🌟Autora Independente do Cosmos🌟
Finalizada em: jul/2024.Eu estava saindo com Blaze Collins há o quê, uns seis meses? Já levei muitos pés na bunda pra alguém com pouco mais que vinte anos de vida, mas esse em especial estava me enlouquecendo. Bastava eu tirar os olhos da televisão do bar para todo aquele discurso de término acontecer. Já estava anoitecendo e logo começaria a campanha política de Bush e Al Gore na CNN.
― , olha pra mim.
― Não posso.
Existe um jeito fácil de explicar isso? Quer dizer, um jeito menos egoísta, menos… objetificador? Ok, lá vai: Blaze era o cara mais gostoso que eu já tinha ficado.
Na vida.
Não dava para deixá-lo fugir assim. Seis meses foi o suficiente para eu criar expectativas. Foi o tempo que levou para me apegar àquele corpo musculoso e bronzeado, àqueles olhos amendoados, àquele cabelo macio, cheiroso e encaracolado. Eu tomava ótimos drinks de graça ali no Millard’s (ele tinha um trampo de barman de vez em quando) e o sexo era ótimo (ele fazia a maior raridade do mercado: oral). Era tudo o que eu ia perder se me virasse para olhá-lo... agora.
― …
― Olha só! ― não deixei que ele continuasse. ― Estão dizendo que o mundo vai acabar em 2000.
― O quê?
― Deve ser coisa do Papa ou do Nostradamus.
― O mundo não vai acabar ano que vem ― ele afirmou, como se tivesse certeza absoluta disso. Tem gente que não afirma as coisas, decreta. ― E é tudo culpa do Bill Gates.
― Acho que não.
O repórter entrevistava várias pessoas aglomeradas nas calçadas, berrando exaustivamente sobre o fim estar próximo. Uma delas levantava um cartaz que dizia para toda a população buscar a salvação divina antes que fosse tarde demais. Em seguida, o apresentador explicou sobre um mero problema de datas nos computadores: o Bug Y2K.
― Viu? Sabia ― falei, ainda olhando para a TV. ― O Bill Gates é um dos afetados. Como ele poderia ser o culpado?
Sem querer, finalmente me virei para Blaze, me arrependendo na mesma hora. Ele estava nitidamente frustrado. Então, resolvi abandonar minha batalha interna de vez:
― … Essa é a conversa de término mais difícil que você já teve, não é?
Ele só fez gaguejar.
Eu garanto que Collins estava planejando fazer uma longa e cansativa introdução ao assunto. Mas, se fosse para acabar mesmo, eu preferia ir direto ao ponto e começar minha sofrência logo. Nunca é bom protelar sentimentos, principalmente os ruins.
― Não, tudo bem. Pronto, estou olhando pra você agora ― me endireitei na cadeira. ― Pode mandar. “Não é você, sou eu.” Ou “tem essa outra garota que conheci…” ou “não estou preparado pra um relacionamento sério agora…”
Blaze ficou em silêncio, só me encarando apreensivamente.
― Então? ― perguntei, ainda com esperança de que não fosse nada daquilo. Talvez ele só quisesse dar um tempo. ― Qual das três opções?
― Hmm… Todas?
― O quê? Todas?! ― soltei uma risada incrédula. ― Como assim, “todas”? Não imaginei que você conseguisse ser um babaca ao cubo.
― Escuta, eu não estou fazendo hora com você, se é o que parece.
― Sim, é exatamente o que parece ― minha vontade era de dar um soco na mesa que levantaria todos os talheres, mas fiquei quieta. Eu tinha uma pergunta que o atingiria como uma bala: ― Quem é a garota?
Ele abriu a boca, mas não disse nada. Então, cruzou os braços e levantou uma sobrancelha.
― O que te faz pensar que existe outra garota?
― Eu posso listar uma série de coisas, mas não acho que você esteja a fim agora. Assim como não esteve nessas últimas semanas e preferiu se esquivar.
Blaze se calou, atônito. Depois, abaixou o queixo e olhou para o chão por um longo e demorado minuto, estampando a culpa para quem quisesse ver.
― Você não a conhece, nem conheceria ― ele usava um tom de voz suave, quase como se quisesse amenizar a calamidade daquela confissão. ― Ela estuda no prédio das Engenharias.
Respirei fundo e cerrei os olhos, enquanto sentia meu coração sendo partido em dois.
Aquilo doeu. Eu e Blaze estávamos “apenas nos divertindo”, ou, pelo menos, foi o que tentei me convencer naqueles últimos seis meses. Então, não era para ter doído tanto. Até me assustei com minha própria reação.
― Você dormiu com ela enquanto estávamos saindo?
― Não, não fiz isso. Mesmo que eu e você não fôssemos… Quero dizer, o que nós tínhamos não era… Bem, eu nunca faria uma coisa dessas.
Engraçado como caras tinham esse talento nato para se enrolar quando precisavam explicar um relacionamento sem rótulos.
Ele continuou:
― Enfim. Era aqui que eu queria chegar desde o início. Nunca te traí. Mas você atrapalhou tudo com o papo sobre o fim do milênio.
― Eu não vou pedir desculpas, peça ao calendário.
Collins deu um longo suspiro, e eu também. Então, estendeu os braços e segurou minhas mãos por cima da mesa.
― Olha. Eu gosto de você, . Muito. Nosso tempo juntos foi ótimo. Mas aconteceu que…
― Eu sei. A vida aconteceu.
― Exato. Não tive muito controle. Eu meio que ainda gosto de você, foi uma decisão difícil de tomar. Não queria que acabássemos brigados ou algo assim.
Tradutor, ativar: “eu conheci essa outra menina que é bem mais interessante e mais bonita que você, mas como ainda não sei se vou me dar bem com ela, vou te deixar de escanteio aqui pra caso eu queira transar com você de novo.”
Sensatez e honestidade, desativar:
― Blaze… Eu também gosto muito de você. Mas... eu entendo. Na verdade, estou bem. Mesmo. Está tudo bem. Não vamos fazer uma grande coisa disso, eu sei me virar.
― Sério?
― Aham.
Ele beijou o dorso da minha mão, depois da outra. Basicamente, eu quis chorar.
― Você é demais.
― Sim, eu sou ― concordei meio frouxa, recolhendo minhas mãos.
― Confesso que estava com um pouco de medo da sua reação, porque as coisas estavam começando a ficar mais sérias entre a gente, não é?
― É, sim. Não queríamos isso, né…
Meu Deus, como faço pra gritar que eu estava gostando dele de verdade? Por que eu não conseguia falar o que eu queria que ele soubesse? Não era exatamente um problema as coisas ficarem mais sérias. Era meu objetivo!
― E você sabe, como estamos no nosso último ano, seria muito difícil assumir um compromisso agora. Terei menos tempo também com meu novo emprego no início da primavera.
― É... Verdade… ― balbuciei. Era mais fácil só concordar com tudo e fingir que nada daquilo era real.
― E você, se inscreveu naquele estágio?
― Não, desisti. Ele é muito concorrido, não ia passar de qualquer jeito. Resolvi dar uma pausa.
― Ah. E a dança? Anda treinando?
― Meh. Ando parada.
Caramba, ele devia estar pensando que eu era a pessoa mais desocupada daquela universidade. Sabe aquele tempo que normalmente se usa para pensar antes de responder uma pergunta? Não conheço. A sinceridade chega atropelando na maioria das vezes.
Novamente o silêncio se instalou. Até que um garçom, amigo de Blaze, passou ao lado da nossa mesa.
― Ei, bro. Traz a conta, por favor?
Ele acenou com a cabeça, sumiu e voltou poucos minutos depois.
― Quanto deu? ― perguntei, trêmula, tirando a carteira e a dignidade da minha bolsa.
― Não se preocupe, . Eu pago.
― Não, tá tudo bem, eu pago minha parte.
― Por favor, deixe que eu cuido disso. Faço questão.
Quase senti que ele me olhava com pena. Talvez eu chore um pouco quando voltar para o meu dormitório.
― Ok, então você paga e me deixa pegar um táxi de volta pra Oyster. Tá?
― Tem certeza?
― Absoluta.
Eu não queria estar com Blaze nem por mais um segundo, muito menos sentir seu perfume impregnado em seu carro.
Ele se despediu de mim com um beijo na bochecha e foi embora para o estacionamento. Nem garantiu que eu fosse pedir mesmo um táxi, nem nada. E se eu pedisse, duvido que ele esperaria o carro chegar. E se esperasse, será que abriria a porta para mim e me daria um último beijo com lágrimas nos olhos?
Eu acho que não.
Aquele foi o término mais patético da minha vida. Eu definitivamente não era a protagonista da vida amorosa dele, como também não passava de uma coadjuvante. Eu não era nem uma certeza, era só um mero talvez. Na verdade, eu me sentia como se não tivesse importância alguma para ninguém. Não que fosse um sentimento incomum, mas, dessa vez, ele veio para me arrasar.
Vou sentir saudades daquele pauzudo.
O Millard’s era um bar meio vintage que ficava bem em frente à praia na enseada de Bricktown, agora deserta por dois motivos: o clima estava congelante e já era quase meia-noite. E eu não estava nem aí.
Show Me the Meaning of Being Lonely – Backstreet Boys
Sentada na beirada do píer, eu estava me acabando emocionalmente ao som distante de uma música do Backstreet Boys. Entre lágrimas e goles da bebida que me custaram o dinheiro do táxi, eu cantava o refrão.
― Show me the meaning of being lonely… Is this the feeling I need to walk with…? Tell me why… I can’t be there WHERE YOU AAAARE?!
Ele falava por mim.
Ao mesmo tempo que eu tentava aceitar aquele fim, era difícil imaginar como seria minha vida sem Blaze daqui pra frente. Eu só me lembrava de cada momento bom, de cada risada, de cada orgasmo. Nem duas horas depois e eu já o queria de volta.
Mas acabei chegando à conclusão que tê-lo também era algo desgastante. Afinal, por que eu tinha essa necessidade de ser uma prioridade em sua vida? Sempre tentando fazer coisas só para agradá-lo ou chamar sua atenção, sempre buscando por sua aprovação?
Pelo menos, percebi que agora eu estava livre daquela cobrança interna. Pelo menos, eu nem precisava mais me depilar dentro do prazo e das preferências pessoais daquele afrescalhado.
Mas como eu fui tão descartável assim? Será que estava me oferecendo demais? Sendo fácil demais? Por que não consegui ser o suficiente para ele? E quem era essa outra garota? Ela era tão mais inteligente e atraente assim? Aposto que tinha os peitos maiores. Aposto que tinha o cabelo mais liso. Aposto que era mais magra. Blaze já me disse algumas vezes que eu estava precisando malhar e perder uns quilos. Deve ser por isso que ele me fez aquela pergunta sobre a dança.
Eu deveria saber.
― Ei! Ei, você!
Alguém estava gritando. Por mim…?
A voz se aproximava:
― Garota, o que você tá fazendo aqui sozinha? É perigoso, sabia?
Olhei para trás. Eu já tinha visto aquela menina super alta e meio hippie pelo Campus. Vivia fumando uns baseados e, uma vez, parei atrás dela na fila do café – seus cabelos loiros e queimados de sol estavam com um baita cheiro de incenso. Ela nunca usava sutiã ou maquiagem; certamente a garota menos vaidosa que eu já vi por aí. Mas conseguia ser tão linda que mais parecia uma modelo que tinha acabado de sair do Festival de Woodstock. Eu não sabia seu nome, mas sabia que estudava Design de Moda.
― Eu que te pergunto ― falei, um pouco impaciente, mas tentando demonstrar calma. A garota poderia ser legal e tudo, mas eu estava em meu momento particular de lamúrias inúteis. ― O que você está fazendo aqui?
― Você está bêbada?
― Hmm? Tem certeza disso? ― mostrei a ela meu CapriSun de morango. ― Estou bêbada de glicose e corante.
Ela começou a rir da minha cara e se aproximou ainda mais. Então, logo mudou sua expressão e ficou um tanto quanto preocupada comigo por sei lá qual motivo:
― Oh, não, você está chorando? Tá tudo bem?
― Mais ou menos... Eu acho…
― Vem, vamos sair daqui.
― O quê? Não! Me DEIXE ficar aqui observando a escuridão do oceano e da minha vida.
― Escuta, eu tô falando sério ― a garota parou ao meu lado e colocou seu braço ao redor do meu corpo, me puxando a todo custo do piso frio e úmido de madeira. ― Tem uns caras estranhos ali atrás que estão há um bom tempo olhando pra essa direção.
― Onde? ― olhei para a praia, à direita. ― Só vejo três idiotas cantando Hotel California.
― Não, aqueles são meus amigos ― ela riu. Depois ficou séria de novo, falando mais baixo. ― À sua esquerda.
Foi quando vi uns caras muito mal-encarados que pareciam ter vindo diretamente de um filme do Tarantino. Eles estavam sentados numa grande rocha com um aparelho de som portátil.
Então era dali que a música estava vindo esse tempo todo.
― Nossa ― fiquei um pouco perturbada. ― Por que os cracudos de Bricktown estão ouvindo uma boyband?
― A questão não é essa ― ela arregalou os olhos, azuis translúcidos como os de um Husky Siberiano. ― Quer ficar aqui e pagar pra ver o que eles podem fazer?
― É. Parece uma ideia de merda.
― Vem comigo, vamos embora.
A garota entrelaçou nossos braços, e assim fizemos o caminho de volta do píer até a praia. Ela dava passos rápidos e difíceis demais de seguir, nem se importando com a forte ventania que quase fazia nossos agasalhos voarem. Fiquei internamente grata por ter sido notada e acompanhada para longe dali, embora nada fosse capaz de me tirar do poço de desânimo e frustração em que eu havia me afundado. Eu não estava batendo muito bem da cabeça, e isso me fazia ficar mais dramática a cada minuto.
― A propósito… Meu nome é Jenna. E o seu, loba solitária de Bricktown?
Não pude evitar que minha voz se arrastasse na resposta:
― ... Pode me chamar de ou qualquer coisa...
Ela riu de novo.
― Vamos lá, Oscar, o Resmungão. Vai ficar tudo bem.
― Ai, meu Deus... Não pensei que “qualquer coisa” pudesse incluir personagens da Vila Sésamo.
― Não esperava que fosse se lembrar dele tão rápido.
― É claro que eu me lembro. O bicho verde e rabugento que morava numa lata de lixo ― parei e suspirei pesadamente. ― Até que você tem razão, eu e o Oscar temos muito em comum...
― Não fique assim. Eu adorava o Oscar. Ele ajudava na coleta e reciclagem.
― Muito reconfortante, Garibaldo.
― Ah, não! ― ela deu risada e me cutucou. ― Ok, talvez eu seja um pouco alta.
― Um pouco? Não consigo nem enxergar seu rosto daqui de baixo.
― Ah, mas você também não é tão baixa assim– Espera um minuto ― ela parou de repente. ― Cadê os seus sapatos?!
Paramos de andar e olhamos para os meus pés. Apenas um par de meias de ursinho os cobriam. Não pode ser. Eu tinha tirado minhas botas para balançar as pernas na beirada do píer e me esqueci completamente de calçá-las de novo.
― Ah, não... Não, não, não… ― lamentei, enquanto meu choro ridículo dava suas boas-vindas outra vez. — Eu deixei meus sapatos pra trás!
― Ai, meu Deus... Olha, se esqueça deles por hoje. Não vamos voltar lá agora de jeito nenhum, é arriscado ― ela me puxou de novo e continuamos a andar, prestes a alcançar a areia.
Eu estava realmente triste pelas minhas botas. Para se ter uma ideia, tive que enxugar umas dez lágrimas. Com certeza nunca mais as veria de novo, afinal, estávamos falando de Bricktown.
― Só tome muito cuidado agora, ok? ― ela me alertou. ― Está cheio de cacos de vidro pela arei–
― AAAAAAAAAHHH!!!
A sola do meu pé foi perfurada sem nenhuma piedade de Deus.
Jenna cobriu a boca com suas mãos e ficou paralisada, mas eu vi naqueles olhos azuis seu dilema entre me socorrer ou rir.
De repente, chegou correndo um cara mais ou menos do meu tamanho, com longos cabelos finos e castanhos claros e uma barbichinha no queixo. Usava também uma bandana vermelha e um par de óculos escuros no topo da cabeça, no mínimo tentando se parecer com o Axl Rose.
― O que tá acontecendo?! ― perguntou ele, completamente esbaforido. ― Jenna, você está bem?
― Jenna?! ― fiquei nervosa e olhei para o garoto. ― Eu sou a pessoa aqui com o pé sangrando!
― Alex, ela se machucou ― Jenna finalmente saiu do seu pequeno estado de choque. ― Não podemos ficar aqui por mais tempo. Precisamos fazer alguma coisa!
Alex, então, se agachou e encostou o dedo em meu pé furado, cujo pedaço de vidro ainda não tinha saído. Era grande demais para ser removido às pressas, e, pelo menos para mim, isso estava mais do que óbvio.
― Meu Deus, isso vai doer — ele disse, com os olhos esbugalhados. — Mas, talvez, se eu puxar bem rápido assim...
― Espera aí! ― ordenei. ― Você não vai tirar isso agora. Ficou maluco?
― Por que não?
― Porque eu não tô preparada!
Chegaram então os outros dois idiotas fãs de Eagles. O primeiro era moreno, sem dúvidas com alguma descendência árabe. Seu rosto era perfeitamente simétrico, os cabelos eram ondulados e batiam nos ombros. Seus olhos pretos acinzentados, marcados por cílios grossos, carregavam um baita ar misterioso. O outro era loiro, bonitinho, discreto e um pouco familiar – se já fizemos alguma aula juntos, não me lembro.
Caramba, o moreno era muito bonito, inclusive, um barbudo interessante.
― Galera, precisamos vazar agora. Aqueles… Aqueles caras estão mais e mais perto da gente. Jogo rápido mesmo ― o barbudo alertou, um pouco ofegante e desesperado.
― Legal, mas pra isso ela precisa andar ― Jenna apontou para mim e, na mesma hora, fuzilei Alex Rose com o olhar. Ele ainda estava próximo demais do meu pé.
― Se você arrancar isso agora, eu vou urrar de dor ― avisei.
― Os doidões estão encarando muito a gente… Estão vindo pra cá ― novamente o barbudo nos amedrontou. Mas, dessa vez, paramos para ver se realmente estavam nos seguindo.
E não é que estavam mesmo?
― Puta que pariu!
― E agora, o que a gente faz?!
― O máximo que pode acontecer é nos assaltarem. Provavelmente, estão vendo a oportunidade fácil nesse momento vulnerável ― o loirinho se mostrou bem calmo e lógico. Até que um dos caras daquela gangue empunhou um canivete do cós da calça e fez questão de nos mostrar o objeto brilhante e pontiagudo. ― Esquece, estamos fodidos. Vamos embora daqui, agora.
Jenna estava branca. Eu não estava entendendo nada, só fiquei meio tonta e quis vomitar. Levar um fora de Blaze, perder minhas botas, furar meu pé, ser assaltada e esfaqueada numa noite só? Já estava sentindo o estresse pós-traumático.
Agora estávamos todos tensos e sussurrando.
― , como saímos daqui?
― PJ, você dirige ― , o loirinho, agilmente jogou um molho de chaves ao barbudo PJ. ― Jenna, você faz o que tem que fazer. E Alex…
― O que é isso, você é tipo o Fred de Scooby-Doo? ― perguntei. ― Distribui as tarefas do grupo?
Ele deu um sorrisinho totalmente inapropriado ao momento, mas rapidamente me ignorou. Então, se posicionou atrás de mim, gesticulou para Alex, e eu fiquei só olhando sem entender coisa alguma.
― Três, dois… um… AGORA.
Não sei se algum dia serei capaz de descrever com precisão o que aconteceu após essa contagem regressiva. Foi tudo ao mesmo tempo: Alex agarrou e levantou meus dois calcanhares, levantou o resto do meu corpo segurando minhas axilas com seus braços, Jenna tapou minha boca, PJ saiu correndo, e, assim que os delinquentes ameaçadores se aproximaram o bastante, todo mundo correu.
Correu pra caralho.
― HHMMMPPHHH!!!
Eu nunca tinha fugido de assaltantes antes. Quero dizer, nesse caso, de potenciais gângsteres. Talvez ainda posso afirmar que nunca fugi, porque, na realidade, fui carregada e jogada na traseira de uma picape verde-água da década de sessenta. Jenna estava na cabine com PJ, que dirigia sem dó de pisar no acelerador. Eu estava deitada com o pé ferido e esticado na cara de Alex e , que discutiam sobre o que fazer para retirar o caco de vidro sem maiores estragos.
― Escuta, erm… ― Alex me chamou.
― ― me apresentei com a educação de uma porta, ainda um pouco agoniada.
― , a gente… É que…
― Vamos precisar tirar sua meia ― completou a fala do garoto sem jeito.
― Ai, meu Deus. Não, isso vai doer.
― Não tem outro jeito.
― Tem que haver outro jeito ― insisti. Ajeitei minha postura e procurei com os olhos no meio daquelas tralhas por algo que pudesse amenizar minha dor. Até que notei um cantil saindo para fora do casaco de . ― Espera. O que é isso no seu bolso?
Meu avô sempre carregava um daqueles com uísque. pegou o dele e me mostrou:
― Isso?
― Algum álcool aí?
― Um resto.
― Serve ― estendi a mão e ele me entregou o pequeno frasco prateado.
Joguei a cabeça para trás e revirei todo o negócio, que desceu rasgando minha garganta. Limpei os lábios e devolvi o cantil, enquanto Alex só nos observava, curioso.
Pronta para agir, dobrei o joelho e trouxe meu pé ao alcance. Estalei o pescoço para os dois lados, respirei fundo, dei uma boa olhada no caco e levei minha mão até ele. Antes de fazer qualquer coisa, espiei mais uma vez as expressões de e Alex, que, no fim das contas, estavam mais tensos do que eu – sequer piscavam.
Sem demora, puxei de uma vez o pedaço de vidro. Instantaneamente, eles voltaram a olhar para o meu rosto, aflitos. Um grito ficou entalado na minha garganta, e eu só pensei em chorar pela vigésima vez naquela noite.
― Bom trabalho, ! ― Alex comemorou. ― Agora é só tirar a meia e fazer um curativo.
Espremi meus olhos e senti toda a minha cara se enrugar.
― Espera, espera, tudo vai ficar bem ― ele disse, se inclinando na minha direção e acariciando o meu braço várias vezes.
Ainda estática, deixei o vidro cair da minha mão e abri um só olho. Tirei a meia e deu um jeito de amarrá-la em torno da ferida que ainda sangrava, improvisando um curativo só para não deixá-la tão exposta.
A partir de então, não senti mais nada. Meu grito apertado se transformou em um longo e pesado suspiro de alívio. também deu um assobio aliviado.
― Tem sorte que o corte não foi tão profundo ― ele comentou.
― Obrigada. Mesmo. Quero dizer, ainda bem que vocês apareceram.
― Agradeça à Jenna ― Alex falou. ― Tinha um bom tempo que ela estava te observando de longe, te achando muito sozinha...
No mesmo instante, lançou um olhar de esguelha para ele, soltando uma risada pelo nariz.
― Aham. Jenna.
Fiz uma cara de interrogação.
Alex olhou para mim e foi rápido em desviar o assunto:
― O que você estava fazendo lá?
― Ah… Levei um pé na bunda de um cara que eu estava saindo há um tempo e fui chorar umas mágoas ― expliquei. ― Tô me sentindo tão estúpida agora. Mas estou melhor.
― Você não está sozinha, ― ele tocou meu braço mais uma vez, tentando me consolar.
― Pelo menos não na estupidez ― acrescentou. ― Estávamos dando um show na praia. Ainda tô um pouco bêbado.
Ri, por incrível que pareça. Eles realmente estavam cantando o coração para fora.
― Pode parecer exagero, mas acho que também estou... um pouco zonza... O que tinha no seu cantil?
― Everclear.
― Puta merda.
― Todo mundo nesse carro tá bêbado graças ao meu cantil ― ele disse, abrindo um sorriso orgulhoso. Eu o encarei um tanto quanto assustada. ― Menos PJ. Todo mundo menos PJ. Por isso dei as chaves a ele.
― Essa picape é sua?
― Sim.
― E onde estamos? ― enfim parei para examinar o caminho que PJ estava fazendo e a paisagem escura ao meu redor. ― Estamos voltando pra universidade, né?
― Aham, acho que sim. Ei, PJ! Jenna!
Jenna logo abriu uma janelinha da cabine atrás de mim, então cheguei um pouco para o lado.
― Sim? Tá tudo bem aí?
― Sim, caco de vidro removido ― Alex fez um sinal de OK com os dedos.
― Sério? Já? Acabei de dizer ao PJ pra dirigir até a enfermaria da Oyster.
― Não precisa ― respondi. ― Tenho um antisséptico e esparadrapos em casa. Digo, no meu quarto. Fico no Belva Hall.
― Ah! Eu fico no Capper Hall, bem ao lado. Chegaremos daqui a pouco, então ― ela esticou um braço para fora e segurou meu ombro. Jenna era bastante atenciosa. ― Escuta, qual de vocês dois foi o ilustre cirurgião? ― eles apontaram os dedos para mim na mesma hora. ― Sério?
― Digamos que precisei tomar as rédeas ― falei.
― É isso aí, garota! Woohoo!
Realmente, todo mundo ali estava meio bêbado.
Em menos de dez minutos depois, chegamos à Universidade Oyster. Ela ficava na pontinha da Ilha de Staten, em Nova York, num planalto bastante arborizado, próximo ao litoral e isolado de construções. Bricktown era o bairro comercial mais próximo, cheio de bares e lanchonetes que os universitários costumavam frequentar nos finais de semana. Mesmo assim, era necessário pegar um carro para ir até lá.
Depois que PJ nos deixou no alojamento feminino, pulou da traseira e passou para o banco da frente. Alex ficou lá atrás, nos dando um tchauzinho até sumir de vista. Jenna subiu comigo até a porta, me dando apoio para andar. Combinamos de nos encontrar de novo depois dos exames finais de novembro, que aconteceriam mais ou menos em uma semana.
Os quartos dos dormitórios costumavam ter uma salinha compartilhada com um frigobar, bancadas e, se tivéssemos sorte, um sofá velho. De cada lado da parede havia uma porta para outros dois quartinhos privados. O da minha colega estava fechado, o que me fazia tranquilamente concluir que ela estava no décimo sono. Então, acho que eu poderia me considerar sozinha agora.
Fiquei pensando em como eu tinha saído dali mais cedo certa de que voltaria com Blaze, e, naquele exato momento, ele provavelmente estaria sem nenhuma roupa e na minha cama. Eu, idem.
Era melhor seguir com meus planos de tomar um banho e dormir logo, antes que minha cabeça desse infinitas voltas em cenas imaginárias.
Antes de tirar o casaco, enfiei as mãos no bolso para tirar algumas moedas de lá. Junto delas, saiu um pedaço de papel que não reconheci de nenhum lugar, muito menos a caligrafia do número de telefone escrito nele. Não havia qualquer outra identificação.
Meu Deus. Como alguém colocou aquilo dentro do meu bolso e eu tive a brilhante incapacidade de não perceber?
Fiquei quase duas horas desenhando uma acrobata de circo para a aula de Modelo Vivo. Perdi as contas de quantas vezes tive que usar a borracha para redesenhar suas mãos flexionadas, seus dedos ossudos e entrelaçados e a curva fora do normal que seu tronco fazia. Tudo parecia me exigir uma atenção redobrada ao tentar reproduzir sua pose contorcida e toda aquela destreza corporal no papel.
Eu era terrível com mãos.
E pés.
… E olhos.
Sinceramente, não aguentava mais aquelas aulas de desenho. Queria mesmo poder usar mais o computador e uns KoalaPads empoeirados do laboratório. Disciplinas digitais eram muito mais a minha praia, e concluí todas até hoje sem nenhum sufoco. Agora, o resto… Deus sabe o quanto abusei do combo cafeína + procrastinação.
Pelo menos, finalmente estava a um pé do meu diploma. Só mais um semestre e eu estaria livre de todas as minhas obrigações acadêmicas. Entre a pressão de conseguir um emprego decente e um teto para morar, vez ou outra eu me pegava pensando na assustadora vida adulta que me aguardava depois da formatura. A cada ano, vou deixando tudo para a do futuro resolver. E o próximo será o último que poderei deixar nas mãos dela.
No pátio do prédio de Arquitetura e Urbanismo, eu esperava por Allison. O jardim estava completamente coberto por uma grossa camada de neve, e, felizmente, o sol resolveu aparecer depois de um dia inteiro de nuvens cinzas. Tive que caminhar um pouco até chegar lá, porque o meu prédio, de Artes e Design, ficava do lado oposto.
Quando calouras, eu e Allison fizemos algumas matérias juntas e, até então, ela não sabia que curso fazer. Acabou optando por Arquitetura no segundo ano. Num futuro próximo, não me surpreenderia se eu encontrasse a cara dela estampada numa daquelas revistas de casa e decoração. Eu sempre me inclinei mais para a visão projetista do Design – talvez minha cara não estampe nenhuma revista, mas o que eu aspirava era estar justamente nos bastidores de algum trabalho editorial.
— ! — Ally chegou até mim dando uma corridinha, enquanto colocava um gorro na cabeça e vestia suas luvas.
— Oi. Vamos a algum lugar?
— Que tal irmos ao seu quarto?
— Não tem nada pra fazer no meu quarto. Se bem que — ponderei por um segundo —, qualquer lugar que tenha um aquecedor pra mim está ótimo.
— Tem uma semana que você tá intrigada com aquele número de telefone misterioso. Podemos ligar pra ele — ela deu um sorrisinho esperto.
— Ah, não… — em total desânimo, minha cara derreteu feito gelo.
— Agora que os seus exames já passaram, você não tem mais desculpa. Vamos até o alojamento, você liga pra ele e finalmente descobrimos a identidade do seu admirador secreto. Comemos uns biscoitos, assistimos Segundas Intenções, suspiramos pelo Ryan Phillippe e, depois, você podia me ajudar a vetorizar uma planta cartográfica pro meu trabalho de Espaços Públicos que vou entregar hoje à noite — ela tinha ar de sobra nos pulmões.
Ally adorava fazer planos e raramente incluía a opinião de uma terceira pessoa. Ela só supunha de modo automático que nenhuma outra sugestão poderia ser melhor que a sua.
E eu nem achava o Ryan Phillippe lá grandes coisas. O personagem dele era insuportável no filme.
Vendo que só fiquei piscando os olhos, ela se apressou em me puxar pela mão e a tomar a iniciativa. Algo me dizia que Allison estava muito mais curiosa do que eu para saber quem era o dono daquele número. Mas acabei cedendo, e fomos ao meu dormitório.
Caminhando pelo longo corredor do segundo andar do Belva Hall, estávamos revendo as possibilidades.
— Tem certeza que não é do Blaze?
— Sim, eu sei o telefone dele de cor e não é esse — respondi, me sentindo imediatamente idiota.
— Quem mais você encontrou naquela noite, mesmo?
— Hmm… Jenna, Alex… e PJ.
— Tem certeza que esse pedaço de papel só foi parar no seu bolso nesse dia?
— Absoluta. Esse casaco é novo, e não me lembro de ter nada dentro dele na loja. Só o usei porque era um encontro com Blaze. Pensando bem, eu queria que fosse PJ. Digo, o dono do número. Seria legal se ele me chamasse pra sair.
— Mas você já tá pensando nisso? Em sair com outro? Pensei que quisesse conhecê-lo primeiro.
— Dizem que o método mais eficaz pra se esquecer de alguém é beijando outra boca logo. Sabe, eu até que gostaria de tentar.
— Nossa, . Isso não é muito precipitado? Tipo, tecnicamente, é o que faz de você uma assanhada.
Fiquei pensativa. Em condições normais, eu concordaria com ela, mas andava tão exausta de satisfazer as críticas alheias que pouco me importei se eu fosse parecer uma prafrentex.
— Enfim. Ele é gato? — Ally ergueu as sobrancelhas. Me impressionava sua capacidade de cair em contradição tão rápido.
— Aham. Ele tem a barba cheia, umas tatuagens legais, o cabelo grande... Sério, parece um guitarrista estrangeiro de uma banda grunge.
Não acredito que eu estava considerando sair com PJ. Eu nem sabia o nome dele. E se ele se chamasse Peterson Jefferson? É um nome horrível.
Destranquei a porta do quarto e fomos para o telefone ao lado da minha cama. Enquanto Allison tirava o casaco, o gorro e as luvas, aproveitei para pegar o número na gaveta da cômoda e encará-lo por mais alguns segundos antes de fazer qualquer coisa.
— Chega de hesitar, — Ally tomou o papel da minha mão e, na velocidade da luz, discou todos os números.
— Ficou louca?!
— Tá chamando — ela me entregou o telefone.
Assim que encostei-o no ouvido, já ouvi a voz masculina na chamada:
— Alô?
Meus olhos se arregalaram. Como assim? Eu não confiava de jeito nenhum em pessoas que atendiam o telefone no primeiro toque.
— Vai, responde! — Ally sussurrou.
De repente, fiquei inesperadamente nervosa ao cogitar que poderia ser PJ do outro lado da linha. Ou .
— Erm… Hmm… Alô. Quem tá falando?
— É o Alex.
No mesmo instante, apertei o botão do gancho e me virei para Allison.
— Mas é claro! É só o Alex Rose — reclamei, porém aliviada. Tudo fez o mais absoluto sentido.
— O nome do seu admirador secreto é Alex Rose? — ela fez uma careta.
— Não. É que ele... Esquece — pigarreei para falar de novo com Alex e tirei o dedo do botão do gancho. — Desculpa. Alex? Que Alex?
— O que você tá fazendo, ? — Ally se desesperou.
— Hã… Quem tá falando?
Pensei um pouco antes de revelar. Alguma coisa me dizia que ele não estava sendo só amigável demais naquele outro dia, e, como eu não queria dar a ideia errada, preferi fingir que nada disso tinha acontecido. “Desculpa, Alex, foi engano”, era o que eu mentalmente estava planejando falar.
— Posso chutar? É a ? — a voz perguntou do outro lado, num tom alegrinho.
Apertei o botão do gancho outra vez e olhei para Ally:
— Putz. Ele sabe que sou eu.
Minha teoria acabava de ser concretizada. Ficou evidente que o garoto meio que já estava esperando minha ligação, e eu não conseguia parar de pensar que tudo aquilo fazia parte de seu plano de paquera. Ele teve todo o tempo do mundo de colocar um papel no meu bolso lá na traseira da picape do . Eu que não ia arriscar ser chamada para um encontro ou algo do tipo.
— Então, … É você mesmo?
— É… Sim. Sou eu.
— Gostou da minha surpresinha?
Meti a mão na minha testa.
— Você quer sair com ele? — minha amiga sussurrou, levantando uma sobrancelha.
Prendi o dedo no gancho para respondê-la:
— Não. Quero dizer, ele é legal e tudo, mas… Acho que eu só aceitaria se fosse o PJ. Ou .
— Como você é cruel — Ally cruzou os braços, lançando aquelas palavras no maior tom de reprovação.
— Por quê?! — contestei. Então, me voltei para Alex, apertando o botão várias e várias vezes. — Desculpa… é que… o sinal tá muito ruim… Desculpa… Te ligo… outra hora… Tchau.
Desliguei.
— Eu disse. Você é cruel.
— Eu não recusei nada, recusei? Alex é legal. Um dia ainda posso precisar falar com ele — guardei o papel na gaveta. — Não queria que ele tivesse a chance de me passar uma cantada e o clima ficasse super estranho quando a gente se encontrasse outra vez.
Allison gostava de me contrariar, eu já estava acostumada. No entanto, dessa vez, ela tinha um ponto – eu estava sendo um pouco egoísta. Mas, desculpa, eu não conseguia sentir a menor atração por um cosplay do Guns N’ Roses. Talvez se Alex tentasse imitar o Leonardo DiCaprio ou alguém assim, eu poderia reconsiderar.
— Tem como ele saber meu número agora? — perguntei.
— Só se ele tiver um identificador de chamadas.
— Temos essa modernidade na Oyster?
— Acho que não nos alojamentos. É possível que ele tenha, se morar numa república. Capaz de ter até duas linhas telefônicas.
— Nossa... — e eu aqui juntando moedas para comprar cartões de orelhão. — Bom, espero que ele não tenha registrado o meu número.
Alguns dias se passaram e eu ainda não havia superado a possibilidade de Alex me ligar de volta a qualquer momento. O suspense era ainda maior sem ter uma bina. Até mesmo bater um papo com o cara seria socialmente cansativo para mim.
Eu não estava a fim. Era uma verdadeira merda rejeitar e ser rejeitado. Eu que o diga.
Com o feriado de Ação de Graças chegando, eu estava recebendo um monte de ligações da minha família de Louisiana para os planos do jantar, o que dificultava meu sensor de alerta para uma chamada anônima.
— , meu voo sai de Baton Rouge às oito horas, então vou pousar em Nova York ao meio-dia. Nosso voo de volta é às onze da noite. Isso significa que teremos umas seis horas livres na cidade, contando o tempo que precisamos chegar com antecedência pro embarque.
— Já entendi tudo. Pra onde você quer ir?
— Hmm… Quero ir ao Empire State, comer cachorro-quente, caminhar pelo Central Park, subir nas Torres Gêmeas, experimentar um cheesecake e tirar uma foto em frente ao prédio de Friends. Dá tempo?
Meu irmão, Jack Elliott, havia acabado de completar dezoito anos. Ele havia sido aprovado na Oyster pelo SAT e conseguido uma bolsa para entrar no time de basquete da Universidade de Nova Orleans no próximo ano. Em vez de voar sozinha até Louisiana, Jackel viria me “buscar” para passear um pouco por Nova York. Ele estava ansioso para conhecer a Big Apple, mas ainda não havia se decidido entre as opções de estudo pelo receio de ter que morar tão longe.
— Podemos ir também numas boates no Upper East Side? Qué dizê, cê me fala como chega lá e depois racha fora proutro lugar. Tô a fim de chavecar umas nova-iorquina rica.
O sotaque dele começou a aparecer. Jackel sempre tentava se conter quando falava comigo. O meu também não demoraria muito para ressurgir das cinzas e tentativas de não entregar a menina sulista que existia dentro de mim. Mas não adiantava. Depois de todo Natal lá em casa, eu voltava uma caipira pra Oyster.
— Podemos fazer tudo o que você quiser — falei, acostumada com aquela empolgação. — Contanto que tenhamos dinheiro. Quanto conseguiu juntar do seu emprego de meio-período?
— Será que consigo encontrar o Keanu Reeves? — ele me ignorou. — Ontem um colega meu separou um pôster de Matrix pra mim lá na locadora. Imagina que da hora se o Keanu Reeves o autografasse?!
— Não é tão fácil encontrar celebridades assim, Jackel. Mais fácil você tirar uma foto com o Keanu de cera.
— , cê num tá ligada — comecei a rir. Ele continuou: — De uns tempos pra cá, tô querendo explorar mais o mundo, sabe? Conhecer uns lugares, experimentar umas coisas. Cansei de ficar adiando e esperando minha vida começar. Por que cê num faz o mesmo? Qué dizê, duvido que cê fez tudo o que queria desde que chegou em Nova York. Sua cara ficar o dia inteiro no quarto vendo filme. Nem dançando tá mais. Porra, faz uma aventura qualquer por aí. Daqui a pouco cê tá de volta aqui em Livingston e vai ficar lamentando um tanto de troço que não fez. Te conheço.
Dei um longo suspiro e, então, admiti:
— Você tá mais do que certo. Sabe, gosto dos seus papos motivadores — coloquei a cabeça para fora da janela do meu quarto e tentei avistar a costa praiana o máximo que pude. — Hmm… Cê me lembrou de uma aventura que eu queria fazer, sim.
— Qual?
— Amanhã te conto.
Depois de mais uns vinte minutos planejando um roteiro turístico e barato, finalmente desligamos. Jackel estava alucinado com Nova York, mas algo me dizia que ele ia acabar preferindo ficar em Louisiana. De alguma forma, ele era cinquenta mil vezes mais sociável do que eu, então imagino que não conseguiria deixar para trás sua turma de amigos e namoradinhas assim tão fácil. Entretanto, pensando por esse lado, eu era bem mais impulsiva do que ele.
Jackel havia me dado um bom conselho. Agora, minha cabeça se enchia de planos sobre um lugarzinho que sempre quis visitar, mas nunca encontrei ninguém por aqui que toparia ir comigo – ou, pelo menos, que não acharia o convite bizarro.
Toc to-to-toc. Toc toc.
Alguém fez uma batidinha excêntrica na porta do dormitório. Era pleno fim de tarde de um domingo. Quem poderia ser?
Arrastei meus chinelos até a entrada e a abri. Dei de cara com Jenna.
— Oi, chiquita! Vim te buscar pra vir ao meu quarto.
— Espera, como assim?
Ela já foi logo me puxando pela mão.
— Estamos todos reunidos lembrando daquela noite em Bricktown em que você foi a grande protagonista. Sua presença é imprescindível.
— Espera aí, eu tô de pijama! — contestei em vão, já expulsa do meu próprio quarto e com os pés no carpete do corredor.
Jenna se encarregou de fechar a porta e me acalmou:
— Relax, vai ter comida. Qualquer traje é o certo pra comer.
E era mesmo.
O quarto de Jenna não era nada como qualquer outro que eu já tinha entrado nesses alojamentos. Inclusive, ele era bem maior. E só dela!
Havia uma parede de tijolos com uma porção de pôsteres de bandas clássicas de rock, fotografias, croquis e desenhos de figurinos. Sua enorme cama estava toda bagunçada com lençóis estampando personagens da Nickelodeon. Em frente a ela, havia uma mesinha de centro e alguns puffs onde todos estavam acomodados.
— Chegaram na hora certa — PJ falou, abrindo as caixas de duas pizzas gigantes. Aquele cheiro de mussarela quentinha me fez flutuar.
— Vamos, , fique à vontade. Mi cafofo és su cafofo — Jenna me levou até um puff vazio e me fez sentar nele.
Em seguida, ela foi mexer numa estante cheia de velas, cristais, livros, CDs e LPs. Alex a acompanhou e os dois iniciaram alguma conversa sobre música.
Olhei pela primeira vez para todo mundo, um pouco constrangida pelo moletom e a calça de flanela que eu vestia. Mas isso logo passou, porque eles estavam tão maltrapilhos quanto eu. Recebi um cumprimento em conjunto e todos me deixaram à vontade. Então, já fui logo abocanhando uma fatia de pizza, porque a vida era curta demais para seguir regras de etiqueta.
Só tinha uma pessoa ali que eu não conhecia (e, com certeza, a única bem vestida): a garota ao meu lado, com uma perna no colo de . Não me surpreendia nem um pouco o fato de aquele bonitinho estar acompanhado, e isso significava que só me restava o Peterson Jefferson mesmo. Mas eu estava perfeitamente bem com isso. Só tinha um pequeno e um grande problema: o pequeno era que PJ estava longe demais na roda pra eu poder flertar discretamente; o grande era que eu nem sabia flertar.
— , você também é do Design? — o bendito me perguntou. Ótimo, quem precisava gastar energias com flerte, mesmo? Isso estava mais fácil do que eu tinha imaginado.
Puxei o ar e abri a boca para responder.
— Sim, já vi ela por aí numas aulas — respondeu por mim enquanto mastigava. Mas que audácia? — É a queridinha do Bobby Blockbuster.
— Porra, do Bobby Blockbuster?
Pigarreei, entrando em defesa do coitado:
— O que vocês têm contra ele?
Robert era o professor de Tipografia, e chamávamos ele assim porque o homem vivia passando filmes e documentários nas aulas. Eu aposto que ele passou a década de oitenta inteira descobrindo como gravar fitas VHS. Hoje, qualquer programa educativo que ele vê num canal desconhecido da TV a cabo, grava e passa para seus alunos. Bobby era fascinado por tecnologia e pela origem das coisas, então fez questão de que todos soubéssemos muito bem como a comunicação escrita havia surgido antes de nos introduzir à construção das famílias tipográficas e ao manuseio dos softwares.
— Ele só é muito exigente — falei simplesmente.
— Pfff. Antes ele fosse só exigente — PJ resmungou. — Esse desgraçado me fez repetir por uma miséria de pontos.
— Eu quase repeti — disse —, mas dei meu jeito de sempre no final.
— Eu sei, ele mandava uma penca de trabalhos toda semana — continuei. É claro que eu ia advogar a favor do professor de uma das minhas disciplinas favoritas. — Mas Bobby não tem culpa se já está aproveitando os recursos tecnológicos que temos ao invés de nos mandar ler uma pilha de artigos desatualizados.
— Meu Deus, encontramos uma fã do Bobby Blockbuster — PJ deu uma risada alta. — Vem cá, com quantos pontos você ficou na matéria dele?
— Tem certeza, PJ? — o instigou.
— Manda aí.
— … Oitenta e sete — respondi.
— Porra…
— Falei. Ela é boa — o loirinho outra vez falou, levando um pedaço de pizza à boca como se fosse um cacho de uvas. Ele ainda envolveu um de seus braços ao redor da garota ao seu lado e a puxou mais para perto.
Eu estava certa, pelo visto. Fizemos mesmo uma aula juntos, e, por algum motivo desconhecido, meu cérebro não havia registrado aquele fato como marcante. Chuto que seja porque eu estava ocupada demais venerando um ex-ficante, ou exausta demais da minha antiga rotina de estagiária. Ou porque eu gostava de assistir documentários desinteressantes mesmo.
Por fim, Jenna e Alex colocaram um disco para tocar, e adivinha só: era do Eagles.
Witchy Woman – Eagles
— Eu não faço a menor ideia de quem vocês estão falando — Jenna se aproximou e foi se sentar num puff.
Então, finalmente, a tal garota resolveu se pronunciar:
— Nem eu.
Ela tinha os cabelos longos e tão escuros quanto a aura que a circundava. Não sei se a cara de emburrada era natural de suas feições ou se alguma coisa de fato estava a incomodando. Chegava a ser engraçado a imagem de , totalmente largado e sorridente, abraçado àquela menina de Salem.
— Ainda bem que não sabem. Não estão perdendo nada — PJ abriu sua cerveja e resmungou mais uma vez.
— Você ainda vai ter aula com ele, Rennie. Talvez no seu próximo ano — falou para ela.
Rennie devia ser uma caloura, então?
Ao mesmo tempo que ela esbanjava uma mistura de indiferença com desdém para tudo, Rennie era super descolada: tinha um piercing no nariz, um na sobrancelha e em um dos lábios carnudos que faria Angelina Jolie sentir inveja. Era capaz de haver piercings em mais um monte de partes de seu corpo que eu nem estava enxergando. Ela também usava um gorro cinza e um batom vermelho, além de um par de botas de couro maravilhosas.
Por um breve momento, me veio uma vontade imensa de queimar todas as minhas roupas rosas e ser tão legal como aquela garota. Porém, meu senso do ridículo apitava só de me imaginar vestindo qualquer adereço punk.
Se Rennie visse minhas meias de ursinho, ia querer vomitar.
— Acho que eu também me daria mal nessa matéria. Cara, odeio computador — ela continuou —, mas internet é legal. Principalmente as salas de bate-papo. Outro dia até criei uma conta no AIM.
— Falando em internet… — a voz de Alex, de repente, ecoou pelo quarto. Ele estava atrás de nós, sentado numa escrivaninha, de frente para o meu maior desejo de consumo desde seu lançamento no ano passado: um lindo iMac G3. — Saíram os resultados dos exames finais.
— O quê?! — Jenna correu de volta até ele.
Os outros também foram, menos Rennie, que foi fumar um cigarro na janela.
Eu não estava nem aí para os resultados, porque minha consciência estava tranquila. Se tinha alguma matéria que corria risco, pelo menos a média eu devia ter pegado. Não havia outra opção.
Enquanto todo mundo via suas respectivas notas, aproveitei para pegar uma das últimas fatias de pizza.
— Caralho, passei em Análise de Algoritmos! — PJ comemorou.
— , você não quer ver os seus? — Alex me perguntou, sem desgrudar os olhos da tela. — É só você me passar seu número de matrícula.
— Não, tô tranquila.
— Tem certeza?
“Quanto será que eu tirei naquela prova da acrobata de circo?”, pensei na hora. Então, respondi:
— Tá, quero ver.
Me levantei e entrei no meio deles, atrás de Alex. Ele apertou um monte de botões e digitou meus dados, e, assim que meu quadro de notas pulou na tela, nada mais se ouviu além do meu berro desesperado.
— COMO ASSIM?! — não tinha como olhar para outro lugar que não fosse o enorme escrito “REPROVADA” em vermelho. Agarrei minha própria cabeça, e minha voz saía quase como um pedido de socorro das profundezas de uma masmorra. — Não. Não. Não, o que é isso? Eu tô chocada. Não tô acreditando nessa palhaçada de merda.
Naquele exato momento, ouvi uma risadinha que saiu mais como um grunhido.
Meus olhos se dirigiram instantaneamente para . Seu rosto estava lentamente se transformando em um tom mais vermelho, enquanto ele prensava os lábios e tentava segurar o riso. Levou apenas alguns segundos para ele explodir em gargalhadas.
— PARA DE RIR!
Alex fechou aquele monte de pop-ups e todo mundo foi voltando para os puffs, enquanto tentavam me dizer palavras de consolo que eu só consegui ignorar. PJ fez questão de me dar um tapinha no ombro:
— Já tinha reprovado em algo antes?
— Não.
— Tudo tem a primeira vez — ele disse, divertido, levantando os ombros. — Pelo menos não é com o Bobby Blockbuster.
— Puta merda, o que é que eu vou fazer? — perguntei mais para mim mesma do que pra qualquer um ali. Que derrota. Que humilhação desnecessária. Não havia nada mais decadente do que repetir uma matéria logo no último semestre da faculdade.
— , relax e toma uma cervejinha — Jenna colocou uma lata na minha mão. — Todo mundo sempre acaba passando por isso pelo menos uma vez.
— Espera. Isso não pode ser real. — chamei, e ele se virou para me olhar —, você sabe dar um jeito nisso?
— Eu? Por quê?
— Você disse antes que por pouco não passou em Tipografia, mas deu um jeito. Que jeito foi esse?
Vai que ele sabia burlar o sistema, alterar uns códigos e mudar minha nota feito o Ferris Bueller? Ele me pareceu bem misterioso quando disse que “sabia dar um jeito” e, sei lá, tinha uma cara de esperto.
Ele só riu.
— Meu jeito foi virar a noite e refazer um trabalho horas antes da entrega.
Bufei. Eu não tinha a menor chance.
— Mas... — ele continuou.
— Mas...? — supliquei.
— Vou ser o novo monitor das aulas de Modelo Vivo no próximo semestre. Posso te ajudar a conseguir mais que 45% dos pontos dessa vez, pelo menos.
— Eu não tô entendendo isso até agora. Como fui capaz de conseguir uma nota tão catastrófica? Eu não fui tão mal assim na última prova... Só se eu tiver zerado–
— Você usou borracha?
Meu coração parou.
— N-Não podia usar borracha…?
voltou a rir.
Aquilo me fez descer o olhar imediatamente para a cerveja que eu segurava. Não era minha intenção beber hoje, porque, no dia seguinte, tinha combinado de ir à Manhattan com meu irmão e queria estar minimamente disposta, mas as atuais circunstâncias estavam me obrigando a fazer o oposto. Pelo menos, aquela lata ia direto para o meu estômago.
Só aquela.
— E quando ela rasgou o pé todo naquele caco de vidro no meio da areia? Nossa, que barra...
— É mesmo. , como está seu pé? Por pouco não precisou dar ponto.
