron, para de dar em cima de mim! – Ralhei, beliscando a barriga dele, mas sem conseguir controlar as risadas. – Tem duas pessoas lá na sala que vão me esmurrar se você continuar com isso.
– Duas? – Questionou. Cam era tão perspicaz quanto eu, fingir-se de distraído não combinava com ele. Bastou um cruzar de braços e uma sobrancelha alta, ele logo revelou que sabia muito bem do que eu estava faltando. – Ah, sim. Você percebeu.
– E estou achando ridículo! Quando você e Dana vão admitir essa tensão entre vocês? – Fui para o banheiro, deixando a porta entreaberta para manter a conversa.
– Quando eu parar de me agarrar com Laura por aí. – Expôs sem a menor vergonha.
– Você é um imenso de um cafajeste.
Lavei minhas mãos e joguei água no meu rosto também, tentando diminuir inchaço e a cara de drogada que eu estava. Um leve rastro escuro da maquiagem ficou abaixo dos meus olhos, mas não liguei. Me deixava até um pouco sensual, fato que foi comprovado quando saí do Cam.
– Cara, o que aconteceu com você no Jeins? Você era bonita antes, mas agora você está a maior gostosa! – Gargalhei. Joguei meus cabelos para o lado, piscando apenas um olho para o rapaz a minha frente. Ele apertou as mãos no peito, como se tivesse sido atingido.
– Se você flertar comigo mais uma vez, eu não respondo pelos meus atos. – Declarei, apontando um dedo a ele.
– Mas eu vou ter que responder pelos seus atos. Vai ter, pelo menos, umas cinco pessoas que eu vou ter que dar justificativas. – Exprimiu. Ri, também fazendo a contagem na minha mente e era isso mesmo. Absolutamente todas as pessoas da sala – e de fora dela também – iriam querer explicações detalhadas de um suposto caso meu com Cam.
Sentei na cama de Dizzy, jogando-me de costas, sentindo meus músculos todos se movimentarem, causando ruídos indeterminados. A ideia de dormir naquele apartamento passou a me atormentar durante a noite inteira, eu precisava ter um plano de escape contra aquele breve incômodo que me perseguia. Com isso em mente, olhei para a única pessoa que poderia me ajudar e que parecia menos chapado do que eu.
– Preciso de ajuda da sua mente maligna, Cam. – Comuniquei, puxando minha mala e minha mochila para perto. Arrumei a minha mochila de modo que fosse o suficiente para passar dormir em outro lugar.
– Com o quê?
– Não vou conseguir dormir aqui hoje. – Declarei, suspirando. Procurei um pijama na minha mala, deixando tudo uma bagunça.
– Eu sabia. Você tem estado estranha a noite inteira. – Murmurou, sentando no chão a minha frente. Neguei, já que na minha visão, eu estava sendo perfeitamente normal e estava até socializando bem. Mas Cam articulou sua resposta muito bem. – Primeiro que você quase não bebeu. Segundo que você aceitou fumar logo de primeira, isso não é normal. – Enumerou as coisas com o dedo e eu revirei os olhos. O número de pessoas que me conheciam bem acabara de aumentar. – E você estava com um olhar estranho também. O que houve?
Antes que eu pudesse responder, a porta do quarto se abriu. E por mais clichê que isso seja, a nebulosidade diminuiu e tudo começou a fazer sentido novamente.
nem ao menos me deu tempo de ficar de pé. Veio correndo até mim, deslizando de joelhos dramaticamente pelo chão e abraçou minha cintura fortemente.
Apertei meus braços em volta dele, escondi meu rosto no seu pescoço, beijando-o várias vezes no local. O seu perfume ainda era o mesmo, seu cabelo estava o mesmo.
Talvez eu fosse a única que não fosse a mesma ali.
– Quanta falta eu senti de você! – Declarei, suavemente. Ele se afastou e olhou meu rosto atentamente. Como usualmente, comecei a ficar sem graça com sua análise sempre tão atenciosa e desviei o olhar, lembrando de Cam sentado ali. – Baby, seu amigo Cameron estava dando em cima de mim.
– Eu sabia! – esticou-se para dar um tapa no pescoço do amigo, sem tirar o outro braço da minha cintura. – Por isso entrei sem bater na porta, nem nada. Queria vê-lo no ato. E também lembrá-los que você, Julieta, já tem um cara só para você.
Meus lábios abriram-se de leve. Imediatamente tive vontade de jogar naquela cama e matar a saudade que eu estava do corpo dele e de um sexo de qualidade, para variar.
– Só para mim? – Desviei o olhar para seus lábios.
– Só para você, baby.
– Ok! Isso aqui ficou sexual rápido demais! – Cam gritou, tirando-nos do rápido transe que entramos. O que já era de praxe quando se tratava de nós. – Eu vou sair porque sinto que vocês vão começar a se agarrar a qualquer momento.
– Não, espera! – Reclamei. Puxei para sentar ao meu lado e dei atenção a Cam antes que ele se irritasse. – E o nosso plano?
– Agora que chegou e só dizer que vocês querem sair para transar. – Cam deu de ombros. Revirei os olhos e joguei um par de meias nele pela ideia idiota.
– Dana vai me matar se eu dispensar ela por causa de uma transa. – Afirmei.
– Espera, plano de quê? A gente vai transar? Eu não estou entendendo nada! – reclamou, desorientado.
– Julie não quer dormir aqui hoje. – Cam respondeu, revelando minha apreensão, jogando o par de meias de volta para .
– Por que? O que houve? – Questionou e eu suspirei. Pensei duas vezes se deveria contar ou não. Se eu contasse, o meu status de pessoa frágil voltaria à tona. Mas eram e Cameron ali. E era Hillswood. Eu não precisava mais me fazer forte e insuperável na frente deles. Não precisava fingir que sabia lidar com minha imensidão de sentimentos e intensidade.
– É besteira. Eu reclamei com Dizzy que não queria dormir nessa cama com ela porque não ia conseguir descansar direito. E ela falou que estava com saudades e que eu deveria descansar em casa... – Contei. Peguei as mãos de e comecei a brincar com seus dedos. Eles entreolharam-se, tristonhos. – Eu disse que era besteira.
– O que você disse mais cedo fez sentido agora... – Cam mordeu o dedo mindinho, pensativo. – Eu já sei o que fazer. Sigam minha deixa!
Cam levantou do chão e saiu do quarto, andando em passos firmes. Eu e nos entreolhamos e começamos a rir sem motivo. Talvez fosse pela nostalgia do momento, armação de planos era nossa especialidade. Levantei, pronta para ir à sala também, mas fui impedida por , que me puxou de volta pelo braço, sentando-me na sua perna direita.
– Como você está? – Perguntou, brincando com a ponta dos meus cabelos.
– Agora eu estou bem, finalmente. – Ele sorriu para mim e, céus, eu senti falta daquele sorriso. Senti falta de tê-lo tão perto de mim. – E você?
– Um pouco cansado. Passei 18 horas dentro de um avião só para ver você. – Enquanto relatava, sua mão passeava pela minha coxa exposta. Minha pele parecia despertar com o toque do homem após um ano inteiro de dormência.
– Eu passei o ano inteiro sentindo saudades de você, nada mais justo. – Repliquei.
Os lábios apertados em um sorriso malandro deixavam-me fora de mim. Ele olhava para meus lábios e meus olhos como se estivesse pedindo permissão para se aproximar. E quando ele finalmente aproximou-se, a sensação de volta ao lar se apoderou de mim. Desci minhas mãos pelo seu rosto, seu pescoço, chegando aos seus braços. Estranhei quando os senti mais firmes e afastei-me para olhar mais atentamente.
– Seus braços estão maiores. – Enunciei, tocando nos bíceps dele.
– Voltei para a academia. – Deu de ombros, puxando-me para perto novamente.
– Ah, não! Vai ser um saco você ficar ainda mais irresistível. – Bufei, brincando com a gola do seu casaco.
– Irresistível, tipo você? Desculpa o modo de falar, baby, mas você loira... Está uma delícia.
Dito isso, segurou um punhado de cabelos meus e acabou com o espaço entre nós, tomando meus lábios com pressa e vontade abrupta. Ambos suspiramos quando nossos lábios se tocaram, todo meu corpo entrou em alerta. ainda seria minha causa de morte. Era terrível e assustador sentir-se assim, tão dependente de um beijo. É claro que eu tive meus casos e meus amores, eu não parei minha vida no Jeins por conta dele. Porém, com era diferente. Com ele era anormalidade, intenso demais. A gente não precisava de rótulos, não precisávamos de lugares, músicas, nem empurrões. Era inevitável.
Éramos inevitáveis.
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– Vai ser melhor, amiga. Você vai estar sóbria, eu não vou estar tão chapada e vamos aproveitar melhor nossas companhias. Vou ficar com você até volt...– Engoli em seco, sentindo-me mal de usar as palavras de Dizzy contra ela. – Até eu voltar para casa.
Dana estava se recusando a entender a ideia de Cam. O fotografo deu a ideia de que eu dormisse uns dias na casa de todo mundo até meu voo de volta para Springfield, já que todo mundo queria me encher de novidades e fofocas e nem metade foi falado naquela noite. Falou que ele mesmo estava doido para sentar e conversar comigo sobre várias coisas e tinha certeza de que e Jack também estavam.
"Eu sei que todo mundo quer contar as novidades para Julie, mas não precisa ser de uma vez", Cam tentou explicar para uma Dizzy, quase irredutível, de braços cruzados. Nós estávamos na porta, esperando por Laura, que procurava a chave do carro do rapaz. Dana fez um show quando me viu saindo do quarto de mochila, com ao meu lado.
– Se organizar direitinho, todo mundo transa. – Laura brincou, colocando as garrafas e restos de lixo em um grande saco preto e procurando as chaves no meio daquela grande bagunça.
– É, mas todo mundo sabe que só quem vai transar mesmo é o . – Abri a boca, indignada com as palavras de Jack, que surgiu na conversa. Peguei um copo descartável que estava na bancada e joguei no rapaz que estava deitado no sofá. Todos gargalharam, apenas eu e continuamos a xingá-lo.
– Você não estava dormindo? Idiota! – Hostilizei o rapaz.
– É só o chegar e você esquece que eu existo. – Resmungou, revirando os olhos. Jack havia despertado após Vic tomar coragem e chamou um Uber para eles. A gente não sabia exatamente a quanto Victoria e Jack estavam juntos, mas eles tinham uma cumplicidade e afinidade de dar inveja a qualquer casal. Estavam quase morando juntos, mas ninguém tinha tido a coragem de deixar sua própria casa.
– Na minha época, você ficava bêbado e só acordava daqui a uma semana! – Reclamei, indo até ele e beijando sua testa. – Os tempos são outros mesmo...
Cam anunciou que tinha achado as chaves e começamos a nos despedir de todos. Quis dar um soco em Cam quando o vi dando um selinho de leve em Laura. Me aproximei de Dana e ela me olhava com uma carranca, mas me abraçou quando estendi meus braços a ela.
– A gente conversa melhor amanhã, tudo bem? – Acariciei seu rosto de leve, fazendo um biquinho junto com ela. Dei um beijo no nariz dela e segui em direção ao elevador com os outros dois.
Quando as portas do elevador se fecharam, eu virei e distribuir alguns tapas no braço de Cam. Parei sob reclamações do mesmo e risadas de , que já desconfiava o motivo da minha ira.
– O que eu fiz agora? – O homem massageou o braço atingido por mim, olhando-me surpreso.
– Você fica beijando essa garota! – Exclamei, gesticulando irritada.
– E o quê que tem? – Perguntou, dando de ombros. – Somos afetuosos um com o outro.
– Afetuoso é como a Dana olha para você quando você se aproxima da Laura. – comentou, risonho. Olhei de relance rápido, mas acabei olhando de novo tamanha a perfeição deste homem.
estava encostado na parede do elevador, com a mochila em apenas um lado do ombro. Os braços cruzados abaixo do peito, o olhar maroto, o rosto barbeado e o sorriso ladino eram a combinação fatal contra mim.
– Caramba, eu tinha esquecido o quanto você é bonito! – Soltei o elogio sem querer, olhando um pouco indignada para . O cantor gargalhou, passando a mão pelo rosto corado e ouvi Cam bufar ao meu lado. Não era muito justo com o resto do mundo ele ser tão bonito assim. Continuei a falar, parando de olhar para porque ele desviava minha atenção. – Enfim, se até o percebeu, não é muito difícil de você entender, Cameron.
– Devo me ofender? – questionou enquanto saíamos do elevador e entramos na garagem, procurando pelo carro.
– Claro que não, baby!
– Sim, deve! – Eu e Cam falamos ao mesmo tempo, rindo em seguida. Cam jogou as chaves para , que pegou no ar.
– Você pode me explicar de novo seu lance com ela? – Pedi, entrando no banco de trás do carro.
– Já ouviu aquele ditado: "em época de guerra, qualquer buraco é trincheira?" – Prendendo o riso, Cameron citou.
– Quanta classe! – revirou os olhos. Tentei nem olhar para o rapaz dirigindo.
dirigindo mexia com meus hormônios severamente.
– Genial! – Gargalhei.
– Não tem nada demais. Eu a beijo, às vezes. A gente nem transou, só rolou uns dedos. – Explicou e eu fiquei uma careta pela explicação chula.
– Você é nojento. – repreendeu novamente. As piadas sujas e palavreado chulo de Cam eram demais para o pobre coração (nada) inocente de .
– Isso não é sexo para você? – Perguntei para Cam, sentando no banco e me posicionando entre os bancos da frente para olhar melhor para eles.
– Não, ué. Sexo é sexo! – Deu de ombros. – Meu pênis não fora usado em momento algum. – Esclareceu, ocasionando uma breve indignação em mim e .
– Isso não quer dizer nada, cara. – murmurou, negando com a cabeça.
– Você acabou de desqualificar o sexo lésbico em massa aqui, Cameron. – Declarei, revirando os olhos com o pré-conceito dele. – E sem falar na sua pouco imaginação para sexo.
Lembrei imediatamente de uma temporada inteira que passei com Santiago, sobrevivendo apenas de sexo oral e uns amassos mais elaborados. Por algum motivo, algumas vezes aquilo não era o suficiente para mim e eu sentia que quando fosse transar futuramente, eu ia gozar majestosamente. Mas sexo é algo extremamente pessoal e intransferível. O que era bom e ruim para mim, não era para outro pessoa. O que não dava certo para mim com alguém, podia dar certo comigo e outro cara.
– Parece que você não sabe das coisas que são possíveis de serem consideradas sexo. Com a sua concepção, todos os sexshops do mundo iriam falir. – Após sua declaração, virou o rosto para me olhar e eu quase me afundei de vergonha no banco de trás. – Certo?
– C-certo... – Gaguejei. Intimidada com o olhar sacana de , virei seu rosto para frente com minhas próprias mãos. Nada me deixava mais inflamável do que lembrar das nossas aventuras sexuais. E às vezes nem eram aventuras, eram simplesmente vontades nossas que surgiam numa tarde de segunda, nos fazendo sair da cama e procurar pelo sexshop mais próximo.
– Tudo é sexo! Exceto sexo, que é poder. – Dissertei sobre o quote de Oscar Wilde. Entretanto, eu sabia que entenderia porque também era parte de uma música de Janelle Monáe.
Música e literatura era onde nossos corações se encontravam.
– Me mata quando você fala assim, Julieta... – suspirou com uma mão no peito e um sorriso relaxado no rosto.
– Vocês dois precisam transar urgentemente! – Cameron observou nossas feições, sentindo a nossa tensão sexual quase nos engolindo e o levando junto.
– Defina sexo. Já que sexo para mim, são preliminares para você. – Expressei, ainda impressionada com a incoerência de Cam. Olhei pela janela e percebi que estávamos chegando à rua de Cam. O caminho é rápido quando estamos conversando e não tem trânsito algum pelos paralelepípedos de Hillswood.
– Você não me disse que tinha ficado com alguém. – A voz de irrompeu no meio da risada de Cam, que a engoliu rapidamente.
– Uh, ainda bem que já estamos chegando! Assim eu posso me trancar no banheiro enquanto vocês se matam aqui embaixo. – Cam gargalhou e nós acabamos rindo com ele.
– Eu disse que tinha tentado e realmente tentei. – Expliquei, falando de forma leve para que não soasse como se eu estivesse me defendendo ou justificando. Eu não era culpada de nada, afinal.
– Eu achei que o seu "tentar" fosse um jantar que não deu certo ou algo do tipo. Não que envolvesse você chupando um cara qualquer por aí. – Exprimiu em um tom de voz duro.
– Cuidado com suas palavras. – Adverti, não gostando nenhum pouco do seu tom de voz e escolhas de palavras. Ele suspirou, já transparecendo impaciência. Entrou na garagem de Cam com um solavanco, fazendo-se notar que estava com raiva. – Eu contei para você que não estava conseguindo... Sabe? Com outro cara.
– Por que não? – Cam perguntou e dei de ombros, também não sabendo explicar o porquê. – Você também teve esse problema? Com a garota de Londres... – Cam soltou inocentemente.
Mas eu soube que nada ali era inocente quando arregalou os olhos, travando uma tapa no braço de Cam, que se assustou. Ele não entendeu, até olhar para trás e ver meus olhos semicerrados em direção ao cantor.
– Você me disse que só tinha beijado algumas garotas. – Recordei, puxando minha mochila para meus braços e descendo do carro.
– Mas aconteceu depois daquela nossa conversa. – Ouvi justificar do outro lado do carro e revirei os olhos.
– E você ainda estava me enchendo de cobranças. – Resmunguei.
Entramos na sala da casa de Cameron e nada tinha mudado. De todos nós, Cam era o que tinha a maior casa. Tinham dois andares. No andar debaixo, ficava a sala grande, com móveis brancos e as paredes cobertas de fotos, uma coletânea dos seus trabalhos preferidos. A cozinha ficava ao lado e não era muito grande, mas as janelas eram todas de vidro, dando um ar mais amplo e arejado ao local. No segundo andar, tinha o quarto de Cam, um banheiro e um escritório. Cam explicou que dormiria na sala e eu poderia dormir no quarto dele. Não fui educada e não reclamei, pois a sala de Cam era bastante confortável, seu sofá era um retrátil e reclinável, logo ele dormiria sem grandes problemas e eu estava necessitada de uma cama de verdade.
– Vou tomar um banho. Tentem não quebrar... a casa inteira. – Cam clamou ao subir as escadas.
Sentei no sofá, planejando esperar por ali enquanto Cam usufruía do próprio quarto. Olhei para , esperando que ele também fosse para o escritório – que era onde ele estava dormindo –, mas ele sentou ao meu lado no sofá, jogando sua mala no chão. Olhou-me como se estivesse esperando eu começar a falar. Eu tentei muito ficar calada e quieta, não queria dar o gostinho a ele de perceber que eu estava incomodada e louca de ciúmes de seu possível caso com uma britânica que, na minha mente, era a Emma Watson, encantando-o com seu jeitinho doce, meigo e... britânico.
– Você... Foi até o final com ela? – Bati na minha própria testa quando ouvi minha voz me traindo e perguntando. – Com a garota que você ficou?
– Qual delas? – Ergueu uma sobrancelha, provocador.
– Ah! Foi mais de uma? Ótimo! – Desdenhei, sentindo aquela irritação já conhecida chegar em mim.
– Se você pode ficar se relacionando por aí com caras que eu nem soube da existência... – Retrucou, cruzando os braços.
– Você tem noção que está falando isso sem propriedade nenhuma, não é?
– Eu contei que tinha beijado umas pessoas. – Explicou, dando de ombros, como se estivesse se isentando de toda a culpa.
Maldito.
– Beijar, ! E sem falar que você ficou com elas por aí sem saber que eu estava com alguém, então você foi um babaca primeiro. – Exprimi toda minha revolta na minha expressão corporal. Cruzei os braços e as pernas ao mesmo tempo. Ele olhou-me com uma sobrancelha erguida e eu posso dizer que vi uma fagulha passar por seus olhos. Parecia que eu tinha encostado um ferro quente em seu pescoço, tamanha a indignação do mesmo.
– Agora nós estamos falando a mesma língua! – Exclamou um pouco mais alto, virando seu corpo inteiro para mim. – Então você estava com alguém e não me contou.
– Toda essa discussão é ridícula, . Nós não tínhamos nada!
Me arrependi do que disse quase no mesmo segundo.
bateu com as palmas das mãos nas próprias pernas, causando um forte estalo e levantou do sofá, andando para o outro lado da sala.
– Eu juro que se ouvir você falar mais uma vez que nós não temos nada, eu vou enlouquecer! – Ele negou com a cabeça e, nervoso, passou as mãos pelos cabelos, puxando-os de leve.
– Eu mal cheguei na cidade e você já está surtando! – Continuei com minha pose insolente, olhando-o debochada, do jeito que eu sabia que ele odiava.
– Talvez porque eu passei o ano passado inteiro ouvindo você repetir a mesma merda! – Esbravejou.
– Porque nós éramos amigos! – A fisionomia de se transformou de chateado para irritado, contendo sua própria fúria.
– Amigos? Julieta, eu fodi você em cada canto daquele apartamento, eu te fiz uma música. Eu cancelei uma porra de um show por você. Como você tem coragem de falar na minha cara que nós éramos apenas amigos? – Indignou-se.
começou a falar forte demais, eu tinha certeza de que Cam já estava apreensivo no andar de cima. Até eu já estava ficando apreensiva. Eu tinha esquecido da nossa intensidade. Tal qual sexo, nossas brigas também eram abrangentes e fortes, intensas.
– Eu não sei como diabos a gente chegou nessa discussão. – Esfreguei meus olhos, sentindo todo o cansaço do dia me abater. Ou então eu só não queria lidar com e suas duras verdades jogadas em minhas mãos.
– Você quer amizades? Ok, vou ser seu amigão a partir de hoje. – Deferiu dois tapinhas no meu ombro e distanciou-se de mim.
Abri os lábios indignada com tamanha raiva e audácia do mesmo. Parece que após tanto tempo reprimindo seus sentimentos por minha culpa, tinha estourado. Em um gesto brusco, marchou em direção à escada.
– Uou! Espera aí! – Exasperada, fui até ele e me coloquei em sua frente, notando sua testa franzida pela raiva. – Você está terminando comigo, é isso?
– Achei que a gente não tinha nada. Somos amigos, não? – Cruzou os braços, olhando-me raivoso. Senti algo dentro de mim espumar.
Queria gritar, queria chorar, tudo de uma vez.
- Você é um babaca. – Constatei. Empurrei seu ombro com a mão, mas ele nem se moveu. Continuou imóvel, encarando a mim. Peguei minha mochila e fui em direção a escada.
– Um babaca cansado, apenas. – Ouvir aquilo pareceu ser um gatilho para mim. De repente, eu me tornei super ciente de mim mesma e de meus sentimentos.
– Você está cansado?! – Fui até ele, sentindo nossos corpos se trombarem e eu tive que ficar na ponta dos pés para olhar em seus olhos. Estávamos próximos, de modo que eu sentia sua respiração forte bater contra meu rosto. – Eu estou cansada, ! Passei um ano inteiro fingindo que estava bem, vendo absurdos acontecerem ao meu lado, eu só queria um pouco de paz. Me desculpa por tentar procurar um pouco de sossego.
– Eu sou o seu sossego, porra! – Gritou, segurando meu rosto em suas mãos fortemente. – Não é possível que você seja estúpida e não entenda o que está acontecendo aqui!
Uma mistura de tristeza e raiva cresceu dentro de mim, senti um nó em minha garganta. Me odiei por ser empática e entender completamente porque estava perdendo as estribeiras comigo. Tentei manter-me inexpressiva, mas as lágrimas inundavam meus olhos. A sala parecia sufocante e a culpa era toda minha.
- Ei, se acalmem! – Ouvi a voz de Cam atrás de nós, mas não me importei. continuou segurando meu rosto e eu continuei olhando-o, prendendo meus lábios como se isso fosse um impedimento para as lágrimas não caírem. – Está de madrugada, os vizinhos...
– Você me chamou de burra? – Tentei falar e me manter sustentável, mas minha voz estava falha por conta de todo choro que eu havia reprimido.
– Não! Desculpa, só quis dizer que quando se trata de nós, você se torna uma pessoa totalmente incoerente! – Bradou alterado e eu, já não aguentando mais, tentei me desfazer do seu aperto.
Tirei suas mãos de mim agressivamente, esmurrando seu peitoral algumas vezes. Ele acabou se defendendo dos meus empurrões, tentando manter meus braços longe dele. Escutei Cam falar um "ei" enquanto tentava me afastar do homem a minha frente. Eu não sabia porque estava com tanta raiva já que não tinha falado nada mais do que verdades, mas estava.
Livrei-me do toque dos dois. Se eu fosse prezar pela minha dramaticidade, eu sairia pela porta e ficaria na rua ou dormiria em outro lugar. Mas eu estava cansada, não só fisicamente. Desde que entrei na casa de Cam, eu só queria deitar na cama gigante e confortável dele. Então, ao invés de correr para a porta, corri para as escadas, pisando firme nos degraus.
Entrei na porta a direita, dando de cara com o escritório. Estava completamente bagunçado, o sofá-cama coberto por colchas e edredons. Havia algumas malas no chão e em cima da mesa que ficava no canto estavam alguns objetos. E a pior parte: O cheiro do perfume de impregnava o quarto inteiro. Bati a porta antes de prestar mais atenção nas coisas e entrei na porta ao lado. O quarto de Cam também estava bagunçado, mas nada pavoroso. Soltei os cabelos do rabo de cavalo, senti meu sangue voltar a circular e senti-me até um pouco tonta. Tirei todas as minhas roupas, deixando no chão mesmo e fui para o banheiro no corredor, sem me importar com o frio que fazia ou se algum dos dois me veria nua.
Eu já estava no meu ápice, não queria me importar. Estava cansada de ter que me importar com tudo. Parecia que a cada mês eu tinha que carregar um mundo diferente nos ombros e a culpa era totalmente minha.
A minha vida inteira tinha mudado completamente nos últimos tempos. Eu estava acostumada a viver na rotina, as histórias interessantes nunca aconteciam comigo, eu nunca era a protagonista. Então, de repente, eu estava presa em um triângulo amoroso com minha melhor amiga e tinha sofrido um acidente de carro. E fui expulsa da faculdade e havia voltado para minha cidade. E havia testemunhado a porra de assassinato!
E meu melhor amigo de infância estava morto.
Tudo o que poderia acontecer na vida inteira de uma pessoa, aconteceu comigo em um ano. E não estava sendo fácil.
Quando saí do banho, as luzes da casa já estavam todas desligadas, exceto a do escritório. Me perguntei como estava. Provavelmente estava esperando que eu liberasse o banheiro, enquanto já devia ter arrancado todos seus cabelos.
Coloquei o pijama de moletom que havia colocado na mochila e me joguei debaixo das cobertas, sentindo minhas costas quase gritarem de alívio. Peguei meu celular e abri as mensagens. Eu não sei muito bem o que eu esperava encontrar, mas meus dedos escorregaram pela tela para o nome do Santiago. Eu queria falar algo, mas não tinha assunto algum, nem coragem de mandar um mísero "E aí? Ainda não sentiu minha falta?".
Era muito presunçoso da minha parte querer que ele sentisse minha falta?
Ouvi a porta do quarto ser aberta e virei minha cabeça para ver, sem mexer um centímetro do meu corpo. Vi a silhueta seguir até a cama, sendo iluminada apenas pela luz da rua que vinha da janela. Nossos olhos se encontraram no meio do caminho. Ele vestiu um moletom cinza sem desviar o olhar do meu rosto. Sua expressão, como sempre, neutra. Eu ainda estava deitada de costas para ele, desviei meu olhar, encarando a parede cheia de post its e anotações.
Não sei o que era mais doloroso. Olhar para a parede de Cam cheia de anotações e saber que, diferente de mim, todos eles tinham tarefas e responsabilidades. Ou olhar para o rosto descontente de após quase um ano sem vê-lo pessoalmente. Senti o colchão afundar e seu corpo invadir meu espaço, colocando-se debaixo do meu cobertor. Suspirei profundamente, sem forças para levantar ou brigar.
– O que você está fazendo? – Não desconfiei que estaria com a voz fraca e falha até perguntar.
– Vou dormir com você hoje. – Informou, normalmente.
– Não me recordo de ter convidado. – Retruquei, tentando parecer rude, mas eu já estava tão esgotada que nem minha voz estava cooperando para minha atuação.
Senti suspirar, impaciente. Ele também estava esgotado, supus. Prendi a respiração quando ele se aproximou mais de mim, tocando minhas pernas com as dele. O cheiro de sabonete e limpeza estava me deixando doida para virar e enterrar meu rosto em seu pescoço.
– Foi um dia estressante, Julieta.
– O problema não é meu, .
Ficamos em silêncio. Se qualquer pessoa entrasse no quarto, conseguiria sentir a tensão em suas mãos. O clima pesado começou a se dissipar quando sutilmente passou o braço por cima de mim, quase como quem pede autorização para me tocar.
Eu dormi com menos de cinco caras na vida inteira. Três deles eu estava bêbada e foram situações pós sexo. Um deles foi o único que eu amei e mesmo assim, eu não era muito a favor de dormir de conchinha. Imagine meu espanto ao me sentir estranhamente confortável nos braços de quando dormimos juntos pela primeira vez.
Senti meu coração acelerado e sabia o porquê. Meu corpo sentia falta dele, tudo em mim chamava por ele e quando ele me abraçou, senti tudo voltar. Eu ainda era apaixonada por , eu ainda estava perdida na vida, eu ainda estava sem emprego, ainda estava confusa e senti mais vontade de chorar quando pensei que mesmo estando mal naquela situação, eu ainda estava mil vezes melhor do que estaria em Springfield.
E pensar no Jeins, me fez pensar em tudo que eu deixei para trás e em tudo que fui obrigada a deixar. Ou a quem.
Era a segunda vez no dia em que as lágrimas fugiam do meu controle. Minhas duas lágrimas grossas não passaram despercebidas por . Ele, que estava pouco inclinado em cima de mim, aproximou-se mais, grudando seu peito em minhas costas. Limpou o caminho das minhas lágrimas com o dedo indicador suavemente.
– Foi um dia difícil. – Comentei, fungando e coçando o nariz, tentando justificar minhas lágrimas. – E agora você está aqui e...
Não consegui completar. Queria dizer que ele ali parecia certo, mas como poderia ser, se ele estava totalmente justo em tudo o que me disse? Como pode tudo parecer certo e, ao mesmo tempo, errado? Eu tinha tanto para falar, queria pedir desculpas. E senti que ele também queria dizer algumas coisas, mas ambos ignoramos tudo.
– A minha vontade era ficar no meu quarto, só olhar para o seu rosto quando eu fosse obrigado. – Expressou rispidamente.
– Por que você está aqui, então? – Questionei, franzindo o rosto, sem conseguir entender seus motivos.
– Porque eu não tive um dia bom, mas ficar com você sempre pareceu melhorar as coisas. Então... – Suspirei profunda e audivelmente. Ele me quebrava completamente quando dizia coisas assim. – Não por você, eu só queria me sentir melhor.
– Egoísta. – Sorri de canto, provocando-o.
– Eu sei, mas seu cheiro e seu corpo fazem eu me sentir bem. E como você é má comigo, não sinto culpa alguma em abusar dos seus poderes sobre mim.
Caras que escrevem, eles são um perigo.
Ali, entre os braços de , imersa no meu conforto, eu senti que havia – finalmente! –, encontrado meu sossego.
Me surpreendi quando ele jogou todo meu cabelo para cima, posicionando o rosto em minha nuca. Me arrepiei dos pés à cabeça quando ele respirou forte ali. Me atrevi a apoiar a mão em seu braço que repousava em cima de mim. Relaxei minhas pernas nas dele quando senti seus lábios depositando beijos suaves pelo meu pescoço. Seus beijos eram leves, mas me causavam tanta inconstância. Era esse meu problema com . Ele me deixava quase sem defesas, me fazia sentir demais, me fazia querer estar sempre perto dele. Eu tinha tanto para falar e senti que ele também queria dizer algumas coisas, mas ambos ignoramos tudo. A nossa única necessidade no momento era se desconectar do mundo por algumas horas. E era muito fácil esquecer que existia um mundo lá fora quando estávamos juntos.
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Existe uma linha tênue entre a arrogância e a confiança. Saber do seu potencial e ser prepotente também dividiam essa mesma linha.
Eu cheguei à editora Hall às 7h da manhã e quase todas as pessoas que conheci pelo caminho, não sabiam distinguir essa linha. Andavam com o nariz quase no teto, o peito estufado pelo orgulho exacerbado. Diferente de mim, que desde que entrei no prédio, estava me sentindo pior comigo mesmo a cada sala que entrava.
Eu realmente achei que a vaga já era minha e eu estava ali apenas para conhecer o local, por Toni ter convidado-me pessoalmente para conhecer a empresa e tudo mais. Senti-me desanimada e confusa quando fui direcionada pela secretária a entrar na fila de entrevistas. Não por estar nervosa com uma rejeição, e sim por saber que não existia essa possibilidade. Toni garantiu que era apenas uma formalidade.
Eu odiei saber que todas aquelas pessoas que estavam ali, esperançosas que sairiam com um novo emprego, não chegariam nem perto da vaga. Quase comecei a chorar quando um deles sentou ao meu lado e começou a contar algumas dificuldades de vida. Algo normal, dificuldades rotineiras que todos temos, porém, minha mente acusava-me de coisas maldosas a cada palavra dele. Agradeci aos céus quando fui chamada a entrar na sala de entrevistas. Eu ainda estava na porta e o responsável já veio dizendo que estava muito feliz em me conhecer, que Toni já havia conversado com ele e que aquilo seria apenas uma formalidade.
Formalidade. Mais uma vez essa palavra. Nunca pensei que a formalidade poderia tornar-se sinônimo de corrupção. Ele nem sequer citou meus trabalhos ou o artigo que fez Toni chegar até mim.
Conversei com o homem rechonchudo por alguns instantes e logo fui encaminhada para o andar superior, onde um apreensivo Anthony Hall me aguardava na porta de seu escritório. Sorri ao vê-lo pela primeira vez após minha festa de despedida no Natal do ano passado.
Cumprimentamo-nos formalmente, ele até mesmo me chamou de Srta. Young, porém, quando entramos em sua sala e ele fechou as portas e persianas, pudemos agir como os velhos amigos idiotas que sempre fomos sem se importar com os possíveis julgamentos lá de fora.
– Ah, como eu senti sua falta! – Abraçou-me fortemente pela cintura, tirando-me do chão por uns segundos.
– E eu, a sua! – Exclamei, tocando sua bochecha com meus lábios. – Minhas festas em Springfield nunca acabavam na correria, era um saco!
– Trago emoção para sua vida! – Gargalhamos quando ele repetiu a frase que já se tornará um bordão interno nosso. Quase todas as lembranças de festas que fui com Toni passaram pela minha cabeça. Não todas, pois eu e Toni éramos muito "party people".
Qualquer cervejinha em um bar após a aula, tornava-se algo estrondoso.
– Olha só você, todo adulto! – Gracejei, passando a mão por sua barba por fazer e pela gravata elegante.
– Alguém nessa família tem que ser. – Resmungou, rolando os olhos. – Está sendo difícil manter esse local de pé sozinho!
– E por falar nisso, você pode fazer o favor de me explicar o que eu estou fazendo aqui? – Fui em direção ao pequeno sofá verde que tinha no canto da sala, sentei e estiquei minhas pernas sobre a mesinha do mesmo. – Eu preciso que você guie minha vida, garoto! Estou aqui desde quinta-feira e ainda não sei muito bem o que vim fazer.
Toni riu e veio sentar ao meu lado, posicionando as pernas sobre a mesinha assim como eu. Logo começou a explicar que após a entrada dele como novo diretor da Editora Hall, a empresa passou por uma grande reformulação. Com isso, muitas pessoas foram demitidas e apenas as mais antigas – e as melhores – foram mantidas. Eram uma editora independente, mas a má administração da família de Toni fez com que a marca acabasse ficando instável no mercado.
– E é aí que você entra! – Franzi o cenho, ainda sem entender como eu me encaixaria ali. – Eu quero te contratar como minha conselheira administrativa.
O que?
– Que? – Confusa, tentei fazer com que ele me explicasse melhor a sua ideia, apesar de eu achar que já estava bem explicado. – Toni, eu acho incrível a sua ideia da reformulação. A gente já falava sobre isso a algum tempo, você sempre foi bom nessa área, mas fizemos faculdade juntos, cara. Eu sou jornalista, não sou administradora!
– Julie, eu sei que você não quer ficar presa às competências do jornalismo em si. Sei que você não quer trabalhar em um jornal novamente. – E não queria mesmo, até tremi no lugar com a ideia. Mas se essa fosse minha única saída, eu teria que aceitar. – Sei que você quer outra graduação, sei que quer outras experiências. Você lembra do trabalho da professora Jane, que nós tivemos que reformular uma revista inteira? Tivemos a maior média do curso nesse semestre. Fizemos um incrível projeto gráfico e editorial, Julie! Não é muito diferente do que eu quero fazer aqui na empresa.
"Nós temos a mesmas ideias. Você alcança onde eu não vejo, tem ideias que complementam as minhas, que melhoram! Quando eu li seu artigo sobre o Jeins, eu soube que você era a pessoa que eu precisava ao meu lado. Somos bons juntos! Somos uma boa dupla e eu confio em você. Eu não podia começar tudo isso sem alguém confiável comigo. Heide está cagando para a empresa, você sabe".
Abri e fechei a boca várias vezes, tendo dúvidas do que eu iria falar. Toni me pegou em cheio com aquele discurso, me deixando quase sem saídas. Se eu aceitasse, seria um grande tiro no escuro e eu não sabia se queria passar por essa adrenalina novamente.
– Eu agradeço muito por pensar e apostar tanto em mim, Toni, mas... – Tentei refutar, mas o homem me interrompeu.
– Mas o quê, Julieta? – Cruzou os braços, sorrindo intrépido. – Você sabe que gosta de um bom desafio, eu sei que você ama se meter em coisas que você acha que não sabe fazer. Você gosta de aprender!
– Toni, não estamos falando de um trabalho de faculdade, onde o máximo que poderia acontecer era repetir a matéria! – Exclamei, surpresa com sua coragem para começar do zero algo que já tinha dado certo. – Estamos falando de um patrimônio, do seu patrimônio familiar!