— Por pouco não fomos assaltados.
— E esfaqueados...
— Cara, vacilamos demais. Demais. Todo mundo sabe que não dá pra ficar dando mole naquela praia depois da meia-noite.
— Pois é, já fui assaltado lá uma vez enquanto esperava um táxi. Roubaram minha carteira e a porra do meu relógio.
— Conheço um cara que também já foi. A mesma história do canivete e tudo mais. A viatura da polícia chegou meia hora depois e anotou o boletim de ocorrência no verso de uma nota fiscal do Millard’s.
— Ah, foda-se… Deu tudo certo no fim das contas.
— E a sozinha lá no píer, cara, igual uma assombração.
— Foi engraçado, . Parecia o Gasparzinho no meio do nada.
Eu estava na minha sexta lata e umas trinta ocupavam a mesa de centro. Nossa rodinha agora estava menor e, consequentemente, estávamos mais perto uns do outros. Todos só se lembravam de mim naquela fatídica noite em que terminei com Blaze– Quer dizer, que Blaze terminou comigo. Toda aquela sensação de merda estava voltando, e minhas emoções ultrapassaram um monte de camadas até chegarem em minha boca.
— Eu só queria dizer que vou relevar o deboche, porque amei conhecer vocês. Todos vocês — me declarei. — Sou muito grata. Vocês são bens preciosos na minha vida agora.
— Tim-tim! — Jenna brindou sua cerveja com a minha.
— Fala sério, até ganhei um admirador secreto!
— Como é? Quem? — ela perguntou, intrigada, e rapidamente encaramos os dois rapazes restantes naquele quarto. tinha saído com a namorada.
— Do que... você tá... falando? — PJ estava quase dormindo e dava um bocejo a cada dois segundos.
— ALEX ROSE! — gritei, apontando meu indicador bem na cara dele. PJ se assustou. — Foi você que colocou seu número de telefone no meu bolso, não foi?
— Ok, ok… — Alex ergueu os braços, assumindo a culpa. — Fui eu mesmo. Achei que ia colar, tá legal? Não sei no que eu tava pensando.
— Putz. Você não perde tempo mesmo, hein? Alex Rose... — PJ deu um cutucão em seu ombro. Em seguida, riu. — precisa saber disso.
— Ah, não, Alex... Sério? — Jenna jogou o lacre da latinha nele. — Não me surpreende você mal conhecer uma garota e já querer passar uma cantada nela. Mas uma garota com o pé machucado? E com o coração partido?!
— , me desculpa — ele olhava para o chão. — Sou meio descontrolado quando fico muito bêbado e um pouco carente…
— Espere aí, vamos inverter essa frase. Você estava, na verdade, muito carente e pouco bêbado — Jenna afirmou. Depois, se virou para mim: — , promete que não vai deixar de andar com a gente por causa do idiota do Alex?
Ah, se eles soubessem que eu também estava querendo passar uma cantada em PJ... Joguei a cabeça para trás e dei uma risadinha.
— Tudo bem, Alex. Eu entendo os desesperos da carência.
Então, pela primeira vez naquele dia, ele me olhou nos olhos. Parecia envergonhado, mas nem tanto. Não esperava que Alex fosse do tipo tímido sem álcool no sangue. Porém, bêbado, ele devia ser um daqueles caras que atiravam para todos os lados.
— Bom, agora vocês têm meu número — ressaltei. — A propósito, seu telefone tem bina, Alex?
— Sim — PJ quem respondeu.
— Vocês dividem quarto?
— Dividimos uma casa. Moramos numa república, eu, Alex e .
— Hmm. Que sorte vocês serem amigos e ainda conseguirem morar juntos.
— Na realidade — Alex explicou —, só viramos amigos porque passamos a morar juntos.
— É verdade. Foi totalmente… — PJ bocejou — … aleatório. Eu faço Computação, faz Design e Alex faz Relações Públicas. Eu consegui alugar a casa e recrutei dois colegas de quarto. Esses dois fodidos apareceram e estamos aqui até hoje.
— Mas espera aí. Se você faz Computação, como teve aulas com o Bobby Blockbuster?
— Tive que fazer algumas matérias com ele pra conseguir desenvolver um projeto prático interdisciplinar que faço com o .
— Continua sendo sorte, aliás. Vocês se deram bem — dei de ombros. — Eu, por outro lado, só arrumo umas colegas de quarto meio malucas.
— Exatamente por isso que eu durmo sozinha — Jenna disse, com um sorriso pleno e satisfeito no rosto.
Sorri de volta, transbordando inveja. Eu queria muito saber como ela tinha conseguido um quarto individual. Aquilo era uma dádiva.
— Como é que você tem um quarto só seu?
— Tem um monte de coisas que você ainda não sabe sobre mim, .
Jenna mal havia terminado de pronunciar sua frase de efeito quando a porta se abriu de supetão. apareceu e adentrou o quarto, tão apressado que deixou um rastro de vento por nós.
— Uma das coisas é — ele foi dizendo enquanto atravessava o cômodo —, ela esconde um narguilé de uns mil dólares naquela estante.
— Escondo justamente pra você não roubar — Jen respondeu. — O que tá fazendo aqui?
— Esqueci a porra da minha carteira e os meus documentos aqui.
Para quem estava quase dormindo, PJ soltou uma risada incrivelmente alta.
— Ainda precisa provar que é maior de vinte e um, carinha de anjo? — ele provocou, acariciando a própria barba bem alinhada. — Vai, sonha.
Totalmente indiferente à crítica, rebateu:
— PJ ainda acha que, a cada dois centímetros que sua barba cresce, ele ganha mais dois centímetros de pau.
Agora quem riu alto fui eu.
De repente, todos eles pararam e ficaram me olhando.
— O quê? — perguntei. Então, literalmente todo mundo começou a rir de mim.
— Meu Deus, essa é… — PJ falou, mas não conseguiu terminar. — Essa é minha nova risada preferida.
— A minha também! — Jenna exclamou.
Vontade de enfiar minha cara num buraco não faltou, mas acabei rindo ainda mais com deles. Não era como se minha risada fosse escandalosa, mas ela chamava bastante a atenção. Ok, talvez fosse um pouco desenfreada, mas sempre acabava contagiando os outros. Também não era a primeira vez que as pessoas achavam graça, só que eu nunca me acostumava com isso.
Quando pararam de rir, todos voltaram as atenções para , que terminou de vasculhar a estante e guardou a carteira no bolso.
— Jenna, me empresta o narguilé? — ele perguntou, fazendo a maior cara de pidão.
— Não.
— Por favor. Eu devolvo amanhã, prometo.
— Pensei que você estivesse tentando parar de fumar.
— Vamos usar glicerina. Por favor, por favor, por–
— Tá, tá… Amanhã sem falta, ok? — ela revirou os olhos. — Agora, vai embora logo.
— Obrigado — ele comemorou. Em seguida, com a mesma pressa que entrou no quarto, foi embora.
Nem cinco segundos depois, abriu a porta de novo.
— Esqueci de entregar isso a vocês — ele arremessou uns folhetos na mesa de centro, por cima das cervejas. — Agora temos onde passar a virada do milênio — deu uma piscadinha e finalmente sumiu, fechando a porta.
— O que é isso? — Alex se debruçou e pegou um dos papéis.
— Ah, eu vi um desses ontem — falei. — A Phi Kappa Beta tá organizando uma festa de Ano-Novo na mansão da fraternidade.
— Sério? — PJ se surpreendeu. — Não fiquei sabendo disso.
Alex começou a ler:
— “Pela primeira vez na história da Universidade Oyster, a Phi Kap ficará no Campus durante o feriado de Natal e Ano-Novo para organisar a maior e última festa do século XX. Cerveja liberada até meia-noite. Ninguém está autorizado a sair do Campus dia 31. Estão preparados para o verdadeiro fim do mundo?”
Revirei os olhos.
— Eles escreveram “organizar” com S, né? — comentei.
— Sim, escreveram — ele riu.
— A única coisa que presta dessa fraternidade é o Roy Finnegan.
— Meu Deus. Esse homem é um deus na Terra — Jenna concordou comigo. — Quer saber? Eu vou só por causa dele. O prédio de Direito fica tão longe...
— E faz meses que ele tá no banco reserva do futebol. Vai ser uma ótima oportunidade para vê-lo.
— Sim!
— Putz, tem como vocês ficarem patéticas que isso? — PJ criticou. — Mas eu também vou, se todo mundo como eles dizem for mesmo. Imagina? Será que o pessoal vai mesmo ficar pra essa festa em pleno recesso?
— Pelo que conheço das festas da Phi Kap, essa com certeza será imperdível. Tava pensando em ir com… — suspirei, pensando em Blaze. — Deixa pra lá. Acho que vou com minha amiga Allison. Podemos nos encontrar lá.
— Só de ter uma desculpa pra não ter que viajar até a casa dos meus pais, já está me quebrando um galho — Alex jogou o folheto de volta na mesa.
Aquilo me fez lembrar de Jackel e, na mesma hora, me levantei do puff.
— Tenho que ir. Chega de beber, preciso dormir. Amanhã vou à Manhattan com meu irmão e pego a balsa das nove horas.
— Ah! Ah! Compra alguns dumplings pra mim em Chinatown? Eu te pago — Jenna pediu, animada. — Se você passar lá, é claro.
— Claro. Sempre vou lá comprar uns trecos. Inclusive, preciso de um novo par de botas — ergui uma sobrancelha.
Ela concordou, dando uma risadinha. Depois, foi buscar o dinheiro para me entregar.
— Toma esse casaco também pra você voltar ao Belva Hall. Mesmo que esteja a vinte passos, já tá bem tarde e o clima esfriou mais — Jen sobrepôs em minhas costas um casacão de lã cheio de linhas coloridas.
— Obrigada. Não sei quando, mas te devolvo.
— Fica tranquila. Quem não costuma me devolver as coisas é o .
Assim que me despedi de todos, voltei para o meu quarto num pulo. Eu ia amanhã à noite para Louisiana e voltaria só em janeiro para Nova York. Mas, agora, acho que eu poderia adiantar o meu retorno em alguns dias para não perder a festa da Phi Kap.
Eu precisava beijar outras bocas e desistir de uma vez por todas de Blaze.
A divulgação e o burburinho só aumentavam, bem como minha ansiedade. Era por isso que eu já estava prestes a pousar no Aeroporto JFK dois dias antes da noite da virada. Fala sério, ninguém aguenta aquele limbo temporal entre os dias 25 e 31 de dezembro. Mais um dia em Louisiana e eu viraria uma fazendeira, dona de uma vendinha de leite de cabra.
— Atenção, senhores passageiros. Dentro de instantes, pousaremos no Aeroporto Internacional John F. Kennedy. Mantenham os encostos da poltrona na posição vertical e apertem os cintos.
— Pai nosso que estais no céu…
Olhei para o homem que sentava ao meu lado. Ele espremia os olhos e apoiava a testa sobre as mãos justapostas.
— Santificado seja VOSSO nome. Seja feita a VOSSA vontade, assim na TERRA como no CÉU — ele rezava, como se as ênfases fossem fazer alguma diferença.
Não tinha mais jeito, a histeria coletiva era real.
Como uma espécie de amuleto da sorte, eu levava comigo a cópia da foto que tirei com Jackel em frente ao prédio de Friends, só para não dizer que eu também não estava totalmente de fora do pânico geral.
Mentira. Estava levando aquela foto só para pregá-la no meu mural mesmo. Enquanto isso, me preparava para rir da cara de todo mundo no dia 1° de janeiro.
Parece que eu havia trazido a temperatura subtropical da minha casa para a Ilha de Staten. Fomos abençoados com dezoito graus naquela última noite do ano, com certeza a mais quente daquele inverno. Isso nos permitia abandonar os casacões bufantes e vestir alguma roupa decente para a festa.
— Será que o Blaze vem?
— Allison — fechei os olhos brevemente e suspirei —, se não se lembra, eu vim pra cá justamente pra me esquecer do Blaze.
— Só estou perguntando… Quero dizer, acho bom que ele não apareça mesmo.
Infelizmente, eu não tinha nada cromático ou holográfico para vestir. Seria a ocasião perfeita, mas torrei minhas economias em guloseimas ao invés de novas roupas. Grande erro. Pelo menos, para não ficar totalmente de fora da temática, eu usava um batom metálico cheio de glitter. Fora a blusa branca que roubei da minha irmã, até que eu estava curtindo meu pretinho básico: jaqueta de couro, saia, meia-calça e minhas novas belíssimas botas.
— Você tá tão Winona Ryder.
— Jura? — me surpreendi com o elogio. Estava tentando mirar na Drew Barrymore, mas fiquei feliz de todo jeito. — Obrigada!
— Só a saia que tá um pouco curta demais, né?
— S-Sério? Você acha? — tentei puxar a barra do tecido o máximo que pude para cobrir um pouco mais as minhas coxas.
— Não, não precisa fazer isso, . Você está de meia-calça.
— Ah. É mesmo — falei, um pouco irritada pelo desespero inútil que ela havia me causado.
Os membros da Phi Kappa Beta tinham o privilégio de morar numa imponente mansão branca de três andares, com largas e altas janelas quadriculadas. Uma imensa porta vermelha de entrada dupla estava aberta no alpendre, onde havia quatro colunas jônicas e as letras gregas representando a fraternidade.
A festa já tinha começado há algum tempo. À medida que adentrávamos os zilhões de cômodos, mais o som da agitação dos estudantes ecoava pelo espaço e mais a música invadia nossos ouvidos.
Jump Around – House Of Pain
Não demorou muito e Allison encontrou algumas de suas colegas de curso. Fiquei esperando no outro canto do corredor, onde encontrei algo muito melhor que pessoas conhecidas: um barril de cerveja.
Não hesitei e fui logo entrando atrás de mais alguns caras que formavam uma fila para encherem seus copos com a torneirinha. Assim que enchi o meu e passei a vez para o sujeito atrás de mim, me surpreendi ao ver que era .
— Ah! Eiii, ! — igualmente surpreso, ele colocou uma mão em meu ombro e me olhou de cima a baixo. — Estamos combinando!
Meu Deus. Ele já estava mais do que bêbado e… tão mais bonitinho do que eu me lembrava. Será que era porque estávamos em outro lugar, sem ser a faculdade? Ou porque ele usava um estilo diferente do normal? Só sei que não parava um minuto de sorrir, e suas bochechas coradas apertavam seus olhos. Assim como eu, ele vestia uma camiseta branca e uma jaqueta de couro preta – quase o Danny Zuko de Grease –, e essa simples coincidência bastou para sua felicidade.
— É mesmo! Ó procê ver! — falei, um pouco desconcertada. Como era possível um homem bêbado ficar tão charmoso? — Cê tá tão... Winona–
Alerta vermelho. Frase absurda à frente. Eu estava prestes a repetir o elogio de Allison para ele.
— HÁ! — ele pôs a mão no peito e inclinou a cabeça para trás, abrindo ainda mais o sorriso. Depois, juntou as sobrancelhas e me olhou de novo, sério e confuso. — Espera, o quê? Winona? — então, teve uma pequena crise de riso. — Ah, , você é tão engraçada. Não entendi nada do que– Cara, eu sabia que você não era de Nova York.
Nada do que ele falava seguia uma única linha de raciocínio, e suas expressões faciais mudavam em milissegundos. Eu estava doida para rir, mas, se isso acontecesse, entraríamos num loop infinito de risadas. Naquele estado, ele com certeza ia rir da minha.
Pigarreei algumas vezes antes de perguntar:
— Por que diz isso?
— Seu sotaque.
Ah, não. Eu havia me esquecido totalmente de disfarçar desde o minuto em que apareceu na minha frente.
— Alguém veio lá do sul! — brincou, me cutucando várias vezes. — Mas qual estado…? Ainda não sei dizer — ele finalmente encheu seu copo e, em pelo menos quatro goles, acabou com metade da bebida. — Hmm… Deixe-me ver… Tenne... Tennessee?
— Não…
— Não? Tem certeza?
— Sim, tenho. Eu tenho certeza de onde venho — ri, me esforçando muito para ser discreta. — Tente mais ao sul.
— MAIS? — seus olhos se arregalaram. — Então… Atlanta, Georgia? Definitivamente você é de Atlanta, sei disso.
— Não, agora tente ir mais pro oeste — estava ficando difícil segurar o riso.
— Alabama? Sweet Home Alabama! Ah, cara, sempre quis cantar isso pra alguém do Alabama.
— Só um pouco mais pro oeste — continuei com as dicas, mas ele bufou, desanimado. — Vai, você consegue. E não, não sou de Mississippi.
parou por um momento e encarou o teto, pensativo, como se ali pudesse enxergar todo o mapa dos Estados Unidos. Então, segundos depois, ele gritou na maior algazarra:
— LOUISIANA!!!
— Isso!
Fizemos um high-five, e não consegui me conter mais. Comecei a rir muito. Não deu outra, ele riu mais ainda.
— … — de novo, levou uma mão no peito, espremeu os olhos e jogou a cabeça para trás enquanto gargalhava. — Você ri que nem um desenho animado, sabia disso?
Dei uma cotovelada no braço dele. Então, respirei fundo, tentando me controlar.
Meu Natal em Louisiana me fez reparar melhor no quanto minha risada era parecida com a da minha mãe, que sempre foi meio exagerada. Mas também tinha um jeito característico de rir. O som que ele fazia ia diminuindo gradualmente, como se o ar ao seu redor estivesse se esgotando.
Quando terminou, ele também respirou fundo.
— Ah... Você veio de longe, hein? Qual cidade? Nova Orleans?
— Não, Liv–
Antes que eu pudesse dar uma resposta completa, parei, do nada.
Simplesmente parei.
Vi Blaze no meio da sala onde todo mundo dançava. Estava sozinho, só no dois pra lá, dois pra cá – o coitado não levava o menor jeito para a dança. Mas era óbvio que ele estava na caça de uma parceira, e não era sua falta de habilidade que impediria seu sucesso. De alguma forma intrigante, ele era o único homem que se destacava naquela aglomeração entre as luzes coloridas. Talvez sua altura, talvez sua virilidade, talvez sua incrível capacidade de disfarçar a falta de coordenação motora. Talvez uma combinação de tudo. O filho da puta tinha um encanto ilógico, e como era difícil quebrá-lo...
reparou quando também se virou para olhar na mesma direção que eu.
— Aquele é o seu cara?
— Era — respondi, saindo do transe.
— Ah, é. Foi mal — ele tomou mais um longo gole de sua cerveja.
Coincidência ou não, por cima de seu ombro, avistei Rennie conversando com outro rapaz no canto oposto do ambiente.
— Aquela não é a sua garota? — apontei com o queixo.
Ele girou o pescoço para o outro lado e também parou.
— Ah, merda… É, sim. Aquela– Aquela é minha garota — ele parecia preocupado. — Na verdade, acho que vou lá checar. Com licença.
E saiu andando, tão rápido que não deu tempo de dizer mais nada.
Verifiquei o cômodo em que estava antes e vi que Allison ainda interagia com suas colegas. Poderia até tentar entrosar, mas eu sabia o papo de cor. Principalmente quando o assunto era sobre os ex-namorados e as panelinhas do ensino médio. Quase quatro anos depois e nenhuma ali ainda tinha superado as intrigas da escola.
Corri até .
— Ei, espera!
Ele parou e se virou para me olhar. Se antes parecia preocupado, agora eu tinha certeza.
— Você viu Jenna por aí? — perguntei.
— Jenna? Acho que lá em cima.
Em um segundo, olhei para a escada e, no outro, não estava mais ali.
Já pude pressentir que aquela seria uma bela de uma noite solitária. No entanto, a decisão de largar Ally para trás foi exclusivamente minha.
Subindo as escadas, terminei minha cerveja e joguei o copo plástico em um lixão lotado que encontrei no caminho. O segundo andar tinha uma enorme janela saliente no estilo vitoriano, que acomodava um sofá arredondado. Era uma daquelas janelas projetadas para fora da parede e, com toda certeza, o canto mais charmoso e aconchegante da mansão. Quando caloura, vim em incontáveis festas e terminei a noite incontáveis vezes alcoolizada naquele sofá. Inclusive, eu tinha passado a virada de 1998 dormindo nele.
E cá estava eu de novo.
— ! — ouvi a voz de Jenna me chamando, mas não consegui enxergá-la. Tinha um monte de pessoas na minha frente. — Aqui, ! — ela acenou.
Fui me esbarrando nos outros até conseguir me aproximar dela. Com um isqueiro numa mão e um cigarro na outra, Jen estava sentada no sofá e apontava para o lugar vago ao seu lado. Para variar, ela estava super elétrica, e seu sorriso perfeito carregava tanto entusiasmo que... só me fazia parecer o Oscar Resmungão da Vila Sésamo outra vez.
Sentei-me ao seu lado.
— Que bicho te mordeu, meu chuchu? — ela perguntou.
— Está tão visível assim? — agarrei uma das almofadas e deixei que meu corpo esmorecido caísse sobre o encosto.
— Porra, quer algo mais visível que isso?
Imediatamente arrependida, voltei à postura de uma pessoa com ânimos normais.
— Desculpa, é só que… Lembra daquele cara que–
— O cara que te deixou sozinha em Bricktown? — Jenna exalou a fumaça com um cheiro agradável de cravo, e, naquele minuto, entendi porquê seu cabelo sempre cheirava a incenso. Ela fumava cigarros aromatizados.
— Acabei de ver ele lá embaixo. Quero dizer, é claro que eu esperava encontrá-lo por aqui, mas… não sei o que me dá quando o vejo. É um troço desconfortável.
— Ótimo, que bom que já sabe que é uma sensação ruim. Significa que você deve ficar longe.
O que ela tinha dito era inegável e não muito difícil de concluir, mas por que eu ainda me sentia tão atraída?
— Eu sei… Mas é difícil — comentei. — É fácil quando vou pra aula e tenho que entregar trabalhos, mas é difícil nos finais de semana e em festas, quando a gente costumava ficar sempre grudado.
— Sei como é difícil se desapegar de um Pau Amigo. Às vezes, é até mais difícil do que de um Pau Namorado.
— Já passou por isso? — perguntei, rindo.
— Que mulher nunca passou? — ela soprou a fumaça para longe, enquanto eu pensava no quanto estava fodida. Apego era o meu sobrenome. — Você vai ficar bem, . É mais difícil, mas é mais rápido. Tem outros Paus Camaradas por aí. Muitos, inclusive. Tenta um ou dois que você vai esquecer desse cara rapidinho. Como é mesmo o nome dele? Blake?
— Blaze — suspirei. Ultimamente, tem se tornado impossível pronunciar o nome dele sem um suspiro pesado. — O problema é esse, não sei se consigo fazer isso de novo. Só de pensar, me dá um nó no estômago.
— Poxa, por quê?
— Você não se sente mal fazendo essas coisas?
— Que coisas? Transar?
— … É. Transar com qualquer um. Suas amigas não te julgam por isso?
— Espera, não é com qualquer um. Você escolhe. Não é algo que você deve se envergonhar.
— Pois é, mas... Sinceramente. Quando tenho esses sexos sem compromisso, a sensação é que tô fazendo a droga de um programa.
— Então se mantenha profissional. Goze, pegue suas coisas e vá embora. Pronto.
Começamos a rir.
Aquela era uma questão muito mal resolvida na minha cabeça. Quando entrei na universidade, eu não era nenhuma inexperiente. Achei que fosse encontrar um namorado tão gentil quanto o meu primeiro, mas logo enterrei essa ilusão no meu primeiro ano na Oyster. Das pistas de dança aos quartos, todo mundo vivia tendo casos de uma noite só – eu inclusive. Não ia ficar de fora do jogo. Por anos tentei assumir essa “ confiante”, e, assim, minhas inúmeras inseguranças foram temporariamente dissolvidas.
Com o tempo, inevitavelmente, veio o apego. E com o apego vieram a vergonha, a ansiedade e o vazio. Eu não estava aguentando mais me meter nesses pseudo-relacionamentos. Era um saco seguir esse código social invisível que proibia qualquer tipo de envolvimento emocional, compromisso ou vulnerabilidade. Querer exclusividade com alguém era simplesmente loucura. Seriedade era um perigo a ser evitado à todo custo, para não atrapalhar o futuro promissor de ninguém.
Logo passei a acreditar que relacionamentos reais eram impossíveis aqui. Eu continuava no jogo, mas, dessa vez, com minhas inseguranças à flor da pele. Porque, além de tudo, eu tinha que aturar o julgamento alheio. O negócio era resistir.
— Isso não devia ser um peso na sua consciência — Jen continuou. — Suas amigas te dizem o quê?
— Nunca me disseram nada diretamente. Mas eu fico sabendo.
— É claro. Reclamam que você anda muito safada, não se dá valor e só quer chamar a atenção dos caras? — ela deu uma risada irônica, como se já estivesse acostumada a detectar aquelas características.
— É, mais ou menos. Quero dizer, elas não são maldosas… eu acho. Acho que ficam preocupadas comigo, de certa forma.
Ainda estampando ironia no sorriso, Jenna me encarou com seus grandes olhos azuis quando disse:
— , isso não é preocupação. Isso é ser cuzona.
Fiquei sem dizer nada, mesmo discordando.
Aliás. Concordando em partes.
— Sabe de uma coisa? — mudei o tom, voltando a abraçar almofadas.
— Manda.
— Tudo o que eu mais queria agora, nesse momento… era dar uns amassos com o Finnegan. Não vou mentir.
— Muito bem lembrado! — ela deu umas batidinhas no meu joelho. — Ai, ai, também queria. Acho que eu o beijaria dentro daquele banheiro ali.
— Não é muito apertado?
— É, mas não dou a mínima. Se o Finnegan pedisse pra me dependurar no ventilador, eu daria pra ele rodando.
Nem deu tempo de imaginar graficamente a cena, só explodimos em gargalhadas. Joguei uma almofada nela, que a agarrou em seu colo.
— E você, , como faria?
— Eu? Hmm… — sonhei acordada por um instante, imaginando todo tipo de coisa. — Sabe quando nos filmes o casal se beija loucamente? Vão subindo as escadas, abrem a porta do quarto, mal respiram, vão se despindo, daí o cara joga a mocinha na cama. Mas ele não simplesmente joga ela, ele joga. Sabe?
— Muito complicado vocês fazerem isso agora — ela riu.
— Quer saber? Quem estou querendo enganar? Eu pegaria ele aqui mesmo, nesse sofá.
Jenna deu um gritinho, quase se jogando em cima de mim. Então, puxou outro cigarro e, enquanto o acendia, tomou um susto:
— Ei, ei, ei! Olha só quem tá ali!
— Quem? Quem?
Avistamos ninguém mais ninguém menos que o próprio deus Roy Finnegan terminando de subir o último degrau da escada. Ele cambaleava sem rumo entre os mortais daquele andar, esbanjando sua gostosura como uma obra de arte milionária.
— Que coincidência — comentei.
Jenna logo me cortou:
— Coincidências não existem, . Cuidado com o que você pede ao Universo, tá vendo? Sua aura astral com certeza está vermelha.
Eu deveria perguntar o que aquilo significava ou só continuar babando por aquele homem maravilhoso?
— Ah, Jen… — dei um longo e clichê suspiro de amor. — Me diz, ele é um Pau Camarada?
— Não. Finnegan é um Pau Proibido. Fique longe dele.
— É impressão minha ou ele tá vindo pra cá?
— Sshhh! Rápido, senta direito! — ela ignorou totalmente suas próprias instruções, apagou o cigarro e fez uma pose super sedutora no sofá.
Quanto mais Roy se aproximava, mais era perceptível seu estado de decadência alcóolica. Porém, ao mesmo tempo, era mais fácil admirar sua beleza tão de perto: o cabelo preto e arrepiado, os olhos escuros que faiscavam tentação, a barba por fazer, a jaqueta do time de futebol contornando seus bíceps definidos e, por último… o perfume amadeirado.
O perfume amadeirado? Como fui capaz de…?
— , o que fazemos agora?!
Estava tão alto nas nuvens que mal percebi quando Finnegan veio se sentar no espaço entre Jenna e eu. E aquele espaço não tinha exatamente as proporções que o comportasse. Ele recostou a cabeça na janela e fechou os olhos. Então, como um lento zumbi, passou cada um dos braços por trás de nossos pescoços, nos abraçando e nos puxando ainda mais para perto dele. Sem muita escolha, acabamos nos deitando em seu largo peitoral, cada uma de um lado.
O que estava acontecendo? Ganhamos duas entradas para o harém de Roy Finnegan?
— O que fazemos agora? — repeti a pergunta de Jenna.
— Não sei!
— O que estão esperando? — ele murmurou, arrastando as palavras, e eu pude sentir a vibração de sua voz em meu ouvido. — Tem alguma placa aqui dizendo “proibido tocar”?
Finnegan nos apertou ainda mais contra seu corpo. Quase como num reflexo, minha mão tocou o abdômen dele para tentar me apoiar e me afastar um pouco. Senti sua barriga tanquinho por cima da camiseta, e, de repente, mudei de ideia e fiquei por ali mesmo.
Tentando não rir daquela situação inusitada, eu e Jenna ficamos bons minutos aninhadas àquele corpo másculo e impecável, enquanto as mãos largas e pesadas de Roy acariciavam nossas cinturas. Ergui o pescoço para olhá-lo no rosto, e Finnegan continuava de olhos fechados, sorrindo satisfeito apenas com os lábios. Quando fez um bico e inclinou a cabeça em minha direção, pensei que não custaria nada se eu o correspondesse só com um beijinho. Aquela era uma chance imperdível.
Devolvi o olhar para Jenna e cochichei:
— Ele é mesmo proibido?
— Vai com tudo, Eva — ela piscou ao responder.
Aquilo bastou para minha coragem atingir seu nível máximo. Mesmo quase encostando meu nariz no dele, Finnegan não abria os olhos por nada, mas seu sorrisinho malicioso continuava dançando em seus lábios. Talvez ele estivesse me espiando, mas garanti que não: suas pálpebras estavam devidamente fechadas.
Eu estava me aproximando ainda mais, quando seu perfume deu lugar a um terrível hálito de Cheetos de queijo. Além de tudo, sua boca se abriu e soprou, bem na minha cara, um arroto que mais parecia a trombeta do inferno. O barulho foi tão alto que até Jenna se assustou, e nós duas nos afastamos na mesma hora.
— MEU. DEUS. Não acredito — ela abanou o ar, enquanto Finnegan finalmente abria os olhos para rir da nossa cara de horror.
— Eu vou matar esse filho da puta — mastiguei as palavras, bufando feito um touro.
— Eu me enganei, ele é um Pau Fedido — Jenna se levantou e me puxou pelo braço.
O imbecil ainda ria.
— Não, Jen, nós não vamos sair do sofá. Estávamos aqui primeiro. Ele é quem sai!
— Sério? — Roy se pronunciou, sacana, levando os dedos até meu queixo. Mas eu os afastei a tempo. — Então pede com jeitinho, vai. Pede com jeitinho e educação que eu saio.
— Por favor, você pode sair desse caralho?
— Pô, você é nervosinha, hein? — ele deu uma risada alta. — Se controla, relaxa...
Aquelas palavras formaram a receita perfeita para eu ficar ainda mais puta.
Jenna rapidamente notou o vulcão em erupção que eu estava me tornando e me puxou mais uma vez:
— Vamos, , esse crápula não merece nem um terço da sua atenção.
Acabei cedendo, mas eu ainda estava um pouco relutante – queria brigar. Quando finalmente pensei no insulto perfeito, já estávamos longe demais. Jen havia me puxado até a porta do banheiro e Finnegan tinha ficado para trás, envolto por seu bafo atmosférico.
— Caramba, essa foi a coisa mais quinta série que eu vi até hoje em meus anos universitários. E eles não foram poucos — ela acendeu outro cigarro, me despertando um pouco da raiva.
— Não é? O que foi aquilo? — esbravejei, mas, no segundo seguinte, já comecei a rir. — É isso que você chama de “coincidência”, Jenna? Achou que eu e Finnegan fôssemos predestinados ou algo do tipo?
— Talvez não um para o outro, mas tudo indica que precisavam se encontrar.
— Que ótimo. Meu destino foi receber um arroto de Cheetos na cara.
Jen talvez ainda não tivesse cedido à sua teoria, mas também deu uma risada em resposta.
— Sabe, tenho algo que pode te alegrar. Estava guardando isso pra meia-noite, mas… que se dane — ela prendeu o cigarro entre os lábios e, de dentro de um dos bolsos internos de seu casaco, tirou uma garrafa tão antiga e ornamentada que parecia ter saído de um navio pirata.
— Tá maluca?! — meus olhos se esbugalharam. — Isso é rum ou o quê?
— Tequila!
— Uma tequila do século dezoito?
— Uma tequila que vai fazer a gente chegar no novo milênio antes de todo mundo.
Ela removeu a rolha e, destemida, virou alguns goles do bico mesmo. Em seguida, fez uma careta tão péssima que até minha própria garganta previu a ardência. Jenna me entregou a garrafa e, apesar da falta de sal e limão, se mostrou bem satisfeita.
Eu não estava nem um pouco preparada para aquilo.
(You Drive Me) Crazy – Britney Spears
— Ah, eu adoro essa música! — devolvi a bebida nas mãos dela. — O que acha de dançarmos em vez de beber?
— Esqueceu quem está lá embaixo? Toma — ela me entregou o negócio de novo, e meu rosto murchou. — Bebe só um gole, daí descemos. Eu até estava esperando por Alex que foi buscar maconha, mas ele sumiu. Prefiro dançar.
— Você não parece o tipo que dança Britney Spears.
— Com essa tequila em mãos, eu danço até balé — ela riu. — Vamos, confia em mim.
— Ok… — encarei a garrafa pela última vez. Eu me conhecia o bastante para saber que aquele era o meu último momento sóbrio da noite. Ou era isso e finalmente beijar bocas, ou resmungar até 2000. — Ok, confio em você.
Nada mais poderia arruinar minha noite.
Mesmo curtindo a música, não consegui me soltar totalmente. Sem saber se Blaze ainda estava ali na pista ou ao redor, minha cabeça entrou numa espécie de paranoia, como se ele pudesse estar me observando de qualquer lugar. Aquilo estava me deixando cada vez mais tensa, além de evidenciar o quanto eu ainda me importava demais com o que ele pensava de mim, da minha aparência e do que eu deixava ou não de fazer.
Mais algumas músicas e eu consegui me relaxar um pouco. Não havia nenhum sinal dele.
Jenna dançava animada, balançando os braços e o quadril sem parar. Quando enfim me senti empolgada o suficiente para deixar meu corpo ser levado pelo ritmo, meu olhar involuntariamente parou em um casal que trocava carícias num canto bastante escuro – ele só era iluminado na mesma frequência que as luzes estroboscópicas piscavam, o que, para piorar, me davam uma sensação de visão em câmera lenta.
Minha noite estava arruinada.
Destroçada em pedaços, acabada. Nem Britney poderia me salvar.
Naquele canto, Blaze beijava uma garota, e ela definitivamente não era da Engenharia. Ela era da Arquitetura.
E ela era Allison.
Percebendo que eu tinha paralisado, Jenna também fixou o olhar no mesmo ponto.
— Oh, não — ela segurou minha mão. — Vamos, . Vamos lá pra fora.
Eu continuava estática e completamente hipnotizada por aquela cena, como se precisasse assisti-la por horas para ter certeza de que estava acontecendo mesmo. Ally tinha os braços entrelaçados ao redor da nuca dele; Blaze agarrava com força a bunda dela e até parou para beijar ferozmente seu pescoço.
Um pesadelo.
Jen se posicionou bem à minha frente para bloquear minha visão e notou meus olhos marejados.
— Não, não precisa chorar... Não chore! — ela me abraçou, mas continuei imóvel. — Você gostava tanto dele assim?
— Ela… Ela não… Ela é… — balbuciei, movendo a mandíbula feito um boneco de ventríloquo.
— Ela…? O que tem ela? — Jen me suplicava com o olhar por respostas, mas eu só permaneci vidrada. — Oh, não… Não me diga que você conhece a garota?
— Ela é minha amiga.
— OH, NÃO!
Eu encarava meu reflexo no espelho do banheiro social do segundo andar. Encarei tempo o suficiente para fortalecer meu fantástico poder de engolir qualquer lágrima que ousasse a escorrer pelo meu rosto. Eu não ia chorar por homem nenhum hoje.
Meus pensamentos tinham foco em uma coisa: arquitetar um bom plano de assassinato. Mas ainda não sabia quem seria minha primeira vítima. Blaze, Allison, Allison, Blaze. Era um empate! Blaze cavou minha cova e Allison estava pronta para me enterrar.
Eu disse à Jenna que queria ficar sozinha, e ela me deixou tomar meu rumo amargurado pela mansão. Foi quando me tranquei no único lugar que me isolaria do barulho e de outros seres humanos: o banheiro.
Banheiros sempre são ótimos refúgios.
Porém, as batidas no outro lado da porta começaram a me irritar em um nível que fez toda minha mágoa se transformar em fúria. Eu nem estava há tanto tempo ali dentro. Estava?
— Tá com dor de barriga, porra?! — o idiota gritou do outro lado.
Fechei os olhos e resolvi contar até dez. No três, abri a porta feito um furacão.
— Uma mulher não pode ter cinco minutos de paz?!
— Ah, ! Desculpa.
Era o Alex Rose.
— Alex, você sempre aparece do nada nos lugares — falei, ainda sem a menor paciência. — Pronto, tá liberado.
— Hmm. A vontade passou.
Fechei os olhos de novo. Será que eu ia precisar contar até cem?
— Jenna está procurando por você — ele começou. — Ela está no–
— Não — o interrompi. — Não quero ver ninguém agora.
O climão se hospedou entre nós, e eu não tinha mais nada a dizer. Por outro lado, Alex parecia estar ansioso para jogar conversa fora. Ele cheirava a uma terrível combinação de cerveja e groselha, o que me levava a duvidar de sua capacidade verbal para iniciar um papo relevante.
— Erm… Você, erm…
— Sim? Diga — tentei encorajá-lo. Talvez só me perguntaria que horas eram e eu já poderia procurar por Jenna novamente.
— Sabe que horas são?
Eu deveria ter minha própria bola de cristal.
De repente, todo o andar começou a se esvaziar e as pessoas se movimentavam apressadas para o jardim dos fundos, provavelmente para a tão esperada virada do ano.
Talvez eu tenha ficado mesmo muito tempo dentro do banheiro.
— Hmm... Umas onze e tantas? — deduzi.
— Então… Você já tem alguém para a meia-noite?
— Como assim? — meu cérebro demorou um pouco a ligar os pontos daquela indireta, quando me perdi no reflexo da minha própria testa, dessa vez vindo dos óculos escuros no topo da cabeça de Alex. — Ah, claro! Quero dizer, não, não tenho. E você?
— AÍ ESTÁ VOCÊ! — Jenna simplesmente brotou ao nosso lado e foi logo me puxando pelo braço. — Te procurei por todo canto, faz meia hora! Já vão começar a contagem regressiva, vamos rápido!
Fui arrastada até a escada e, assim que pus os pés no primeiro degrau, olhei para trás. Alex continuava plantado no mesmo lugar, sozinho, ou melhor, abandonado, com a maior cara de jururu. Não sei por que ele não nos seguiu, mas como poderíamos deixá-lo assim?
— Jenna, espera. Ainda tem aquela tequila aí? — perguntei, fazendo-a parar no meio do caminho.
— Sim, por quê?
— DEZ… NOVE… — podíamos ouvir o pessoal lá fora, o que fez Jen ficar ainda mais afobada.
Só estendi a outra mão e indiquei para que ela me entregasse a garrafa. Quando o fez, virei goles atrás de goles, sem nenhum tipo de limite. Minha garganta nem ardia, nem nada. Acho que eu tinha chegado em um estado físico e mental tão merda que meu próprio corpo resolveu me anestesiar daquela vez.
Devolvi a bebida para ela e voltei alguns passos para trás.
— , o que você–
— TRÊS… DOIS…
Corri até Alex. Sem qualquer aviso prévio, agarrei seu rosto com minhas duas mãos e não pensei em mais nada. Era pra ter sido só um selinho de meia-noite, mas acabei dando um beijaço nele.
E ele retribuiu sem pestanejar.
Quando o soltei, o som alto dos fogos que eclodiam no céu finalmente entrou em meus ouvidos. Alex, um pouco esbaforido, me olhava com o sorriso de uma criança; Jenna estava embasbacada. De repente, senti que só eu tinha motivos para celebrar. Meus problemas emocionais pareciam estar indo embora junto com aquele ano.
— Feliz Ano-Novo, meus maravilhosos!
Não muito tempo depois dos fogos, de toda a festança da madrugada e de muito mais álcool, sem querer me perdi de Jenna outra vez. Em minha defesa, a garota estava mais agitada que o normal, e não era fácil acompanhá-la. Não sei até que ponto eu poderia responsabilizar a tequila bizarra por deixá-la tão louquinha.
Eu estava loucassa.
Cambaleando pela grama de um longo, escuro e estreito corredor externo, entre a cerca e a parede lateral da mansão, eu buscava por um pouco de calma e silêncio.
Mas era impossível.
Todo mundo presente naquela festa estava perdendo o juízo em níveis descontrolados. Entretanto, naquele corredor, não havia nada além de alguns arbustos. Eu só não podia me escorar em qualquer lugar, senão, não acordaria até a tarde do dia seguinte. E por acaso eu tinha alguma amiga que se importaria o suficiente para sentir minha falta e vir me procurar? Não mais.
A cada passo trocado, minha cabeça dava voltas e mais voltas. Até que meus pés pararam diante de um pequeno objeto no meio da grama. Ele era brilhante e prateado, o que fisgou minha atenção de imediato. Não pensei duas vezes antes de me agachar para pegá-lo.
Ideia errada.
Depois de apanhá-lo e guardá-lo no bolso da minha jaqueta, me levantei e senti que todos os meus órgãos iam se desligar. Pisquei os olhos várias vezes, dei batidinhas em meu rosto e respirei fundo. Quando foquei o olhar, vi um casal se agarrando loucamente na parede.
Caralho, eu não aguentava mais ver casais na minha frente.
Sem nem um pingo de noção, fui chegando mais perto só para dar uma bronca gratuita nos dois tarados. Do nada, virei a polícia da juventude. Encarnei total uma velha estraga-prazeres e tive vontade de rasgar cartas de amor, lavar as bocas de beijoqueiros com sabão e bater em homens com uma bolsinha de moedas. Eu só queria que todos no planeta ficassem solteiros como eu, por favor. PAREM DE SE AMAR!
Cheguei bem perto do casal. “Não é que esse amasso tá uma delícia?”, pensou meu cérebro desgovernado. Porém, naquele momento, eu era alérgica a amantes.
Continuei com o plano, mas minha cabeça não me deixou. Do nada, fiquei extremamente tonta e enxerguei tudo dobrado. Meu corpo implorava para que eu simplesmente me atirasse na grama e apagasse ali mesmo. No entanto, com o mínimo de noção que me restava, só joguei meu ombro direito contra a parede e fiquei ali escorada, com os olhos espremidos.
O casal se assustou com o barulho e se separou.
— O que foi isso? — a voz era feminina.
Pude ouvir alguns passos se aproximando de mim.
— Você tá bem? — agora, a voz era masculina. — ?!
— O quê?!?
Espantada, abri os olhos imediatamente, e essa foi outra péssima ideia. Vi quatro pessoas na minha frente. Duas delas eram , e as outras duas eram Rennie.
— Sim! Estou bem! Estou bem melhor! — nem sei como, mas exclamei.
— Tem certeza? — ele perguntou, se aproximando ainda mais.
tinha se posicionado exatamente no local que fez minha visão se focar outra vez, tornando tudo mais nítido como se eu estivesse olhando através da lente de uma câmera em alta definição. Seus olhos azuis esverdeados simplesmente cintilavam contra a sombra da noite. Seu cabelo loiro estava desgrenhado, e uma mecha caía sobre sua testa.
Caramba. Como ele estava lindo.
Lindo de morrer.
— Você tá louca, mulher?! — me virei para Rennie.
— Hã?
— Um homem desse no seu pé e você fazendo corpo mole? Ah, pelo amor de Deus! Eu não mereço esses jovens de hoje.
começou a rir.
— Escuta, acho ótimo que você teve um final feliz com sua garota hoje — olhei para ele —, porque eu não tive com o meu cara. Então — olhei para ela —, aproveite bastante, ok?
— Sério, eu te conheço?
— Sim, Rennie. Olhe bem pra esse rostinho — falei, puxando e apertando as bochechas de com uma mão. — Olhou? Agora, escuta o que eu tô te dizendo. Não existem muitos caras como ele por aí igual a gente pensa. Entendeu?
— Porra, que mão gelada — ele reclamou de dor.
— Desculpa — soltei-o e, na mesma hora, me afastei.
De repente, tive um acesso de consciência e percebi a insanidade que eu estava fazendo. Fui tomada por uma onda de arrependimento e só pensei em sumir dali.
— , erm… — engoli em seco, tentando não olhá-lo nos olhos. — Sabe onde está Jenna?
— Acho que ali na piscina.
— Ótimo! Tchau!
Fugi.
Fugi até rápido demais. Eu precisava me movimentar com mais cuidado.
Tomei o caminho até a piscina no jardim dos fundos, onde estava aglomerada a maior parte das pessoas. Por esse motivo, não consegui achar Jenna de jeito nenhum.
A piscina era aquecida e, sobre ela, formava-se uma nuvem de vapor. Um monte de gente já tinha se jogado ali dentro, como se o resto do mundo nem importasse mais. Fui atraída pelo que parecia ser o oásis para a minha confusão mental: a celebração do foda-se. Mas me contive em dar um pulo na água. Sentei-me na beirada, agarrando meus próprios joelhos, e por ali fiquei durante alguns bons minutos. Até coloquei a cabeça para descansar, mas meus olhos continuavam atentos em alguns caras que nadavam.
Uni, duni, tê. Quem será que prestava para me dar mais uns beijos e eu fingir para mim mesma que isso seria a solução permanente dos meus problemas?
Senti a aproximação de alguém, que resolveu se sentar ao meu lado e imitar minha posição. Quando olhei para a pessoa, minha expressão imediatamente se transformou, carregando quilos de desgosto e aborrecimento.
— O que você está fazendo aqui? — indaguei, ríspida.
— Wow. Não posso só te fazer companhia?
Revirei os olhos.
— O que você quer, Blaze?
— Vim te desejar um feliz Ano-Novo — ele sorriu de lado, sexy, sabendo exatamente o que me fazia ficar caidinha por ele. Mas, dessa vez, não ia funcionar.
— Feliz Ano-Novo pra você também — respondi, voltando o olhar para longe.
Ele se arrastou um pouco para o lado até chegar mais perto de mim.
— Tenho uma coisa pra te dizer.
Eu também tinha uma coisa para dizer a ele. Uma não, várias. Uma lista inteira de xingamentos e insultos.
Meu silêncio fez com que ele prosseguisse:
— Senti sua falta nesses últimos meses.
Meu sangue ferveu.
— Mesmo? — perguntei, assumindo minhas habilidades teatrais. — Poxa. Que coincidência. Também senti, você nem imagina!
— Então… Tem um jeito da gente resolver isso, você não acha?
Não aguentei e soltei uma risada incrédula. Ele estava bêbado, sim, mas isso não deveria impedi-lo de notar meu tom de sarcasmo.
— Quer saber, Blaze? Eu acho que tem um jeito, e ele começa com você me deixando em paz.
Levantei-me do chão e limpei minha saia com as mãos. Percebi que tinha um rasgo monstruoso na minha meia-calça, o que me irritou ainda mais. Acompanhando meus movimentos, Collins também se pôs de pé e, quando dei os primeiros passos para me afastar dali, ele me segurou pelo braço:
— Ei, espera. O que quer dizer com isso?
— O que quero dizer com isso? A mesma coisa que você quis dizer lá no Millard’s. Nós acabamos.
— Eu sei, mas…
— Está me procurando de novo por quê? Não tem vergonha nessa sua cara de mer–
— Ei, ei, ei. Calma. Não sabia que tinha ficado tão chateada. Você disse que não ia ficar — ele apertou ainda mais o meu braço quando fiz menção de sair. — Mas é como eu te disse, ainda podemos resolver isso.
O quão típico e previsível era aquilo? Eu sabia que, na primeira oportunidade, Collins me procuraria de novo quando fosse conveniente para o próprio tesão dele. E por mais que ele parecesse irresistível da cabeça aos pés, não me restavam dúvidas de que eu o queria longe de mim.
— Não. Não há nada para resolvermos — fiz força, mas Blaze se recusava a me largar. — Me solta, por favor.
Ele fez o oposto, dando mais dois passos em minha direção.
— … Pra quê isso? Eu te conheço, sei que você também quer.
— Estou te dizendo com todas as letras. Não.
Ele me ignorou totalmente e passou sua outra mão pela minha cintura, tentando me puxar para um beijo, mas eu me debati.
— Não, Blaze! Me solta! — finalmente consegui empurrá-lo, com uma força um pouco brutal que eu nem sabia que tinha.
Depois do meu empurrão, ele foi para trás em uma distância considerável, bem próximo à beira da piscina.
— Uau — o sorrisinho infernal voltou outra vez. — Você finalmente me ouviu e entrou na academia?
Assim que ouvi aquilo, nem pensei. Só reuni todas as minhas últimas forças e o empurrei com gosto para dentro da piscina. Ele caiu completamente assustado, afundando com toda a roupa que tinha no corpo.
Algumas pessoas por perto vibraram.
Quando Blaze voltou para a superfície, tirou o cabelo molhado do rosto e me encarou com muito, muito, muito ódio.
Agora sim.
Eu poderia beber do ódio dele.
— Acha que não sei o que você fez hoje, seu imbecil?! — esbravejei, antes que ele pudesse me contestar. — Você procurou a pessoa errada pra fazer de trouxa. Filho da puta.
Dei meia-volta e marchei para o outro lado do jardim até ficar distante o suficiente, próximo a uma árvore com os galhos cheios de gelo. Quando pensei que eu poderia facilmente ter me rendido ao joguinho dele se não fosse o beijo que flagrei antes… Meu Deus, quanta humilhação eu teria passado.
Perdi a cabeça.
— AAAAARGH! EU ODEIO HOMENS! — berrei para o céu vazio, apertando os punhos e jogando todo o meu pescoço para trás.
Nem um pouco dramática.
— EU TAMBÉM! — um anjo chamado Jenna também berrou, com seu fabuloso timing e sua incrível capacidade de me achar em lugares lotados.
Ela correu até mim e, assim como fiz com Alex antes, agarrou meu rosto com as duas mãos. Antes que eu pudesse sequer inalar o ar, Jenna chocou seus lábios nos meus.
Foi um selinho meio avacalhado, mas suficiente para provocar sons de comemoração que, de repente, nos rodearam. Quando abri os olhos e vi aquela quantidade de homens que tentavam nos estimular – mas não sabiam que só estavam nos importunando –, lembrei do meu ódio.
Impressionante como qualquer merda para eles era pornográfico.
Jenna voltou minha atenção para ela:
— Pronto. Seu ritual de passagem foi concluído.
— Que ritual? — perguntei, lutando para manter a compostura quando a visão dupla desorientou todos os meus sentidos outra vez.
— De entrada. Bem-vinda ao clube “ARGH, EU ODEIO HOMENS!” — ela me imitou no final, e eu desembestei a rir.
Jurei que também tinha respondido alguma coisa, mas comecei a embaralhar a realidade com devaneios aleatórios que passavam pela minha cabeça.
De repente, tudo ficou preto. Pretasssssso.
— Ai, meu Deus... Alguém pode me ajudar aqui?! — ouvi Jen gritar, enquanto minhas pernas se transformavam em gelatina.