Encarou-me meio tedioso e levantou do sofá, indo até um frigobar pequeno que havia próximo a sua mesa e tirou de lá uma garrafa de vinho branco. Pegou duas taças na estante de madeira branca chique e veio até mim.
– O que é isso? Bebendo no ambiente de trabalho, Sr. Hall? – Revirei os olhos, mas peguei uma taça de sua mão, esperando-o me servir.
Há três coisas nesse mundo que não se pode negar a ninguém: Água, bebidas caras e bo... Uma outra coisa aí.
– Estamos comemorando seu novo emprego, querida! – Encheu nossos copos e tilintou sua taça na minha.
– Ainda não aceitei nada, Toni! – Resmunguei, olhando para a vista bonita da sala de Toni.
– É porque eu ainda não comecei a falar de números. – Bebericando sua bebida, olhou-me de canto de olhou. Parecia perspicaz, astucioso. E eu que já estava quase convencida... – Eu mencionei que você vai ter sua própria sala?
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O prédio onde ficava o escritório da Editora Hall ficava na área comercial da cidade. Era um prédio de 15 andares, sendo uma empresa por andar. Era longe da minha antiga casa, eu precisava pegar o metrô para chegar lá. Por isso, não hesitei em aceitar a carona de Cam, que me avisou por mensagem que estava passando por perto e que precisava falar comigo. Havia alguns bancos no outro lado da rua e foi nele que eu sentei após a entrevista, esperando por Cam.
Eu ainda estava meio dividida com tudo o que estava acontecendo, mas visualizei o que seria minha vida e como está sendo agora e até sorri. Eu ainda estava incomodada com a forma que tudo se deu, mas não queria reclamar. As coisas darem certo para mim era quase que uma novidade. Eu lembro que minha psicóloga costumava dizer que eu devia parar de me sentir culpada por estar bem. A minha vida não tinha que estar uma merda sempre, meus sentimentos e atitudes não eram validados apenas se eu estivesse em sofrimento. E já fazia um tempo que as coisas não se encaixavam como estavam encaixando-se agora. Eu perguntava-me se deixar algumas coisas inacabadas pelo caminho fazia parte da jornada. Se perder pessoas e ter que lidar com escolhas difíceis, como família ou emprego, faziam parte dessa via.
– E aí? Como foi lá? – Cam questionou assim que coloquei parte do meu corpo dentro do carro.
– Adivinha? – Dei um beijo rápido em seu rosto e me voltei para puxar o cinto de segurança.
– A vaga era uma merda, a entrevista foi horrível, você volta para Springfield amanhã definitivamente, sem data para voltar...? – Supôs, ansiando por minha resposta.
– Eu realmente pensei que também fosse falar isso quando entrasse no carro. – Ri com o nosso profundo negativismo. Se fosse Dana, ela me forçaria a ser positiva, entretanto, Cameron era tão negativo e mal-humorado quanto eu. – Mas, na verdade, foi tudo o contrário.
– Então, quer dizer que a vaga e a entrevista foram boas e você... – Olhei para o rosto de Cam, vendo sua feição transformar-se de confusa para extremamente animada. – Você vai ficar?! – Cam exclamou, animado. Assenti, sem controlar o sorriso gigante. O rapaz celebrou buzinando várias vezes em meio ao trânsito caótico e eu gargalhei com sua animação. – E como vai ser?
– Eu vou ser conselheira administrativa da empresa. – Contei, mordendo os lábios. Temia uma reação negativa quando contasse qual seria minha função.
– Uau, eu nem sabia que você podia ser isso! – Sibilei um "nem eu!" e acabamos rindo juntos. – Você é tipo a Barbie, consegue ser qualquer coisa. Acaba parando em umas profissões meio estranhas! – Ri novamente com sua visão sobre mim. – Mas vamos falar do que realmente importa: Salário.
– Já contando com auxílio moradia, transporte, plano de saúde... – Cam ergueu as sobrancelhas, falando "uh!". – Sim, plano de saúde! Levando em conta também que é o salário inicial, sem experiências e etc, é um bom salário. Bem mais do que eu ganhava no Daily.
– Uau! Você vai ter auxílio moradia?
Fora meu único pedido a Toni quando começamos a acertar alguns termos. Um salário que fosse o suficiente para que eu conseguisse um lugar bom e seguro para morar. Tendo em vista que agora eu era uma sem-teto, qualquer lugar era bom e seguro.
– Eu estava pensando nisso no caminho para cá. – Informou.
– Na minha breve vida como sem teto? – Questionei, divertida.
– Sim! Se for muito loucura, você pode me parar, mas que eu me lembre, eu tenho um quarto em casa que posso alugar para você. – Sugeriu, olhando-me de soslaio.
– Você não tem outro quarto. – Franzi o cenho. Refiz o caminho da casa de Cam inteira mentalmente, tentando descobrir onde ficava o outro quarto. Sua casa era grande, mas não era uma mansão, não tinha possibilidades de ter quartos escondidos ou então... Túneis subterrâneos. Arrepiei-me só de pensar na improvável possibilidade.
Eu tinha uma péssima relação com salas subterrâneas.
– Tenho o escritório. Não o uso muito mesmo. – Lembrou-me. – Podemos transformar em um quarto para você.
já está quase fazendo isso.
– Exato! está lá.
A menção ao cantor me fez ficar atenta e nervosa. Desde a nossa última briga no dia em que cheguei, e eu estávamos estranhos demais um com o outro. Eu mais do que ele, admito. Quando acordei pela manhã depois daquele dia, não estava mais ao meu lado. Antes que eu começasse a pensar em nossa briga, em meu momento de extrema fragilidade e em como estaria nossa relação, recebi a mensagem de Toni avisando que nossa reunião seria em dois dias. Foi o suficiente para que eu ficasse tão ansiosa com minha entrevista na editora, que não consegui pensar em outra coisa que não fosse isso. Felizmente, não o vi muito nos últimos dois dias, eu estava ocupada demais lidando com Dizzy e todo o seu cuidado após meu breve desequilíbrio mental.
– Não irá ficar lá para sempre. Ele tem a própria casa, Julie...... – Sorriu malicioso antes de continuar. – Que você conhece muito bem, por sinal.
– Você está realmente sugerindo que nós moremos juntos? – Busquei pela confirmação, antes que eu me animasse com ideia. – Por que eu realmente queria procurar um lugar para mim.
– Você ainda precisa juntar dinheiro até você achar um lugar para você. E procurar por um! São coisas que levam tempo, Julie.... – Cam desenvolveu sua ideia, já entrando no caminho do Burguer King mais próximo, onde todos tinham combinado de encontrar-se. – Dizzy não está mais disponível para você, Jack está pensando em convidar Vic para morar com ele e você morar com seria, no mínimo, complicado.
– Cameron. – Chamei seu nome, seriamente, fazendo-o olhar para mim. – Você está falando sério? Porque eu estou muito inclinada a aceitar!
Ele suspirou, sorrindo tranquilamente, parecendo muito seguro de si. E enunciou: – Eu e você morando juntos... Vai ser uma temporada e tanto!
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Precisei voltar a Editora dois dias depois de minha entrevista. Toni queria me apresentar informalmente para sua equipe, mesmo que meu início oficial acontecesse apenas no mês seguinte. Passei o dia inteiro lidando com contratos, burocracias, documentos e tudo isso era terrivelmente cansativo. Nos meus dias cansados enquanto trabalhava no jornal e dava aulas na tutoria, eu costumava levar meus saltos dentro da mochila e calçava-os somente quando tinha que sair da minha mesa. Imagine meu desespero quando procurei por meus tênis em minhas malas e não achei. Fui obrigada a ir ao metrô, de saltos e saia lápis. Ficava muito bem em mim, ressaltava meus quadris e meu traseiro, mas passar o dia inteiro indo em órgãos públicos com essa saia (e saltos!) era insuportável.
Marcavam nove e meia da noite em meu relógio quando finalmente terminei todas as minhas obrigações. Era meu último dia em Hillswood, iria para casa na manhã seguinte e só retornaria à cidade no final de janeiro, quando meu contrato iniciava e meu primeiro dia de trabalho começaria. Cam resolveu fazer um jantar, em comemoração à minha contratação e a minha nova moradia. Contrariando a lógica, o jantar foi no apartamento de Dana, não na casa dele.
Eu ainda tinha que andar algumas quadras para chegar no apartamento após sair do metrô. Eu estava tão cansada, minhas pernas estavam tão doloridas, que estava quase me arrastando. Usei minha antiga chave para entrar no prédio. Se o cansaço não estava me deixando louca, eu podia jurar que aquele de costas, esperando pelo elevador, era .
– Uau. – Ele virou para trás quando meus sapatos fizeram barulho pelo lobby. Seu olhar foi dos meus pés até a cabeça, com uma sobrancelha erguida, provocou: – Você está linda. – Ergui uma sobrancelha, desconfiada de seu elogio, pois eu não fazia ideia a quantas andava nossa relação. – Para uma amiga, sabe?
Respirei fundo, fechando os olhos.
era incansável. Parei ao lado dele, nossos ombros quase nivelados devido aos saltos que eu estava usando. Retirei minha bolsa do ombro, sentindo um alívio imediato.
– Não somos amigos. – Retruquei, encarando a porta metálica e cinzenta. Desviei o olhar, procurando por seus olhos. – Nunca fomos.
Vi estremecer com a minha afirmação, mas não dei a mínima. Eu estava cansada de jogos com e de tenta ir contra nossa própria correnteza. Senti sua mão descer pelo meu braço e chegar até minha mão, puxando a bolsa de mim, colocando-a em seu próprio ombro. Quase agradeci quando a porta do elevador se abriu, mas soube que o pior estava por vir quando entramos e assistimos a porta se fechar numa terrível lentidão.
Fui atropelada por lembranças nossas naquele cubo. Encostei na parede, olhando em volta. Era um espaço pequeno demais para ter tanta bagagem. Eu parecia conseguir visualizar todas as cenas do passado bem em minha frente.
Eu e nos beijando no elevador, quase desesperados após passar uma tarde inteira como nossos amigos, sem poder nos tocar para não causar constrangimento. As variadas noites em que chegamos em passos bêbados, nos agarrando pelo cubículo, usando nossos próprios corpos como apoio. Nossos primeiros beijos após nossa primeira noite no Carté.
Não foi surpresa olhar para e perceber que o olhar dele estava tão perdido quanto o meu.
– Parece que foi em outra vida, não é? – Indaguei.
– Parece que foi ontem. – Respondeu, baixinho. Suspirou e virou-se para mim. – Você está bem com isso? – Franzi a testa, confusa e ele explicou. – Nossa recente amizade.
Na arte do deboche e do orgulho, era o mestre. Num ímpeto de coragem, causado pelo cansaço, falei: – Se eu beijar você agora, ainda vamos insistir na ideia da amizade?
Dei um passo para frente, provocando-o. Achei que estava no controle da situação, mas eu havia esquecido que aquele em minha frente, não era Gabriel Santiago, nem Haniel. Era . E quando se tratava dele, eu nunca estava no controle. Engoli em seco quando ele aproximou-se totalmente, encostando nossos corpos, sem cortar o contato visual.
– Você vai? – Questionou, desviando olhar para os meus lábios. – Me beijar?
– Não. – Retruquei. – Você vai?
– Só se você me beijar primeiro. – Explicou sua condição. A sensação da sua pele na minha sempre era indescritível. Arfei quando ele grudou nossos corpos, fazendo minhas costas baterem na parede. Eu ainda não era tão resistente a . Temia nunca ser. – Eu não vou me afastar.
– Nem eu. – Os botões da camisa social abertos permitiam que meu colo ficasse a mostra, sendo aquele o único pedaço de pele visível entre nós. Entretanto, ele era o suficiente para nos deixar em um frenesi inexplicável.
– Vamos ficar aqui assim? – Questionou, apoiando uma mão no meu traseiro. Ouvimos a porta do elevador se abrindo, mas nenhum teve coragem de se mexer.
– É difícil para você? – Senti-me confiante quando a resposta não chegou. Aproveitei para inclinar um pouco minha cabeça, deixando meus lábios ficarem à mercê e no caminho certo para os lábios dele. Sorri de canto quando a respiração de falhou.
– Para falar a verdade, é agoniante. – Encheu as mãos com os fios de cabelo na minha nuca, puxando de leve. Passou o polegar pelo meu lábio inferior, parecendo realmente estar lutando contra suas vontades. – O que houve com a gente, baby?
– Nada mudou, . – Assegurei, acariciando seus braços. Mas eu precisava sair dali ou as consequências seriam outras. Afastei-o para trás, precisando sair do espaço entre ele e a parede.
– Não? – Duvidou, deixando-me sair.
– Eu não sei. A única verdade que eu tenho conhecimento é que se a gente passar mais dois minutos nesse elevador, eu vou acabar dando para você aqui mesmo.
Não notei que o elevador estava com o ar tão quente até sair dele. O ar frio no corredor só provou que eu e éramos inflamáveis e perigosos demais para o nosso próprio bem. Andei até o 305 com as pernas bambas e coração acelerado. Eu já tinha me agarrado com várias vezes, dormimos juntos não tem nem uma semana, mas sempre que nossos corpos se tocavam, parecia a primeira vez.
– Caramba, Julieta! Me dá um beijo, só para eu testar uma coisa! – Cam exclamou assim que eu abri a porta do apartamento. Explicou quando percebeu minha confusão. – Você está gata!
– Argh, obrigada pelo elogio, mas estou sofrendo! – Choraminguei e apontei para os meus pés, esticando as pernas em direção a ele. – Você pode tirar para mim?
Ele assentiu e abaixou-se para retirar meus sapatos. Fiz uma careta quando meus pés tocaram o carpete. Ah, a dor e o alívio de tirar os saltos. entrou logo em seguida, desejando boa noite a todos e parando na cozinha, para bisbilhotar as panelas de Cam. Logo fui cumprimentar as pessoas restantes da sala. Jack estava jogando videogame com Laura, Dana estava sentada no chão, mexendo no celular e observando tudo em silêncio. Tentei não olhar novamente para , com medo de ficarmos presos no olhar um do outro.
– Cadê a Vic? – Questionei, bagunçando os cabelos de Jack.
– "Oi, Jack Jack, que saudades! Como você está?" – Jack forçou uma voz fina, fazendo uma careta. – Você costumava me cumprimentar assim!
– Jack está tendo dificuldades para entender que Vic é nossa prioridade agora. – Dizzy explicou delicadamente, causando resmungos em Jack. – Ela está participando da palestra de uma amiga.
– Vocês ainda não jantaram? – Atravessei a sala, indo sentar ao lado de Dana.
– Ainda não. – Dizzy lamentou, inclinando-se sobre mim para me cumprimentar com um selinho. – Cam está nessa cozinha desde as quatro. Eu não respondo por mim se essa comida for uma merda!
– Ei! Se eu não tivesse que refazer os ovos que Jack estragou, já teríamos comido. – Cam reclamou enquanto olhava para dentro de uma panela gigante que eu sabia que não era de Dana. – E além do mais, não se apressa o preparo de um belo steak tartare!
– Que porra é essa? – questionou, confuso.
– É apenas bife. Cam é que está insuportável hoje! – Jack respondeu, rolando os olhos e logo desviou o olhar da TV para .
– Em que país estamos? – Perguntei. Cameron estava tentando, como ele mesmo diz, trazer cultura ao grupo e sempre preparava um prato referente a cada país.
– Deveria ser Alemanha, mas eu tenho certeza de que essa receita é da França. – Laura contestou.
– A França só a fez famosa! – Cam replicou.
Aconcheguei meu corpo no colo de Dana, que acariciava meus cabelos. Desde a noite passada, a morena estava mais calada e quieta. Eu dormi com ela na noite passada e estávamos passando os dias juntas. Quase não conversamos, apenas ficávamos deitadas, ocasionalmente lembrávamos de algo e comentamos, mas nada além disso. Porém, eu não estava incomodada e eu sabia que ela também não. Quando você é amiga de uma pessoa a muito tempo, já não existe espaço para cobranças.
Você apenas quer conversar sobre amenidades. Falar sobre o clima, zoar Jack por ser um absoluto fracasso em todos os tipos de futebol. Reclamar com Cameron sobre a demora para comer. Ouvir sobre o dia do outro. E foi isso que fizemos, apenas conversamos.
Após o jantar, que estava realmente muito bom, nos reunimos na cozinha enquanto limpávamos a bagunça de Cameron. Ele já podia ser considerado um bom cozinheiro, mas ainda não havia aprendido a ser organizado.
– Aí ele disse que a decisão está em minhas mãos. Andy é incrível, de verdade. Mas Emmanuel é... – Dana, que estava sentada nas pernas de , encostou a cabeça no ombro de Cam, que estava ao lado, choramingando. – A questão é que eu não faço ideia de como vou resolver isso.
Dana falava sobre seu dia no trabalho, contou que seu chefe havia deixado uma grande decisão em suas mãos. Ela teria que escolher entre dois redatores, seu dilema era que os dois eram ótimos profissionais, muito bem recomendados e muito necessitados. Ambos vieram de Springfield, para tentar uma vida profissional melhor e isso acabou tocando no ponto fraco de Dana, que se encontrava perdida.
– Faça uma lista, prós e contras. – Sugeri enquanto secava os pratos, que Laura estava lavando, e entregando a Jack, que definitivamente não estava fazendo sua parte, que era guardar a louça limpa. Ele apenas estava empilhando tudo em cima da mesa. Usava a desculpa que não sabia onde ficavam as louças, mas eu sabia que todo mundo conhecia a cozinha de Dizzy melhor que a sua própria. – Eu sempre faço isso quando estou em dúvida sobre algo.
– Vai começar... – resmungou, murmurando e deu um gole em sua cerveja.
Cameron, e Dana estava quase grudados um ao outro. Graças as reformulações no apartamento, agora as meninas tinham uma mesa de jantar, mas o lugar pequeno só permitia a presença de duas cadeiras.
– Cala boca, eu lavei sua louça! – Repliquei, lançando o guardanapo nele. Pegou-o no ar antes que atingisse Dana e jogou de volta para mim. – É um método muito eficaz.
– Pode até ser eficaz para qualquer um, menos para você. – respondeu, sarcástico.
– Mas ajuda! – Bati o pé no chão, contrariada. Ele me lançou aquele olhar debochado, de cima a baixo e parou, encarando meus pés. Ele sempre dizia que eu parecia uma criança quando batia o pé para ele. Joguei o pano nele de novo e ele (novamente) pegou no ar, jogando de volta. Antes que eu revidasse, Jack pegou-o de minha mão, sabendo que não iríamos parar.
– Não estou entendendo nada. – Cam confessou, enquanto raspava a colher pela travessa onde estava o doce de morango que Laura havia preparado.
– Uma vez, a gente se perdeu a caminho do litoral simplesmente porque ela não quis pedir informação! Acabamos indo para uma cidadezinha que eu nunca ouvi falar e nem perguntem como nós fomos parar lá, a culpa é dela também. – explicou. Reclamei com a culpa sendo jogada em mim de novo, mas ele ignorou meus resmungos e continuou falando. – A gente tinha que decidir entre seguir pela via direta, que estava congestionada. Ou pela indireta, que quebraria o carro dela. Então, Julie resolveu ter a brilhante ideia de fazer uma lista.
– Eu já saquei o que aconteceu! – Dana balançou a cabeça, sorrindo. – Julie é boa em fazer listas.
– Tão boa que acabou presa entre as opções. E a gente ficou dentro daquele carro por quase uma hora inteira. – confirmou a afirmação de Dizzy.
– Empatou! As duas opções eram viáveis, ! – Exclamei, insistentemente. – Ir pelo congestionamento era mais óbvio, Julieta! – Rosnou, rolando os olhos.
– O carro estava com problema na bateria, ficaríamos no prego no meio de um congestionamento fodido. Do outro lado, pelo menos, tinha um mecânico. – Retruquei, irritada. Em nossa volta, todos observavam nossa pequena discussão, risonhos.
Lá estávamos nos, oferecendo mais uma dose de loucura grátis para o entretenimento alheio.
– Você lembra daquele caminho? O carro ia acabar com mais problemas do que já tinha! A gente ia acabar todo o dinheiro que tínhamos. Enfim! – Tentou pôr fim a discussão e eu tentei argumentar novamente, mas Jack veio por trás, cobrindo minha boca com a mão, causando risada em todos. – Você pode fazer uma lista, Dana. Se isso não deixar você ainda mais confusa.
– Eu, com certeza, sou mais decidida que a Julie! – Brincou, piscando para mim e eu bufei. Odiava quando eu acabava parecendo uma louca! – Pode funcionar... – Deu de ombros, pensando melhor sobre a ideia.
– Mas e aí, o que vocês resolveram? – Quem perguntou? Jack, o curioso. É claro! Eu e nos entreolhamos, rapidamente.
– Eu não lembro muito bem... – Desconcertada, coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha e voltei-me para a pia.
– É, eu também não... – concordou, com suas bochechas corada tal qual um menino de 10 anos. Todos se entreolharam, sabendo que tinha mais a se contar nessa história, mas ninguém se importou em perguntar. Todos se concentraram em ajudar Dizzy a fazer sua lista e conversar sobre o filme que passava na TV.
Eu lembrava perfeitamente o desfecho dessa discussão. E eu sabia que também lembrava.
Depois de uma discussão acalorada, acabamos transando no acostamento e depois voltamos para a cidade. Nós dissemos para o pessoal que conseguimos chegar no litoral, mas a verdade é que usamos o dinheiro da viagem para pagar três diárias em um motel de luxo na terceira avenida.
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– Ei, vou descer na rua, quero comprar algumas coisas. – Dana murmurou no meu ouvido. – Desce comigo?
Estávamos todos sentados em frente à TV, assistindo a uma maratona de filmes natalinos. Cameron e Laura estavam deitados no chão apoiados um no outro. Jack havia ido encontrar com Victoria, deixando o lugar mais cedo. Dana e eu estávamos sentadas no sofá e estava no chão, sentado entre minhas pernas. Estranhei o pedido de Dana, mas aceitei mesmo assim. Ela levantou, indo em busca das suas chaves e de dinheiro. Olhei pela janela e notei que uma garoa fina caía lá fora.
– Posso usar seu casaco? – Inclinei para frente, murmurando no ouvido de . Ele apenas assentiu, concentrado em O Grinch. Agradeci e me inclinei mais um pouco, beijando–o. Arregalei os olhos quando voltei a sentar normalmente, tomando ciência dos meus atos impulsivos. Torci para ele não notar, mas ele jogou a cabeça para trás, apoiando-se no estofados.
Olhava-me confuso, mas mantinha um sorriso ladino. – Desculpa, força do hábito.
Ele deu uma risadinha baixa, mas não falou nada, apenas voltou a assistir ao filme. Dana voltou a sala, me chamando com a cabeça. Procurei por suas galochas de chuva e sorri ao notar que ao menos isso estava no mesmo lugar. Provavelmente roupas sociais e botas de plástico não eram a melhor combinação, mas nem liguei, o casaco de me cobriria inteira.
– Então, qual o final da história? – Dizzy questionou assim que entramos no elevador. Confusa, perguntei de qual história ela falava. – Você e no litoral. Qual o verdadeiro final?
– Ah, sim. Nós... Bom, nós... – Gaguejei, quase sentindo-me envergonhada. Dana olhou-me com uma sobrancelha erguida. – Nós transamos no acostamento e ficamos naquele hotel chique na terceira avenida. – Respondi, rapidamente. Ela gargalhou, jogando a cabeça para trás.
– Vocês dois não tomam jeito... – Comentou enquanto saíamos do elevador.
Caminhamos em silêncio até a pequena loja com uma placa luminosa vermelha escrito "24h", sentei em um banquinho de madeira enquanto esperava por Dana, que sentou ao meu lado quando saiu do local. Abriu a sacola, procurando algo dentre suas compras. Tirou um maço de cigarros e entregou-me uma latinha de cerveja.
– Você odeia fumar. – Enunciei. Abri minha cerveja e ela acendeu o cigarro, dando um trago forte, tossindo fortemente em seguida.
– Minha amiga está indo embora pela segunda vez, eu tenho direito de fumar! – Resmungou, mas logo começou a tossir novamente, ocasionando leves risos em mim. O breve diálogo me remeteu a nossa última despedida, em que ela disse o mesmo. – Eu odeio fumar!
– Eu vou voltar dessa vez. – Refutei, pegando o cigarro de sua mão e levando aos meus lábios.
– Não para mim. – Comentou, baixinho, olhando para frente, fazendo-me suspirar. Eu também estava tendo dificuldades em aceitar a ideia de viver em HW e não morar com Dana. Tendo em vista que passamos tanto tempo vivendo juntas, eu não sabia como seria me habituar a morar com outra pessoa. – Mas, para falar a verdade, eu acho que foi até bom, sabe? Esse tempo longe.
– Por que? – Questionei.
– Eu pude me conhecer melhor, conhecer quem era a Dana sem a Julie...
– Como assim? – Questionei, confusa. Em minha mente, Dizzy era mulher mais completa e bem resolvida.
– Eu sempre fui Dizzy, a amiga da Julie... – Refletiu.
– Engraçado, eu costumava ser a amiga da Dizzy, aquela que não tem nome. – Refutei e nós duas rimos pois não tinha como negar. Eu vivia a sombra de Dana desde sempre.
– Eu sei disso. Às vezes, eu me perguntava se você não se sentia mal, mas depois eu pensava: "e se as pessoas descobrissem que ela é incrível?". Então, eu nunca fiz nada para mudar isso. – Olhei-a, de soslaio, meio desconfiada de sua confissão. – O que é? Surpresa por eu ser uma vadia egoísta?
– Não, porque eu sei que essa não é a verdade. – Ri, negando com a cabeça e bebericando minha cerveja quase quente. Ficamos em silêncio por um tempo, Dizzy parecia pensar no que dizer, formulando frases em sua cabeça bonita.
– Eu nunca quis dividir você com ninguém. – Declarou, chamando minha atenção. Virei meu corpo para ela, observando atentamente sua feição compenetrada ao falar. – Os meninos apareceram e eu comecei a ficar meio desequilibrada. E aí... – Suspirou, jogando o cigarro no chão após a última tragada. – Vi você e no dia do aniversário dele, foi a primeira vez que eu vi vocês se beijando de verdade. Caramba, fiquei com tantos ciúmes! Hoje é engraçado pensar, mas acho que eu estava com ciúmes de você.
– Dizzy, você se apaixonou por mim, que amor. – Zombei, beliscando seu braço, fazendo-a gargalhar, jogando a cabeça para trás.
– Você não tem tanta sorte, garota! Não se anime. – Ironizou, apertando seu cabelo em um curto rabo de cavalo. – Sei lá, o tempo passou e eu parei de me importar. Acho que, no fundo, eu sabia que não estava realmente gostando dele.
– Acho que você gostou da ideia de gostar de alguém. – Supus, reflexiva.
– Pode ser. – Deu de ombros, apertando os braços por conta da umidade que aumentava em nossa volta. – Depois da nossa briga, eu quis morrer! Você sempre foi a melhor do mundo e eu achei que tinha estragado tudo entre a gente, mas você provou ser tão maravilhosa, que não transformou isso em um pesadelo para nós. E eu te amei tanto por aquilo. – Apertou os olhos, exprimindo seu relato de forma tão intensa que não consegui a interromper, apenas observei atentamente enquanto ela discursava carinhosa e pesarosa ao mesmo tempo.
"Até hoje tento entender aqueles dias, mas tudo se tornou tão desnecessário e pequeno depois que você foi embora. E você foi embora... Eu tive que aprender a viver sozinha. Os primeiros meses foram horríveis, Julie... Eu não sabia fazer nada em casa. Passei uma semana comendo apenas legumes porque quem sabe comprar proteína é você, a minha parte no supermercado eram apenas os legumes. E quando eu estava com os meninos parecia estranho, fiquei com medo de você ser a "cola" entre nós e que, sem ter você por perto, eles não quisessem minha amizade. Foram dias estranhos, acho que para nós duas, não é? Até que Laura chegou e eu comecei a me sentir normal de novo. E você está aqui de novo, é estranho pensar em tudo isso. Eu não me importo de você ir morar com Cam, fico até satisfeita de ser alguém que eu conheço. Mas eu não gosto de mudanças, nunca gostei".
Pisquei os olhos, atarantada com a quantidade de informações e sentimentos que Dana transmitiu a mim em seu relato. Abri a boca várias vezes, sem saber o que falar. Eu sempre achei que era totalmente dependente de Dana, que não seria nada sem a garota, não imaginei que ela sentisse o mesmo. Ela sorriu de lado, tocou a ponta do meu nariz com o indicador e se inclinou, beijando-o de leve. Agora também acho que o tempo longe nos fez bem. Foi ótimo para que a gente desconstruísse a imagem de deusa intocável que tínhamos uma da outra e nem sabíamos, para descobrir que existia vida lá fora sem Dana.
Apesar da vida com ela ser bem melhor.
– Eu nunca pensei que fosse possível amar tanto um amigo, mas eu te conheci. E eu e você, Dizzy, não é algo que vai mudar. Eu vou te amar, Dana Tomanzio. – Assegurei, sentindo minhas pálpebras úmidas. – Mesmo que você seja uma completa babaca comigo. Eu sempre vou ser sua amiga, sua amante ou qualquer coisa que você precise que eu seja. – Assegurei.
Dana virou-se para mim e me abraçou, aconchegando o rosto no meu pescoço. Acariciei seus cabelos enquanto pensava na minha sorte de, em um mundo com sete bilhões de pessoas, ter encontrado Dana, a mulher de cabelos não mais tão longos, porém, com o mesmo sorriso marcante e abraço acolhedor.
A chuva só aumentava, por isso decidimos voltar logo para casa. No caminho de volta, passamos por um casal, parado no meio da rua. Falavam próximos demais, olhando intensamente nos olhos um do outro. Dava para ver claramente que algo de importante na história deles estava acontecendo ali. A chuva forte deixava a cena mais dramática e bonita. Eu e Dana nos entreolhamos e, inconscientemente, diminuímos o passo, apenas para ver o desenrolar da cena. Entretanto, o final eu já sabia. Como eu já comentei antes, eu era familiarizada com cenas de demonstração de afeto em público pois estive presente em algumas delas. Mas pensando bem, a última vez que falei isso, eu ainda não havia sido protagonista em nenhuma dessas situações.
Eles beijaram-se apaixonadamente.
– Às vezes, – Comentou, murmurando em meu ouvido enquanto ainda tínhamos os olhos grudados nos dois. – Eu sinto que todos tem uma história de amor para contar, enquanto eu sou uma droga de uma coadjuvante.
Virei a cabeça tão rápido quanto a garota do exorcista ao ouvir a declaração de Dana. Pensativa e com a expressão chateada, não viu minha expressão de surpresa com sua afirmativa. Reprimi um sorriso, totalmente assustada com a sincronia de nossos pensamentos e mais uma revelação de que Dizzy e eu éramos mais parecidas do que eu pensava.
Queria dizer a ela que, agora que ela havia notado isso, demoraria um pouco para alguém parecer na vida dela e tornar-se a sua história de amor. Mas apareceria, eu tinha certeza disso. Se eu, cheia de manias, complicada e egoísta havia encontrado alguém, para Dizzy esse dia não demoraria a chegar. Ouso dizer que já havia chegado.
– Você definitivamente é uma protagonista, Dana. Você tem cabelo de protagonista! – Toquei em suas madeixas azuladas.
– Eu não quero ser uma mocinha retratada de forma machista em que só a beleza importa! – Reclamou, limpando o rosto tomado pelas gotas da chuva.
– Isso não serve para você. Fala sério, quem se forma com honras na faculdade e ainda tem tempo para ser bonita? Só você! E sabe escrever artigos!
– Eu sou ótima em escrever artigos. – Concordou, rindo.
Minha mente divagava enquanto caminhávamos pela rua longa. Eu amava o Jeins e sempre seria agradecida por ter nascido naquele lugar. Mas enquanto eu andava pela rua simpática, de mãos dadas com Dana, sentia-me tão em casa quanto em Springfield. A fina chuva não nos incomodava em nada, pelo contrário, era refrescante, mesmo que estivesse frio. Eu queria ter uma câmera para registrar o momento. A chuva e a umidade deixavam Hillswood tão aconchegante. Na época do Natal, ficava ainda melhor.
O Natal seria diferente esse ano. Ele não estaria na ceia.
– Dizzy? – Meu corpo me traiu novamente e eu nem percebi que havia a chamado. Paralisei, senti seu corpo parar ao meu lado, curiosa com minha reação súbita. – Atiraram nele.
Meu corpo começou a tremer, como se estivesse expulsando tudo o que eu havia prendido ali. Como se eu tivesse, finalmente, despertado.
– Pelas costas. Na escola. Sozinho. Totalmente desarmado, Dana!
Eu queria acordar e descobrir que tudo que havia acontecido desde que voltei para Springfield havia sido um sonho ruim. Mas eu despertei e tudo estava realmente acontecendo. Eu senti raiva nos primeiros dias, tanta raiva que eu havia me machucado várias vezes naquela semana. Até que chegou o dia em que a dor ficou maior que a cólera.
– É tão, tão injusto! – Minha lástima saiu, sobejamente, em forma de um soluço e eu deixei todo o choro preso sair, mesmo desconfiando que aquela frustração e inconformidade nunca iriam embora de mim.
Eu sentia que estava sufocando, meu peito parecia que estava se comprimindo e mal conseguia respirar. Desesperada, tentei me livrar dos braços de Dana que prontamente me abraçaram, porém, não foi possível, pois a mulher grudou seu corpo no meu ainda mais, abraçando-me ternamente. E foi no aperto resistente de seu abraço que encontrei forças para me libertar e liberar a quantidade de sentimentos arrebatadores que andavam por mim.
– Eu trocaria todos os meus dias felizes se isso significasse que você não ia sofrer por mais nenhum dia, Julie.... – Proferiu sem hesitação alguma na voz. E eu acreditei fielmente em suas palavras.
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Janeiro
– Eu sei disso. Eu sei! Mas você precisa entender que é assim que o capitalismo funciona. Você se forma e, de repente, a necessidade de encontrar um emprego se faz. Eu queria ser rica o suficiente para viajar por um ano para me descobrir como pessoa, mas você vai perceber que não é bem assim que as coisas funcionam para gente como a gente. Preciso que você me prometa uma coisa. Não me olhe assim, você é capaz de fazer promessas e sabe disso. Eu preci... Eu sei, você está irritado, mas eu preciso que você me prometa que não vai esquecer meu rosto. Eu sei que é difícil, você conhece muitas pessoas, mas... Eu sou sua única tia! Ninguém vai te ajudar na hora de fugir de casa ou...
– Eu tenho certeza de que os funcionários do aeroporto vão aceitar sua desculpa de perder o voo por estar explicando o que é capitalismo para o meu filho de três meses. – Clarissa zombou, tentando puxar o pequeno e gorducho Benjamin de meus braços.
Todos estavam me zombando por estar a quase meia hora conversando seriamente com meu sobrinho, mas poxa!, eu amava tanto aquele carinha, só a possibilidade de esquecimento dele me deixava triste, apesar de saber que era inevitável. Havia chegado o dia de voltar a HW e eu sabia que estava me boicotando, pois estava usando todos os artifícios para adiar minha ida.
– Maconha! – Gritei, assustando até mesmo o pequeno em meu colo. – Eu sou a tia legal que vai esconder a sua maconha dos seus pais chatos.
– Três meses, Julieta. Três meses. – Adam reafirmou categoricamente.
– Já chega, filha. Está na hora, vamos! – Minha mãe balançou meu ombro direito, fazendo-me choramingar.
Agarrei a bolinha em meus braços, abraçando-o fortemente, tentando memorizar o cheirinho dele, a textura de sua pele, seus cabelinhos loiros, seu pezinho. Céus! Eu o amo tanto. Me matava ter que ser a tia distante, eu queria ser a tia legal e presente, que era babá quando os pais precisavam de uma folga.
– Julieta, cinco minutos! – Meu pai bradou, balançando as chaves do meu antigo carro.
– Titia ama você, Big Ben. – Murmurei no ouvido dele, beijando sua cabeça levemente. – O mundo ficou melhor depois que você chegou. – Afirmei, sentindo meus olhos arderem. Deixei Adam pegá-lo de meus braços e me voltei para abraçar minha irmã.
– Me ligue todos os dias. – Pediu, ou melhor, decretou com a voz de Clarissa, aquela a quem nada se pode negar.
– Como sempre. – Assegurei, limpando minhas lágrimas.
– Se você me ligar todos os dias, eu vou bloquear seu número. – Pat informou, brincalhão, ou nem tanto.
– Idiota, você vai sentir minha falta quando sair dessa adolescência maldita. – Brinquei, bagunçando seus cabelos e o abraçando fortemente. – Amo você. – Murmurei, ouvindo-o dizer de volta.
Minhas malas estavam no carro, não era muita coisa e eu definitivamente estava voltando a HW como da primeira vez, com algumas malas e cheia de medos e esperanças. Me despedi mais uma vez e corri para o carro com meus pais, já que ambos já me ameaçavam. Apesar de ser como da primeira vez, estava diferente agora. Eu estava tomada por aquele sentimento de certeza, apesar de não ter tanta. Mas Hillswood parecia ser a coisa certa e não dá para se sentir muito perdido quando se está fazendo a coisa certa. Além do mais, eu tinha duas pessoas me apoiando, que eram literalmente as melhores em ser as melhores do mundo.
Mas eu ainda era uma pessoa ansiosa. Logo, quando estávamos no carro a caminho do aeroporto, o desespero me abateu.
– E se nada der certo, eu odiar o emprego, não souber o que fazer, Cameron me expulsar e eu perder todos os meus bens? – Questionei, arregalando os olhos, aterrorizada.
– Tem pontes em Hillswood, não? – Minha mãe questionou, brincando.
– Mãe! – Choraminguei. – E se tudo der errado?
– Então você nos liga e nós vamos pegar você no aeroporto. – Meu pai, senhoras e senhores. Meu papai. O desespero se foi da mesma forma que chegou: rapidamente.
Encostei a cabeça no vidro, sorrindo emocionada. Quando dobramos a esquina, meus olhos acabaram encontrando os olhos de Gabriel Santiago pela última vez.
– Pai, você pode parar por um segundo? – Pedi.