Não faço a menor ideia do que aconteceu em seguida, se caí na grama ou se fui carregada. Só sei que, em algum momento fora da minha compreensão cronológica, abri os olhos e vi PJ desmaiado numa poltrona reclinável ao meu lado. Não sabia nem onde estávamos. Provavelmente, dentro do quarto de um frat boy.
Quando fechei os olhos de novo, entrei em modo descanso de tela do Windows e viajei para outra dimensão.
O ano que havia chegado sempre me pareceu tão distante e futurístico... Não só para mim, mas para todo mundo. Quem dirá para os meus pais, ou pior ainda, meus avós. Os filmes, as séries, as teorias de conspiração e os jornais sensacionalistas nos deixaram tão bitolados ao longo das últimas décadas que era como se o ano 2000 fosse distópico demais para ser real ou para a humanidade alcançar. Além de tudo, cá para nós, 2000 era um número muito bizarro para uma data. Daqui pra frente, com certeza eu erraria várias vezes ao escrevê-la no papel até me acostumar. No entanto, não sentia como se hoje fosse um marco de uma nova era, nem nada. Mas não deixava de ser legal pensar que eu havia acabado de entrar em um novo século.
Desculpe desapontar, Kubrick, mas ainda não conseguimos viajar da Lua até Júpiter num ônibus espacial. Quem sabe daqui uns vinte anos.
— Quer café, ? — Sadie bateu em minha porta e, antes que eu pudesse dizer “entre”, ou no caso, “não entre”, abriu-a em seguida. Ela tinha acabado de voltar de sua cidade natal. — Sobrou um copo. Na verdade, dois.
— … Não, obrigada — falei, ainda enrolada em meu edredom e no meio dos meus travesseiros.
— O quê? Não deu pra te ouvir.
Enchi meus pulmões, e o esforço para aumentar o tom da minha voz foi notório:
— Não, obrigada.
De nada adiantou.
— Quê?
— NÃO, OBRIGADA.
— Ah, então tá bom. Vou jogar fora. Ele está frio, mesmo.
Sadie era muito lerda. Dividir o dormitório com ela era desafiador para a minha paciência limitada, mas, em vários momentos, sua lerdeza vinha a calhar. Ela nunca percebia quando eu trazia algum cara para o quarto, por exemplo. Porém, se eu desse o raro azar de ser vista na calada da noite, era bombardeada de perguntas no dia seguinte. Não que Sadie fosse do tipo intrometida e fofoqueira, mas do tipo curiosa e sem noção.
Ela saiu e deixou minha porta aberta.
Revirei os olhos. Não tive outra escolha a não ser abandonar o paraíso que era a minha cama. Só uma era páreo para essa: a da minha casa em Livingston. Nenhuma outra cama no mundo, nem a de um hotel cinco estrelas, seria melhor.
Fiquei impressionada comigo mesma quando me levantei e minha cabeça continuou leve como uma pluma. Entretanto, assim que pus os pés no chão, meu estômago embrulhou e eu suei frio, levando por água abaixo toda a resistência a ressacas que eu achei que tivesse.
Corri para o banheiro na velocidade da luz e me debrucei sobre o vaso.
Sadie se materializou ao meu lado:
— ?! O que tá acontecendo? Meu Deus, você tá vomitando?
Aparentemente, a frase “ações dizem mais do que palavras” não significava nada para ela. Continuei em apuros, e passaram-se mais uns dois minutos até Sadie vir me ajudar, segurando o meu cabelo.
Depois de recuperar a respiração, enxaguar a boca e escovar os dentes, caí mole na minha cama de novo.
— DROGA! — berrei contra um travesseiro. — Eu ia sair pra minha aventura hoje...
— Que aventura?
— Ah… — virei de barriga para cima e encarei o teto, sentindo os olhos abelhudos de Sadie sobre mim. — Sabe a praia de Oakwood?
— Sei sim. Vai fazer o quê lá? — ela questionou, super desconfiada.
Ninguém simplesmente ia à praia de Oakwood. Lá era tão inóspito, frio e deserto que nem gaivotas davam as caras. O máximo que apareciam eram uns bichos hostis, tipo ouriços e caranguejos venenosos. Inclusive, havia certas épocas que o mar trazia para a areia centenas de ostras e águas-vivas mortas.
— Quero visitar o vilarejo abandonado — como se ainda não bastasse, Oakwood abrigava esses velhos casebres de madeira largados para os fantasmas há não sei quantos anos. — Quer ir comigo?
— Eu?! Eu não. Nesse frio? Não, não… Vamos deixar pra outro dia.
Ri, um pouco familiar demais com esse tipo de resposta.
Sadie voltou para a sala e eu observei os feixes de luz que passavam pelas persianas. Ainda dominada pela náusea, tive que postergar minha aventura para o dia seguinte.
Hoje poderia ser um sábado histórico, mas nada como um domingo despretensioso.
Eu deveria me preparar para o frio de Oakwood, porém, mais da metade das minhas roupas estavam na lavanderia, e eu só as buscaria na segunda-feira. Acabei repetindo a jaqueta do fim de semana por cima de mais três blusas – o sol estava radiante, mas a temperatura tinha voltado a cair. Aqueles raios luminosos formavam a mais pura ilusão, e aprendi isso do pior jeito no meu primeiro inverno em Nova York.
Almocei macarrão instantâneo com Sadie e estava com pressa, porque o céu escurecia cedo demais nessa estação. Eu precisava voltar, no mínimo, antes do pôr do sol.
— Você viu meu headphone? — perguntei, enquanto revirava todas as gavetas da pequena estante da TV. Elas guardavam todo um universo de papéis e troços inúteis, mas nunca o que eu estivesse procurando.
— Tá falando desse aqui? — Sadie cavou entre as almofadas do sofá onde estava deitada e, de lá, tirou o desaparecido.
— Isso! Obrigada!
Corri até ela e logo pluguei o fio no meu discman. Enfiei-o na bolsa e disparei até a porta.
— , é melhor vestir uma touca.
A fala dela me fez voltar um passo. Não queria, mas acabei apanhando o único gorro disponível: um cafonérrimo cheio de bordados natalinos.
E assim sumi do quarto, indo direto ao bicicletário do alojamento. Antes de subir no selim, dei play no CD que já estava dentro do aparelho há semanas.
Malibu – Hole
A praia de Oakwood ficava a uns cinco quilômetros dos limites do Campus. Era um bocado longe, mas dava para ir pedalando. Atrás da vasta extensão de areia, havia uma enorme área de preservação de uma floresta de carvalhos e pinheiros, que, até poucos anos atrás, abrigava um parque de caça às aves. Felizmente, a caça foi proibida, e agora a floresta era bastante policiada e protegida. A única área não demarcada era o litoral, e lá não costumava aparecer ninguém além de uns guardinhas perdidos. Era só indicar a rota mais fácil de volta que eles logo se enfiavam pra dentro do mato outra vez.
Por causa do novo policiamento, os universitários migraram para a praia de Bricktown para fazerem seus acampamentos, fogueiras e luais, que, inclusive, ficavam escassos a cada ano. Lá em Bricktown tinha muito lixo, muitos barcos e muita gente, além de ser bem mais perigoso.
Oakwood era um lugar totalmente inexplorado, natural e enigmático. Ao contrário da Oyster, virada para dentro do continente, Oakwood era virado para o Oceano Atlântico, e eu adorava contemplá-lo.
Eu adorava, adorava, adorava o mar.
Porém, minha missão de hoje era explorar o vilarejo abandonado. Quando passei por ele da última vez, em 1996, já estava com um ar decadente. Mas não me importei muito porque eu era uma caloura alienada. Agora eu tinha vontade de descobrir mais sobre sua história e, quem sabe, encontrar uns objetos perdidos interessantes. Eu tinha essa fascinação bizarra por tudo que era antigo e abandonado.
Quando cheguei, tive que pedalar por mais alguns minutos até me aproximar o suficiente da ponta curva da ilha. Aquela era uma região repleta de pedras de todos os tamanhos, dentro e fora da água. A areia era tão branca e fina que, por vezes, mais parecia pó de giz. Também era tão macia que dava vontade de enterrar os pés descalços e não sair mais.
O vento gelado cortava meu rosto, então, aos poucos, fui desacelerando. Enfim desci da bicicleta e respirei fundo, apreciando o cheirinho da brisa salgada. Removi os fones e parei para ouvir atentamente o som das ondas agitadas quebrando na beira-mar.
Eu amava aquele clima melancólico e relaxante.
Estacionei a bicicleta na trilha mesmo, imobilizando as rodas com uma tranca. Seria impossível pedalar no meio de todas aquelas rochas, o jeito era ir andando.
Depois de vários passos desviando de ouriços e poças de maré, dei de cara com uma mochila jogada sobre uma pedra. Ela teria passado despercebida por mim se não fosse o chaveiro amarelo com o smiley face do Nirvana. Olhei para todos os lados à procura de seu dono, mas não vi sequer uma alma viva.
Aquilo estava estranho.
Muito estranho.
E se algum estudante esqueceu ela lá? Eu deveria pegá-la e levá-la para o Achados e Perdidos? E se… alguém foi raptado? Sequestrado? Dado como desaparecido? Eu deveria procurar por um documento de identificação na mochila e reportar à secretaria da universidade?
E se alguém morreu?
Era melhor fingir que nem vi nada disso e voltar para o Campus. Não! Eu poderia ser presa por omitir socorro, não poderia?
Se eu me desse mais alguns segundos, aquela espiral de pensamentos paranoicos continuaria até minha cabeça montar toda a cena de um crime sanguinário que justificaria a razão de aquela maldita mochila estar ali.
Resolvi continuar a caminhada. Qualquer coisa, era só berrar e correr.
De repente, sem mais nem menos, alguém saltou de uma enorme pedra para a areia, a poucos metros na minha frente. Levei a mão ao peito quando senti que meu coração ia sair pela boca. Assim que vi quem era, engoli o grito de susto.
— Meu Deus, quer me matar?! — xinguei, amaldiçoando mentalmente até a última geração do infeliz.
— Você que quase me matou — riu e levantou as sobrancelhas, surpreso. Ele apertou as pálpebras quando a forte claridade iluminou seu rosto. — O que tá fazendo aqui?
— O que você tá fazendo aqui?
Ele se aproximou mais e deu de ombros quando respondeu:
— Eu venho aqui o tempo todo.
Agora quem estava surpresa era eu.
Ele carregava um sketchbook e se inclinou até a mochila para guardá-lo. Logo depois, passou só uma das alças pelo ombro. Apesar de estar bem menos agasalhado do que eu, ainda usava um gorro cinza e luvas sem dedos.
— Como... — perdi a fala. Embora eu quisesse fazer um milhão de perguntas, precisei refrear o interrogatório. — … Sério? Por quê?
— Nenhum motivo em especial — ele balançou os ombros de novo. — E você?
— Vim ver o vilarejo abando– Espera. Ninguém vem até este fim de mundo à toa.
sorriu, despreocupado:
— Aqui não é o fim do mundo. A Oyster tá ali — ele apontou com o queixo para trás de mim.
— Tá ali a cinco quilômetros. Meio longe pra vir andando.
— Minha bicicleta tá ali, atrás daquela pedra — ele girou o tronco e apontou para o outro lado, atrás dele. Então, começou a caminhar até ela, descendo um morrinho de areia. Fiquei parada em meu lugar, o observando. — Se eu fosse você, deixaria pra ir ao vilarejo outro dia. A maré já está começando a subir.
— E daí?
Ele fez uma pausa e franziu o cenho, como se fosse minha obrigação saber a razão daquilo.
— Ela costuma invadir aquela área — explicou, num tom meio óbvio.
— Ah, é?
trouxe a bicicleta e voltou para a trilha, ao meu lado. Com o cadeado em mãos, ele agachou-se diante da roda traseira, mas fez outra pausa. Então, ergueu o olhar para mim, antes de falar de novo:
— Quer mesmo ir ao vilarejo hoje?
— Vim aqui pra isso. Não tenho medo de maré.
Ele soltou uma risadinha pelo nariz, como se eu não soubesse de nada. Em seguida, trancou as rodas e se levantou.
— Então, vamos. Conheço um atalho pela floresta, vai ser mais rápido.
— Espera, pela floresta? Não é proibido? Quero dizer, podemos entrar lá?
— Vou te falar, não é bom passar por ela. Mas não se preocupe. Está tudo sob controle.
Apesar de tudo, a calma e a plenitude dele me passavam confiança.
Começamos a caminhar em direção à floresta. Aliás, ele começou e eu fui atrás. Mais alguns passos ligeiros e nos aproximamos da vegetação mais abundante.
— Afinal, é proibido ou não? — perguntei, um pouco hesitante em avançar.
— Não está nos seus planos assassinar animais silvestres hoje, está?
— Não mesmo.
— Então, relaxa. O perigo aqui é outro — ele afirmou, de um jeito bastante suspeito. Mas deixei pra lá.
À medida que adentrávamos a mata, o chão ficava mais terroso, forrado por folhas mortas e um pouco de neve suja. Nossos pés quebravam alguns galhos soltos, e a sombra dos carvalhos caducos cobriam parcialmente a luz do sol.
Eu queria puxar algum assunto, porque não aguentava ficar calada por tanto tempo. Mas aquele não parecia ser o momento. andava rápido demais, e, de vez em quando, eu tinha que dar uma corridinha para alcançá-lo. Até que, do nada, ele parou. Quase trombei em suas costas.
Ele fez um sinal com a mão para que eu também parasse.
— O que é? — perguntei.
— Sshhh — ele pediu. Seus olhos sondavam todos os cantos da floresta. — Ouviu isso?
— Isso o quê?! — implorei, começando a ficar nervosa.
A resposta veio aos meus ouvidos: mais galhos e folhas secas sendo pisoteadas por outros pés, e eles chegavam cada vez mais perto de onde estávamos.
— Ai, meu Deus, tem alguém aqui! — dei um sussurro exagerado. A paranoia de antes me atingiu novamente, me deixando trêmula. — Não deveríamos estar aqui! Vamos voltar, por fav–
— Parados aí — uma voz grossa demandou.
Nem vi quem era. Meus instintos falaram mais alto e eu só dei um pulo para trás, me escondendo atrás de , onde permaneci à espreita. Logo à frente, observei uma figura esquelética e alta, vestindo um uniforme bege e um chapeuzinho camuflado. Com uma mão, o guarda segurava o próprio cinto largo que portava uma espingarda; com a outra, a coleira que prendia um Pastor-Alemão. O homem aparentava estar na casa dos setenta anos, tinha o olhar severo e a expressão bem rabugenta. Porém, ele estreitou os olhos para enxergar melhor, e, do nada, todas suas rugas manifestaram uma estranha simpatia.
— Oh! ! Como vai? — ele cumprimentou com um aceno. E ele acenou de volta, sorrindo. Por que eles se conheciam? — O que tem pra mim hoje, garoto?
— Ah, senhor Wage, hoje o senhor me pegou desprevenido — respondeu, meio chateado. — Tô sem nada. Foi mal.
Wage deu mais alguns passos em nossa direção e trouxe junto o cachorro, que não parecia estar de bom humor. O guarda fez um estalo com a boca que o fez latir alto. O barulho me deu um susto tão grande que agarrei a mochila de e me escondi ainda mais atrás dele.
Inabalado, ele continuou parado no mesmo lugar.
— Nada? Não é o que Titus está nos dizendo — Wage proferiu, sarcástico.
Titus não parava de latir. Era impressão minha ou ele estava olhando diretamente para mim? Ou para a... mochila?
— Ah, não, senhor Wage… — reclamou. — Vai confiscar o pouco que guardei pra mim?
Meu Deus, Titus estava farejando maconha?!
— Sabia que tinha algo pra mim — Wage fez outro estalo e o cachorro se calou. — Passa pra cá.
estava ferrado. E era tudo culpa minha; a ideia de ir para o outro lado da praia foi toda minha. Eu estava ferrada. Estávamos todos ferrados. Já estava vendo a gente voltando pra Oyster num carro da polícia.
Wage tirou a carteira do bolso e começou a contar notas. Pegou umas cinco de dez e estendeu a , que, na mesma hora, levou a mochila para a frente do corpo e de lá tirou um saquinho plástico cheio de Cannabis.
Mas o quê?
— Isso é tudo o que o senhor tem? — ele questionou, e Wage não gostou nem um pouco. — Porque você tá me fazendo abrir mão de tudo o que eu tenho. Vamos lá, cara, uma troca justa.
O velho carrancudo foi convencido e tirou mais três notas de dez da carteira, uma por uma. Até o cachorro deve ter pensado que ele era um trouxa.
Quando recebeu a grana, entregou a erva. Wage puxou Titus pela coleira e, com um sorrisinho falso, esticou o braço para passarmos, e assim fomos permitidos a prosseguir.
No momento em que adquirimos distância o suficiente, caminhei ao seu lado e tratei de perguntar:
— Que diabos foi aquilo, ?
— Demos azar — ele suspirou.
— O azar de vender maconha por oitenta dólares pra um guarda florestal?
— Ah, MERDA! — ele berrou, do nada. Em seguida, choramingou: — Eu queria fumar aquela erva mais tarde…
— Essa é sua preocupação? — comecei a rir. — Eu tô feliz de não ter sido revistada por aquele velho.
— É, eu também. Bem lembrado. Já fui uma vez e não tô ansioso pra passar por isso de novo.
— Jura? Foi quando ele virou seu... cliente?
— Exatamente. Wage não me deixa em paz desde então. Não pode me ver. Se eu não vender pro velho, ele me enche de chantagens e ameaças.
— Ele é tão hipócrita assim?
— É um aposentado, veterano de guerra. Só quer fumar um baseado, andar com uma arma no bolso, cuidar de plantas e importunar os outros.
— Eu não acredito que você chamou um veterano de guerra de “cara”.
sorriu de lado e virou o rosto para mim.
— É assim que você bota um cliente em seu lugar.
— Hmm. Aprendi. Ensinamento importante — ironizei.
Ele deu uma gargalhada. Depois de alguns breves minutos, avisou:
— Estamos chegando.
Então, como mágica, os resquícios de terra e neve foram sumindo e deram seu lugar à areia de novo, dessa vez manchada por gramíneas de longos caules envergados pelo vento. Os pinheiros não mais sombreavam nosso caminho – o céu límpido e alaranjado havia voltado a reinar. Era como se tivéssemos acabado de transitar de uma manhã de inverno para um entardecer de outono em apenas alguns passos.
— Nossa… — desacelerei um pouco. — Tinha me esquecido disso.
, que continuava no mesmo ritmo, teve que parar e olhar para trás quando perguntou:
— Disso o quê?
— De tudo isso. Não lembrava como era tão bonito aqui.
— Ah. Então você já veio antes?
— Já. Três anos atrás.
Finalmente olhei para ele e me despertei do transe, apenas para entrar em outro – seus olhos esverdeados haviam ganhado o mesmo tom quente do céu.
— Pensei que eu estava guiando uma turista de primeira viagem — ele comentou e, pela quadragésima vez naquele dia, dei uma corrida para alcançá-lo. — Isso me lembra… Como vão as coisas no Alabama?
— Eu não sou do–
— Ah! Louisiana, Louisiana.
— Vão… normais — sorri, ao me lembrar dele bêbado.
— Sente falta de casa?
— Sinto falta dos meus cachorros.
— Ah, eu também. Entendo você.
Olhei com mais atenção para seu perfil: o gorro cobria seus fios loiros, as sobrancelhas grossas eram expressivas e o nariz retinho apontava levemente para baixo.
Fiquei pensando em que tipo de cachorro teria.
— Eu achei que você fosse daqui — falei, um pouco dispersa.
— Boston — ele disse em meio a um suspiro. — Mas tenho família aqui.
— Seu cachorro tá em Boston?
— Chegamos — ele parou e desviou a atenção da minha pergunta para a paisagem logo à frente no horizonte.
Os casebres abandonados finalmente apareceram entre pequenas dunas, pouco abaixo do ponto elevado onde estávamos. Eram umas cinco ou seis casas. A madeira era escura e quase totalmente desgastada pelo tempo e pela maresia. Parecia que as construções desmoronariam num piscar de olhos, mas, inexplicavelmente, resistiam até às minhas dúvidas. Os telhados de algumas já nem existiam mais, bem como as cores das cascas de tinta nas paredes, repletas de lodo e musgo.
tirou a mochila das costas e foi se sentar em uma pedra baixa e lisa, apoiando os cotovelos sobre os joelhos afastados. Sentei-me ao seu lado, um pouco distante.
— Afinal — comecei —, que casas são essas?
— Algumas eram moradias, outras eram barracas de venda. Havia um comércio de ostras famoso na região. Existiam mais, mas o mar as engoliu.
— Sério?! O que houve?
— Você não sabe mesmo do que eu tô falando? — ele me encarou com o mesmo ar de incredulidade de antes.
— Nem ideia.
— Então… — meio pensativo, deu uma pausa. — Ah, droga, preciso te contextualizar antes. Por onde eu começo?
— Comece do começo. “Era uma vez…”
— Era uma vez… — ele riu, balançando a cabeça. — Em 1981, 82, por aí... existiu uma profecia que ficou bem famosa. Ela dizia que todos os planetas se alinhariam perfeitamente diante do Sol, e isso provocaria tsunamis em todo canto do mundo. Inclusive um aqui, que faria do vilarejo uma cidade submersa.
— Meu Deus.
— Não se lembra quando falavam disso na TV?
— Não — falei, chocada. — Eu estava muito ocupada escovando cavalos numa cidade de treze mil habitantes.
Ele deu uma risada divertida, depois continuou:
— Foi um ano meio apocalíptico. Eu me lembro de ficar traumatizado. Minha mãe leu um livro maluco que dizia com toda certeza que um cataclismo estava se formando nas profundezas da Terra. Passaríamos por terremotos e tempestades horríveis, labaredas solares, o fim do rádio e da TV… Ela ficou realmente fixada nesse assunto por um tempo e não parava de falar nisso. Sempre que passávamos em um supermercado, comprávamos água engarrafada pra estocar. Eu não entendia nada, então achava que fosse morrer.
— Tá falando sério?
— Tô falando sério — ele me garantiu, mas se divertia com minha cara de abismada. — Minha mãe era viajada demais, mas passou na CNN e tudo. Pode olhar os jornais da época na biblioteca, se quiser.
— Mas e aí? O que aconteceu?
— Nada.
— Nada?!
— Não houve alinhamento nenhum, os planetas só se reuniram na mesma faixa do céu ou algo assim. Mas o ponto é… Por coincidência, no mesmo ano, veio uma onda bem mais alta e forte que o normal aqui em Oakwood, que fez várias casas mais próximas do mar serem varridas. Então, até hoje tem gente que acha que foi culpa da profecia. É uma grande controvérsia que divide opiniões. Só que essas marés altas tem ficado cada vez mais comuns em noites de lua cheia. Já era tempo. Esses casebres sempre foram muito mal cuidados também.
— Caramba.
— Você não sabia que era uma sobrevivente de dois apocalipses, sabia?
— Não…
— Isso que dá passar a infância num estábulo.
Comecei a rir.
— Será que vamos sobreviver a um terceiro? — perguntei, fazendo graça, mas sem desconsiderar a real possibilidade.
— Você ainda tem dúvidas?
— Engraçado como o ser humano teme e anseia pelo fim dos tempos. Desde... sempre.
— Deve ser porque o mundo sempre foi uma merda.
— Pois é. Não seria mais fácil solucionar todas as merdas ao invés de explodi-las?
— Olha só praquelas casas — ele apontou com a cabeça para frente. — O que é mais fácil? Restaurá-las ou derrubá-las pra construir novas?
— … Você tem razão — admiti. — Mas não gosto de seguir a lógica do comodismo. Prefiro que restaurem as casas.
— Se quer saber, também prefiro — ele concluiu, puxando um isqueiro do bolso do casaco.
— Ei, me diz — ergui as sobrancelhas interrogativamente —, pessoas morreram por causa dessa grande onda? Pessoas que moravam nessa vila?
— Não, não houve mortos. Os moradores foram evacuados de última hora, mas ainda tiveram alguns feridos. Pessoas que relutaram em deixar seus pertences pra trás.
Ele tirou um maço de cigarros do mesmo bolso e levou um à boca. Teve que cobri-lo com a mão para proteger a chama do vento e, só depois de algumas tentativas, o acendeu.
O vento tinha se intensificado, e a tarde começava a ir embora. Meus cabelos sacudiam tão forte que aquela touca natalina grotesca se mostrou completamente inútil. Enfiei as mãos nos bolsos da minha jaqueta na tentativa de aquecê-las, quando me espantei com o toque em uma superfície fria e sólida de um objeto ali dentro.
Que diabos era aquilo?
Assim que discretamente vi a tampa prateada, gelei. Era um cantil.
O cantil de .
COMO?
— É melhor a gente ir — ele anunciou, depois de soprar a fumaça.
De repente, fiquei extremamente nervosa. Não sabia o que fazer com aquele cantil e muito menos com a imagem de fumando bem na minha frente. Ele ficava tão... Como posso explicar? Lindo.
Blaze também fumava. Era um pouco sexy, sim, mas não combinava com ele de jeito nenhum. dava um charme especialmente hollywoodiano para a coisa. Ele poderia tragar umas duzentas vezes e, em todas elas, se pareceria com o River Phoenix ou até, sei lá, com o James Dean.
— Espera! Ainda tenho perguntas — pedi quando o vi colocando a mochila de volta nos ombros. Ele parou com o cigarro preso na boca, o que quase me fez dispersar outra vez, mas continuei: — E a vila? Ela existe há muito tempo?
— Aham. É muito antiga. Acho que do final do século passado... Aliás, retrasado.
— Do século retrasado? Você só pode estar de brincadeira — meu rosto brilhou feito estrelinha. — Será que os pertences deixados já foram todos saqueados?
Ele coçou a nuca, tragando de novo.
— Nunca parei pra pensar nisso.
— Como não? — perguntei, inconformada, me pondo de pé logo em seguida. — Tá me dizendo que nunca foi até lá pra descobrir?
— E você tá me dizendo que quer fazer isso? — ele fez uma cara de cansado, deixando o cigarro queimar entre os dedos por alguns segundos a mais.
— Óbvio.
— Óbvio? — a cara de cansaço havia se transformado em sofrimento.
— Óbvio! Acha que vim aqui apenas pra admirar a paisagem?! — insisti, levando minhas mãos à cintura.
deu mais uma longa tragada e também se levantou, soprando a fumaça para longe.
— O sol tá se pondo, a maré tá subindo... É perigoso. Outro dia você volta.
Olhei para o lado, titubeante. Aquela bela paisagem assombrosa me atraía feito ímã. Agora com a informação de que existiam potenciais tesouros esquecidos ali dentro era difícil não sair correndo para tentar encontrá-los. Porém, as ondas ficavam cada vez mais bravas, o céu cada vez mais lilás, e cada vez mais certo.
— Ok… Vamos voltar — suspirei, me dando por vencida.
— Você poderia ter esperneado. Não ia adiantar — ele deu uma risadinha.
— Por que diz isso?
— Não dá pra te levar a sério com esse pompom vermelho em cima da cabeça.
— Ai, meu Deus — puxei o pompom para trás na mesma hora, tentando deixá-lo menos visível. — Sabe, da próxima vez não vou te dar ouvidos.
Ele deu uma gargalhada e contornou a pedra, voltando a caminhar em direção à floresta. Fui atrás.
— Pois deveria — virou para me olhar por um segundo, enquanto descartava a bituca num cinzeiro de bolso. — Não existem muitos caras como eu por aí, não é? Você bem que deveria me dar ouvidos.
— Do que você–
Lembrei.
Lembrei, lembrei, lembrei. Minha cabeça teve o infortúnio de retomar a cena de e Rennie na festa da Phi Kap. Fiquei da cor da minha touca.
Depois de um pigarro, tomei coragem para me pronunciar:
— Vamos esquecer disso pra sempre, por favor? Ou eu nunca vou conseguir olhar na sua cara.
Ele não fez nada além de rir.
— Bom, então, por favor, me dê uma poção de perda de memória instantânea.
— É pra já — falei, parando de andar ao mesmo tempo em que entramos na floresta de novo.
percebeu e também parou, virando outra vez para me olhar, curioso. Foi o momento perfeito para puxar o cantil do meu bolso e arremessá-lo a ele, que, num rápido reflexo, pegou-o com as duas mãos.
— Pronto. Pode se esquecer agora? — voltei a andar e ele continuou parado, meio perplexo. Até o ultrapassei. — E não vou me desculpar, achado não é roubado.
Ganhei um silêncio longo demais como resposta. Olhei para trás e o vi dando uma golada no pequeno frasco. Depois, sorriu ao dizer:
— Pronto. Esquecido.
— … Você é maluco — falei, segurando um sorriso.
— Eu? — ele deu uma curta risada debochada e me ultrapassou de novo. — Quer que eu me lembre de mais ocorridos da festa de Ano-Novo?
— Não. Não, não quero — fui breve em contestar. — Pode beber esse negócio inteiro pra você se esquecer de absolutamente tudo.
Putz, do que mais ele sabia?
preferiu não dizer nada, só rir. Ele era a pessoa mais bem-humorada e sorridente que eu já tinha visto na vida. E eu estava caindo nessa. Caras com esse tipo de sorriso solto no rosto só existiam nos meus sonhos.
E eu não poderia me acostumar com isso na vida real.
Essa folga chegou ao fim quando fomos convocados a ir até o auditório principal, onde haveria uma reunião de boas-vindas aos alunos formandos de todo o Campus. Às sete e meia da porra da manhã.
Jenna era minha companhia, o único raio de sol em pessoa que não me deixaria tirar um cochilo naquela poltrona macia do auditório. Graças à minha insistência, estávamos nos assentos do fundo só para eu poder evitar Allison e fazer de tudo para que ela não me visse. Os meninos estavam lá embaixo, em uma das primeiras fileiras. Dava para vê-los de costas e identificar as três cabeças: o loiro, o moreno e a bandana vermelha.
O reitor e vários alunos da comissão explicavam sobre um monte de detalhes da cerimônia de colação de grau, eventos internos, convites, becas, datas e prazos.
Minha cara de sono era imbatível.
― Ei, ― Jen cochichou ―, estamos combinando de dar uma passada em Bricktown na sexta à noite, depois da minha aula de Estamparia. Topa?
― Hmm. Vão fazer o quê lá?
― Tomar umas no Millard’s.
― Hmm… ― pensei demais. Não estava nos meus planos voltar àquele lugar tão cedo. ― Não sei… Quem sabe.
― Ah, vamos. Vai ser legal. Aliviar um pouco a pressão do início do nosso último semestre ― ela me cutucou, mas não se convenceu com minhas pálpebras quase se fechando. ― Você vai sim, ok? Vou sacudir seus ânimos até lá. Sou boa nisso.
Depois de mais algumas poucas horas que pareceram longos anos, a reunião se encerrou e a multidão de alunos se espalhou pela saída no pátio coberto. Lá, vimos Rennie escorada numa pilastra, abraçando alguns cadernos e com os pés fincados no chão. A garota tinha atitude até naquela simples pose. Além de tudo, eu tinha quase certeza que o gorro cinza que ela usava era de .
― Olha! A Renée tá ali ― de longe, Jenna acenou para ela, que só devolveu um sorrisinho frio por obrigação e logo desviou o olhar. ― Meu Deus, que energia negativa. Essa daí tá precisando de um banho de descarrego.
― Às vezes ela só está com sono… ― bocejei. ― Ou só precisa de um pouco de... ― outro bocejo ― … educação mesmo.
Continuamos a andar sem rumo pelo pátio, passando até por Renée, que, obviamente, estava esperando por . Pelo menos foi o que pensei, até vê-la se retirando dali no minuto em que ele também saiu do auditório com PJ e Alex.
― Espera ― comentei, um tanto quanto desconfiada. ― Você viu a mesma coisa que eu? Ela não estava esperando esse tempo todo por ? Por que foi embora logo agora que ele chegou?!
Jenna entortou a boca em desaprovação e deu um longo suspiro antes de dizer:
― Sim, eu vi. Ela faz essas coisas.
Paramos por um momento e ficamos observando-a caminhar lentamente para longe, dando seus típicos passos marcados. As pontas de seus cabelos escuros quase chegavam à bunda, e o breve olhar furtivo que ela lançou para trás, por cima do ombro, denotou que a garota sabia exatamente o que estava fazendo.
― Por que você acha que ela faz essas coisas? ― indaguei.
― Humpf. Não é a primeira vez que eu testemunho esse tipo de joguinho que ela faz com . Ela ama chamar a atenção dele. E o idiota não aprende. Olha lá, ele indo atrás dela, fazendo exatamente o que ela queria.
― Que jeito babaca de se chamar a atenção de alguém.
― Pois é. Direto ela faz isso. Tenta causar nele a sensação que pode perdê-la a qualquer momento.
― O nome disso é desprezo.
― E uma pitada de imaturidade, né? Ela age de um jeito como se não fosse importante o suficiente na vida dela e ele tivesse que lutar por esse cargo o tempo todo. Talvez seja a forma que ela tenha encontrado de se sentir segura nesse rolo maluco deles.
― Segura? Ela teria motivos pra se sentir insegura? não parece o tipo mulherengo.
― E não é. Na verdade, eu acho que o problema da insegurança está com ela mesma.
Fiquei um pouco pensativa, inquieta e, por algum motivo, não conseguia tirar os olhos dos dois. Eles agora conversavam um de frente para o outro, perto de outra pilastra.
― Eu não entendo ― confessei.
― Nem eu. Ela é muito nova ainda, pode ser isso.
― Não, eu não entendo o . Por que ele fica com alguém que claramente o coloca de escanteio?
― Eu conheço uma pessoa que também ficava com alguém assim.
― Quem?
Jen me encarou por tempo demais. E, então, percebi.
Eu mesma.
― Oh… ― segurei os lábios num círculo e, em seguida, me congratulei em meus próprios pensamentos por ter me livrado de Blaze. Então, continuei com a sessão de perguntas: ― Eles estão juntos há muito tempo?
― Acho que… desde as férias de verão do ano passado, mais ou menos.
― Hmm... Um summer love.
― Sua amiga tá vindo ― Jenna me advertiu, cortando bruscamente o assunto e olhando para um ponto atrás de mim.
― O quê? Quem?!
― Fica calma, tá? ― ela sussurrou. ― É só não dar muita bola.
Logo depois, senti um dedo cutucar meu ombro. Então, me virei.
― Oi, ― Allison me cumprimentou. Não consegui detectar o que sua expressão transmitia realmente, porque eu só enxergava cinismo.
― Oi ― respondi.
― Posso falar com você?
― Pode.
― Erm… ― ela fraquejou, olhando desajeitadamente para Jenna, que logo entendeu.
― Te espero lá fora ― Jen me notificou e se afastou com pressa.
― Ok… ― respirei fundo, voltando a me virar para Allison. ― O que queria me falar?
É claro que eu estava esperando a bomba sobre Blaze e o mínimo de sensatez vindo de Ally para confessar tudo. Porém, ela ainda acompanhava Jen com o olhar.
― Meu Deus ― riu, debochada. ― Dá pra ver os mamilos dela com esse suéter. Você viu isso?
― Tá falando da Jenna?
― Sério, ? Você não era assim. Não tem vergonha de andar com essa esquisita?
Minha paciência estava à beira da morte. Porém, resolvi agir com uma calma estratégica ao me fingir de besta:
― Por que ela é esquisita?
Normalmente, Ally esperava que eu concordasse com ela em todo tipo de comentário. Por isso, minha pergunta havia deixado-a estupefata.
Ela teve pressa em se justificar:
― Olha o cabelo dela, todo ressecado e desidratado. Os peitos são minúsculos, coitada… Deve ser por isso que não usa sutiã. Só deve caber o infantil.
Não vou me inocentar dessa – já passei horas falando mal dos outros com Ally. Mas aquelas palavras me incomodaram profundamente.
― Você nem a conhece, Allison.
― Preciso? Só fiz uma observação. A culpa não é minha se essa é a impressão que ela me passa.
― Então o problema está em você criando suposições sobre as pessoas, não em Jenna.
― Vai ficar defendendo ela agora?
Revirei os olhos.
― Mas é claro ― ela continuou, dando outro riso cheio de deboche. ― Já entendi. Como pude esquecer? Vocês duas até se beijaram na festa de Ano-Novo.
― Ah! ― agora fui eu quem ri, incrédula. ― Então você viu…
― Todo mundo viu. Eu te avisei, , você tá ficando muito assanhada ultimamente. Sério, tá vulgar. Isso é coisa de gente que quer aparecer.
Cruzei os braços, cortando-a com outra risada sarcástica.
― Allison, por favor, me pergunte o que eu vi nessa festa.
― O que quer dizer?
― Vou deixar você descobrir sozinha. Confio na sua esperteza.
Deixei-a para trás e só me preocupei em sair dali. Eu não estava com a menor vontade de me estender naquela discussão.
Não hoje.
Lá fora, encontrei Jenna fumando seu cigarro aromatizado. A fumaça cheirosa se mesclava com o vapor condensado que saía de nossas respirações.
― E aí? Fizeram as pazes?
― Rá! Não mesmo ― suspirei. ― Meus olhos agora estão bem abertos. Mas não sei o que fazer daqui pra frente.
― Resolva as coisas no seu tempo, . Você nem deve nada a ninguém.
De repente, ela levou dois dedos à boca e deu um alto assobio. Então, e Rennie, que passavam por ali de mãos dadas, pararam e se aproximaram de nós.
― Você vai com a gente na sexta-feira, né? ― Jenna olhou só para . Depois, se corrigiu: ― Quero dizer, o convite também se estende a você, Renée.
― Então... Nós vamos? ― ele olhou para ela, hesitante, quase como num pedido de permissão.
Aquela situação me parecia mais familiar do que eu gostaria.
― Hmm. Podemos ir, sim ― Renée olhou-o de volta, quase inexpressiva.
― Sério? ― Jen arregalou os olhos. ― Não é que o novo milênio trouxe alguns milagres?
Disfarçadamente, repreendeu a amiga com o olhar. Quando o desviou para mim, sorriu e deu uma puxadinha no pompom do meu gorro natalino, que eu estava repetindo naquele dia por pura preguiça de buscar minhas roupas limpas na lavanderia.
― Você vai beber? ― Jenna perguntou a ele.
― Por que não me pede carona de uma vez? ― ele retrucou.
― Ótimo! Então, vamos aceitar de uma vez ― ela me abraçou de lado.
― Estejam prontas às nove ― sorriu só com os lábios e assentiu com a cabeça, como se fechasse um acordo. Então, se afastou de novo, sem soltar a mão de Renée.
Jenna me soltou do abraço e eu dei dois passos para trás.
― Tenho mesmo que ir ao Millard’s com você? ― resmunguei.
Ela mostrou seu típico sorriso perfeito:
― Sim!
Era impressionante como eu tinha pouquíssimas roupas de inverno. Aquela história sobre as pessoas ficarem mais elegantes no frio era pura mentira – eu só conseguia repetir meus agasalhos e calças confortáveis. Mas, dessa vez, fiz um esforcinho para ficar mais bonitinha. Afinal, o risco de dar de cara com Blaze fazendo bico como barman era alto.
E eu tinha que estar fatal.
Tudo bem, fatal não seria possível por baixo de tantas camadas de roupa. Mas atraente. Eu bem que estava precisando me sentir mais atraente.
Depois de pronta, fui para a entrada do Capper Hall às nove e dez. A picape de já estava estacionada na porta, com Rennie ao seu lado na cabine e PJ e Alex na traseira.
― , cadê a Jenna? ― PJ perguntou, debruçando-se sobre a lataria.
― Não sei. Quer que eu suba pra–
Fui interrompida pelas buzinas incessantes de . No minuto seguinte, Jen apareceu numa das janelas do terceiro andar com uma toalha na cabeça:
― JÁ VOU! Porra.
Comecei a rir.
― Entra aí, ― PJ me chamou com a mão e eu subi na traseira, me acomodando ao lado de Alex.
Tivemos que esperar mais alguns minutos por Jenna, e, assim que ela chegou e se juntou a nós, deu a partida no carro.
O percurso até Bricktown era muito tranquilo, apesar de deserto. Era também uma constante descida, cheia de curvas e postes com iluminação fraca. Demorava um pouco para chegar, e isso era o que me desanimava todas as vezes. Mas não parecia muito preocupado com o limite de velocidade da rodovia. Na verdade, não faltava muito para ele ultrapassá-lo.
Durante todo o trajeto, um Alex esperançoso ficou tentando me fazer perguntas pessoais, as quais eu dei respostas monossilábicas e desinteressantes. Por que, Senhor, eu tive que beijá-lo na festa de Ano-Novo? Minha cota de impulsividade não tinha fim?
Assim que chegamos e entramos no Millard’s, a primeira pessoa que avistei foi o amigo de Blaze que também fazia um bico de garçom. Então, fui direto ao banheiro para tentar conter minha tensão absurda e arrumar meu cabelo que o vento havia bagunçado no caminho.
Quando voltei, estavam todos já acomodados: Renée, e PJ num largo banco estofado e, de frente para eles, três cadeiras individuais contornavam a mesa de madeira rústica. A do meio estava vazia – algo me dizia que ela estava reservada especialmente para mim. Especialmente entre Alex e Jenna.
― Pedimos uma cerveja artesanal que parece boa ― ela me mostrou o cardápio enquanto eu me sentava. ― Quer uma também?
― Ainda não. Acho que vou pedir umas batatas fritas primeiro. Tô morrendo de fome.
Mentira. Eu só queria adiar a embriaguez o máximo possível e botar uma ordem nos meus sentidos. Blaze definitivamente não estava ali, porque fiz questão de averiguar todos os cantos. Porém, aquele lugar ainda me dava calafrios.
― Você está bem? ― Jen quis saber.
― Sim. Estou ótima ― forcei um sorriso.
― ― Alex me chamou, do meu outro lado.
― Sim?
― Então, você dizia na picape que… você não é daqui?
― Não. Sou de uma cidade muito pequena em Louisiana.
― Onde?
― Ah… Perto da capital.
― E o que tem lá?
― Hmm… Nada.
― Hmm.
Quando as bebidas chegaram, aproveitei para pedir minha comida e desviar a atenção de Alex. Inevitavelmente, meu olhar pousou sobre , que estava bem na minha frente. Um de seus braços envolvia os ombros de Renée, e ela estava muito, muito bonita. Os dois realmente formavam um puta casal bonito. Quase perfeito, eu diria, se eu não soubesse que a garota fosse tão imatura.
― Eu não acredito que você ainda não viu Clube da Luta ― PJ levou uma mão à testa, encarando . ― Tô te falando pra assistir desde o Halloween.
― Tô esperando sair na locadora ― ele se defendeu.
― Porra, vai demorar!
A voz baixa de Alex novamente surgiu à minha direita:
― ...
― Clube da Luta é ótimo! ― exclamei na mesma hora.
― Viu? ― PJ apontou para mim. ― Ao menos uma pessoa sensata nessa mesa.
― Sabia que quase não assisti? ― comentei. ― Porque eu queria muito ver A Bruxa de Blair no mesmo dia.
― Ah! Foi exatamente o que esse idiota fez ― agora ele apontava para . ― , diga a ele como Clube da Luta valeu muito mais o seu ingresso.
― Nah. Eu acabei assistindo aos dois. Os dois foram ótimos.
riu e PJ ficou com cara de tacho. Então, deu um gole na sua long neck antes de incitar o amigo de novo:
― Viu? Você poderia ter visto os dois ao invés de ficar adiando até o filme sair de cartaz.
― Foi você quem perdeu A Bruxa de Blair ― protestou. ― Foi um fenômeno. Eu acreditei naquela merda, foi assustador pra caralho.
― Só você e mais um monte de otários pra caírem nesse documentário de quinta.
― Eu também acreditei. Essa foi a graça do filme ― falei, deixando-o com cara de tacho outra vez.
― Ela não vai te dar toda a razão mais, PJ ― riu de novo.
― Afinal, PJ ― me inclinei mais sobre a mesa, apoiando o queixo sobre a palma de uma mão ―, qual é o seu maldito nome, hein?
Ele deu uma gargalhada.
― Pepito Juanito ― respondeu.
Segurei uma risada que entalou na minha garganta. Ele era bom em fingir que estava falando sério, e eu me senti super estúpida por quase ter acreditado.
― Cala a boca, porra. É Peker Jihad, ― PJ falou, finalmente. ― Desculpe desapontar. É só o meu nome libanês.
― Peker Jihad... ― repeti, verificando a sonoridade, mas falhando terrivelmente na pronúncia. ― Gostei. Você nasceu lá?
― Não, nasci aqui mesmo. Minha mãe é libanesa e conheceu meu pai durante uma expedição em Beirute.
― Nossa, que legal. Ele é americano?
― Sim. Foi lá pra gravar sobre a situação das mulheres que pretendiam imigrar pros Estados Unidos.
― Mesmo? Seu pai é repórter?
― Documentarista. O documentário dele vive passando no National Geographic. Outro dia mesmo passou de madrugada, depois de um episódio daquela série do Carl Sagan que estão reprisando.
― Sério? Que incrível! Vou assistir, porque não perco um episódio de Cosmos.
É claro que perguntei sobre todas as viagens que o pai de PJ fez e todos os documentários que ele dirigiu. Eu adorava saber sobre as histórias de vida dos outros, e, para isso, não me importava se precisasse chegar ao ponto de transformar esse tipo de conversa em uma entrevista.
Após algum tempo, o bar tinha começado a ficar mais movimentado – vários estudantes preenchiam outras mesas e bancadas. A jukebox foi ligada, e eu abençoei o felizardo que colocou The Rolling Stones para tocar.
Gimme Shelter – The Rolling Stones
Todos já estavam um pouco alterados depois de mais umas quatro rodadas de cerveja. Alex até tinha ficado bem mais desinibido, e eu conversava com ele sobre sua cidade natal em Connecticut enquanto beliscava minhas últimas batatas. Ele me contou que seus pais haviam acabado de passar por um divórcio turbulento, por isso não queria mais voltar para casa depois da formatura.
― Ah, não se preocupe, Alex Rose ― eu tentava consolá-lo, sendo sincera. ― Também quero ficar em Nova York depois da graduação. É aqui que estão as melhores oportunidades. Você vai ficar bem.
― Opa, opa, opa. Olhem só pra isso ― PJ falou, animado, e eu demorei a perceber quando todos os olhares da mesa recaíram sobre mim. ― E aí? Quando vai rolar?
― O quê? Não, vocês entenderam errado ― dei uma risada nervosa, abanando as mãos. Então, virei-me novamente para Alex: ― O que você andou dizendo a eles? Se isso for sobre o beijo–
― Eu não disse nada, juro por Deus! ― ele se encolheu na cadeira, meio desesperado.
― Ok, … ― Jenna ergueu os braços. ― Não resisti.
― O quê?! Não acredito! Jenna, você sabe que–
Por um momento, vi que seria inútil me justificar para um bando de alcoolizados. , o único sóbrio além de mim, estava muito ocupado falando coisas no ouvido de Renée, e ela demandava sua atenção exclusiva. Os sorrisinhos maliciosos que não saíam dos rostos de Jen e PJ que estavam me incomodando.
― Aquilo foi só um beijo de meia-noite! ― debati. ― Qual é!
― Ah, foi uma cena tão… cinematográfica ― Jen comentou, ainda sorrindo.
― Queria ter visto ― foi a vez de PJ dizer. ― Aliás... O beijo de vocês duas… Essa era a cena que eu queria muito ter visto.
― Pare de nos sexualizar ― Jenna deu um tapa na mão dele. ― Foi só uma besteirinha.
― Aquilo foi um beijinho pós meia-noite, nada além disso ― acrescentei. Então, olhei para Alex mais uma vez: ― Você entendeu tudo isso, né?
― Sim, sim… Mas… eu só quis garantir ― ele deu de ombros. ― Você tá vendo, não tá, PJ? Não vou tentar mais nada, não adianta insistir.
― Eu sabia que um de vocês estava tentando me engraçar pra cima do Alex Rose ― bufei, cruzando os braços.
― É, mas... não quer dizer que não tenha sido um “beijo inesquecível”. Não é, Alex? ― PJ o instigou, fazendo o favor de reforçar as aspas com os dedos.
― É verdade, é verdade ― ele só confirmou, sorrindo numa boa.
― Ai, meu Deus… ― segurei minha cabeça entre as mãos, tentando cobrir os olhos. Queria poder rebobinar o momento e tapar os ouvidos para não ter que escutar aquele comentário.
Os três começaram a rir.
Quando o garçom trouxe a quinta rodada, foi a minha deixa para pedir uma cerveja também. Ao mesmo tempo, aproveitamos para olhar para por alguns instantes. Não sei os outros, mas eu estranhava o quanto ele estava disperso. Dava para notar que tinha um dos ouvidos atentos e lançava alguns olhares para a nossa conversa de vez em quando, como se também quisesse participar. Mas seu semblante não era nada bom quando se fixava em Renée.
Durante aquele silêncio momentâneo, deu para ouvi-la pela primeira vez naquela noite, mesmo que quase cochichando:
― Já deu. Vamos embora, .
― Rennie, nós acabamos de chegar ― ele respondeu, num tom baixo e até atencioso.
― Nós já chegamos faz mais de uma hora.
Ele respirou fundo e revirou sutilmente os olhos, e isso bastou para deixar a garota furiosa, para dizer o mínimo. Fiz o meu trabalho e agucei bem os meus ouvidos para terminar de ouvir aquela discussão.
― Eu vim por sua causa ― ela dizia entredentes, tentando manter a voz baixa. ― Eu vim porque você quis, cara. Como também fui naquela droga de festa da Phi Kap que você queria ir… Como também fui naquele seu aniversário no maior temporal. No meu você chega meia hora atrasado e eu preciso aceitar, né? Depois de tudo isso você ainda não pode fazer uma coisa tão simples por mim? É isso que eu ganho em troca?
― Não, Rennie… Meu Deus, de novo isso? Os sacrifícios que você tem que fazer pra estar comigo?
― Quem falou em “sacrifícios”? Lá vem você de novo, distorcendo as coisas ― ela diminuiu ainda mais o tom de voz, percebendo que estava sendo notada. ― Não foi o que eu disse. Você tá exagerando, como sempre.
― Ok, ok… Desculpa ― exalou um suspiro pesado. ― O que você quer fazer? ― a pergunta quase saiu como um murmúrio resignado.
― Sabe de uma coisa? Esquece. Pode ficar, eu sei que é o que você quer, já que prefere se divertir sem mim. Eu vou pro meu quarto ficar sozinha, porque tô acostumada a me sacrificar.
Um segundo após assumir aquele tom carregado de ironia, Renée largou sua long neck na mesa e se levantou para ir embora. Todos observavam em silêncio, um pouco apáticos. Eu era a única completamente confusa com aquele surto.
― Rennie, por favor ― insistiu, mas ela continuou seu caminho até a porta sem nem olhar para trás.
Ele rapidamente se levantou e correu até ela, que já estava do lado de fora. Antes que ele também saísse, Jenna se apressou e o alcançou na porta, segurando-o pelo braço.
― , para! ― ela vociferou. ― Já chega! Deixe ela ir!
― Não posso deixá-la sozinha–
― Ela pega um táxi em cinco minutos! ― Jen tentava puxar seu braço com força, mas não movia um músculo sequer.
Até que, aos poucos, ele foi cedendo e virando lentamente o corpo. Mas seus olhos teimosos foram os últimos a deixarem a porta.
― Se ela não queria estar aqui, não sei por que veio ― Jenna continuou brava. ― Você vive deixando de curtir as coisas por causa dessa garota. E o que rolou agora não foi nada perto das outras vezes.
voltou a se sentar no sofá, frustrado e cabisbaixo. Ele encarava as próprias mãos apoiadas sobre a mesa, e seu maxilar pulsava enquanto ouvia os sermões da amiga.
― Tá bom, Jenna. Foi mal. Desculpa, ok? Desculpa por tudo isso ― disse, sarcástico, parecendo um pouco exausto.
― A culpa não é sua, já te falei mil de vezes.
― Beleza ― ele murmurou. ― Eu só preciso de uma bebida.
Empurrei minha cerveja gelada ainda fechada em sua direção, que deslizou sobre a mesa e esbarrou nas mãos dele. levantou o queixo para me olhar.
― Não, você não pode ― Jenna esticou o braço e puxou a garrafa para si. ― Ele está dirigindo, . Lembra?
― Eu sei ― foi a minha vez de pegar a garrafa e deslizá-la para de novo. ― Eu posso dirigir, ainda não bebi.
Alex também se opôs:
― Desista, . Ele não deixa ninguém tocar naquela picape. Só PJ pode dirigi-la, e em casos extremos. E ele já está bêbado demais pra isso.
― Ei! ― PJ protestou. Depois, olhou para : ― Olha, cara, se quer mesmo tomar umas, eu posso parar de beber agora. Mais tarde, fico na boa e levo a galera.
― Espera um minuto ― arqueei uma sobrancelha e encarei . Pensei duas vezes antes de bancar a sabichona de caminhonetes, mas foi o que tive que fazer: ― Por que eu não posso dirigir sua Chevy K10 de 1969?
― Como é que é? ― surpreso, PJ bateu sua garrafa na superfície de madeira.
me devolveu outra sobrancelha arqueada ao perguntar:
― Como sabe que é uma K10 de ‘69?
― Porque é uma clássica. Deixe-me adivinhar. Ela tem um motor V8 e cento e cinquenta cavalos.
― Cento e cinquenta e três ― ele me corrigiu.
― Ah, não, . O que tá esperando, porra? ― PJ o empurrou pelo ombro. ― Acabamos de achar nossa nova motorista particular!
― É só por hoje ― pigarreei.
― Então… ― olhou para mim, curioso e interessado no assunto. ― Já dirigiu uma dessas antes?
― Aprendi a dirigir numa dessas com quinze anos. Meu avô tem um monte de caminhonetes. Ele é colecionador. E ele prefere Ford ― provoquei, divertida.
PJ zombou de , que ainda pensava a respeito com um sorrisinho contrariado no rosto.
― Mas se não quiser, tudo bem ― prossegui. ― Pode continuar agoniado na sua sobriedade, já que a–
― Não ― ele afirmou, me cortando. Depois, pegou minha cerveja, tirou as chaves do bolso de sua jaqueta e jogou-as no ar para mim. ― Hoje ela é sua.
Agarrei o molho de chaves e parei para analisar o chaveiro ali preso: um bonequinho Lego do Indiana Jones.
― Você é uma figura, ― ri sozinha.
Ele nem me ouviu, já estava distraído abrindo a tampa da garrafa e virando os primeiros goles. PJ ficou berrando qualquer coisa em seu ouvido e Jenna e Alex conversavam alto demais. Guardei as chaves na minha bolsa e terminei a noite vendo todos se perderem para o álcool. não bebeu tanto quanto os outros, mas o suficiente para se alegrar e relaxar mais.
Quando a madrugada chegou, a tarefa de deixar todos em casa também veio, e até que foi relativamente fácil. Fui na cabine com e Jenna; ela ao meu lado, ele na janela. Os meninos foram animados na traseira de novo. Apesar da minha familiaridade com o câmbio na direção da picape, o difícil foi ser vigiada por a cada marcha engatada, a cada giro no volante, a cada pisada nos pedais. Mas, com o tempo, ele largou a mão da neura e um pouco do preciosismo com sua lata velha.
Por dentro, ela estava novinha em folha. Conservada mesmo. Tinha até um cheirinho característico que eu ainda não conseguia identificar o que era… Todas as caminhonetes do meu avô também tinham aquele cheiro nostálgico. O banco de couro era bastante espaçoso, sem a divisão entre motorista e passageiro, por isso havia tranquilamente lugar para três pessoas.
Durante todo o caminho, fiquei mais concentrada do que tudo. Não podia cometer nem um vacilo milimétrico que fosse. Por esse motivo, fiquei de fora da conversa descontraída de todos e um pouco afundada em meus próprios pensamentos.
Não pude evitar de repassar a discussão que havia acabado de testemunhar naquela mesa do bar. Eu realmente não entendia , e agora, Renée muito menos. Fiquei um bom tempo me perguntando o que se passava na cabeça indecifrável dela. Talvez seus problemas de imaturidade tivessem a ver com a idade, como Jenna tinha dito...
… Mas, para mim, aquilo tinha mais cara de instabilidade emocional.
Hoje, em mais um dia frio e claro, eu me distraía observando o movimento do lado de fora através da janela ao meu lado. Lá embaixo, muita gente de outras turmas fazia seu horário de intervalo nos jardins do pátio, onde a neve fina cobria a grama e cristais de gelo pendiam dos galhos das árvores. Mas eu olhava para um ponto específico.
estava sentado no encosto de um banco, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e a mochila jogada no vão entre suas pernas. Ao redor, seu grupo de amigos fumava o mesmo cigarro que era repassado de mãos em mãos. Menos , que fumava o dele próprio.
Meu Deus, como ele ficava com uma cara de malandro quando levava o cigarro à boca. Fiquei hipnotizada. Aquela era uma cena que tinha a trilha sonora pronta, e eu fiz questão de dar o play na minha própria imaginação.
Come As You Are – Nirvana
O melhor de tudo era que, se eu chegasse até ali, agora, daria o maior sorriso do mundo e falaria alguma besteira. Porque ele era assim, despreocupado. Um malandro modesto.
― Pssst! ― demorei a entender quando o professor me chamou a atenção.
Eu odiava quem fazia pssst. Minha mãe fazia pssst quando queria chamar os cachorros pra dentro de casa.
Fingi reparar um pouco na aula, mas não estava dando. O professor falava sem parar sobre uns vinte artigos que deveríamos ler impreterivelmente até o fim do mês. Ou seja, olhei para a janela de novo.
O grupo agora se despedia de , fazendo vários toques de mão da linguagem deles. Até que uma garota se aproximou.
Era Renée.
se levantou e jogou o cigarro fora. Os dois se abraçaram por um tempo, evidenciando que estavam bem de novo. Depois, se beijaram ternamente.
Meu pescoço girou rápido para o professor outra vez. Aquele era o fim da minha bisbilhotagem por hoje.
Eu tomava uma Coca-Cola com alguns colegas durante nosso intervalo. Enquanto os ouvia reclamar sobre a aula anterior, eu estava me preparando psicologicamente para a próxima: seria meu primeiro dia repetindo Modelo Vivo. Matei a primeira aula da semana passada, confesso. Mas resolvi me poupar de ouvir tantos papos introdutórios da Srta. Tolbert, que adorava gastar saliva como ninguém.
Quando entrei na sala, a maioria dos alunos já tinha chegado, inclusive a professora, o que me levava a pensar em como a turma estava bem menor este semestre. As largas mesas de desenho formavam um círculo em volta de uma cadeira vazia que ocupava o centro. Arrastei meus pés até uma delas, enquanto Tolbert nos entregava várias folhas em branco.
― , bem-vinda de volta ― ela disse quando passou por mim. Eu quis chorar. ― Hoje você não vai precisar se juntar a nós. Não neste círculo.
― Como assim?
― Pode se sentar em uma daquelas mesas ali atrás ― ela apontou para o local, e eu só mudei a direção para a qual meus pés se arrastavam. ― Você só está aqui por questões burocráticas. E sua típica falta de atenção, claro ― seus olhos me encararam por cima do óculos de armação vermelha. ― Então, vamos fazer com que esse semestre seja mais proveitoso. Quero que você trabalhe mais os seus pontos fracos. Espere lá.
― Ok… ― joguei minha bolsa em qualquer canto e me sentei na mesa isolada.
A professora foi se sentar na cadeira reservada para o modelo.
― Atenção, turma! Podem começar a rabiscar o que vêem. Não se preocupem em dar tratamento, não quero ver iluminação nem volume hoje. Concentrem-se no seu ponto de observação e desenhem apenas as formas. Tomem cuidado com as proporções, meçam tudo com o lápis se for preciso.
Apanhei meus materiais e os os distribuí pela superfície lisa, nem um pouco ansiosa para as instruções que ela daria especialmente para mim a seguir.
― Ah, , até que enfim! ― Tolbert exclamou.
Olhei para a porta, pasma. Foi então que me lembrei de quando tinha comentado sobre a monitoria que daria nessa aula.
― Assine a folha de ponto logo e, por favor, pegue dois espelhos na Sala de Amostras e traga-os pra cá.
Ele entrou e saiu da sala com pressa, voltando cinco minutos depois com o que a professora havia pedido. Ela cochichou alguma coisa para que o fez olhar diretamente para mim. Logo em seguida, ele se aproximou.
― O que tá acontecendo? ― questionei, receosa.
Ele puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado, na ponta da mesa.
― Ela me pediu pra te passar uns exercícios de expressões faciais. Já fez isso antes, não fez?
― Hmm… Específico assim? Não. Nunca.
― Sério? Ok, é assim... ― ele arrastou a cadeira mais para perto. Pensei que fosse sentir aquele cheiro forte de cigarro, mas tinha um hálito fresco de hortelã como quem havia acabado de jogar fora um chiclete. ― Você segura o espelho com uma mão e... Pode me dar isso? ― ele apontou para o lápis que eu segurava. Entreguei-o em suas mãos, e ele puxou a folha para sua direção. ― Escolhe uma expressão... de preferência a mais exagerada que conseguir. Você sabe, pra sentir e prestar bastante atenção nos músculos do rosto. Só entendendo como eles interagem entre si que você vai conseguir criar expressões mais realistas e precisas depois.
Olhando para o próprio reflexo, levantou bem alto uma sobrancelha e abaixou totalmente a outra, ficando quase como uma caricatura.
Segurei o riso.
― … E, com a outra mão, reproduz ela no papel. Por enquanto, é isso. Só um exercício.
Então, em menos de um minuto, ele havia terminado de rascunhar a cópia perfeita de sua expressão em um estilo realista.
― Sua vez ― estendeu o lápis para mim.
― Não, espera, você fez isso rápido demais.
― Tem que ser rápido. É pra você fazer várias vezes, sem medo de errar.
Suspirei.
aproveitou para fazer outra careta e desenhou-a de novo, movendo os olhos da sua imagem para o papel várias vezes até o resultado perfeito surgir outra vez.
― Viu como é fácil? ― ele girou o espelho até encontrar o reflexo do meu rosto, me encarando através dele.
― Não sei, não ― falei, inquieta, tomando o objeto de sua mão.
Busquei também o lápis e o papel, posicionei tudo como ele havia feito e, de repente, minha autoconfiança desceu pelo ralo. Enquanto eu hesitava por tempo demais antes de começar, se debruçou um pouco sobre a mesa e apoiou o rosto sobre uma mão, me esperando.
― Não sei que expressão fazer ― confessei.
― Só pense que você é o Jim Carrey.
― O quê? ― olhei para ele.
― É sério. Pense que você é o Jim Carrey.
Então, ele entortou a mandíbula e os lábios, juntou as sobrancelhas, abriu as narinas e mostrou todos os dentes da arcada superior.
Aquilo foi demais para mim. Ele conseguiu imitá-lo direitinho, e eu não poderia ter sido pega mais desprevenida – soltei uma risada alta e descontrolada. Todos da sala olharam em minha direção, assustados, e também não se segurou. Ele estava fazendo aquela coisa de espremer os olhos, apertar o próprio peito e rir até chegar ao ponto de não emitir mais sons.
― Ssshhhh! ― Tolbert nos repreendeu.
Rapidamente me contive, mas pouco me importando com aquela amolação. Até que tudo ficou quieto de novo.
― Existe um concurso pra isso? Você ganharia ― comentei, falando mais baixo. ― A melhor personificação do Ace Ventura.
― Eu sei, eu sei ― ele piscou várias vezes e jogou o cabelo para trás.
― Um Ace Ventura babaca ― corrigi.
― ! ! ― a professora nos advertiu outra vez. ― Concentração, por favor!
― Vai, começa logo ― ele pediu num sussurro, e eu olhei novamente para o espelho. ― Tô começando a me sentir na escola nessa porra.
― Como se essa disciplina já não fosse a própria aula de artes do primário.
― Que você teve a façanha de repetir ― ele brincou, mas ambos sabíamos que era a realidade. Que vontade de arremessar um troço na cara dele. ― Por favor, só não me faça rir.
― Tá bom.
Pensei em outra comédia qualquer do Jim Carrey e fiz a primeira careta que me veio em mente. Só ouvi o grunhido de , prendendo o riso.
― Quer parar? ― reclamei, me esforçando ao máximo para não rir de novo.
Ele respirou fundo, agora olhando para mim com uma expressão bem mais séria e controlada. Mas ainda sorria só com os olhos, dava para notar. Voltei a fazer a careta e demorei um pouco mais até concluir o desenho.
― Pronto ― falei, largando as coisas sobre a mesa.
virou o rosto para o papel e se mostrou surpreso:
― Olha só, nada mal ― ele deu aquele elogio básico, mas que me deixou realmente aliviada. ― Só ficou um pouco cartunizado, principalmente os olhos. Tenta deixar mais realista.
― Sou péssima com realismo.
― É só praticar. Faz mais algumas ― ele pediu. ― Já volto.
Enquanto se levantava e ia ajudar outros alunos que o chamavam, treinei mais algumas expressões, obviamente mais sutis. Mas estava difícil me concentrar. Aquele cheiro de hortelã ainda pairava sobre o ar ao meu redor. A risada gostosa dele ainda ecoava em meus ouvidos. E seus rascunhos incríveis ainda estavam em meu papel.
O quê?!
Não.
Engoli em seco.
“Calma, , é só uma carência excessiva e passageira”, insisti para mim mesma, quase num estado meditativo profundo. “É perfeitamente compreensível sentir algumas emoções dadas as circunstâncias.”
Acho que estava na hora de eu dar mais uma olhada na minha agenda de contatos antigos.
― Acho que estou com um problema.
― Que problema?
Eu rolava de um lado para o outro sobre os cobertores de Jenna, mas estava me sentindo mais em um divã do que em qualquer outra coisa. Seu quarto havia se transformado em um consultório, e ela, minha terapeuta. Uma terapeuta que agora pintava cada unha dos dedos do pé de uma cor.
Passamos a tarde inteira comendo M&M’s, ouvindo música, falando merda e, principalmente, conversando sobre sexo. Além de super liberal, Jen não tinha papas na língua e medo nenhum de se expressar. Aquele era um assunto fácil de conversar com ela, mas eu ainda enfrenteva algumas dificuldades.
― Que problema, ?
― Não sei. Não– Não sei como colocar isso ― gaguejei. ― Tô tão no fundo do poço da carência que tô me derretendo muito fácil por umas coisas estúpidas. Já sentiu isso?
― Aham.
― Sabe quando qualquer cara do Campus que te diz “oi” e você já interpreta como um possível flerte?
― Aham.
― E quando qualquer cara que te beija, você sente que seu fogo não vai esperar nem cinco minutos pra empurrá-lo pra uma cama?!
― Aham!
― Deus do céu, eu tô desesperada demais. Isso não é nada bom. Me sinto como uma vadia, e agora como uma hipócrita, porque não pareci me importar muito quando Ally me disse que eu estava vulgar demais.
― Na-na-ni-na-não. Você só é uma mulher saudável e com tesão. Pode parar de se culpar, e não deixe que ninguém te faça se sentir mal por isso.
― Mas… Argh. É tão difícil.
― Eu sei, eu sei como é difícil. Quando a gente quer ficar quieta, somos santas demais. Quando sentimos esse fogo incontrolável, somos putas demais. O termômetro puta/santa vale também pra tantas outras coisas... Já percebeu? Pro comprimento da nossa roupa, do nosso cabelo, do decote da nossa blusa…
― Se usamos ou não sutiã… ― acrescentei, lembrando-me de Ally e seus comentários desagradáveis.
― Exato! Pensa bem, até nossos pelos são controlados. Se deixamos crescer, somos nojentas e anti-higiênicas. Se tiramos tudo, somos atrizes pornográficas.
― Não é?! Se quer saber, eu já cansei de toda essa droga ― tomada por uma revolta repentina, levantei-me bruscamente da cama e agarrei minha própria cabeça. ― Eu desisto. Desisto! Não tem jeito, eu nunca vou ser boa o suficiente pra ninguém no mundo, Jenna. Entendeu?! Isso é, tipo, cientificamente impossível.
― Entendi ― ela riu. ― Aliás, você finalmente tá começando a entender algumas coisas importantes. Mas tentar agradar os outros ainda é um caminho doloroso, . Pense mais em você, sabe. Faça o que tiver vontade e foda-se. Pode confiar.
O tesão que estava se coagulando em meu sangue aos poucos começava a correr livremente pelas minhas veias. Eu estava no caminho para aceitá-lo, mas ainda era... difícil.
― Agora me sinto como um homem ― falei, em meio a um riso irônico ―, com todas essas necessidades sexuais.
― Pois é. Crescemos achando que só eles gostassem de sexo, não é mesmo?
― Como estávamos erradas...
De repente, Jen largou os esmaltes e soltou uma risada alta.
― Que foi? ― perguntei.
― O que você disse mesmo? Que quer flertar com qualquer cara que te diz “oi”?
― É, mais ou menos isso.
Ela riu outra vez:
― , já parou pra pensar que 95% dos homens que já interagiram com você nesse Campus já te imaginaram pelada e chupando o pau deles?
― Puta merda…
Ela não poderia estar falando uma verdade mais pura e infeliz. Agora, o constrangimento era total.
― Acho que a carência acabou ― me revoltei outra vez. ― Acho que vou dar uns passos pra trás e voltar pro clube “Eu Odeio Homens”–
― Não! Quero dizer, existe um jeito de odiá-los e foder com eles ao mesmo tempo. Basta você admitir o que quer. E você sabe o que quer... Falamos disso mais cedo.
― Não, não dá ― caí sobre a cama de novo e cobri meu rosto com o lençol amarrotado. ― Eu entendi tudo o que você disse, mas não consigo deixar de me sentir como uma vadia se eu disser isso em voz alta.
― Não tem nada a ver! ― ela veio mancando até mim, cheia de algodões entre os dedos do pé, e tirou o tecido da minha cabeça. ― Vai, fala. Agora.
Meus lábios se comprimiram em uma linha, e eu só conseguia encarar o teto, tamanha era minha vergonha. Era difícil admitir o que eu realmente queria até para mim mesma.
― Anda! ― ela me apressou. ― Você aprendeu a reprimir isso, agora vai aprender a liberar. Vamos, diga em voz alta.
― Tá bom, tá bom! ― fechei os olhos com força e choraminguei. Estava me escondendo mais do meu próprio julgamento do que o de Jenna, quem eu tinha certeza que não me condenaria. Respirei fundo antes de finalmente admitir: ― Eu preciso transar.
― E o que mais?
― Eu quero transar.
― E o que mais?
― Com qualquer cara. Eu tô morrendo de vontade de transar com qualquer cara. EU QUERO DAR!
― PARABÉNS! ― ela bateu palmas, e logo foi tirar da minha bolsa um caderninho que eu usava para anotar números de telefone. Então, jogou-o ao meu lado. ― Agora, ligue pra um deles.
Suspirei, ainda deitada. Comecei a folhear as páginas, uma por uma, lendo todos os nomes masculinos da lista.
― Esse não, esse não, esse já formou, esse mora na minha cidade, esse também, esse… Hmm, não, esse não, esse–
― Ei! Espera! Quem foi esse “hmm”?
― Derek? Ah… Trabalhamos juntos no meu último estágio. Ele é razoável. Bonitinho, até. Era meio apaixonado comigo na época. Já ficamos algumas vezes durante saídas depois do expediente.
― Liga pra ele.
― Ah, não… Ele é um folgado. Plagiava um monte de trabalhos e tomava crédito por eles. Sempre achei isso tão escroto.
― Você quer transar ou se casar com um juiz defensor da moral?
― Tá bom, vou ligar ― engatinhei até a mesinha de cabeceira e peguei o telefone transparente de Jenna, onde se podia ver todas as partes coloridas do sistema eletrônico. ― Espera, o que eu digo? Tem tempos que não nos falamos. A gente só se vê por aí em algumas aulas, não vai ser muito estranho?
― Diga que você precisa de algum material emprestado, sei lá.
― Hmm…
Disquei os números e acabei pensando numa desculpa melhor.
― Alô? ― ele atendeu.
― Alô? Dave?
― Não, não. Aqui é o Derek.
― Oh! Derek! Me desculpe, foi engano. Aqui é a . Desculpa, confundi os nomes e os números da minha lista. Tchau–
― ?! ? Como você tá, gata?
Derek não só era um peixe que mordia fácil a isca, como também implorava para ser pescado.
― Tô bem, e você? Trabalhando muito?
― Não, saí no fim do ano daquele inferno.
― Ah, que bom. Te falei que era melhor sair.
― Pois é… Fui entender isso mais tarde. E aquele outro estágio que você ia tentar entrar? Passou?
― Erm… Nem me inscrevi, pra falar a verdade.
― Poxa, ... Escuta, a gente bem que podia combinar de se encontrar pra nos atualizarmos, não acha? O pessoal da agência sempre pergunta por você.
― Sim, podíamos...
― Poderia até te chamar pra tomar um café com eles, mas… vai ter essa festa na república do Sanders que acho que vai ser bem mais legal. Anima?
― Sério? Não sei... Que dia?
― Depois de amanhã, à noite, lá pras nove. Vai pouca gente, mas gente supimpa.
Acabei aceitando. Não tinha motivos para recusar, não tinha nada me impedindo de ir e, para falar a verdade, eu tinha cara de pau o suficiente para assumir que gostava dessa bajulação do Derek. Por fim, ele me passou o endereço e outros detalhes. Combinei de encontrá-lo lá e, então, desligamos.
Era isso mesmo que eu tinha acabado de fazer?
― Eu nunca vi alguém marcar um encontro tão rápido em toda a minha vida ― Jenna comentou, dando uma risadinha.
― Não é exatamente um encontro...
― Um encontro implícito? Melhor ainda. Onde?
― Numa república de um tal de Sanders. Nem sei quem é esse cara.
― Ah, deve ser o Will. Will Sanders, aquele mágico doidão. Ele nunca te parou no pátio e pediu pra você escolher uma carta?
― Ah! Sei quem é ― falei, um pouco mais animada. Pelo menos não era uma festa de completos desconhecidos.
De repente, senti um frio na barriga. Um frio ruim. Eu estava aflita e ansiosa com aquele encontro implícito. Na verdade, não estava sabendo lidar nem um pouco com as minhas reais intenções.
Jenna logo percebeu:
― Quer que eu vá com você?
Então, finalmente relaxei.
― Sim!
A república onde Will Sanders morava era uma casa amarela de um só pavimento, relativamente perto do Campus. Jenna e eu dividimos um táxi e não demoramos nem dez minutos para chegarmos.
Logo que entramos, percebemos que éramos umas das poucas mulheres ali presentes. A maioria eram homens da mesma faculdade que a nossa; o resto era de cursos de outras áreas diversas. Na ampla sala, havia uma mesa de sinuca e outra de carteado, onde Sanders e seus colegas jogavam pôquer. Apenas duas luminárias de teto iluminavam cada mesa. Na sinuca, Derek havia acabado de fazer uma jogada quando me viu.
― E aí, gata? ― ele largou o taco e veio me cumprimentar com um beijo na bochecha. ― Trouxe uma amiga? Maravilha! Estávamos precisando.
― Essa é Jenna ― apresentei, e eles deram acenos um para o outro. ― Jenna, esse é Derek.
― Muito prazer. Fiquem à vontade, meninas. As bebidas estão na cozinha.
Sorri para ele em agradecimento e rapidamente puxei Jen para lá. Ela estava meio sonolenta, mas logo se animou quando abriu a geladeira.
― Uau! ― exclamou. ― Eles têm cervejas das boas aqui. Na república dos meninos nunca tem nada.
― Jenna, acho que não vou conseguir fazer isso ― falei, pegando uma garrafa de Ice.
― Calma, . Você mal chegou.
― O que achou dele?
― Super bonitinho. Se não quiser, eu quero.
― Muito engraçado, mas não vai rolar.
Derek era alto e esguio, tinha os olhos castanhos e cílios bem curtinhos. Seu cabelo era loiro e vivia bagunçado; os fios todos espalhados como se tivesse acabado de levar um pequeno choque eletrostático. O tom platinado não combinava nada com as sobrancelhas escuras, mas eu considerava aquilo um baita de um charme. O garoto era meio inconsequente e convencido, mas divertido. Tinha cara de quem ia aprontar alguma a qualquer momento.
Derek também não tinha muito senso de estilo. Vivia combinando estampas nada a ver, e hoje não estava diferente – vestia uma camiseta listrada, calças micro-xadrez e um All Star amarelo chamativo. Ele também usava uma argolinha na orelha direita que não tirava por nada nesse mundo. Eu criticava, mas também gostava de seu jeito arrojado.
Quando eu e Jen voltamos para a sala, nos acomodamos em um pequeno sofá de dois lugares próximo à mesa de sinuca. Porém, o olhar dela estava fixo no pessoal que jogava pôquer.
― Tá de olho no Sanders? ― brinquei.
― Tô procurando alguém pra ficar de olho. Toda aquela conversa sobre sexo me deixou excitada.
Ri, quase cuspindo a bebida que eu virava da garrafa.
Parei para observar Derek super entretido em seu jogo. Apesar de tudo, ele tinha um sorriso tão bonitinho quanto seu rosto. Ele ria à beça com os outros, e sua franja caía sobre os olhos quando se inclinava para dar uma tacada. Assim que encaçapou uma bola, fui pega de surpresa quando me mandou uma piscadinha galanteadora.
Quando me dei conta, eu estava sorrindo para ele de volta, numa resposta quase automática.
― Hmmm… ― Jenna me cutucou, sugestiva.
― Você viu isso? ― sussurrei para ela, que confirmou com a cabeça. ― Nunca pensei que seria tão fácil.
― Você acertou em cheio quando ligou pra ele.
― A ideia foi sua.
― Então tá esperando o quê pra me agradecer?
― Bem, não posso ainda... E se for ruim? Nunca passamos das preliminares, e isso foi muito tempo atrás.
― Você fala como se as preliminares também não fossem sexo ― Jen deu uma risadinha. ― Relaxa, pelo menos você vai se sentir saciada.
― Meu Deus ― olhei para ela. ― O que eu sou? Uma cobra querendo dar o bote?
― Uma mulher. Uma mulher perfeitamente normal e cheia de tesão ― ela sorriu, apertando minha mão.
Jenna conseguia me transmitir um bocado de autoconfiança, de um jeito quase místico. Pelo menos era o que ela devia acreditar. Era a cara dela dizer que nossas auras estavam da mesma cor ou coisas do gênero.
Quando sorri de volta, Jen se afastou e puxou a bolsa para o seu colo. Dali tirou algo que parecia um comprimido e, em seguida, o colocou na boca com o dedo. Fiquei observando, curiosa.
― O que é isso?
― MD ― respondeu ela, colocando seus olhos azuis e esbugalhados em mim. ― Nunca usou?
― Não, nunca.
― Sério?
― Sério, diacho, sou uma caipira careta.
Ela riu.
― Quer experimentar?
Fiquei pensativa, mas não por muito tempo. Hoje eu só queria liberdade, nem que fosse a ilusão dela. Liberdade de julgamentos alheios e, principalmente, das minhas amarras tradicionalistas. Hoje era o dia que eu ia mandar todas essas coisas pro quinto dos infernos. Eu claramente poderia fazer tudo isso sóbria, mas me dei ao luxo de usar aquelas motivações extras como impulso para experimentar algo novo.
― Quero!
Ela deu uma risadinha e pediu para eu abrir a boca. Em seguida, com o indicador, colocou outra pílula sobre minha língua. Colei-a no céu da boca e terminei minha garrafa de Ice. Quando olhei para a sinuca de novo, me surpreendi quando o jogo continuava sem Derek, que caminhava de um jeito maroto em minha direção.
― Olha, precisamos de uma música aqui ― Jenna se levantou na mesma hora. ― Onde está o rádio?
― Ali, ao lado da mesa de carteado ― ele respondeu, apontando para o local.
Jen se afastou e foi até o aparelho mudar a estação, enquanto Derek rapidamente ocupava o lugar vazio ao meu lado no sofá.
Sex & Candy – Marcy Playground
Nada como falar mal de alguns de nossos antigos colegas de estágio e, principalmente, de nosso chefe babaca. Eu e Derek sempre fomos especialistas em fazer isso. Porém, eu também conseguia ser falsa o suficiente para fofocar sobre ele e seus plágios descarados com os outros. E foi assim que tudo aconteceu: numa remota noite depois de fazermos hora extra, um tempo atrás – coisa que não tínhamos permissão, mas fazíamos mesmo assim –, abri o jogo e acusei-o de tudo, na cara dura.
Resultado?
Efeito oposto: Derek ficou caidinho por mim. Mas muito caidinho mesmo, porque ele nunca teve um pingo de vergonha na cara. Ele devia ter alguma tara em se sentir colocado contra a parede ou coisa do tipo. O que se sucedeu foi um longo jogo de provocações e alfinetadas disfarçadas de flerte, até eu acabar indo parar na cama do dormitório dele naquela mesma noite, e em várias outras seguintes.
Já fazia pouco mais de um ano desde a última vez que nos encontramos.
― Tô te dizendo, eu saí por causa daquele filho da puta ― ele reclamava. ― Existe uma diferença entre um líder e um chefe.
― O Sr. Henshaw com certeza não era um líder.
― Ele fez a nova estagiária chorar.
― Que novidade... ― me lembrei de quando eu mesma já tinha chegado muito perto disso algumas vezes. ― Ele é capaz de desestabilizar qualquer um.
― Pra você ter uma noção… Ele tá me devendo até hoje pelo táxi que precisei pegar quando saí da agência de madrugada.
― Mas te pagou uma pizza pra você pensar que estava legal ficar ralando até tarde, não é?
― Claro, é o que ele sempre faz. Te recompensa por finalmente atingir seu esgotamento mental.
― Típico.
Depois de longos minutos descendo a lenha no Sr. Henshaw e nos funcionários que pagavam pau pro Sr. Henshaw, comecei a me cansar do assunto. Inclinei-me um pouco mais na direção de Derek, que logo passou um braço atrás de mim. Seus dedos alcançaram as pontas do meu cabelo, e ele ficou brincando distraidamente com elas. Não demorou muito até fazer um carinho gostoso em minhas costas.
Fiquei estranhamente extasiada com o toque. Como num reflexo, cheguei ainda mais perto dele, que moveu sua outra mão para a minha. Derek continuava falando e falando, agora sobre um jogo de beisebol, mas fiquei vidrada em sua boca. Se aqueles toques estavam me eletrizando, eu queria experimentar mais.
― Aí, eu disse que não poderia ir ao jogo no sábado, porque já tinha reservado o–
Hora perfeita para calá-lo com um beijo e adiantar o óbvio. Choquei meus lábios nos dele, que rapidamente se abriram e me fizeram encontrar sua língua, como se ele só estivesse esperando o meu sinal verde para tomar alguma iniciativa. Ele agarrou minha coxa e me puxou para sentar em seu colo, de lado, onde continuamos com o beijo intenso e desesperado.
Caramba, quando foi que fiquei tão sensível a toques assim? Ondas e mais ondas de calor percorriam por todo canto milímétrico da minha pele em que ele encostava suas mãos. E eu sabia exatamente de onde essas ondas vinham: de um lugar que não parava de pedir por mais.
― Vamos lá pra dentro? ― pedi, mas voltei a beijá-lo, deixando-o sem resposta.
Senti sua ereção por baixo da calça e, sem hesitar, envolvi-a com uma mão para apertá-la – Derek soltou um gemido quase inaudível e se remexeu no sofá. Então me levantei, e ele me deu a mão. Em seguida, me puxou para atravessar a sala, por onde caminhamos civilizadamente. Assim que chegamos ao corredor escuro que levava aos quartos, agarrei-o de novo.
Da forma mais desajeitada possível, ele ia me prensando sobre todos os cantos, de parede em parede, testando a maçaneta de todas as portas. Nenhuma estava livre. E aquele não era mais um beijo, era um caos total. Mas eu estava tão animada que era como se tivesse acabado de engolir cinco litros de um energético super forte.
Afastei-me de vez, e, do nada, atrás dele, um ponto de luz no teto havia ficado extremamente brilhante para mim. A excitação me desconcertou por completo, e eu empurrei Derek para dentro do banheiro aceso. Ele trancou a porta atrás de si e voltou a me beijar, dessa vez com mais calma. Mas eu o afastei de novo, porque senti um calor insuportável.
Comecei a me despir, ofegante.
― Tá muito calor ― falei, tirando os sapatos e a calça.
― O quê? ― ele só ficou me olhando sem entender nada. ― Tá fazendo, tipo, dez graus lá fora.
― O aquecedor dessa casa deve estar esquentando demais ― tirei o casaco, a blusa, e arremessei tudo no chão.
Os olhos de Derek aumentaram de tamanho em dez vezes quando desceram para meus seios, ainda cobertos pelo sutiã preto. Então, ele me carregou e me pôs sentada sobre a bancada gelada. Quem sentiu o choque térmico foi minha bunda, e aquela sensação eletrizante voltou a me acertar.
― Gata, você é gostosa demais ― Derek ainda encarava meu decote e, segundos depois, desafivelou o cinto.
Puxei seu rosto com as mãos e o beijei com urgência, enquanto ouvia suas peças de roupa também caírem no chão.
Ele tentou desesperadamente abrir meu sutiã, mas não conseguiu, e eu também não fiz a menor questão de tentar ajudá-lo. Então, posicionou cada uma de suas mãos atrás de meus joelhos, me fazendo entrelaçar as pernas ao redor de seu tronco, e me puxou para a beirada da bancada.
― Você ainda toma… cuidados, né? ― ele perguntou no meu ouvido, com dificuldade para respirar.
― Que cuidados?
― Ah, você sabe…
Ai, meu Deus. Mais um homem fingindo se preocupar se eu estava em dia com meu anticoncepcional. A preocupação mesmo era com um possível desconforto, não com a proteção. Eu tinha cara de pamonha?
― Derek, você tá achando que não vai usar camisinha?
― Ah, , mas é tão melhor sem…
― Você vai usar. Isso não é um pedido ― depois do meu olhar autoritário, só faltou ele me prestar continência.
Derek fez um barulho de objeção com a boca e parou para fazer seu trabalho obrigatório antes de tudo. Assim que terminou, deitou a cabeça entre meu ombro e pescoço, onde pude sentir sua respiração descompassada. Arrastou minha calcinha para o lado, massageou meu clitóris com o polegar por um tempinho e, quando cansou de se empenhar, sua mão foi prontamente para dentro da cueca, buscando o que era mais essencial para ele naquele momento. Lógico. Quando o senti entrar dentro de mim, segurei com muito esforço um gemido de dor, cravando as unhas em suas costas.
Eu ainda queria aquilo, mas acho que não estava lubrificada o suficiente.
Numa arfada, supliquei:
― Devagar, devagar!
De nada adiantou. O garoto ativou o modo britadeira e não parou mais.
O que fazer quando o sexo é desconfortável?
…
Esperar?
...
Pensar na vida?
...
Pensar na morte?
…
― Goza logo, pelo amor de Deus ― falei a primeira coisa que se passou na minha cabeça.
Assim que ele foi ficando cansado – garotos-britadeira sempre se cansam rápido –, o ritmo foi melhorando, e eu até que comecei a curtir. E curtir, e curtir... E curtir muito. Gemidos baixos saíram da minha boca, e eles foram o suficiente para estimular e acelerar Derek de novo.
Até que ele parou. Sua respiração ficou ainda mais falha, e assim ele escorregou para fora de mim.
― Já?! ― olhei para ele, indignada.
― Você disse pra eu gozar logo!
Revirei os olhos.
Ele começou a apertar meus seios por cima do sutiã e a beijar a pele exposta, e eu só queria voltar a calcinha desajeitada e incômoda para o lugar.
― Preciso sair daqui ou vou derreter de tanto calor ― empurrei levemente seus ombros e pulei da bancada.
― Não, não, não...
Despreocupada, ignorei seus pedidos e comecei a me vestir. Ele embolou a camisinha em um monte de papel higiênico, descartou-a no lixo e vestiu as calças. Enquanto isso, parei rapidamente para olhar para meu reflexo no espelho – minha pele tinha um novo brilho e minhas pupilas estavam enormes como duas bolotas pretas.
Socorro. Era hoje que eu ia morrer.
Não achei minha blusa, então só joguei o casaco por cima dos ombros antes de destrancar a porta.
― Ei, ficou doida? Você não pode sair assim lá fora ― Derek riu e apanhou minha blusa do chão, jogando-a para mim.
Acabei me forçando a vesti-la e saí do banheiro com o casaco nas mãos. Eu não estava muito bem da cabeça.
Vi um cara parado no corredor.
No mesmo segundo identifiquei quem era, quando senti um frio imenso na barriga que quase me derrubou. Eu conhecia muito bem aquele corpo bronzeado e musculoso e, principalmente, aqueles olhos amendoados.
E ele só estava esperando que o banheiro fosse desocupado.
Blaze Collins olhou para Derek e de novo para mim, de cima a baixo, constatando o óbvio que havia acabado de acontecer. Era para eu me sentir vingada, nem que por um mísero segundo, mas só consegui pensar em como ele estava lindo, com o cabelo diferente... Um pouco mais curto, um pouco mais claro... Ou era a luz me pregando peças?
De repente, tive a sensação que a parede atrás de Collins se movia muito rápido para longe, enquanto ele continuava estático em meu foco. A estranha vertigem tomou conta do meu corpo, e a tensão me fez apertar os dentes. Tropecei em meus próprios passos antes mesmo de tomar a consciência de que estava andando, e senti um pequeno desespero ao perceber que estava ficando cada vez mais fora de mim.
Blaze certificou-se de me segurar antes que eu caísse.
― Tá tudo bem, cara ― ele avisou para Derek ―, eu lido com ela agora.
― ? ― Derek me chamou, mas eu estava vidrada demais no meu ex imprestável e nos pequenos espirais que se formavam em volta dele.
Se não me engano, os dois se conheciam. Comecei a sair com Collins logo depois que terminei meu estágio. Então, definitivamente, os dois sabiam da existência um do outro.
Derek se afastou sorrateiro, e eu continuei apoiada nos braços de Blaze com os joelhos moles.
― O que tá fazendo aqui? ― encarei seus olhos cor de mel tão... tão lindos. ― Por que você aparece em todos os lugares?
― Que lugares? A gente se viu pela última vez no Ano-Novo ― ele riu.
― Não… Você tá em absolutamente todos os lugares. Eu olho pra direita, você está lá. Eu olho pra esquerda, você de novo. Eu olho pro teto e… ― fui fazendo os movimentos com a cabeça e simplesmente disparei a rir descontroladamente, quase perdendo o ar.
― , o que você tomou?
― Por favor, não me solta! Me abraça ― prendi os braços em torno dele, sem conseguir parar o ataque de riso ou sequer estabilizar minhas pernas.
Eu tenho certeza que não desmaiei, mas perdi pedaços da minha memória pouco tempo depois. Foi a sensação mais estranha que já tive em toda minha vida. Não foi o mesmo blackout de um coma alcóolico, nem nada disso. Não sabia o que era. Só sabia que fui parar em um lugar desconhecido da minha mente.
Quando o sol estava prestes a nascer, acordei na cama do meu quarto ainda vestindo as mesmas roupas. Borrões apareciam em minha cabeça como se fossem lembranças de um sonho. Nas minhas condições, não havia a menor possibilidade de distingui-los do que era real ou não.
Porém, a realidade foi caindo quando finalmente notei a luz da sala do dormitório acesa. Não muito tempo depois, ouvi o clique do interruptor e ela se apagou. Por um momento, pensei que fosse Sadie, mas Blaze quem surgiu por trás da penumbra e veio até mim.
― Não consegue dormir? ― ele sentou-se na beirada do colchão ao meu lado.
― Que porra aconteceu? ― inclinei-me para levantar, mas ele me impediu.
― Calma, você ainda tá meio elétrica.
― Onde está Jenna? ― perguntei, atônita, sentindo minha mandíbula um pouco travada.
― Voltou com a gente no mesmo táxi. Eu, você, ela e o Will Sanders.
― Meu Deus. Jenna dormiu com o mágico?
― Provavelmente ― ele deu uma risadinha. ― Eles estavam juntos.
― Tô morrendo de sede. Preciso de água.
― Não. Só depois que você dormir mais.
― Mas eu quero.
― Não.
― Por que raios não posso tomar um copo d’água?
― Porque você tomou bala.
Ah, meu Deus… Talvez eu tenha feito a grande merda de não ter tomado o cuidado necessário para a minha primeira experiência. Mas eu estava com sede demais para criar alguma noção na minha cabeça. Só faltava eu cuspir areia de tão seca que minha boca estava. Olhei para Blaze e fiz o maior bico que pude para convencê-lo. Sempre dava certo.
― Tudo bem… ― ele se rendeu depois de alguns segundos. Não disse? ― Tudo bem, eu pego um copo pra você. Só um.
Assim dito, assim feito. Quando ele me trouxe a água, voltou a se sentar ao meu lado na cama.
Enquanto eu dava goles demorados, parei para observá-lo discretamente. Cabisbaixo, Blaze brincava de bater os próprios polegares um no outro. Estava meio perdido, dava pra ver. Perdidinho. Seu cabelo estava mesmo mais curto, e, infelizmente, alguns de seus cachos adoráveis tinham ido embora. Mas quem se importava? Ele ficava gato de qualquer jeito. Tive uma vontade imensa de passar os dedos pelos fios curtinhos de sua nuca, mas me contive. Ser tão bajuladora de um ex assim também me garantia o selo de otária.
― Por que você tinha que ser um babaca e beijar minha amiga? ― disparei.
Blaze levantou o pescoço e olhou para longe, evitando o contato visual.
― Eu sabia que você tinha visto. Não teria outro motivo pra você ter ficado tão puta e me jogado na piscina ― ele respondeu, num tom de voz baixo. Então, seus olhos finalmente encontraram os meus quando disse: ― Me desculpa, . Sei que você não precisava disso.
― … Não me importo mais.
― Foi só aquela noite ― ele deu um suspiro pesado e triste, quase substituindo o meu. ― Eu não estava saindo com ela... Só pra você saber.
Que preguiça daquela justificativa que não melhorava a situação nem 1%. Quase revirei os olhos, apesar da mágoa que me corroía por dentro.
― Então você tava traindo a menina da Engenharia com ela? ― perguntei.
― Não. Nós também meio que terminamos. Tô cansado de qualquer tipo de relacionamento, sendo bem sincero com você... Quero aproveitar a minha independência.
― Hmm ― foi só o que minha voz conseguiu soltar: um murmúrio robótico feito um VibraCall. Se eu ainda tinha algum resquício de esperança sobre nós, ele havia acabado de ser aniquilado. ― Tem mais alguma coisa que eu deveria saber?
― Tem uma coisa…
― O quê?
― Allison quem veio atrás de mim.
Aquilo não fazia de Blaze menos babaca, mas atingiu meu peito em cheio. Só tirou a casca malformada da ferida e trouxe à tona uma profunda decepção em minha amiga. Tudo bem se Collins virasse um completo estranho para mim em alguns anos. Mas Ally? Na minha escala de relevância de laços afetivos, minhas amigas sempre estiveram acima de machos. Cheguei a pensar que, num futuro próximo, a gente até poderia se acertar. Mas, agora, sei lá. Minha vontade de reconciliação era zero.
O pior é que aquilo estava me deixando muito mais triste do que o normal.
― Obrigada ― falei, meio deprimida ― por hoje, por... ter me trazido até aqui e… ficado até eu me sentir melhor. Na verdade, deleta. Tô sentindo tanta vergonha à medida que vou me lembrando das coisas que... Desculpe por ter te dado tanto trabalho.
― Ei, não foi problema algum ― ele pegou minha mão. ― Só tome mais cuidado, está bem?
Assenti com a cabeça e mergulhei numa série de pensamentos melancólicos ao encarar nossas mãos dadas.
Blaze quebrou o silêncio:
― Foi sua primeira vez com bala?
― Foi.
― Você tava tão engraçada ― ele riu, abrindo um largo sorriso que me deixou surpresa. Era tão difícil arrancar um sorriso dele que, toda vez que eu conseguia, me sentia orgulhosa. Mas, dessa vez, só me senti… vazia. Meus olhos se encheram d’água. ― Ei, o que foi?
― Blaze, você precisa ir agora.
― Por quê?
― Porque eu estava ótima, e agora você meio que tá me fazendo sentir sua falta.
― Desculpa ― ele soltou nossas mãos e respirou fundo. Em seguida, se levantou. ― Estou indo.
Collins se afastou e parou na porta, enquanto eu enxugava uma lágrima.
É claro que ele ia embora. É claro que não ia ficar. Afinal, se ficasse, que sentido faria? Ele nunca gostou de mim tanto quanto gostei dele, mesmo. Eu só me machucaria de novo e de novo se o pedisse para ficar. O mais racional era pedi-lo para ir.
― Você vai ficar bem ― Blaze sussurrou.
Só assenti com a cabeça e ele fechou a porta silenciosamente. Então, me encolhi entre os travesseiros para dormir de novo.
Mandei o frio se lascar e decidi visitar Oakwood mais uma vez. Nada como o mar para limpar minha cabeça e mandar embora meus últimos dias depressivos e entediantes. Se estivéssemos no verão, com certeza eu tomaria um banho de ondas hoje. Mas só de contemplá-las em sua fúria invernal era remédio o suficiente para meu estado de espírito.
Estacionei a bicicleta perto de uma pedra qualquer e fiz meu caminho sobre as rochas e poças de maré com uma incrível determinação. Sim, eu ia dar a volta na curva mais longa da praia. Sem atalhos e velhos intrometidos dessa vez.
Em apenas alguns passos, avistei outra bicicleta estacionada perto de outra pedra.
Sorri. Era a bicicleta de . Parece que ele vinha mesmo sempre aqui. Não pensei que fosse verdade quando comentou no outro dia.
Depois de bons quinze minutos lutando contra o forte vento e os obstáculos no chão, subi a colina e cheguei bufando no ponto alto – quase um mirante natural para os casebres abandonados –, onde me levou da última vez. E adivinha quem estava lá, sentado no mesmo lugar?
De costas para mim, ele estava bastante concentrado, desenhando alguma coisa enquanto o vento bagunçava levemente seus cabelos. Com toda cautela do mundo, resolvi dar alguns passos curtos e silenciosos, pronta para chegar por trás e berrar seu nome. Eu odiava sustos, e uma revanche esporádica seria muito bem-vinda.
― Veio pelo caminho mais difícil? ― ele perguntou, sem nem se virar.
Parei feito estátua.
― Droga! Como sabe que eu tô aqui?! ― continuei a andar normalmente e sentei-me ao seu lado. ― Queria te assustar.
― Sabia que é possível ouvir um sedentário subindo uma ladeira a até cinquenta quilômetros de distância?
Ri, até alto demais. Dei uma leve cotovelada em seu ombro, e ele sorriu.
― Tá fazendo o quê? ― olhei curiosa para o sketchbook em seu colo. ― Treinando natureza-morta?
― Paisagens e efeitos da luz ― me corrigiu, largando no papel o lápis carvão quase no fim.
― Hmm… Então é por isso que sempre vem aqui? Dar uma de Monet?
― Também ― ele sorriu, achando graça.
― Você é tão bom em perspectiva oblíqua que quase me faz achar justo eu repetir Modelo Vivo ― comentei, ainda olhando para seus desenhos incríveis.
― Você se autodeprecia demais, . Você é boa.
― Não. Autocrítica... é diferente de autodepreciação.
― Já te disse, é só praticar. Mas se continuar matando as aulas, vai ser justo repetir mesmo.
Torci o nariz, sem poder discordar. Eu realmente precisava expulsar uma boa dose de preguiça e irresponsabilidade de dentro de mim.
― Então ― ele fechou o caderno e virou-se para me olhar ―, pensei que tivesse desistido da sua investigação arqueológica.
― Ah, não mesmo! Trouxe até uma lanterna ― empolgada, tirei-a da bolsa e dei vários cliques enquanto mirava-a no rosto de . Ele riu e cobriu os olhos, desviando da luz. ― Hoje estou determinada. Vou até lá, não importa o que você disser.
― Boa sorte.
― O quê? Não, você vem comigo ― levantei-me e parei em sua frente, pronta para puxá-lo se fosse preciso.
Aquela mesma cara de sofrimento de antes surgiu em seu rosto:
― Sabe que já tá muito tarde pra isso de novo, né?
― Por isso eu vim preparada ― pisquei a luz outra vez.
Ele deu uma risadinha irônica.
― E quem vai te salvar lá embaixo quando a maré alta te puxar pra dentro do mar? Uma lanterna?
― Pensei que os sedentários fossem ouvidos a até cinquenta quilômetros de distância. Se eu gritar por socorro, você e todos esses guardinhas florestais vão me salvar.
Ele deu uma gargalhada e também se levantou, deixando que o riso respondesse por si só. Fiquei emocionada quando vi que consegui convencê-lo. Então, ele juntou suas coisas e começou a andar.
Estranhamente, liderei a caminhada dessa vez, com seguindo meus passos e não o contrário; embora fosse minha primeira vez explorando aquela área. Descendo a colina, atravessamos algumas dunas costeiras até chegarmos na familiar superfície repleta de largas e rasas poças de maré. Ali, a areia era úmida, e as pedras, escorregadias. Entramos sob uma névoa baixa e fina que embaçou minha visão, e, de repente, não enxerguei mais o começo nem o fim das coisas ao meu redor.
Parei e girei o pescoço para trás, vendo apertar os olhos, também com dificuldade para enxergar.
― Qual o problema? ― ele perguntou, sem parar de andar.
― Não consigo ver nada.
― Você não quis me ouvir ― ele prensou os lábios e levantou os ombros. Então, me ultrapassou. ― Agora não é hora de desistir.
― Você já veio até aqui antes? ― comecei a segui-lo.
― Já. Deram uma festa de Halloween aqui ano passado.
― Sério? Mas… chegaram a entrar em alguma casa?
― Sim. Jenna queria entrar e invocar uns espíritos, uma história de tentar ajudá-los a encontrar a luz. Ela trouxe um tabuleiro de Ouija, acendeu um monte de velas e ficou chamando por eles, enquanto eu e PJ fumávamos um baseado ― ele enfiou as mãos no bolso e jogou a cabeça para trás, rindo de alguma lembrança. Então, virou-se para olhar para mim, andando de costas: ― Você acredita nessas coisas?
― Bem… Pra ser honesta, não.
Então, voltou a rir:
― Jenna jura que conversou com uma tal de Mary Lou.
― Como é?
― É, ela disse que era uma mulher que viveu aqui há uma porrada de anos e foi assassinada pelo padre da vila. Uma alma angustiada que clamava por ajuda.
― O quê? Mentira. Jenna disse isso?
― Sério. Já imaginou quantas vezes o ponteiro do Ouija deve ter se mexido pelo alfabeto só pra contar toda essa história?
― Concordo ― comecei a rir ―, mas você foi uma testemunha chapada e sem muita credibilidade.
― Tem razão. Acho que vi coisas mais bizarras que fantasmas naquele dia ― ele sorriu, então finalmente virou-se para frente de novo. ― Ah, quer ouvir algo ainda mais bizarro? Isso é real.