– Julie...... – Reclamou.
– Vai ser rápido, prometo! – Assegurei. Logo, meu pai encostou o carro e eu desci apressada. Santiago levantou do banco onde estava sentado quando me viu indo até ele.
Depois de tudo que aconteceu, as coisas ficaram estranhas por uns dias. Eu tive que me manter longe, não por vontade própria e sim por segurança. Depois da morte de Sun, a gangue que ele fazia parte não mediu esforços para descobrir culpados e preparar vinganças. E esse tipo de situação não fazia mais parte do meu cotidiano, então, me mantive afastada.
– Oi. – Murmurei, ofegante.
– Oi. – Ficamos em silêncio por alguns segundos antes de ele perguntar: – Você está indo? – Assenti, mordendo os lábios, sem saber muito bem o que falar. – D-desculpa se... Alguma coisa...
Olhando para o responsável pelas minhas perdas, eu agradeci por ter o reencontrado. Eu não conseguiria ser a nova eu sem ele. Eu não conseguiria muita coisa sem ele.
– Eu vou sentir sua falta. – Confessei, interrompendo-o. Sua expressão vacilou, porém, ele apenas assentiu. Eu sabia que ele estava dizendo que também estava sentiria, de alguma forma. – Promete que vai responder minhas mensagens e ligações?
– Você vai mandar mensagens e ligar? – Questionou, cruzando os braços. Rolei os olhos, socando seu braço. – Eu vou responder sempre que possível. Sabe como é, não vou estar aqui para sempre... – Franzi o cenho, confusa com seu pensamento. – Fala sério, você acha mesmo que eu nunca vou ser preso?
Gargalhei alto, jogando meus braços em volta dele sem culpa, apertando-o em um abraço carinhoso. E sem hesitar, encostei meus lábios no dele. Gabriel Santiago definitivamente merecia ser mais do que apenas alguns capítulos. Antes de tudo, era educado, respeitoso, leal e confiável. Era meu amigo.
– Até algum dia, Gabriel!
– Até algum dia, garota.
Corri de volta para o carro, sentindo o olhar pesado e julgador de meus pais em cima de mim, mas nada me foi questionado. Aos poucos, à medida que avançávamos, a imagem de Santiago e do bairro atrás dele foi ficando cada vez mais distante. A ficha caiu.
Havia, sim, algo diferente desta vez. O preço a se pagar por estar indo embora de novo era alto, valia a primeira palavra ou os primeiros passos do meu sobrinho. Mas eu também havia aprendido que eu sempre poderia voltar para casa e agora eu tinha duas. Eu não sei se um dia aprenderia a sempre viver longe de um dos meus lares, mas eu só descobriria se tentasse. E essa nova eu, confiante, empolgada com algo novo, era produto de uma eu que perdeu muito naquela cidade.
Será que algum dia eu descobriria o meu "lugar certo"? Eu tinha um lugar certo? Existia o tal lugar certo?
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Cameron ♥️ (16:56): Não vou poder estar em casa pra receber você, só volto amanhã. está lá, tentem não destruir minha residência, eu agradeço! Te vejo amanhã, roommate 😘
"Valeu, Cam!" Pensei, torcendo a boca em um bico. Guardei o celular de volta na bolsa e mandei uma mensagem para Dizzy, avisando que eu já estava em Hillswood, porém ela não respondeu, arruinando meus planos de ficar com ela até Cam voltar para casa.
Quando entrei na casa de Cam, minhas malas e algumas caixas minhas estavam todas espalhadas pela sala. Eu ainda não tinha móveis e nem estava com todas as minhas roupas e objetos, mas já era oficial. Eu realmente tinha voltado a HW e ia morar com uma pessoa que não era Dizzy.
Joguei minha bolsa no sofá, olhando em volta do que seria minha nova casa. Aproximei-me de uma estante cheia de fotos. Sorri ao notar que estava lotada de fotos nossa. Cameron era um amor mesmo. Havia fotos de todos juntos, uma foto de Dizzy me abraçando, diversas dele com Jack me fizeram revirar os olhos. Em um dos quadros tinha uma foto minha e no dia da minha festa de despedida. Suspirei ao passar um dedo pela foto. Eu estava tão cansada desse vai e vem, das nossas brigas sem fundamento. Eu estava com a dois anos e eu ainda tinha medo de assumir para ele o quanto o queria. Eu era loucamente apaixonada por ele e estava cansada de não aproveitar isso. Olhei para as escadas, apreensiva e decidi subir e procurar por ele.
Já no segundo andar, encontrei o quarto de Cam completamente aberto e vazio e a porta do escritório entreaberta. Coloquei meu rosto entre a fresta, sem imaginar que realmente estivesse ali. Ele estava deitado de bruços, usava uma cueca samba-canção, como de costume e ressonava baixinho. Saí de fininho e voltei para o andar de baixo, procurando pela sacola do supermercado.
havia comentado no nosso grupo de mensagens que estava com a garganta dolorida e possivelmente inflamada. A agenda de shows dele aumentara significativamente, causando esforço demais a suas cordas vocais. Agora, seu corpo estava pedindo por descanso, algo que ele se recusava a fazer. Ele só estava dormindo pois havia feito um show na noite anterior. Sabendo disso, lembrei que eu costumava fazer suco de gengibre com maça – que são ótimos para a voz – e oferecia a ele após seus shows. Quando cheguei no aeroporto, me vi indo até um mercado do outro lado da rua e comprado gengibre, maça e qualquer coisa que sabia que faria bem a ele.
Assim que terminei de fazer o suco e coloquei em um copo, voltei ao escritório. ainda estava na mesma posição. Deixei o copo em cima da mesa e fui até ele. Sentei no sofá, ao seu lado e com o dedo indicador, acariciei seu rosto amassado. Aos poucos, começou a se mexer e abrir os olhos. Quando focou seu olhar em mim, sua feição tornou-se confusa.
– Devo dizer "bom dia"? – Brinquei, mexendo em cabelo bagunçado.
– Oi, linda. – Murmurou com o cenho franzido e a voz extremamente rouca. – O que você está fazendo aqui? Que dia é hoje? Eu estou sonhando? – Dei risada, pois seus vários questionamentos combinaram com seu cabelo arrepiado apenas para um lado e sua expressão perdida.
– Hoje é dia dez, meu retorno a essa cidade maravilhosa! – Exclamei, animada, mas logo assumi uma posição preocupada. – Como está a garganta?
– Ruim. – A voz tão rouca que tive dificuldades para entender a única palavra.
– Eu fiz suco para você. – Estiquei-me para pegar o copo na mesa e dar a ele. Ele sentou, com as pernas esticadas e agradeceu, sorrindo fraco. Abalou-me deixando um beijo leve em meus lábios ao pegar o copo de minha mão.
Não era à toa que eu tinha dúvidas sobre meu status de relacionamento com ele. Até quando não estávamos juntos, éramos um casal. Sempre éramos um casal, sempre seríamos.
– Isso me lembra nossas manhãs de domingo. – Recordou, após tomar um gole da bebida.
– E você sendo insuportável em todas as vezes que eu adicionava mel ao suco. – Rolei os olhos e ele riu.
costumava fazer shows em todos os sábados. Nós sempre estávamos juntos naquela época, então quando acordávamos no domingo, a voz dele estava estourada.
– Como foi seu voo? – Questionou, bebendo um gole considerável. A voz já parecia voltar ao normal.
– Tranquilo, a poltrona ao meu lado veio vazia, eu pude dormir e descansar bastante. – Contei. Retirei minhas sandálias e aconcheguei-me no sofá-cama. – Só não foi divertido ter que andar cheia de malas pelo aeroporto.
– Por que não me ligou? Se eu soubesse, teria acordado cedo para ir te pegar. – Pigarreou ao final da frase. Pela expressão, eu sabia que ele estava incomodado com a voz rouca e com possível dor.
– Não faz isso! Pigarro faz mal para garganta. – Ralhei. – Você está tomando seus remédios?
– Tom enfia na minha goela todos os dias! – Reclamou, rolando os olhos e finalizando sua bebida.
Estiquei meu corpo no estofado, deitando de bruços ao lado dele. Por estar de vestido, minha calcinha acabou ficando a mostra, mas não me importei. já tinha visto locais do meu corpo que nem eu mesma enxergava. Puxei o travesseiro para debaixo da minha cabeça. O quarto estava tão friozinho e aconchegante. Eu nem estava com sono ou cansada, mas não queria levantar dali tão cedo. Talvez o corpo quente de tivesse algo a ver com isso.
– Você vai fazer alguma coisa agora? – Perguntei, ele negou com a cabeça. Seu olhar percorreu meu corpo, parando no meu traseiro. Sorrindo de lado, levantou meu vestido mais um pouco e beliscou minha nádega esquerda. – Deita aqui comigo?
Ele apenas deitou ao me lado, sem fazer nenhum outro movimento. Eu sabia o que ele estava fazendo. Ele estava esperando por mim. Estava esperando pelo meu próximo passo. Mais uma vez, deixou a decisão em minhas mãos. Só que dessa vez, eu não iria decepcionar. Levantei um pouco, apenas para me aconchegar em seu peito, forçando-o a passar um braço pelo meu ombro.
– ? – Chamei após passarmos uns segundos em silêncio. – Você sabe que nós não somos apenas amigos, não é?
– Eu sempre soube. Você sabe? – Suspirou, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da orelha.
– Eu tenho vontade sentar na sua cara toda vez que eu te vejo. Isso não é amigável. – Afirmei e gargalhou, tirando o braço do meu pescoço e sentando.
– Não, não é. – Concordou, saindo do meu lado e abrindo a porta de um pequeno armário que havia no cômodo. – Eu não dei o seu presente de Natal.
– Eu não te comprei nada. – Senti-me culpada quando ele veio até mim com uma caixa de presentes azul em mãos. – Baby, não precisava.
Sentei, pegando o caixa das mãos dele. Sentou ao meu lado, observando atentamente minha reação. Desfiz o laço e rasguei o embrulho rosa em volta, ansiosa. Senti minha boca se abrindo aos poucos quando percebi o que era. Uma caixa branca média que guardava uma câmera profissional, uma Canon Rebel. Eu nunca tive uma câmera, não por falta de vontade, eu simplesmente nunca tive dinheiro suficiente para comprar uma.
- Você é maluco... – Murmurei, passando a mão pela caixa nova. – ...
– Lembra quando nós fomos naquela galeria, onde Cam estava expondo algumas fotos? Você disse que queria ter talento como ele. Eu acho que você tem, só nunca explorou esse lado. Está na hora de entrar em uma nova fase. – Explicou, sorrindo suave. Minha expressão ainda era de choque.
Fazia muito tempo desde aquela exposição de Cameron, foi algumas semanas após nos conhecermos. Não acredito que ainda lembrava daquilo. Subi minha visão, desviando o olhar da caixa e encontrando seus olhos gentis. Foi um ato muito bonito dele, coisa que um amigo faria.
Entretanto, eu não conseguia pensar em outra coisa. Eu precisava que ele fosse completa e inteiramente meu. Por que eu já era completamente dele.
– Namora comigo? – Proferi, rapidamente.
Assim que as palavras saíram de mim, fiquei chocada com meu ato de coragem e impulso. Amaldiçoei-me de todas as formas. Assisti várias emoções passarem pelo rosto de em menos de um segundo.
– O-o que? – Gaguejou, embasbacado. Prendi meus lábios, desviando o olhar dele, envergonhada. Ouvi uma risada baixa, fechei os olhos, envergonhada. – Julieta, v-você acabou de me pedir em namoro?
– Não. Sei. – Expressei pausadamente, não tendo muita ciência de meus próprios atos.
Antes que eu dissesse algo mais, ouvi a gargalhada alta de reverberar pelo cômodo.
Jogou-se de costas na cama, ainda gargalhando. Tirei a caixa das minhas pernas, desorientada. Eu pedi Felipe em namoro?!
– Julieta Young, você me pediu em namoro! – Acusou, rindo alto e batendo palmas. – Essa é a melhor coisa que já aconteceu!
– Cala a boca, deixa eu pensar! – Gritei, chutando as pernas dele e ficando de joelhos na cama. Enfiei as mãos no meu cabelo e baguncei, como se isso pudesse organizar meus pensamentos. Isso só fez o idiota ao meu lado rir ainda mais. Ria tanto que seu corpo já estava se contorcendo. Irritada, subi em seu corpo, sentando em sua barriga e tentando cobrir sua boca e interromper as altas risadas que dava em minhas custas. – , para!
– Tá bom... – Tentou parar, limpando as lágrimas dos cantos de seus olhos. Mas é claro, foi inútil. Rolei os olhos, emburrada. Sentou-se, comigo ainda sentada por cima. Passou um braço pela minha cintura enquanto esticava-se, puxando a caixa da câmera para mais perto de nós. Com um braço, ele abriu a caixa, enquanto o outro braço, infiltrava-se por debaixo do meu vestido. – Abre seu presente, Julie....
Olhei para a caixa entreaberta e depois para seu rosto, agora mais calmo. Estranhei seu comportamento de primeira, mas depois pensei: E se houvesse algo dentro da caixa?
Ah, não.
Com uma mão, ergui a tampa da caixa e logo após, tirei a câmera de dentro. Ao retirar o objeto, notei um pequeno post-it grudado no fundo da caixa. Estava dobrado, assim eu não conseguia ler o que tinha dentro. Respirei fundo, pois temia já saber o que estava escrito ali. Olhei para ele, encontrando sua expressão nebulosa de sempre.
– Comprei já faz meses, mas nós estivemos estranhos nos últimos tempos, então... – Justificou. Seus olhos corriam pelo meu rosto, tentando encontrar algo.
– Quanto? – Questionei. Precisava saber a quantas vinha aquela vontade . Ele balançou a cabeça, negando.
– Alguns meses.
– . – Insisti. Eu precisava de informações mais precisas.
– Logo depois que eu saí na minha primeira turnê de seis meses. – Esclareceu, meio cabisbaixo. – Você foi embora logo depois, então, eu guardei. Se a câmera não funcionar mais, a culpa é sua.
Um ano. Suspirei, sentindo meus olhos arderem. Desviei o olhar para o pedaço de papel preso a caixa. Um papel de um ano atrás. Estiquei o braço, tocando no papel. Respirei fundo antes de desdobrar o papel. "Seja minha namorada". Um ano inteiro desde que tentou me pedir em namoro, mas a vida nos levou em direções opostas. Dobrei o papel novamente e olhei-o.
– Sim. – Respondi, simplesmente.
– Que bom, porque eu já tinha aceitado seu pedido há minutos atrás. Você roubou meu momento, Julieta! – Puxou meu corpo, encaixando minhas pernas em volta de sua cintura. Ri envergonhada, cobrindo meu rosto com as mãos.
– Você demorou um ano! – Acusei, passando meus braços em volta do seu pescoço.
– Pensando melhor, foi melhor assim. Ficamos um tempo longe, só para ter a certeza. – Explicou, acariciando meu rosto. – Para você ter a certeza de que queria isso tanto quanto eu. – Frisou bastante minha insegurança. Desceu uma mão por debaixo do meu vestido, encaixando-a entre minhas nádegas. A outra mão desceu as alças do meu vestido, expondo meus seios. Expirei fortemente. – Agora dá para nós fazermos o que sabemos fazer de melhor?
– , você está doente... – Tive dificuldades de completar a frase. Seus beijos pelo meu pescoço e colo foram mais do que suficiente para me deixar em uma molhada e vergonhosa situação lá embaixo.
– Eu não estou sentindo mais nada. – Contestou.
– Eu definitivamente estou sentindo alguma coisa. – Movi meus quadris na evidente animação dele, causando suspiros pesados em ambos.
Parecia que nossos corpos estavam numa dança, cheia de mãos, suspiros e beijos tranquilos, mas fortes. A posição em que estávamos deixava tudo mais quente e urgente. Sem muita paciência, nós estávamos apressados e sedentos um pelo outro. Ele apenas afastou minha calcinha e a partir daí, me transformou em um corpo que apenas gemia e desfrutava de seus prazerosos movimentos precisos.
– Uau. Você realmente vai ser minha namorada? – Indagou.
Após nossa consumação loucamente apaixonada, intensa e impaciente, o cantor olhava para o teto, pensativo.
e eu éramos duas pessoas exaustas. Encarei-o de volta, fazia tempo que eu não era namorada de alguém. Mas agora que eu era, eu estava feliz que era namorada do .
– Arrependido? – Ele me abraçava por trás, seus lábios tocavam meu ombro e seus braços me apertavam.
– Um pouco. – Virei-me completamente para ele, com uma sobrancelha erguida. Nem 24 horas namorando e o cara já estava arrependido? – Você é louca, já tentou me matar com um celular. Imagina se um dia eu decido terminar? Vai tentar me matar com a câmera?
– Você é ridículo! – Ri alto, jogando minha cabeça para trás. Subi em seu corpo, deitado sobre ele, na costumeira posição. – Saiba que vou ficar com você até quando você me quiser.
– Você está ferrada, então! – Gargalhou alto, revirando nossos corpos na cama. – Eu sempre quero você. – É estranho falar de "para sempres" no início de relacionamento. Mas, assim como tudo que nos envolvia, não era estranho, nem rápido demais. Sequer era o início da nossa relação!
– Essa palavra aí é perigosa. – Comentei, negando com a cabeça.
– "Você"? – Zombou, já sabendo do que se tratava.
– "Sempre". – Respondi, revirando os olhos. – O "sempre" é perigoso, .
– Eu sinceramente acho que depois de você, não vem mais ninguém. – Refletiu, mexendo no cabelo, sem notar que eu estava quase sumindo no colchão de tão encolhida por estar sem graça com sua ágil resposta.
That boy's a slag the best you ever had…
– Você não saiu dos 20, babe! – Retruquei, carinhosamente.
– Tem coisas que são fáceis de reconhecer, Julieta. – Decidi aceitar sua resposta. Do momento que aceitei meu novo emprego, decidi aceitar tudo que vinha até mim de bom grado. Estava na hora de acatar as decisões do universo e colher as novidades que os bons ventos estavam trazendo. – Se você tem dificuldades por conta do seu bloqueio emocional, a culpa não é minha. – Atacou-me repentinamente, fazendo-me prender o riso.
– Eu perdi alguma coisa? Quando saímos do "amor eterno" para a agressão gratuita? – Reclamei, beliscando suas bochechas.
– Nós sempre estamos entre o amor e a agressão. – Gracejou, fazendo-me rir. – Você é a incógnita da minha vida.
– A culpa é totalmente sua, foi você que foi atrás de mim no bar. Aliás, você realmente foi atrás de mim? – Questionei, curiosa.
Lembro que no início da minha relação com os garotos, eu sempre acreditava que eles estavam procurando ou querendo falar apenas com Dana, e com não era diferente.
– Sim... – Admitiu com as bochechas avermelhadas, como se não estivéssemos nus, dividindo a mesma cama.
– Ah, que bonitinho, você me paquerou! – Gargalhei. Ele rolou os olhos, puxando o lençol de mim.
– Não mudou muita coisa. – Envergonhado, enfiou o rosto no meu pescoço, dando uma risadinha e depositando um leve beijo antes de levantar da cama. – Eu sempre a quis mais do que você me queria.
– Eu acabei de te pedir em namoro, ! – Proferi, quase exasperada.
– Você quer mesmo que eu liste os motivos do porquê demorou tanto para isso acontecer? – Indagou, sarcástico. – Falando nisso, eu preciso contar para a minha mãe.
– Eu posso contar? Ela vai amar. – Pedi, empolgada.
– Não, já chega de roubar o meu momento! – Resmungou, jogando meu vestido de volta até mim. – E fica longe da minha mamãe, essa amizade de vocês duas não está fazendo bem para minha coroa. Eu tenho certeza de que ela está no Tinder por influência sua. – Apontou com o dedo indicador, dando ênfase a sua acusação.
– Eu só comentei que existia um aplicativo...
– Eu nem quero ouvir o resto dessa história. – Parou minha explicação, fazendo me rir.
– Eu preciso contar para Dana! Me dá meu celular, por favor. – Assim que o encontrei, procurei pelo ícone com a foto de Dana, que já havia respondido minha mensagem de horas atrás.
DizzyD 😍 (17:20): Oi! Só vi suas ligações agora, já chegou???
DizzyD 😍 (18:00): Onde você tá??
DizzyD 😍 (18:02): Me respondeeee
DizzyD 😍 (18:05): Rastreei seu celular! já está no Cameron, certo?
DizzyD 😍 (18:06): Me liga!!
Eu (18:50): Já em HW. Inclusive, cheguei na cidade comprometida.....
DizzyD 😍 (18:50): O QUE?
Gargalhei quando Dana começou a mandar vários gifs aleatórios e mostrei para . Abri o nosso grupo de mensagens, aproveitei para contar logo, já que todos deveriam estar saindo de seus respectivos empregos. Puxei pelo ombro e posicionei a câmera para tirar uma selfie e enviar no grupo.
Eu (18:56): AMIGOS, ACONTECEU!
DizzyD 😍 (18:58): aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
Cameron K (18:59): você tá grávida?
Baby ♥ (19:00): Não sou mais um homem solteiro.
Cameron K (19:00): porra, finalmente!
Dizzy (19:00): aaaaaaaaaaaaaa
Eu (19:01): É galera, é oficial, tô namorando!
Jack Jack (19:05): Com quem?
━━━━━━◇◆◇━━━━━
Fevereiro
– Merda!
Julie digitava no celular com tanto afinco e concentração que só percebeu que caminhava sob uma poça de água quando sentiu a umidade passar do tênis All Star até seu pé. Após um mês de experiência no novo emprego na Editora Hall, Julieta já estava mais do que acostumada a ser a "conselheira administrativa", apesar de nem sempre se ater ao que era designada a fazer.
Também fazia um mês que ela era mais do que amiga/peguete de . E o casal ia muito bem, obrigada. Já haviam terminado três vezes desde o início do namoro, mas ambos sabiam que nenhum término deles era para valer.
Marcavam nove e meia da noite no relógio, quando Julieta finalmente dobrou a esquina de sua antiga rua, já avistando sua antiga morada.
Julie sentia muitas saudades de morar com Dana, senti falta de morar com uma mulher.
Entretanto, Cameron era um ótimo parceiro de casa. Era divertido, sempre tinham um jantar diferente, assistiam muitos filmes e ela se sentia honrada com as pequenas aulas de fotografia que ganhava do amigo de vez em quando. Ela ainda não tinha dinheiro o suficiente para um apartamento, mas logo tinha planos de procurar um local só dela.
O jantar da sexta-feira ficou por conta de Dana, que agora havia voltado a morar sozinha desde que Laura havia decidido voltar a sua cidade natal. Porém, a publicitária nem se deu ao trabalho de tentar cozinhar e pediu delivery do seu restaurante mexicano preferido. Quando Julie chegou ao seu antigo apartamento, todos já estavam lá. Seu coração se aquecia toda vez que ela chegava e via a mesma cena em sua frente.
– Amiga, a pergunta da noite é: Jack Jack, inocente ou pilantra? – Questionou Dana enquanto entregava uma lata de cerveja para Julie....
– Os dois? – Ela ressaltou, estranhando e perguntando-se como a conversa havia chegado até aquelas conclusões. Ela se aproximou do sofá, onde estavam e Jack, que não parava de emitir reclamações acerca das opiniões sobre ele. – Você não trabalha mais, garoto? – Brincou, acariciando o cabelo de seu namorado de leve e indo a poltrona onde estava Cameron.
– Vou voltar depois do festival em Cali. Para de me pressionar! – Reclamou, estendendo a caixinha de salgadinhos para a garota.
– Estamos assistindo Friends? – Estranhou, retirando os sapatos e ajeitando a saia preta ao sentar no chão, tomando cuidado para não deixar nada a mostra. Ergueu uma sobrancelha para Jack, que parecia aborrecido, já que era de conhecimento geral que o músico odiava a série.
– Eu perdi uma aposta, não pude escolher a série de hoje. – Resmungou, cruzando os braços. – E não pensem que eu não percebi que hoje eu estou sendo atacado por todos os lados!
– Você é um alvo fácil, meu amor! – Cam justificou, rindo da carranca do amigo.
– Cadê a Vic? – perguntou, prendendo os lábios para não dar risada.
– Faz um mês que terminamos, superem! – Jack exclamou, rolando os olhos, irritado.
– Estou morrendo de fome, cadê a comida? – Julie questionou.
– Eu avisei que esse restaurante era terrível, você não me escuta! – acusou Dana, puxando a garrafa de cerveja da mão da mulher, que faz careta.
Os cinco jovens ali – já nem tão jovens assim – estavam acostumados com aquela rotina tão familiar e amorosa. Apesar de todas estarem tão ocupados o tempo todo, apesar de tantos empregos e desempregos, eles estavam ali. Fingindo que não existia nada mais importante no mundo do que o episódio da série que estavam assistindo ou o cardápio do jantar. E apesar de todos terem suas famílias, aquela ali era mais uma, a que eles mesmos escolheram.
– Por que diabos eu sou o Chandler? – Cameron não gostou nada da comparação feita por seus amigos. Logo ele, que achava aquele personagem terrivelmente insuportável.
– O engraçadinho irônico só reclama? Por que seria você? – gargalhou, acusando-o.
– Se eu sou Chandler, você e Julie são Ross e Rachel, o casal mais insuportável do mundo das séries! – Cam reclamou, empurrando o prato de chili para longe. – E Jack só pode ser a Phoebe, o "músico" esquisitão e brisado. E sem falar nos milhares de parceiros ao longo da temporada.
– Não quero ser comparado a nada dessa série, ok? – Jack resmungou, cruzando os braços. – Entretanto, a Phoebe é ok, ela casa com o Paul Rudd, então, funciona para mim!
– Se ser a Rachel significa ser uma mulher bem-sucedida, eu aceito. – Julie deu de ombros, roubando um bolinho de carne do prato de .
– Posso não ser o Ross? Eu acho que ele não é um cara muito legal. – pediu, torcendo os lábios, fazendo Julie suspirar com o jeito meigo de seu namorado.
– Você pode ser o Ross gente boa, mas ainda é o cara certinho e chato. – Cameron brincou.
– E quem é a Mônica? – Dana perguntou inocentemente, passando o dedo pelo final do crema da guacamole e se intimidou quando levantou a cabeça e notou que todos os olhares estavam voltados para ela. – O que? Eu?
- Rachel morou com ela. – Julie evidenciou uma similaridade, dando de ombros.
– É, eu sempre gostei da amizade deles! – Cam concordou, evidenciando a relação entre Chandler e Monica na série de TV mundialmente conhecida.
– Sim, a melhor parte dessa amizade foi o casamento deles. – Jack zombou, erguendo uma sobrancelha sugestivamente.
– E foram os primeiros a casar... – pontuou. Dana e Cameron se entreolharam e como se estivessem envergonhados, desviaram o olhar.
e Julieta também se entreolharam, notando o desconforto dos amigos com a situação e bom, aqueles suspiros, o desvio de olhar... Eles conheciam bem aquela fase, reconheciam aquele sentimento de troca ainda desconhecida por duas pessoas. E poderíamos falar mais sobre isso, porém, essa é (possivelmente) uma outra história de amor.
– Até parece. – Disse Dana, balançando a cabeça. – É capaz de Jack casar antes de todos nós.
– Ah, boa piada! – Julie gargalhou, batendo palmas.
– Não entendi porque o desdém! – Jack reclamou. – Vou casar antes de todas vocês, querem apostar?
– Eu entro na igreja com uma peruca rosa se algum de vocês se casarem um dia. – Julie debochou. Conhecia os amigos e não conseguia vê-los sendo adeptos de uma imposição tão patriarcal e conservadora da sociedade, segundo o que ela acreditava.
– Agora me atingiu! – Cam reclamou, batendo o copo na mesa.
– Querida, eu já até escolhi o meu vestido e nem noivo eu tenho! – Dana juntou-se as reclamações.
– Amor, você vai acabar usando uma peruca rosa no próprio casamento. – brincou provocante, bebericando da própria cerveja.
Julie rolou os olhos e continuou ouvindo as reclamações de todos contra ela, indignados ainda com a fala da garota, enquanto ela ria, sentindo-se satisfeita. Não desejava estar em nenhum outro lugar do mundo senão ali, naquela sala minúscula onde passou grandes anos da sua vida, sendo apedrejada por xingamentos de seus melhores amigos. Aqueles que ela amava profundamente e amava tudo sobre eles. Amava que até o assunto mais polêmico e pesado se tornava leve. E o mais leve se tornava uma discussão séria tal qual uma reunião da ONU. Sabiam cada aspecto da personalidade um do outro. Amava o que eles passaram, o que criaram, o que eram e o que deixaram para trás. Julieta amava a certeza de que eles tinham que seria assim para sempre.
Sem nenhuma ressalva em usar tal palavra.
❍❍❍❖❍❍❍
leu a receita no tablet novamente, fazendo a contagem de ingredientes usados apenas para ter a certeza de que eu tinha feito tudo certinho daquela vez. O cantor ainda não tinha desistido da sua vontade de aprender a cozinhar, resultando quase sempre em desastre.
– Oi, amorzinho! – Despertou da própria fúria, olhando para cima rapidamente quando escutou a animada voz da namorada surgir no recinto. ainda tinha o costume de não trancar a porta da frente. Sua expressão não devia estar muito boa, pois quando ergueu a cabeça, Julie ergueu as sobrancelhas, assustada. – Ok, não estamos de bom humor?
– Não é possível! Eu fiz tudo do jeito que a receita pede, amor! Até cronometrei o tempo no liquidificador! Eu só quero fazer um jantar para minha namorada, é pedir demais um pouco de talento?! – Enfezou-se, apontando para os elementos que citou. – Quer saber? Eu vou apelar. Liga para o Cameron, eu preciso entender o que eu fiz de errado! Eu contei até o número de mexidas!
Bufou, olhando para a bagunça em sua frente. A cozinha da casa do cantor estava habituada a receber as catastróficas investidas do mesmo, mas naquele dia estava fora do comum. Tudo começou quando insistiu em querer fazer um jantar para sua namorada, após passarem alguns dias afastados por conta do trabalho.
Estranhou nenhuma piada ou qualquer indício da voz de Julieta. Quando a olhou, a mulher estava de braços cruzados, apoiada na geladeira, os lábios estavam apertados em um sorrisinho suave como de costume, mas seus olhos estavam diferentes. Ele sabia muito de Julieta Young, conhecia várias de suas facetas, conhecia todos seus sorrisos e olhares, principalmente os que eram direcionados a ele.
Entretanto aquele era totalmente novo. Ele quase conseguia ver um brilho e a transmissão de um sentimento diferente em seu olhar. Algo que até então, ele ainda não havia sentido.
Reciprocidade.
– O que foi? – Questionou, confuso. Ela pensou alguns minutos antes de responder, mas sem desfazer-se da expressão serena.
– Você estava certo. – Ela deu de ombros, simplesmente. E antes de virar-se para deixar a cozinha, ela falou algo que mudou tudo: – Eu realmente amo você. – Antes de sair da cozinha, virou-se novamente para mim, colocando a bolsa no ombro novamente.
A todo momento, havia alguma canção "tocando" na mente de e naquele momento, os Beatles pareciam gritar na mente do rapaz: "she loves you, yeah yeah yeah..."
– Ei, estamos bem? – Questionou, receosa, mas mantendo o sorriso ladino, de quem sabia que tinha acabado de mexer inteiramente com ele. Pigarreou, mas nem isso forçou as palavras a saírem, então apenas assentiu, tendo a certeza de que devia estar com a expressão mais idiota do mundo. – Está bem, então! Vou tomar um banho e a gente pede uma pizza, ok? – Informou, lançando uma piscadela sacana e deixou o cômodo.
demorou uns segundos para conseguir voltar a se mexer. Tentou voltar a mexer no creme de batatas e nas salsichas, mas nada prendia sua atenção. Até que se pegou rindo. Sim, estava rindo, ele não conseguia parar de rir à toa.
Aquilo mudava tudo. Por que, mesmo que resolvidos, nunca deixou de sentir que um dia Julie acordaria e simplesmente quisesse ficar sozinha e o mandasse sair de sua vida para sempre. Lá no fundo, no seu subconsciente, ainda tinha um pé atrás em relação a namorada. Porém, Julieta poderia ser completamente louca e brincava com as coisas na hora errada, falava muitas besteiras, mas se havia algo que sua garota levava a sério, isso era o amor. Ouvi-la falar as famosas três palavrinhas pela primeira vez de forma tão simples fez seu coração bater no ritmo normal novamente. Parece que havia soltado uma respiração que há muito estava presa.
Mas agora estava tudo bem, porque a garota que amava, o amava também.
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Deslizou seu dedo pelo tablet, já entediado. O cantor já havia respondido os e-mails, resolvido as burocracias do estúdio, interagido no Instagram, e agora nem o Candy Crush conseguia manter sua atenção. Não importava o que fizesse, seus olhos sempre voltavam para a mulher sentada próximo a ele.
Julieta está sentada em uma poltrona de escritório bege, ele não prestava atenção no que ela falava agressivamente no celular, sua atenção estava inteiramente voltada para seus trajes e sua postura firme. Usava apenas uma camisa de pijama cinza, deixando sua pequena calcinha de bolinhas a mostra. As pernas grossas estavam cruzadas, seus cabelos presos no topo e seus cotovelos estavam apoiado na escrivaninha comprada só para que ela não precisasse sair do quarto para trabalhar (mas não admitiria isso). Suas mãos redigiam rapidamente contra uma folha de papel em suas diversas agendas. Desde que ela havia dito que o amava, passou o jantar inteiro observando-a mais atentamente do que o normal. Sentia-se patético, mas a amava. Amava a risada dela, seu corpo e seus atributos voluptuosos. Amava quando ela debocha dele, amava seus contatos visuais constantes, mesmo que ela estivesse de joelhos diante dele ou na plateia de seus shows.
– Durante a tarde não, Alfredo! Não foi isso que eu sugeri… Ok, então, vamos fazer do seu jeito, mas pode falar para todo mundo que a ideia é sua, pois quando der errado, eu não quero estar associada a esse desastre! – Quando Julie ficava irritada, seus óculos escorriam insistentemente pelo nariz e era assim que ela estava, empurrando o objeto para o lugar a todo instante e quase quebrando o aparelho celular contra sua própria orelha. Riu pelo nariz com sua resposta atrevida, balançando a cabeça negativamente. A amava. – Ok, vamos discutir isso amanhã… porque eu quero dormir, Alfredo! Estou cansada, quatro horas em uma reunião hoje! Tá ok… Boa noite. – Jogou o celular na mesa, irritada e bufando. – É sério, amanhã eu mato esse cara.
– Eu amo você. – Murmurou.
– Eu sei. – Rolou os olhos, levantando da cadeira. – Alfredo acha que eu não consigo fazer nada sozinha, é impressionante! Eu tenho quase certeza de que isso é machismo. – Digitava no celular enfezada. Até tentou falar algo, mas sua gargalhada acabou irrompendo garganta a fora. Amava aquela garota.
– Eu acabei de falar que te amo e você rola os olhos e começa a falar de outro cara? – Gargalhou, indignado. Pegou um travesseiro, jogando nela. – Você é inacreditável! Vai dormir no sofá hoje.
– O que você quer de mim, oras? – Ela também riu com sua própria reação inusitada. Deixou o tablet de lado e arrumou-se na cama, quando notou que ela andava até ele. Deitou sobre seu corpo, com as pernas esticadas entre as dele, apoiando seus troncos e fixando seus olhares. – O que você quer que eu diga? "Valeu, baby!" ou "obrigado por me esperar e não desistir de mim?". Ou então... – Seu corpo inteiro se arrepiou quando o olhar marcante de Julieta subiu de sua boca até seus olhos. – Obrigado por me amar.
– Não tinha como não amar você, linda. – Assegurou, examinando-a atentamente, sendo possível ver umas gotinhas de lágrimas se amontoando no cantinho de seus olhos.
Mesmo que tortuosa, incoerente e totalmente imperfeita, aquela talvez fosse uma história de amor.
Você pode comprar um atlas, um globo, pode entrar em todos os sites geográficos do mundo, mas Hillswood jamais será encontrado. Tal qual Asgard, a pequena e afável Hillswood não era um lugar. Era uma sociedade diferente de todas, mesmo que fosse como qualquer outro lugar no mundo. Eu podia não ter nascido em HW, mas esse fato incômodo não me transformou em uma forasteira. A cidade que me acolheu de braços abertos ainda me abraçava em momentos de solidão.
Em HW, as lojas do comércio fecham às 17h. Parece cedo para as grandes metrópoles, mas era sempre bom encontrar pessoas confraternizando com as amizades nas portas enquanto você faz o seu caminho de volta para casa. Mesmo sendo considerada pequena e interiorana, a vida noturna poderia ser bastante agitada. Hillswood tinha esse poder. Tinhas ares camponeses durante o dia e as noites pareciam explodir agitação de cidade grande.
Suspirei, quase pesarosa, ao me despedir da cidade pela janela do ônibus interurbano, como se eu não fosse estar de volta ao lar em dois dias. Abri o notebook, decidida a terminar meu trabalho e obrigações até chegar ao meu destino, a cidade vizinha de HW.
Após quatro horas de viagem, cheguei na cidade – que poderia ser considerada um vilarejo de tão pequena – e fui direto para o salão de beleza, onde já tinha hora marcada a uns dias. Senão saísse direto do ônibus até o local, eu chegaria mais do que atrasada, então, liguei para a pousada onde ficaria hospedada e pedi que meu check-in fosse adiado por algumas horas. Enquanto meu cabelo era puxado de um lado para o outro e meu rosto recebia as mais variadas combinações de pós e cores para tentar disfarçar a feição cansada e “amassada” pós viagem, eu tentei muito não ficar ansiosa.
Li e reli várias vezes a apresentação do editorial da semana que vem e fiz todas as alterações que achei necessário, mas isso não me impediu de aceitar a taça de champanhe oferecida pela recepcionista do salão e de passar o dia inteiro balançando o pé incessante e ansiosamente. Quase duas horas depois, com maquiagem e cabelo mais do que prontos, segui direto para a pousada onde seria minha hospedagem durante aqueles dias.
A transição para a tarde era agradável e animadora, as paredes da suíte média foram coloridas com as cores alaranjadas do sol que se despedia no horizonte. Suguei pelo canudinho o resto do vinho na taça, tomando cuidado para não manchar o batom e não borrar a maquiagem cara. Eu sabia que estava atrasada, mas simplesmente não conseguiria sair enquanto não arrumasse aquela cama completamente bagunçada com roupas e malas e, claro, enquanto não terminasse a bebida.
Eu sabia que todos já estavam no local e isso me causava uma certa estranheza. A ansiedade de ver todo mundo junto novamente estava me causando uma agitação incomum, especialmente porque eu estava mais do que ciente que encontraria certas pessoas após dois (dois!) anos.
Desde que passei a viver só, a minha vida havia se tornado uma monotonia sem fim e quase nenhuma novidade surgia do nada. Eu sei que só estava sentindo tanta diferença assim porque, em outra época, eu estaria acostumada a lidar com grandes emoções, afinal, passei por umas poucas e boas. Mas agora tudo, não só parecia, mas estava diferente. Minha vida passou por um período de calmaria depois que consegui o emprego na Editora Hall. Ainda trabalhava na Editora, porém, agora eu era diretora administrativa.
E para que não houvesse dúvidas da minha competência (colocadas a prova por mim mesma), eu estava fazendo uma segunda graduação em Administração. E fazia aulas de fotografia e alemão. E já não era mais loira, mas os tons claros nunca mais haviam deixados meus cabelos. Muita coisa estava diferente.
Olhei-me no espelho mais uma vez enquanto calçava os saltos comprados especificamente para aquela situação. Respirei fundo, agarrei a pequena bolsa em uma mão e sai do quarto, indo em direção a portaria, onde um táxi já me aguardava na porta. Bati os saltos no chão e senti o estômago revirar ao dobrar a esquina e notar que, em alguns passos, eu chegaria ao local. A pequena catedral de San Joan abusava do estilo barroco e antigo, causava contraste por sua localização exata ser entre dois luxuosos e modernos prédios. E era absurdamente linda.
Alisei o vestido azul marinho ombro a ombro ao sair do carro, que estava justo demais em meu busto, mas era o único na loja que tinha o decote nó que eu tanto procurei. Segurei a pequena bolsa com mais força quando cheguei na escadaria do local, nervosa apenas com a visão que tinha dali. E que visão!
Cameron vestia um smoking preto belíssimo que definitivamente tinha sido feito sob medida para ele. Estalava os dedos das mãos, pensativo, até seus olhos me enxergarem ali. Seus lábios abriram-se em um enorme sorriso, que logo transformou-se em risada.
— Olha só você! – Exclamei, animada. Segurei a barra do vestido, para subir os degraus mais rapidamente. As mãos de Cam – sempre um cavalheiro britânico – vieram ao meu apoio, ajudando-me a terminar o serviço mais depressa e quase me carregando para finalizar o momento de antecipação com um abraço apertado.
Cameron era um dos poucos que eu via constantemente. Depois de passarmos um bom tempo sendo parceiros de casa, consegui dinheiro o suficiente para sair do aluguel na casa do meu amigo e consegui um apartamento pequeno na mesma rua de Cameron. Além de meu vizinho, ele havia se tornado meu professor. Foi ele quem me matriculou em minha primeira aula de fotografia e meses depois, ele acabou virando o professor daquela turma. Ainda jantávamos juntos nas quintas, sempre que possível.
Olhou-me de cima a baixo e soltou um assobio. Cameron sempre me elogiava e costumava dizer que a maturidade dos anos havia me feito muito bem.
— Você está incrível! – Elogiou, sorridente.
— Você também. – Apoiei a bolsa debaixo do braço e centralizei a gravata borboleta em volta do seu pescoço. Alisei seus ombros enquanto olhava para seu conjunto de roupas. Estávamos em um casamento! Ria enquanto batia palmas, animada. – Eu não consigo acreditar!
— Nem eu! – Confessou, gargalhando. – Como foi a viagem?
— Tranquila. Como ela está? – Questionei, analisando a decoração simples na entrada da igreja, achando tudo muito incrível. Era espantoso ver um dos nossos casando.
— Ainda não a vi. – Murmurou, sorrindo gentilmente, mas era possível notar que também estava ansioso. Tal percepção foi confirmada quando ele olhou para o relógio, apreensivo. – Na verdade, acho que eu já deveria estar lá dentro. Ela deve estar na segunda sala, entrando na porta a direita. Pode ir até lá e ver se está tudo certo!
Apreensiva, concordei e entrei no local, indo direto para as salas complementares, não muito interessada em ver o público lá dentro. Pelo contrário, quanto mais tempo longe daquele covil de emoções, melhor. Fui até a sala onde a noiva estava, bati na porta e como não obtive respostas, entreabri, apenas para ter certeza de que era sala certa.
— Existe alguma noiva por aqui? – Brinquei após notar a bagunça na sala. Maquiagens, anáguas, sapatos espalhados pelo chão só mostravam que elas estavam lá. Mordi o lábio, apreensiva. Entrei na sala, joguei a bolsa pequena na mesa e... — Uau!
Quando ela saiu do banheiro, parecia uma visão de tão perfeita. Mesmo com o cabelo preso em um penteado, o comprimento ainda ia até seus ombros. Um belíssimo véu prateado prendia o volume de seus cabelos. O vestido tomara que caia era de um azul tão claro que exalava delicadeza. A fita branca marcava logo abaixo de seus seios e dali a enorme saia se abria, deixando-a como uma verdadeira princesa. Eu não fui a maior fã da ideia do azul por achar que não combinaria com ela, mas olhando o pacote completo, o azul claro contrastou perfeitamente com seus cabelos ruivos, deixando-a deslumbrante.
Victoria era a noiva mais linda e perfeita que eu já tinha visto na vida.
— Julie, você chegou! Eu estou enlouquecendo! – Correu até mim, ignorando minha posição embasbacada e me abraçou com força. Senti meus olhos encherem de lágrimas com a bela visão de minha grande amiga. – O que foi? Ah, você também não!
— Você está perfeita, Vic! – Exclamei, emocionada.
Assim como Victoria apareceu de surpresa na nossa vida, o casamento da garota também chegou de surpresa. Á alguns anos atrás, quando Jack e Vic anunciaram seu término, o nosso grupo logo começou a se perguntar e planejar formas de manter a garota por perto. Amávamos a moça, era espirituosa e gentil, adorava uma boa festa assim como nós e tinha a aprovação total das garotas do grupo, isso já era uma grande vitória. Eu mal consegui acreditar quando assisti ao vídeo do pedido.
— Cadê todo mundo? – Perguntei, estranhando o silêncio.
— Ela expulsou as damas, as tias e até a própria mãe. Estavam deixando a noiva irritada! – Dana resmungou, saindo do banheiro com uma pequena bolsa, mexendo na barra do próprio vestido. Seu olhar vacilou quando encontrou o meu olhar. Senti minha boca secar em segundos e quase senti a necessidade de engolir em seco ao ver minha amiga. Ou ex-amiga, eu não sei mais dizer. – Oi.
— E Dana continua fazendo o trabalho delas! – Victoria interrompeu antes que eu conseguisse responder, então apenas acenei com a cabeça.
— Eu não estou falando nada, você está descontando tudo em mim por que está nervosa! – A morena reclamou, revirando os olhos e virando de costas. O vestido longo vermelho de frente única e uma fenda de tirar o fôlego ressaltavam sua beleza ímpar.
Era a primeira vez após aqueles dois (longos) anos que nós nos reencontrávamos e olhando Dana de perto, eu não pude evitar sentir saudades da minha amiga. Passei muito tempo não me permitindo a isso, pois foi ela quem quis isso, ela escolheu ir, mas havia dias em que eu bebia vinho sozinha escutando rock antigo ou ficava encarando minha janela pequena demais e eu sentia falta de seu sorriso doce e palavras gentis, seus delicados beijinhos no nariz.
— Se você for chorar também, é melhor ir embora. – Vic resmungou, apertando os pés dentro dos sapatos brancos.
— É o dia do seu casamento, dia mais feliz, blá blá blá. Se acalma! – Gargalhei do mau humor aparente da ruivinha, que só estava tensa demais pelo mesmo motivo. Ia casar!
— Eu não acredito que estou fazendo isso! Não acredito que estou indo casar! Como vocês deixaram isso acontecer!? – Exclamou, expirando fortemente e abanando o próprio rosto com as mãos.
— Se for fugir, me avise logo para que eu possa ir direto até o noivo. Quero deixar claro que não ajudarei na fuga, porque, bom... – Dana deu de ombros, tomando um gole de champanhe e fazendo uma careta.
— E se a gente sair só para fumar um? – Vic tentou, fazendo-nos soltar uma risada conjunta. – É sério, quanto tempo não fazemos isso?
— Passou o tempo que andávamos com cigarro na bolsa, Vic. Sério, você já está atrasada o suficiente! – Alertei, servindo-me com uma boa taça de champanhe, só para relaxar com a presença intimidante de Dana atrás de mim.
Com o passar dos anos, eu havia aprendido que, mesmo que eu me tornasse uma mulher profissionalmente incrível, mais bonita do que nunca estive, eu sempre me sentiria pequena perto da imensidão que Dana Tomazio era e sempre seria.
— Eu sou a noiva, vocês deveriam fazer minhas vontades! – Choramingou, batendo o pé no chão, irritada.
— Não somos as madrinhas! – Dana retrucou, provocadora.
— Você ainda não superou isso? – Vic rolou os olhos. Havia sido uma pauta constante no nosso grupo de mensagens o fato de Vic não ter nos convidado para sermos madrinhas. No fundo, eu a entendo. Era difícil imaginar que eu e Dana conseguiríamos dividir o mesmo espaço.
— Victoria, é o seguinte: estou indo avisar que você já vai entrar. Eu sei que você está nervosa, mas já se passaram quase uma hora de espera. Um passo de cada vez! Você vai atravessar a igreja, subir no altar, olhar para o seu lindo noivo e... – A minha tentativa de tranquilizar a garota quase não deu certo. – Bom, se casa.
— Oh, meu Deus! – A noiva colocou a mão sobra a barriga, sentindo seu estômago se contrair. Havia chegado a hora, ia se casar! – O que eu estava pensando em aceitar aquele pedido?
— Sabe que eu me pergunto o mesmo? – Dana brincou, indo até a mulher quase à beira de lágrimas. – Vem aqui, vamos arrumar esse vestido e vamos casar! – Comemorou, batendo palmas e arrumando a beira do vestido.
— Você é oficialmente a noiva mais linda que eu já vi e merece toda a felicidade do mundo! – Abracei a mulher e me apressei em soltá-la quando notei seus olhos cheios de lágrimas. – Vou até lá avisar. – Informei e virei todo o líquido da taça na boca antes de sair do local. Andei pelo corredor tenebroso até chegar na antessala, informei as mulheres que estavam ali que Vic estava pronta e causei um alvoroço entre elas.
Querendo fugir dos hormônios femininos em peso ali, resolvi ir direto para o salão principal, onde seria a cerimônia. Fiquei extremamente nervosa de ter que andar até meu lugar, que era nas primeiras fileiras, quase perto do altar. Chegando próximo, senti meus olhos encherem de lágrimas e quase não consegui me segurar quando finalmente me dei conta que um dos meus melhores amigos, o xodó do grupo, ia casar!
Jack sorriu abertamente ao me notar indo até ele e Cameron no altar. Quando percebeu meus olhos cheios de lágrimas teimosas e fujonas, o músico também não conseguiu conter sua emoção. Eu sabia que era mais do que importante para ele que seus amigos estivessem reunidos novamente, sabíamos o quanto ele se sentia culpado por ter sido um dos primeiros a ir embora de HW, mas quando ele e Victoria reataram, prometeram um ao outro que fariam o possível para se manterem juntos e a prova de fogo entre eles aconteceu quando Vic conseguiu o emprego que queria em outra cidade.
— Hoje é o dia! – Expressei animada, abraçando-o, emocionada.
— Hoje é o dia! – Jack confirmou, rindo. – Como você está, Julie?
— Muito feliz por você. – Contei, sincera. – Desculpa não ter vindo antes para o ensaio e tudo mais.
— Tudo bem, não perdeu nada muito importante. – Jack abanou as mãos. – Na verdade, eu trouxe algo para você. – Comentou, estendendo as mãos para um dos seus padrinhos de casamento. – Cam, onde está aquela sacola que eu pedi para você guardar? – Pediu, recebendo o embrulho logo em seguida.
— O que é isso? – Franzi o cenho, confusa.
— A peruca. – Enunciou simplesmente, entregando-me a sacola.
— Que peruca, Jack? – O rapaz ergueu as sobrancelhas, insinuante. E então, eu lembrei.
“– É capaz de Jack casar antes de todos nós.
— Ah, boa piada! – Julie gargalhou, batendo palmas.
— Não entendi porque o desdém! – Jack reclamou. – Vou casar antes de todas vocês, querem apostar?
— Eu entro na igreja com uma peruca rosa se algum de vocês se casarem um dia. – Julie debochou. Conhecia os amigos e não conseguia vê-los sendo adeptos de uma imposição tão patriarcal e conservadora da sociedade, segundo o que ela acreditava.
— Agora me atingiu! – Cam reclamou, batendo o copo na mesa.
— Querida, eu já até escolhi o meu vestido e nem noivo eu tenho! – Dana juntou-se as reclamações.
— Amor, você vai acabar usando uma peruca rosa no próprio casamento. – Filipe brincou provocante, bebericando da própria cerveja”.
— Você não pode estar falando sério. – Quase gritei, exasperada, abrindo a sacola e encontrando uma peruca de cabelos longos rosa. — Eu não vou sair nas fotos do seu casamento com isso, Jack! – Reclamei, tentando não chamar atenção, o que foi impossível já que estávamos no altar.
— Devia ter pensado nisso ao fazer a aposta. – Riu, dando de ombros.
— Eu ainda acho que você só casou para vencer essa aposta! – Cameron gargalhou, erguendo os punhos para que Jack tocasse.
— Isso é... Uma peruca de cosplay? – Analisei o objeto. – Eu paguei caro no meu penteado para você me fazer usar uma peruca usada!?
— Peguei emprestado com uma priminha, você acha mesmo que eu ia gastar dinheiro com isso? – Jack zombou, fazendo Cameron gargalhar e erguer os punhos para Jack novamente.
— Você me paga. – Resmunguei, enfurecida.
Vi Dana prender seus lábios para não soltar uma gargalhada quando entrou na igreja e se deparou com a cena que ridícula que eu protagonizava. Não existia nada mais “nós” do que a cena que ela – e mais de 80 convidados – viam acontecer no altar naquele momento. Cameron colocava brutamente uma peruca rosa na minha cabeça enquanto Jack gargalhava tanto que suas maçãs do rosto estavam avermelhadas.
Perguntei-me se Dana sentia nossa falta. Eu e Cam morávamos na mesma rua, Jack estava a poucas horas de HW e podia encontrar os amigos sempre que quisesse. Ela, entretanto, estava do outro lado do mundo. Se o amável e caloroso Jeins era solitário sem meus amigos, imagina só, como seria a gélida Inglaterra?
— Eu já disse que você é um idiota? – Resmunguei, arrumando a peruca na cabeça.
— Vocês são ridículos! Que porra é essa? – Dana tentou se fazer de desentendida, mas seu sorriso escapou dos lábios antes que terminasse a frase.
— Estamos em uma igreja, mulher. Contenha-se! – Cam brincou, beliscando levemente o ombro nu da mulher.
Tentei manter o cabelo falso no lugar, sentindo o dinheiro que gastei no salão escorrer pelos seus dedos. Ouvi algumas risadas na área superior da igreja, onde ficava um pequeno palco, com os instrumentos, a banda e o coral da igreja. Coral esse que seria muito bem regido pelo cantor de mais sucesso da pequena Hillswood em tempos. Filipe Buchart.
Ele me olhava, sorrindo de lado e riu de verdade quando viu Jack apontar para ele, sibilando um “eu não disse?”. Rapidamente desci o olhar para fugir de Filipe e seu magnetismo intenso. Era tão estranho que mesmo após tantos anos, eu ainda sentia meu coração bater de forma infantil e descompensada só de ouvir o nome dele. Vê-lo ali, mais bonito do que nunca, encantando a todos com sua voz e suas baladas românticas. Cantar no casamento do melhor amigo... Isso era algo extremamente Filipe de se fazer. Com sorte, eu conseguiria manter o olhar apenas no altar.
Uma breve agitação surgiu, indicando que o momento mais aguardado estava prestes a acontecer. Dana e eu corremos para nossos lugares nas cadeiras das primeiras filas, titubeei ao notar que teríamos que ficar lado a lado. Nos entreolhamos, estranhando a proximidade tão inusitada e agora, desconhecida. Mas antes que pudéssemos deixar tudo ainda mais estranho indo em busca de outro lugar, os acordes iniciais da música começaram. Sem tempo de sentar, apenas viramos e olhamos para a entrada.
Ao som de Marry Me na belíssima voz de Filipe Buchart, Victoria entrou na igreja, caminhando sozinha como solteira pela última vez. A igreja inteira assistiu, quase embasbacados, aquele casal se olhando intensa e fixamente, de olhos marejados, irem de encontro um ao outro. Sem sorrisos, apenas certezas. Até quem era contra o casamento, até quem não chorava, se emocionou tamanha a intensidade do momento.
Cameron devia estar se amaldiçoando pois sabia que seria zombado por sair chorando quase desesperadamente nas filmagens. Filipe engasgou no refrão, quase não conseguindo continuar. E logo ali na frente, na primeira fileira, duas mãos, quase desconhecidas, acabaram entrelaçando-se sem nem perceber.
Todos nós prendemos um suspiro na garganta antes de Jack dizer a palavra mais aguardada da noite: o sim. Não havia dúvidas de que Jack e Victoria aceitariam um ao outro em matrimônio, mas era extremamente significativo ver um dos nossos entrando em uma nova etapa da sua vida. Em um momento como aquele, em que todos estavam em uma fase da vida adulta em que tudo estava meio “solto”, cheio de interrogações e monotonia, ver o cara que era a alma da festa, que era o restinho de juventude que reinava entre a gente, casando era incrível! Parecia o início de uma nova vida para todos nós.
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Olhei-me no espelho, limpando os vestígios da maquiagem que teimavam em sair. Tudo bem que a cerimônia inteira arrancou todos os tipos de emoções de mim e eu havia chorado igual uma condenada à forca, mas ainda assim, a maquiagem foi cara demais para se desfazer com algumas lagrimazinhas. Tentei deixar a peruca do melhor modo possível e até que havia ficado bonitinho em mim, porém, não combinava em nada com o meu vestido perfeito! Infelizmente, a aposta era até meia noite e eu era uma mulher de palavra.
Saí do banheiro, meio dispersa. Eu já estava de volta a pousada onde estava hospedada, pois ali seria a recepção do casamento, mas meus amigos ainda não estavam por ali e eu não conhecia muita gente da família de Jack, apenas alguns amigos em comum que tínhamos. Decidi ir até o bar e ficar escondida por lá até ficar bêbada o suficiente para não sentir vergonha de estar usando uma porra de uma peruca.
— Então, qual é a história? – O barman bonitinho perguntou enquanto me servia um drink colorido.
— Do que? – Estranhei a pergunta, ele sorriu apontando para minha cabeça. – Ah, sim! Perdi uma aposta com o noivo. – Dei de ombros, fazendo-o rir.
— Se o intuito foi deixar você feia, não funcionou. – Respondeu, galanteador. Sorri sem graça e agradeci.
Eu ainda não era muito acostumada com esse tipo de reação dos homens comigo. Percorri o salão com o olhar, bebericando da minha bebida. O local já estava cheio, todos já estavam ali, menos os recém-casados, o padrinho e Dana, que havia ficado para ajudar Victoria com o vestido. Infelizmente, as únicas pessoas que ainda não estavam ali, eram as únicas que eu era próxima o suficiente. Bom, nem todos...
Olhei para a mesa decorada, abarrotada de doces e guloseimas, encontrando Filipe, atacando algum alimento de forma feroz. Eu sabia que o homem estava em uma rotina infernal e que ele tivera que se multiplicar em três para conseguir estar ali durante o final de semana. Isso também explicava o porquê de ele estar comendo aquele doce de forma quase desesperada, o jantar não havia sido liberado e eu sabia que ele tinha ido direto do aeroporto para o casamento.
Sorri, balançando a cabeça. Eu estava sentindo uma saudade tão gostosa dele que nem chegava a ser ruim, era apenas... saudade.
— Minha irmã é fã. – Ouvi o barman comentar, me tirando de meus próprios pensamentos. Explicou-se, apontando para Fil, quando notou minha confusão. – Buchart. Minha irmã o adora.
— É? Qual o nome dela? Posse tentar conseguir algo para você. – Sugeri.
— O nome dela é Elisa... Você o conhece? – Perguntou, curioso.
— Mais ou menos. – Disse, mordendo o canudinho rosa preso no copo. – A gente se beijou umas vezes, mas acho que ele não se lembra de mim. – Prendi os lábios, segurando-me para não rir da minha própria brincadeira.
— Por que não tenta a sorte? – O homem sugeriu. Olhei novamente em direção ao meu cantor, que agora estava ficando rodeado de pessoas. Ele apenas sorria e acenava enquanto falavam com ele, isso me fez rir porque eu sabia que ele estava com a boca lotada de comida. – O máximo que pode acontecer é ele não lembrar de você. Aí você volta aqui e eu preparo um drink especial para você.
— Quer saber? Eu vou tentar. – Assegurei, ansiosa. Tirei o canudinho preso do copo e virei o conteúdo inteiro na minha boca em um gole apenas. Estiquei uma mão, batendo na mão do barman, cumprimentando-o e fazendo rir.
A cada passo que eu dava em direção a ele, sentia meu coração quase chegar na minha garganta. Imaginei que eu tropeçaria em meu próprio vestido, meu salto quebraria, eu escorregaria, a peruca cairia, mas acabei chegando a ele de forma rápida e graciosa. Ele estava de costas e a poucos centímetros de mim, mas eu já sentia o seu perfume brincar ao meu redor. O terno totalmente preto contrastou perfeitamente com sua pele bronzeada do sol de Miami e era sempre maravilhoso assisti-lo em seu habitat natural, sendo o “popstar” que ele fora designado a ser.
Caramba, Filipe.
— Nossa, eu sei que é difícil falar com gente famosa, mas você está quase impossível. – Apoiei meu corpo na mesa, encarando-o de lado com uma sobrancelha erguida, tentando ficar o mais bonita possível aos olhos dele. Seu corpo virou rapidamente, ignorando quem estava a sua frente. Olhou-me com as sobrancelhas erguidas, mas depois que me reconheceu, sua expressão suavizou e foi uma delícia assistir isso.
Caramba, Filipe.
— Julieta Young. – Olhou-me dos pés à cabeça, fazendo meu corpo inteiro se arrepiar com a indiscrição de seus olhos nebulosos.
— Você está... – Procurei um adjetivo para classificá-lo, sentindo certa dificuldade. Assenti, mordendo os lábios. – Muito bonito. E com glacê na boca. – Estiquei o dedo, limpando seu lábio inferior lentamente.
— Cuidado aí, Young. Não parece, mas minha namorada é doida. Ela está aqui, é a de peruca rosa. – Estalei uma tapa em seu braço e ele gargalhou, jogando a cabeça para trás e puxou-me pela cintura. — É fácil de achá-la. Só procurar pelo sorriso mais bonito e... — Ergueu uma sobrancelha, descendo o olhar pelo meu busto. – Pelo maior decote.
— Você está inspirado! – Zombei, apertando sua bochecha.
— É saudades de você. – Expressou, puxando-me para um beijo leve e demorado.
Eu e Filipe estávamos a quase quatro anos juntos. Eu sei, às vezes eu também sinto uma certa dificuldade em acreditar nisso. Fil era meu relacionamento mais maduro e estável, até nossas brigas e términos sem sentido ficaram para trás. Passávamos tanto tempo longe que não queríamos perder tempo com nada quando estávamos juntos. Isso tudo porque era muito difícil conciliar minha vida com os horários de Fil.
O cara havia emendado show atrás de show, até parece que ele estava em uma turnê eterna, sempre viajando, sempre em estúdio, porém, eu precisava ser justa e reconhecer que ele sempre tentava ser o mais presente possível. Eu tinha muito receio de que, algum dia, isso se tornaria um problema entre a gente.
— Cara, você deixou o quarto uma bagunça de novo! Tinha roupa pendurada até na TV... – Me distanciei de seus lábios para reclamar, mas logo fui interrompida de novo por um de seus beijos. Empurrei seu ombro. – Deixa eu falar! Você deixou a toalha no... – Novamente interrompida. – Filipe!
— Vai parar de reclamar? – Questionou desafiador, arqueando uma sobrancelha.
Mesmo que evidentemente mais maduro, o rosto juvenil e doce de Filipe nunca mudou, assim como sua personalidade serena e pouco agitada. Rolei os olhos, pois já estava totalmente rendida. Todas essas idas e vindas nos deixavam mais... atentos um ao outro.
Ou seja, completamente tarados um pelo outro.
— Só se você parar de me beijar. – Alertei, passando os braços em volta do seu pescoço, encostando nossos lábios. Quando senti as mãos do rapaz descendo de forma audaciosa pelo meu quadril, me afastei sorrindo. – Como foi a viagem? – Ele rolou os olhos ao notar que eu só estava afastando-o.
— Horrível, não consegui dormir nem por dez minutos. – Fil continuou contando sobre o voo, mas desviei a atenção ao sentir que éramos o foco do olhar de alguém. O barman.
Prendi os lábios em um sorriso ao ver a expressão confusa do rapaz ao me ver abraçada com Filipe de forma intima. Ele pareceu entender minha brincadeira quando me viu sorrindo travessa. Riu, assentindo para si mesmo e levantou o copo que estava em suas mãos, brindando a mim.
— O que foi? – Fil questionou, olhando para trás. O barman acenou com a mão ainda rindo e Fil apenas acenou com a cabeça, desconfiado. – Quem é esse?
— Estávamos conversando e eu disse que era uma fã e que havia te beijado algum tempo atrás, mas não sabia se você lembrava de mim. – Expliquei, rindo. – Foi uma conversa engraçada...
— Conversando? – Ergueu uma sobrancelha, apertando minha cintura com as duas mãos. Revirei os olhos, rindo.
— Amor, o ciúme mata. – Brinquei, selando nossos lábios. – Ele pode estar interessado em você, ué.
— O que é pior! Pois eu não sou ciumento, mas a minha namorada... Completamente maluca! Abri a boca, fingindo choque com sua declaração e belisquei seus ombros.
Apesar de sermos aquele casal que divide o plano de saúde, as despesas do supermercado e que brigam quando um algum de nós esquece de pagar a conta de luz, nós nunca paramos com as provocações bobas e brincadeiras inadequadas. E também não moramos juntos. Eu sei, é complicado entender.
— Casal! – Foi Cameron que interrompeu nossa brincadeira, aproximando-se com quatro copos e uma garrafa transparente em mãos, oferecendo-nos. – Feliz casamento a vocês! – Abriu a garrafa enquanto dividíamos os copos entre a gente.
— O que é isso? – Filipe questionou, cheirando o líquido no copo e logo depois fez uma careta. – Argh, é tequila!
— Nem pensar! – Quase taquei o copo longe com tamanha náusea que senti. – O último porre que tive com tequila eu não lembro até hoje como cheguei em casa.
— É o casamento do cara! Vocês acham mesmo que Jack, conhecido por suas bebidas extravagantes, não ia aloprar justamente hoje? – Cam estava certo sobre isso. Jack vinha planejando o cardápio de bebidas a um tempo, prometeu ser especial e do gosto de todo mundo. Mas era perigoso confiar em Jack quando se tratava de bebidas alcoólicas.
— Cadê todo mundo? – Filipe questionou. Foi o primeiro a criticar a bebida, mas ele já estava bebericando.
— Os noivos estão ali no salão de trás, quase fazendo um segundo ensaio fotográfico. E a Dana está... – O homem procurou com os olhos, parando atrás de nós. – Aqui.
Quase senti um gosto amargo na boca quando me virei e Dana caminhava em nossa direção, com suas longas pernas e seu cabelo sedoso. O mar de gente se abria para que ela passasse. E toda essa adoração – evidente até nos olhares dos dois caras ao meu lado – deveria me fazer odiá-la. Porém... Droga, eu a amava tanto. E sentia muito a sua falta e não tinha a menor vergonha de admitir isso para mim mesma.
— Não bebam isso, é cilada do Jack. Tem uns vinhos maravilhosos que serão servidos daqui a pouco. – Dana orientou, apontando para a garrafa na mão de Cam. Ela virou o rosto, olhando para Filipe e abrindo um sorriso radiante. – Oi, estrela!
— Dizzy girl! – Ele abriu os braços, abraçando-a tão forte que a tirou do chão. – Que saudades!
— Muita! – Concordou, arrumando o vestido quando voltou ao lugar. Mordi os lábios, sentindo-me tão nervosa que parecia que eu estava indo para alguma reunião importante. Ela virou o rosto, encarando-me, porém, não de forma maldosa ou superior. Apenas me olhava.
— Oi. – Me ouvi dizendo sem nem perceber.
— Eu já havia dito “oi”. – Enunciou, categoricamente.
— Eu ouvi, mas não havia respondido. – Ela assentiu, aceitando a explicação e voltou a desviar o olhar.
— Caramba, quase não voltei a respirar agora. – Cam explanou, exalando ar e ajeitando a gravata. Rolei os olhos quando Fil caiu na risada com a indiscrição de Cam. – Venham, vamos procurar Jack e Vic.
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— Eu te odeio.
— Não odeia, não.
— Odeio! Não acredito que estou saindo nas fotos do seu casamento de peruca! – Reclamei entre dentes, congelando meu sorriso enquanto vários flashes estouravam em nós.
Depois que encontramos os recém-casados, entramos sem querer em uma nova sessão de fotos com os mesmos. Todas as fotos haviam ficados lindas e divertidas, mas ainda assim, Jack quis tirar uma foto apenas comigo, usando o discurso que eu havia honrado minha palavra e minha amizade naquele dia. O que era uma grande canalhice porque eu sabia que ele apenas estava se divertindo às custas do meu embaraço. Eu podia ver que o resto do grupo também se divertia, rindo enquanto Jack fazia poses mirabolantes ao me lado.
— Podia ser pior, você poderia estar usando a peruca no seu próprio casamento. – Deu de ombros, jogando um braço por cima dos meus ombros.
— Claro que não, isso é impossível! – Resmunguei, cruzando os braços.
— Claro que foi impossível, você disse “não”. – Arregalei os olhos, olhando-o enraivecida por seu comentário impulsivo e insensato. O idiota continuou falando sem notar que eu o fuzilava com os olhos enquanto agradecia mentalmente que estivéssemos um pouco afastados, onde não seria possível nos escutar. Eu sabia que os meninos tinham conhecimento sobre o que havia acontecido, mas foi a primeira vez que alguém falou publicamente sobre. – Foi por isso que você negou? A gente relevaria por ser seu casamen... Desculpe.
— Você está maluco? – Rosnei, apertando o braço do engravatado ao meu lado.
— Foi muito rude da minha parte e eu deveria aprender a ficar quieto, peço mil desculpas. – Jack emitiu as palavras rapidamente, quase atropelando-as, repetindo a desculpa que sempre usava quando passava do ponto. E ele havia passado demais dessa vez.
Ainda era doloroso lembrar do dia que Filipe Buchart me pediu em casamento e eu disse não.
Foi em algum mês de junho em que Filipe havia tirado alguns dias de férias, decidimos lembrar dos velhos tempo e fomos jantar no Takeo, como era costume entre nós. A noite que deveria ser apenas lazer e diversão acabou tornando-se uma quase reunião de negócios domésticos entre nós dois.
Passamos a noite falando sobre o preço da gasolina, sobre a conta de luz exorbitante que Filipe vinha pagando por conta de seu estúdio caseiro. Discutimos por que eu havia pedido para que ele comprasse materiais de limpeza para meu apartamento e ele havia esquecido. Debatemos se deveríamos ou não instalar uma nova câmera no pátio da casa dele. Combinamos de ir ao banco resolver a questão do crédito do meu cartão e ele aproveitaria para debitar seus cheques atrasados.
E no meio de um argumento e outro, Filipe riu docemente e bebericando seu copo de suco, questionou divertidamente:
“– Quando nos tornamos um casal de 40 anos de casados?
– Talvez a dois anos atrás, quando eu decidi pedir você em namoro. – Dei de ombros, sorrindo com a lembrança.
– Dois? Fala sério, temos, pelo menos, quatro anos. – Quando abri a boca para contestar, ele me interrompeu com um ar zombeteiro. – A quem estávamos enganando naquele primeiro ano? Viramos um casal no momento em que pus meus olhos em você.
– Para variar, eu discordo. – Atestei, cruzando os braços. – Você bem sabe que em nosso início você tinha muitas dúvidas sobre mim e meus sentimentos.
— E com razão, não é, Julieta? Você me deixou louco com tanta inconstância. – Resmungou, mas sem perder o sorriso.
— Pare de reclamar, eu me redimi pedindo você em namoro! – Enunciei, orgulhosa. Eu me sentia a maioral quando lembrava disso.
— É verdade, precisamos combinar que o próximo pedido será meu. – Sugeriu, mordendo uma batata frita.
— Próximo? Está pensando em me pedir em namoro de novo? – Brinquei, tomando um grande gole de refrigerante.
— Não seja boba. – Riu levemente, balançando as mãos. Franzi as sobrancelhas, tentando demonstrar minha não compreensão. — O pedido de casamento, ué.
A bebida sequer conseguir manter-se dentro da minha boca tamanho foi meu susto com sua revelação. Comecei a tossir exageradamente, fazendo-o rir enquanto estendia alguns lenços descartáveis para que limpasse a sujeira que eu estava fazendo ali.
— Não fala isso. – Pedi, ainda me sentindo afogada. Tanto pelo refrigerante, quanto pela declaração improvável e inesperada de meu namorado.
— O que foi? Você acha que não vai acontecer? – Perguntou, mantendo seu ar de zombaria e superioridade.
— Felipe! – O repreendi.
— Baby, eu vou ser legal com você e já deixar avisado que um dia, Julieta Young, eu vou pedir você em casamento. – Disse isso encarando meus olhos de forma firme e sincera, me fazendo crer fielmente em suas palavras.
E é claro que isso me desesperou.
— Para! – Exclamei. – Isso não faz sentido!
— Por que você está surtando? O que você tem contra casamento? – Cruzou os braços, rindo de leve.
— E-eu não sei, suponho que bastante coisa... – Gaguejei, quase não conseguindo completar a frase, pois Filipe olhava-me de forma quase inquisitória.
— Você sabe que somos quase um casal casado, não é?
— Claro que não! – Respondi, quase sentindo revolta.
— Amor, dividimos o plano de saúde... – Exemplificou pacientemente.
— Porque a promoção estava boa demais para que ignorássemos! – Retruquei, gesticulando exageradamente, sentindo a ansiedade se apoderar de mim. — E eu precisava de fisioterapia novamente! – A alguns meses atras, minha mão direita resolveu me incomodar novamente. Eu sentia muitas dores e, às vezes, não conseguia fazer com que ela trabalhasse da forma que deveria.
— Tudo bem, só estou dizendo que talvez casamento não esteja tão longe da nossa realidade quanto achamos. E não estou falando de véu, grinalda e igreja. Falo de relação estável, reconhecida no Estado, testamentos... Julieta, seu olhar assustado está me assustando! – Quase gritou, interrompendo seu próprio discurso.
— Ótimo porque você está me assustando! – Terminei a bebida que ainda restava em um gole, tentando engolir tudo o que Filipe falava.
— De onde veio essa aversão a compromisso? – Quis saber, apoiando a mão no queixo e esperando por uma resposta minha.
— Sempre esteve aqui, esqueceu? – Revirei os olhos, impaciente. – Filipe, sequer moramos juntos!
— Na verdade, esqueci mesmo. Já tem um tempo que você nos se nega mais quando se trata de mim. Eu poderia aproveitar isso e pedir sua mão aqui e agora. – Apontou, cruzando os braços e franzindo a testa de forma estranha.
— Filipe, não seja ridículo! – Bradei, negando com a cabeça. Olhei em volta, encarando as águas calmas do rio, que parecia nos assistir também. A noite estava estrelada e a lua parecia iluminar todo lugar onda a eletricidade não chegava. Perdi alguns segundos em pensamento, quando notei que Filipe ainda me encarava, porém, agora seus olhos transbordavam intensidade. Suspirei, preocupada com o que viria a seguir. – Para, amor...
— Julieta Young. – Recitou meu nome, sentando-se de forma ereta e procurando minhas mãos. E eu, completamente incrédula, me desesperei.
— Filipe, você está maluco! Eu vou embora! – Tentei levantar, mas fui impedida por seu braço tentando me manter no lugar.
— Qual o problema? – Questionou, sorrindo de forma marota e infantil, como se estivesse amando me deixar completamente louca. E devia estar mesmo.
— Você vai me pedir em casamento. – Sussurrei como se estivesse contando-o um segredo. Achei que Filipe fosse rir de minha reação, achei que fosse descontrair, brincar, fingir que estava alucinando. Entretanto, puxou minha cadeira para próximo de si e olhou em meus olhos, deixando-me paralisada. – Ah, meu Deus. Você vai...
— Sim. – Assentiu, tão calmo que nem parecia estar colocando todo nosso futuro em cheque ali mesmo. – Eu sei que não tem flores, nem velas e eu, definitivamente, não estava planejando isso, mas fala sério, nunca fomos muito românticos mesmo...
— Fil... – Pedi em um fiapo de voz, quase choramingando. Ele não podia estar falando sério. Aquilo não poderia estar acontecendo.
— Eu amo você, bastante. E você me ama, muito.
— Não.
— Não? Você não me ama? – Brincou, mas pude notar que ele vacilara pela primeira vez.
— É claro que eu amo, é só que... – Acabei vacilando também, senti meu peito subir e descer de forma desenfreada.
— Você quer casar comigo?
Meus lábios se abriram completamente em choque. Eu estava totalmente incrédula com o fato de que aquilo estava de fato acontecendo. Eu sequer entendia como havíamos chegado a esse ponto da conversa. É claro que eu o amava, mais que tudo. Filipe mudou tudo desde que chegou, eu não podia negar que me tornara melhor com ele. Tudo era melhor com ele, porém...