― Manda ver.
― Naquela mesma noite, houve um acidente na rodovia próxima à saída da Oyster. Se lembra disso?
― Acidente? No Halloween? ― revirei minha mente até me lembrar. ― Ah, aquele ônibus que se chocou contra uma árvore?
― Exatamente. Todos os passageiros sobreviveram, com exceção de um homem. O estranho é que, mesmo sendo a única vítima, ele não teve um arranhão sequer. Só que... o cara tava usando uma batina ― ele me olhou de um jeito divertido. ― E aí? Acha mesmo que ele só sofreu um ataque cardíaco como a imprensa noticiou?
Quando entendi aonde queria chegar, soltei uma gargalhada inevitável e acabei entrando na onda também:
― Mas é claro! Foi Jenna quem trouxe Mary Lou do mundo dos mortos pra ter sua vingança concluída.
― Definitivamente isso foi coisa da Mary Lou.
Voltamos a rir.
Até que a casinha escura foi surgindo por entre a névoa cada vez mais espessa, me chamando a atenção. Era mesmo uma visão fantasmagórica.
― Não tem a menor graça, você vai ver ― avisou. ― É só madeira corroída por dentro e por fora.
Paramos em frente à construção caindo aos pedaços. Era um bangalô simples de no máximo dois cômodos, e, de perto, a madeira parecia bem mais podre do que eu imaginava que seria. Peguei minha lanterna e foi se sentar no primeiro degrau da escadinha que levava à varanda.
― Não vai entrar? ― perguntei.
― Não, vou ficar aqui e fumar um cigarro ― ele tirou o maço e o isqueiro do bolso do casaco. ― Quer um?
― Não, obrigada.
― Cuidado com o segundo degrau, ele tá solto.
― Tá bom.
Subi os três degraus, pulando o do meio, e tentei abrir a porta, mas estava emperrada. Fiz tanta força que senti as paredes estremecerem. Depois, um barulho sinistro ecoou mais alto que o som das ondas tempestuosas se quebrando lá no mar, seguido de pequenos estalidos assombrosos.
― Gostaria de permanecer vivo hoje, por favor ― falou, me fazendo rir.
― Relaxa.
Dei só mais um empurrãozinho e a porta se abriu. Iluminei a escuridão e logo entrei no cômodo abandonado. Cada passo fazia o assoalho ranger alto, e o som era realmente assustador. Pensei que haveria alguma mobília ou, senão, objetos sem valor espalhados pelo chão, mas não havia nada. Só amontoados de tábuas de madeira velha e apodrecida, pregos enferrujados, algumas redes e cordas de pesca e muita sujeira. A poeira me fez tossir e cobrir parte do rosto com o antebraço.
Fui avançando lentamente, pé ante pé, até chegar ao outro cômodo escuro, bem menor e mais cheio de tralhas que o primeiro. Não tinha nem onde pisar. Mas deveria haver algo mais antigo e interessante por ali.
Iluminei todas as coisas e cantos e, quando estava quase desistindo, vi algo no mínimo intrigante perto dos meus pés: um pedaço de papel velho e amarelado que parecia ser um jornal. Agachei-me no chão e tentei puxá-lo um pouco, para ao menos enxergar o ano da publicação. Porém, estava difícil sequer tocar nele sem rasgá-lo ou esfarelá-lo em mil pedaços.
Droga, e se fosse um jornal centenário? Não, eu estava sendo ingênua demais em acreditar que um pedaço de papel duraria por tantos anos, intocável, num lugar com condições terríveis de preservação como aquele.
Mas e se fosse?
Eu não era muito boa em conviver com nenhum “e se”.
Tive uma ideia melhor. Deixei a lanterna no chão e tentei levantar um caixote que estava por cima de uma grande parte da capa do jornal.
― Hmm… The New York Times… ― fui lendo à medida que ia levantando o objeto pesado. ― Mil... novecentos e… Vamos lá… ― segurei-o com as duas mãos e finalmente consegui ler a data inteira: ― Quarenta e dois! Mil novecentos e quarenta e dois! Meu Deu– AAAAAAAAAHHH! ― um grito lancinante explodiu dos meus pulmões.
Não sabia o que tinha sido aquilo, mas dois bichos ENORMES saíram do caixote. Eu o deixei cair com um baque tão forte que o assoalho quase afundou, causando o maior estrondo. Só agarrei a lanterna de novo e me rastejei pelo chão desesperadamente para trás, usando os cotovelos e os calcanhares como impulso até voltar para o cômodo maior.
― ?! ― ouvi me chamar lá de fora. Mas ele logo apareceu ali dentro, preocupado, averiguando a origem do barulho. ― Que porra foi essa? Por que está no chão?
― Tem um bicho horrível aqui ― falei, apavorada. ― Um não, d-dois.
― O quê?! Que bicho?
― N-Não sei, eles eram marrons. E tinham muitas, muitas patas. E eram... gigantes. Não sei pra onde raios eles foram.
― Vem, levante-se do chão, pra começar ― ele se aproximou e estendeu a palma da mão para mim. ― Provavelmente eram caranguejos assustados. Já devem ter ido embora.
Segurei sua mão, e me ajudou a ficar de pé. De repente, ele parecia bem maior e mais alto que o normal dentro daquele lugar tão compacto. Estávamos mais perto um do outro que o costume, e isso me fez evitar encará-lo diretamente nos olhos.
― Você queria me dar um susto e conseguiu ― ele disse, e, sem querer, ergui o pescoço para olhá-lo. ― Satisfeita?
― Sim ― dei um meio sorrisinho acanhado.
Do nada, ouvimos outros barulhos estranhos. Parecia o som de trilhões de patas. Tive que engolir outro berro.
― Ouviu isso?! ― me desesperei mais uma vez. ― Não são caranguejos, tenho certeza! Eles eram marrons, tinham antenas e umas bolinhas nojentas pelo corpo. Pareciam os alienígenas de Homens de Preto.
só riu. Então, outro barulho ecoou pela velha casa, só que mais perto. Acabei dando outro grito e mais choramingos.
― Me dá isso, quero saber o que é ― ele pegou a lanterna das minhas mãos e iluminou o cômodo inteiro. ― Não tem nada aqui, vamos embora.
― Não! ― num ato totalmente impulsivo, segurei sua mão de novo quando ele se virou para ir. Logo me arrependi e soltei-a, levando as minhas para trás. parou e esperou pela minha explicação. ― É que… Eu achei um jornal e queria levá-lo.
― Um jornal? E daí?
― É um The New York Times de 1942!
Ele só ficou olhando para mim.
― Ainda não entendi por quê precisa levá-lo ― disse, apático.
― Imagine quantas notícias sobre a Segunda Guerra estão aí esperando pra serem lidas.
― Te garanto, elas tiveram muito tempo pra serem lidas inúmeras vezes.
― Pra uma pessoa do futuro lê-las ― dei uns passos para trás e apontei para o local onde o jornal estava. o iluminou e ficou inexpressivo. ― Não vê a relíquia que está presa nesse lar do esquecimento?!
― Você é engraçada, . Já te disse isso? ― ele sorriu e balançou a cabeça de um lado para o outro, virando-se para sair de novo. ― Vamos embora. Tem uma tonelada de tralhas em cima dele, é impossível pegá-lo. Pergunte aos seus avós sobre a Segunda Guerra.
― Espera! ― corri até ele, já na porta da varanda, e parei na sua frente de novo. ― Devem ter um milhão de coisas legais ali! Propagandas de utensílios que nem existem mais, tipo telefones de disco e gramofones… ― insisti, enumerando tudo com os dedos. Entediado, se escorou no batente da porta e foi escorregando o ombro até ficar na minha altura. ― … Fotos antigas da cidade, filmes dos primeiros grandes cineastas em cartaz…
De repente, seus olhos se desviaram dos meus e fitaram o chão. Um sorriso bem suspeito se formou no canto de seus lábios.
― O quê? O que foi? ― perguntei.
― Aqueles são os seus dois aliens de Homens de Preto? ― ele cruzou os braços e apontou com o queixo para o piso da varanda.
― AAAAAAHHH! ― pulei as escadas e corri até a areia, aos tropeços, enquanto ria compulsivamente. ― O que são esses bichos?!
Ele também desceu os degraus, apanhou sua mochila do chão e continuou rindo, como se nada estivesse acontecendo.
― Nunca viu uma lagosta na vida?
― Que lagosta, ?! Esses bichos são ácaros! Ácaros gigantes do mar!
― Ácaros gigantes do mar… ― ele repetiu, debochado.
Eu nunca havia visto nada tão asqueroso e repugnante quanto aquele casal de artrópodes que parecia ter vindo da Era Paleozoica. E lagostas eram vermelhas, não marrons.
Pelo menos as de Louisiana.
― Podemos ir agora? Desistiu do seu túnel do tempo? ― se aproximou e puxou um cigarro solto do bolso. Fiquei imóvel, com um bico torto na boca. ― Vamos ― ele empurrou um dos meus ombros, e, sem escolha, me virei para deixar o bangalô para trás.
Não demoraria muito para o sol começar a se pôr, então apressamos os passos. Estávamos caminhando lado a lado.
― Você está quieta ― ele comentou, depois de tragar. A fumaça se misturava com a névoa, escondendo ainda mais seu rosto.
Como eu não tinha o que responder, continuei quieta.
― Desculpa ― ele disse.
― Pelo quê?
― Por que você não vai à biblioteca, ou a um acervo público, ou algo assim? Eles devem ter a edição do The New York Times igualzinha àquela.
― Não é a mesma coisa ― suspirei.
― Por que não?
― Porque… Não sei. Eu achei aquele jornal.
― Bom, ele vai continuar lá. Te garanto. Ninguém vai mexer nele.
― Ah ― balancei os ombros. ― Não acho que vou voltar.
― Por que não? ― ele me olhou. ― Achei que voltaria.
― Porque posso dar de cara com outras espécies de alienígenas no meio daqueles troços.
gargalhou.
Era agradável caminhar pela praia com ele, mesmo em silêncio. De alguma forma, eu acabei me esquecendo do resto do mundo. Bastaram mais alguns minutos para alcançarmos nossas bicicletas, do outro lado da curva da ilha. Por que a volta era tão mais rápida? Ou era eu quem estava com a impressão errada da passagem do tempo?
já estava com sua bicicleta quando peguei a minha. Fomos até a trilha e começamos a pedalar, ainda lado a lado, sob o céu alaranjado do anoitecer e um sopro suave da brisa do mar.
― Então… ― introduzi, quando minha curiosidade já estava tirando meu sossego. ― Você… fez as pazes com a Renée?
― As pazes? ― ele uniu as sobrancelhas, confuso.
Arrependi na mesma hora de ter surgido com o assunto. Expliquei:
― Aquele dia no Millard’s, quando ela–
― Ah, sim… ― ele riu baixo, talvez um pouco envergonhado. ― Não tem isso de “fazer as pazes”. Aquilo é normal de acontecer.
― Normal?! Como assim?
― Jenna já deve ter dito a você. Rennie é complicada.
― É, ela comentou, mas… você tá bem com isso?
― Tô acostumado.
― Mas… ― já ia falar um monte, mas pensei duas vezes. ― Não, desculpa, sei que não é da minha conta.
― Não, tá tudo bem, . Acho que dá pra confiar na única pessoa que dirigiu a Chevy melhor do que ninguém até hoje.
― Ah, homens e máquinas... Um relacionamento de muitos séculos ― brinquei, revirando os olhos, apesar de ter me sentido lisonjeada. ― Sabe, eu também tava num rolo em que me acostumei com muitas coisas. No final, vi que nenhuma delas fazia bem pra mim.
― Hmm... Que tipo de coisas?
― Coisas tipo… Ele tentava mudar tudo em mim. Não, não tudo, mas… Era como se… ele quisesse que eu só me enxergasse através dos olhos dele. Entende?
― Como?
― Ele queria que eu fosse mais magra, por exemplo. Porque ele acha atraente garotas com barrigas chapadas. Queria que eu fosse acampar com ele nas férias de verão, sendo que eu detesto acampamentos. Aí, disse que a culpa não seria dele quando arrumasse outra garota por lá se eu não fosse. Teve uma vez também que ele me arrastou pra um show de uma banda chatíssima e não me deixou levar minhas amigas. Disse que sua companhia era mais do que o suficiente. Mas, quando cheguei lá, todos os amigos dele estavam.
― Porra... Ainda bem que você terminou.
― Eu não terminei. Ele terminou.
― Sério?
― Sério. Porque todas essas coisas, para mim, eram normais. Na minha cabeça, era eu quem estava errada de não conseguir ser a pessoa que ele queria que eu fosse, a pessoa que ele gostava de verdade, ou… que ele amava. Até hoje, sinto um pouco isso. Sinto que eu deveria gostar de Creed ou de dormir em barracas, e tudo teria sido diferente.
ficou pensativo. Parecia ponderar sobre o que revelar a mim.
― Rennie… ― ele começou. ― Rennie consegue ser amável e gentil, às vezes. Quando ela quer.
― Quer dizer quando ela tenta ser algo que ela não é?
Ele ficou pensativo de novo.
― Como eu disse, é complicado.
― Só tô dizendo que não deveria ser complicado. Não deveria ser normal, não é algo pra se acostumar. Não deveria... doer. Eu deveria estar feliz sem Blaze, não é? Nem eu consigo entender, às vezes. Mas sei que, com ele, eu nunca seria feliz comigo mesma. Porque… chegou num ponto que eu só vivia pra tentar agradá-lo. Era o único jeito. Eu só queria evitar brigas, evitar conflitos e continuar com ele, talvez com medo de me sentir sozinha. Só que, pra isso, eu precisava ser quem eu não sou e ter um corpo que eu não tenho. Quem sai ganhando com isso, afinal?
O silêncio se instalou enquanto me ouvia com atenção.
― Quero dizer ― tentei voltar um pouco atrás e amenizar o discurso. ― Eu nem conheço o rolo de vocês, então posso estar falando merda.
― Não, não está. Na verdade, é engraçado porque… Jenna já tentou falar comigo sobre isso tantas vezes que acabei perdendo a paciência e me fechei, por achar que ela estava exagerando. Jenna é superprotetora. Inclusive, não diga a ela que estou fumando.
― Pode deixar ― dei uma risadinha.
― E você, que eu praticamente acabei de conhecer, também perceber e vir me falar todas essas coisas… significa algo.
― É… Só você vai saber dizer, eu acho.
― Tenho medo de estar fazendo algum mal pra Rennie. Você tá certa, raramente ela está confortável sob a própria pele quando está perto dos meus amigos. Ultimamente, até de mim. Mas eu não peço pra ela ser diferente de quem ela é. Pelo contrário.
― Tem alguma ideia de por que ela se sente tão insegura?
― Hmm… Ela– Quer que eu pedale com você até seu alojamento?
Quando fui me ligar, a noite já havia caído e já estávamos dentro dos limites do Campus. Em pouco tempo, chegaríamos ao pátio principal e passaríamos pela área de dormitórios. O tempo realmente passava de um jeito meio imprevisível com .
― Sim, pode ser ― respondi.
― A verdade é que… Rennie é uma pessoa destruída por dentro. Ela já passou por muitos traumas, e eu só queria tanto ajudá-la. Por muito tempo eu quis ser essa pessoa que dá tudo de si pra outra, mas não consigo mais. Não posso. E ela não tem aceitado isso, por algum motivo. Não sei o que acontece, mas ela meio que quer ser a minha prioridade número um em todas as situações, aliás. E eu sei o quanto ela só precisa de um pouco mais de… afeto e aceitação. Então me sinto dividido entre a culpa e a tentativa de aliviar a tensão. Sabe o que quero dizer?
Caramba, então era mesmo um problema com raízes mais profundas. Pelas palavras de Jenna, pensei que fosse um problema de atitude e imaturidade de Renée. Talvez ainda seja, mas o buraco parecia ser bem mais embaixo.
Como imaginei.
― É mesmo complicado ― admiti.
― Te falei.
― Talvez… Talvez você ainda possa ajudá-la, mas ajudar é diferente de tentar curar alguém.
― Eu sei ― ele suspirou. ― Isso é algo que só ela pode fazer.
― Jenna também me disse que... Rennie tem muito medo de te perder.
― Sim, e eu nem sei por quê. Sempre estou lá pra ela, fazendo tudo por ela ― ele soltou mais um longo suspiro, visivelmente frustrado.
― Bom... Talvez ela tenha esse medo porque depende muito de você. Emocionalmente, não sei.
― Faz sentido.
Desacelerei minha bicicleta quando nos aproximamos do Belva Hall. Surpreendentemente, ainda quis me acompanhar até o bicicletário para estacioná-la.
― Obrigada. Hoje foi legal ― falei, meio sem jeito. Eu odiava despedidas e suas formalidades.
― Sim, foi. Infelizmente não tenho um DeLorean, senão te levava até 1942.
― Eu ia adorar ― abri um sorriso um pouco maior do que gostaria de ter mostrado.
― Obrigado também. Foi… terapêutico. Você é legal, .
― Eu sou super legal.
― Não. Só legal, ok? ― ele colocou suas luvas sem dedos e subiu em sua bicicleta de novo. A ponta de seu nariz estava um pouco vermelha por conta do frio que acabava de se intensificar, e o meu devia estar igual. ― Te vejo depois.
E assim o observei pedalando para longe, sentindo o vento congelar meu rosto e a praga de um calorzinho inconveniente aquecer meu coração.
Era fim de tarde e eu vagava pelo pátio, fazendo uma horinha antes que a azucrinante aula de Gestão de Projetos começasse. Infelizmente, ia perder a reprise de Top Gun que ia passar às sete horas. Não que eu já não tivesse visto esse filme centenas de vezes, mas perder Tom Cruise com aquela jaqueta e óculos de aviador passando na TV era prejuízo de qualquer jeito.
Parei na fila do café, contando todos os meus últimos centavos e esperanças de me manter acordada para a aula. Até que ouvi alguém me chamando. Quando estava prestes a ser atendida pelo caixa, Alex apareceu com toda sua inconveniência e parou na minha frente.
— ! , graças a Deus! — ele estava sem fôlego, como se tivesse corrido uma maratona até ali.
— Diga, o que é? — apressei-o, vendo que algumas pessoas já me ultrapassavam. Desisti do café e puxei Alex para outro canto.
— Você vai ver o hoje, não vai? — perguntou ele, se recompondo. — Quer dizer, vocês têm uma aula juntos, não têm?
— Sim, mas não é hoje–
Alex só jogou em minhas mãos uma sacola de pano azul com o que parecia ser um pote de plástico dentro.
— Olha, você pode me fazer um grande favor? Acabei de conseguir numa aposta um ingresso pro jogo dos Giants, ele começa em duas horas, eu precisava entregar isso pro hoje, achei que ele estivesse por aqui agora, mas acho que–
— Espera aí, Alex, respira. Por que você não faz o seguinte — estiquei os braços em sua direção, tentando devolver a sacola a ele —, fica com isso e amanhã você entrega pro . Que tal?
— Não, não posso — ele empurrou o negócio de volta para mim.
— Por que não? Você mora com ele.
— Não, não é isso. Não posso ficar com essa sacola hoje. Você tem que entregá-la pro . Hoje.
— Por que diabos você não pode ficar com ela?
— Porque eu não… Porque eu não posso entrar com nada orgânico dentro do estádio.
Uma grande interrogação surgiu no meio da minha testa.
— Desde quando–
— Tchau, , muito obrigado, tô com muita pressa, meu Deus, preciso chegar lá em, tipo, quarenta minutos — ele foi se afastando, sem parar para respirar por um segundo sequer. — Te devo uma!
E correu para o outro lado, me deixando ali com uma responsabilidade pela qual não pedi. E sem café.
Não contive minha curiosidade e esperei até que Alex se afastasse o suficiente para tentar ver o que tinha dentro daquele embrulho azul. Mas estava tão bem amarrado que achei melhor deixá-lo sem meus rastros de bisbilhotagem. Aproximei o rosto e senti um leve cheiro de chocolate; porém, ainda sem nenhum palpite.
Eu não fazia a menor ideia de onde poderia estar agora.
Foda-se, o que eu tinha a ver com isso? Não ia entregar nada a ele hoje.
Mais tarde, após a aula, saí com alguns colegas para comer uns snacks, tomar um bendito café e reclamar da didática do professor. Resolvemos ir de bicicleta até uma cafeteria mais barata no bairro das repúblicas estudantis.
Certa hora, na mesa, fiquei tão entediada que me peguei sonhando acordada com o Tom Cruise. Em seguida, pensei no Brad Pitt. Se bem que, depois de Titanic, o assunto do momento era o Leonardo DiCaprio… De repente, todos os galãs de Hollywood fizeram fila para invadir minha mente. Era pedir demais para ser a Nicole Kidman ou a Jennifer Aniston por uns dias? Ou quem sabe a Gisele Bündchen?
Sim, era demais.
Não muito depois, levantei-me para ir embora. Quem sabe eu ainda pegaria o final de Top Gun passando na TV? Sadie com certeza estaria na sala, enrolada numa manta, estudando e assistindo ao filme ao mesmo tempo.
— Pessoal, estou indo — avisei. — Lembrei de umas coisas importantes que preciso fazer.
Outras duas garotas também se levantaram e resolveram me acompanhar. Afinal, estávamos indo para o mesmo dormitório.
Enfim saímos da cafeteria e pegamos nossas bicicletas. Passamos alguns minutos pedalando pelas ruas tranquilas até virarmos a terceira esquina. Mesmo sob a iluminação fraca dos postes e das janelas acesas das casas, algo chamou minha atenção de imediato: uma picape verde-água estacionada numa garagem aberta.
Parei de pedalar por um instante ao pensar em . Mas depois segui, ficando um pouco para trás.
Então, parei de novo.
— Meninas, podem ir — falei. — Acabei de lembrar que... tenho outra coisa importante pra fazer aqui.
O engraçado era que, dessa vez, não era uma desculpinha esfarrapada, mas ficou com mais cara de mentira do que antes. Elas só assentiram com um sorriso e se despediram de mim.
Estacionei minha bicicleta na calçada e caminhei até a porta. Dei mais uma breve checada na picape, só para ter certeza que eu não ia bater na casa errada, mas não me restaram dúvidas. Ninguém além de e meu avô teriam tanto apreço por uma Chevy velha feito aquela.
Tirei a porcaria do embrulho de pano azul da bolsa e toquei a campainha uma vez.
Duas vezes.
Três vezes.
Eu podia ouvir uma confusão de sons abafados dali de fora, como música, televisão e vozes exaltadas, então concluí que deveria estar atrapalhando alguma coisa. Alex não tinha dito que era dia de jogo?
Era melhor eu ir embora. Péssima noite para uma visita.
— ! — a porta se abriu, revelando PJ com um enorme capacete de futebol na cabeça, quem eu quase não reconheceria se não fosse pela barba. — Que surpresa! Vem, vamos entrar!
— Erm… Na verdade, eu só precisava… — fui ignorada quando ele passou um braço pelo meu ombro, empurrando-me para dentro da república. — … Entregar isso pro .
Entrei numa sala que mais parecia uma sauna.
— ? Ele está logo ali.
PJ fechou a porta atrás de mim e apontou para um pequeno aglomerado de caras no outro lado do ambiente. Em seguida, me deixou plantada no meio daquela selva de torcedores bêbados e brisados dos Giants. A televisão estava ligada no jogo, num volume tão ensurdecedor quanto Nirvana no aparelho de som, colocando meus tímpanos em um teste de resistência.
Que merda eu fui fazer ali mesmo?
Lounge Act – Nirvana
Minha vontade era de voltar e sair correndo pela porta, mas, já que eu havia entrado naquele buraco, era melhor sair dele com a tarefa cumprida. O desafio mesmo era atravessar a grande massa branca de fumaça que pairava sobre o ar para chegar até .
Dei passos cada vez mais impacientes enquanto tentava desabafar o lugar com as mãos. Até que, no carpete, encontrei de cara num bong, sentado no meio de um círculo de chapados. Segundos depois, ele largou o objeto e soprou uma porção de anéis de fumaça pelo ar, fazendo todos ao redor rirem à beça de sua gracinha.
Alguns de seus amigos pararam e perceberam que eu estava ali, em pé, só os observando. Foi quando ergueu lentamente o olhar, das minhas pernas até meu rosto. Ele demorou a raciocinar. Provavelmente, eu era a única presença feminina naquela república.
— Ohhh… Ei, .
— Tinha que ser você, não é? O rei de toda essa fumaça — falei alto, competindo com o barulho.
— Ela tinha que ter vindo de algum lugar, não é mesmo? — ele sorriu de lado.
— Claro — levantei uma sobrancelha, irônica.
tragou outra vez, depois passou o bong para outro cara da roda. Não dava nem para enxergar quem era, porque, além de tudo, aquela sala estava com todas as luzes apagadas. Só as da cozinha anexa ao lado estavam acesas.
— Escuta, Alex me deu essa sacola hoje mais cedo e pediu pra te entregar com uma certa urgência — expliquei.
— Sério? O que é isso? — sem perceber, ele soltou toda a fumaça na minha direção, e eu tive que abaná-la para longe.
— Acho que é alguma sobremesa.
Ao que respondi, ele continuou me olhando, meio aéreo. Então, descruzou as pernas e se levantou, fazendo menção para que eu o seguisse até a cozinha. Paramos atrás da bancada que dividia os cômodos, bem embaixo de uma luz amarelada. Foi quando vi que ele vestia a camiseta azul-marinho dos Patriots – provavelmente, era o único a torcer pelo time rival ali dentro. Achei um pouco inusitado, até me lembrar que era de Boston.
— Deixe-me ver — a voz dele estava alterada, um pouco mais rouca e vagarosa que o normal. Quando abriu o pacote, ficou nitidamente animado de um jeito muito suspeito. — Hmmmm…
— O que é isso, afinal? — cheguei mais perto, curiosa, mas ele rapidamente fechou tudo e levou as mãos para trás com a coisa.
— Você não viu o que era? — estranhamente, ele parecia estar se divertindo muito com o fato de eu não saber de nada. Só para variar.
— Não... Só sei que tem um cheiro de choco– Ah, não — minha expressão mudou.
olhou para mim, prendendo um sorrisinho nos lábios. Pude ver a vermelhidão em seus olhos, estampando a mais óbvia das obviedades na minha cara. Foi quando minha ficha caiu.
— Isso é…?
— Sim — ele confirmou, no maior entusiasmo. — É exatamente o que você tá pensando.
— Tá me dizendo que eu andei com brownies de maconha pelo Campus esse tempo todo?!?
— Uhum — ele balançou a cabeça, felizinho.
— Alex ainda me paga — bufei.
É claro que Alex Rose queria deixar aquele embrulho comigo, a primeira pessoa conhecida que ele viu em sua correria pelo pátio. E pensar que eu quase tinha caído no papo dos produtos orgânicos... Pelo amor de Deus. Ele poderia entrar com uma salada de frutas no estádio se quisesse, mas não com droga.
Eu era a pessoa mais besta do planeta.
— Falando em pagar… — deixou o embrulho na bancada, abriu umas gavetas e ficou vasculhando. — Você tá indo pro Belva Hall agora?
— … Sim. Por quê?
— Pode entregar isso a Rennie pra mim? — pediu, tirando um pequeno envelope pardo dali. — O quarto dela é o 316.
— Não — foi minha resposta automática.
Eu não estava mais cega de ingenuidade. Logo percebi o que estava rolando. Numa situação suspeita, envelopes pardos só serviam para guardar dois tipos de coisas: grana ou arquivos confidenciais.
— É só enfiar por baixo da porta, se não quiser bater.
— Não, não, não — continuei. — Tô com cara de traficante hoje ou o quê? Pode guardar esse dinheiro aí de volta. Entrega você.
— Por favor, ...
Meu Deus. Agora eu tinha um novo apelido apelativo?
— Quanta criatividade — dei uma risada levemente desconfiada, mas surpresa.
— Por favor — ele insistiu, dando uns passos em minha direção.
— Não.
— Por favor, por favor, por favor — foi chegando mais e mais perto de mim, e eu só me afastei até dar de costas com a geladeira.
parou bem na minha frente, a alguns palmos de distância. Ele se movia como se estivesse sendo empurrado por uma marola do oceano; seus olhos estavam tão miúdos que era impossível identificar para onde exatamente estavam apontando.
— Você é bem insistente, não é? — resmunguei.
— Sou.
— Pena que não estou nem um pouco comovida.
— Ah, não, … — ele reclamou, e eu senti o cheiro forte de seu sopro em meu rosto. — Vou ter que me ajoelhar?
— O quê?!
De repente, ele se abaixou e ficou sobre um dos joelhos. Ainda segurando o envelope, ergueu-o para que eu pegasse, mas nem me mexi. Primeiro porque eu precisava de muita concentração para não explodir em gargalhadas ao ver aquela cena. Em segundo lugar, passar vergonha não estava na lista das coisas mais convincentes do mundo.
— Por favor, . Por favor, por favor, por favor… — ele continuou a implorar.
— Meu Deus, , levante-se — tentei me manter séria, mas não estava exatamente funcionando. — E não adianta dizer “por favor” cinquenta vezes.
— E se eu cantar? Sei de uma música que é perfeita pra você.
— O quê? Que música?
Antes que eu pudesse intervir, ele limpou a garganta, fechou os olhos e encarnou o pior sotaque sulista que eu já tinha ouvido em toda minha vida:
— Sweet home Alabama! Where the skies are so blue… Sweet home Alabama! Lord, I'm coming home to you.
— Eu não sou do Ala– Esquece! — comecei a rir. — Sei que era seu sonho cantar isso, mas sabe de uma coisa? Eu não ligo.
Tentei sair dali, mas, ainda de joelhos, segurou minha mão.
— Você não liga pros meus sonhos? Que tipo de amiga você é?!
— Não era nem pra eu estar aqui. Era pra eu estar assistindo Top Gun no meu quarto.
— Ah! Eu sei essa — ele limpou a garganta outra vez. Lá vinha. Então, soltou minha mão e agarrou o próprio peito, incorporando com força total o dramalhão. Afinou a voz e cantou: — Take my breath awaaaaaay…
Não pude mais aguentar e dei uma risada que saiu meio espalhafatosa demais. Satisfeito, finalmente se levantou. Ele imitou até os efeitos sintetizados da música enquanto se aproximava de mim novamente.
— Também posso cantar Danger Zone, se quiser. Sei de cor.
— Não! Chega. Me dá essa merda — acabei tomando o envelope da mão dele. — Que fique claro, essa é a última vez que serei a menina-entrega dessa casa.
Saí andando para a sala e deixei na cozinha, rindo para o nada, lerdo feito a internet discada lá do Campus. Desviei de mais alguns fanáticos dos Giants para chegar até a porta e enfim fui embora, pronta para cumprir aquela próxima missão.
— , nem deu tempo de conversar direito com você depois daquela festa na casa do Will.
— Pois é. Por isso te liguei.
Por causa de horários desencontrados, fazia um tempo que eu não conversava com Jenna. Então, assim que finalmente pude deitar minha cabeça no travesseiro naquela mesma noite, resolvi ligar para ela. Puxei o telefone para o meu colo e fiquei brincando de enrolar meus dedos no fio espiral.
— Também nem deu tempo de te perguntar... Como foi com o Derek?
— Meh. Como foi com o Sanders?
— Meh.
Começamos a rir.
— Pensei que ele fosse mágico na cama — brinquei.
— O único truque que ele fez foi me deixar sem um orgasmo.
— Eu também fiquei sem um. Acredita?
— Claro que acredito. Nossos orgasmos ainda devem estar escondidos por aí. Vamos continuar procurando!
— Ah, não, eu cansei. Confesso que me senti péssima depois.
— Ah. Então, tudo bem. Deixa pra lá. Quem falou que precisamos achá-los em outra pessoa, mesmo? Conseguimos resolver isso sozinhas, caralho.
E não é que era a mais pura verdade? Jenna sempre tinha fatos banais na ponta da língua. Ela simplificava toda a complexidade que eu vivia colocando em coisas idiotas. Às vezes, eu imaginava o que teria sido de mim nesses últimos meses se não tivesse a conhecido. Provavelmente, teriam sido meses bem mais… sóbrios e monótonos.
— Jen — chamei-a. — Queria te contar… Aconteceu uma coisa meio esquisita agora.
— Que coisa?
— Acabei de encontrar com a Renée. Fui até o quarto dela.
— Por quê?! — ela estranhou, mas, ao mesmo tempo, ficou super interessada.
— me pediu pra entregar um dinheiro a ela — expliquei. Então, resolvi perguntar, só para confirmar minha teoria: — Falando nisso, você sabe do que se trata?
— Erva.
Mas é claro.
— Renée consegue erva muito fácil e por um preço muito bom com um dos atletas mais badalados da Oyster… Sabe, é aquele fullback do time que… Ah, esqueci o nome dele. E, de vez em quando, revende um pouco mais caro pra outras pessoas. O lucro vai pra ela.
— E pra ele?
— Rá-rá. fuma o lucro dele. E ele acha que eu não sei.
Contive uma gargalhada.
— Então — continuei —, fui até o quarto dela agora há pouco e... primeiro, me impressionei quando a vi usando roupas largas e confortáveis, os olhos livres de todo o rímel e lápis preto. Você tinha que ver, Jen.
Eu estava embasbacada com aquela imagem até agora. Renée parecia infinitamente mais vulnerável sem todos aqueles adereços descolados. Quero dizer, com certeza menos intimidadora.
— Nossa. Acho que nem eu nunca a vi assim.
— Não precisa nem ficar curiosa. Ela é bonita até assim.
— Nossa, sério?
— Sério. Aí, Renée pegou o envelope com o dinheiro da minha mão e foi lá pra dentro fazer não sei o quê. Pouco depois, em questão de segundos, voltou que nem um furacão e saiu lá pra fora. Não sei pra onde ela foi. Ficamos eu e a colega de quarto dela olhando uma pra cara da outra, sem entender nada.
— Ai, meu Deus... — Jenna deu um longo suspiro. — Com certeza ela foi atrás do . Ele sempre conta o dinheiro errado. Ou pelo menos é o que ela diz.
— Ainda não entendi a necessidade de sair correndo de pijama, no frio, no meio da noite. Achei bizarro.
— Ah, … Você só está chocada porque ainda não conhece as peripécias da Renée. Todos nós já estamos acostumados. Ela pode ser… bastante precipitada, às vezes — Jen esclareceu, me deixando pensativa e em silêncio por alguns instantes. — Mas vem cá, você e estão fazendo uma aula juntos, não estão?
— Sim. Estamos.
— Já que estão se encontrando mais, você podia me substituir e colocar essas ideias naquela cabeça teimosa e benevolente dele.
— Pode deixar — dei uma risadinha. Eu meio que já tinha feito isso outro dia.
— É sério. Às vezes ele escuta melhor uma pessoa de fora.
Talvez ela tivesse razão, mas eu preferia deixar aquela história pra lá. Era bem mais divertido conversar com sobre outras coisas. O assunto Renée pesava o clima.
Eu e Jenna acabamos conversando sem parar até de madrugada. Foi quando Sadie entrou sem bater e reclamou que podia ouvir minhas risadas do quarto dela, então tive que desligar.
Infelizmente, programei meu despertador para acordar bem cedo e não matar a aula de Modelo Vivo no dia seguinte. Depois da farra de hoje, duvido que iria.
Cheguei atrasada na aula. Mas não fazia diferença, minha mesa particular e isolada estava bem ali me esperando. Srta. Tolbert fez questão de me acompanhar com seu olhar crítico enquanto eu atravessava a sala. Depois, quando me sentei, ela me entregou uma folha A3.
— Bom dia, . Hoje estamos estudando expressões corporais. Mas, antes, você precisa reforçar suas formas tridimensionais — ela pontuou. — Seus desenhos estão… cartunescos demais.
Segurei para não revirar os olhos. Na faculdade, nada que você faz está bom o suficiente.
— Enquanto não chega, você podia fazer alguns esboços — a professora continuou. — No final da aula, me entregue-os porque serão avaliados.
Ela voltou para o centro do círculo, e eu encarei o papel em branco com vontade de sumir. Tinham coisas muito mais importantes para me preocupar agora, tipo dormir ou adiantar trabalhos de outras disciplinas.
Tentando enrolar o máximo de tempo possível, comecei a apontar meu lápis na velocidade de uma lesma. Meus olhos lacrimejavam de tanto sono, e minha boca não parava de abrir para bocejar. Eu estava um caco.
Para minha surpresa e azar, quando a porta da sala se abriu de novo, deu o ar de sua graça, num estado de decadência que se equiparava ao meu. Porém, havia ali uma grande diferença: mesmo com poucas horas de sono, ele continuava lindo.
Como ele fazia isso?!
Alguns alunos pediram sua ajuda assim que o viram, e foi logo atendê-los depois de assinar sua folha de ponto.
Gastei alguns minutos à toa só imaginando quanto ele deveria receber para ser monitor daquela aula. Até que era uma boa ideia juntar uma grana fácil antes da formatura. Talvez eu devesse fazer algo do tipo. Além do dinheiro, eu conseguiria abater várias horas complementares que estava devendo. Porém, meus últimos estágios sugaram tanto minhas energias que eu gostava mais de pensar sobre minha aposentadoria do que em qualquer outra coisa.
Continuei observando , que agora atendia uma garota que tinha um milhão de materiais sobre a mesa: canetas hidrográficas, esfuminhos, giz de cera pastéis e lápis de todos os tipos de cores e grafites. Eu tinha desistido de comprar toda a lista de materiais caros que os professores recomendavam há muito tempo. Nunca tinha levado para aquela aula nada além de um lápis e um apontador. E uma borracha. Entretanto, eu achava incrível como ele ajudava a garota perfeccionista com toda a paciência e atenção do mundo.
vestia o moletom da Oyster e um boné dos Patriots virado para trás, e suas olheiras mais inchadas só o deixavam mais bonitinho. Ele parecia um ursinho que precisava dormir, enquanto eu devia estar igual uma hiena esclerosada.
Eventualmente, o silêncio total caiu sobre a sala. Voltei a me concentrar e desenhei uns rabiscos rápidos, só para falar que fiz alguma coisa. Minutos depois, o radar da minha visão periférica apitou, e, quando fui notar, lá do outro lado da sala, estava olhando para mim. Perdi o ar por um milésimo de segundo. Por um momento, achei-o sério demais, com a mandíbula pressionada e a testa levemente franzida. Até ele envesgar os olhos azuis em direção à ponta do nariz.
Sorri. Em resposta, entortei um só olho para o outro lado. Éramos dois pirralhos ou o quê?
Ele se levantou e caminhou em minha direção, com a testa mais relaxada e uma mínima curva no canto dos lábios, ainda me olhando. Puxou uma cadeira e sentou-se ao meu lado.
— Até quando terei que ficar isolada do resto da turma aqui? — questionei, sussurrando.
— Até você estar preparada pra fazer o exame final de novo.
— Sério? Daí eu fico livre dessa matéria?
— Sim.
— Sério mesmo? Tolbert pode me dispensar?!
— Pode.
— E se eu estiver preparada agora?
Ele olhou para o meu papel, inalou uma grande quantidade de ar e o soltou com a frase:
— ... Você não está preparada.
Soltei um resmungo que consumiu todas as minhas energias restantes. Eu sabia que não estava dando o meu melhor, inclusive, estava trabalhando na base da preguiça.
— E o que tem de errado?
— Pra começar, você tem que se lembrar de arredondar as coisas — pegou um lápis e desenhou cantos arredondados por cima de todas as minhas bordas pontudas. — Tenta usar linhas cruzadas pra te ajudar a saber onde fica o centro e a te lembrar que tudo tem profundidade. É só você trabalhar em camadas, como nos softwares.
Me surpreendi com a dica. Ele sabia que eu me dava melhor nos softwares.
— As costelas, os quadris… Todos são cilindros redondos — continuou, corrigindo e traçando mais linhas de outra cor sobre o meu desenho. — Você não tem que se preocupar com olhos, nariz e boca agora. Você vai adicionar esses detalhes depois que terminar, só assim vai se sentir menos frustrada.
— Hmm...
— Agora sua vez.
Suspirei. Peguei outro lápis e comecei a traçar uma linha contínua, tão invisível quanto minha autoconfiança.
— Não tô vendo nada — ele avisou.
— Erm… Quantas cabeças de altura são, mesmo? Seis ou sete?
— Sete.
Reforcei o traço e fiz todas as medidas. Marquei o umbigo como o ponto central e as três cabeças de largura dos ombros. Depois, puxei os braços e as pernas.
— Até onde vão as pontas dos dedos das mãos? — perguntei.
— Até o meio da coxa. E os cotovelos até a cintura — enquanto respondia, eu ia desenhando. Ele falava baixinho, com a voz um pouco mais grave por conta do sono. — As pernas são divididas em partes. Do quadril ao joelho, do joelho ao tornozelo. As duas com a mesma medida. O antebraço vai se afunilando até o pulso. E a clavícula termina na curva do ombro. Depois, é só acrescentar os músculos. Eu sempre começo pelo pescoço.
— Eu nem penso em músculos.
Ele riu, tomando o lápis da minha mão.
— Olha pra cá. A linha dos ombros não é uma linha horizontal reta, e o pescoço não é um cilindro reto. O pescoço vai diminuindo, assim — foi desenhando com mais força por cima do que eu já havia feito —, e o trapézio cria meio que uma transição dessa região para os ombros. Agora olha pra mim — ele levantou o queixo, inclinou levemente o rosto para o outro lado e passou os dedos pela lateral de seu próprio pescoço. — Tá vendo que esses dois músculos descem e se estreitam em direção à clavícula?
— Aham — concordei, tentando não me distrair demais. Tive que forçar uma tossidinha para me trazer de volta à Terra. Em seguida, mandei: — Eu aposto que você consegue arrancar uns suspiros daquelas calouras com todo esse conhecimento anatômico.
Ele riu mais alto que o normal. Eu amava como a seriedade em seu rosto se transformava num sorriso tão aberto, tão rápido.
— Ssssshhh! — Tolbert começou a nos encher.
Eu e nos calamos. Mas aquele silêncio não ia durar muito.
— Sabe, acho que vou até Oakwood de novo — sussurrei, olhando para o papel enquanto pegava o lápis de volta. — Mais precisamente, na casinha abandonada. Tive uma ideia genial. Em vez de pegar o jornal, vou fotografá-lo.
— Boa sorte.
— Não, . Você também vai.
Toda a cara dele se enrugou.
— Não, , por favor, não me faça voltar até aquele barraco. Pelo menos espere até o inverno passar.
— Tá bom, então eu só fotografo o pôr do sol ou alguma coisa assim.
— O que você é, uma velha turista?
— De fato, eu sou uma turista. Eu vim do Alabama, onde os céus são tão azuis. Lembra?
Ele riu de novo.
Tolbert nos repreendeu de novo.
Dessa vez, ficamos um bom tempo calados, mesmo. se espreguiçou e reclinou o corpo sobre a cadeira, depois enfiou as mãos no bolso do moletom e virou o boné para frente e para baixo, cobrindo os olhos. Acho que ele acabou tirando um cochilo.
E eu aproveitei para focar em terminar meu desenho.
No intervalo, quis dar uma de cortês e insistiu em me pagar um café pelo pequeno tráfico o qual ele e Alex me submeteram ontem à noite. Estávamos sentados em uma das mesinhas vazias da lanchonete, onde quase não havia movimento pela manhã.
— Que diabos aconteceu entre você e a Renée ontem? — já fui logo perguntando. — Ela estava bastante atordoada quando me recebeu no quarto. Você contou o dinheiro errado ou o quê?
— Bobagem — ele respondeu, arrastando a voz. — Não tinha nada de errado, ela foi até mim à toa.
— Sério?!
Impressionante. Jenna estava certa. Porém, parecia tenso outra vez, então tentei aveludar a situação:
— Ah, não deve ter sido tão sério, foi? Às vezes ela só quis arrumar uma desculpa pra te ver.
— Ou me controlar — ele tirou os olhos do café e os levantou para mim. — Brigamos feio ontem.
Apesar de arregalar os olhos, fiquei meio sem reação. Eu deveria achar chocante, mas, se aquilo era rotineiro para eles, o que mais eu poderia fazer?
— Como você está? — perguntei, depois de um breve silêncio.
— Os Patriots também ganharam ontem — ele bufou. — Não acho que tive tempo de comemorar.
Olhei para o logotipo no boné dele. Talvez fosse mesmo grave. Homens possuíam um ranking de prioridades na vida, e, normalmente, o time de futebol deles ficava acima da própria mãe.
— É... — fiz uma careta. — Isso é ruim.
— Tô tão cansado de toda essa merda. Você não faz ideia.
Era estranho vê-lo irritado. era tão tranquilo. Renée deve ter movido montanhas para tirá-lo do sério.
— Mas não posso fazer nada — ele continuou. — Aliás, nunca consigo. Tô cansado de tentar.
Se íamos entrar naquele assunto, era melhor ir direto ao ponto. Afinal, eu era expert nele. Então, disparei:
— Tá falando de terminar?
— É… — a voz dele falhou e, por um momento, se dissipou pelo ar. Ele parecia realmente desapontado. — Já tentei terminar com ela uma vez. Ano passado. Pouco antes daquela festa do milênio.
— Jura?
— Por isso ela tava meio brava comigo, tentando me fazer ciúme com outros caras. Uma babaquice infantil, eu sei. Não precisa me lembrar.
ficou olhando para um ponto fixo e distante, enquanto eu colocava mais açúcar no meu café. Fiquei brincando de bater a colherzinha na borda do copo, sem saber o que dizer.
— Como foi, ? — ele voltou a me olhar, mais sério. — Como foi quando aquele cara te chutou?
— Obrigada pela delicadeza — falei, e ele deixou escapar uma risadinha. — Bem… Aquele cara me levou ao Millard’s como se fosse mais um encontro normal. Conversamos, bebemos, comemos. Ele estava com um papo estranho sobre relacionamentos e independência, questionando várias coisas. Foi então que percebi aonde queria chegar. Tentei adiar o máximo possível, mas, no final, mandei-o terminar de uma vez comigo e ele terminou.
— Terminar com você é tão mais fácil.
— Obrigada. Vou adicionar essa qualidade no meu currículo.
riu outra vez, então virou a aba do boné para trás de novo. Seus olhos azuis esverdeados saltaram para a luz, ficando ainda mais brilhantes. Era fácil demais me perder neles. Confesso até que, de vez em quando, eu tinha que olhar pra outros cantos para não ficar tão hipnotizada.
Um pouco patético.
— Não tem segredo — continuei. — É só ser sincero e dizer seus motivos. Vai doer de qualquer jeito.
— Não, tem que ter um jeito de doer menos.
— Hmm… Ah… Tem um jeito. Fazer ela te odiar.
— Não, não sei fazer isso.
— Claro que sabe, todo mundo sabe. Vai, termine comigo — sugeri, tentando balançar os ombros com indiferença. — Me faça pensar que você é o maior filho da puta que existe.
— Ahhh… — ele esfregou uma das mãos pelo rosto, inquieto, depois respirou fundo e voltou a olhar para o nada. — Ok. Lá vai. … Preciso falar com você.
— Não, não diga “preciso falar com você”. Já entendi o término logo aí.
— Ok, então… … — dessa vez, fez uma longa pausa. Então, olhou no fundo dos meus olhos como nunca havia feito antes. Senti uma leve pontada de nervosismo, como se eu estivesse passando por um término real. Devia ser o trauma. — Se lembra daquela festa na praia, no verão do ano passado? Tinha uma banda fazendo um cover horrível dos Beastie Boys. Lembro também que uma de suas amigas não parava de dar em cima do PJ. Os dois acabaram na maior azaração, e foi assim que a gente se conheceu, mas... eu já tinha reparado em você. Muito antes, eu já tinha te visto ali, com o olhar perdido no meio de toda a baderna. Uma garota que não parecia pertencer àquele lugar, nem àquele momento. Ela parecia vir de um lugar distante. E parecia trazer muitas mágoas desse lugar. Então, ela ficou feliz quando eu a enxerguei. Tão feliz que… atribuiu toda sua felicidade à mim. Eu prometi cuidar dela, mas… não consigo mais suportar o peso de ser a razão de alguém. Alguém que precisa de ajuda, mas de pessoas que saibam tratá-la de verdade. Porque eu não sei mais. Tenho que aceitar que esse não é o meu papel. Porque isso tá me consumindo, dia após dia. Acho que estou ultrapassando meus próprios limites, e percebi que isso só dificulta sua melhora. E eu quero você melhor, Rennie. Eu quero você feliz... Mas eu... não estou feliz. Eu sinto muito não poder consertar você.
Ainda imerso no momento, ele continuou me encarando por alguns instantes, até lentamente descer o olhar para o chão.
Eu estava paralisada.
— Essa foi a maior bobagem que eu já disse em toda minha vida — falou, sacudindo a cabeça. — Sou o filho da puta mais incompetente que existe, pode dizer.
— Não! Não! Esquece o que eu disse — tive que me despertar para contestá-lo. — Você deve abrir seu coração para ela, como fez agora.
— Não sei.
— Mas–
— Você não a conhece, . Há uma grande possibilidade de ela não entender nada disso. Pra falar a verdade, eu acho que Rennie nem percebe que tem algo de errado. Como se a ideia que ela tem de nós fosse melhor do que a realidade em si. Aliás, no momento em que estivermos cara a cara, toda essa minha honestidade vai sumir. Não consigo me abrir assim pra ela, porque... eu tô sempre tomando um cuidado monstruoso com minhas palavras quando estamos juntos.
— Tá tudo bem, . Faça isso quando sentir que estiver pronto.
Ele ficou em silêncio. Novamente, os copos de café ganharam nossa atenção. Mas eu nem estava mais interessada em fingir que eu não sabia o que dizer.
— Sabe de uma coisa, é bom que você já entendeu o que tá acontecendo — falei. — É sério. Você pelo menos entende seu próprio dilema.
— … Só não sei resolvê-lo.
— Não, é exatamente isso. Você sabe, mas seus medos ainda estão pesando um pouco mais na balança. Uma hora ela pode acabar pendendo pro outro lado, você vai ver. É questão de tempo. Só o tempo vai te preparar.
— Sou péssimo com toda essa merda — ele arfou. — Queria terminar por telepatia.
— Eu já fiz isso uma vez, sabia? Com meu primeiro namorado.
— Você fez o quê?! — ele gargalhou, meio espantado.
— Espera, são… quase dez horas — olhei para o relógio da lanchonete e me apressei para levantar da mesa. — Temos que voltar.
— Não, relaxa… — despreocupado, continuou sentado como se nada importasse. — Relaxa, podemos nos atrasar.
Dei de ombros. Eu poderia me atrasar para a aula de Modelo Vivo com muito prazer. Sentei-me novamente na cadeira e continuei:
— Onde eu estava?
— Prestes a me ensinar a como terminar por telepatia.
— Ah, é. Na verdade, foi um pouco diferente. Eu tive esse namorado no ensino médio que foi pro baile de formatura comigo e tudo mais. Éramos carne e unha. Eu era uma romântica que acreditava em amor verdadeiro, príncipe encantado e toda baboseira que você possa imaginar. Quando resolvi sair da minha cidade e estudar em Nova York, ele disse que ia esperar por mim, e eu achei aquilo o máximo. Mas, meses antes de viajar, simplesmente fui me afastando. Percebi que ele só queria me esperar pra me ver colada num fogão e parindo uma coelhada de filhos. Sabe, aquelas expectativas tradicionais do interior do sul que eu ainda tava descobrindo que não concordava. Não cheguei a falar nada, mas acho que ele sacou. Mas eu pretendia falar, sabe? Sobre tudo isso. Só que ele ficou com tanto medo que eu terminasse, que também passou a me evitar.