— Você não pode estar falando sério. – Meus lábios tremeram, sequer conseguia respirar. Por um instante, Filipe pareceu pensativo e, em seguida, pareceu ligeiramente chateado. Mas ainda assim, ele tocou minha face com ambas as mãos e beijou-me de forma delicada.
— Acho que nós deveríamos pedir para embalar o resto da comida e levarmos para casa. – Murmurou com os lábios nos meus.
— Que casa? – Perguntei, ainda paralisada, sem conseguir tirar meus lábios dos seus.
— Você para sua e eu para a minha. – Afastou-se, beijando minha bochecha e levantou-se da cadeira.
— Como assim?
— Como você disse, não moramos juntos. – Deu de ombros, fazendo sinal para a garçonete mais próxima. – E você acabou de me negar em casamento, acho que irmos para nossas casas é bastante razoável, não acha?
— Não, não acho! O que... O que diabos está acontecendo? – Exclamei, afetada e levantei junto a ele. – Eu estou louca ou você estava falando sério?
— Ambos. – Foi a única resposta que tive pelo resto da noite”.
Anos atrás, nós iriamos ignorar o episódio do casamento, porém, Fil e eu agora éramos maduros o suficiente para conversamos sobre algo sem que sentíssemos vontade de matar um ao outro... na maioria das vezes, é claro. Então, depois de irmos cada um para sua casa e passarmos alguns dias sendo estranhos um com o outro, decidimos conversar sobre o que havia acontecido. Eu também não soube explicar meu breve surto, nunca havia pensado que um dia me casaria e também costumava pensar que era jovem demais para isso. Mas como Filipe fez questão de me lembrar de forma nada delicada, não éramos mais tão jovens assim. Todos estávamos com trinta e poucos anos e havia muito daquela pressão ridícula para que as coisas começassem a mudar.
Estávamos decididos a deixar as coisas acontecerem de forma natural, Filipe afirmou que sua intenção jamais havia sido para me pressionar ou algo do tipo, mas também deixou claro o quão decepcionado ficou comigo. Tudo ia bem, até nosso aniversario de namoro e o maldito presente surpresa de Filipe.
Ele me presenteou com um anel. Tudo bem que não era uma aliança, nem nada parecida. Foi um impecável anel de ouro rose, o problema é que foi uma porra de um anel! Com uma porra de um diamante solitário! Um diamante! Eu, é claro, surtei. Ele, é claro, rebateu. Aí tivemos uma briga feia justamente em nosso aniversario. No fundo, não estávamos brigando pelo anel e, sim, pelo pedido de casamento frustrado.
Ficamos distantes por uns dias, até Jack – que já estava noivo de Victoria – anunciar a data de seu casamento, Filipe precisou viajar a trabalho e eu também, logo, isso acabou tomando nossa atenção. Estarmos juntos nesse casamento ainda era estranho, talvez estivéssemos sentindo tanta saudade um do outro que sequer paramos para pensar na ironia que estava sendo esse dia.
Desviei o olhar enquanto Cam falava sobre a DJ contratada e como era bonita. Estávamos todos sentados em um canto do grande salão de festas, conversando e comentando sobre tudo enquanto esperávamos pela abertura da pista de dança. A bebida e o ambiente enérgico nos deixavam meio nostálgicos e prontos para dançar e brincar como se não houvesse amanhã.
Fiquei encarando a mão de Filipe – que repousava suavemente em minha perna – e me peguei imaginando a porra da aliança ali, como seria a mão de Filipe na minha enquanto usava uma aliança. O que mudaria e se algo mudaria entre nós. Perdida em pensamentos e sem nem perceber, passei a acariciar o local em seu dedo onde ficaria a aliança. O aperto leve em minha coxa tirou-me de meus devaneios e olhei para cima, encontrando Filipe e seu olhar desconfiado.
— Tudo bem? – Murmurou para que apenas eu escutasse sua pergunta. Assenti, sentindo-me estranhamente melancólica.
— Eu senti muito a sua falta. – Ele sorriu, carinhoso. Puxou-me pelo queixo, encostando seus lábios nos meus delicadamente.
— Ei! Ei! – Ouvi a voz irritando de Jack e me afastei. – Vocês estão se beijando? – Perguntou, fingindo inocência, mas na verdade, ele só queria perturbar nossa vida. Revirei os olhos, ainda irritada com sua fala anterior que acabou trazendo aquele assunto complicado a minha mente de novo.
— Não estamos, não. É que caiu um negócio por aqui, assim... – Brincou, apontando para minha boca e me fazendo gargalhar com a desculpa esfarrapada.
— E você para de atrapalhar o romance alheio, garoto! – Vic apareceu por trás de Jack, puxando sua orelha e nos fazendo rir. A mulher ainda não havia tido tempo de sentar ao nosso lado para conversar sobre o dia que estava tendo. – Eu mal casei e já estão me perguntando dos filhos. – A recém-casada reclamou, virando todo o líquido alcoólico azul em sua boca e sentando no colo de seu novo marido.
— Nova aposta? – Cam sugeriu, rindo.
— Eu me candidato! – Ergui um braço, animada.
— Você fica quieta aí! – Filipe reclamou, abaixando o meu braço.
Eu sabia que Fil e eu éramos diferentes em (quase) tudo, mas o tempo nos mostrava que sempre era possível piorar. Depois de me tornar tia e ser completamente obcecada pelo meu sobrinho Ben, meu instinto maternal havia aflorado espontaneamente e agora eu havia colocado na cabeça que gostava muito de crianças e que algum dia, eu seria mãe. O que era o oposto do que meu namorado achava. Filipe não tinha muita afinidade com crianças e também nunca tinha pensando muito em ser pai.
Depois que descobrimos isso em uma conversa aleatória qualquer, não perdíamos a oportunidade de instigar um ao outro com o assunto. Não parecia muito apropriado que a maternidade/paternidade fosse objeto de nossas brincadeiras, especialmente em um momento que assuntos mais sérios como casamento faziam-se presentes, mas e daí? Nunca fomos muito adequados mesmo.
— Não fala assim! Vai que já tem um baby aqui? – Brinquei, acariciando a própria barriga. Claro que não haviam possibilidades, nós éramos mais do que prevenidos, porém, eu não perderia a chance de zoar com o medo iminente do meu namorado.
— Você está maluca! Continua com essa ideia de ter filho para você ver se eu não tranco você fora do quarto hoje. – Expressou, esganiçado, tirando o braço de meus ombros e me empurrando levemente.
— Por enquanto, eu me contento em ser tia do pequeno de vocês. – Victoria riu, levantando-se do colo de Jack e puxando-o pela mão. – Vem, está na hora de abrir essa pista, dançar a noite toda e ficar tão bêbada que vou esquecer que me casei.
— Eu escolhi a pessoa certa, senhoras e senhores! – Jack brincou, apoiando a mão no próprio peito.
— Bom, eu preciso verificar algumas coisas lá atrás. – Fil informou, acariciando meu joelho e levantando também. – E você não ia pegar mais bebida? – Perguntou a Cam, que pareceu ligeiramente confuso.
— Ér... – Esticou-se, olhando para o copo que repousava em sua frente. – É, preciso.
E partiram, deixando-me na mesa com duas grandes amigas: Dana e um puta clima pesado. Ela os olhou, meio confusa, talvez estivesse procurando uma desculpa para se afastar também, mas não achou nenhuma. Eu sei porque eu estava fazendo o mesmo. Brinquei com minhas mãos, apertando-as de leve, confusa com o que eu deveria fazer a seguir. Era a primeira vez, desde aquele dia, em que eu e Dana ficávamos sozinhas.
— Então... – Pigarreei, surpresa que eu tenha sido a primeira a falar. – Como vai Londres? – Ela também pareceu surpresa, mas disfarçou cobrindo o rosto com a taça.
— Fria, como sempre. – Assenti, mordendo os lábios. “vamos lá, Dana, isso não precisa ser tão ruim. É só você seguir as regras básicas de comunicação”, torci. Parecia contrariada, mas ainda assim, perguntou. – Como vai HW?
— Solitária. – Pensei antes de responder e decidi ser sincera. – Ninguém mais fica por perto, sabe como é...
— Sei. – Assegurou, assentindo brevemente.
Suspirei, sentindo a vergonha começando a aparecer. Após anos refletindo, eu tinha plena certeza de que errei com Dana. Tudo o que havia acontecido entre nós havia sido minha culpa. A raiva e a irritação por conta de nosso grave desentendimento ainda estavam presentes nela, então tinha toda razão em ainda me odiar e não sentir tanta falta de mim assim.
— Fomos emboscadas.
— Quê? – Retirou-me de minhas reflexões com sua acusação. Ela apontou com a cabeça, mostrando Fil e Cameron tentando disfarçar o fato de estarem nos observando. Estiquei a mão, peguei o copo de Cam e bufei ao comprovar a teoria de Dana. O copo do imbecil estava cheio. – Idiotas.
Cruzei os braços, pensativa. As lembranças daquele dia me agrediam quase sempre, principalmente durante dias em que chovia. Nossa briga havia acontecido em um quarta-feira chuvosa, quando Dana decidiu me contar sobre sua mais nova aventura. Iria embora da cidade com seu novo namorado. Iria deixar toda a sua carreira, sua casa própria, sem emprego, seus amigos para ir morar com seu namorado, um cara que estava em nossas vidas a menos de cinco meses.
Eu não tinha nada contra ele. Pelo contrário, conhecíamos Ed já havia alguns anos, é claro que foi uma surpresa quando ele e Dana se entenderam e, de repente, já haviam se tornado um casal inseparável. Ele era um cara legal e gentil e eu não tinha objeções contra ele, até o dia em que o cara conseguiu um emprego do outro lado do mundo e foi embora. E levou minha melhor amiga com ele.
“– Dana, o que você vai fazer é... Imaturo e irresponsável! Você já tem trinta anos e...
— E por isso devo parar de viver? Trinta não é o fim de tudo, Julieta.
— Eu sei que não, é só... – Bufei, esfregando o rosto, impaciente. Eu já nem sabia mais o que dizer. – Estou preocupada, é isso.
— Eu sei me cuidar. – Rolou os olhos.
— Sabe mesmo? – Debochei, balançando a cabeça.
— O que você quer dizer com isso? – Cruzou os braços, me encarando, nervosa. Pensei bem antes de responder, pois sabia que faltava pouco para que eu cruzasse a linha da crítica construtiva.
– Você acabou de ser promovida! – Desconversei. – Não é possível que está realmente pensando em largar tudo para viver de favor com um cara, do outro lado do mundo!
— Me entristece você achar que eu não seria capaz de achar um novo emprego. – Dana jogou suas roupas dentro do guarda-roupas, revirando os olhos. Informalmente, no meio de nosso encontro semanal para lavagem de roupas, minha grande amiga decidiu jogar a bomba e contar que estava indo embora com o Ed.
— Não foi isso que eu disse, não seja ridícula. – Bufei, amarrando meus cabelos no alto.
— Ridícula é você, achando que isso é o fim do mundo. – Retrucou, cruzando os braços. Eu via em seus olhos que minhas contestações já estavam tirando sua paciência.
— Quando eu fui obrigada a ir embora, eu quase morri de tanta tristeza. E você está agindo assim, como se... Nem consigo definir o nome para o que você está fazendo! – Emiti, brava.
— Porque você estava sendo obrigada, Julie! Eu estou indo por vontade própria. Eu sei muito bem o que quero.
— Onde você vai morar? – Questionei, apertando as minhas têmporas.
— Não sei. – Deu de ombros.
— E seus móveis? Sua casa? Seu emprego, pelo amor de Deus?! E eu? O que diabos você vai fazer com suas coisas? – Indaguei repetidas vezes, quase sentindo minhas cabeça explodir.
— Eu não sei! – Ela riu levemente. Quase abri a boca com indignação. – Isso não é ótimo? Pela primeira vez, eu só estou fazendo algo que tenho vontade.
— Não é verdade. Você sempre faz o que tem vontade!
— Sim, mas... é diferente agora. Eu estou apaixonada! Estou fazendo algo puramente com o coração! – Afirmou, sonhadora, com um tom de voz quase emocionado. O que não diminuiu minha indignação, é claro.
— Dana, vamos falar o óbvio: você e Ed estão namorando a cinco meses. – Expressei com sarcasmo.
— Quatro, na verdade. – Corrigiu, dando de ombros.
— Dana! – Indignei-me.
— E daí? Julieta, o que aconteceu com você que não quer se deixar amar um pouco? – Questionou, quase indignada com a minha pouca fé. – Eu tenho pena de Filipe.
— Você não sabe do que está falando. – Apontei um dedo, ofendendo-me com sua afirmação errônea.
— E daí se eu gosto tanto dele que faz meu peito explodir? Ele me deixa sem ar! Terrivelmente apaixonada e isso é incrível, você não passou por isso? Não importa se ficaremos juntos para sempre, eu não vou me arrepender de ter vivido uma história de amor linda e intensa com ele, diferente de você. – Discursou.
— Só porque eu não larguei meu emprego, fiz loucuras de amor, não joguei balões de um avião, não quer dizer que eu não tive uma boa história de amor, porque eu tenho! – Afirmei, sentindo-me ofendida com suas opiniões sobre mim e meu relacionamento.
— Então de onde vem essa amargura toda em viver uma boa história de amor? O que Filipe fez que...
— Para de falar do meu namorado e do meu relacionamento, ele não tem nada a ver com isso! – Interrompi-a, perdendo a paciência.
— E você não tem nada a ver comigo e com o que eu faço ou deixo de fazer! – Bateu os pés, irritada. – Eu vou embora com ele, Julie. E vai dar tudo certo e eu vou ser feliz como nunca fui antes, eu sei disso. – Afirmou, segura.
– Você não é mais adolescente, Dana! Sequer vive em um filme para achar que está em um! – Esbravejei, sem acreditar que precisava está tendo aquela conversa. – Quer saber? Isso não deveria ser surpresa para mim. – Emiti, mordaz.
— Está insinuando algo? – Esbravejou.
— Você está sendo ingênua. – Declarei. – E mimada, agindo como a menina que você era quando saiu da casa do seus pais.
— Garota, quando você se tornou meu pai? – Gritou, brava. – Se querer viver a vida de outra forma, viver uma aventura é ingenuidade, por mim tudo bem. O que eu não quero é viver uma vida chata, onde eu acordo, trabalho durante doze horas por dia, estudo, de vez em quando saio para jantar com meu namorado, este que já conheceu o mundo inteiro, por sinal, enquanto eu fico em casa. – Atacou-me de forma ridícula.
— Eu sempre trabalhei muito para chegar aonde eu estou hoje em dia, Dana. Não irei reclamar de ter uma vida estável, não chata. O emprego do meu namorado é do meu namorado, não meu. – Retruquei.
— Trabalhou, né? Conseguir um emprego porque o dono da empresa é seu amigo é realmente uma conquista e tanto! – Zombou. Senti meus olhos arderem quando Dana colocou minha vida profissional em questão, como se eu não tivesse merecimento algum no que eu fazia.
— Agora você só está sendo injusta. – Balbuciei, engolindo em seco.
— Assim como você! Não estou te pedindo porra nenhuma, estou tendo consideração e deixando você ciente sobre algo na minha vida. Se você não consegue lidar com isso, dane-se! Eu não vou mais me limitar para caber em suas projeções sobre mim.
— Minhas projeções? – Questionei, confusa. – Eu nunca te cobrei nada, Dana. Sempre deixei você livre para que você tomasse suas próprias decisões, quase nunca dava minha opinião sobre nada que envolvia as decisões da sua vida.
— Então, por favor, não se meta nela! – Exprimiu, raivosa. Seu grito acabou confundindo-se com o trovão que bradou lá fora.
— Eu não consigo ficar quieta vendo você destruir a sua vida de forma tão idiota. – Revelei, esgotada.
— Você não entende pois vive uma vidinha frívola, vazia, infeliz e chata! Seu relacionamento só funciona porque Filipe não passa mais de uma semana com você.
Apertei os lábios, engolindo a vontade de chorar. Dana havia exposto um dos meus medos mais profundos, coisa que eu havia comentado com ela durante uma conversa e agora ela usava isso para me agredir. Foi um golpe baixíssimo.
– Lutamos muito para construir uma boa estrutura em nossas vidas e você vai estragar tudo por causa de um namoro de alguns dias! – Engoli em seco, ignorando seu ataque e falando o que eu queria.
— Pois eu não ligo, eu estou pouco me fodendo para o que você acha ou o que deixa de achar! Seus julgamentos já estão me deixando irritada, você prefere continuar com a cabeça no rabo a aceitar que alguém possa pensar diferente de você! – Gritou, aborrecida.
— Quer saber? Foda-se. – Procurei minha bolsa jogada no chão e calcei meus sapatos, sentindo meus olhos cheios de lágrimas. – Eu não sou obrigada. Eu estou literalmente pensando em você e no seu bem, se você não consegue enxergar isso, então não é problema meu.
— Não é problema seu mesmo! – Gritou novamente enquanto eu me afastava e corria porta afora de nosso antigo apartamento. – Arrogante.
— Pirralha!
Foi a última vez que nos falamos. Na época, foi difícil para o grupo, nenhum quis tomar lados, mas eu sabia que 50% do grupo concordava comigo. Não conseguíamos fazer nada juntos antes de Dana ir embora de vez pois a única vez que tentamos ficar no mesmo ambiente foi extremamente vergonhoso para todo mundo. Não houve festa de despedida, também não fui ao aeroporto com todos eles no dia de seu embarque. Ao invés disso, tranquei-me em meu escritório e chorei a noite inteira até Filipe chegar.
Desde então, todas as notícias que tive de Dana fora por meio de algum dos garotos, que se viam de mãos atadas quando se tratava da nossa situação. A única coisa que eu sabia é que – obviamente – ela e Ed não estavam mais juntos e que fazia mestrado em história da arte em Londres
— Devemos... – Estalei os lábios, procurando algo para sugerir. – Conversar?
— Não. – Responde, imediatamente. Assenti, sem saber muito bem o que fazer em seguida.
— Eu vou... – Olhei em volta, procurando qualquer desculpa possível para sair daquela mesa e do clima inóspito dali. – Fingir que preciso ir ao banheiro. – Ela assentiu, encarando a parede do outro lado, sem dirigir o olhar até mim. Mas seus lábios estavam trêmulos. E ela não parava de chacoalhar os pés. – Preciso ir banheiro.
Levantei da mesa sem esperar por respostas. Eu já estava me sentindo estúpida o suficiente por ter tentado uma comunicação saudável com a mulher, sem sucesso algum. Quase corri em direção ao banheiro, segurando a barra de meu vestido com uma mão e segurando a peruca com a outra.
Tive vontade de jogar água da torneira em meu rosto, para afugentar o abatimento e os fantasmas do passado, mas a maquiagem havia sido cara demais para escorrer pelo ralo. Ao invés disso, abri a bolsa e reapliquei o batom.
Quando me virei para sair do local, uma Dana corada e ofegante irrompeu pela porta, fechando-a com força e encarando-me furtivamente. Engoli em seco, eu conhecia muito bem essa Dana determinada. Eu ouviria umas poucas e boas agora.
— Você tem algo para me falar? – Perguntou. Eu tinha, queria pedir perdão. Abri a boca para falar, porém, ela estendeu a palma da mão, interrompendo-me antes mesmo que eu começasse. – Pois eu tenho. Tudo o que aconteceu. Londres e a porra toda, era problema todo meu e você não fez a única coisa que deveria ter feito como minha melhor amiga: me apoiado.
— Só porque sou sua melhor amiga não quer dizer que devo passar a mão em sua cabeça e aceitar tudo o que você faz, mesmo que eu não concorde. – Eu sei que se estava procurando pelo seu perdão, eu não deveria contestá-la, mas não conseguia evitar. Era da minha natureza problemática.
— Eu entendo isso... agora. – Assumiu, pigarreando. – E eu espero que você entenda que era para você ser minha amiga e me apoiar. Você me julgou por pensar diferente de você, me fez sentir como uma mulher submissa e eu não era. Só queria uma oportunidade de fazer diferente! É claro que eu e ele terminamos, mas se eu não tivesse ido, não encontraria uma nova agência, não voltaria a estudar. Eu conheci o mundo, Julie e foi lindo! Eu não me arrependo de ter perdido tudo aqui porque eu ganhei muito lá. E se um dia eu tiver que voltar, voltarei de cabeça erguida.
Expirou fortemente após discursar, como se estivesse com a respiração presa a muito tempo.
— Já? – Ela franziu o cenho, confusa e ofegante. — Falou tudo o que planejou me falar?
— Sim. – Respondeu.
— Ok. – Assenti.
—Ok?
— Nossa visão de contos de fadas é diferente, erramos em não respeitar isso. – Expliquei, dando de ombros.
— Erramos? – Ergueu uma sobrancelha e cruzando os braços, mantendo uma pose insolente e desafiadora.
— Eu errei, mas você também não foi muito justa. – Expliquei.
— Certo. – Vi seus olhos percorrerem o local, como se estivesse lembrando das coisas que também havia me falado. – Erramos.
— Ok.
— Ok.
Muito tempo havia se passado, já éramos pessoas totalmente diferentes agora e meu maior temor do momento era o fato de que eu e Dana jamais voltaríamos a ser o que éramos. Eu sentia muito a sua falta, toda vez que eu ia a algum lugar, que conhecia alguém, que fazia algo novo, eu queria comentar com minha melhor amiga. E sei que ela se sentia da mesma forma.
Mas de repente, existia um mundo inteiro entre nós. Um mundo de decepções, mágoas, novidades, felicidades e um mundo físico... Londres e Hillswood nunca pareceram tão distantes.
— Vamos... – Ela apontou para a porta.
— Dana? – Chamei, ansiosa. Então, contei o que eu ansiei contar todos esses dias recentes. – Filipe me pediu em casamento.
Seus lábios abriram-se de forma dramática antes de soltar uma gargalhada fervorosa. A mulher abanava o próprio rosto, dando risada de forma escandalosa enquanto eu apoiei meu corpo na pia, esperando que seu controle voltasse.
— E o que você disse? – Questionou, ainda rindo. Ergui uma sobrancelha, deixando óbvio minha resposta. – Não? Puta merda? – Gargalhou ainda mais, dessa vez, batia palmas de forma adorável. – Julieta, eu sou uma bagunça, mas você ultrapassa todos os limites do aceitável. – Balançou a cabeça, gargalhando ainda mais.
Eu poderia ter me ofendido, mas sinceramente, a frase foi dita de forma tão carinhosa que eu me recusava a achar que aquilo era uma ofensa. Era admiração e ternura.
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The Only Exception era uma música com melodia triste, mas Filipe era bom no que fazia e havia construído um arranjo para a música da primeira dança dos recém-casados que não fosse nada mais que doce e romântico. Victoria e Jack eram lindos e estavam perfeitos dançando sob a luz baixa do local, sendo iluminados pela luz dos celulares dos convidados. Entretanto, de alguma forma, eu não conseguia olhar para outro lugar que não fosse os olhos de meu namorado.
Seus olhos não me deixavam. Enquanto cantava, eu sentia que Filipe declarava-se para mim com todo o seu coração. Havia momentos, como no dia do pedido, em que eu me sentia culpada e incapaz de retribuir todo o amor e atenção que ele me dava. Filipe deixaria tudo por mim e eu não sei se faria o mesmo. Não me entenda mal, eu o amava, mais que tudo. Eu era completamente louca por Filipe, mas essa ideia de amor louco e romântico só era bonita em filmes e nas tragédias teatrais. Eu era realista, entretanto, acho que meu excesso de realidade atrapalhavam as coisas entre nós.
Mas então, tudo mudava quando ele cantava olhando em meus olhos. Ou quando largava seus compromissos para me acompanhar em algum jantar de negócios. Filipe me amava da forma mais bonita e simples que alguém poderia amar. E quando eu me via trocando as cortinas preferidas dele ou simplesmente arrumando suas malas quando chegava de viagem, eu também sabia que o amava da mesma forma.
— É bonito. – Cam murmurou em meu ouvido enquanto batíamos palmas ao fim da dança de Jack e Vic. Desviei o olhar, tentando entender sua colocação. – O jeito que vocês se olham. Eu não vejo a hora. – Olhei-o, franzindo a testa. – Eu não vejo a hora de me sentir assim também. – Sorri, puxando-o pela mão e abraçando-o.
— Você merece mais do que vem recebendo, Cam. Você não merece nada menos que perfeição. – Dei um beijo em seu rosto.
— Algum dia você vai desistir de pegar minha namorada? – Ouvimos a voz de Filipe se fazer presente e rimos.
— Filipe, não seja ridículo. É claro que não desistirei. – Deu de ombros, indo cumprimentar o amigo, que apenas riu.
— E aí? – Questionou quando chegou perto de mim. Joguei meus braços em volta do seu pescoço, sentindo seus braços em volta de mim.
— Você é simplesmente... Espantoso. – Dei de ombros, quase não encontrando as palavras certas para elogiá-lo. – Incrível.
Ele me deu aquele sorriso de menino que tanto mexia comigo e juntou os lábios nos meus, beijando-me de forma mais intensa do que eu imaginava. Entretanto, nosso momento logo foi interrompido quando senti braços puxando-me por trás e afastando-me de Fil.
— É meu casamento, Julieta! – Jack reclamou, fazendo biquinho.
— E daí? Vai atrás da sua esposa e me deixa beijar em paz! – Resmunguei, empurrando o ombro dele. – É o segundo beijo que você atrapalha. Além de colocar uma peruca em mim! Jack, um dia eu te mato!
— E eu amo você, Julie girl! – Gritou, puxando-me pelo braço e me levando para a pista de dança. Gargalhei, pulando nas costas de meu amigo e curtindo o momento com ele.
Dançamos, cantamos, gritamos, fizemos gestos obscenos na frente da família católica de Victória, Cameron subiu em uma mesa, enlouquecemos quando tocaram Michael Jackson e já estávamos bêbados o suficiente para todos tentarmos o maldito moonwalk. Nos divertimos como a muito tempo não fazíamos.
Assistir enquanto meus amigos dançavam, Dana girando com Filipe e Cam e Jack fazendo coreografias sincronizadas sempre me faria feliz. Parecia até o paraíso. Eu voltava a saber o que era felicidade quando estávamos juntos e eu era tão, tão grata por ter amigos de verdade. Pois muito tempo havia se passado desde a última vez que estávamos todos juntos, mas nada havia mudado. Por isso eu era grata, tanto pelas menores coisas quanto pelas maiores.
Após uma sessão de break dance, começaram a tocar algumas músicas lentas, daquelas que os DJs tocam para começar a expulsar os bêbados da pista. Então eu e Cam decidimos sentar para recarregar as energias e beber mais um pouco do vinho especial de Jack, que nos contou que tinha uma surpresa para a esposa, mas só funcionaria se saíssem cedo da festa e nos pediu desculpas por isso. Claro que não nos importamos, logo a festa chegaria ao fim e até lá, nós aproveitaríamos o máximo possível.
Eu gargalhava enquanto Cameron me contava alguma fofoca sobre nossos vizinhos, quando meu olhar encontrou Dana do outro lado do salão, apoiada na mesa de doces. Desviei o olhar novamente, encarando Dana, que olhou em meus olhos por alguns segundos, mexendo a pálpebra de forma mínima, mas me fazendo ter a certeza do que eu deveria fazer em seguida. Eu conhecia aquele olhar. Dividíamos ele quando estávamos em alguma balada, festa ou qualquer fosse o lugar em que nós estivéssemos ligeiramente interessadas em alguém.
Então, lembrei da frase que ouvira da boca de uma atual-ex-grande amiga enquanto estávamos no banheiro a alguns minutos atrás: “de um a dez, o quanto posso transar com Cameron hoje?”
— Cam. – Chamei-o, sem me importar em interromper sua fala. – Cadê sua namorada?
Cameron e a ex – aquela insuportável – haviam reatado o namoro. Eu, particularmente, acredito que seja apenas desespero do fotógrafo e ele não a quisesse de volta realmente. Mas ele apenas havia nos dito que ela era especial, foi a única por muitos anos, então não via problemas em tentar de novo.
— Ah, Julie, sério? Uma hora dessas? – Questionou, resmungando embolado e cruzando os braços.
– É só porque acho injusto ser o casamento do seu melhor amigo e ela ter preferido ir ao show do John Mayer, que é um merda. Acredite, eu já o conheci.
— Já? – Arregalou os olhos, surpreso.
– Ser namorada de um famoso tem suas vantagens. – Dei de ombros, bebendo o resto do vinho que estava na taça.
— Eu não sei, de verdade. Nunca estive tão confuso em relação a minha vida amorosa, Julie. Sinto que estou chegando no ponto de ebulição, onde tudo está prestes a explodir.
— Para mim, nunca esteve tão claro. – Dei de ombros, pegando duas taças de champanhe da mesa ao lado e entreguei uma a ele, que rapidamente tomou um gole. Jesus, estaríamos absurdamente estragados no outro dia.
— Como assim?
— Você está vendo a mulher de vestido vermelho sentada naquela mesa ali? Fingindo estar distraída com o bolo? – Apontei com a cabeça e Cam sequer olhou, apenas fechou os olhos, balançando a cabeça. – É, você já viu. Ela é a melhor que você conhece e eu tenho a leve impressão que você sabe disso.
— Não faz isso comigo. – Quase choramingou, espalhando as mãos pelo cabelo, livrando-se todo o gel só naquele movimento.
— Isso o que? Eu só estou dizendo que, olha só! Está tocando Sinatra. Você não devia perder a oportunidade de dançar Sinatra com a garota mais bonita da festa, Cameron. – Dei um gole na bebida, pronta para dar o golpe de misericórdia.
— Victoria é a noiva. – Citou, negando com a cabeça.
— E eu acho que ela era a mulher mais linda daqui. E você? Victoria é a mulher mais linda do ambiente para você?
O golpe de misericórdia.
— Você é como um pequeno demônio, Julie. – Esbravejou, tomando todo o líquido de seu copo em um só gole. – Por que você não vai salvar seu namorado das meninas de treze anos e o tira para dançar também? – Gargalhei, levantando da mesa e fiz o que o meu amigo mandou.
Cameron e Dana era um assunto bizarro. Os dois quase não conseguiam lidar com tamanha atração entre eles, mas também quase não conseguiam se falar, como dois adolescentes apaixonados. Até hoje, eu sentia vontade de ser uma mosca na parede para descobrir como os dois acabaram juntos no dia da minha festa de despedida á alguns anos atrás.
Caminhei até Filipe, vendo-o se contorcer ao tentar dar atenção a todos que falavam com ele pelo caminho. Foi quando aconteceu. Filipe virou bruscamente e a taça de champanhe que segurava virou no vestido da moça que passava logo atrás.
Tudo parecia ocorrer em câmera lenta em frente aos meus olhos marejados. Até a música parecia estar distorcida e nem a porra do Sinatra fez sentido naquele momento. Foi quando eu senti, assim como senti em todas as outras vezes em que aquilo havia acontecido em minha frente. Senti como senti com Peter, Tom e Haniel, mas nunca, nunca havia doído tanto. Não podia ser o fim. Não podia.
Eu sentia meu peito dilacerado e sequer consegui conter as lágrimas mais uma vez. Não era exagero, não era apenas ciúmes, ninguém jamais conseguiria entender o que eu estava vendo e sentindo ali. Nem eu conseguia entender, mas algo dentro de mim sabia que os olhos castanhos do meu namorado encontrando os grandes orbes azuis da mulher que usava um belíssimo vestido roxo era o início do nosso fim.
Como uma criança assustada, virei de costas imediatamente, recusando-me a continuar assistindo o que viria a ser meu maior tormento e devastação. Coloquei a mão no peito, sentindo que se eu conseguisse colocar meu coração em minhas mãos, doeria menos. O sentimento quase desesperador passava por mim e eu não sabia o que fazer.
Segurei na barra do vestido, desistindo de ir ao banheiro quando notei a fila na porta. Procurei por qualquer outra saída, que não fosse a principal e notei uma pequena porta no canto direito do local, fui até lá. Quando entrei, notei que a porta levava a um corredor gigante, que tinham várias portas e parecia não ter fim.
Aquilo aumentou minha taquicardia, arranquei a peruca, sentindo alguns fios de cabelos meus irem ao chão junto com ela e deixei as lágrimas finalmente saírem. Encostei na parede e cobri meu rosto com as mãos.
Parecia um pesadelo. Filipe Buchart era o amor da minha vida, eu sabia disso. Sabia que o cantor sereno e confiante seria o maior marco em minha vida. Com ele, eu era tudo e nada ao mesmo tempo. Com ele, eu era apenas uma e era várias ao mesmo tempo. Eu nunca acreditei na expressão “morrer de amor”, mas sentindo aquela dor quase física, a falta de ar e a angústia de perder o que era meu, me faziam acreditar que era sim possível morrer de amor. Eu sequer imaginava não o ter por perto, nem queria pensar.
Respirei fundo, tentando acalmar meus nervos. Lembrei que eu estava em um local público e que se alguém perguntasse o que estava acontecendo, eu jamais conseguiria responder e explicar. Levantei a cabeça e decidi rapidamente voltar para o salão, porém, minhas pernas estavam fracas e bambas demais para a rapidez de meus movimentos, então, quando dava os primeiros passos para fora daquele corredor fantasmagórico, pisei com força na barra do vestido e acabei caindo de joelhos de forma vergonhosa. Solucei, sentindo-me humilhada e envergonhada.
Agora, até meus joelhos doíam e pior ainda, na hora da queda, apoiei-me no chão justamente com a mão direita, a que eu descobri ainda não estar recuperada do acidente. Sendo abatida pelo cansaço, sentei no chão e abri a bolsa pequena, procurando por um lenço, porém, minhas mãos trêmulas deixaram o objeto escapar entre meus dedos e a bolsa foi ao chão, espalhando tudo que havia nela.
Resmunguei, abaixando-me para recolher meu celular, as maquiagens e cartões. E no meio daquela bagunça, um pontinho se fez reluzente, chamando minha atenção. O anel que Fil havia me presenteado. Eu coloquei na bolsa antes de sair, receando usá-lo após a pequena joia ser o motivo de uma de nossas maiores discussões. Bufei, agora parecia tão inútil.
Coloquei o anel em meu dedo anelar. Enquanto encarava o brilho do diamante, várias reflexões passaram por mim de maneira rápida e simples. E agora? O que eu faria? Eu sabia que Filipe se apaixonaria por outra pessoa. Deveria fingir que tudo estava normal? Eu deveria curtir os últimos momentos? Devo voltar a ser a vilã de minha própria história e fazer o possível para manter essa mulher longe do meu namorado? Ou devo simplesmente aceitar que histórias de amor chegam ao fim?
Uma das portas no corredor se abriu, fazendo-me pular no lugar com o susto. O barman que eu havia pregado a peça no início da noite olhou-me confuso e preocupado. Imaginei que eu devia estar absurdamente bagunçada.
— Aqui é a área de serviço. – Explicou, apertando o avental em seu corpo.
— Eu confundi com o banheiro e e-eu caí. – Menti sobre o banheiro, mas precisava de uma boa justificativa de estar no chão, tentando fugir de julgamentos.
— Você está bem? Machucou? – Andou rapidamente até mim, me ajudando a levantar. Ele se abaixou para recolher o resto de minhas coisas que estava no chão enquanto eu tentava não me enterrar de vergonha.
— Sim, apenas escorreguei. – Pigarreei, mentindo novamente. Tropeçar no próprio vestido como se fosse uma menina desengonçada, que vergonha. – Na verdade, estou precisando urgentemente de uma bebida. – Informei. Ele riu levemente, parecia ter notado pelo meu rosto inchado e maquiagem levemente borrada que eu estava chorando, porém, foi discreto e não comentou nada sobre.
— Eu estou mesmo devendo uma bebida a você. Você beijou o cara, lembra? – Ele me ofereceu um braço e eu aceitei, sentindo-me fragilizada até para negar contato com uma pessoa que eu sequer conhecia.
— Bom, para ser sincera...
— É, eu sei. Cinco minutos no Instagram foi suficiente para descobrir que você é quase casada com o cara. – Ele me interrompeu, rindo e me fez rir também. Meu olhar vacilou novamente para o anel. – Mas foi uma boa pegadinha, você merece todas as bebidas mesmo.
— Você não faz ideia... – Suspirei enquanto íamos em direção ao bar.
— Está tudo bem mesmo? Tem certeza de que não se machucou? – Perguntou novamente, preocupado ao ver que eu andava meio torta. Meus joelhos doíam, sim. E minha mão latejava por conta da pressão inesperada que eu havia colocado nela, mas eu já havia passado por dores maiores.
— Sim, está tudo bem. – Sentei no banco em frente ao bar enquanto ele corria para trás do balcão. Distraí-me, pensando no que aconteceu, que sequer notei quando ele voltou e colocou um copo em minha frente. – O que é isso? – Questionei ao ver o líquido transparente.
— Água. – Disse, simplesmente. Ergui uma sobrancelha, confusa. – O pessoal da sua mesa misturou quase todos os tipos de bebidas que oferecemos aqui, imagino que você esteja inclusa. – Gargalhei, aceitando a água.
— Pois é, não temos limites. – Brinquei.
Fiquei bebericando a água, sentindo meu coração tentando voltar ao normal, mas eu ainda sentia vontade extrema de ficar soluçando e suspirando.
— Ei! – Quase me engasguei com água ao ouvir Filipe chamar. – Estava procurando você.
— E-eu estava procurando o banheiro. – Virei-me para olhá-lo e estranhamente me senti nervosa. Eu queria muito não ficar analisando cada ação dele após isso, mas céus, seria um inferno, eu já podia imaginar. – Ei, esse é o...
— Leonardo. – O barman estendeu a mão para meu namorado, que apertou normalmente, mas qualquer um podia sentir a desconfiança do mesmo. – Minha irmã é uma grande fã. – Abri minha bolsa, procurando a caneta que sempre estava por ali e estendi para Fil.
— O nome dela é Elisa. – Informei, sorrindo para meu amigo barman, que apenas assentiu, agradecido.
— Claro. – Filipe rápida e atenciosamente assinou em um guardanapo. Enquanto escrevia, seu olhar subiu até mim. Mordi os lábios, nervosa. Não é possível que o cara me conheça tanto que já sentiu que havia algo errado. – Aqui está.
— Ela vai pirar, cara! Obrigado! – Leonardo agradeceu, guardando o guardanapo no bolso. Filipe virou o corpo para mim, olhando-me desconfiado de cima a baixo.
— O que? – Perguntei.
— Você sumiu. Está tudo bem? – Questionou, cismático.
— Sim, é cla...
— Na verdade... – Leonardo me interrompeu, fazendo com quem nós o encarássemos. Suspirei, sabendo que o barman iria me dedurar. – Ela escorregou e caiu ali atrás, deve ter se machucado, mas eu não saberia dizer. – O fuzilei com o olhar, mas o rapaz apenas deu de ombros, sorrindo de leve e se afastou.
— Você caiu?! – Filipe virou-se para mim, preocupado, passando o olhar por meu corpo, provavelmente procurando algum machucado. – Você está machucada?
— Não, eu só... – Tentei explicar.
— Amor!
— Calma! Eu só escorreguei, mas por reflexo, acabei apoiando meu corpo com a mão. Você sabe como estava ruim esses dias... – Enquanto eu explicava, Filipe pegou minhas mãos, analisando-as e acariciando levemente. – E eu também acho que machuquei os joelhos...
Fui parando de falar ao notar que meu namorado estava tão interessado em minhas mãos – em uma, especificamente – que não estava prestando muita atenção em mim. O anel em meu dedo. O maldito anel que eu havia esquecido de tirar. Suspirei, tentando puxar a minha mão de volta, mas fui impedida. O cantor levantou a cabeça, olhando-me com os lábios prensados, tentando conter um sorriso.
— O que é, Filipe? – Perguntei, irritada. Ele ergueu uma sobrancelha, liberando de vez o sorriso orgulhoso e debochado. Puxei minhas mãos das suas, resmungando. – Combina com meu vestido, ué. – Dei de ombros.
— É claro que combina, foi feito especialmente e literalmente para você. – Declarou, sorridente. Revirei os olhos, mas também não consegui conter o sorriso.
— Enfim... – Deixei claro que não queria falar sobre nada que envolvesse anéis e casamento e mudei de assunto. – Vamos embora? Estou cansada.
— Acho que chegou nossa hora mesmo. – Apontou com a cabeça para a pista.
Dana e Cameron dançavam juntos de forma graciosa. As mãos dele estavam posicionadas na cintura de Dana, que apoiava os braços nos ombros do fotógrafo e sorria envolvida com o que quer que fosse que o amigo estivesse falando. Sorri, alegre que minha tentativa de ser cupido talvez estivesse dando certo.
Filipe pegou minha bolsa e começamos a nos preparar para voltar para a pousada. Gritei pelo nome de Leo – que estava concentrado atendendo a cinco pessoas ao mesmo tempo – e acenei, despedindo-me do barman que me entreteve durante a noite. Fil novamente me olhou desconfiado.
— O que foi agora? – Cruzei os braços, risonha.
— Não sei se entendi muito bem essa sua nova amizade aí. – Confessou, inquieto. Desci da cadeira alta, mas assim que meus pés tocaram no chão, meus joelhos doeram e minhas pernas fraquejaram. Apontei-me em seu corpo, tentando fingir que eu não tinha quase caído. Mas é claro, que isso não passou despercebido pelo meu namorado. – Julieta, você se machucou, não foi?
Ainda não, amor. Porém, algo me diz que logo eu estaria.
— Só estou um pouco dolorida. Minha mão está doendo, mas isso já estava desde ontem. – Reclamei, puxando-o pelo braço, nos encaminhando pela saída. – Infelizmente, hoje você não vai poder usufruir da minha mão direita do jeitinho que você gosta. – Brinquei, beijando seu rosto.
— Tudo bem, sua boca serve. – Deu de ombros de forma desleixada, fazendo-me abrir a boca com a forma chula como ele falou.
— Serve?! Como assim “serve”? – Reclamei, indignada. O cantor gargalhou, jogando a cabeça para trás e logo rolei os olhos quando notei que era apenas uma provocação. – Você anda muito engraçadinho. Depois que eu fico de papo com os barmans, você reclama.
— Você ainda tem que me explicar essa história direito. – Brincou, apertando meu rosto e puxando-me para um beijo. Enquanto caminhávamos para fora do salão, Filipe me rodeou, indo para meu lado esquerdo apenas para que pudesse entrelaçar nossas mãos, já que minha mão direita estava dolorida demais. – Aqui é bem bonito.
— Sim! Está vendo aquela sala de vidro? Ali dentro tem uma piscina. E embaixo tem umas luzes, é lindo! – Apontei para o lugar que eu já havia observado durante o dia. A pousada era bastante refinada, porém bem simples e minimalista. Tinha um jardim enorme e florido na frente, coberto por cercas brancas e a única piscina do local ficava dentro de um cômodo.
— Sério? – Confirmei, assentindo. – Vamos lá ver? – Pediu como uma criança e nem esperou por resposta, já me puxando em direção ao local.
O local era esplêndido, todas as paredes eram vidro e luzes azuis iluminavam a piscina. Com o local todo escurecido, ficava ainda mais interessante o jeito que a penumbra da noite contrastava com as luzes azul escuro lá dentro.
— Vamos entrar? – Sugeriu, animado.
— Na piscina? Você está bêbado? – Emiti, desconfiada, olhando bem o rosto corado de meu namorado, que já retirava o paletó.
— Não muito. – Confessou, rindo. – Vamos. Está calor essa noite, o clima aqui parece ser abafado. – Comentou, retirando os sapatos e jogando minha bolsa no chão.
— Fil! Não acho que seja permitido. – Informei, olhando em volta, tentando ver se por ali estaria algum guarda ou segurança escondido, mas o local era amplo e apesar das paredes serem de vidro, só se enxergava de dentro para fora.
— E daí? Ninguém vai reclamar. – Deu de ombros.
— Você abusa dos seus privilégios, sr. Famoso. – Neguei com a cabeça. Assustei-me quando vi que ele estava retirando a camisa branca e a gravata. – Espera, você está falando sério? – Indaguei.
— Tanto quanto eu estava quando pedi você em casamento. – E pulou na água, deixando-me paralisada por alguns segundos antes de irromper em uma alta gargalhada.
— Você não pode simplesmente falar essas coisas! – Reclamei, rindo.
— Você não vai entrar? – Insistiu. – A água está aquecida!
— Não quero molhar meu vestido. – Expliquei, sendo esse apenas um dos vários motivos pela qual eu estava me recusando a pular em uma piscina durante a madrugada.
— Bom, é só tirar. – Sugeriu.
— Não dá, não quero ficar aqui quase que completamente sem roupa. – Confessei, sentindo-me até envergonhada. – Só estou usando calcinha por baixo.
— Mais um motivo para você tirar! – Sorriu, malicioso, espirrando água em mim.
— Vai ser ótimo se aqui houver câmeras, já imagino a manchete: “namorada esquisita de Filipe Buchart é flagrada com os peitos de fora em piscina pública”.
— Amor, eu pago todo o dinheiro do mundo para que nenhum cara além de mim veja seus peitos. – Brincou, sagaz. – Vem.
— Você anda muito mal-acostumado...
Olhei em volta, procurando alguma outra desculpa, mas não havia câmeras ou pessoas aparentes. Além disso, a água parecia ótima, meu namorado era um filho da mãe gostoso e a noite estava realmente quente e abafada. Suspirei, derrotada. Fil comemorou quando me viu retirando meus sapatos. Procurei o zíper do vestido em minhas costas, sentindo dificuldade, mas conseguindo tirar a vestimenta. Cobri meus seios e fui sentar na beira da piscina, já que minhas pernas estavam doloridas para que eu pulasse. E eu ainda estava apegada a minha maquiagem cara, claro.
— É fundo? – Perguntei, sentando a borda e colocando minhas pernas na água, arrepiando-me com a sensação térmica.
— Eu pego você. – Aproximou-se de mim com os braços erguidos. Apoiei-me em seus ombros enquanto descia da borda lentamente, porém a água estava gelada e o frio me fez pular e abraçar o corpo quente de meu namorado.
— Você disse que estava aquecida! – Resmunguei, sentindo meu corpo tremer e abraçando-o pelos ombros.
— Você não ia entrar se eu dissesse que estava um frio desgraçado! – Riu, prendendo meu corpo em seus braços. Além do frio, eu sentia meu corpo inteiro arrepiado e em alerta pois meus seios estavam apertados contra ele. E nossos corpos aquecendo um ao outro após algumas semanas sem contato físico era como o despertar da primavera. Ele correu os lábios pela minha bochecha, beijando o contorno de meu rosto, fazendo-me fechar os olhos apenas para desfrutar de seu carinho. – Caso eu não tenha dito... Você está absolutamente linda hoje.
— E caso eu não tenha dito, eu estava morrendo de saudades de você. – Declarei, murmurando em seu ouvido e selando nossos lábios em um beijo rápido. – É muito chato ficar sozinha em casa. – Comentei, fazendo bico.
— Talvez não devêssemos mais ficar sozinhos em casa. – Sua sugestão me fez tremer, vacilar. Me afastei um pouco apenas para que eu pudesse olhar seu rosto e ver o quão sério ele estava falando. – Vem morar comigo.
— Amor... – Mordi os lábios, apreensiva.
— Não é como se já não morássemos juntos. – Refutou, arrumando uma mecha do meu cabelo atrás de minha orelha.
De fato, nós estávamos sempre juntos, na casa um do outro e etc. Eu fazia as compras do mês da casa dele, pelo amor de Deus. Negar isso era demais até mesmo para mim. Apesar de ser um grande passo, não parecia. Eu sentia que morarmos juntos era em síntese o que sempre foi meu relacionamento com Filipe: era natural, iria acontecer de uma forma ou de outra.
Entretanto, as coisas estavam diferentes agora. Eu sabia o que iria acontecer. Não era uma suposição, uma previsão. Iria acontecer, eu só não sabia quando, nem como. Filipe iria se apaixonar por outra pessoa. E eu precisava decidir o que faria com essa informação. Eu queria mais, queria tê-lo completamente comigo e para mim, queria acordar e dormir ao seu lado todos os dias, porém, o que seria de mim quando isso chegasse ao fim? Eu não queria ser impulsiva e aceitar a ideia sem analisar melhor a situação e seus prós e contras.
Entretanto, eu tinha pressa. Não queria perder mais um minuto ao lado do homem que eu amava.
— Não acredito que você vai me convencer a fazer isso! – Expressei, assustada, batendo com a mão em meu próprio rosto.
— É assim que me sinto quando me pego pensando em filhos, sinto que você entrou na minha cabeça após todo esse tempo. – Brincou, quebrando um pouco do clima tenso que havia se instalado quando me fez gargalhar. Entrelacei minhas pernas em volta de sua cintura, aconchegando-me enquanto ele andava comigo pela piscina como se estivesse com uma criança em seu colo. – Então, é oficial? Posso ligar para minha mãe e contar que você finalmente deixou de ser teimosa?
— Ai meu Deus. – Ansiosa e nervosa, encostei a cabeça em seu ombro, recebendo um afago carinhoso em meu pescoço.
Tentei ignorar todos os meus pensamentos desesperados, as perguntas e detalhes que eu queria acertar de uma vez. Vários questionamentos surgiam a todo momento, mas eu sentia que aquele não era o momento de botar em cheque certas questões, como por exemplo, onde diabos nós moraríamos? Na casa dele? Na minha? Procuraríamos um lugar novo? E minha mãe, o que pensaria disso?
— Vai ser uma temporada e tanto... – Expressou, pensativo, mas mantinha um sorriso tranquilo.
— É... – Concordei, dispersa.
— Por que você parece tão triste? Morar comigo é tão aterrorizante assim? – Analisou meu rosto, acariciando minhas pernas. Neguei com a cabeça, tentando conter a terrível vontade de chorar que havia me acometido.
Eu só conseguia pensar no que eu faria quando estivesse completamente acostumada com Filipe e tudo chegasse ao fim. O que seria de mim?
— Posso pedir que você me prometa algo? Tudo bem se você achar que não pode me prometer tal coisa, mas... – Pedi com a voz falha. Filipe percebeu e parou seus movimentos em volta da piscina, paralisando no meio da mesma enquanto me olhava apreensivo.
— Farei o possível. – Assegurou, sério. Respirei fundo antes de falar, já sentindo meus olhos encherem de água.
— Promete que mesmo que um dia a gente termine, mesmo que você me odeie e a gente sequer troque palavras, promete que você não vai esquecer. – Pedi de olhos fechados, não querendo deixar lágrimas fugirem e também ter que lidar com a intensidade de seu olhar.
— Por que você está falando isso?
— É que eu amo muito você, Filipe. – Desabafei, abrindo os olhos novamente. – Amar você é algo tão natural para mim quanto respirar. E eu sei que sempre vou te amar, nem que seja um pouquinho, mas me assusta pensar que talvez você esqueça de me amar de volta. Eu não te peço para lembrar sempre, só não esquecer de vez.
— Julie, eu ainda sou completamente louco e apaixonado por você, isso não faz sentido...
— Eu sei! É só... – O interrompi, mas fui incapaz de completar meu pensamento. Ele não entenderia e eu não saberia explicar.
— Eu não consigo ver qualquer possibilidade de isso acontecer, mas se você precisa que eu prometa, então... – Posicionou as duas mãos em meu rosto, limpando-o com seus polegares enquanto olhava em olhos de forma intensa e muito transparente, da forma que apenas ele conseguia me olhar. – Julieta Young, eu prometo que vou amar você para sempre. Nem que seja só um pouquinho. – Fechei os olhos, soltando a respiração de forma aliviada.
— Obrigada. – Agradeci, tímida, fungando levemente.
— De nada. – Riu pelo nariz, olhando-me de forma carinhosa e enterrando o rosto em meu pescoço, me beijando e abraçando intensamente.
Foi assim que eu decidi que ficaria ao seu lado até o momento que me fosse permitido, pois senti no fundo do meu coração que Filipe não havia mentido. Aquele homem a minha frente me amaria para sempre.
Nem que fosse só um pouquinho.
Peço licença – e desculpas – a Gorz e Dorine, mas pegarei emprestado suas palavras para dizer:
Você acabou de fazer trinta e nove anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz vinte anos que vivemos juntas...
– Está errado! – Ela esbravejou, me olhando e fingindo estar consternada. – São vinte e cinco anos! Nos conhecemos aos dezessete! Na verdade, aos quinze... E se formos pensar bem...
– Dana... – Resmunguei, apertando minhas têmporas, já impaciente.
– Julieta, eu estou morrendo aqui. Literalmente. A única coisa que eu peço são fatos corretos e concretos na minha carta...
Mesmo com a voz debilitada e a fala quase arrastada, Dana falava e gesticulava com a energia que devia pertencer a uma adolescente líder de torcida, não uma moribunda.
Lá pela primavera de uns cinco anos atrás, logo após o casamento de Jack, eu e Dana decidimos passar um tempo morando juntas de novo e com isso, toda nossa antiga rotina havia voltado e essa rotina incluía uma lista de check-ups médicos, já que nós realmente não ligávamos muito para nossa saúde quando sozinhas. E foi assim que eu e minha melhor amiga descobrimos o pâncreas.
É claro que nós sabíamos o que era pâncreas, mas fala sério, quem poderia imaginar que aquela parada de vinte centímetros carregava dentro de Dana um câncer com alta taxa de mortalidade?
Bom, nós não imaginávamos.
Vou poupá-los da parte triste. Sabe aquela parte da descoberta, do choro, o medo e tudo que um bom dramalhão pode conter? Vamos deixar para trás, já não faz muito sentido agora. Dana viveu com a doença durante muito tempo e viveu bem. Fez tudo que queria fazer, foi deserdada pela família, voltou a ser rica quando seus pais descobriram sua luta contra o câncer, vomitou por todo o meu banheiro por conta da forte reação da quimioterapia, viajou para todos os lugares que sempre quis (e me levou junto), porém, Dana sempre seria... Dana.
Alguns meses atrás, a mulher enfiou na cabeça que queria fazer a tal cirurgia paliativa. Ela dizia que estava confiante, que sentia que sua vida iria melhorar, mas de verdade, eu acho que ela só estava cansada. A cirurgia de alto risco ia acabar matando-a e todos nós sabíamos disso. Apesar de conseguir viver com câncer, é bem difícil lidar com ele.
Como o câncer de pâncreas pode progredir rapidamente e não há um tratamento, a maioria dos médicos rejeitou veemente o pedido de Dizzy, mas não há nada no mundo que o dinheiro não pague, principalmente quando esse dinheiro pertence a uma pessoa que sabe muito bem como ter todos na palma de suas mãos.
E foi assim que todos nós viemos parar em um hospital oncológico particular no meio do inverno severo de HW.
– E minha licença poética? Você nem devia estar lendo, eu ainda não terminei! – Puxei o caderno de sua mão, irritada. – A graça é você só ler quando ela estiver finalizada. – A mulher havia me obrigado a escrever uma carta, para que ela lesse antes de entrar na sala de cirurgia. Porém, eu já estava irritada comigo mesma, pois tudo que eu escrevia, saia no papel com um tom de despedida.
– E se eu não estiver mais aqui quando você terminar? – Perguntou, cobrindo seu corpo magro com uma manta.
– E onde mais você estaria? Morta? – Retruquei, irônica. Nos entreolhamos e antes que eu pudesse me sentir mal pelo comentário pesado, ambas caímos na risada, achando graça no terrível destino que se fazia presente.
– Vocês são mórbidas demais para o seu próprio bem. – Victoria comentou, fazendo uma careta de estranhamento.
– Usamos o humor como mecanismo de defesa. – Dana deu de ombros e logo em seguida fez careta, percebi que ela sentira dor no ato.
– “Humor”, claro. – Vic revirou os olhos, empurrando-se com dificuldade contra o corpo de Dana e deitado junto a mulher na cama hospitalar. – E quem vai ser a candidata a me fazer uma massagem nos pés? – Esticou a perna em minha direção.
– Você só pode estar de sacanagem... – Murmurei, desviando o olhar dos pés inchados e gordos da minha amiga.
– Ah, elas merecem, Julie! – Dana apoiou a mão na barriga gigantesca de oito meses de gravidez de Vic, que continham lá dentro uma menina com alguns quilos, alguns tios, duas tias e muitas, muitas regalias.
O casamento de Jack e Victoria não ia nada bem. Foi uma época difícil pois ver Jack e Vic abalados e triste era muito ruim. Então, veio o divórcio e eles encararam isso da melhor forma possível: dando uma festa. O problema todo foi que na festa, o ex-atual casal acabou transando no sofá e desse “sexo de despedida” vieram as duas coisas que nós mais esperávamos: a tão esperada volta do casal e a nossa mais esperada ainda, Diana, o primeiro bebê do grupo.
– São três abusadas, todas vocês! – Reclamei, rindo e também me aproximei, encostando a boca na barriga da minha amiga. – Mas tudo bem, bebê, você eu perdoo, mas só porque você ainda nem nasceu. – Rimos juntas, curtindo o momento gostoso entre nós.
– Eu quero muito conhecer ela. – Foi de partir o coração a confissão suspirada de Dana.
– Você vai. – Vic assentiu, garantindo com uma segurança assustadora e sorrindo de lábios fechados. Dana também sorriu e encostou a cabeça no ombro dela, fechando os olhos.
Eram poucos os momentos em que Dana parecia preocupada, nervosa ou assustada com a cirurgia – ou com o que aconteceria depois dela. Desde o início, ela estivera segura de sua decisão. Esses momentos de “fraqueza” só surgiam quando estávamos sozinhas ou quando Diana (o que ela tomou como homenagem, mas na verdade, era o nome da avó de Victoria) era citada. Ou então, quando ela estava com Cameron.
– Argh, eu queria tanto um bebê também. – Resmunguei, quebrando o gelo. Eu ainda tinha essa vontade e já tive planos, mas as coisas não aconteceram da forma que eu queria.
– Não é preciso um casamento para você ter um filho, Julie. – Dana afirmou e Vic concordou.
– Vocês dizem isso só porque ambas têm marido. – Emiti, sarcástica.
– Ei, quem disse que eu tenho marido?! – Dana questionou, rindo.
– Essa aliança no seu dedo diz outra coisa. – Repliquei.
Dana e Cameron eram aquele casal do Instagram, em que o feed é lotado de fotos lindas, conceituais e apaixonantes. Aquele casal que vemos nas redes sociais e pensamos: não é possível. Aquele casal que quando conhecemos na vida real pensamos: não é possível mesmo. Eram lindos separados, porém, juntos eram um trem fora de controle. Ninguém resistia a eles, às vezes dava vontade de ficar apenas assistindo eles serem um casal simplesmente bonito.
E quando perguntado qual era o segredo de tanto companheirismo, a resposta modesta era sempre a mesma: “A gente se dá bem, só isso”.
– Por falar nisso, vou atrás de Cam com o meu café. – Levantei da cama e fui em direção a porta. Cam havia deixado a sala para ir buscar algo para comer e ainda não havia voltado. – Volto já. – Ambas assentiram e voltaram a conversar com Diana, que devia estar deixando tudo remexido dentro da barriga da mãe de tanto que estava se mexendo.
Saí do quarto e fui abatida pelo frio assim que deixei o cômodo aquecido. Chovia muito lá fora, já fazia algumas horas que a chuva não parava e o frio só aumentava. Puxei as mangas do moletom e abracei meu corpo. Toda vez que eu saia daquele quarto, eu sentia o peso do desânimo me abater.
O quarto particular de Dana havia sido transformado em uma cópia do quarto dela mesmo, então não parecia nada com um quarto de hospital. Era quente, aconchegante e íntimo. Mas quando eu saía de lá, dava de cara com uma recepção branca, fria e melancólica. Apesar de ser um lugar bonito e refinado, não deixava de ser um hospital e isso me lembrava o que estávamos fazendo ali.
Minha melhor amiga iria passar por uma cirurgia difícil assim que o sol nascesse e estávamos todos juntos de novo para passar por isso com ela.
Cameron estava no balcão oposto à lanchonete, carregava uma pequena bandeja com alguns copos e conversava com Balcio, pai de Dana. O homem havia perdido a esposa – mãe de Dana – a alguns meses e com a situação difícil da filha, ele parecia irreconhecível. Estava emagrecido, pálido e sempre parecia sem forças.
– Tudo certo? – Perguntaram quando me aproximei e eu assenti.
– Sim, vim atrás do café. – Sorri de lado. – Onde está Jack?
– Foi comprar biscoito. Acho que está nervoso, saiu daqui suando em bicas. – Cameron sorriu, dando de ombros.
– E não estamos todos? – Refleti, pegando um copo de café da bandeja e bebendo.
– Eu sei que eu estou, então, se não houver problemas para vocês, prefiro ir para o hotel e deixar Dana com vocês. Tudo bem? – Balcio confessou, passando a mão na cabeça.
– Não se preocupe, não sairemos daqui. – Cameron assegurou, firme.
– Eu conversei com o médico e, bom... Ele disse que vai dar o seu melhor, mas acho que todos nós sabemos como isso vai acabar. – Suspirou, pesaroso. Engoli a seco a vontade de chorar. Estávamos todos entregando as pontas, mesmo que inconscientemente. – Filho... – Tocou o ombro de Cam, despedindo-se.
– Descanse, Balcio. Assim que houver novidades, eu prometo que ligarei primeiro para você. – Cam afirmou, atencioso. O homem virou-se para mim e pude ver a dúvida em seus olhos por não saber como me cumprimentar.
Eu tive minhas diferenças com o pai de Dana desde que nós nos conhecemos, o homem não tinha muito apreço por mim e vice-versa. Mas tudo que o homem fez – não querendo perdoar todo o terror psicológico e emocional – foi pensando em Dana. Ele era louco pela filha e só queria o melhor para ela.
Estiquei meus braços, abraçando o tronco do homem fortemente. Apesar de tudo, ele era pai e eu não conseguia imaginar como estava sendo para ele, assistir a filha se despedindo todo dia. Dava para ver em seus olhos que ele estava dilacerado. Ele encostou os lábios em minha testa, dando um beijo protetor.
– Fica bem, tio. – Murmurei. Fazia anos que eu não o chamava assim. As lembranças dos dias pós aula, em que vivíamos grudadas na casa grande da menina, invadiram minha mente.
– Você também, Julie.
Cam e eu assistimos com pesar o homem andar até a porta do quarto onde Dana estava e suspirar profundamente antes de bater. Nos entreolhamos, sentidos, sem querer nem imaginar o que ele falaria quando entrasse, logo nos afastamos. Quando as complicações por conta da doença ocorriam ou quando Dana tomou a decisão de fazer a cirurgia, eu e Cameron quase não conseguíamos nos falar. Era difícil explicar o porquê.
Acho que era porque nós éramos os únicos que entendiam tudo.
– Eu vou sentar lá na frente, pegar um pouco de chuva, sabe? – Ri fraco, desconversando. Ele sorriu, concordando. – Depois eu volto.
– Vou atrás de Jack. – Informou, assentindo, indo no caminho oposto ao meu.
Caminhei até a entrada já conhecida após tantas idas e vindas naquela clínica. Chovia tanto que estava dando até aflição em ficar do lado de fora, com todo aquele vento e aquelas trovoadas estourando no céu escuro. Sentei em um banquinho de madeira largo e estreito e encostei a cabeça na parede.
Antes de fechar os olhos, notei um homem de costas largas encostado em uma pilastra, falando ao celular. Franzi o cenho, confusa e fiquei analisando-o de forma contínua e curiosa até o mesmo desligar o celular. Virou-se e quando seu olhar me encontrou, acenou com a cabeça e se aproximou.
– Achei que você já tinha ido embora. – Comentei, alto.
– Eu ia, mas Jack sumiu com meu carro. – Justificou-se, sentando ao meu lado. – Ele não está sabendo lidar muito bem com o que vem acontecendo. – Assenti, concordando, mas não falei mais nada. Jack estava surtando. Na verdade, todos nós estávamos, mas ele era o único verdadeiro e sensível o suficiente para deixar transparecer.
O cantor sentou ao meu lado e bateu com o ombro no meu, chamando minha atenção já que eu estava com a cabeça perdida em algum lugar do universo. Sorri fraco, sem nem tentar disfarçar minha melancolia ao lado do homem que conhecia muito bem meus sorrisos, olhares e suspiros.
Eu e éramos uma história linda. Tivemos todas as estações – primavera, verão, inverno, outono – em nós e entre nós. Nos amamos da forma mais bonita que se podia amar alguém. Éramos apaixonados, fissurados e enlouquecidos um no outro. Mas lá pela sétima primavera, algo mudou em nós. Eu queria morar em outra cidade, conhecer a Índia, ser promovida novamente, fazer ballet, me formar na faculdade novamente. Eu queria mais, muito mais. Ele queria... menos.
atingiu o ponto da fama que ele jamais havia desejado para si mesmo. Começamos a ter problemas em casa por conta da fama lá fora, tivemos que contratar seguranças e estivemos a dois passos de perdermos a nossa privacidade. Então, ele parou. Investiu todo o dinheiro que tinha (para não perder a estabilidade financeira), deu uma pausa na carreira e sumiu.
Foi aí, nesse meio de caminho, que nos perdemos um do outro. E ele encontrou Camilla. Ou melhor, reencontrou.
Desde a infância, viajava com a família para o litoral em época de verão e férias escolares e foi onde conheceu Camilla, a garotinha da casa vizinha, com quem ele compartilhou o seu primeiro beijo. Eles se reencontrarem anos depois, de forma despretensiosa, no casamento do melhor amigo dele. Foi coisa de filmes de comédia romântica.
Sim, Camilla era a mulher de olhos azuis e vestido roxo que havia sido molhada pela taça de champanhe do meu ex-namorado.
– Como nós estamos? – Ergui uma sobrancelha, sem entender muito bem o ponto dele. Era uma pergunta com vários sentidos. – Eu quis dizer, você! – Corrigiu-se, envergonhado. Tentei muito não sorrir ao notar suas bochechas coradas. – Tem alguma coisa que eu possa fazer por você? Comprar mais café? Pedir você em casamento ou algo do tipo... – Brincou, fazendo-me rir verdadeiramente pela primeira vez em semanas.
– Você precisa parar de falar sobre isso em momentos inoportunos. – Adverti-o, ainda rindo.
– Ué, eu sei que faz um tempo que não nos vemos e nem tivemos oportunidade de conversar, mas achei que você tinha perdido o medo de casamento. – Provocou, insinuante. É claro que ele não perderia essa oportunidade de me provocar.
Como eu disse, sumiu por um tempo, afastou-se quase que totalmente do resto de nós e acabou perdendo alguns episódios de nossas vidas, como quando eu e Dizzy voltamos para Springfield e moramos lá novamente, logo quando descobrimos a doença da mulher. Dana queria ficar perto da família e eu também queria a minha por perto de novo.
Passávamos a maior parte do tempo na casa de Dana, mas de vez em quando meus pais nos convenciam a andar pelos lugares que costumávamos frequentar juntas. Foi em um desses passeios ao centro que reencontrei Gabriel Santiago, o agora “ex-chefe de gangue”. Tivemos um breve relacionamento e acreditem ou não, o cara me pediu em casamento. E o pior? Eu disse sim.
Pois é, as coisas ficam meio malucas quando tudo que conseguimos pensar é: “minha melhor amiga está morrendo”. Porque naquele tempo – até os dias atuais – era só nisso que eu pensava.
– Você é péssimo em disfarçar alegria. – Apontei, estalando a língua em reprovação.
– Eu não estava tentando. – Afirmou, com um sorriso enorme e indiscreto, que me fez rir de novo.
– É? E como vai seu namoro? Aquele que começou duas semanas depois que você terminou comigo? – Provoquei, semicerrando os olhos, mas ele apenas riu, balançando a cabeça negativamente.
– Todos cometemos erros. – Concordei. Eu que o diga, quase me casei só por estar em negação ao câncer de Dana. – Não vai a lugar nenhum. – Confidenciou, dando de ombros.
– Aparentemente, somos péssimos em manter um relacionamento. – Brinquei, erguendo o punho para cumprimentá-lo.
– Exceto um com o outro. – Sinalizou, rindo de leve.
– É claro! – Concordei, também sorrindo.
Já fazia alguns dias que estávamos todos juntos de novo, mas acho que aquela era primeira vez que nós dois ficávamos sozinhos e tínhamos a oportunidade de nos instigarmos. Era bem estranho, parecia que tudo que havia acontecido depois do nosso término havia sido apenas um grande borrão, parecia que só havíamos dado um tempo e logo estaríamos juntos de novo.
Éramos quase dois velhos e eu ainda ficava ansiosa ao vê-lo e ele ainda gaguejava ao falar comigo. Dois idiotas, cheios de tesão e mágoas um com o outro. No fundo, eu sei muito bem que o que nos levou ao fim não foi Camilla ou Santiago. A gente se levou ao fim. Mesmo nos amando, nos cansamos um do outro.
E é horrível e desesperador deixar alguém que você ama ir simplesmente porque você a ama o suficiente para isso.
– O que aconteceu? – Ousei perguntar, nervosa com a resposta que eu ouviria.
– Queríamos coisas diferentes, eu acho. Ou somos muito diferentes. – Tentou explicar, olhando para frente, observando a chuva caindo de forma mais amena do que antes. – Demos um tempo. Até hoje eu não sei muito bem se já terminamos ou não. – Riu sem graça, passando a mão no cabelo.
– Você nunca gostou de dar um tempo. – Comentei, pensativa.
– É, mas gostei dela. – Falou, baixinho.
É quase uma tortura chinesa ouvir seu ex-namorado assumir o quanto gostava de outra pessoa.
Nosso término não teve briga, apenas muita tristeza e pesar de ambos os lados. Não nos odiávamos e tentamos conviver da melhor forma possível, principalmente por conta de tudo que estava acontecendo com Dizzy. Assim, eu ainda cheguei a conhecer Camilla em algumas reuniões, nos tratávamos como bons amigos e respeitávamos um ao outro. Entretanto, eu ainda morria de ciúmes toda vez que eu o via com ela.
Eu só conseguia pensar que aquela mulher estava andando de mãos dadas por aí com o namorado.
– Era estranho, diferente. – Ele continuou – Eu não tive muitas relações a que posso me basear, mas com a gente, eu e você, era mais... – Soltou uma risada anasalada e contida ao refletir. – Pode parecer até estranho para quem nos conhece, mas era mais leve. Tudo funcionava quando estávamos juntos, Julieta.
ainda tinha seus modos de “cara que escreve”. ainda me chamava de Julieta. ainda era o cara mais bonito no ambiente. sempre seria e eu temia ainda ser dele.
– E me peguei aceitando certos comportamentos e ações que não me agradavam e eu não sei porque aceitei. A gente acaba aceitando certas coisas sem nem perceber, não é?
– É... – Eu sabia muito bem. Cruzei as pernas em cima na cadeira, apertando meus tornozelos apenas para aliviar a tensão que havia se instalado em mim.
– E você? Como foi que você surtou com o tal de Santiago? – Brincou, beliscando meu braço. Tentei rir, mas o que saiu foi um murmúrio quase esganiçado.
– Não surtei! – Rolei os olhos. – Somos amigos, não é? Quer dizer, nunca fomos só amigos, mas acho que agora, somos. Um pouco, não é? – Enrolei-me, inquieta.
– Bom, – Refletiu por uns segundos antes de continuar. – Estamos... Tentando. – Assenti, concordando.
Eu entendia bem o que ele queria dizer. Não tínhamos uma relação de amigos antigos que ainda eram amigos, éramos claramente ex-namorados tentando ser amigos.
– Bom, aconteceu o mesmo. Queríamos coisas diferentes. – Respondi, apertando as mãos e resolvi confidenciar meus problemas conjugais com meu ex. – Eu queria filhos. Dois, três, quatro e até cinco mini versões de mim correndo pela casa. E ele... não. É o direito dele, claro! Eu jamais o obrigaria a alguma coisa, mas eu não me privo mais de minhas vontades, . Entre ele e os filhos que ainda não tenho, eu escolho as minhas crianças.
– Um… – Murmurou, pensativo, talvez escolhendo as palavras certas para dizer – Cinco mini Julietas correndo pela casa. Que pesadelo! – Sorriu, travesso. Rindo levemente, fingi socar seu ombro. – E eu mal conseguia lidar com uma…
– Ah, você foi o único que soube lidar, acredite! – Bufei, me sentindo quase indignada com o resto de meus namorados que não entendia nada da minha personalidade meio... de mais. – E além disso, teve você! – Resmunguei, cruzando os braços.
– Eu?! – Indagou, confuso.
– É, você! O Sr. Perfeito! É muito chato namorar um cara que não é chato igual você! – Reclamei de forma irônica, fazendo-o rir.
– Entendi, eu fui seu melhor namorado e ninguém nunca vai ocupar meu lugar, é isso? Melhor ir se acostumando para uma série de decepções. – Deu de ombros, convencido. Rolei os olhos fingindo barulho de vômito, fazendo-o gargalhar. – Mas falando sério agora, eu entendo. – Continuou, virando o rosto para me olhar. – Nós elevamos a expectativa um do outro em níveis extremos. Somos bons juntos, Julieta.
– Fomos. – Corrigi, mordendo o lábio. Ele ergueu uma sobrancelha. – “Fomos” bons. No verbo passado. – Expliquei. Ele, com a sobrancelha erguida, abriu e fechou a boca algumas vezes, porém não disse nada, apenas desviou o olhar e continuou com aquele puta sorriso apertado, convencido, como se soubesse algo que ninguém mais sabia. – …
– Eu não disse nada. – Defendeu-se de meu tom repreensivo.
– , eu conheço você como ninguém conhece – Afirmei, despretensiosa. – Talvez sua mãe.
– Ela mandou abraços, a propósito. – Sorri agradecida. Minha ex-sogra era uma mulher incrível e era uma pena que nós não tivéssemos muitos momentos juntas pessoalmente, mas sempre nos falamos por mensagens de texto.
– Como ela está? Aposto que radiante por ter o filhinho em casa novamente. – Comentei. havia comentado que também havia voltado para a casa de sua mãe no seu ano sabático. Acho que, de uma forma ou de outra, todos acabamos voltando para nossas primeiras casas quando as coisas apertaram.
– Eu acho que nem lembro mais como se lava roupa. – Brincou, abraçando o próprio corpo.
A chuva diminui gradativamente, porém o frio da chuva se juntava com o da noite que se aproximava, deixando tudo ainda mais cinza. Ficamos em silêncio por um tempo, observando a forma que a chuva caia e como a melancolia nos atingiu novamente mesmo após o pequeno momento de descontração.
Eu sabia que nosso pensamento já havia voltado para Dana. Era como minha vida funcionava atualmente. Eu fazia tudo que tinha para fazer, falava o que tinha que falar, mas no fim, meu pensamento inteiro se resumia a ela. E nada mais.
– Você está bem, Julie? – Estranhei sua pergunta e o olhei, confusa. Ele já havia me perguntado aquilo assim que nos encontramos no mesmo dia.
– Sim. – Respondi e voltei a olhar para frente. Ouvi suspirar alto ao meu lado e entendi a pergunta. Ele queria saber a verdade.
– Você quer saber porque eu vim? – Virei o rosto para olhá-lo. Ele mantinha o rosto próximo ao meu e olhava em meus olhos fixamente. – Claro que vim por Dana e tudo mais, todos estão aqui para apoiar ela e eu também. Mas no fundo, eu vim por você. – Fechei os olhos, absorvendo todo o conforto que as palavras de carinho dele me proporcionaram. – O tempo todo, eu só queria saber como você estava, Julieta. – Confessou.
– Eu acho que... – Mordi os lábios tentando encontrar palavras e engolir o choro que quase me sufoca de tão forte que queria ouvir – Estou com medo, . – Suspirei, lagrimando. Ele limpou minhas lágrimas fujonas com o dedo indicador, olhando-me pesaroso.
– Eu também estou, mas estou aqui com você. Eu sei que você não vai parar de apoiar e ajudar todo mundo, mas me deixa ser seu suporte enquanto isso, eu juro que aguento o tranco. – Funguei, dando uma risadinha. Passei a mão pelo seu rosto, apertando de leve sua bochecha.
– , eu sinto sua falta. Você sente a minha falta? – Murmurei, chorosa, olhando-o enquanto ele sorria amável.
– Só um pouquinho.
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É curioso como algumas coisas na vida funcionam. Deve existir alguma ciência social que explique algumas coisas, deve ter existido algum sociólogo que explicassem em palavras difíceis o que era uma relação social e como ela se caracterizava. Deve existir um porquê, às vezes de forma inconsciente, de nos unirmos a uma pessoa ou um grupo para a vida toda sem sabermos como exatamente deu certo.