— E aí? Você e o cowboy nem se despediram?
— Sim, nos “despedimos” — suspirei. — No meu último dia em Livingston, antes da mudança, ele me perguntou, tipo, “a gente terminou, né?” e eu falei, tipo, “aham” — comecei a rir, me lembrando daquela cena desastrosa. — A gente era tão bobo.
me acompanhou no riso.
— Também tive uma namorada no ensino médio que achava que íamos nos casar um dia — ele começou a contar. — Ficamos juntos até o primeiro ano da minha primeira faculdade. Ela não queria de jeito nenhum que eu saísse de Boston.
— Espera, o quê? Você chegou a prestar algum curso em Boston?
— Sim. Estudei Ciência da Computação por dois anos, depois desisti.
— Caramba, então você–
— Se sou dois anos mais velho que você? Sim, sou.
— Na verdade, só um. Esperei um ano antes de entrar na Oyster por causa de uma bolsa de estudos.
— Hmm… Bem que eu achei que você tinha uma cara de velha. Uns três anos mais, talvez.
Fiquei boquiaberta, até vê-lo sorrir de lado. Claro, estava fazendo hora com a minha cara. Dei um leve chute em seu pé por baixo da mesa.
— Então, vocês terminaram? — perguntei. — Como foi?
— Eu terminei. Não só pela mudança, mas... Putz, foi difícil pra caralho. Mas já passou. Hoje ela está noiva, dá pra acreditar?
— Tá vendo? Términos são um saco, . Mas ninguém tem escolha a não ser seguir em frente, mesmo que seja um caminho forçado. É péssimo segurar um relacionamento assim, sem perspectivas, apenas pelo histórico dele.
— Você tá certa, eu só… — ele respirou fundo. — Eu só queria poder pular essa parte de ter que machucá-la. Não sei se vale a pena partir o coração de alguém assim.
— Mas e o seu, que já tá partido? Vale a pena deixá-lo assim pela felicidade de outra pessoa? — refleti, perplexa com minha própria argumentação. Normalmente, era eu quem mendigava conselhos para os outros, e contar comigo mesma nunca foi uma opção muito relevante. — Sabe de uma coisa, sei também como é horrível estar do outro lado. Parece errado quando nos colocamos em primeiro lugar em situações como essa, mas amor próprio não é egoísmo. “Tentar agradar os outros é doloroso, pense mais em você”, uma sábia filósofa me disse isso uma vez.
— Uma sábia filósofa chamada Jenna? — ele levantou uma sobrancelha.
— É. Como você sabe?!
— Conheço Jenna e suas citações mais famosas.
Dei uma risada. Mal podia esperar para contar a ela que eu havia conseguido botar um senso na cabeça de . Agora, se traria algum efeito, era outra história.
— Até que nosso ensino médio não foi de todo ruim, não é mesmo? — comentei. — Tirando a matemática, foi ótimo. Tenho boas lembranças.
— Não sei… Quero dizer, o colegial foi legal, mas foi uma época complicada da minha vida.
— Você é cheio de complicações, não é? Tenho que me acostumar com isso — brinquei.
Ele sorriu com os olhos.
— É por isso que eu prefiro matar aula, se for pra ter momentos descomplicados assim. Como esse.
— Pensei que estávamos só nos atrasando — olhei em volta, tentando conter um sorriso.
— Já evoluímos.
— Hmm. Já estamos na terceira base da violação de regras?
Ele ergueu uma sobrancelha, divertido:
— Quer fazer um home run?
— O quê?! — ri alto. — Agora?
— Agora.
— Pra onde?
abriu a boca para responder, quando, de repente, seu olhar subiu para observar alguma coisa atrás de mim que havia o deixado hipnotizado. Numa rápida intuição, percebi que, na verdade, mais alguém havia chegado e estava se aproximando. Assim que me virei para trás, entendi imediatamente o porquê de todo o deslumbre dele.
Era Renée.
Naquele exato momento, vi nossa escapada do Campus descendo pelo ralo. E é claro que eu sabia para onde ela seria.
— Eu… — falei ao me levantar, com o raciocínio ainda lento. finalmente me olhou. — Vou voltar pra aula e depois pro meu quarto repor o sono — forcei um bocejo. — Oakwood pode ficar pra depois.
Ele quase ia dizer alguma coisa, mas dei as costas e deixei os dois sozinhos.
A presença de Renée me dava arrepios. Por algum motivo, eu não conseguia nem olhar nos olhos dela. Sem dúvida ela tinha um ar enigmático e intimidador, mas agora eu sabia que, por baixo daquilo tudo, morava uma garota cheia de inseguranças particulares assim como eu ou qualquer outra.
Ainda assim... Eu sentia um certo desconforto perto dela.
Um desconforto chamado culpa?
Depois de algumas horas trabalhando sem parar no laboratório de informática, o software travou, como se tivesse criado vontade própria e resolvido me sacanear. Além da coluna encurvada feito um camelo, meus olhos estavam secos e vidrados na setinha do mouse, se transformando numa ampulheta que girava para cima e para baixo, para cima e para baixo, para cima e para baixo…
— MERDA!
— Quer me matar de susto?! — Jenna pulou da cadeira ao meu lado. — O que aconteceu?
— Acabou. Está tudo acabado.
— Travou? — ela se inclinou para ver o problema e tentou apertar alguns botões, mas a tela continuou congelada. — Salvou o que fez até agora, pelo menos?
— Não me lembro…
— Que tipo de carma cósmico é esse? Você está precisando benzer.
— Vou te dizer o que eu preciso — fui despejando todo o ódio acumulado nas palavras. — Preciso que essa universidade ao menos se atualize no tempo e compre uns computadores mais modernos. Não tá dando pra sobreviver de Macintosh ou Windows 95.
— Quer ir pro meu quarto usar o meu G3?
— Por favor.
— Trouxe alguns disquetes. Tenta salvar o que der neles — Jen tirou-os da bolsa e me entregou.
Morrendo de preguiça, fiz toda a árdua tarefa para salvar meu trabalho da morte. No final, deu tudo certo. Graças ao cosmos, segundo Jenna.
Já no quarto dela, eu trabalhava minuciosamente na segunda versão do meu layout editorial. Estava quase no fim, mas era só o começo. Eu precisava entregar seis versões diferentes para a avaliação do professor, que sempre exigia infinitas gerações de alternativas em projetos acadêmicos como aquele. O peso da exaustão começou a queimar todos os músculos das minhas costas. E minha criatividade só sabia evaporar feito líquido... até finalmente se secar por completo.
— Chega, . Você precisa relaxar — Jen levantou-se de um puff e parou atrás de mim. — Desliga isso, depois você pode voltar aqui quando quiser pra terminar.
Ignorei totalmente o que ela tinha falado e permaneci com as mãos sobre o mouse e o teclado. Então, Jenna desligou o monitor, puxou a cadeira giratória e me virou para o lado oposto, de frente para ela.
— Já chega. Feche os olhos. Agora — ela ordenou. Depois, foi até sua estante buscar uns trecos.
— O que você vai fazer?
— Purificar sua aura — respondeu ela, após voltar com vários cristais coloridos e um incenso. — Gosta de sândalo?
— Não muito.
— E cravo?
— Gosto. É o cheiro do seu quarto. Precisa mesmo acender um incenso?
— Já fechou os olhos?
— Não. Desculpa. Pronto, estão fechados.
Pude ouvi-la se aproximando e posicionando os cristais na escrivaninha atrás de mim. Não demorou até o adocicado cheiro de cravo se intensificar pelo ambiente.
— Segure isso — ela colocou em minhas mãos uma pedra mais pesada.
— O que é isso? Posso ver?
— Pode. Mas, depois, feche os olhos de novo.
Espiei rapidamente e vi o quartzo roxo-escuro, com faces de diferentes tamanhos que brilhavam feito vidro.
— Que bonito — comentei, fechando os olhos. — É uma pedra da sorte?
— É uma ametista. Vai ajudar você a se inspirar e a recuperar a criatividade. Ela cria escudos de luz que vão te proteger e expandir sua mente.
— Hmm… — murmurei, porque aquele passava longe de ser o momento para um embate entre o meu ceticismo e as superstições de Jenna.
— Você não acredita em nada disso, não é?
— Erm…
— Tudo bem, não precisa. O importante é fazer você se sentir bem e relaxar.
— Então tá dando certo.
Estava feliz porque eu e Jenna funcionávamos assim. Nunca concordaríamos em tudo, mas o respeito era espontâneo e mútuo. Eu gostava como ela era atenciosa comigo. Gostava também do jeito como ficamos amigas logo de cara.
Eu podia sentir suas mãos se movendo ao meu redor, como se ela estivesse movimentando a essência em minha direção. Depois, passou os dedos pelos fios do meu cabelo. Meus ombros, rígidos como pedaços de concreto, automaticamente se derreteram.
— Posso fazer uma trança em você?
— Claro — sorri. — Adorava quando minhas amigas faziam isso em festas do pijama.
— Eu também. Quando eu era criança, minha mãe costumava pentear meu cabelo toda noite antes de dormir, e eu sempre achei isso a coisa mais relaxante do mundo. Ela me pedia pra contar até cem, porque acreditava fielmente que precisava escová-lo cem vezes. Mas sempre se cansava, sei lá, na décima. Então eu tinha que aproveitar cada segundo.
Demos algumas risadinhas. Também resolvi aproveitar aquele momento, sentindo um profundo relaxamento toda vez que as longas unhas de Jenna faziam leves cócegas em meu couro cabeludo. O silêncio e o perfume também fizeram minha respiração desafogar. Após um tempo, eu estava quase me deitando na cadeira.
— Seu cabelo é lindo — ela disse, me fazendo sorrir.
— O seu também, Jen.
— Obrigada, chuchu — ela continuou com o cafuné. — Você está indo bem, mas posso ver que ainda tem algo na sua energia que te aflige.
— … Sério?
— Aham. Tá preocupada com alguma outra coisa?
— Ah… Acho que tô sempre preocupada.
— Exemplo?
— Com o futuro, eu acho.
— Pode falar. Diga tudo o que está pensando.
— Ah, não sei. Sinto que tô me esforçando mais do que o normal nesse último semestre, mas… e se tudo for em vão? E se eu não conseguir um emprego? E se eu tiver que voltar pra minha cidade?
— Sabe, também tenho esses pensamentos. Meu sonho é ir embora daqui e trabalhar com Moda na Califórnia, mas... e se não der certo?
— Sério? Califórnia é a sua cara.
— Você acha?! — ela se empolgou. — Fala sério. Você me imagina atravessando o país?
— Eu atravessei, mesmo que numa coordenada diferente. Por que você não poderia?
— É... Mas não acho que eu vá conseguir de imediato. Nenhum de nós vai conseguir realizar nada imediatamente depois da formatura, na verdade. Não deveríamos nos preocupar tanto. O fim da faculdade só significa que teremos um diploma, nada além disso. E um diploma não define e nem nunca definiu o valor de ninguém, você sabe.
— É mesmo. Preciso me lembrar disso todos os dias. Mas é tão fácil me esquecer desse simples fato quando a pressão vem de absolutamente todos os lados.
— Eu sei, é foda...
— Ah, Jenna… — respirei fundo. — Posso aproveitar a lamentação de coisas ínfimas da juventude adulta e acrescentar só mais uma pro tópico?
— Claro — ela riu. — Manda ver.
Tive que respirar fundo outra vez antes de começar:
— Eu conheci esse cara que… já passou da hora de admitir pra mim mesma que tenho uma queda por ele. Tipo, enorme. Num nível preocupante.
— Ah… Então agora chegamos em mais uma camada do centro das aflições. Quem é ele?
“Quem é ele?”
Eu juro que, se Jenna não o conhecesse tanto, teria contado a ela sobre isso há séculos.
— Ninguém. É só um cara compromissado — fiz uma careta. E aquela culpa que eu já havia me esquecido nessas últimas semanas chegava novamente de mansinho. — A propósito, o relacionamento dele vai mal, mas… acho que ele ainda é totalmente apaixonado por ela. Não tenho chance alguma.
— Ah, isso é uma droga… Por acaso não é o Derek, é?
— Não! Aliás… Erm… Não, não é o Derek — gaguejei. Mas tudo não passava de uma pequena confusão proposital para deixar a suspeita errada no ar.
— Hmm. Então... O Mister Misterioso faz alguma ideia que você tem essa queda por ele?
— Sei lá. Acho que não. Nós ficamos amigos, na verdade, então nem me importo mais... Tenho evitado ele ao máximo esses dias, inclusive. Pronto, é isso. Só quis desabafar.
— Espera, por que tá evitando o cara? — ela quis saber, enquanto amarrava a ponta da minha trança com um elástico.
— Porque é difícil, Jenna. Caramba, não sei nem como explicar — abri os olhos, esbugalhando-os. Ela riu da minha indignação, e só me restou cruzar os braços e aceitar aquele papel de ridícula que eu estava fazendo. — Pode citar qualquer qualidade que vier na sua cabeça. Inteligente, talentoso, gentil, espontâneo, engraçado, gostoso, lindo? Aham, ele preenche a checklist.
— Uau. Que bom que Blaze agora é uma página virada.
— Blaze ainda é um dos meus pontos fracos, infelizmente.
— Um ponto fraco bem frouxo, né? Porque o De... — ela deu duas tossidas rápidas. — O Mister Misterioso já revirou sua cabeça.
— E ele esteve aqui no Campus esse tempo todo, bem debaixo da droga do meu nariz. Como fui notá-lo só agora?! — balancei a cabeça várias vezes em negação. Jenna só ficou me olhando, se divertindo. — Preciso muito que essa maldita queda passe. Por isso, preciso de tempo.
— Você estava mesmo sumida esses dias, sabe. Quase não te vi pelos corredores. até me perguntou se você estava passando mal ou algo assim, porque não tem ido às aulas que ele monitora.
Quase cuspi o coração pela boca.
— Mas eu disse a ele que você estava muito ocupada com trabalhos de outras disciplinas e com o prazo super apertado — ela continuou. — O que também não deixa de ser verdade.
— … E aí?
— E aí que ele entendeu. Estávamos fumando no pátio com o PJ. Falando nisso, o PJ também tá enlouquecendo com um trabalho do curso dele. Disse que quer fazer algo pra comemorar assim que entrarmos de recesso. Você vai fazer alguma coisa? Viajar pra Louisiana…?
— Não, vou ficar aqui. Vou pra Louisiana nas férias de verão.
— Ótimo! Podemos combinar de fazer algo na república dos meninos.
Jen mostrou seu sorriso perfeito e enfim foi recolher a poeira do incenso queimado. Quando eu ia devolver a ametista, ela recusou.
— Pode ficar com ela.
— O quê? Não, não posso ficar com sua pedra da sorte.
— Pode sim, você tá precisando. Leve pro seu quarto, depois eu pego de volta.
— Hmm… Então, tá.
Passamos o resto do dia tendo conversas sobre o futuro, séries de TV e nossos atores favoritos. Jenna era apaixonada pelo James Van Der Beek de Dawson’s Creek, e, depois de ter visto Segundas Intenções – o filme preferido de Allison –, disse que também tinha enlouquecido pela Sarah Michelle Gellar depois da cena de um beijo com a Selma Blair. Eu, por outro lado, realmente não conseguia me decidir se gostava mais de Tom Cruise em Top Gun ou de Leonardo DiCaprio em Romeu + Julieta. Ok, Tom foi meu primeiro amor televisivo da infância, mas eu tinha que admitir que Leo ganhava nessa.
Impressionante como dilemas envolvendo celebridades sempre recebiam minha atenção muito mais do que deveriam.
Quando cheguei ao meu quarto, guardei a pedra dentro da gaveta da cômoda para evitar as perguntas curiosas de Sadie. Depois de um banho, que também serviu para levar embora minhas neuras, dormi feito um anjo.
No dia seguinte, a caminho da minha próxima aula, eu andava distraída pelo corredor do Belva Hall quando alguém cutucou meu ombro por trás. Virei-me para olhar, um pouco receosa, e dei de cara com Allison me estendendo um flyer de divulgação de uma festa. Depois de respirar fundo, ela disse:
— Estão fazendo a Quinta-Feira Nostálgica hoje. Eu vou.
Peguei o flyer de suas mãos e o analisei. Era uma festa de um DJ conhecido na Oyster, o Mike Da Bomb. Eu e Ally vivíamos indo às boates em que ele participava no início do curso. Nas Quintas-Feiras Nostálgicas, ele costumava tocar músicas de décadas passadas a partir da meia-noite. A gente adorava, principalmente quando tocava Madonna ou Janet Jackson.
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, Allison disparou:
— Me desculpa por tudo, . Eu sei o que fiz. Sei exatamente o que fiz, desculpa fingir que isso nunca aconteceu.
— … Não sei, Ally.
Tentei devolver o flyer a ela, mas fui pega de surpresa quando notei seus olhos cheios d’água.
— Por favor, ... Me perdoa — ela pediu com a voz chorosa, um pouco desesperada. — Sei que o que eu fiz foi errado. Muito errado. Eu tava muito, muito bêbada e.... também sou... humana, eu… eu tô muito arrependida. Eu admito, fui eu que... fui eu que dei mole pro Blaze. Não sei o que aconteceu comigo, nunca mais vou fazer uma coisa dessas. Me sinto péssima só de lembrar.
— Eu também me sinto péssima só de lembrar.
Allison fitou o chão. Estava mesmo envergonhada.
— Olha… Só quero que saiba que bastava me dizer — continuei. — Se quisesse ficar com Blaze, era só me dizer. Ou me perguntar se eu me sentiria confortável com isso, sabe. Apesar de eu não saber a resposta pra isso até hoje.
Ela enxugou algumas lágrimas e só assentiu com a cabeça. Fiquei com um pouco de pena. Talvez eu fosse comovida muito fácil, mas as desculpas dela pareciam sinceras, apesar de fracas. Sabia disso porque Ally não chorava por nada nesse mundo. Além disso, foi importante ela ter admitido que se insinuou pro Blaze primeiro, confirmando o que ele já havia me contado.
— Quanto a isso, vou pensar — falei, referindo-me à festa. — Se eu for mesmo, a gente se encontra lá, ok?
— Ok...
Guardei o flyer no meio das minhas coisas e segui meu caminho. Se eu quisesse mesmo ir à boate hoje à noite, teria que tirar um cochilo obrigatório durante a tarde. Amanhã cedo tinha aula de Modelo Vivo, e, infelizmente, eu não podia faltar mais.
— Você vai sair hoje ainda? São onze da noite!
Às vezes eu achava que minha mãe havia contratado Sadie para ser minha colega de quarto e substituir sua ausência na minha vida universitária.
Eu tinha acabado de sair do banho e estava enrolada numa toalha, procurando em todos os cantos pelo meu LP da Janet.
— Eu não ACREDITO que deixei meu Rhythm Nation em Livingston! — esbravejei sozinha.
— Que diabos é isso?
— Não acredito, não acredito, não acredito! Só trouxe minhas fitas cassetes e CDs. E tô enjoada de todos! Você tem alguma coisa interessante aí, Sadie?
— Hmm… Que você vai gostar? Não sei. Tenho um das Spice Girls.
— Serve.
Corri para o singelo aparelho de som que tínhamos em nossa salinha, e logo Sadie me entregou o álbum para eu colocá-lo para tocar. Me impressionou o encarte todo amassado e o CD arranhado por conta do uso. Desde quando Sadie era fã das Spice? Pelo que eu me lembre, ela só ouvia baladinhas do Bon Jovi e do Aerosmith.
Wannabe – Spice Girls
Aumentei o volume ao máximo. Precisava me animar e, principalmente, me arrumar. Assim que o primeiro verso de Scary e Ginger ecoou pela sala, puxei Sadie pelo braço e comecei a saltitar e a dançar com ela em volta do sofá.
— O que você tá fazendo?! Ficou doida? — ela tentou conter o riso, mas não conseguiu. Só foi sendo levada pelos meus passos e minha cantoria por cima da música. Até a fiz rodopiar. — Sabe de uma coisa, ? Acabo de perceber que você ri que nem a Scary.
Comecei a rir.
— Tá vendo?! — ela refrisou.
Ficamos rindo e cantando juntas, até Sadie começar a reclamar. Típico dela. Voltou a se sentar no sofá e a assistir televisão. Pediu para eu abaixar o volume, então voltei para o meu quarto e fechei a porta.
Eu tinha certeza que Sadie se acabava de dançar ouvindo Spice Girls quando não tinha ninguém olhando. Isso devia ser o segredo mais secreto de sua vida, e eu não ia demorar muito para descobrir.
Enquanto eu ouvia a segunda música do CD, troquei de roupa e me maquiei. Não queria chamar a atenção de ninguém; só queria dançar até meus sapatos ficarem destruídos e curtir a noite para espairecer. Me arrumei 100% para mim mesma e, talvez por isso, eu estava me achando um arraso.
Tentando me inspirar no que seria um misto de Britney Spears e Gwen Stefani, minha roupa estava bastante ousada e colorida. Além dos meus indispensáveis tênis de plataforma, até deixei uma barriguinha de fora, desafiando meus próprios receios da autoestima.
Quando saí do quarto, recebi aplausos de Sadie. Entrei na brincadeira e curvei-me em agradecimento.
— Você acabou de sair de um clipe da MTV, ?
— Esse é o melhor elogio que eu poderia receber — falei, rindo. — Tem certeza que não quer ir?
— Não, já está muito tarde.
Balancei a cabeça, descrente daquele projeto de vó num corpo de jovem.
Finalmente desci para a rua e esperei menos de cinco minutos por um táxi. Acabei dividindo-o com outras meninas do alojamento que também estavam indo para Bricktown.
O Club USA era uma boate relativamente pequena. Era um lugar bastante objetivo: do lado esquerdo, o bar; do lado direito, a pista de dança. No meio, transitava uma galera indecisa. Fui direto para o bar quando cheguei. Não avistei ninguém conhecido, mas já me animei quando ouvi a música chiclete do MC Hammer tocando. Simplesmente não tinha como ficar parado ao som de U Can’t Touch This.
Porém, me foquei em algumas cervejas e shots de vodca antes de tudo, só para ter uma desculpa maior para dançar livremente como eu dançava antes. Talvez até com a mesma confiança que eu tinha quando ficava diante do espelho com uma escova de cabelo na mão, fingindo ser o microfone.
Eu dançava desde criança, e essa sempre foi a única coisa que tive a oferecer em shows de talentos e outros festivais da escola. Quando parei com as aulas para me concentrar no vestibular, nunca mais me dediquei tão seriamente.
Faltava pouco para meia-noite, mas a real deixa para finalmente me aproximar da pista foi quando ouvi a voz da minha diva e imaculada, Madonna, em mais um de seus novos hits que dominava as rádios do mundo todo.
O melhor de tudo é que a maioria dos homens ia embora e quase todas as mulheres se aglomeravam para dançarem juntas. Um momento mágico. Será que existia coisa mais libertadora do que dançar sem ser importunada? Sem puxões pelo braço, pelo cabelo, cantadas no ouvido e mãos-bobas inconvenientes?
Mesmo diante dessa maravilha, ainda assim havia uma estranheza no ar. Óbvio, numa pista cheia de mulheres, sempre seria estranho estar livre dos olhares masculinos. Olhares que nunca precisavam dizer nada, mas sempre estiveram ali para aprovar ou reprovar o nosso jeito de fazer qualquer merda que fosse: falar, vestir, andar, pensar... até dançar.
Não fazia muito tempo que eu havia percebido que era através desses olhares que eu também me enxergava, como se eles fossem a referência máxima. Porém, ganhei uns neurônios a mais desde que fiquei solteira e, ultimamente, tenho vestido a lente do meu próprio olhar. Depender do ponto de vista masculino sempre fez uma vozinha esgotante surgir lá no fundo da minha cabeça, que não cansava de questionar:
“Assim está bom para ele?”
“Será que se eu fizer isso, ele vai gostar?”
“O que será que ele tá pensando de mim agora?”
Mas... desde quando eu deveria caber na opinião de um cara?
E, na pista, quem falou que a gente precisava desses olhares para nos sentirmos poderosas enquanto dançávamos? Madonna me ensinou isso. Ela sempre fazia questão de mostrar para o mundo que não havia problema algum em expressar nossa sexualidade e ambição, ainda mais através da dança – e ninguém precisava nos assistir para isso se tornar verdade. Talvez a sensação de liberdade more justamente na irrelevância de uma plateia. E era por isso que, dançando, eu era o ser mais livre do mundo.
Engraçado como até mesmo muitas garotas julgavam esse tipo de comportamento como vulgar, se cobrindo de limites. Talvez até reprimidas pelas próprias vozinhas em suas cabeças. Mas, na pista de dança, todas se esqueciam momentaneamente dessas regras invisíveis. Ninguém tinha mais medo de usar o corpo para se expressar.
Era o caso de Allison.
Logo que a vi próxima ao palco, rebolando como se não tivesse articulações pelo corpo, pude comprovar isso. Caminhei até ela, e, quando me viu, Ally correu para me abraçar.
— Tô tão feliz que você veio! — ela comemorou, falando alto em meu ouvido.
Em resposta, comecei a dançar com ela, que também já estava bêbada. Sabíamos toda a letra de Music de cor. Acabamos nos embolando na dança de mais um monte de garotas à nossa volta e, assim, nos divertimos horrores. Em cada minuto e em cada refrão, a euforia era garantida.
Quando a música acabou, eu e Ally rimos sem parar como duas idiotas felizes. Ficamos aguardando a próxima, mas houve um silêncio e, de repente, as luzes se acenderam. Ficamos nos entreolhando até o DJ pigarrear no microfone, chamando a atenção de todos.
— Temos aqui uma convidada especial hoje à noite — Mike Da Bomb falou e, estranhamente, estava olhando para mim. Mas acho que eu não estava enxergando direito. — Como vocês sabem, eu vim do Harlem… mas ela veio lá de Louisiana. Uma fã de Madonna, assim como eu. Por isso, a próxima música é pra você, meu amor. Fico feliz que tenha vindo de tão longe só pra dançar Vogue comigo!
— O QUÊ?!? — meu berro nem foi ouvido diante de um monte de outros gritos e aplausos.
Vogue – Madonna
O início de Vogue começou a tocar mais alto que a música anterior, e eu comecei a rir de completo nervoso, negando para mim mesma toda aquela situação. Ally me empurrou pelas costas e Mike me estendeu a mão.
Segundos depois, eu já estava no palco lascando o foda-se; pronta para minha performance e para vibrar àquele som nostálgico da minha adolescência.
As luzes se apagaram e a escuridão foi iluminada novamente pelo globo estroboscópico. Mike fez sua pose ao meu lado e as pessoas começaram a gritar ainda mais. Não tinha um estudante sequer naquela universidade que não adorava vê-lo dançando. Senti um frio intenso na barriga, mas, quando a batida da música começou, meu corpo ganhou vida própria. A coreografia que eu e ele criamos em primaveras passadas parecia que havia sido ensaiada momentos antes.
Mike era profissional em voguing. Quando nos conhecemos, ele me ensinou vários movimentos que nunca mais esqueci – os rápidos e simétricos giros com os pulsos e as mãos, a contorção dos braços ao redor do corpo, o catwalk. Somando à coreografia original de Madonna e ao que eu já sabia de outras experiências, criamos a dança perfeita no auge de nosso sophomore year, numa noite de 1997 em que celebramos seu aniversário.
Ele era uma inspiração para mim. Nós realmente encarnamos as personagens, cheias de atitude e sensualidade. Fizemos movimentos sincronizados e sinuosos, caras e bocas, bate-cabelo pra lá e pra cá. Juntos, dançávamos para despertar o que o outro tinha de melhor. E isso era facilmente refletido em todas aquelas pessoas que nos assistiam, vibrando, cantando, dançando e se divertindo com a gente.
No refrão final, definitivamente nos empolgamos nos passos elaborados. Foi o grande ápice. Naquele minuto, absolutamente nada era páreo para nós. Se Madonna quisesse, poderia nos contratar como seus dançarinos profissionais para a próxima turnê – a gente daria conta do recado.
Quando a música finalmente acabou, ouvimos uma onda de aplausos e assobios. Abri um largo sorriso, feito uma bêbada alegre, sem nem acreditar. Eu e Mike nos demos dois beijos na bochecha e um abraço apertado.
— Isso foi incrível! — eu disse a ele. — Meu Deus! Fazia tanto tempo que eu não despertava minha diva interior.
— Mas você é uma diva, , por fora e por dentro. Somos divas fatais, meu amor!
— Nunca chegarei aos seus pés, Mike.
— Precisamos montar mais outras coreografias. Qualquer dia desses, aparece lá no salão do Clube de Teatro. Estou ensaiando uma turma de calouros pra um musical.
— Jura?! Quando é a apresentação?
— Logo depois do Spring Break.
— Vou assistir, com certeza.
— Claro, convidadíssima. Depois dos ensaios, tenho uns minutinhos livres pra gente poder balançar a bunda no palco.
— Topo demais.
— Combinado! Te espero lá — nos abraçamos mais uma vez.
Logo depois, enquanto ele voltava as atenções para o mixer, eu desci para a pista pingando suor; mas o ar condicionado logo daria seu jeito. Fui recebida por Ally, que me prendeu em volta de seus braços franzinos e soltou um gritinho eufórico.
— Tô feliz que Madonna reuniu a gente! — ela comemorou.
— Quer saber? Eu também — acabei retribuindo o abraço, sem pensar muito.
Se eu ainda tinha alguns pezinhos atrás em relação a Allison? Claro que tinha. Mas eu também estava em completo êxtase, e não ia deixar nenhum clima ruim atrapalhar isso. Não hoje.
— Vamos pro bar. Vamos, vamos? Tomar uns shots juntas! — ela gritou próximo ao meu ouvido, já me puxando.
Atravessamos a aglomeração de gente e paramos no balcão, uma ao lado da outra. Ally parecia estar tão bêbada quanto eu. Talvez até mais.
— Amiga, eu amo você — ela se declarou. — De verdade. De coração.
Ok, talvez bem mais.
— Fico feliz — respondi, tentando disfarçar a falta de reciprocidade com uma risada alta.
Ainda bem que nossos shots chegaram bem na hora. Entrelaçamos nossos braços do jeito mais desajeitado possível e fizemos uma pequena contagem regressiva até virarmos toda a bebida dos copinhos.
Mais um daquele e eu era a próxima a virar caso perdido. Então, me controlei.
— O que você tem feito, ? — ela perguntou, logo depois de um soluço.
— Eu?
— É… Ainda anda com aquela esqui– Desculpa... Com sua amiga? Whatever. A loira hippie que anda sem sutiã.
Meu lábio entortou para o lado.
— Sim, ela é ótima — respondi, seca. — Jenna, o nome dela.
— Eu conheci uma garota outro dia que está no segundo ano. Ficamos super amigas. Tipo, super. Ela me apresentou a um cara semana passada e agora estamos saindo… E tá tudo tão intenso que acho que vamos namorar! Nunca achei que eu fosse me apaixonar por um cara mais novo, acredita nisso? Você tinha que conhecê-lo, . Tinha que ver como ele é gostoso. Mas ele não veio hoje porque ficou estudando pra uma prova de amanhã...
Existem tantas pessoas que tentam monopolizar uma conversa que eu já perdi as contas de quantas conheci. Mas uma delas com certeza é Allison. A tática era sempre a mesma: jogar uma pergunta pra eu devolver o assunto que ela quer falar sobre. Às vezes eu me perguntava se era um comportamento intencional ou um problema de falta de autoconsciência. Só me restava ouvir calada. Afinal, a intimidade que eu deveria ter para conversar com ela sobre esse tipo de coisa simplesmente acabou.
Ou nunca existiu?
— Fico feliz, Ally. Falando nisso, acho que vou embora daqui a pouco — comentei. — Também tenho aula amanhã cedo.
— Não, , fica mais! Helloooo?! — ela se debruçou sobre mim. O álcool simplesmente não a deixava conversar sem evitar contato físico. — Você precisa ficar! Sua roupa tá muito incrível, sério. Sua maquiagem tá tipo assim… Uau. E o cabelo tá… — ela segurou uma mecha e a enrolou em um de seus dedos. — … Um pouco poroso, né? Tá precisando passar um creme. Ah, e o top também tá super lindo. Só tá mostrando um pouco demais também, né?
Revirei os olhos e me afastei dela, dando uns passos para trás. Era sempre assim: um elogio acompanhado de uma farpa. Por que eu deveria esperar por algo diferente?
— Claro, Ally… Claro. Obrigada pela dica — pisquei ironicamente.
— Depois te passo os nomes de algumas marcas ótimas de máscaras de hidratação.
Ela nunca percebia. Eu desisto.
— Vou dançar mais um pouco antes de ir — avisei, apontando para a pista. — Quer ir também?
— Aham. Espera só eu… Só…
De repente, senti os braços dela ficarem mais moles, então os segurei firme. Suas mãos estavam geladas, e o suor em sua testa indicava muito mais náusea do que cansaço.
— Você tá bem, Allison?
Ela fez aquela cara que eu conseguia identificar em qualquer pessoa: a de quem está prestes a abrir o bocão para vomitar. Meu desespero me pôs em estado de alerta, e aquilo definitivamente não era um treinamento.
— Calma, calma, calma. Segura isso. Vamos te tirar daqui — passei um braço dela pelo meu pescoço e a fiz caminhar para a saída da boate.
Assim que pisamos no asfalto do estacionamento do lado de fora, Ally correu para o canteiro de arbustos mais próximo e jorrou tudo ali mesmo. Também corri para socorrê-la, e a coisa ficou tão feia que chamou a atenção de outras pessoas. O local estava até bastante movimentado, porque muita gente comprava bebida mais barata na loja de conveniência do posto de gasolina do outro lado da rua.
— Ai… meu... Deus… — ela gaguejou e deu alguns tremeliques, ainda um pouco fraca.
— Vamos pro alojamento. Agora — falei, bem firme e séria. — Você vai tomar um banho e ir direto pra cama. E não esquece de tomar um analgésico amanhã, ok?
— Não, por favor, não me deixe sozinha…
— Eu vou com você.
— Não, . Você sabe que a minha colega de quarto fica insuportável quando me vê desse jeito… — ela choramingou, meio sentimental e brava ao mesmo tempo. — Fico muito carente quando tô passando mal. Ai, meu Deus, isso é tão péssimo. Cuida de mim, amiga? Devo tá parecendo uma louca. Por favor, você vai cuidar de mim?!
Tinha muito tempo que eu não via Allison num estado tão vulnerável assim. Fiquei estática, só observando seu declínio mental sem saber que tipo de resposta eu deveria dar.
Segundos depois, ela girou a cabeça e encarou o próprio vômito, surpresa.
— Eu acabei de vomitar nessa grama?!
— Meu Deus, Ally... Seu caso tá pior do que eu pensava — tentei segurar uma risada. Aquele era o momento mais inapropriado possível para rir de uma perda de memória recente.
— Amiga, já estou bem.
— Não está, não. Vamos até a loja de conveniência comprar uma água. Você bebe enquanto estivermos no táxi.
— Nããããão…
Comecei a perder a paciência e a puxá-la dali. Não demorou até que ela cedesse e acompanhasse meus passos em direção oposta à boate.
Aos poucos, fui aceitando o sentimento de angústia que me rodeava. Um arrependimento por ter dado mais uma chance a essa amizade que – já estava na hora de admitir – não me agregava em muita coisa além de tirar o meu sossego. Talvez eu tenha mudado meu jeito de enxergar as coisas. Parado de relevar as coisas. Um verdadeiro acúmulo de pequenos incômodos provocou em mim uma mudança gradual, mas que, para Allison, com certeza pareceria brusca.
— Que sorte eu te ter comigo, . Não era nem pra você ter me perdoado. Cacete, eu fui uma escrota — ela balbuciou, apertando minha mão. Me senti um pouco mal por ela. — Sorte maior ainda você ter aceitado vir hoje.
Se a sorte existia mesmo, ela era uma coisa bem individual, não é mesmo? Afinal, onde estava a minha? Em objetos mágicos como a ametista de Jenna, trevos de quatro folhas, números e amuletos ou... nas aleatoriedades subjetivas e combinações acidentais da vida?
Ally começou a cambalear de novo. Ofereci meu apoio, mas ela saiu desorientada na frente, se desequilibrando entre as pessoas e os carros estacionados, até parar no capô de um deles. Ela escorou os dois braços e abaixou a cabeça – a coitada estava pronta para vomitar de novo.
Tá aí uma sorte: não ser a dona daquele automóvel.
Ainda por cima, era super bonito e bem conservado, em um tom verde-água brilhante com uma faixa branca na porta. Engraçado, até parecia muito com a picape do…
… Espere aí um segundo.
apareceu e conseguiu alcançá-la antes de mim. Cheguei ofegante, enquanto ele a envolvia pelos ombros e puxava-a delicadamente para longe de sua Chevy.
— Ei, ei, ei. Continuem vomitando nas flores, meninas — advertiu ele, sem tirar os olhos preocupados do capô. Acho que nem me viu.
Ally parecia melhor de repente, e eu só torcia para que seu enjoo tivesse passado de vez.
— Eu ia tirar ela daqui agora, juro — me defendi.
finalmente virou o rosto e olhou para mim, como um cachorrinho atento que havia acabado de ver um esquilo.
— ?!
Desatei a rir. Caramba, estava muito bêbado. Ele segurava uma lata de cerveja com uma mão e, atrás de sua orelha, guardava um cigarro de palha da forma mais estratégica e despojada ao mesmo tempo. Vestia também calças jeans e uma camiseta preta com as mangas longas arregaçadas até os cotovelos. Ele estava super cheiroso, arrumado, alto, lindo, loiro, charmoso, e a lista não acabava. Meu Deus do céu.
Quando eu bebia, era incrível como tinha a capacidade de achá-lo umas cento e cinquenta vezes mais bonito que o normal. Se antes tentei me controlar na bebida, agora eu tinha que me controlar nas palavras.
— Eu mesma — respondi.
— Espera aí, você conhece esse GATO?! — Allison cambaleou, até segurá-la de novo pelos ombros para que não caísse. Assim que ela se equilibrou, grudou outra vez em meus braços.
— Conheço. Quer que eu te apresente? — brinquei.
Quando voltei a olhar para ele, meu espanto foi imediato. me encarava analiticamente de cima a baixo.
— Não, não, não, não. Espera aí — ele balançou a cabeça de um lado para o outro, dando alguns passos na minha direção e falando um pouco embolado. — Eu vi uma garota exatamente com essa roupa dançando pra caralho lá dentro. Era você?
— Era — se houvesse um ranking de sorrisos mais convencidos do mundo, eu acabava de conquistar o primeiro lugar agora.
— Você não sabia?! Ela e Mike aaamam dançar — Allison complementou.
— Não, não sabia — ele respondeu devagar, com uma cara engraçada de confusão e surpresa.
Bem perto dali, havia um grupo de caras que também seguravam suas cervejas e não paravam de olhar escancaradamente para nós com alguns sorrisinhos. reparou que eu os observava com uma certa desconfiança.
— Relaxa, são amigos meus — ele disse. — Nem queira saber no que estão pensando.
— Já até tenho uma ideia. Que tô dando em cima de você?
— O contrário.
— Jura?! — dei uma risada alta. — Eles não deveriam saber que você é compromissado?
Enquanto Ally aos poucos ia deitando a cabeça em meu ombro e se desligando do mundo, levantou as sobrancelhas e os ombros, sem responder nada. Tentei decifrar o que aquilo significava, mas minha lerdeza estava grande.
— Que diabos isso — imitei o gesto dele —, quer dizer?
— Quer dizer que “compromissado”... é uma palavra muito forte.
— Você tá solteiro?! — tentei não deixar tão evidente a felicidade grifada em marca-texto na minha testa. Mas, graças aos céus, ele pareceu não perceber.
— “Solteiro”... é uma palavra muito forte.
Rolei os olhos.
— Você acabou de definir perfeitamente seu relacionamento com a Renée em duas frases, sabia?
— “Relacionamento”...
— É uma palavra muito forte, já sei. Que tal “complicação”?
— Perfeito — ele riu.
— Depois você diz aos seus amigos curiosos que eu não dou mole pra caras envolvidos em rolos complicados — provoquei-o, entrando naquela brincadeirinha irritante.
arremessou um dos próprios ombros para trás, fingindo ter sido acertado no peito:
— Ah, não! Você acabou de destruir minhas chances...
— Mas pode avisar que tô solteira, tem um ou outro ali que parece interessante. Não quer me apresentar a eles?
— Porra, , assim você quer destruir meu coração — ele continuou na atuação dramática. — Achei que eu ia conseguir ao menos um encontro agora.
Era impossível segurar minha risada por mais tempo. também riu, daquele jeito adorável de sempre, o que só me fez derreter e quase me transformar numa poça no asfalto. Faltava pouco para eu perder a noção e dar em cima dele de verdade. Eu não conseguia sustentar a atuação por tanto tempo do mesmo jeito. Como atriz, eu merecia no máximo uma Framboesa de Ouro.
De repente, o peso de Allison em meu ombro começou a ficar insustentável. Quando tentei ajustar a postura, ela simplesmente perdeu o equilíbrio e caiu no chão feito uma geleca. Na mesma hora, eu e nos agachamos e tentamos ajudá-la.
— Ally? Ally, levanta! Levanta, pelo amor de Deus — puxei-a pelos braços, mas ela não respondia a absolutamente nenhum estímulo. Ficou ali, estirada naquele concreto frio e imundo. — Merda. Já era. Tá apagada. O que eu faço, ?!
— Calma. Ela é sua colega de quarto?
— Não… Mas o quarto dela também fica no Belva Hall.
— Segura isso — ele me entregou sua lata de cerveja. — Chama um táxi, nem eu nem você podemos dirigir.
passou um braço por baixo do pescoço de Ally, e o outro, por baixo de seus joelhos. Ai, meu Deus. Ele ia carregá-la.
Corri para a calçada com a missão de achar um telefone público. Por coincidência, havia um táxi deixando outros estudantes perto da boate, então fiz sinal para ele antes que fosse embora. Mesmo um pouco impaciente, o motorista resolveu me esperar.
Olhei para trás e procurei por . Não demorou até ele aparecer com Ally nos braços, caminhando em minha direção. Abri a porta traseira e ele colocou-a no banco com todo o cuidado. Depois, devolvi sua cerveja antes de também me sentar.
— Em que andar fica o quarto dela? — ele perguntou, fechando a porta para mim do lado de fora.
— No último.
— Acha que ela vai acordar até lá?
— Não sei… — olhei para a Bela Adormecida. Chances de voltar para a vida real? Só com um balde de água fria na cara. — Acho que não. Ally não costuma ser muito forte pra álcool.
Sem dizer mais uma palavra, abriu a porta do carro de novo, e, vendo que ele ia entrar, me arrastei para o meio do banco. Ele se sentou ao meu lado e demandou ao motorista para que dirigisse até o alojamento da Oyster.
— Ficou maluco? — olhei para seu perfil.
— Maluca seria você se subisse três lances de escada carregando uma pessoa — respondeu, já pegando seu cigarrinho de palha atrás da orelha e o isqueiro do bolso. — Cara, se importa se eu fumar?
O motorista deu seu aval com o olhar pelo espelho retrovisor, como se aquele táxi já não cheirasse a tabaco o suficiente.
— Tô dizendo de deixar seus amigos pra trás — expliquei.
— Foda-se eles. Eu deixei minha Chevy pra trás. Lógico que volto depois.
Sorri, achando graça. Por um momento, tinha me esquecido do abandono repentino da picape no estacionamento.
ocupava muito espaço naquela furreca de táxi pequeno, e eu estava espremida no meio do banco. Nossas pernas e ombros estavam totalmente colados. Ele soprava a fumaça pela janela aberta, enquanto eu só sentia o vento gélido da madrugada bater em meu rosto. Deitei a cabeça para trás e fechei os olhos.
— Dá pra acreditar que ainda temos aula amanhã? — murmurei.
— Você vai? — ele perguntou, num tom meio despretensioso.
— Esperei você dizer algo tipo, “relaxa, nem precisa ir” — resmunguei, e só ouvi uma risada sarcástica em resposta.
— Claro que não. Amanhã tem o exame final.
— O QUÊ?! — arregalei os olhos e quase dei um pulo para frente. — Tá falando sério?
— Tô fazendo hora com você, . Amanhã tem aula normal.
— Putz, como você é chato — dei um empurrão nele.
E o que recebo como resposta? Outra risada.
O resto do caminho foi silencioso, mas desnorteante. O perfume de estava uma delícia. Eu só queria deitar a cabeça no ombro dele, se pudesse… Pronto, eu já estava perdendo minha sanidade não só para os shots de vodca que tomei, mas para o sono também. Comecei a dar longos bocejos, que contagiaram até o motorista.
Quando finalmente chegamos ao Belva Hall, desceu primeiro e foi descartar a latinha e a bituca numa lixeira ali perto. Enquanto isso, separei um dinheiro e o arremessei no banco vazio da frente. Assim que desci, voltou ao táxi vasculhando a própria carteira.
— Não precisa, já paguei.
— Então fica com você — ele tentou me entregar uns vinte dólares.
— Não, , guarda isso pro seu táxi da volta.
Convencido, ele guardou as notas de novo. Em seguida, foi buscar Allison desacordada pela porta do outro lado. Com ela outra vez em seus braços, ele caminhou até a entrada do dormitório, e eu fui atrás. Subimos a escadaria que ficava no centro de todos os corredores até o terceiro andar. Indiquei o caminho à esquerda, e enfim paramos na porta do quarto de Ally. já estava meio ofegante.
— Tá trancado — falei baixo, enquanto tentava girar a maçaneta repetidas vezes. — Não abre!
— Vê se ela não tá carregando alguma chave — ele apontou com o queixo para a barriga dela, onde estava uma pequena bolsa tiracolo.
Abri o zíper e procurei pelo chaveiro dourado que eu já conhecia. Nada. Só moedas, maquiagens e alguns absorventes.
— Não tá aqui — falei, meio apressada. — Quer saber? Leva ela pro meu quarto. Você consegue?
só respirou fundo e ajustou a posição de Allison em seu colo. Então, guiei-o até o segundo andar e, logo depois, até a porta do meu quarto. Quando o abri, estava tudo escuro. Dei passagem para ele entrar.
— Pode colocá-la no sofá — sussurrei. — E fala baixo. Minha colega de quarto, Sadie, deve estar dormindo. Deve não, tenho certeza.
Ele fez o que pedi e eu fiquei observando Ally em seu terrível blackout; porém, finalmente deitada em um lugar seguro. Eu ia acabar cuidando de tudo como ela queria, então ninguém precisava se preocupar mais.
— Onde é o seu banheiro? — perguntou num sussurro. — Preciso mijar. Você liga?
— Quanta classe! — sussurrei de volta. — Não, não ligo. Vem aqui.
Levei-o até meu quarto de fato, onde ficava minha cama e todas as minhas coisas. Liguei o abajur na mesinha lateral e uma luz fosca iluminou o espaço ao redor. Apontei para o meu minúsculo banheiro, e só foi entrando. Resolvi esperá-lo perto da janela, observando a quietude do pátio e dos jardins lá fora.
Estranhamente, não ouvi o barulho da porta se fechando. Só ouvi o barulho da tampa do vaso sendo levantada e, em seguida, o som do xixi.
Meu Deus.
— Eu não ACREDITO que você deixou a porta aberta, ! — berrei e tapei os olhos, um pouco chocada demais com aquela intimidade.
— Ssshh! Você vai acordar a Sadie — ele disse, rindo à beça.
Depois, a descarga foi dada e pude ouvi-lo lavando as mãos. Me virei para olhar e ele apareceu no quarto, cheiroso do mesmo jeito e com um sorrisinho travesso nos lábios.
— Qual o problema? — questionou, despreocupado. Segundos depois, antes que eu pudesse responder, seus olhos foram direto para minha cômoda. — Ah, cara, você também coleciona esses cristais encantados?!
— Não é meu — comecei a rir —, Jenna me emprestou.
— Tinha que ser.
Ele pegou a ametista, que, até então, estava ali para impedir que minha bagunça de papéis voasse com o vento.
— Wow! Espera aí — ele devolveu a pedra no lugar e pegou um dos bilhetes na superfície. — Por que caralhos você tem o número do meu telefone?!
— Seu amiguinho, Alex, me passou misteriosamente naquele dia que estávamos na praia de Bricktown.
— Que dia?
— No final do ano passado, quando a gente se conheceu. Estávamos na traseira da sua Chevy, lembra?
— Ah, sei, sei. Lembrei, PJ me contou sobre isso — ele riu alto. — E você? Ligou pra ele?
— … Não — menti. Explicar a história toda agora seria difícil.
— Hmm… Então quer dizer que você tem meu telefone esse tempo todo e nunca pensou em me dar uma ligadinha? — seu tom era desafiador, carregado da mais pura astúcia.
Meu estômago deu uma cambalhota. A droga da vontade de ligar para ele nunca faltou mesmo. Mas prendi um sorriso e cerrei os olhos ao devolver a pergunta:
— Por que eu te ligaria?
Então, esticou o mindinho e o polegar e levou sua mão ao ouvido, fazendo de conta ser um telefone. Ao mesmo tempo, foi dando uns passos em minha direção.
— Alô? Alex Rose? — ele brincou, fingindo ser eu. — Não, quero falar com aquele amigo seu, gato pra caralho. Isso mesmo, o nome dele. Passa pra ele, por favor.
Comecei a dar risada, mas, antes que eu perdesse todas as estribeiras, rapidamente reagi. Também levei minha mão ao ouvido e fiz uma voz grossa, fingindo ser ele.
— Oi, . Pode falar. Hmm? O que eu tô fazendo agora? Ah… Sei lá, cara… — estiquei dois dedos da outra mão e simulei um cigarro invisível. — Fumando minha erva… Desenhando umas paisagens… E você?
Ele riu, mas logo voltou ao personagem:
— Tô dançando Backstreet Boys no meu quarto.
Estava difícil demais não rir de sua encenação.
— Preciso desligar, tenho que polir minha lata velha de trinta anos atrás — continuei falando grosso. — Me ligou por quê, hein, ?
— Cê quer saber o purquê? — ele me imitou. Aquele sotaque forçado me fez dar uma cotovelada bem forte em sua barriga, fazendo-o encolher o abdômen e gargalhar. — Calma, vou te falar. Presta bem atenção... Tá prestando?
— Tô... Fala logo.
— Te liguei porque tem uma coisa bem errada aqui, não é, ? Só eu tenho o seu número. Então, vou anotar o meu pra você agora. E vê se me liga — ele deu uma puta piscadinha sexy, e eu quis morrer.
desmanchou o telefone, parou na minha frente e estendeu a palma da mão para mim. Demorei alguns segundos para raciocinar direito até agir. Então, corri para a gaveta da cômoda e procurei desesperadamente por uma caneta. Assim que a achei, voltei para anotar meu telefone. No minuto que segurei sua mão e comecei a escrever, percebi o quão fodida eu estava – aquele deveria ser um toque completamente banal, mas estava fazendo meu coração dar um mortal para trás.
A mão dele era grande, firme, e a pele tão inacreditavelmente lisa e macia que não dava vontade de soltá-la nunca mais. No dorso, havia algumas poucas veias proeminentes. O dedo do meio, que passava longas horas apoiando o lápis, estava tipicamente calejado. Eu só torcia para que ele não notasse o sorrisinho inquieto que não saía do meu rosto.
— Pronto — tampei a caneta e, fingindo uma cara de confiante, levantei o pescoço para olhá-lo nos olhos.
levou a palma da mão à altura de seu nariz, observou todos aqueles números e me devolveu um olhar confuso.
— Isso é um cinco ou um quatro?