Mas deu certo, de alguma forma. Mesmo com tudo indo contra, mesmo com o tempo, com as idas e vindas de relacionamentos, com as brigas e, principalmente, com a distância.
Se pensarmos bem, meu grupo de amigos – desde que nos conhecemos – passamos mais tempo separados do que todos juntos. Alguém sempre estava longe, alguém sempre estava viajando ou morando em outro lugar. E mesmo assim, era como se estivéssemos juntos todos os dias.
– Jack, eu imploro, cala essa boca! – Cam pegou um dos travesseiros e atirou no loiro.
– Fala sério, é claramente CGI! – Reclamou, com a boca cheia de batatas fritas.
– O cara jogou um carro do prédio, Jack. – acrescentou em tom de obviedade.
– E limpa essa boca, toma. – Vic jogou um lenço de papel no marido, nos fazendo rir.
Estávamos espalhados pelo chão do quarto de Dana enquanto lanchávamos. Dana tinha que estar em jejum, mas fez questão de comprar um banquete recheado de hambúrgueres e batatas fritas para nós. Ela estava tão fraca que não havia saído da mesma posição que a colocamos deitada e eu podia ver que ela estava se esforçando para interagir. Ela e Vic – que estava deitada ao seu lado – usavam o corpo uma da outra como apoio. Vic estava no auge de seus oito meses e mesmo que implorássemos para que a mulher pegasse leve nos esforços, ela não ligava muito. Porém, vez ou outra, ela também cansava e pedia suporte.
– Com licença. – A enfermeira chefe do setor entrou no quarto sem bater. Já vinha com uma expressão severa, mas sem conter o sorrisinho. A mulher já nos conhecia por sempre estarmos aos arredores do quarto de Dana e eu arriscava dizer que ela até nos apreciava. De vez em quando, eu a pegava rindo de algum gracejo espalhafatoso de Jack. – Ouvi dizer que é nesse quarto que minhas enfermeiras estão sendo chantageadas e subornadas.
– Ah, sra. Diaz! Agora não! – Jack lamentou-se, jogando a cabeça para trás e fazendo todo mundo rir.
– Subornamos uma ou outra com hambúrguer e fritas, não é nada demais. – Balancei as mãos, explicando.
– São quase onze horas da noite, senhores! A minha paciente precisa descansar. – Reprovou. Ela apoiava as mãos na cintura e mantinha uma pose quase maternal.
– Alguém ainda tem privilégios para usar? – Cam questionou, rindo.
– Eu já usei a fama. – citou, brincando e levantando a mão.
– E eu o dinheiro. – Dizzy acrescentou, fraca.
– Eu já usei a lábia, Cam usou a beleza... – Contabilizei, risonha.
– Nosso último recurso foi a gravidez, acho que chegamos ao fim aqui. – Jack riu, apontando para a barriga de Vic.
– Então é isso. Vamos lá, família! Circulando... – A enfermeira loira começou a nos enxotar do quarto, visto que tínhamos ultrapassado o horário de visitas de forma extrema.
Todos levantaram e, entre gritos e gargalhadas, foram até ela, enchendo-a de abraços e beijos. Dana, com dificuldade, sentou-se na cama para receber melhor todo o amor que estava recebendo. Engoli em seco enquanto assistia a cena. Jack a fazia rir tanto, a amava tanto... Eu tentei afastar da minha mente a concepção daquela ser a nossa última vez, não queria “entregar os pontos”, mas estava cada vez mais difícil.
– Cuida bem desse bebê. – Dizzy murmurou, beijando a barriga de Vic.
– Não se preocupe, ela cuida bem de mim. – Jack comentou, distraído, novamente nos fazendo rir.
e Jack ficaram agarrados a ela por uns segundos, repetindo o quanto a amavam e prometendo que tomariam um bom porre depois que tudo aquilo acabasse. Cam se aproximou e o olhar cúmplice entre eles dizia tudo e nada ao mesmo tempo. Ele agachou-se, falando algo em seu ouvido que fez seus olhos marejarem e olhá-lo meio surpresa, mas em seguida ela riu e assentiu. Ele avisou que estaria lá fora caso ela precisasse e afastou-se, piscando para ela.
Eles também passaram por mim, despedindo-se, já que eu era sua acompanhante oficial e ficaria ao seu lado até o horário da cirurgia.
– Dana, é o seguinte. prometeu que compraria uma casa na praia quando saísse daqui. Não estrague isso para gente, garota! – Jack brincou, apontando o dedo e sendo empurrado para fora do quarto por Vic. Eu imagino quantas cervejas ele bebeu escondido para que não estivesse surtando neste momento.
– Eu não prometi nada! – negou, quase indignado.
– E sim, eu sei que você é rica, mas o cara tem uma boa fortuna da porra e... – Cam acrescentou, reflexivo.
– Eu não tenho nada! – O ex-cantor negou novamente como uma criancinha, fazendo Dana gargalhar.
– Eu não sei se você sabe, mas uma vez, ele e a ex-namorada alugaram uma casa de praia no verão passado e não fomos convidados... – Jack contou em tom de segredo, lembrando do dia em que eu e comemoramos nossos seis anos de namoro em uma casa no litoral, apenas nós dois.
– Babaca! – brigou, mas gargalhou.
– Puta merda, você é insuportável! – Resmunguei, batendo em seu braço e o empurrando na porta.
Era uma puta algazarra. Todos falavam alto, rindo e dizendo palavrões como se estivéssemos no nosso primeiro apartamento, onde não tínhamos reservas para nada. Eu fiquei contente, era disso que Dana precisava. Era como se estivéssemos apenas nos despedindo após um dia normal de farra. E foi bom vê-la rindo, apertando a barriga tentando se controlar e também parecia aliviada e feliz de estar ali.
– Estarei na recepção. – Cam murmurou ao passar por mim e eu assenti. Eu sabia que ele não sairia dali, mesmo que eu fosse a acompanhante oficial. Suspirei quando o silêncio recaiu sobre o quarto novamente.
Ajudei Dana a deitar, cobrindo-a com a manta enquanto ela ria sobre o quão bagunceiros nossos amigos eram. Tudo me remetia ao passado e logo eu estava lembrando como sempre acabávamos juntas após qualquer festa, comentando os acontecimentos da noite. Parecia o mesmo.
– É tão bom ver Jack e Vic juntos de novo. – Comentou, sorrindo.
– Sim! Aquela época foi terrível. – Relembrei o término do casal mais engraçado que eu conhecia.
– Foi péssimo. Quando Cam e eu podíamos, finalmente, ter encontros de casal com vocês, todos decidiram se separar. Que saco! – Dei risada, balançando a cabeça. – Por falar nisso, você e ...?
– O quê que tem? – Questionei, confusa.
– Vocês conversaram?
– Sobre? Não temos nada para resolver, ué. – Esfreguei a bancada com força, fazendo o lenço de papel se rasgar sem que eu percebesse.
– Julie. – A mulher me olhou, insistente. – É bastante nítido o quanto você e ele ainda se gostam.
– Bom, nunca deixamos de nos gostar, Dizzy. Terminamos justamente por que nos amávamos. – Expliquei, sentida.
Comecei a recolher o lixo que aqueles animais haviam deixado espalhado, empilhando as caixas e separando as latas de refrigerante. Dana observava atenciosamente meus passos.
– O que foi? – Perguntei e ela negou com a cabeça.
– Eu amo todo mundo, mas amo quando ficamos sozinhas. – Sorri, emocionada. Logo desviei o olhar, recolhendo os papéis no chão. – E eu também queria muito saber por que você está com raiva de mim.
– Não estou... – Respondi, estranha.
– Sim, você está. Mal consegue me olhar e não é porque eu estou feia igual o diabo. – O que estava bem longe de ser verdade. Dana jamais conseguiria ser feia. Os cabelos curtinhos antes de chegar ao ombro pareciam mais uma tendência da moda, não consequência da doença. Até seus olhos ainda eram brilhantes, mesmo com a pele pálida. – Mas tudo bem. Sentirei sua falta.
– Não se preocupe, você estará sedada durante a cirurgia e não sentirá tanto. – Desconversei, impaciente. – Quando acordar, eu estarei por aqui.
– Você sabe o que eu quis dizer. – Insistiu.
– Sei? – Ironizei, jogando as coisas no lixo e indo sentar na poltrona.
– Julie...
– Dana. – Cruzei os braços, esperando que a mulher falasse algo mais.
– Fale comigo, Julie. Me fala o que está incomodando você. – Pediu, enfraquecida. Respirei fundo e resolvi chutar o balde.
Eu nunca fui de ter reservas e pendências para falar com minha melhor amiga, não é agora que eu teria.
– Eu sei bem o que você está fazendo. Todos sabem, Dana. – Proferi, ríspida. Ela ergueu uma sobrancelha, confusa. – Você quer morrer. É por isso que você está fazendo essa cirurgia, sabe que não tem muitas chances de sobreviver. Você está torcendo para que tudo dê errado, não é?
Desabafei e mencionei o elefante na sala. Todos sabiam, mas ninguém havia mencionado nada. Todos entendiam. Era difícil, viver com câncer era difícil e as coisas só estavam piorando. Dizzy mal conseguia andar, tudo a machucava e ela não estava vivendo, apenas sobrevivendo.
– Então é isso. É por isso que você está brava. – Concluiu, apática.
– Sim, estou com muita raiva. – Confirmei, batendo o pé no chão e levantando novamente. Usando toda a energia acumulada para arrumar o quarto que, sem o lixo, sequer estava bagunçado. – Tenho raiva que você tenha decidido isso sozinha.
– Bom, a vida é meio que minha, então... – Satirizou.
– Bom, isso é meio que egoísmo. – Rebati, rude.
– Como diabos isso se torna egoísmo? – Ela riu, desdenhando da minha fala.
– Você sabe que vai morrer! – Vociferei, raivosa. – Isso para mim é suicídio!
– Eu vou morrer de uma forma ou outra, Julie. – Falou, calma demais.
– Não é assim e você sabe disso. Você pagou pela sua morte! – Fui dura novamente. Não porque eu queria, mas sim porque eu precisava de uma reação incisiva dela. Não queria aquela aceitação.
– Poucas pessoas têm esse privilégio. – Comentou, rindo fraco.
– Não é possível! – Resmunguei, passando a mão pelo cabelo. – E o resto de nós? Seus amigos, sua família? Temos que ficar sentados assistindo? E eu, Dana? Eu, que parei minha vida inteira nos últimos meses por você, o que diabos eu vou fazer? – Questionei, cruzando os braços, irritada. Talvez eu estivesse sendo dura, mas era o que eu pensava e sentia.
– Acho que você está surtando pelos motivos errados. – Insistiu.
– Não, acho que passei a vida surtando pelos motivos errados quando, na verdade, esse momento é o único que eu deveria surtar de verdade. – Resmunguei, ainda irritada, porém, sentindo toda a minha fragilidade aflorada, principalmente após minha tarde com .
– Posso contar um segredo? – Murmurou.
– Não, estou com raiva de você! – Choraminguei, recusando de forma infantil, mas que a fez rir.
– Você não manda em mim, então vou falar de qualquer jeito. – Informou, atrevida. – Você sabe que eu não tenho religião, mas tenho algumas crenças. Eu acredito em um paraíso, onde não existe inferno. Apenas um lugar de redenção, elevação espiritual e essas merdas. Acho que após a morte é para lá que eu vou. Isso tem me incomodado. – Confessou.
– Por que? Tem muitos pecados para pagar? – Brinquei, fungando e ela riu.
– Também. – Concordou, rindo. – Mas eu fico pensando em Londres e acho que vai ser como quando me mudei para lá. Um lugar completamente novo, onde eu não vou saber aonde ir ou o que fazer e, principalmente, estarei sozinha. Sem você. – Suspirei, virando a cabeça para olhá-la. – Vai ser muito estranho estar lá sem você ao meu lado.
– Se servir de conforto, me sentirei da mesma forma aqui. – Garanti, entristecida.
– Não serve. – Rimos novamente. – Mas vai ficar tudo bem, você nunca vai ficar sozinha, sabe disso.
– Eu não sei o porquê de estarmos agindo como se fosse o fim. – Levantei, sentando em frente dela. – A cirurgia pode dar certo, não é? – Questionei, de forma inocente.
– É claro... – Ela concordou, mas sei que foi apenas para me acalentar.
– Dana, por favor... – Me preparei para implorar novamente para que ela não entrasse naquela sala de cirurgia, mas prevendo o que viria a seguir, a mulher me interrompeu.
– Julieta. – Chamou, sentando com dificuldade e me olhando, consternada. – Eu fiz cocô nas calças. Não uma, nem duas vezes. Várias. Você limpou a minha bunda incontáveis vezes. – Engoli em seco, sentindo as lágrimas descendo pelo meu rosto e dessa vez, eu não impediria. – Eu mal consigo andar, não consigo comer por essa sonda sem vomitar, meu corpo dói de uma forma descomunal. Eu acho incrível quem é forte o suficiente para lidar com essa doença maldita, mas eu não sou. Não mais. – Ela respirou fundo, procurando fôlego para continuar. Notei que seus olhos também lacrimejavam. – Amiga, eu estou tão, tão cansada...
Funguei, sentindo meu corpo inteiro tremer e tudo dentro de mim parecia vidro quebrado. A tristeza, a dor e o desespero me abateram. Meus lábios tremiam e eu chorava quase desesperadamente, pois eu sentia que jamais conseguiria parar.
– E o pior, ou o melhor, é que você entende. – Neguei com a cabeça, desesperada, procurando recompor meu fôlego, mas toda vez que eu respirava, saia um soluço. – No fundo, você sabe que entende. E até concorda porquê... Você está tão cansada quanto eu, Julie. Estamos exaustas, precisamos descansar.
Sentia meu coração bater descompensado por conta do choro que me acometeu de forma rápida e intensa. Cobri meu rosto com as mãos, sem lembrar a última vez que eu tinha chorado daquela forma tão infantil.
– O que eu vou fazer? Ah, meu Deus! O que eu vou fazer agora? – Desesperei-me, colocando a mão entre meus cabelos. Eu não conseguia ver o mundo sem Dana ao meu lado. Até quando estávamos afastadas, eu ainda estava bem porque eu sabia que ela estava ali por mim.
– Ei, vem aqui... – Chamou, compadecida, limpando as lágrimas do rosto e esticando os braços, que me recebeu em um abraço carinhoso e me acolheu em seu colo.
– Dizzy, eu posso viver de qualquer jeito, menos sem você. – Chorei, apoiando minha cabeça em suas pernas enquanto ela acariciava meus cabelos.
– Eu preciso que você preste bem atenção no que eu vou falar, ok? – Eu chorava tanto que sequer conseguia ficar com os olhos abertos. Senti ela limpar meu rosto com as mãos e encostar os lábios na ponta do meu nariz de leve, depositando seu habitual ato de amor. – Não há nada que eu me arrependa. Caramba, Julieta. Nós vivemos! E como vivemos. Você foi a responsável direta por me dar uma vida incrível.
Dana ficou murmurando e cantarolando coisas desconexas em meu ouvido enquanto eu chorava, desolada. Aceitar a morte de alguém querido era um sentimento terrível de impotência e desespero que eu não desejava para absolutamente ninguém no mundo. Todo dia eu me questionava do porquê nós estarmos passando por aquilo. Por que eu? Por que ela? Por que a gente? Tinha um porquê? Será que esse havia sido o propósito da minha existência? A vida com ela ou a vida após a vida dela? Não importava. Eu ficava procurando justificativas e nada era o suficiente. Nunca seria.
Dana Tomanzio tivera tantas histórias de amor falhas quanto eu. A única história de amor dela que havia dado certo era a mesma que a minha. A nossa história de amor.
De alguma forma – entre homens, bebidas, brigas, empregos, outras amizades e até quilômetros de distância – tinha dado certo. E eu sei que ela me amaria até o fim da sua vida, literalmente.
Eu não sei em que momento meu choro consternado transformou-se em um cochilo esgotado, mas acabei dormindo nos braços da minha melhor amiga. Despertei ao sentir o toque frágil de Dana em meu rosto, fazendo-me levantar rapidamente. Ela estava deitada de lado, com os olhos fechados e com a mão pousada no peito, respirando com dificuldade.
– O que houve? – Questionei, preocupada, olhando sua feição abatida.
– Está difícil respirar. – Murmurou, a voz estava tão fraca que pareceu um sussurro.
– Quer que eu peça o oxigênio para a enfermeira? – Ela assentiu, concordando de leve com a cabeça. – Volto já.
Levantei da cama e fui até a porta, olhando-a novamente antes de sair e suspirando. Fui até o posto de enfermagem, informando à plantonista que Dana estava com dificuldade de respirar e ela prontamente foi em busca de um cateter de oxigênio para instalar em minha amiga.
Resolvi ir até a sala de estar na recepção, ver o clima lá fora e encontrar Cameron, mas a visão que tive quase me fez chorar novamente.
Meus amigos estavam todos sentados na sala de estar, um ao lado do outro. Victoria estava com a cabeça no colo de Jack e as pernas em cima do , cobertos por uma só manta. Os três pareciam dormir, menos Cameron, que levantou a cabeça ao me ver entrando na sala e sorriu de lado. Parecia exausto, com olheiras profundas e o cabelo nunca esteve tão bagunçado. Olhei no relógio em meu pulso, estranhei a presença de todos ali, haviam se passado algumas horas desde que nos despedimos no quarto.
– Está tudo bem? – Perguntou, baixinho, temendo acordar todo mundo.
– Sim, ela só está precisando de um pouco de oxigênio. – Contei. Olhei para trás, a enfermeira estava entrando no quarto de Dana, me dando um pouco de tempo para conversar com Cam. – O que aconteceu? Por que todos ainda estão aqui? – Ele assentiu, mas pareceu infinitamente mais triste ao me responder em seguida.
– Ninguém conseguiu ir embora.
Engoli o choro, tentei ignorar o aperto no peito e fui até eles, sentando ao lado de Cam. Eu entendia, também não conseguiria sair dali se fosse o contrário. Respirei fundo, passando a mão no rosto, sentindo-o inchado e vermelho por conta do choro. Olhei em volta, observando o clima terrível que um hospital ficava durante a noite. Algumas luzes estavam apagadas, poucos profissionais estavam por ali e apenas meus amigos ocupavam a recepção do lugar.
– Você escreveu a carta? – Questionei, num fiapo de voz. Estava desesperada para que Cam falasse comigo.
Cameron sempre teve um certo problema em compartilhar suas aflições e depois do que aconteceu com Dana, o homem se fechou quase que completamente. Parecia um robô, agindo automaticamente, falando apenas quando era citado e quase não ria, nem chorava. Era como se ele estivesse vivendo um luto antes da hora.
– Sim. E você? – Sua voz trêmula fez com que meus olhos imediatamente enchessem de lágrimas.
– Não terminei, não consegui... – Respondi, frustrada. – Você quer ler? – Ofereci, ansiosa. Ele apenas assentiu lentamente. Retirei a folha de papel do bolso e antes de entregar em suas mãos, o adverti: – Você tem que chorar, ok?
– Julie! – Ele mordeu os lábios, forçando uma risada e negando com a cabeça.
– Estou falando sério! Cameron, olhe para mim. – Abaixei a cabeça, forçando-o a me olhar. Ele engoliu em seco, encarando meu rosto sério. – Você tem que chorar. – Entreguei o papel em sua mão, desviando o olhar no momento que vi seus olhos encherem-se de lágrimas.
Senti-me envergonhada por não ter conseguido terminar de escrever o que a minha amiga tanto pediu, mas eu simplesmente não conseguia sequer juntar 1+1. Ao meu lado, Cam fungou, limpando o nariz com a costa da mão.
– Você quer ler a minha? – Ofereceu, murmurando baixinho, ainda sem me olhar. Sem esperar resposta, tirou um pedaço de papel rasgado de dentro do bolsa da calça e me entregou.
Ao ler suas palavras, soube naquele momento que nunca mais seríamos os mesmos e era difícil dizer o quanto disso seria bom ou ruim. A única certeza que eu tinha era que nós (todos nós, mas, principalmente, eu e ele) nos recuperaríamos do que aconteceria após aquela maldita cirurgia.
Me senti pequena, me senti impotente e principalmente, me senti triste como nunca estive em toda a minha vida enquanto eu lia as cincos palavras escritas no papel rasgado.
“Dana Tomanzio de Baptista, casa comigo?”
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“VENDA. DOAÇÃO. FICAR”
O gosto do café desceu terrivelmente amargo pela minha garganta. Fiz uma careta, deixando a xícara no balcão e voltei minha atenção aos blocos adesivos. Decidi dividi-los da forma mais simples que encontrei para terminar aquela tarefa de forma mais rápida. Olhei em volta, descrente no fato que nosso apartamento acabaria daquela forma. Fragmentado e dividido em post-its.
Na primeira vez que entrei em meu antigo apartamento, aquele que eu costumava dividir com minha melhor amiga, eu chorei e jurei que nunca mais entraria naquele lugar de novo. Até uma mulher chamada Margarida me ligar e me informar que o apartamento que estava em meu nome não estava sendo usado há meses e precisaria ser alugado, mas os móveis ainda estavam lá dentro.
Primeiro, fiquei puta com e quase desliguei a ligação apenas para gritar com ele por não ter tirado meu nome do contrato de nosso antigo apartamento. Mas quando ela informou o endereço e citou o famigerado número 305, minhas pernas fraquejaram e eu me senti completamente perdida.
– Você acha que consegue fazer isso em quanto tempo? – A mulher loira que usava um terninho completamente fora de moda questionou, olhando meio enojada para os móveis cobertos de poeira.
– Quatro dias. – Respondi, secamente enquanto pregava um post-it de “vender” em cima do abajur quadrado e caro que ficava no canto da sala.
– Mas eu dei dois dias para os novos compradores. – Contou, demonstrando irritação.
– Não me apresse. – Informei, simplesmente. Senti que ela já estava impaciente com a forma ríspida com que eu falava, mas não liguei nenhum pouco.
– Sra. Cooper... – A interrompi, erguendo a mão direita.
– É “senhorita” – A corrigi, séria. – Não sou casada.
– Isso importa? – Questionou, irritada, cruzando os braços.
– Se quer usar pronomes de tratamento, use-os de forma correta. – Adverti, grosseira.
– Julieta! – A voz que vinha do banheiro me repreendeu, fazendo-me morder os lábios com força para impedir a mim mesma de responder outra grosseria. – É Margarida, certo?
– Sim, mas todos me chamam de Marga. Um apelido carinhoso que ganhei na faculdade... – Respondeu, mexendo nas pontas do cabelo loiro, piscando os olhos tal qual um desenho animado jogando charme para o personagem bonitão.
Eu sei que era bonitão e tudo mais, mas fala sério, eu ficava completamente irritada com as pessoas que perdiam totalmente o profissionalismo apenas para tentar um flerte com o cantor. Acontecia muito quando namorávamos e íamos nos lugares de forma profissional e era tratado pelas pessoas interesseiras – mulheres, em sua maioria – de forma muito antiprofissional.
– Marga, é que o apartamento tem valor extremamente sentimental para minha nam... amiga aqui, espero que você entenda que precisaremos desses dias, talvez até mais. Vamos viajar amanhã e estaremos de volta a cidade só na segunda. – explicou, pacientemente. Não pude deixar de notar que a palavrinha “namorada” quase escapou da boca do meu nam... do meu amigo.
Eu não julgava, eu também ainda sentia estranheza em apresentá-lo como amigo.
– Eu entendo, sr. . – A mulher exalou delicadeza ao falar, deixando claro que sabia muito bem com quem estava conversando. – Eu tentei entrar em contato com a outra proprietária, mas não tive sucesso. Eu não sei o que pode ter acontec...
– Ela morreu. – Respondi, colando outro post-it de “doação” na geladeira antiga.
Andei pela cozinha, procurando a classificação correta para aqueles bloquinhos em minhas mãos. Durante alguns segundos, o único som no ambiente foi o barulho de meus saltos no chão do lugar. Estranhei o súbito silêncio, então olhei para trás, encontrando e a corretora me olhando de forma quase consternada.
Senti vontade de vomitar.
– E-eu sinto... – Virei de costas novamente antes que ela completasse a frase. Colei um “ficar” na cafeteira Expresso Prima. Era uma ótima cafeteira. E cara também. “Uma das extravagâncias de Dana”, pensei.
Era difícil até pensar em seu nome.
A minha vida pausou no dia daquela cirurgia, mais especificamente no momento em que o médico saiu pela porta do bloco cirúrgico e nos olhou de forma pesarosa. Foi quando descobrimos que as coisas dentro dela estavam tão fodidas que, mesmo sem a realização da cirurgia, ela logo nos deixaria. A mulher literalmente olhou para a morte e disse: “se for pra morrer, quem escolhe o dia sou eu, Dona Morte!”.
Talvez, parafrasear Brás Cubas seria a única forma de explicar o que aconteceu comigo após aquele dia. No primeiro mês, eu quis me matar. No segundo, eu não saí de casa durante um mês inteiro e por conta disso, quase perdi meu emprego. No terceiro mês, eu chorei todos os dias. No quarto mês, eu senti muita falta de Jack, então passei duas semanas com ele, Vic e nossa pequena Diana. No quinto mês, eu decidi viajar, então pedi férias. Diretamente para o dono da Editora Hall, Toni, pois o Departamento Pessoal não estava muito feliz com minhas faltas frequentes.
Fui a Paris. Fui a Notre-dame, passeei pelo rio Sena e conheci a porra da Torre Eiffel. E adivinhe só? Chorei quase o tempo inteiro. Paris foi o único destino que eu e Dana não conseguimos conhecer juntas. Voltei antes da hora e como uma criança assustada, corri direto para a casa de meus pais. Passei uns dias lá, apenas tentando me reerguer, tentando me reconstruir.
As longas caminhadas com Pat, as sessões de filmes com Clarissa e as horas que eu passava com meu amado sobrinho Ben acabaram me deixando pronta. Foi uma surpresa que as coisas mais simples da vida, como tomar café na porta de casa com meu pai e assistir novelas antigas com minha mãe, foi o que me deixou pronta para retornar a vida, para sair do pause.
No dia que voltei a HW, o único que me esperava no aeroporto era . Com um pequeno buquê, um sorriso tímido e alguns fãs indiscretos tirando fotos do rapaz, ele me abraçou ternamente. Cheirou meu cabelo, pegou em minha mão e me levou para casa. De um jeito que simplesmente parecia certo.
– Eu vou deixar o meu cartão com você, senhor. Caso precisem de alguma coisa, qualquer coisa... – Rolei os olhos, negando com a cabeça, insatisfeita com a indiscrição da mulher.
– Ah, sim, claro. P-pode deixar. – respondeu, sem graça, coçando a parte de trás da cabeça.
Fui até a porta e abri, esperando a mulher passar por ela. Encarou-me inconformada com minha má atitude, mas novamente, não liguei.
– Srta. Cooper. – Cumprimentou-me, de nariz empinado.
– Marga. – Forcei um sorriso fechado. Bati a porta quando a mulher passou, bufando. – Ei, você.
Fui até no meio da sala e estiquei a mão. Ele me olhou confuso, sem entender minha exigência. Impaciente, coloquei a mão em seu bolso e puxei o cartão de lá, rasgando no meio e jogando no chão.
– Você não precisa disso. – Informei, voltando a andar pela sala. – Eu tenho o número dela no celular, caso o Sr. precise de qualquer coisa. – Ele gargalhou, balançando a cabeça.
– Ciumenta. – Murmurou.
Dei de ombros, ignorando o comentário. Passeei pela sala, tentando ver os objetos apenas como objetos e não como itens de profunda importância para mim. Passei o dedo pela mesinha de centro, que havia retornado para a sala após muita implicância minha. Sorri, lembrando de todos os jantares, almoços, bebidas e até pés que já tinham passado por ali.
Parei em frente as janelas. Nossas lindas, grandes e maravilhosas janelas. A vista não havia mudado, mesmo com as odiosas grades que agora estavam lá. Ainda era lindo olhar de cima a cidade em movimento. Encostei a mão no vidro, sentindo meu peito se aquecer de uma forma diferente.
Que puta vida nós tínhamos ali.
Fechei os olhos. Eu quase conseguia escutar nossas vozes, nossas risadas e as tantas histórias ecoando pela casa. Senti vontade de chorar como o tempo não sentia. Mas dessa vez, eu não senti tristeza, nem raiva ou dor. Eu me sentia muito, muito grata pela oportunidade que eu tive de ter conhecido Dana, e de alguma forma estranha, sob algum plano bizarro do universo, aquela garota incrível havia se tornado minha melhor amiga. E caramba!, moramos juntas, viajamos, dançamos, bebemos, fizemos absolutamente tudo que queríamos.
Que puta vida!
– Ei, tudo bem? – questionou, colocando as mãos em meu ombro. Não respondi, apenas virei de frente para ele. O homem sorriu de leve ao notar meus olhos marejados. – Quer acabar logo com isso? Aí vamos pegar a estrada. – Assenti. – Aqui. Sofá? – Apontou.
– Venda. – Entreguei o adesivo a ele.
– Televisão? – Perguntou de novo, apontando para o objeto.
– Umm, acho que doação. – Avaliei. – Está bem antiga, pode ser difícil arranjar um comprador.
– Ok. – Ele colocou o post-it de “doação” na TV e virou-se de frente. – Mesa? – Apontou para a mesa de centro.
Suspirei, confusa. Eu amava a mesinha, estava em ótimas condições, mas eu não sei se conseguiria ficar com ela. Como pode um objeto carregar tantas lembranças e emoções? Era um pedaço de madeira, pelo amor de Deus.
– Eu não faço ideia. – Tentei rir sem realmente ter vontade. também riu e disse que deixaríamos para decidir depois.
Continuamos na saga cozinha/sala por alguns minutos, tentando organizar o máximo de objetos possíveis. Jogamos algumas correspondências fora, colocamos as louças em caixas e decidimos doar a maioria. Minha mãe conhecia alguns abrigos que estavam precisando desse tipo de doações e eu também conhecia bastante gente no Centro Comunitário, seria fácil conseguir novos donos.
– Vamos ser rápidos, ok? – O cantor me assegurou quando paramos em frente a primeira porta do corredor. O olhei temerosa, sentindo minha respiração começar a falhar. – Prometo. – Ele acariciou minha nuca suavemente.
Fazia quase dois anos que eu não entrava no quarto de Dana e eu não fazia ideia do que eu encontraria ali dentro. Engoli em seco e entrei no quarto, dando de cara com a maior bagunça. Exatamente do jeito que ela havia deixado.
– Ai, Deus. – Suspirei, tocando em algumas peças de roupas jogadas em cima da cama. – Eu não deveria... É injusto que eu tenha que fazer isso.
– Seria injusto se não fosse você. – Comentou, colocando as mãos no bolso e olhando em volta, também parecendo tão sensibilizado quanto eu.
Suspirei e fingi ter forças o suficiente para fazer aquilo. Comecei a distribuir os adesivos nos objetos, sem pensar muito, apenas querendo acabar o quanto antes. Tinha bastante coisa. Os armários, a penteadeira e a estante de madeira na parede seriam os objetos mais difíceis de serem cedidos. Alguns eu achava melhor vender e dar o dinheiro a Balcio, mas a maioria iria para a doação. Até porque Balcio também não ficaria com o dinheiro.
Fui até a mesa de vidro ao lado de sua cama e me ajoelhei em frente a peça delicada. Em cima da mesa estava sua vitrola antiga, aquela que tocou tantas vezes e trilhou nossas vidas durante maior parte do tempo que vivemos ali. Passei a mão no disco de vinil que ainda estava ali. Para falar a verdade, foram poucas as vezes que aquele saiu dali. Let It Bleed dos Rolling Stones.
– Acho que encontrei. – Sorri de lado, tirando o disco da vitrola e procurando a capa na caixa que ficava embaixo da mesa, onde ficavam o resto de seus vinis.
– O que? – Perguntou, curioso.
– O presente de aniversário do Cam. – Apontei, sorrindo. Ele iria gostar, seu aniversário seria no dia seguinte e nós estávamos nos preparando para comemorarmos na casa de Jack, na cidade vizinha.
Cameron também se isolou e quase não falava com o resto de nós. O fotógrafo enfrentou uma depressão quase sozinho e era horrível vê-lo daquela forma, mas nós entendíamos. Ele perdeu um de seus maiores amores, talvez a única história de amor que tenha vivido.
Ele teria continuado a viver só, se não fosse , insistindo para que nos encontrássemos novamente. Seria a primeira vez que estaríamos juntos de novo, sem Dana. E antes mesmo do encontro acontecer, já estava sendo absurdamente terrível. Todos sabíamos que para manter nossas amizades de forma saudável – o que era prioridade para nós – teríamos que quebrar o gelo e nos vermos.
Naquela noite, nós tentamos fingir que nada havia acontecido, mas não deu certo. Cam não aguentou e chorou como nunca em nossa frente e acabamos chorando todos juntos.
E nós precisávamos daquele momento para chorarmos e celebrarmos nossas dores juntos, como deveria ser.
– Olha isso. – apontou para a parede, próximo a mesa do computador de trabalho dela. – Que amor!
Aproximei-me de onde o homem olhava e sorri. Estavam lotadas de fotos nossas, com alguns bilhetes e pequenas poesias escritas no canto das fotos. correu o dedo entre as fotos, sorria emocionado e isso acabou me emocionando também.
Meu ex-namorado realmente segurou as pontas enquanto todos nós definhamos de tristeza. foi nossa cola, foi quem nos manteve juntos. Ligava, mandava mensagens e nos obrigou a nos vermos pelo menos uma vez no mês desde o falecimento de Dizzy. E durante esse tempo todo, eu só o vi chorar uma vez.
– Ah, eu amo essa foto! – Exclamei, pegando a foto de Jack e Dana na cachoeira há anos atrás. Eles riam, o sol brilhava por trás dos dois e a foto havia sido clicada por Cam, então, é claro que estava ótima. Peguei outra foto de Dana e Cam se beijando na frente da televisão, imitando o casal na tela. Chandler e Monica.
– Isso é muito estranho. – Comentei, suspirando. – É como se ela estivesse fazendo uma longa viagem e logo vai voltar para casa.
– É ridículo, mas às vezes me pego procurando o número dela no celular, para mandar uma mensagem, ligar... Aí eu lembro que... – O cantor soluçou, abaixando a cabeça e esfregando os olhos. Meus olhos marejaram novamente. Acariciei seu cabelo e me estiquei para beijar sua bochecha. Não havia muito o que eu pudesse falar, sequer sabia como confortá-lo. Acho que era impossível.
Haviam poucas fotos nossas ali, já que eu nunca fui muito fã de câmeras, mas ela e Jack eram campeões de fotos na parede. As mais inúmeras selfies divertidas e fotos lindas em paisagens diferentes. Peguei outra foto de e Dana, no casamento de Jack. Estavam abraçados e pareciam um casal, como sempre.
– Caramba, olha como vocês são bonitos. – Entreguei a foto, fazendo-o rir. – Você devia ter namorado ela. – Provoquei.
– É, eu devia. Mas sabe como é, acabei me apaixonado por outra. – Encarou-me, divertido.
– Você é um idiota. – Dei risada, beliscando seu ombro e retornando para a minha função.
Perdemos uma boa parte da tarde de sexta dentro daquele quarto, embalando e jogando em caixas as coisas dali. Ainda havia muito para embalar na sala, então decidimos deixar para a segunda, pois estávamos famintos e nós ainda tínhamos que pegar estrada até a cidade vizinha. Quando saímos de lá, entramos no banheiro, mas não havia muita coisa a se guardar, a maioria eram produtos vencidos, então foi tudo para o lixo.
– Acho que é só, vamos deixar o resto para semana que vem. – fechou a porta do banheiro, com um saco em mãos. – Vamos para casa?
– A minha ou a sua? – Questionei, indo até o meu próprio antigo quarto.
– Onde tiver comida. – Informou, rindo e me seguindo.
– A sua, então... – Comentei, estranhando muito ver o meu quarto daquela forma.
Estava completamente vazio. Laura, a garota que morou ali a alguns anos, havia se mudado já tinha algum tempo, então o quarto estava desocupado. Entrei no cômodo, achando bizarro como parecia que eu havia acabado de sair dali, mas na verdade, faziam anos que eu não entrava lá.
– Estranho, né? – comentou atrás de mim. – Olha só, Laura não apagou minha música! – O homem foi até um canto da parede, apontando para algumas palavras rabiscadas ali. Sorri, lembrando daquele momento em nossas vidas.
estava no início de sua carreira e transpirava música naquele tempo. Em uma das noites que passamos juntos, o rapaz não conseguiu encontrar um papel a tempo antes de vomitar palavras e rimas, então usou minha parede como rascunho.
– Deve ter achado conceitual. – Dei de ombros, rindo e me aproximei.
“and you're making the typical me, break my typical rules”
Era a frase que iniciava a pequena estrofe rabiscada no espaço onde costumava ficar minha estante de livros. Sorri de lado, me forçando a ter em mente que o cara ao meu lado era meu ex. – É sobre mim? – Questionei, brincalhona.
– Uma música escrita na parede do quarto da única garota que eu namorei por muito tempo. – Fingiu ponderar, acariciando levemente a barba por fazer. – Eu não sei, o que você acha? – Dei risada, negando com a cabeça.
– Sobre nós, eu nunca sei o que achar. – Respondi, sincera. Suspirei, abalada com meu próprio comentário impróprio, acariciei seu ombro de leve e me afastei.
Encarei a parede descascada, com metade do papel de parede moderno que Laura havia colocado rasgado ao meio. Puxei a pontinha, tendo um breve vislumbre da minha antiga parede roxinha. Viajando no tempo, nem notei que deixei tempo demais com seus próprios pensamentos, o que novamente, provou-se ser um perigo. Ele estava com o celular na mão, digitando de forma rápida e concentrada.
O analisei por alguns segundos antes que sua atenção voltasse para mim. Sua feição estava diferente, como se estivesse vendo algo pela primeira vez, como se estivesse fazendo uma grande descoberta.
– Nós deveríamos transar aqui. – Falou como se estivesse comentando sobre o clima lá fora.
Ou não.
– E-eu... O quê? – Gaguejei um pouco, mas sequer consegui colocar em palavras a minha surpresa. – Você fumou alguma coisa?