— Um quatro perfeitamente legível — respondi, brava.
Ele riu e enfiou as mãos nos bolsos da calça.
— Agora pode voltar pro seu rolê, porque eu vou dormir — comecei a empurrá-lo para a porta. Ele só ria. — É sério. Se quer que eu volte a frequentar suas aulas, preciso regular meu sono.
— Beleza. Te vejo amanhã — e saiu, fechando a porta.
Eu realmente não merecia isso. Fiquei uns tempos sem nem olhar na cara de para essa maldita queda sumir. Mas, depois de semanas, foi só ele aparecer uma única vez – uma única vez –, que ela voltou mais forte do que quando chegou.
Foi tão difícil pegar no sono durante a madrugada quanto acordar hoje de manhã. Adiantei meu despertador para não me atrasar, mas nem os cinco minutinhos extras que me eram permitidos eu consegui aproveitar. Pelo menos, dessa vez, tive tempo para disfarçar minhas olheiras com um pouco de maquiagem.
Ally continuava apagada no sofá, enrolada no meu edredom preferido que usei para cobri-la. Então, na mesinha de centro, deixei um bilhete embaixo de um copo d’água com um analgésico antes de sair. Eu era otária demais.
Nada pior do que chegar super cedo na aula. Só tinha uns três gatos pingados na sala e…
… . Sentado ao lado da minha mesa.
Fui até lá em passos de tartaruga e sentei em meu lugar. Ele estava concentrado em despejar uma lata de energético num copo de plástico cheio de café.
Fiquei assustada.
— Você vai morrer — avisei, espalhando meus materiais sobre a mesa.
— Bom dia pra você também — a voz rouca evidenciava o cansaço. — Chegou cedo por quê?
— Te pergunto o mesmo.
— Tô virado — ele respondeu, depois de finalmente dar vários goles naquela mistura mortífera.
— Sério?!
abriu os braços e mostrou que ainda estava vestindo a mesma roupa da noite anterior. Também pude reparar que a tinta da caneta com o número do meu telefone ainda sobrevivia na mão dele – um pouco apagada, mas, mesmo assim, legível.
— Então… — ele olhou para mim. — Quando você pretendia me contar sobre seu talento secreto?
— Que talento secreto? — pensei um pouco. — Ah. Bem… Não é algo que eu saio contando pras pessoas. Você tem que dar a sorte de me pegar dançando Backstreet Boys no quarto ou performando em boates medíocres tipo a de ontem.
— Cara… O Club USA é mesmo o inferno em oitenta metros quadrados, não é? — ele gesticulou exageradamente.
— Você ainda tá bêbado?!
— … — arrastou a voz mais ainda e levantou o copo, brindando com o nada. — Eu tô longe de responder por mim mesmo há muito tempo.
Dei uma risada. era louco.
Ele continuou:
— Já até peço desculpas adiantadas por qualquer merda que eu disser. É por isso que vim sentar aqui. É mais seguro.
— Mais seguro de quê?
— Eu posso falar merda com você.
Dei um leve sorriso de lado. Ele retribuiu, cúmplice.
A professora chegou em seu horário pontual. logo a chamou e lhe disse um monte de coisas, inclusive que me daria um reforço maior hoje pelas aulas que perdi. Incrivelmente, ela concordou com tudo e o deixou ficar ali ao meu lado. Depois, foi para o meio do círculo do resto da turma, como sempre.
— Agora eu vou ficar aqui, tentar tirar um cochilo… — foi se debruçando sobre sua mesa. — E você faz sua parte. Finge que tá aprendendo bastante.
Ri sozinha.
Ele realmente dormiu em alguns minutos. Nem a dose mortal de cafeína o salvou. E, dessa vez, meu tédio não tinha para onde correr, então fui obrigada pelas circunstâncias a fazer todos os exercícios da aula. Após um tempo, até treinei várias coisas que havia me ensinado. Era como se eu tivesse menos medo de errar quando ele não estava me observando. O problema era que eu sentia falta de suas gracinhas e deboches.
Se aquela aula já era um porre por si só, sem ele era pior ainda.
O final de semana passou tão rápido que eu nem vi. Domingo à noite, eu e Sadie já estávamos encolhidas em nosso sofá velho com dois baldes de pipoca, preparadas para assistirmos a qualquer um dos três filmes bestas de comédia romântica que alugamos na Blockbuster.
No meio da semana, recebi uma ligação de Allison um pouco envergonhada, porém agradecida, e um tanto quanto extasiada com a seguinte novidade: ela agora estava namorando. Disse que estava louca para que eu conhecesse o esplêndido sujeito. Mas isso não ia acontecer tão cedo, porque a verdade era que, sem os dramas e alfinetadas provenientes de sua companhia, eu estava em paz.
Eu e Jenna havíamos combinado de sair numa quarta-feira daquele fim de março para comermos alguma coisa. E a próxima data que eu estava ansiosa para chegar era o Spring Break. Se eu continuasse a entregar todos os trabalhos em dia e o tempo continuasse a correr assim, para mim estava ótimo.
E foi como aconteceu. Quando pisquei de novo, a noite de quarta já havia chegado. A única vantagem de dias atarefados e estressantes era que eles passavam rápido sem a gente perceber.
Me arrumei antes de ir até o quarto de Jenna; decidimos comer em um novo restaurante de comida chinesa que abriu no bairro das repúblicas. Mas, como a ideia também era flertar com uns atletas interessantes que iam comemorar vitória de jogo lá, combinamos de ir mais bonitinhas.
Bati na porta e, poucos segundos depois, ela se abriu.
— Oi, Jen–
— SSSHH! — ela levou o indicador à boca. Quando me deu passagem para entrar, apontou para os puffs, onde encontrei, em dois deles, dormindo de braços cruzados e o corpo estirado.
— O que ele tá fazendo aqui? — sussurrei.
— Veio buscar meu narguilé emprestado e acabou cochilando — ela sussurrou de volta. — Acho que ele não tem dormido direito esses dias.
Não era de hoje que dormia mal. Era também a primeira vez que eu não via seu rosto liso; os pelos de sua barba começavam a aparecer. Algo estranho devia estar acontecendo.
— Entra, pode se sentar em qualquer lugar — Jen fechou a porta atrás de si e foi caminhando até o banheiro. — Só vou trocar essa cor de batom porque odiei. Vou passar o rosa-violeta de sempre. Pode me esperar?
— Claro.
Em seguida, me sentei num puff sobrando de frente para . Um segundo depois, Jenna pôs a cabeça para fora da porta e chamou minha atenção com um aceno. Praticamente sem emitir som algum, ela falou tão baixo que tive que fazer uma leitura labial: “ terminou com Renée! Woohoo!”
E simplesmente meu queixo foi para o chão.
— SÉRIO?
Ela confirmou com um joinha e um sorriso de boca aberta. Depois, me pediu silêncio mais uma vez e se enfiou para dentro do banheiro de novo.
Já era. Fiz barulho o suficiente para acordá-lo. Sonolento, piscou os olhos várias vezes e, em seguida, os esfregou. Me amaldiçoei até a morte e fingi olhar para outro canto.
— Meu Deus… — ouvi-o resmungar, com a voz totalmente falha de sono. — Que horas– Porra, já são oito horas? JENNA! — ele finalmente me viu. Dei um sorrisinho meio culpado. — Oh. Oi, .
— Jenna está no banheiro.
— Ah… Claro — ele se ajeitou no puff.
Jen apareceu de novo e veio até nós, fuzilando com o olhar.
— Já acordou? Dormiu pouco — ela ironizou.
— Foi mal — ele se levantou e foi em passos lentos até a porta. — Vou deixar vocês agora.
— Está esquecendo uma coisa.
— O quê? — quando se virou para trás, sua amiga apontou para o narguilé. — Ah… Não vou precisar mais. Perdi a vontade.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Não adianta mudar de ideia depois, eu e vamos sair.
— Já falei, não vou usar. Vejo vocês outro dia. Divirtam-se — ele se despediu, foi embora e fechou a porta.
— Nossa — falei, surpresa. — Acho que nunca o vi assim–
— Não, espera. Ele sempre muda de ideia. Daqui a pouco vai voltar, você vai ver.
Esperamos um minuto. Dois. Dois e meio. Encabulada, Jenna foi até o olho mágico. Depois, abriu a porta e olhou para os dois lados do corredor.
— É… Ele foi embora mesmo — admitiu, atordoada. Então, fechou a porta de novo e voltou a se aproximar de mim. — , nem acredito que vou dizer isso, mas… acho que dessa vez foi pra valer.
— O quê? O término?
— Sim. Eles costumam voltar todas as vezes, mas acho que nunca chegou a esse ponto. Você viu a cara dele?!
— Vi... Ele tá bem abatido. Ele não ficou assim das outras vezes?
— Mais ou menos... Mas acho que agora nem se compara.
— Jura?
— Não dava tempo, um dia depois ou dois eles voltavam. Ai, meu Deus, será mesmo que agora é pra valer? Tomara que sim! Se for, eu vou ficar feliz demais! — ela bateu palmas e deu uns pulinhos.
— Tá engraçado você comemorando a desgraça alheia desse jeito.
— Não, sério... Você não faz a menor ideia de quantas coisas perdeu por causa dessa garota. Deixou de fazer alguma coisa que queria, deixou de falar, de participar, de ir a algum lugar — ela foi listando nos dedos, indignada. — Ela ficava em cima o dia inteiro, sugando tudo que ele tinha feito um pernilongo dos infernos. Isolando-o de tudo, querendo que ele vivesse em função dela, e pior, nunca retribuindo um pingo da consideração e carinho que ele tinha, sabe-se lá por quê. Simplesmente não existia afeto da parte dela, só… dependência. Quantas chantagens emocionais eu já vi Renée fazer com ele na minha frente... Na minha frente! Imagina quando os dois estavam sozinhos?
— Meu Deus… Chantagens emocionais?! Como assim?
— Você mesma viu um exemplo naquele dia, . Quando fomos ao Millard’s.
— Ah… — parei para me relembrar daquela cena. — Quando Renée quis ir embora do nada e deu um chilique, né?
— Sim. Mas você só presenciou uma pequena amostragem. Normalmente, ela apela de um jeito super exasperado sobre alguma coisa sem a menor importância. Tipo, quando esqueceu de passar a ela o dinheiro da erva pela primeira vez, Renée gritou várias vezes sobre como ele era burro, um imprestável estúpido por isso. Daí, quando ele pede para ela parar de gritar, ela diz coisas como, “não estou gritando!”, “não acredito que você tá me acusando desse jeito!”, “você tá tentando me fazer sentir culpada, é?”, entre tantas outras coisas sem o menor cabimento.
— Quer dizer então que ela faz a linha “vou colecionar tudo o que você disser e usar contra você mais tarde”...
— Exato. E sabe o que mais? — Jenna estava puta da vida. Ela não parava de disparar suas palavras, como se quisesse há muito tempo compartilhar com alguém aquelas indignações. — Escuta essa… Ela achava um absurdo quando não sentia ciúmes de suas próprias amigas. Amigas! Acredita nisso? Teve uma vez que Renée marcou de se encontrar com elas em Bricktown, sabe, num daqueles encontros só de garotas. Estávamos aqui mesmo no quarto quando ela virou para ele e perguntou, antes de sair, “como você tem coragem de não fazer nenhuma questão de me acompanhar?”. Juro. Por isso ela vivia indo em lugares que frequentava mesmo à contragosto, só pra, sei lá, vigiá-lo. E sempre esperava que ele fizesse o mesmo. Ela ficava possessa quando ele não sentia ciúmes em geral. Era como se Renée fosse um grande astro e precisasse orbitar sua vida. Como se os dois não pudessem ser… Sei lá… Indivíduos diferentes.
Espantada, precisei de alguns segundos antes de perguntar:
— … E como reagia a tudo isso?
— Ele pedia desculpas por tudo o tempo todo, . Pedia pra ela, pedia pra nós. Chegou um momento em que ele desistiu de argumentar, só queria parar de errar e ter paz. É por isso que ele se fodeu. Bonzinhos sempre se fodem, entende?
— Honestamente, eu tô chocada — falei, ainda tentando assimilar as coisas. — Eu vinha percebendo que ela convive com alguns problemas mais sérios, mas pensei que a situação eventualmente fosse melhorar.
— Eu também achava isso. Até passar quase um ano e nada ter mudado. Pelo contrário, só piorou com o tempo. Mas você conheceu numa época em que ele já estava mais consciente e pensando em se afastar.
— Sério? Na minha percepção, ele ainda é um apaixonado — refleti, me lembrando de todas as vezes que o olhar dele se transformava quando Renée estava por perto. Por outro lado, também era nítido como ele virava uma pessoa bem mais calada e retraída. — É, no fim das contas, você está certa. Um apaixonado sem esperanças, eu diria.
— É — ela revirou os olhos —, mas já teve esperanças até demais.
— vive dizendo por aí que a relação dos dois é complicada, que ela é complicada e tudo mais... Uma vez, me falou que ela era destruída por dentro. Acho que ele queria muito ajudá-la a superar todos esses traumas pessoais. Quase como se tivesse um instinto protetor com ela.
— É exatamente isso. Só que ela abusou dessa empatia. No fim, ninguém é capaz de amar por dois, não é mesmo? Meu Deus, como foi difícil para ele perceber isso. Ai, Universo… Tenho medo do que vai acontecer agora.
— Sabe de uma coisa? Eu acho que ele vai ficar bem, Jenna.
— Você acha?
— Sim. Se ele já vinha reconhecendo que estava num relacionamento que não era saudável, o passo que tomou agora de terminar foi o final de uma série de decisões que já estavam maduras.
— Hmm, pode ser. É verdade. Então você acha que ele tem maturado sobre isso esses dias?
— Um pouco mais do que só alguns dias, sim, provavelmente.
— Meu Deus — ela agarrou a própria cabeça. — Se isso for mesmo real, não podemos deixá-lo sozinho. Vou avisar os meninos.
— Não, Jen. É exatamente disso que ele precisa agora. Ficar sozinho — falei, com toda a certeza do mundo. Se eu precisei chorar horrores para o mar, num píer e ao som de Backstreet Boys, também merecia um espaço. — Sabe… Deixa ele respirar.
Ficamos as duas pensativas por um momento.
Apesar de enfim ter colocado um ponto final em seu dilema, no fundo eu ainda tinha minhas dúvidas. Afinal, sabia muito bem como doía a discrepância de gostar mais de uma pessoa do que ela de você.
E esquecer dessa pessoa não era nada fácil.
Ocupadas demais devorando dumplings e rolinhos primavera, eu e Jenna trocávamos poucas palavras. Além disso, o grupo de atletas berrava feito uns ogros numa mesa próxima.
— Lá está o idiota do Finnegan — comentei de boca cheia. — Que ideia de jerico foi essa a nossa?
— O time de futebol não é apenas composto por ele — ela me alertou. — Existem outros jogadores, lembre-se disso.
— Difícil é saber qual presta — bufei.
— É difícil saber se qualquer homem presta. Por isso, vamos arriscar.
— Sabe de uma coisa, eu tô quase desistindo — assim que terminei de falar, um deles xingou o outro de “bicha”. — Ok, já desisti.
— Ah, merda… — Jen massageou as próprias têmporas. — Ok, eu também desisto.
— Vamos pagar, ir embora e assistir Dawson’s Creek?
— Ótima ideia!
Assim que terminamos de comer, fomos para a fila do caixa. Eu estava sonhando com uma sobremesa quando enfim nos dirigimos à saída depois de tudo pago. Comprar M&M’s era uma ideia que estava na ponta da minha língua para compartilhar com Jenna; porém, um dos ogros estava barrando as portas de vidro. Ele se virou e pude ver que era Finnegan, vestindo sua jaqueta universitária de futebol.
Ele cruzou os braços e nos encarou.
— Ora, ora… Vocês não me são estranhas. Não conheço as duas gatinhas de algum lugar?
Eu estava pronta para responder, quando Jenna me interrompeu com uma delicadeza que era inexistente no meu ser:
— Hmm… Difícil saber, Roy. Você pode estar confundindo a gente com outras garotas. Existem tantas nesse lugar…
— Não, não — ele gesticulou com os dedos na nossa cara. — Sei que as duas são loucas por mim, isso não é segredo pra ninguém. Mas tem uma que é mais. E é a nervosinha. Só preciso saber qual de vocês é ela.
— Parabéns, Finnegan! O nível de prepotência tá tão alto que quase ofusca sua ignorância — respondi prontamente, quase batendo palmas. Jen deu uma pisada no meu pé, mas nem me fez cócegas, tamanho o meu ódio concentrado. — O dia que alguma mulher der bola pra você, é porque ela tá louca mesmo. Pena que só descobre depois.
Ele esbugalhou os olhos e abriu um sorriso de orelha a orelha.
— Ei, DeWolff! Chega aí! — berrou e deu acenos para chamar o cara.
Um brutamontes se aproximou, vestindo uma jaqueta idêntica à de Roy. Os cabelos pretos eram igualmente espetados com um gel melequento. Até os traços do rosto eram parecidos, mas o corpo era inexplicavelmente maior. Era como se ele tivesse a cabeça do Super-Homem no corpo do Arnold Schwarzenegger. Olhou para mim do jeito mais enigmático possível antes de me cumprimentar – não consegui decifrar nada. Mas de uma coisa eu tinha certeza...
Se um Finnegan incomoda muita gente, dois Finnegans incomodam muito mais.
Nate deu uma encarada mortal no amigo-clone e cruzou os braços. Fiquei um pouco surpresa, mas ainda precisava de explicações.
— O que você quer? — fui logo perguntando.
Ele deu um leve sorriso.
— Estou com alguns convites pra nossa próxima festa da fraternidade. Vai ser temática, Céu e Inferno. Acho que pode interessar… vocês duas.
O fortão nos entregou dois convites; porém, meu sexto sentido feminino dizia que ele tinha demorado seu olhar um pouco mais em mim.
Normalmente, as festas na mansão da Phi Kap eram fechadas para convidados durante o período letivo. Só em ocasiões especiais eram abertas, como foi o caso da virada do milênio. Eu tinha sido convidada algumas vezes no passado quando estava saindo com algum cara, então o convite era estendido à mim.
Era a primeira vez que um frat boy me convidava diretamente.
— Jura? Quando vai ser? — Jenna quis saber, animada.
— Na próxima sexta-feira, antes do Spring Break. Vamos inaugurá-lo.
— Perfeito! — ela comemorou. — Que horas?
— A partir das dez o álcool vai tá liberado — Finnegan explicou. Claro. Aqueles eventos sociais sempre giravam em torno do álcool. — Mas lembrem-se, estamos convidando só vocês, hein, gatinhas? Sem extensões.
— E lembrem-se também das fantasias. Elas serão importantes — o outro também avisou.
— Ah! E podem abusar da criatividade, beleza? Mas, se preferirem, também podem usar aquelas fantasias usuais. Vocês sabem, anjos e demônios, igual foi ano passado...
— Eu vou de Freddy Krueger, o Roy vai de Freddie Mercury. Já podem ter uma ideia, certo?
— Parece divertido! — Jen celebrou. — Até já sei de quem vou me fantasiar.
— Parece suspeito — retifiquei, encarando Finnegan de propósito.
Inesperadamente, Nate deu um sorriso um tanto quanto encantador e tentou me tranquilizar:
— Não há nada com o que se preocupar. Fiquei sabendo como esse idiota te tratou na festa do milênio... Garanto que isso não vai acontecer de novo. O cérebro desse aqui ainda tá em desenvolvimento — ele deu uns soquinhos na cabeça do Roy, que bufou e tentou se esquivar.
Se um braço com um punho daquele tamanho me desse soquinhos no cocuruto, eu teria me afundado no chão até o lençol freático. De qualquer forma, estava adorando saber que Finnegan era totalmente debochado em seu círculo de amizades. Eu estava começando a formular uma segunda opinião sobre Nate DeWolff.
— Além disso, esses convites são uma forma de... compensação pelo ocorrido — ele continuou.
Não tinha como aquilo soar mais falso, e Roy logo percebeu meu olhar de desconfiança:
— Na verdade, foi mal, beleza? Só estamos convidando vocês porque precisamos de umas gostosinhas a mais–
— Mulheres — Nate foi rápido em corrigi-lo. — Precisamos de mais mulheres. Equilíbrio de gênero entre os convidados, sabem como é.
— Tá bom. Iremos. Não é, ? Vamos, a festa Céu e Inferno é muito legal — Jenna deu uma cotovelada no meu braço. Olhei ainda incerta para ela. Quando percebeu meu desconforto, se virou para os dois de novo: — Olha, nós vamos, porém com algumas restrições. Tipo, de distância. Queremos que você — ela deu uma encarada mortal no Finnegan —, pegue suas gracinhas infantis e mande-as pra puta que pariu. Entendeu?
Ele ergueu os braços, meio culpado, embora ainda estivesse sorrindo da forma mais irritante possível. Mas senti orgulho de Jen ao ouvi-la dizer aquilo. Parecia até que havia lido meus pensamentos. O que a convivência não fazia?
— Ele definitivamente vai fazer isso — Nate abraçou-o pelos ombros, como se estivesse contendo o amigo. — Estou contente que aparecerão na festa, meninas. Se quiserem levar mais algumas amigas, falem comigo. Terei o prazer de convidá-las pessoalmente, como estou fazendo com vocês agora.
— Ok! — Jen confirmou. — Você ainda fica no prédio de Ciências Econômicas?
— Sim. Lá mesmo.
Depois de trocarem mais algumas palavras, o papo inusitado rapidamente se encerrou. Os dois voltaram para suas mesas, e eu e Jenna fomos embora do restaurante. Eu confiava nela, então acabei criando uma súbita disposição para ir àquela festa. Afinal de contas, também fiquei curiosa com o tema, e não necessariamente eu precisaria olhar na cara do Finnegan no meio daquela mansão enorme. Como Jenna mesma havia dito, existiam outros atletas.
Lá fora, fomos surpreendidas com um chuvisco e alguns relâmpagos, então apressamos o passo.
— Esse Nate DeWolff esteve sumido do futebol, né? — comentei. — Fazia uns tempos que eu não o via por aí.
— , chuchuzinho, você sabe quem é ele?
— Como assim? Claro que sei, acabamos de conversar com o cara.
— Lembra do atleta badalado que te falei que fornecia droga barata pra Renée? O fullback do time?
Parei de andar no mesmo segundo para processar aquela informação.
— É ele?! — perguntei.
— Sim.
— Mentira.
— Sério. Ele parou de jogar faz um tempo mesmo.
— Pois é, o que houve? Eu me lembro bem de quando ele esteve no auge, uns dois anos atrás.
— Ouvi dizer que se machucou, tanto que ficou várias e várias vezes no banco reserva até abandonar o futebol de vez. Deve ser por isso que agora está empenhado em sua nova carreira política. Dizem que ele faz parte do Clube de Debates e sempre se sai muito bem. Percebeu como ele fala bonito? — ela gesticulou com as mãos, erguendo o queixo e a ponta do nariz para imitá-lo. — Apesar disso, Nate ainda mantém a amizade firme e forte com os outros jogadores.
Voltamos a andar. Fiquei pensando em quantas fofocas imprevisíveis deviam estar circulando pela Oyster naquele exato momento, e eu nunca nem fiz a menor ideia de nada. Dava vontade de saber tudo sobre todas.
— Mas, escuta — continuei —, de onde surgiu essa relação entre o DeWolff e a Renée?
— Também só ouvi dizer. Mas acho que eles tiveram um casinho antes da Renée conhecer o . Depois que ela e Nate terminaram, continuaram amigos e mantiveram esse esquema da maconha — ela explicou. Então, pensou mais um pouco antes de revelar: — Acho que o DeWolff não vai muito com a cara do até hoje.
Puxei o ar de espanto.
— Será que ela trocou um pelo outro? — cogitei em voz alta. Aquilo era a definição da palavra babado.
— Não sei direito. detesta falar sobre isso, mas... se quer saber minha opinião, tudo indica que sim.
— Meu Deus. Acho que nunca tive dois caras aos meus pés ao mesmo tempo. Eu não devo ter nem metade dos feromônios que a Renée tem no corpo.
— Nem eu — Jenna riu. — Pelo menos, está tudo acabado! Quero dizer, assim espero!
Ela bateu palminhas como antes. Achei graça, pensando no estado miserável de enquanto sua amiga estava aqui, celebrando. Pelo menos, era legítimo que ela só queria o seu bem.
Dois dias depois, numa plena sexta-feira exaustiva, decidi dar uma pausa em todos os trabalhos que estavam sugando meus neurônios. Às vezes, quando eu me entregava ao processo criativo, conseguia esquecer até de mim mesma. Fui deitar na minha cama para pensar em nada, diminuir o ritmo e deixar a tarde passar sozinha ao menos uma vez.
Olhei para o lado e vi a ametista de Jenna sobre a cômoda. Alcancei a pedra e, debaixo dela, peguei o antigo bilhete de Alex com o número de seu telefone. O bendito número que, por acaso, também era o telefone de . E , bêbado, deu seu jeitinho peculiar de dizer que ia me ligar.
Ai, meu Deus… Minha cabeça dava voltas e voltas, mas… eu tinha que admitir. Caramba, como eu queria que ele realmente me ligasse. Se eu pudesse invocar o Gênio da Lâmpada agora mesmo, era isso que eu ia pedir como meu primeiro desejo: que me ligasse. Foda-se a paz mundial.
Talvez ele tivesse se esquecido. Talvez, tudo não havia passado de mais uma de suas gracinhas. Talvez o número que anotei na palma de sua mão já tivesse apagado, e ele o perdeu para sempre.
Amassei aquele pedacinho de papel e o guardei na gaveta. Não queria mais olhá-lo e nem cogitar eu mesma fazer a ligação. Não mesmo! Não era como se eu pudesse chamá-lo para sair. Até porque, naquele ponto, seria totalmente ridículo. Não, totalmente fora de cogitação.
Talvez eu só quisesse conversar. Eu gostava de bater um papo com ele. Gostava mesmo.
Todos aqueles pensamentos foram deletados da minha cabeça no final do dia, quando só precisei de um bom jantar e um bom filme com um galã de Hollywood para me distrair. Eu e Sadie até engatamos num papo interessante até de madrugada sobre o futuro das Destiny’s Child e a roupa polêmica da Lil Kim no VMA do ano passado. Ser uma enciclopédia de assuntos fúteis da cultura pop também tinha suas vantagens. Fui dormir com todas aquelas músicas pregadas em minha cabeça, os refrões se repetindo feito um disco arranhado.
Na manhã seguinte, num sábado, acordei com um barulho irritante. Sem abrir os olhos, tateei a mesinha de cabeceira até socar meu relógio despertador, mas o ruído repetitivo não parava. Fui obrigada a me sentar na cama – foi quando finalmente vi o telefone tocando.
Eram oito e meia. Só podia ser a minha mãe.
Pigarreei antes de atender, mas de nada adiantou. Minha voz estava um desastre.
— … Alô?
— Alô?
— Alô?
— Alô?
Por um breve momento letárgico, pensei que fosse engano. Já estava pronta para xingar até a última geração do infeliz que teve o desprazer de discar o número errado, quando senti que, na verdade, eu conhecia muito bem aquela voz do outro lado da linha.
Bufei, tentando disfarçar para mim mesma o sorriso que apareceu instantaneamente em meus lábios.
— Já até sei quem é.
— Quem?
— A pessoa que mais ama fazer hora com minha a cara desse planeta.
— Não, não é o . É o seu admirador secreto.
Comecei a rir.
— Então você finalmente me ligou.
— Estava esperando?
— Não mesmo — menti, óbvio. — Diz logo o que você quer.
— Vou dar um pulo em Oakwood agora.
— Isso é um convite?
— É chato ficar lá sem ouvir sua risada maluca.
Sorri outra vez, enterrando meu rosto no travesseiro de novo. Me segurei para não suspirar. Então, banquei a indignada:
— Meu Deus, , a essa hora da manhã?!
— Você precisa ver como a praia fica com a maré baixa. Tem que ser cedo.
— Me dá uns dez minutos…
— Relaxa, leve o tempo que precisar. Não vou te esperar agora, vou sair primeiro. Então é só me encontrar lá.
— No lugar de sempre?
— Sei lá. Ainda não decidi. Mas vai ser fácil me achar, prometo.
— Tá bom. Te vejo lá.
Eu não podia acreditar que me fez sair da cama às oito da manhã de um sábado. E ia passar o resto da minha vida sem acreditar nisso.
Meu indispensável discman tocava a terceira música do CD que eu havia escolhido para acompanhar todo o meu percurso de bicicleta naquela manhã.
If You Could Only See – Tonic
Eu já podia ouvir o som das ondas à distância enquanto pedalava. Estava chegando.
Aumentei a velocidade, até que o mar gelado, fosco e acinzentado de Oakwood tornou-se visível. Pedalando por mais alguns minutos pela trilha, finalmente estacionei a bicicleta e desci para a areia. Fiquei boba quando reparei que sua extensão não era mais a mesma do meu habitual – uma imensidão de areia branca e lisa dominava meu campo de visão, e ainda sem nenhum vestígio de poças ou crustáceos ameaçadores. Quase como um pálido deserto antes de alcançar a orla marítima.
Não havia ninguém por perto. Talvez estivesse atrasado.
Tirei os sapatos e andei pela areia com os pés descalços. Resolvi testar minha resistência ao frio e molhá-los um pouco na beira-mar, só para sentir um choque térmico básico e me despertar do sono naquela manhã.
A praia de Oakwood era um lugar ermo, mas de tirar o fôlego de tão bonita. Uma coisa que eu particularmente gostava era quando as ondas ficavam meio furiosas. Ondas calmas nunca foram tão relaxantes para mim. Engraçado como praias eram sempre associadas ao verão, mas esta sempre teria um aspecto invernal, independente da estação.
Voltei para o meio da areia e me sentei para admirar o mar tão atipicamente distante. Fechei os olhos e apreciei o cheirinho de maresia, deixando que o vento forte e barulhento embaraçasse os meus cabelos. Girei o pescoço para trás, vendo que, lá longe, as altas árvores delimitando a costa só completavam a paisagem perfeita. As copas finalmente voltavam a se encher de novas folhas verdes depois do longo inverno que passou.
De repente, vi uma figura saindo da floresta e caminhando em minha direção. Era , vestindo uma camiseta de malha branca, calças jeans e um tênis casual da Nike igualzinho ao do Forrest Gump, que ele nunca tirava do pé. Quando finalmente se aproximou, sentou-se ao meu lado e, lutando contra o vento, ele tentava acender um beck.
— Foi mal, fui vender erva pro senhor Wage — disse, depois de tragar. — Tem muito tempo que tá aqui?
— Não. Cheguei agora — voltei a olhar para frente e abracei meus joelhos. — Ahhh… Esse lugar é tão lindo.
— Sabia que você ia gostar.
virou o rosto para o outro lado, tentando soprar a fumaça para longe de mim. Mas nunca funcionava, o vento trazia tudo de volta, bagunçando também seu cabelo loiro para todos os lados. Era a primeira vez que eu o via de barba, mesmo ainda curta e por fazer.
Meu Deus… Se algum dia pensei que ele não poderia ficar ainda mais charmoso, eu estava redondamente enganada.
— Jenna me contou — murmurei, apoiando o queixo sobre meus braços. Acabei optando por não dizer mais nada. Supus que ele soubesse do que eu estava falando.
— Ela já comemorou bastante?
— Já. Sempre comemora em qualquer oportunidade, inclusive — ri, não poupando a honestidade ao responder. — Mas, no fundo, ela ainda acha que você... vai voltar atrás.
— Putz — ele deu uma risada sarcástica. — Ela já me perguntou sobre isso incontáveis vezes.
— Ela fica preocupada com você.
Uni todas as minhas forças e tentei ao máximo não sucumbir à tentação de olhar para bem ao meu lado.
Não deu certo.
Olhei-o discretamente de soslaio. De modo geral, ele estava um pouco melancólico hoje. Também observava o mar, apertando um pouco as pálpebras por causa da claridade. Suas mãos estavam soltas, os ombros tensionados. Ele não era do tipo que conseguia esconder seu humor, porque suas expressões denunciavam tudo.
— Não sei pra quê isso — falou, com o cigarro na boca. — Tô bem.
— Conta outra.
— É sério — ele deu uma risada frouxa.
— Faz dias que você vai com uma cara amarrada pras aulas de desenho. Não adianta disfarçar. Não para mim — ressaltei. — Esqueceu que acabei de passar pela mesma coisa?
— É diferente. No seu caso, você também era a pessoa que mais fazia questão, não era? A que queria mais, a que gostava mais, a que dava mais de si pra dar certo. Não era?
— Sim… Era.
— E foi você quem terminou?
— Não.
— Exatamente. Se a decisão tivesse partido de você, teria doído bem menos. Mas como partiu dele, te pegou despreparada. Então ninguém precisa se preocupar comigo, nem nada. A decisão partiu de mim.
— É… Faz sentido — falei, depois de ponderar. — Conseguiu o que queria, então? Que doesse menos?
— Ah… — ele riu baixo. — Agora você me pegou. Não mesmo, foi…
— Complicado?
— Complicado e dramático.
— Não foi amigável?
— Até que foi. No final, ambos concordamos que já tinha passado da hora de pararmos de tentar. Mas, antes, tive que ouvir as chantagens emocionais de sempre… Sabe como é.
— Não conseguiu se abrir e dizer todas aquelas coisas que queria?
— Mais ou menos. Disse tudo aquilo, só que com uma puta cautela.
— Entendi — foi minha vez de rir.
voltou a dar mais atenção ao seu baseado, enquanto eu refletia. Não estava exatamente convencida de que ele estava bem. Parecia tranquilo, mas tranquilidade era algo já intrínseco em sua personalidade.
… Ou era só porque estava chapado mesmo.
— A perspectiva dela sobre o mundo é totalmente diferente da minha — ele foi dizendo. — Rennie é do tipo que se apega aos próprios problemas, cultiva os próprios demônios. Vou te falar, demorou muito até eu perceber que viver assim foi uma escolha dela. Passei um bom tempo pensando que eu poderia salvá-la de alguma forma. Foi o meu pior erro. Eu acabei transformando os problemas dela em meus.
— Talvez você ainda esteja subestimando a Renée. Talvez ela seja mais capaz de resolver os próprios desafios do que você pensa.
— Não sei, não — ele deu um suspiro pesaroso. — Acho que é isso que ainda tá me matando.
— Tudo bem, você não sabe se ela é capaz de enfrentar todas essas coisas sozinha, mas… por favor, enfia uma coisa na sua cabeça. Ninguém é capaz de consertar ou salvar ninguém. Como meu avô costuma dizer — pigarreei —, “cê pode levá um cavalo prum rio, mas num pode fazê ele beber a água”.
Ele deu uma gargalhada alta. Então, continuei:
— Não adianta você ficar se torturando longe da Renée, com medo de ela não saber se virar sem você. Tá vendo como toda essa dependência foi destrutiva? Fez mal pra vocês dois.
— Ah, … É frustrante pra caralho. Dói. A ideia de ter se doado mais que a outra parte e toda essa merda unilateral dói — tragou, soprando a fumaça junto com outro suspiro pesado. — Desculpa falar sobre todas essas coisas tristes e pesadas.
— Não, tá tudo bem. Pode continuar, se precisar tirá-las daí de dentro — falei, dando um sorriso complacente. Ele sorriu de volta, depois de suspirar mais uma vez.
— É só que… Eu dei todas as soluções do mundo, mostrei o melhor caminho, dei tempo, dei am–
Ele mesmo se interrompeu. O que ia dizer? Amor?
Segundos depois, concluiu:
— Mas, ainda assim… Nada.
— Mas, mesmo assim, ainda acho que é ela quem deve decidir o que fazer com tudo isso — formei a segunda conclusão. — Ela vai ficar bem.
— Ela disse que não pode contar com ninguém da própria família, então criou coragem pra procurar por ajuda profissional. Porque só esse tipo de apoio que ela sempre recebe dos pais, o financeiro. É uma relação complicada, pra variar... Mas é um passo, pelo menos.
— Isso é ótimo, em certo ponto. Viu? Ela quer ficar bem.
— Mas não foi tão fácil. Rennie sempre se recusou a buscar qualquer tipo de ajuda externa. Contava só comigo como apoio emocional e me proibia de falar sobre isso com qualquer outra pessoa.
— ... Então você sentiu que precisava apoiá-la sozinho. Sei o que é isso.
— Exato. Ela esperava que eu fosse esse cara infalível de suporte infinito. Mas sempre procurando por “provas” de que eu não gostava dela o suficiente, sempre usando as horas que eu passava sem ela como “prova” de que eu não me importava. Entende a merda que eu fui me enfiar? Me senti esgotado pra caralho.
— Olha… Eu não tenho dúvidas de que você fez o seu melhor absoluto pela Renée. Mas ela tem que se ajudar e fazer isso por ela. Você não pode salvar o mundo, . E você não pode consertar os problemas das outras pessoas. A gente não é nenhum terapeuta treinado.
Um silêncio momentâneo reinou sobre nós. parou de fumar e jogou o corpo para trás, deitando-se sobre a areia e cobrindo os olhos com o antebraço. Eu continuei na mesma posição. Comecei a brincar com os grãos de areia, colhendo-os e depois deixando-os escorrer pelos meus dedos.
Até que resolvi quebrar a quietude:
— Podemos decretar que Oakwood é o seu lugar de pensar na vida?
— Acho que virou, não é? — ele riu outra vez.
— Acabaram seus momentos de sofrer em paz — brinquei. — Agora eu sempre vou saber onde te encontrar quando tudo estiver perdido.
— Porra… — mais uma risada. — Acabaram minhas chances de entrar numa fossa particular.
Também ri. Mas fiquei séria quando percebi que brincar de cavar a areia não era uma ideia tão legal assim. Eu não queria ter o infortúnio de me deparar com qualquer tipo de crustáceo que pudesse morar ali embaixo, mesmo minúsculo e inofensivo, não interessa. Limpei as mãos em meu macacão jeans e me virei para trás.
— , estava me lembrando… Você também tem um cachorro, não tem?
— Tenho.
— Qual o nome dele? — adorava criticar Sadie, mas, às vezes, eu era curiosa igual.
— É fêmea. Lassie.
— Lassie? Por causa da–
— Sim, por causa da série. Eu sei, eu sei. Sem julgamentos, por favor. Eu tinha treze anos.
— Não me diga que ela é uma Collie — comecei a rir.
— Na verdade, não. É uma vira-lata com mistura de Rottweiler que minha avó pegou pra ter de guarda na casa dela. Mas eu corrompi toda a criação, e ela virou a cadela mais dócil do mundo.
Sorri outra vez, ficando cada vez mais interessada naquela história.
— Então Lassie foi morar com você?
— O contrário. Eu fui morar com Lassie, na casa da minha avó lá em Boston. Anos depois, nos mudamos pra Nova York.
— Então você cresceu com sua avó?
— Sim. Fui criado por ela, praticamente.
— Ela ainda mora aqui?
— Sim. Ela e Lassie.
— Então seus pais ainda estão em Boston?
— Não. Quero dizer… sim. Minha mãe está. Uma hora dessas, o vento deve estar carregando meu pai pela Europa.
— Ah… Então eles… são separados? — perguntei, meio sem jeito.
— Aham — ele finalmente tirou o braço do rosto e olhou para mim. — Não se sinta mal. Minha mãe me teve com dezoito anos, . Eles não estão mais juntos desde que me entendo por gente.
— Sério?! Meu Deus… Então seu pai também tinha a mesma idade?
— Não a mesma idade, mas também era muito novo. Os dois eram uns jovens hippies inconsequentes, meio despirocados. Abominavam tradições, por isso nunca se casaram, mesmo quando meus avós os obrigaram. Até tentaram viver juntos quando nasci, mas não durou nada.
— E aí? Como foi? — continuei com o interrogatório. — Como eles eram?
— Minha mãe era muito… livre. Se parecia muito com Jenna, você ia adorá-la. Ela não aguentou a pressão de ser mãe solo e de trabalhar pra me sustentar ao mesmo tempo. Então, os dias que eu passava com minha avó pra não ficar sozinho em casa acabaram se tornando... permanentes. Naquela época, meus avós ainda moravam em Massachusetts, num bairro próximo.
— E o seu pai?
— Meu pai sempre quis viajar o mundo. Viajar como voluntário em causas sociais e ganhar a vida como artista sem endereço. Acho que minha chegada o sufocou muito rápido. Ele acabou indo embora e foi seguir os próprios sonhos.
— Nossa… Então vocês perderam contato?
— Na verdade, não. Mesmo distante, ele sempre deu um jeito de me ligar, enviar presentes e me visitar de vez em quando. Ele nunca teve muito dinheiro no bolso pra contribuir, mas, de todas as migalhas que juntou, enviou a maior parte pra minha mãe. Foi ele quem me ensinou a desenhar e a ler histórias em quadrinhos.
Enquanto falava dos pais, sorria do jeito mais adorável do mundo. Um sorriso afetuoso e contagiante que fazia suas bochechas apertarem seus olhos. Parecia ter um carinho muito grande por toda sua família, apesar de tudo.
— Hmm… — cocei o queixo, como se tivesse concluído uma investigação. — Então agora eu sei sobre a origem da sua veia artística.
— Pode ser — ele riu.
Ainda tentando entender a ordem dos fatos, perguntei:
— Então, quando você veio pra Nova York?
— Durante o ensino médio.
— A “época complicada” — completei.
— Sim — ele deu uma leve risada em tom de auto-piedade. — Foi uma fase de várias... transições. Foi quando minha avó ficou viúva, se aposentou, resolveu sair de Massachussetts e se mudar pra cá, num bairro e numa casa melhor, pra ficar mais perto de suas irmãs. Eu já estava tão acostumado que me mudar com ela foi algo muito natural. Nunca tive uma vida tão empolgante assim em Boston. Mas tomei uma decisão difícil. Deixei minha ex-namorada lá e só nos encontramos de novo quando voltei pra estudar Computação. Deixei-a pela segunda vez quando vim pra Oyster — confessou, a voz ficando cada vez mais fraca, e a expressão cada vez mais cheia de culpa. — Fiquei sem saber o que fazer por muito tempo. Ou pra onde ir.
— Por que não foi morar com sua mãe em Massachussetts?
— Nem considerei essa possibilidade. Ela tinha acabado de se casar com meu padrasto e estava grávida da minha irmã. Não quis me intrometer na nova vida deles.
— Espera, o quê?! — fiz as contas na minha cabeça, e isso demorou mais do que alguns segundos. — Você tem uma irmãzinha?! Quantos anos ela tem?
— Ah… — agora, ele quem havia parado para fazer o cálculo mental. — Uns nove, dez. Por aí.
— Meu Deus. São muitos anos de diferença. Como é isso?
— É mesmo estranho — ele riu. — Mas já me acostumei. Ela é uma pirralhinha inteligente. Às vezes nem parece que é tão nova. Você também tem irmãos?
— Hmm? Ah, sim... — respondi, super avoada, ainda tentando superar o fato de ter uma irmãzinha. — Tenho dois.
— Você é a caçula? — ele continuou a perguntar, voltando a se sentar ao meu lado. Parecia mesmo interessado, o que me fez relaxar um pouco. Achei que eu fosse a única que se entusiasmava em ouvir as histórias dos outros.
— Sou a do meio. Minha irmã mais velha acabou de se casar e foi morar em Baton Rouge. Meu irmão mais novo acabou de entrar na Universidade de Nova Orleans.
— E por que você veio parar aqui?
— Sempre detestei morar numa cidade tão pequena. Tinha sonhos grandes demais, e só me mudar pra capital, como minha irmã fez, não me deixaria satisfeita por tanto tempo.
— Sente falta de lá? Além dos seus cachorros?
— Sim, além de Fozzie e Gonzo — dei um sorrisinho. Gostava que cachorros eram tão importantes para quanto para mim. — Sinto saudade de todos da minha família. Sou muito ligada a eles. Inclusive, essa foi uma questão que me fez hesitar bastante antes de vir estudar em Nova York. Mas eles me apoiaram e sempre entenderam minha ambição, então eu vim.
— Eu sei. Também já fui muito ligado assim. Só posso imaginar o quanto deve ter sido difícil.
— Foi fácil. Sou uma aventureira, . Esqueceu? Gosto de explorar lugares desconhecidos, de preferência com uma lanterna.
Ele riu.
— Nunca sentiu vontade de voltar? Nunca se arrependeu?
— Não mesmo — respondi prontamente.
— Nem encontrou ácaros-gigantes-do-mar no meio do caminho?
— Encontrei, vários — respondi à sua metáfora com uma risada. — Mas vou me acostumando. Quero dizer, vou os enfrentando porque quero mesmo ficar. Acho que aqui é o meu lugar, sabe.
— Não sei se “tenho” um lugar. Às vezes, acho que estou só indo. Perdido no rumo do imprevisto. Já se sentiu assim?
— É, sim… Eu também. Me sinto assim desde que cheguei aqui — desabafei, ganhando maior atenção dele. — Antes, meu maior objetivo era estar aqui. Agora que eu estou… não tenho mais um próximo plano. Só ficar e também ser levada pelo rumo do imprevisto. Tirar o melhor disso tudo e seguir, eu acho.
— Caramba, é bom ouvir isso. Parece que todos à minha volta estão cheios de planos, de A a Z. E eu tô aqui, só… sem nem saber o que vai acontecer amanhã. E sabe de uma coisa? Prefiro assim.
— Talvez você tenha o instinto nômade do seu pai escondido aí dentro — falei, recebendo uma encarada um tanto quanto demorada e séria dele. — Que foi?
— Não tenho certeza se gosto disso.
— Talvez não goste porque sabe que é verdade.
olhou para baixo e deu um minúsculo sorriso secreto, me fazendo pensar que eu havia acabado de criar uma suposição verídica sobre ele. Observei mais atentamente os traços de seu rosto – o olhar mais doce, o jeito mais desencanado. Talvez, no fundo, ele reprovava um pouco a atitude do pai de deixá-lo quando criança, porque gostava muito dele; só para, no futuro, perceber que era desprendido de tudo da mesma forma.
Sem que eu percebesse, acabei ficando totalmente imersa naquele momento, então aproveitei para apreciá-lo. Uma circunstância sem relógios, uma conversa sem pretensões. Um momento descomplicado, como diria . Um instante sem destino.
Era revigorante passar o tempo assim, entregue ao acaso, e ainda poder dividi-lo com alguém. Eu sentia que poderíamos conversar sobre qualquer assunto. era capaz de me arrancar um riso fácil de qualquer piada idiota. E eu gostava como naturalmente podíamos nos abrir um com o outro, sem preocupações, sem medo de julgamentos.
Talvez ele não percebesse, mas também era livre e prático como sua mãe. Eu invejava pessoas assim. Na verdade, admirava. Eu tinha um monte de inseguranças e uma lista infinita de cobranças internas que me impediam de avançar, às vezes. Era apegada demais, às pessoas, às memórias. parecia desatado de qualquer tipo de obstáculo. Sua vida simplesmente estava em suas mãos – justo o que eu vinha buscando em Nova York. Era como se ele estivesse pronto para pegar sua caminhonete velha, sair pela estrada e atravessar o país a qualquer hora do dia ou da noite.
Apesar de tudo, ele demonstrava se importar bastante com os outros. Mas não era o tipo de pessoa que precisava de um propósito na vida para ser feliz.
Um momento poderia valer muito mais.
— É a primeira vez mesmo que você tá indo numa festa dessa? — Jenna me perguntou pela décima vez, enquanto fechava o zíper de sua calça boca-de-sino alaranjada.
— Sim — respondi, pela décima vez. — Posso saber o que ela tem de tão especial?
— Não, vai perder a graça! É mais legal se você descobrir quando chegar lá, como eu também descobri quando fui pela primeira vez — agora ela amarrava uma faixa tribal no meio da testa. — Você vai mesmo de Princesa Diana?
— Não, desisti. Vou de Sabrina.
— Sabrina?
— É, Sabrina Spellman, Aprendiz de Feiticeira — levantei uma sobrancelha, como se fosse a explicação mais óbvia que eu já tinha dado para alguém na vida.
— Ah, sim! Claro — ela captou, mas parou para pensar um pouco. — Hmm… Essa mudança de personagem pode alterar todo o rumo da sua noite.
— O que quer dizer com isso?
— Sabrina não pode ir para o céu, ela pratica bruxaria. John Lennon, sim. John Lennon está para além dos portões do paraíso nesse exato momento.
Depois de também pensar sobre aquela possível pista, deduzi:
— Quer dizer então que nossa fantasia vai determinar por onde podemos transitar ou algo assim?
— Hmm, não sei… — Jen se fez de desentendida, mas é claro que ela sabia muito bem a resposta. Estava se divertindo demais com todo aquele suspense. Ela sabia que me matava de curiosidade.
— Tá legal, desisto — falei, derrotada. — Vou me trocar pra gente sair logo.
Caminhei até meu armário, e de lá peguei o traje que eu havia separado de última hora: um vestido tubinho preto em veludo, gargantilha e botas pretas. Isso que eu chamava de improviso fashion-econômico, porque eu também não tinha um chapéu.
Assim que terminei de me vestir, a porta do meu quarto se abriu de repente. Sadie adentrou o cômodo depressa, sem pedir permissão.
— , posso falar com você? — ela parecia excepcionalmente ansiosa com alguma coisa.
Aproximei-me dela, sabendo que o assunto era, muito provavelmente, particular. Jen ainda se vestia em frente ao espelho, mais distante.
— Pode falar, Sadie.
— Jenna vai dormir aqui hoje quando vocês voltarem da festa?
— Esse é o plano.
— Erm… É que… Tem como você dormir no quarto dela ao invés de ela dormir aqui?
— Por quê?
— Erm… Eu… Eu…
— O que foi? Acha que ela vai incomodar tanto assim?
— Não! Não mesmo, quero dizer… É que…
Inclinei o queixo para baixo, olhando para ela com mais atenção. Tentei descodificar todo aquele receio e a repentina falta de palavras, mas não consegui nem formular um palpite. Tantas coisas poderiam estar atormentando Sadie… Eu não estava a fim de entrar num jogo de adivinhação que poderia me custar a noite inteira.
— Desembucha — apressei-a.
— Eu vou... transar.
— Você vai o quê? Não ouvi nada.
— Ah… Deixa pra lá.
— Não, Sadie, pelo amor de Deus. Fale tudo de uma vez!
— EU VOU TRANSAR! VOU TRANSAR COM UM CARA HOJE À NOITE!
Meu Deus do céu. Até dei um salto para trás. Levei uma mão ao peito, senti meu coração também dar um pulo e logo constatei meu choque completo. Aos poucos, meus lábios foram abrindo um sorriso que não parava de crescer.
— Jura?! Com quem? — perguntei, empolgada.
— Com um cara que estou saindo há… apenas algumas semanas. Por favor, não me julgue.
— Não vou. Não há mal nenhum nisso.
— Mas você e Allison viviam dizendo que–
— Eu sei, eu sei. Não tenho dito esse tipo de coisa mais. Era uma grande besteira e hipocrisia nossa– Aliás, minha — confessei individualmente, sabendo que Ally não compartilhava tanto assim daquela opinião.
— Sério? Por quê?
— Hmm. Baques cumulativos da vida — dei de ombros, sem a mínima vontade de desviar do assunto principal. — Depois podemos conversar sobre isso. Prossiga.
— Então… Sei que dormimos em cômodos diferentes, mas eu realmente gostaria de uma privacidade exclusiva hoje à noite, se é que me entende. Quero dizer, claro que não entende, eu sei que você já fez isso várias vezes comigo aqui, do outro lado da parede. Mas você me entendeu?