– Não! É que o último sexo que esse quarto viu foi feito por Laura...? E nada contra ela e nem querendo queimar meu amigo, mas fomos obviamente os melhores que esse quarto já viu. – Comentou, guardando o celular e empurrando-me pelos ombros para fora do quarto.
– Cameron? Ela transou com Cameron? – Questionei, ignorando os absurdos e focando no que interessava, a fofoca que eu ainda não sabia.
– Bom, não era segredo, até Dizzy sabia! – Esclareceu enquanto apagava as luzes da casa.
– Eu não sabia! – Contei, indignada. – Eu vou só ignorar tudo que acabou de ser dito aqui. Vem, vamos comer. – Me dirigi até a porta, confusa.
– Tipo nós dois ou eu vou comer...?
– ! – Abri a porta com força e apontei para fora enquanto ele gargalhava. – Vaza! Anda, esse lugar deixou você meio abalado, saia.
– Bem... – Desligou a luminária da sala e foi até mim. Ignorando todo meu espaço pessoal e quase prendendo meu corpo contra o vão da porta, parou na minha frente, olhando em meus olhos. – Eu me apaixonei por você naquele sofá, naquela cadeira, naquela parede e até contra aquela janela ali. É normal que eu esteja um pouco fora dos trilhos.
E seguiu seu caminho, indo até o elevador e apertando no botão ao lado. E eu fiquei paralisada, com uma mão na maçaneta e a outra apertando a chave tão forte que eu já sentia um certo incômodo. O observei em frente ao elevador, parecendo tão sereno, como se não tivesse acabado de balançar o meu mundo inteiro.
Droga, . Sabe quantos dias eu demorei para fingir que estava te superando? Sabe quantas horas de livros e podcast de autoajuda eu tive que consumir para tentar te esquecer? E como se num passe de mágica, só por ter ficado sob a atenção de seus olhos nebulosos por três segundos, eu já estava totalmente rendida de novo.
Senti meu coração acelerar, ansiosa. Pigarreei, não querendo chamar sua atenção, mas conseguindo mesmo assim. Ele me olhou e ao notar o estado meio catatônico que eu estava, sorriu de lado. Não convencido ou algo assim, apenas sorriu. Fechei a porta, apressando-me em trancar ao ouvir o sinal de que o elevador estava no nosso andar, sequer notei que prendi a barra do meu vestido na porta. Ouvi a costura estalando-se completamente na lateral da roupa quando tentei me afastar.
Completamente alterada e com meus pensamentos totalmente desorganizados, tentei sair do lugar mesmo com a porta ainda fechada, isso fez com que a costura lateral do vestido se abrisse quase que totalmente, deixando boa parte da minha perna e calcinha à mostra. Xinguei a porta e destranquei novamente. Abri com força sem imaginar que isso faria com que a costura da parte inferior inteira do meu vestido fosse junto com a porta.
Ouvi a gargalhada alta de atrás de mim e bufei irritada. costumava ser o desastrado, era que gaguejava e paralisava quando falava comigo, era o corpo dele que tremia quando eu o tocava. Quando diabos nós tínhamos trocado de papel?
– Puta merda! – Bradei, irritada. Olhei para baixo, encarando metade do meu corpo exposto. Levantei a cabeça, tentando não virar para trás e olhar no rosto de .
– Como isso aconteceu? – Questionou, ainda rindo da minha desgraça.
– Um vestido barato de beira de estrada, foi isso que aconteceu. – Resmunguei, abaixando-me para pegar o tecido.
Tentei amarrar o pano no que restava da parte de cima do vestido, mas paralisei ao sentir os braços de em volta da minha cintura. Ele amarrava o próprio casaco em minha cintura, mas o problema não foi esse.
O problema todo começou quando minhas costas ficaram superaquecidas pelo seu peitoral e quando seus braços fortes quase me fizeram prisioneira durante aqueles segundos em que ele passou amarrando as mangas de seu casaco. E ele respirou tão fundo que eu quase pude senti-lo cheirando meu cabelo. Mordi os lábios com força para me forçar a voltar à realidade. Acho que nem imaginou o que aquele gesto causaria em nós. Suspirei, segurando suas mãos no mesmo lugar quando ele fez menção de se afastar.
“Não, não, não. Julieta Young, solte esse homem agora!”, meu subconsciente berrava e eu, como uma mulher totalmente plena de suas faculdades mentais, o ignorei. Vergonhosamente, meu corpo trabalhava sozinho. Toquei em suas mãos, subindo para os pulsos, deixando-o com os braços presos em volta de mim. Senti minhas pernas tremerem quando ele deu um passo à frente, colando seu corpo inteiramente no meu.
É, não tinha mais jeito.
Num ímpeto de coragem, virei-me de frente para ele, sendo praticamente engolida por seus olhos curiosos e famintos. Senti as mãos dele se posicionando em minhas costas, tocando diretamente minha pele, que agora estava desprotegida do tecido.
– Isso é tão estranho. – Murmurei. Senti meus olhos arderem, senti vontade de chorar. Eu não sabia dizer se eu estava sentindo atração de verdade ou apenas saudades do meu ex-namorado e do que costumávamos ser.
– É... – Felizmente, ele concordou, parecendo tão confuso quanto eu.
– Não deveria ser estranho. Certo? – Subi as mãos pelos seus braços até chegar em seu rosto, tocando cada centímetro de pele, como se estivesse fazendo reconhecimento de terreno.
– Certo. – Concordou novamente. Uma de suas mãos foi até meu cabelo jogando-o todo para trás e deixando meu pescoço à mostra. Me arrepiei ao sentir a ponta de seus dedos correndo na curvatura do meu pescoço e indo até meu ombro.
Esse deveria ser o contato mais íntimo que eu e compartilhávamos em anos. A última vez que o abracei foi no enterro de Dana, após isso nosso contato não passava de toques distraídos e acidentais. Eu esperava mais, eu queria sentir tudo o que eu costumava sentir quando ele me tocava, mas agora eu não estava sentindo muita coisa além de receio. De ambos.
– Julieta, eu vou beijar você. Tudo bem para você? – Seus dedos percorreram meus lábios ao anunciar seu próximo passo. Engoli em seco, me sentindo mais nervosa do que na primeira vez que nos beijamos. Estávamos tão próximos.
– A gente pode não fazer isso no meio do corredor? – Murmurei, enfraquecida com a forma que os dedos dele se moviam no entorno de meus lábios e como acariciavam minha costa. iria me beijar.
– Se estiver tudo bem para você, a beijarei onde você quiser.
– Eu estou de calcinha! – Rebati, quase fugindo dos lábios dele que chegavam aos meus.
– Eu já vi você com bem menos do que isso. – Retrucou, suspirando. – Julieta, eu vou beijar você. Tudo bem para você?
– E-eu tenho vizinhos. – Eu sinceramente não sei porque estava inventando tantas desculpas.
Talvez, só talvez, fosse meu subconsciente tentando me avisar do que me aconteceu da última vez que sofri por este homem.
– Você não mora aqui. – Vi o desespero me abater quando notei que se preparava para se afastar de mim.
– O que você escreveu no celular? – Murmurei, curiosa, chamando. Ele deu uma risada anasalada, nossos lábios quase se tocavam e eu sentia meu corpo inteiro pulsar no ritmo das batidas do meu coração. Senti meu corpo sendo empurrado para dentro do apartamento escuro.
Quando bateu à porta atrás de si, o local ficou iluminado apenas pelos últimos raios solares do dia e ver seu rosto através das listras alaranjadas que vinham da janela era quase um lembrete. Um lembrete de como ele era bonito, de como ele (de alguma forma) ainda era meu. De como o mundo era outro quando estávamos juntos.
– Nada passa por você mesmo.
– Não vai contar? – Insisti.
– Eu apenas... Continuei a frase que já estava na parede. – Confessou, tocando na ponta dos meus cabelos longos.
– Achei que tinha parado com a música. – Ele assentiu e logo em seguida, deu de ombros.
– Eu também, mas estranhamente, me senti inspirado como a muito tempo não me sentia.
Foi assim que venci o medo e uni nossos lábios. No momento que nossas peles se encontraram e nós nos sentimos de novo, depois de muito tempo, nada ficou calmo e delicado. suspirou e entreabriu os lábios, deixando que eu o beijasse da forma que eu sequer sabia que queria. E se for pensar bem, eu sempre queria beijá-lo, seria estupidez dizer que não.
– Espera... – Ele sussurrou com a boca grudada na minha.
– Desculpa, e-eu... – Comecei a me retratar antes de sentir o peso da rejeição.
– Não! Não é isso... É que se você me beijar agora, acho que não tem mais volta. – Franzi a testa, totalmente confusa com a situação e absurdamente hipnotizada com a cor bonita que seus olhos ficavam quando se misturava com a luz do pôr do sol. – A gente vai ficar junto de novo, Julieta. Eu vou beijar você e acho que não vou conseguir fingir que isso não aconteceu. E você vai vender aquela casa e vou vender a minha. E nós vamos voltar a ter a nossa casa, nosso sofá, nossa sala. E vamos mandar toda a rotina, mágoa e qualquer coisa que tenha nos separado para puta que pariu.
Minha boca secou, engoli em seco, minha frequência cardíaca estava disparada, meu estômago se revirava dentro de mim e todos aqueles sentimentos adormecidos tentavam despertar. Eu só conseguia pensar em como aquilo estava acontecendo de maneira extremamente rápida. Mal tínhamos nos beijado e já tinha tanta certeza e firmeza no que queria que me assustava pensar que talvez tenha sido o que ele sempre quisera.
Entretanto, contrariando toda a minha racionalidade, no fundo do meu coração, eu sabia que era inevitável. Eu e éramos uma história de amor inevitável.
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Foi uma das viagens mais estranhas que já fiz na vida. Passar quase quatro horas dentro de um carro ao lado de foi agoniante, principalmente porque não sabíamos muito bem o que falar. Não sei dizer como ele estava se sentindo, mas eu estava confusa, envergonhada, preocupada e tensa.
e eu havíamos feito amor, de novo. Tivemos nossa segunda “primeira vez” no chão do meu antigo quarto, sendo iluminados apenas pelas luzes da noite que chegava. Em meio a tropeços e mãos trêmulas, o cantor tirou o que sobrou do meu vestido e se reconectou com meu corpo de uma maneira absurda. me conhecia, isso era fato. Mas senti-lo beijando meu pescoço, acariciando meu quadril e o resto das coisas que só ele sabia que eu gostava era incrível. Quase senti vontade de chorar.
Tê-lo em meus braços de novo era uma volta para casa. Nada havia mudado naqueles anos todos, ele ainda era meu abrigo preferido, meu abraço apertado e o cara que fez meu coração tremer na base. Tomei todo cuidado do mundo ao saborear cada centímetro de pele nova que eu ainda não conhecia, passeei com os dedos pelo seu rosto bonito e beijei seus lábios com doses extras de saudades e carinho.
Minha cabeça insistia em pensar nas consequências de nossos atos e meu coração lutava contra, querendo jogar tudo para o alto e avisar a que ele seria meu novamente.
– Estamos bem? – A voz rouca chamou minha atenção para dentro do carro de novo. Já estávamos chegando à casa de Jack e Vic, e eu admirava as luzes noturnas da cidade interiorana pela janela do carro. – Porque precisamos estar antes de entrar lá. Nossos amigos são perspicazes quando se trata de nós dois, você sabe.
– É, eu sei. – Dei uma risada baixa e mexi meus pés dormentes pela posição fixa por muito tempo. – Estamos bem. – Dei de ombros, totalmente fingida.
– Estamos? – Fiquei em silêncio, pensando na resposta. Se é que havia uma.
– Você falou sério? – Murmurei, olhando para baixo.
deixou bem claro suas vontades assim que o beijei. Ele queria tudo de novo.
As coisas que deixamos para trás quando a convivência dificultou e nossos desejos se tornaram opostos. Mas as coisas estavam diferentes agora. Eu era outra pessoa, tinha um novo emprego, tinha novos amigos, um novo corpo, uma nova casa, novos móveis. E eu não sei se havia espaço para meu antigo namorado na minha nova vida estável.
– Você sabe que sim. – Respondeu. Não precisei nem especificar, ele sabia exatamente o que eu estava perguntando. – Sei que vai ser complicado, difícil e talvez não dê certo, mas eu estou disposto a tentar de novo. Julieta, a parte mais feliz que tive na vida foi ao seu lado. Hoje senti como se fosse um jovem de novo e satisfeito como a tempos não me senti e eu não quero mais fugir disso. Quero ter coragem o suficiente para arriscar algo em troca da minha felicidade.
– Quer nos arriscar? Arriscar o que construímos separados? Arriscar nossa amizade? – Questionei. Minhas preocupações vazavam pelos meus poros, mas eu não conseguia evitar. – Não somos amigos, Julieta. Nunca fomos, você sabe disso, você me disse isso.
– Mas temos amigos em comum, . E se arriscarmos tudo de novo e fizermos merda? Como a nossa relação com o resto de nós vai ficar? – Passei a mão pelo cabelo, pensativa. Eu sei que minha preocupação era válida, mas eu sinceramente me sentia apenas procurando desculpas para o que talvez fosse inevitável.
– Acho que somos maduros o suficiente para lidar com isso. Antes não éramos, mas agora somos pessoas diferentes. Nós mudamos, crescemos, mas isso não quer dizer que devemos parar de ir em busca do que nos faz bem. Não fomos ruins um para o outro, a única mágoa entre nós dois foi o nosso fim.
Reconheci a fachada avermelhada da casa de Jack e Victoria quando dobramos a esquina. A conversa estava longe de acabar, eu sabia, mas ela seria adiada para fingirmos em frente aos nossos melhores amigos que não tínhamos transado algumas horas antes. Após estacionar, suspirou profundamente, apoiando os pulsos no volante.
– Não sei se estou disposta a lidar com isso de novo. – Fui sincera, sentindo meu coração apertar ao olhar seu rosto compreensivo. – Eu nunca deixei de amar você, . Até quando eu mais tentei, eu falhei. Mas me acostumei sem você. Estou com medo. Assustada com o quanto eu sou vulnerável perto de você. Já passaram anos desde que nos conhecemos naquele bar e eu ainda fico nervosa quando vejo você chegar. Sou uma mulher adulta, . Uma mulher que tem seu ponto fraco ao seu lado o tempo todo.
me olhava concentrado em cada palavra da minha explicação. Tentei ser o mais sucinta possível já que a confusão era parte de mim. Carinhosamente, o homem colocou as mãos em meu rosto e acariciou minha face com seus polegares, me olhando de forma terna.
– Julie, você é meu grande amor, mas eu não vou insistir. Quando você estiver pronta, estarei aqui. Serei vulnerável por você. – Sorriu, encostando os lábios levemente na minha testa. – Temos que ir, Jack está quase para explodir de ansiedade naquela janela. – Apontou com a cabeça para trás.
Dei risada ao notar Jack debruçado na janela de sua casa, olhando de forma curiosa para o carro parado em sua porta. Assenti, disposta a ignorar minha própria ansiedade e focar no que importava no momento, que era passar um tempo ao lado das pessoas mais especiais em minha vida. Ouvi um pequeno grito de comemoração de Jack quando saímos do carro.
– Acabei de ganhar três notinhas de 20 graças a você, Julie. É sempre um prazer! – Jack me abraçou assim que abriu a porta de sua casa para mim.
– Ué, o que eu fiz?
– Cameron achou que vocês viriam separados, eu apostei que viriam juntos. Quando apenas um carro chegou, soube que eu já tinha vencido essa! – Explicou enquanto beijava a testa de de forma exagerada.
– E eu perdi três notinhas de 20 graças a você, pequena Julie. Que estrago você causa!
Procurei de onde vinha a reclamação e encontrei Cam no sofá, arrumando as lentes de uma câmera. Gargalhei, empolgada, joguei minhas bolsas e o casaco nos braços de Jack e corri em direção ao meu grande amigo. Pulei em seu colo, abraçando-o pelo pescoço. Era sempre bom vê-lo tranquilo, foram muitos dias de reclusão e tristeza de Cameron, era reconfortante vê-lo entre nós tão tranquilo e leve, do jeito que deveria ser.
– Feliz trinta e poucos, lindo! – Comemorei, depositando vários beijos por todo o seu rosto. – Trouxe um presente para você. – Murmurei, mexendo em sua barba por fazer.
– Não precisava, você sabe. – Levantou-se do sofá, recebendo o abraço e felicitações de .
– Ei, olha só, seus tios chegaram! – Ouvi a voz animada de Victoria e já sabia com quem ela falava.
Andei quase hipnotizada em direção a minha amiga e o pacotinho em seus braços. Diana era um bebê rechonchudo de sete meses e meio, com cabelos finos que não se decidiam entre o loiro e o ruivo. Meu apego pela criança era tão grande quanto meu amor e dedicação que eu tinha pelo meu sobrinho. Estiquei meus braços, roubando a bebê para mim sem pensar duas vezes.
– Meu Deus, Jack! Como você conseguiu fazer uma criança tão linda? – Questionei, passando o nariz pela cabecinha cheirosa da criança, que ressonava tranquilamente e parecia nem sentir que estava passando de braço em braço. – Oi, minha princesa!
– Ei! – O músico reclamou.
– É que teve minha participação. – Vic explicou, rindo e abraçando de lado.
– É claro que teve, olha que narizinho mais lindo! – Choraminguei, encostando a ponta do dedo no nariz da pequena e fiquei balbuciando coisas incompreensíveis enquanto brincava com a bebê.
– É, pessoal, perdemos a Julie para a Lady Di. – Cam brincou enquanto tirava algumas fotos minhas com a bebê.
– É claro que perderam, ela é tudo que importa! – Jack esnobou e entregou garrafas de cervejas para e Cam.
A comida preparada por Cameron já estava a postos. Jack, agora que era um pai de família, já não surgiu com bebidas suicidas que nos fariam ter uma ressaca de dez dias seguidos. O músico agora preferia as bebidas mais suaves ou uma simples cerveja, que era o que ele dividia com , enquanto conversavam sobre trabalho. ainda se mantinha com alguns bicos musicais e sempre ajudava Jack, que estava empenhando em se tornar um produtor.
Diana já estava acordada e se empurrava dos braços de Cameron. Contrariando totalmente a natureza alegre e bem-humorada de seus pais, Diana era um bebê meio ranzinza e isso nos causava muitos risos.
Apesar do pouco tempo de vida, já era possível ver os traços marcantes da personalidade forte da garotinha, que não sossegava nos braços de ninguém e sempre estava chorando e resmungando, a não ser quando estava mamando.
Estávamos espalhados pela sala, rindo e conversando de um jeito leve e acolhedor, porém, aquele lugar vago ao lado de Cam chamava minha atenção a todo minuto. Aquele lugar tinha dona, sempre teria. E eram em momentos como esse que a saudade apertava.
– Ei. – Vic chamou, sentando ao meu lado e acariciando meu ombro. – Volta para gente. – Murmurou ao notar que eu estava com o pensamento em outro lugar.
– Desculpa. – Disse, simplesmente e aceitei a taça de vinho que ela me entregou.
– Está difícil hoje? – Neguei com a cabeça e entrelacei nossos braços.
– Hoje está fácil, vocês estão aqui. – Ela sorriu, beijando meu rosto e voltando a se concentrar nas histórias de Jack, que ela já deveria ter escutado várias vezes.
Encarei o perfil do rosto de , que ria das imitações de Jack. Minha cabeça parecia estar fora do lugar. Desde que deixei os braços de e andei cambaleando pelo meu antigo quarto, tudo parecia ter mudado. A atmosfera dentro de mim já era outra, eu me sentia fora de ar. Eu queria que houvesse algo no mundo que dissesse se aquilo, essa minha vontade de correr para ele novamente, era amor ou saudades. Queria que houvesse algum baralho, mágica ou qualquer ritual ocultista que me mostrasse qual era o caminho certo a seguir.
Era estranho pensar que , que sempre fora minha constante, no momento, era minha dúvida. Eu ficava tentando lembrar os motivos da nossa separação, tentei ficar com raiva lembrando de como ele começou a namorar dias depois de ter terminado comigo, fiquei tentado sentir desconforto com ele. Mas nada vinha. Eu apenas sentia muita vontade de voltar para casa com ele.
– Aconteceu. – Sussurrei no ouvido de Victoria, que me olhou, confusa. – Eu e . Nós transamos. – Antes mesmo que eu terminasse a frase, minha amiga teve uma crise de tosse ao se engasgar com o vinho, derramando o restante do líquido da taça em minhas pernas. – Vic, que porra!
– Ah, meu Deus. Desculpa! – Tossiu, batendo no próprio peito. Jack puxou um lenço de papel e colocou sobre minhas pernas, ajudando a absorver o líquido. Era uma calça de cor clara, que ótimo. – Vamos trocar essa calça, antes de manchar. – Puxou-me pelo braço em direção ao pequeno escritório onde eu ficaria hospedada naquele fim de semana.
– Não preci… – Seu olhar mortificante paralisou minha frase e eu apenas deixei a ruiva me guiar.
Fui praticamente lançada para dentro do cômodo. Victoria parou em minha frente, cruzou os braços e ficou me encarando. Ergui uma sobrancelha, confusa.
– O que foi? – Questionei.
– Cinco semanas. Você ficou na fossa mais de um mês depois do .
– Eu sei, eu lembro. – Murmurei, indo até a mala em busca de uma nova peça de roupa.
– E agora vem dizer na maior tranquilidade do mundo que vocês estão juntos de novo. – Resmungou.
– Opa, eu não disse isso. – Neguei veemente. – Eu disse que nós transamos, é diferente. Foi algo... casual. – Dei de ombros.
– A última vez que transei casualmente sem estar em um relacionamento eu acabei engravidando, Julie. Desembucha, você está muito séria. Em outros tempos você estaria rindo e brincando com sua própria trapalhada.
– Você falou certo, é uma puta trapalhada. – Suspirei. Tirei a calça e coloquei um short confortável. – Vic, o quer voltar. – Revelei.
Victoria ficou me olhando por um minuto inteiro, como se estivesse avaliando minhas reações. Seus olhos agateados corriam pelo meu rosto enquanto eu quase me enterrava no chão abaixo de mim, intimidada pela avaliação precisa da mulher. Quando abri a boca, pronta para questionar, fui interrompida pelo abraço de Victoria.
– Já estava mais do que na hora! – Enunciou, feliz.
– Oi? Você não estava me brigando a segundos atrás?
– Sim, mas... Ah, Julieta, você e são o casal principal desse grupo, acho que no fundo todos nós sabemos que vocês iriam ficar juntos de novo. Me surpreende não ter acontecido antes. – Confessou, tranquila.
– É, a mim também, mas… Ah, Vic, sei lá. Não é muita coisa para se encarar em pouco tempo?
– Pouco tempo? Faz anos que vocês terminaram, Julie. Já passou do tempo. É claro que eu fico preocupada, mas você sabe que jamais faria nada para te magoar de novo. E além do mais, as coisas estão diferentes agora…
– Exatamente, tudo está diferente… Eu estou diferente, Vic!
– Diferente a ponto de não o amar mais? – Perguntou, atenta.
Suspirei, consciente da certeza que eu tinha em minha resposta.
– Nunca a ponto de não o amar.
– Então, para de querer controlar tudo. Eu sei que a vida meio que exigiu que você se tornasse essa mulher mais centrada, mas acho que chegou o momento de trazer a sua Julieta juvenil de volta e arriscar mais.
Quando era mais jovem, eu não tinha muitos problemas em arriscar as coisas na minha vida. Apesar de reclamar, apesar de sempre pensar duas, três vezes, eu fazia. Afinal, foi assim que meu relacionamento com começou. Sem muita pressão, sem muitas cobranças.
– Minha mãe vai me matar… – Victoria gargalhou ao ouvir meu lamento.
Meu pai amava . Desde que os apresentei, os dois desenvolveram uma espécie de bromance da terceira idade, visto que ambos amavam xadrez e era assim que passavam a maior parte do tempo, como dois velhos em um banco de praça. Surpreendentemente, foi minha mãe que criou uma barreira protetora comigo em relação a . Ela achava que a fama me afastaria dele e bom, basicamente foi isso mesmo que aconteceu. Só que ao contrário.
Fomos tiradas do quarto pelos gritos chorados de Diana, que fazia seu pai e seu padrinho Cameron andarem desesperados pela sala com a neném. Troquei olhares com , que ria quase desesperadamente da situação dos dois homens em sua frente.
– O que houve? Ela está com fome? – Vic questionou e esticou os braços, buscando pela bebê.
– Não, está irritada, não sei mais o que fazer. Fralda limpa, barriga cheia, brinquedos preferidos… – Jack enumerou a lista de afazeres que Diana impunha.
– Deixa eu tentar. – Sugeri. Peguei a bebê no colo. Balancei, cantei e nada adiantou. Cameron tentou o mesmo e logo começamos a suspeitar que talvez ela estivesse sentindo alguma dor ou incômodo.
– Bom, ninguém me pediu, mas… – levantou do sofá, tirou o casaco e veio até nós. – Me passa a criança.
– Ou, ou, calma aí, senhor . – Jack passou em sua frente, barrando–o. – Você não vai derrubar minha filha no chão, vai? – bufou, empurrando Jack e pegando a bebê dos braços de Cameron.
– Vem aqui, Lady Di. É, eu sei, essas pessoas em sua volta te deixam nervosa, eu sei… – murmurou no ouvido da pequena, afastando-se para o outro lado da sala.
Enquanto isso, assistimos embasbacados os gritos de Diana tornarem-se um choro baixinho e logo, transformou-se em pequenos balbucios. Aparentemente, eu não era a única naquela sala que me derretia nos braços de .
– Como…? – Jack apontou, confuso.
– Desde quando você sabe carregar uma criança? – Cameron também expressou sua surpresa.
– Aprendi com ela. – respondeu. Como se estivesse respondendo, Diana deu um gritinho e balançou os braços, e nós, nos olhamos assustados. – Sim, você também é a minha preferida.
– , vem morar com a gente? – Victoria brincou, rindo. – Sério, isso nunca acontece. Ela demora muito para parar de chorar. O que você fez?
deu de ombros, negando com a cabeça. Olhou para Diana com um sorrisinho no rosto e passou o dedo pelo cabelo da pequena, que logo procurou a mão do cantor para levar até sua boca.
– Ah, droga. – Murmurei, frustrada. Virei-me para Victoria, que me olhava divertida. – Eu vou ter que casar com ele, não é? – Minha amiga gargalhou, puxando-me pela mão e indo até a cozinha, colocar o jantar na mesa.
Passamos o jantar inteiro rindo e atazanando , que quase não conseguia comer bem com Diana nos braços, já que a bebê chorava em recusa a qualquer menção de ser carregada por outra pessoa ou ser colocada na cadeirinha. Após o jantar, cantamos parabéns para Cameron, nos abraçamos, brindamos e tiramos umas centenas de fotos com a câmera analógica do rapaz.
Todos nos emocionamos quando Victoria e Jack fizeram a ele o convite de ser o padrinho de Diana. Jack até brincou dizendo que já havia mudado de ideia, visto que a criança claramente preferia . Mas é claro que quando fosse mais velha, seu tio preferido seria Cameron, não havia dúvidas.
Após isso, decidimos começar a nos organizar para dormir. Já era madrugada e tínhamos planos turísticos para o dia seguinte. havia ido para o banho enquanto Jack e Victoria se preparavam para colocar a nossa pequena Lady Di para dormir pela terceira vez.
– Se ouvirem gritos, não hesitem em mandar ao nosso resgate – Rimos, concordando. Victoria ajudou Jack, que carregava Diana já quase adormecida, deixando Cameron e eu sozinhos na sala de estar. O olhei de canto de olho, sorrindo e ele gargalhou.
– É agora que, finalmente, nós vamos nos agarrar? – Gargalhamos juntos. Levantei e estiquei a mão em direção a ele.
– Vem comigo. – Busquei as chaves de dentro da sua carteira e o arrastei até a porta.
– Espera, é isso mesmo? Porque se for, não acho que seja de bom tom fazermos isso, principalmente no carro do …
– Deixa de ser idiota, Cam! – Reclamei, interrompendo-o e indo até o carro. – Quero mostrar algo para você. – Abri o porta-malas, deixando à mostra a vitrola de mesa e os diversos discos que Dana havia deixado em nosso antigo apartamento. Ele era a pessoa certa a receber.
– Eu sei bem o que é. – Sorriu de lado e se aproximou do interior, passando a mão pelo disco gasto dos Rolling Stones, o seu preferido.
– Eu sei que sabe. É seu. – Ele me olhou, surpreso. – Feliz aniversário, Cam. – Seus olhos marejados olharam de volta para a vitrola, deixando algumas lágrimas descerem pelo seu rosto. – Ei. – O confortei, passando a mão pelo seu rosto, afastando as lágrimas fujonas.
– Está tudo bem. É que… Eu sinto que, de alguma forma, você acabou de trazer ela de volta para mim. – Sorri, emocionada e entrelacei nossos braços. Encostei a cabeça em seu ombro enquanto nós dois olhávamos para aqueles discos que continham mais do que lembranças do grande amor de nossas vidas. – Quer testar? – Sugeriu e nos entreolhamos, sorrindo cúmplices
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O clima estava ameno e por ser uma cidade afastada do centro, o único som que ouvíamos eram as cigarras, o coaxar dos sapos e o estalar do vinil antigo que escutávamos, sentados no chão da varanda da casa de Jack e Victoria. Enquanto o vinil tocava de forma suave as notas pesadas de Let It Bleed, nós celebramos a vida de Dana Tomanzio.
Muitas lágrimas foram derrubadas no caminho, mas estávamos em paz. Conversamos sobre ela, trocamos experiência, compartilhamos histórias, relembramos até seu cheiro. Tudo para que ninguém esquecesse até seus mínimos detalhes. Era doloroso, mas era necessário e, até mesmo, acolhedor. Era acolhedor e amoroso assistir as mãos dadas de Cameron e , se apoiando. As lágrimas sinceras de Jack, o preferido de Dana. E os olhares cúmplices que eu e Victoria trocávamos de vez em quando, os olhares de quem conheceu o íntimo e o superficial de uma mulher inesquecivelmente incrível.
Aos poucos, o cansaço começou a aparecer e todos foram dormir. Decidi ficar um pouco mais, apenas com a luz da varanda iluminando, abracei os joelhos enquanto a canção baixa tocava na vitrola. Suspirei profundamente.
Era quase possível sentir Dana ao meu lado. A saudade só piorava, apertava nos piores momentos. Eu faria qualquer coisa para vê-la mais uma vez, abraçá-la e contar que eu tinha largado a faculdade, tinha sido promovida a secretária geral da editora e que estava pensando seriamente em voltar com meu ex-namorado. Com sorte, ela me daria a resposta para todas as minhas dúvidas. Após me provocar sobre cada uma delas, é claro.
Então, nós fumaríamos mais um cigarro, onde ela diria que seria o último. É claro que não seria, mas toda vez que dividíamos um, dizíamos que seria o último.
Ela reclamaria de Cameron, falando que era impossível reclamar de qualquer coisa dele. Tentaria inventar alguma complicação sem realmente haver uma. Então, riria e diria o quão sortuda era por ter um homem como ele ao seu lado.
Então, nós faríamos planos de levar Diana para Disney e vesti-la de princesa, a Mérida do filme Valente, que era bem parecida com sua mãe. Victoria reclamaria, é claro, mas no fim, deixaria.
E aí, a gente fumaria mais um cigarro e antes de dormir, ela beijaria meu nariz, do jeito de sempre.
Mas ela não está mais aqui, ela não vai mais voltar. Apesar da dor, sigo fingindo que estou bem, que sou forte, que me recuperei. Minto para Deus e o mundo para ver se assim convenço a mim, que já deixei ela ir. Mas é tudo mentira. Dana, minha melhor amiga, era minha maior história de amor, eu jamais a deixaria ir. Então eu me contento com os amigos que ficaram e tento viver da melhor forma possível, pois sei que ela me obrigaria a isso.
Já me sentindo mais melancólica do que o que eu me permitia ser, levantei a agulha do vinil e a música parou.
A vida tinha que continuar.
Quando me preparava para levantar do chão, a porta da frente se abriu e apareceu, acenando com a cabeça: – Ei, um de nós dois vai ter que dormir na sala.
– Por que? O que houve?
– Cam se recusa a dormir no mesmo quarto que nós dois. – Contou, parecendo envergonhado e com isso me fazendo rir.
– Você contou a ele? Sobre…? – Perguntei.
– Claro que sim! – Deu de ombros e sentou ao meu lado no chão. – Não contei ao Jack porque ele iria…
– Enlouquecer, é. – Concordei, sorrindo. Eu já havia contado a Victoria, era questão de tempo Jack descobrir, apesar de ter certeza que Vic não falaria nada sem a minha permissão.
– Você está bem? – Perguntou, preocupado. Pensei um pouco antes de responder.
– Não. – Ele assentiu e olhou para o toca-discos, pensativo. Retirou o vinil e o guardou cuidadosamente. Levantei uma sobrancelha, sentindo-me estranhamente risonha. – Não vai falar nada?
– Ué, se não há nada que eu possa fazer para mudar, melhor ficar quieto. – Deu de ombros novamente.
sempre pareceria mais jovem do que realmente era, especialmente quando fazia ações infantis que estava acostumado, como dar de ombros, fazer perguntas repetidas ou apenas sorrir. Ele tinha um sorriso de menino.
“Nossa casa, nosso sofá, nossa sala”. Minha mente parecia repetir incansavelmente a mesma frase desde a hora que foi dita por ele.
Desviei o olhar e observei a rua de pedras que estavam em nossa frente, silenciosa e serena. As casas todas eram simples, mas extremamente bem cuidadas e limpas. Era de uma tranquilidade que até me assustava.
– É um bom jeito de viver, não é? Essa cidade é coisa de outro mundo. – Comentei, analisando em volta.
– É… – Concordou, vagamente. – Você não conseguiria.
– Como não? – Questionei, curiosa.
– Você ama a cidade e todo aquele barulho. – Explicou, informalmente. O olhei, meio surpresa com a forma que sua explicação básica havia mexido comigo.
Amo mesmo. Amo as minhas cidades, todas elas e suas marcas permanentes.
Eu estava cheia de marcas. As marcas que todas as cidades que vivi e amei deixaram em mim. As marcas do Jeins, infelizmente, foram profundas demais e o ar poluído que respirei lá, viveria em mim para sempre. As marcas que Hillswood deixou foram diferentes. Lá encontrei o que nunca tinha conhecido. Encontrei maturidade, encontrei uma felicidade diferente e um tipo de amizade saudável e completa que eu não fazia ideia que existia. Lá também encontrei o amor de uma forma que eu ainda não tinha visto. Agora, eu podia dizer que conhecia o amor, sabia sobre ele e vi o amor nascer em cada amigo meu que viveu um romance fugaz.
De repente, parecia bastante nítido, inconfundível e óbvio.
– Eu quero aquilo. – Murmurei, enquanto via os olhos nebulosos de me encararem. – “Nossa casa, nosso sofá, nossa sala”. – O homem em minha frente sorri de lado, nenhum pouco surpreso, mas aliviado. – Quero que você pegue minha mão e volte a ser meu, porque eu estou cansada de não ser mais sua, .
Seus lábios chegaram nos meus de forma urgente e beijaram-me com vontade e a mesma energia que eu senti no dia do primeiro aniversário dele que passamos juntos, naquela casa no litoral. O dia em que eu finalmente, admiti para ele e para mim mesma o quão apaixonada eu estava por ele. E talvez eu ainda seja. Inclinou-se sobre mim, fazendo com que deitássemos no chão de madeira.
– Eu tenho uma pergunta para fazer antes disso tudo. – Afastei-me de seus lábios enquanto ele beijava meu rosto ternamente.
– Qualquer coisa.
– Qualquer coisa? – Ergui a sobrancelha, desafiando-o.
– Qualquer coisa, Julieta. – Reafirmou, colocando meu cabelo atrás de minhas orelhas e acariciando meu rosto. Sorri diabólica.
– Você beijou ou não beijou a Rachel, aquela groupie nova iorquina de peitos gigantes? – Primeiro ele me olhou assustado, depois soltou uma risada tão alta que até mesmo a bebê Diana devia ter se assustado.
– Completamente maluca! – Sussurrou para si mesmo, olhando-me de uma forma apaixonada. – Quer saber? Beijei. – Abri a boca, surpresa, sem estar esperando realmente uma confissão. Ele ria enquanto eu estapeava seus braços, tentando me livrar de seu aperto. – Mas se você, Julieta Young, voltar a usar aquela aliança, eu prometo que não beijo mais ninguém além de você... E das nossas futuras mini Julietas, é claro.
– Mini Julietas? – Perguntei, ansiosa em busca de sua confirmação que nós teríamos filhos um dia.
– Ou mini Filipes. Eles decidem o que querem ser. – Assenti, emocionada demais para conseguir falar algo mais relevante, então apenas o beijei novamente, sabendo que tinha feito a decisão certa.
Eu precisava me dar uma chance de ser feliz completamente de novo. Precisava aceitar logo o fato de que era o cara certo para mim, ele era o homem da minha vida. Eu precisava aceitar o fato de que eu tinha os melhores amigos que poderia pedir, de que minha irmã havia se apaixonado por um homem, mesmo que tivesse amado mulheres durante sua vida inteira e que Barbara, a garotinha de cabelos loiros que roubou minha paixonite na pré-escola, era apenas uma garotinha.
E não, eu não era imune a histórias de amor, eu só não havia identificado as várias que eu havia vivido intensamente. E eu sei que disse que não morreria em um acidente de carro e bom, eu não morri, apenas estou presa a fisioterapia por quase toda minha vida por conta de um. Eu também disse que eu não teria câncer. Pois é, eu não tive. Mas minha melhor amiga o teve e foi isso que a tirou de mim para sempre.
Mas no momento, enquanto eu estava deitada no chão da varanda dos meus melhores amigos, recebendo os beijos e carinhos do meu melhor amor, eu não queria pensar em nada que foi tirado de mim. Eu não queria mais pensar em nada, eu passei muito tempo pensando antes de fazer e não fazendo nada. Agora eu queria gozar das facilidades e diversidades que a vida traria para mim com clareza e maturidade.
Dito isso.... Nós vamos ficar bem. Todos nós. Algum dia.