— Ok, Sadie, relaxa. Eu durmo no quarto da Jenna hoje, não é nenhum sacrifício. Pode ter sua noite de prazeres à vontade — falei, ainda sorrindo, deixando-a vermelhinha. — Estou animada por você. Faz tempos que não te vejo saindo com um cara que te vira de cabeça pra baixo assim. Tô ansiosa pra conhecê-lo!
— Você vai, um dia. Quem sabe — Sadie sorriu, tímida e radiante. — Obrigada, .
Ela se afastou e fechou a porta novamente, deixando Jenna e eu de volta às nossas fantasias.
— Você ouviu, né? — me certifiquei, e Jen respondeu que sim em meio a uma risada. — Tem algum problema se eu for dormir no seu quarto hoje?
— Problema nenhum, chuchu! Já entendi tudo — disse ela, assim que terminou de ajeitar seus óculos de armação redonda com lentes roxas. — Como estou?
— Jenna Lennon, você está pronta pra manifestação contra a Guerra do Vietnã.
— Fora Nixon! — ela fez um sinal da paz com os dedos. Comecei a rir.
— E eu? Estou uma bruxinha adolescente o suficiente?
— Só falta o gato preto.
— É mesmo… — suspirei. — Salem é simplesmente o melhor da série. Quem sabe assim as pessoas me reconheceriam. Mas é impossível, lógico.
— Espera, já sei! Tenho algo perfeito que pode te servir — Jen revirou a bagunça de sua mochila até tirar de lá uma corrente prateada.
Na verdade, era um lindo colar com um pingente de meia-lua. Ela dependurou-o em meu pescoço e empurrou minhas costas até que eu parasse de frente para o espelho. Em seguida, juntou-se ao meu lado no reflexo.
— Ficou mesmo perfeito — falei, agradecida, segurando o pingente entre os dedos. — Sabe de uma coisa, Jen? Já quero ir de Sailor Moon na próxima festa à fantasia.
— Ótima ideia! Eu iria de Sailor Mars pra te acompanhar.
— Allison tá mais pra Sailor Mars. Você é a própria Sailor Venus.
— É verdade... Nossa, você é boa nisso.
— Você deveria tentar classificar suas amigas como Sailors. É mais divertido e eficaz do que pela astrologia tradicional — arrisquei, dando uma encarada nela com um sorrisinho malicioso.
— Boa tentativa, — Jenna riu. — Mas continuarei com meu zodíaco ocidental.
Logo acima da grande porta vermelha da mansão, havia uma faixa com os seguintes dizeres pintados à mão: “ΦΚβ – BEM-VINDOS AO PURGATÓRIO!”.
Comecei a dar passos mais apressados pela grama e puxei Jenna, até passarmos pelas clássicas colunas e subirmos para o alpendre. Eu já estava sendo consumida pela minha curiosidade e pelo anseio de acabar com todo aquele mistério. Assim que colocamos nossos pés para dentro do hall de entrada, tudo se explicou: na ponta do corrimão da escada que subia para o segundo andar, pregada com uma fita-crepe, havia uma folha A4 que dizia “CÉU” em Comic Sans. E, no lance de escada que descia, outra folha que dizia “INEFRNO”.
Claro.
Não seria a Phi Kap sem um assassinato ortográfico.
Um monte de estudantes circulava pelo hall, todos fantasiados de personagens variados, desde vilões emblemáticos de filmes de terror até outras celebridades que já foram mortas. Subindo as escadas, havia um careca fantasiado de Tupac com sua bandana amarrada na testa. Logo atrás dele, uma garota com uma porção de flores no topo do coque alto, vestida de Frida Kahlo. Só tive que segurar uma gargalhada quando vi um sujeito que descia os degraus para o Inferno vestido de Richard Nixon. Jenna ia adorar encontrá-lo.
A maioria das pessoas usava trajes genéricos, como anjos e demônios. Então era fácil avistar as que se esforçaram para se parecerem com personalidades famosas, como a loira que brotou no corredor vestida de Marilyn Monroe, de mãos dadas com um Elvis Presley.
— Viu? Não é legal?! — Jenna berrou em meu ouvido.
— Sim, é divertido! — respondi, também elevando a voz sobre os ruídos de tanta gente conversando e festejando à nossa volta. — Vamos ter que ficar separadas? Não posso visitar o Céu com você?
— Existem regras. Só podemos transitar livremente pelo Purgatório, que é neste pavimento. Eu não posso ir ao porão e você não pode ir ao segundo andar. A galera costuma respeitar essa dinâmica sem muitas confusões, afinal, ela é o cerne de toda a brincadeira. O Céu e o Inferno têm drinks temáticos. Temos que experimentar!
— Jura? O que tem no Céu, então, se não vou poder subir?
— Costuma ter Piña Colada e Margarita. Aqui no Purgatório tem a cerveja barata de sempre nos barris. E o Inferno com certeza vai ter Bloody Mary.
— Interessante…
— O que acha de irmos cada uma pro seu destino, só pra você conhecer, e daqui uma hora nos encontramos de novo?
— Por mim, tudo bem — assenti. Não sei como eu ia me virar sem Jenna, mas estava ansiosa para dar uma checada no porão. — A gente se encontra perto da cozinha depois, pode ser?
— Combinado!
Separamos nossos caminhos e cada uma foi para o seu devido andar.
Assim que desci as escadas, dei de cara com um ambiente escuro, rústico e cavernoso, todo iluminado por lâmpadas LED vermelhas. Algumas lava lamps de diversas cores deixavam o lugar ainda mais legal e alucinante. Não pude deixar de notar os papéis higiênicos lançados por todos os cantos, atravessando o teto rebaixado e as paredes amadeiradas. Havia ainda uma fumaça artificial pairando sobre o chão, que, provavelmente, o DJ soltava de tempos em tempos.
Ironicamente, ali embaixo fazia bem mais frio que o normal. Quem diria que aquela era a sensação de pisar num inferno congelado?
Com a desculpa para me aquecer, já fui me aproximando do bar – uma bancada curva de madeira cheia de drinks prontos e garrafas de álcool caríssimas. Bem no meio, uma larga vasilha de vidro continha um ponche de frutas vermelhas que fez meus olhos brilharem. Logo peguei um copo e me servi com duas conchas cheias.
— Hmm... Então a nervosinha veio mesmo — a voz de Finnegan surgiu sorrateira atrás de mim. — Cadê aquela sua amiga gata e riponga?
Olhei para trás e vi Roy vestido de Freddie Mercury. Ele usava calças e regata brancas, uma jaqueta amarela vibrante e um bigodinho falso. Quase cuspi tentando segurar o riso.
— Ela tá lá no Céu — respondi. — E você, não deveria estar lá também?
— Como sou o rei dessa porra toda — do nada, ele colocou uma coroa de pelúcia na cabeça —, posso transitar por onde eu quero. Estou aqui embaixo checando o perímetro, sacou?
— Tá, e achou alguma coisa que presta por aqui?
De repente, ele puxou meu braço, meteu a boca em meu ouvido e forçou uma voz bem grave ao falar:
— Achei você, bruxinha gostosa.
— Dá licença, por favor — empurrei-o com a mesma força que ele tinha me puxado. — Não sabe o que é espaço pessoal?!
— Pô, você é mesmo nervosa.
— E você tem uma sobrecarga de inconveniência toda vez que nos falamos. Já percebeu?
Ele riu, convencido. Eu sabia que Finnegan só estava me tratando assim porque tinha certeza absoluta que eu era louca por ele. Meu pavio curto não passava de uma piada para aquele idiota. Eu pensava que a culpa era toda minha, lógico, porque tinha deixado transparecer demais na última festa. Mas nada disso poderia justificar o fato de Roy ter me transformado em mais um brinquedinho de cultivar seu ego frágil, assim como metade das mulheres daquele Campus. A beleza desse cara simplesmente não compensava.
— Roy, você está incomodando as garotas de novo? — outra voz masculina surgiu no pedaço, e logo Nate DeWolff apareceu para se juntar à conversa. — Esse não foi o combinado, lembra?
— Foi mal — Finnegan respondeu como um soldadinho de chumbo. Depois, deu dois tapas no ombro do amigo-clone. — Vou voltar pro Céu. The show must go on!
Fiquei observando-o se afastar, dando passos dançantes iguais aos de seu personagem. Enquanto isso, virei meu ponche goela abaixo. Estava tão docinho e saboroso que nem percebi quando mais da metade do copo já havia se esvaziado.
Quando Nate deu um passo a mais em minha direção, reparei melhor em sua figura. Ele era, provavelmente, o Freddy Krueger mais sarado que eu já tinha visto em toda a minha vida. Usava um suéter listrado e apertado que marcava todos os seus músculos enormes e os gominhos de seu abdômen trincado.
— Desculpe por isso — ele levantou brevemente o chapéu preto que compunha sua fantasia.
— Não se preocupe. Sei me virar — falei, um pouco seca.
— Sabe mesmo? — ele perguntou, entretido, e eu quase podia jurar que seu sorriso era ligeiramente pervertido. Mas foi bem gentil ao garantir: — Fique à vontade, . Roy não vai voltar ao Inferno tão cedo. Não precisa se preocupar com esse puto.
Desde quando Nate DeWolff tinha decorado o meu nome?
— Vocês são tão diferentes — comentei, enquanto enchia meu segundo copo. — Tem muito tempo que são amigos?
— Sim, desde a época que jogávamos juntos. Hoje dou aulas particulares de Direito Econômico pra ele.
— Hmm. E por que você saiu do time, mesmo?
— Rompi o ligamento dos meus dois joelhos enquanto treinava. Três vezes o direito, duas o esquerdo. Demorei muito pra iniciar o tratamento e, consequentemente, meu tempo de recuperação foi maior. Acabei não vendo mais sentido em continuar. Além do mais, não sinto tanta falta assim de jogar. Hoje, prefiro assistir.
— Você não joga, mas vai à academia todos os dias existentes do calendário, né? — disparei. Era pra ter sido só um pensamento, mas, quando vi, já tinha saído pela minha boca.
— Sim, religiosamente — Nate deu uma risada alta. — Você não malha?
— Nem ferrando — respondi, e ele riu outra vez. — Eu danço.
— Sério?!
— Sim, é muito mais divertido. Você deveria testar.
— Olha, até que eu danço bem, sabia?
— Todo cara que diz isso dança mal — deixei escapar um pensamento de novo. Porém, para a minha sorte, DeWolff não parava de sorrir da forma mais galanteadora e carismática possível. Inclusive, parecia apreciar bastante as minhas cortadas.
— Então você fica me devendo uma dança pra me ensinar. O que acha?
Dei uma risada descontrolada quando imaginei a cena que ele havia acabado de propor. Mas fui educada ao responder:
— Tudo bem, eu te ensino.
Para minha surpresa, tivemos mais alguns bons minutos agradáveis de conversinha mole. Porém, não demorei muito até dar o fora dali. Era seguro dizer que flertar nunca foi o meu forte, e eu nunca conseguia levar tão a sério esse tipo de papo por tanto tempo. Com um homem desse então, eu estava oficialmente perdida.
Meia hora já havia se passado quando, em outro canto, avistei algumas garotas que eu conhecia do meu curso sentadas num largo sofá de couro marrom. Embora eu não quisesse forçar nenhuma socialização, não consegui enxergar outra alternativa naquela circunstância. Tive que admitir: sem Jenna, eu me sentia um pouco deslocada. Sem sua companhia, o tempo passava mais devagar de um jeito quase insuportável em grandes festas como aquela.
Contei ansiosamente a próxima meia hora que faltava, perguntando de dez em dez minutos que horas eram para a garota que usava um relógio de pulso ao meu lado. Ela devia estar com uma baita vontade de me dar um soco.
As meninas engataram num assunto sobre qual tipo de anticoncepcional funcionava melhor para cada uma delas. Depois de dar a minha rápida opinião, entrei num transe fodido enquanto bebia meu terceiro copo de ponche. Só fui desperta quando uma delas cutucou meu braço umas quatro vezes, dizendo que já passava da meia-noite há tempos.
Completamente atrasada – mas sem abandonar minha bebida –, saí correndo em direção à escada e finalmente subi os degraus. O hall estava muito mais cheio do que antes. Entupido de gente. Ali, pelo menos, a música estava melhor.
Better Off Alone – Alice DeeJay
Atravessei o mar de pessoas até me aproximar da cozinha. Não havia um sinal sequer de Jenna. Uma garota incrivelmente alta, com o cabelo loiro de sol e vestindo todas as cores do arco-íris? Não, Jen não era uma pessoa tão difícil de encontrar, mesmo num lugar lotado. Na ponta dos pés, tentei procurar por ao menos um rosto conhecido.
Nada.
Eventualmente, desisti. Resolvi perambular pela longa extensão de bancadas de mármore daquela cozinha luxuosa, que mais parecia um salão. Para minha felicidade, achei um saco de batatas chips tamanho família dando sopa na ilha central. Fui até lá e comecei a comer.
Logo à minha frente estava a geladeira, e foi praticamente impossível não reparar no cara parado ali, de costas para mim, que mantinha a porta aberta por tempo até demais. Parecia estar procurando por alguma coisa. Ele usava roupas normais; jeans escuro e uma camiseta preta. O detalhe era que, bem em sua nuca, estava presa uma máscara do serial killer do filme Pânico – como se ele tivesse acabado de tirá-la do rosto e empurrado-a para trás.
Dei uns passinhos para o lado, tentando reconhecê-lo. Impressionante como tinha caras que eram bonitos até de costas, e esse era um deles.
Quando vi o perfil de seu rosto analisando meticulosamente todos os rótulos daquelas latas de cerveja, até parei de mastigar. E sorri do jeito mais idiota que eu era capaz, claro. Agora sim eu estava no céu.
— — chamei-o, e ele se virou para me olhar com os olhos arregalados de surpresa. Sua barba estava um pouco maior, e ele estava tão lindo que minha capacidade de raciocínio ficou ainda mais comprometida. — Não é que estamos aqui de novo, nos esbarrando numa festa da fraternidade?
Ele também sorriu, enquanto finalmente fechava a porta da geladeira e, para meu completo choque, tirava de lá uma garrafinha de água.
— Pois é — respondeu. — Aqui estamos nós na mansão de novo.
— E por que veio com a fantasia mais sem graça do mundo? No caso, você?
Ele gargalhou.
— Porque eu não tava nem um pouco animado. Não vou ficar muito, . Pra falar a verdade, tô indo embora daqui a pouco.
— Como assim? Chegou e já vai embora? — ergui uma sobrancelha, encarando o elástico fino da máscara presa de qualquer jeito em seu pescoço. — Se deu ao trabalho por quê, então, Ghostface?
— Porque… — ele simplesmente deu de ombros. — Porque faz parte, Sabrina.
Meu rosto se iluminou quando ele reconheceu minha fantasia.
— Achei que, no mínimo, veria você vestido de Kurt Cobain ou alguém do tipo.
— Hmm, era uma boa ideia. Devia ter pensado nisso antes.
Voltei a comer minhas batatinhas e dei uma rápida olhada ao redor da cozinha pela milésima vez, ainda esperando encontrar Jenna perdida por ali. Até que, de relance, vi Renée vestida de Elvira do outro lado da sala de jantar, conversando animada com algumas garotas de sua idade.
— Oooooh — cantarolei, ligando todos os pontos. Dei uma risadinha sarcástica e cheguei bem perto do ouvido de para sobrepor a música. Repousei minha mão em um de seus ombros e falei: — A-há. Agora já sei, . Sei exatamente porque você está aqui.
— Ah, é? — ele deu um sorriso ladeado, me olhando como se eu não soubesse de coisíssima nenhuma. Estava se divertindo muito com o grande caso que criei. — Por que você acha?
— Você é um penetra hoje — respondi, confiante. — Um penetra investigando a ex.
— Errou — ele enfiou a mão na embalagem de Lay’s que eu segurava e levou um monte de batatas à boca. Em seguida, bebeu a água pelo bico da garrafa mesmo.
— Sei, sei — quase me debrucei em cima dele, quando resolvi cantarolar mais uma vez. — Seeei! Seeeeeei!
— Vem cá, quantos desse você já tomou? — ele perguntou, apontando para o copo que eu havia largado na bancada.
— Acredita que esse é só o meu terceiro? — fiz uma careta, genuinamente chocada. — Eu sou bem mais forte do que isso. Mas muito mais. Sério, , sou mesmo. Para de rir.
Tarde demais. Ele já estava rindo, daquele jeito que o oxigênio do ambiente parecia que ia acabar para sempre.
Continuei com a tagarelice:
— Mas acho que esse ponche tá encantado, sério. Nunca tomei um tão saboroso assim. Tá bom demais da conta.
— Álcool que liberta sua versão caipira, é assim que eu gosto.
Dei uma cotovelada nele.
— Ei, sabe de uma coisa, — aproximei-me de seu ouvido outra vez. — Sei como é difícil esquecer da sua amada Rainha das Trevas, mas pensa bem, só um minuto. Vir até uma festa fechada em que ela está é o oposto de tentar superar, não acha?
— Na verdade, , eu não poderia me importar menos com isso agora — disse, com um sorrisinho bem-humorado que até demonstrava mais convicção do que eu poderia esperar. E, meu Deus, quando ele chegou bem perto do meu ouvido para falar, todos os pelinhos da minha nuca se arrepiaram. — Não tô de penetra, eu fui convidado. De última hora, mas fui. Vou te falar, meu plano era justamente vir numa festa, curtir, azarar e todo o resto. Já era de se esperar que Rennie estaria aqui, mas, caralho, olha o tamanho dessa mansão. Que se foda, não é? Porém…
— Porém...?
— Tem uma pessoa que já deixou claro que eu não deveria nem ter vindo, então tô indo embora.
— … Que diabos?
— É só isso, por enquanto — ele se afastou, bebeu todo o resto da água e jogou a garrafa fora. — A gente se vê outro dia, . Eu vou dormir. Aproveita a festa — e encerrou, sem mais nem menos. Ainda colocou a máscara do Ghostface na frente do rosto e saiu andando em direção ao hall, me deixando ali. Nem aí pra mim.
— , espera!
Ele parou e se virou, me olhando através daquela máscara levemente perturbadora de fantasma.
De onde foi que eu tirei a grande ideia de gritar por ele? Aquela foi coisa mais impulsiva que eu havia feito até o momento. Claro que eu ia culpar o álcool depois, se fosse preciso.
estava me esperando. O que eu ia dizer a ele agora? “Fica, por favor, e me dá um beijo gostoso logo antes que eu MORRA de tanta vontade”? Nem com dez copos de ponche eu era capaz de soltar essa.
— Deixa pra lá — falei, por fim.
— O que era?
— Nadinha não.
Ele balançou a cabeça, riu e foi andando para longe, sumindo em instantes no meio de toda aquela gente. Me senti patética por ter ficado tão triste ao vê-lo ir embora.
Eu não tinha tantas outras opções além de descer para o porão e continuar com o papo sobre métodos contraceptivos com minhas colegas de curso. E foi o que fiz. Porém, assim que cheguei ao cômodo escuro, avermelhado e sombrio outra vez, lembrei que ainda precisava experimentar um Bloody Mary. Então, para o bar eu fui novamente, gastando um bom tempo para testar e descobrir a mistura certa.
Espremi metade de um limão dentro do copo; em seguida, joguei um pouco de sal e algumas gotas de molho de pimenta. Coloquei a vodca e, sem querer, um quilo de gelo. Derrubei mais molho inglês do que o recomendado, eu não tinha a menor dúvida. Então, chegou a hora do suco de tomate e da pimenta-do-reino. Porra, eu estava preparando um churrasco ou uma bebida?
Logo depois que terminei de fazer meu drink e tomar algumas doses, senti alguém me cutucar pelo ombro. Quando girei o pescoço para olhar, me deparei de sobressalto com um cara vestindo a máscara do Ghostface. Quase cuspi fogo na cara dele, de tão picante que meu Bloody Mary tinha ficado.
Além de tudo, levei o maior susto. Eu precisava me acostumar com todos esses vilões me chamando.
Por um segundo, achei que fosse de novo, até o sujeito remover o disfarce e eu ver que era PJ. Ele também vestia um sobretudo verde-escuro surrado e luvas pretas. Nos cumprimentamos alegremente.
— Jenna me contou que viriam — ele falou —, mas achei que você estaria no Céu com ela.
— Ah, sim. É que eu não sabia dessa divisão de ambientes.
— Por quê? Ela não te contou?
— Não. Ela achou que seria mais legal se fosse uma “surpresa”.
— Afinal, você não viria de Lady Di? Foi o que eu ouvi ela comentando da última vez que conversamos.
— É, acabei mudando de ideia. Sinceramente, eu não tava a fim de usar um terninho pra vir a uma festa. Muito menos um vestido longo, nem uma tiara.
Ele riu. Depois, um pouco nervoso, coçou a nuca quando disse:
— Erm… … Você não tá achando estranho aquele Freddy Krueger nos encarando demais?
— O quê?
Então, ele chegou mais perto e sussurrou:
— Como você conheceu Nate DeWolff?
— Ele tá me olhando mesmo, não é? Engraçado — ao contrário de PJ, não poupei nem um pouco o volume da minha voz. — Mas foi ele quem me convidou pra essa festa. E você, quem te convidou?
— Uma amiga minha do time de softbol. Ela é irmã de um desses frat boys. Ei, Lori! Pode vir aqui um minuto? — ele a chamou e, segundos depois, uma garota vestida com ambos adereços de anjo e diabinha se aproximou; os chifres vermelhos na cabeça e as asas de penas brancas nas costas. Esperta. Muito esperta. Ela era alta, meio bochechuda e com os cabelos volumosos e brilhantes. Também tinha braços incrivelmente largos e fortes; claro, devia ser a arremessadora do time. — , essa é Lori Lynn. Lori, essa é , amiga da Jenna.
— Oi, ! Posso te chamar assim?
— Claro!
Quando nos cumprimentamos, percebi de imediato que Lori Lynn estava com um bafo fortíssimo de álcool. Fora isso, ela parecia muito simpática e sociável. Tinha um daqueles sorrisos bem alinhados e cativantes. Era muito bonita.
— estava me contando que Nate DeWolff a convidou pra festa de hoje — PJ falou e, em seguida, a garota fez uma expressão exageradamente assustada.
— Sério? — ela indagou. — Te convidou pessoalmente?
— Sim, pessoalmente. Convidou Jenna e eu — respondi. Os olhos de PJ se esbugalharam, e eu nem entendi o porquê. — E cá entre nós… — coloquei-me no meio do casal, abraçando-os pelos ombros. — Eu senti uma coisa estranha quando ele nos convidou. Uma coisa diferente… Ah, só mulher entende. Sabe o que quero dizer, não é, Lori? Mas algo me diz que ele está interessado em mim. Não é loucura?! Há! Um brutamontes bonitão desses interessado em mim! — joguei a cabeça para trás e disparei a rir. — Sabe, acho que vou dar uma chance a ele. Meu Deus, pareço totalmente arrogante falando isso, não é? Mas acho que vou dar mesmo uma chance a ele se eu estiver certa. Caso de uma noite só, sabe. Sei lá, nunca fiquei com um fisiculturista antes, quero saber como é. Você não concorda, Lori? Ai, meu Deus! Tô falando demais, não é?
Lori começou a rir comigo, e PJ estava mais petrificado do que antes.
Mas quem se importa?
Everybody (Backstreet's Back) – Backstreet Boys
— AAAAAAH! — berrei, parecendo uma adolescente de treze anos. — Preciso DANÇAR!
— , espera!
— A gente se fala depois, PJ!
Juntei-me às várias pessoas que dançavam super empolgadas numa pista improvisada, bem no centro do porão. Entre as luzes e a fumaça, me perdi ali no meio.
Certas músicas tinham o poder de jogar meu astral lá em cima, e qualquer uma dos Backstreet Boys se enquadrava nesse quesito. Não era à toa que, de vez em quando, eu realmente ouvia os CDs e dançava em meu quarto sem a menor vergonha na cara. Portanto, naquele momento, me encontrei num verdadeiro estado de êxtase.
Depois de dançar horrores, senti minha bexiga apertar. Mesmo com o suor escorrendo pela testa, também senti um frio terrível que começou a me incomodar. Ou o ar-condicionado estava desregulado ou algum sem noção tinha mudado para a temperatura mínima.
Subi para o Purgatório e fui ao banheiro, não sem antes esperar por longos minutos numa fila quilométrica. Pelo menos, ali, a ventilação era fresca e natural.
De volta ao porão, a primeira coisa que chamou minha atenção foi um pequeno aglomerado de pessoas em volta de um Jason Vorhees caído no chão. Nada muito atípico numa festa com drinks tão bons à vontade. Eu só tinha que me cuidar para não terminar a noite derrubada daquele mesmo jeito.
Do lado oposto, vi Nate DeWolff caminhando até mim.
— Está curtindo? — perguntou ele, assim que parou na minha frente.
— Demais! Principalmente as bebidas.
— É mesmo?!
— Sim. Estão muito boas. Cadê seu irmão gêmeo, o outro Freddy?
— Está lá no Céu até agora — ele deu uma risadinha —, espero que se comportando bem.
— Ah, isso é impossível.
— É verdade, devo admitir — Nate inclinou levemente a cabeça para o lado, concordando comigo. — Roy não leva o menor jeito com garotas. Eu sei o quão desagradável ele consegue ser.
— Ele é o típico cara que ainda não saiu da quinta série.
— Eu disse, o cérebro dele vai descolar da cabeça a qualquer momento.
Comecei a rir. Depois, pensei na mudança perfeita de assunto:
— Então, Krueger… Você curte A Hora do Pesadelo?
— Pra caramba. Você gosta? Quer dizer… Assiste filmes de terror ou tem medo?
— Sem essa. Assisto todos.
— É mesmo? E qual o seu preferido?
— Hmm, deixa eu ver... Talvez... O Silêncio dos Inocentes? Não! Espera. Hmm… Eu amo muito Palhaços Assassinos do Espaço Sideral. Com certeza é um dos meus preferidos.
— Poxa. Então você curte mais a comédia.
— Eu gosto dos dramáticos também. Já viu A Bruxa de Blair?
— Qual? Não estou lembrando.
— Aquele que estreou no cinema... em outubro do ano passado… Um que parece um documentário, sabe? — fui dando pistas, mas ele não parecia fazer a menor ideia sobre o que eu estava falando. — Sobre uns jovens no meio do mato... que tentam investigar a lenda de uma bruxa… Não?
— Ah, sim! Sei qual é, mas não tive vontade de assistir, porque não me interesso muito por histórias de bruxas. Mas, agora que você falou, posso pensar com mais carinho — ele piscou, paquerador.
— Vale a pena. É uma experiência diferente — balancei os ombros, com um sorrisinho retraído. Eu nunca conseguiria paquerar tão naturalmente quanto Nate DeWolff.
Quando vi, ele estava ainda mais próximo de mim. Levantei a cabeça para olhá-lo. Senti o aroma forte de sua colônia cara e exótica, e, de repente, Nate estava tão perto que eu não respirava mais nada que não tivesse seu cheiro. Nem percebi quando me vi completamente dividida entre encarar seus olhos e sua boca, assim como ele fazia comigo. Ele tinha o rosto perfeitamente simétrico; o nariz era pequeno e arrebitado, e os lábios finos umedecidos estavam semi-abertos, ainda curvados num leve sorriso provocante.
Nate era um sedutor nato. Como ele me envolveu tão rápido em seus encantos? Não sei. Eu não costumava ser assim tão rápida, mas ele tinha um sex appeal tão absurdo que o estranho seria se eu demorasse mais.
Senti os dedos ásperos de sua mão gigante acariciarem meu rosto, delineando minha bochecha, queixo e pescoço. Fechei os olhos e, num momento de pura embriaguez, fantasiei as mãos de me tocando. Assustada com o pensamento, abri os olhos de uma vez.
Vi Nate mordendo com força o próprio lábio, com a maior cara de safado. Com o polegar, ele acariciou meu lábio inferior e o dobrou para o lado, quase enfiando o dedo dentro da minha boca.
Um pouco despreparada para aquela intensidade, afastei meu rosto. Ele percebeu, claro, mas soube dar seu jeito:
— Está com frio? Você tá gelada.
— Sim… Na verdade, estou.
— Esse ar-condicionado tá com defeito. Desculpe por isso. Aqui — ele tirou o próprio casaco e colocou-o em volta dos meus ombros. Era tão grande que, agora, parecia que eu estava vestindo uma capa.
— Obrigada — sorri, sincera. Quando Finnegan faria um ato de cavalheirismo daquele? Nunca.
— Você estava dizendo que curtiu bastante as bebidas... — Nate continuou. — Então, tive uma ideia. Quer experimentar um drink secreto?
— Drink secreto? — perguntei, curiosa. — O que tem nele?
— É um Manhattan. É só uísque com um toque mágico de vermute doce.
— Hmm. Parece bom.
— Vou buscar pra você. Pode me esperar aqui? Não demoro.
— Sim, eu espero.
— Ok. Já volto, não saia daí — com um sorriso satisfeito, ele alcançou minha mão e, antes de se afastar, deu ali um beijo tão molhado que quase chegava a ser impróprio. Depois, piscou. — Você me deve uma dança.
Nate enfim sumiu pela escuridão do porão, e eu não consegui mais acompanhá-lo com o olhar. Além de esfregar meus próprios braços e tentar me aquecer com o casaco, o máximo que eu poderia fazer era ficar ali, esperando. Esperando e imaginando de todas as formas como seria transar com ele. Será que Blaze ia perder o posto de pauzudo?
— — do nada, ouvi a voz de PJ ao meu lado. Ele me puxou pelo pulso. — Vem comigo. Agora.
— O quê?! Como assim?
— Não dá pra explicar agora. Vem, vamos! — ele insistiu, e eu continuei parada em meu lugar, relutando contra sua força.
— Não, não, espera aí! — falei, finalmente me soltando dele. — Eu não posso sair daqui agora, estou esperando por Nate DeWolff–
— , por favor. Confia em mim — PJ tirou a máscara do Ghostface, e, pela sua expressão, vi a seriedade daquele pedido.
— Ok… — cedi, e ele me puxou mais delicadamente, dessa vez pela mão. Talvez nem ia demorar tanto e, além de tudo, eu confiava nele. O problema foi quando me fez subir as escadas até chegarmos ao hall. — Pra onde você tá me levando?
Não obtive resposta alguma, só continuei sendo puxada. PJ me segurou mais forte quando tivemos que atravessar a algazarra de dezenas de estudantes que dificultavam a passagem. Fiquei um pouco zonza com tanta gente trombando em mim. Então, passamos pela grande porta vermelha da entrada da mansão, até, de fato, sairmos dela.
Já estávamos caminhando apressadamente pela grama em direção à rua vazia, quando minha confusão e impaciência atingiram seu ápice.
— PJ, aonde estamos indo?! Me responde, agora!
— Desculpa, . Estamos indo embora.
— O QUÊ?!
Paramos em frente a um Kadett preto encostado no meio-fio, já com os faróis acesos e o motor ligado.
— É pela sua segurança — ele explicou. — Acredite em mim.
— Tô começando a ficar com medo.
— Vamos — ele me guiou até o outro lado do carro e abriu a porta traseira.
Quando entrei, acabei me sentando exatamente atrás do banco do motorista, onde estava um Jason Vorhees com as mãos agarradas ao volante. No banco ao meu lado estava Lori com a cara pregada na janela, dormindo numa posição totalmente desajeitada. Não demorou até PJ também entrar no carro e sentar-se no banco passageiro da frente.
No momento em que ele fechou a porta, questionei, apavorada:
— Que porra é essa, PJ?
Senti que Jason Vorhees estava me encarando apreensivamente pelo espelho retrovisor. Ele tirou a máscara ensanguentada de plástico e revelou um rosto com sangue de verdade.
Cobri a boca e soltei uma arfada, tamanho foi meu espanto.
— ?!?
— Alguém pode me explicar por que estou aqui? Era pra eu estar beijando Nate DeWolff nesse exato momento!
bufou tão alto que eu resolvi fechar a boca.
— Você não faz a mínima ideia de quem é esse cara — sua voz saiu baixa, do fundo de sua garganta. Os olhos dele estavam escurecidos de tão zangados, quase perfuravam os meus através do espelho.
— O que quer dizer? Ele foi tão legal comigo — falei e, em seguida, o ouvi bufar de novo. A sobrancelha e a lateral do rosto dele estavam completamente vermelhas, machucadas por um soco bem dado. Havia um pequeno corte aberto no alto da maçã de seu rosto, inchada, e um filete de sangue ainda escorria por sua bochecha. — O que raios aconteceu com sua cara, ? Se meteu em briga, é?
— Depois eu te explico. Agora não dá. Sem mais perguntas até a gente chegar, ok?
— Chegar aonde? Pra onde você tá me levando? Eu quero voltar pra festa!
— Não. Sem chance.
— Erm… … — PJ tentou intervir, mas foi ignorado.
— Tá bom, então — acatei, embora ainda contrariada. — Já que você arruinou completamente a minha noite com seu autoritarismo ridículo e repentino, que aparentemente eu nem tenho direito de saber a razão, ao menos me deixe no Belva Hall.
— É pra lá mesmo que estamos indo — ele disse, ríspido, agora olhando para a rua.
— Ótimo — cruzei os braços. — Espera! Não! Não posso dormir no meu quarto hoje, Sadie vai se encontrar com um cara e me pediu pra dormir no quarto da Jenna. Falando nisso, onde ela tá?! Você mandou o PJ sequestrá-la também?
Quando ouviu seu nome, o próprio PJ esclareceu:
— Pouco antes de falar com você, eu fui atrás dela pra explicar a situação, mas ela não me deu muita atenção. Estava no meio de um beijo triplo — ele revirou os olhos em desgosto —, e me encheu de patadas. Mas, se te tranquiliza um pouco, Jen concordou e sabe que estamos de levando, .
— Ela… sabe…?
— Viu? — me deu outra encarada mortal pelo espelho. — Considere isso um resgate, não um sequestro.
— O que diabos tá acontecendo, pelo amor de Deus? Dá pra vocês pararem com essa putaria comigo? — a cada pergunta, a raiva ia acelerando o meu sangue e elevando o tom da minha voz. — Por que eu sou a única que não tá entendendo nada? Por que vocês não podem me falar nada agora? Merda, por que eu tenho que esperar a hora que você quer, ?!
Ele explodiu:
— Porque SIM, ! Porque eu tô dirigindo agora! Porque eu tô puto e não quero ter que gritar com você, caralho!
Então, o mais absoluto silêncio reinou.
Depois que o carro se encheu com nossos gritos, fiquei até um tanto mais sóbria. Lori até deu uma remexida em seu canto. era sempre tão tranquilo, vê-lo assim me deixou um pouco chocada. Não tive nem coragem de olhar mais para ele. Virei o rosto para a janela e observei a paisagem noturna em movimento.
— Desculpa — ele disse, com a voz bastante grave, num tom meio derrotado e realmente arrependido. — Eu falei que vou explicar depois, quando chegarmos. Sei que é difícil agora, mas, por favor, só tenha um pouco de paciência. Não tô bravo com você, é com... Você ainda vai entender.
Continuei a olhar pela janela. Paciência era uma coisa que simplesmente não dava para ter naquele momento. Fiz um esforço enorme para conter uma série de dúvidas que só se acumulavam na minha cabeça, a começar com: por que ele pediria para PJ me tirar da festa justo enquanto eu esperava por Nate?
Será que…
— ? — chamei, hesitante, num tom de voz quase inaudível. No mesmo segundo, ele me olhou outra vez pelo retrovisor. — Quem fez isso com você… foi Nate DeWolff?
Desviando o olhar para longe, ele respondeu, seco:
— Foi.
Fiquei boquiaberta outra vez. E, então, duas peças daquele quebra-cabeça se juntaram: Nate e haviam brigado. Quando?!
Ai, meu Deus, só pode ter sido quando fui ao banheiro. Era quem estava estirado lá no chão do porão.
Caramba, como não percebi isso?!
Não me surpreendi quando chegamos à república. Fiquei meio deprimida ao perceber que eu simplesmente não tinha outro lugar para passar a noite.
Nada poderia desmanchar minha carranca. Nada.
me fez ficar no quarto dele. Disse que ia dormir no sofá da sala, no andar de baixo, então eu só concordei. Já PJ teve que carregar Lori até seu quarto e a deixou lá, totalmente apagada. Logo em seguida, ele também foi para a sala, onde dormiria no outro sofá.
Depois de tomar banho, vesti uma calça de flanela que buscou para mim – ele disse que Jenna tinha esquecido lá da última vez que passou a noite. PJ me emprestou uma camiseta do Guns N’ Roses do armário de Alex, já que ele era mais ou menos da minha altura. Mesmo assim, fiquei parecendo um balão naquele pijama improvisado. Jenna tinha pernas infinitamente longas e Alex usava uns dois números maiores que seu tamanho.
O quarto de era bastante espaçoso. Um pouco vazio até, mas muito aconchegante. Do lado direito, o teto baixo era inclinado; na inclinação, havia uma janela vertical que dava para o telhado. Uma cama box de casal ficava no centro da mesma parede, onde, no canto, estava a porta. Do outro lado, havia uma pequena estante de livros com uma TV, um aparelho de som e vários CDs, que iam desde a discografia inteira do Nirvana, Soundgarden, Alice In Chains... até Stevie Wonder e um encarte meio escondido da Alanis Morissette.
Ali perto, o que mais chamava a atenção era uma larga escrivaninha com milhões de papéis espalhados pela superfície. Como a porta estava fechada, não pensei duas vezes antes de dar uma espiadinha. A maioria deles eram desenhos: paisagens magníficas desenhadas com carvão vegetal, algumas naturais e outras construídas. Várias ainda sem tratamento, mas, mesmo assim, com uma qualidade técnica incrível. tinha uma percepção visual muito madura e apurada. Gastei bons minutos apreciando seus desenhos, me controlando para não tocar em nenhum ou tirá-los do lugar.
Porém, um daqueles papéis ressaltou aos meus olhos. Ele estava escondido por baixo de vários outros e tinha um estilo completamente diferente. Puxei-o com cuidado para enxergar melhor – era um desenho técnico em projeção ortogonal. Parecia representar algum equipamento eletrônico, e estava cheio de medidas numéricas e anotações. Eu não fazia a menor ideia que também levava jeito com Design de Produto. Aliás… Talvez aqueles fossem os seus conhecimentos em Computação...?
Àquela hora da madrugada, ele devia estar na sala com o PJ fazendo sei lá o quê. Eu ainda queria explicações, mas fiquei sem jeito de ir até lá embaixo dar prosseguimento ao climão. Por fim, a exaustão acabou vencendo minha agonia. Só me joguei na cama e apaguei a luz, cansada de tudo. Me cobri até as orelhas com o edredom macio e acabei cochilando em poucos minutos, envolta pelo perfume doce e refrescante de . Se seu cheiro tivesse uma cor, seria azul. Azul esverdeado, igual aos seus olhos. Da cor do mar...
Enquanto dormia, tive um sonho maluco. Eu podia respirar debaixo d’água. Comecei a explorar um monte de embarcações abandonadas e enferrujadas, largadas no fundo do mar para as algas, o lôdo e todo tipo de peixe que as transformaram em moradia. Então, eles começaram a conversar comigo. Para piorar a esquisitice, eu estava vestida com minhas roupas de Sabrina.
De repente, várias ondas imensas me puxaram com toda força para a superfície, até eu chegar rolando na areia.
Nem sei quanto tempo passou quando me despertei – talvez horas, talvez minutos depois –, mas não consegui pegar no sono outra vez de jeito nenhum, nem achar uma nova posição confortável. Resolvi sair do quarto para pegar um copo d’água ou qualquer coisa que servisse como desculpa para eu perambular pelos cantos, pelo menos até voltar a ter sono o suficiente. Tentei fazer o mínimo de barulho possível ao descer as escadas; a última coisa que eu queria era acordar os meninos na sala. Estava tudo escuro e silencioso, então só peguei minha água e subi de novo.
Porém, no fim do corredor, vi uma fresta de luz saindo da porta entreaberta do banheiro.
Lógico que fui bisbilhotar.
Tentei enxergar alguma coisa, mas não vi nada. Empurrei lentamente a porta e, no entanto, levei um susto.
— O que você tá tentando fazer? — , vestindo só uma calça de moletom, estava parado em frente ao espelho com o rosto cheio de espuma. Uma de suas mãos estava apoiada na beirada da pia, e a outra segurava uma lâmina de barbear.
— Desculpa, já tô indo embora — falei depressa, dando um passo para trás.
— Quer usar o banheiro?
— Não, eu só tava…
— Bisbilhotando?
— … É.
— Eu já tô acabando — ele riu.
Só aquele riso leve e espontâneo foi o suficiente para quebrar toda a tensão e me deixar bem mais tranquila.
— Por que você tá fazendo a barba com a cara toda fodida? — perguntei, sem rodeios. — Não era melhor esperar cicatrizar?
— Não tá pegando no hematoma.
Havia uma grande marca roxa na maçã do rosto dele, e uma menor ao redor do olho direito. Todo o sangue já tinha sido limpo.
— E... tá doendo? — eu quis saber.
— Um pouco.
— Hmm.
Fiquei observando-o passar a lâmina na mandíbula. Era a primeira vez que eu o via sem camisa e, pelo menos na minha cabeça, estava admirando-o discretamente. Ele tinha músculos sutis, não muito definidos – quase como alguém que desistiu de praticar exercícios há alguns anos. Descendo um pouco o olhar, vi que tinha até algumas estrias insignificantes nas laterais da cintura e uma curvinha na barriga. Mas e daí? Eu também tinha. Nada fora do comum.
não era nenhum bombadão nem nada, muito menos atlético. Ele só era… mais real. Um real lindo.
— Se for ficar parada me assistindo, é melhor entrar — ele me olhou de lado.
Sorri um pouco sem graça, mas entrei, encostando a porta atrás de mim. Me sentei na tampa do vaso logo atrás dele e fui bebericando minha água, cabisbaixa.
— Não consegue dormir? — perguntou.
— Não. Seu travesseiro é fino demais. Uma porcaria.
— Como você é enjoada — ele disse, rindo. — Eu sei porquê está aqui, curiosa. Vai, pode perguntar o que quer saber.
Levantei a cabeça e sorri de orelha a orelha. riu outra vez, me vendo pelo reflexo. Pelo menos estava de bom humor de novo, provando o quão era difícil tirá-lo do sério. Ele era a pessoa mais tranquila do universo.
— Tá. Primeiro — comecei —, qual foi o motivo da briga? Aliás, quem começou? Por que num minuto você estava de Ghostface, e no outro, de Jason? O que Nate DeWolff te disse? O que ele fez? Vocês têm algum tipo de conflito do passado que não foi resolvido?
— Meu Deus, eu tô numa coletiva de imprensa? Essa é a sua primeira dúvida?
— A segunda é: por que você estava dirigindo aquele Kadett?
— É o carro da Lori.
— Por quê?
— Espera. Vou começar do começo, pode ser? — ele respirou fundo. De costas para mim, continuou a fazer a barba enquanto foi dizendo: — Lori está saindo com o PJ tem poucos dias. Ela é irmã de um membro da fraternidade, então pôde convidar o PJ pra festa. Ele pôs na cabeça que eu também deveria ir, pra me distrair e tudo mais, aí ela também me convidou de última hora. Disse que não podia beber por causa das restrições do treinador, preparo físico pros jogos da semana que vem… Ela joga–
— Softbol, eu sei.
— Então. Lori ofereceu pra levar a gente no carro dela, e foi o que aconteceu. Topamos. Só que, no meio da festa, ela deu um perdido no PJ e bebeu tanto lá no Céu que, pouco depois de voltar ao Inferno, apagou. Isso porque o irmão dela ficou dizendo pra ela parar com frescura, e que o treinador não podia proibí-la de nada durante o Spring Break. Sobre as máscaras… PJ quem foi de Jason. Eu nem tinha fantasia, então ele me deu o Ghostface que tinha sobrando aqui na república.
— Mas por que–
— Calma. Lá na festa, quando eu tava no porão, Nate me viu e já veio me encher o saco. Ele não vai com minha cara porque tem ciúmes da Renée... Não sei se você sabia, mas eles saíam antes. Mas acha que a culpa é minha por ele ter sido chutado por ela. Não sei por que ele carrega um remorso fodido por isso até hoje. Nate também não suporta o fato de eu fumar a maconha dele praticamente de graça. É que os dois tinham um esquema quando–
— Ah, eu sei dessa história. Jenna me contou.
— Então você já pode imaginar o tipo de coisa que ele veio me dizer.
— Que tipo de coisa?
— O tipo de coisa que um filho da puta possessivo diz.
— Mas por que ele não te deixa em paz? Já faz um tempinho que você terminou com a Renée.
— Exatamente. Na cabeça dele, ela tá triste pra caralho e eu sou o grande responsável. Sendo que nem é verdade, porque eu sei que ela já tá de conversa com outro cara. Em qualquer oportunidade que o DeWolff me vê, ele dá um jeito de me provocar. Não é de hoje. Esse arrombado cria competição onde não existe, entendeu? E acha que não pode perder pra mim ou, sei lá, alguém como eu. Como nunca dou corda, ele se irrita ainda mais.
— Pelo amor de Deus, que coisa mais infantil — franzi a testa. — E você respondeu?
— Dessa vez, sim. Na verdade, nem lembro o que eu falei... Ah! Eu disse pra ele superar logo toda essa merda sem sentido... e… outras coisas que fizeram ele ficar puto da vida — deu um sorrisinho malicioso. Pigarreei, como um sinal para que ele me contasse. Então, ele voltou a ficar sério. — Ok. Fui dar um abraço nele de lado e perguntei quando viria a próxima remessa de erva, porque eu já tava ansioso pra fumar às custas de um pau no cu com esteroides. Eu sei, eu sei. Provoquei o cara.
— Meu Deus, … — ri pelo nariz.
— Mas foi engraçado!
— Você já não tá cansado de saber que a fragilidade do ego masculino não tem limites? Porque eu tô.
ainda ria, se divertindo:
— Eu sabia que tinha pisado na bola naquela hora, porque Nate me deu um empurrão e falou pra eu desaparecer. Me fez uma porrada de ameaças se eu não sumisse da festa. Então, só aceitei e fiquei pronto pra ir embora, já estava sem saco mesmo. Não queria alimentar o melodrama, nem minha fama de “aproveitador” e todo o resto que ele me acusa. Foi pouco depois disso que te encontrei na cozinha.
— Ah… Você estava mesmo tenso naquela hora.
— Pois é. E eu ia embora mesmo, depois de ter te encontrado. Estava decidido. Mas PJ me parou na porta e perguntou o que houve, dizendo que viu Nate me hostilizar. Então contei o que aconteceu, e ele falou pra eu ficar tranquilo, porque todos sabem que o DeWolff é pirado em bancar o machão e que toda aquela ameaça de agressão tinha sido da boca pra fora. PJ não queria que eu perdesse a festa por conta disso, que eu tinha que aproveitar, etc., etc., etc. Foi quando ele sugeriu que a gente trocasse de máscaras, pra que o Nate nem frat boy nenhum percebesse que eu não tinha vazado ainda. Porque é assim, eles agem em bando. Lógico que eu seria dedurado. Então, trocamos.
— Aaaah! Então foi assim que você virou o Jason Vorhees. E o que aconteceu depois?
— A partir daí, tudo pareceu mais tranquilo. Eu tava no porão quando o PJ te apresentou à Lori. Pouco tempo depois, ela começou a se sentir zonza e foi se deitar naquele sofá marrom, do meu lado, dizendo que estava morrendo de sono. Apagou ali mesmo.
— Ela tava cheirando a álcool de longe.
— Você também.
— Ei!
largou a lâmina na pia e abriu a torneira para enxaguar o rosto. Ele continuou contando:
— Eu também tava morgando naquele sofá, confesso. Foi quando... ouvi Nate e mais uns três caras, perto do bar, conversarem sobre... drogar bebidas e... darem uma “zoada” com as garotas que estavam dando mole pra eles. Estavam batendo um papo aparentemente despretensioso, mas eu sabia que as intenções, pelo menos as do DeWolff, eram bastante reais.
— Espera aí, o quê?! Como… Como assim? — gaguejei, num misto de desconcerto e incredulidade, com as sobrancelhas unidas e os olhos arregalados. — Como você sabia que eram reais?
levou uma toalha ao rosto para secá-lo e finalmente se virou para mim.
— Rennie passou por isso. Antes de me conhecer. Ela foi dopada por ele numa das primeiras festas da fraternidade de boas-vindas aos calouros da Oyster no ano em que ela entrou. Ela me contou muitos meses depois — ele disse, e eu fiquei francamente estarrecida por aquela revelação. — Então, quando ouvimos aquela conversa, PJ comentou comigo algo como… “Se hoje o DeWolff pretende fazer isso mesmo, corre perigo”, e “ele está rodeando a desde que ela chegou”... E eu... fiquei muito preocupado e… pensamos muito sobre o que fazer pra evitar que qualquer coisa acontecesse, .
Meu coração entrou num ritmo descompassado, o que me obrigou a respirar fundo, mas mantive o controle. Já não olhava para mais, passei a encarar o tapete no chão. Não sabia exatamente definir o que eu sentia, mas era muito perturbador.
— Quando você estava dançando… — ele falava em pequenas pausas, parecendo escolher com cautela as palavras. — Nate ainda estava próximo do bar… falando merda atrás de merda. Você não faz ideia do tipo de coisa que ele é capaz de dizer e fazer, . Eu ainda estava tentando pensar em alguma coisa e não percebi quando comecei a encará-lo demais. Ele reparou, claro, e veio me peitar, perguntando se eu tinha algum problema. Acho que, nessa hora, ele ainda não tinha visto que era eu, mas quando me reconheceu… mesmo com a máscara… não teve outro jeito. Ele veio pra cima, me segurou pela camisa e perguntou de novo se eu tinha algum problema. Honestamente, não aguentei aquela ceninha toda. Falei que eu sabia o que ele estava planejando. Perguntei por que ele não tirava logo a mão do pau e colocava na consciência. E então… — levantou os ombros, e eu o vi apontando para o próprio machucado no rosto. O resultado daquilo tudo.
Àquele ponto, eu estava terrivelmente chocada. Tentei criar argumentos em minha cabeça para impedir que tudo aquilo fosse verdade.
— Ele me ofereceu uma bebida — soltei, quase num sussurro.
— Eu sei. PJ viu. Foi quando levei a Lori pro carro e ele foi falar com você.
— Mas… Nate disse que era um drink. Um drink famoso, só tinha uísque com… algum outro ingrediente…
— Deixe-me adivinhar. Com um “toque mágico”?
— Meu Deus — uma onda gelada de nervosismo passou pelo meu corpo. — Não era o que eu ia dizer, mas ele falou isso mesmo. Como você sabe?!
— Foi exatamente o que ele disse a Rennie.
— Meu Deus — repeti, apavorada.
Então era mesmo verdade. Não tinha como não ser.
Senti meus olhos arderem e minha cabeça doer. logo percebeu meu estresse emocional e se aproximou rapidamente de mim. Ele agachou-se bem à minha frente e tirou o copo d’água das minhas mãos petrificadas.
— Eu ia tomar aquilo sem pensar duas vezes, . Como?! — questionei, lutando contra o tremor na minha voz. — Eu sempre presto atenção. Sempre sei quando um cara não presta. Sempre sei quando desconfiar. Como pude ser tão burra?!
Eu já nem podia enxergá-lo direito mais. Duas lágrimas gordas estavam se equilibrando nas bordas dos meus olhos, embaçando minha visão. Não queria deixá-las cair de jeito nenhum.
— … Não é sua culpa. Não tem como você prever uma coisa dessas — ele disse, firme, mas ainda um pouco apreensivo. Fez uma longa pausa e retomou: — Por favor, não deixe de confiar nos seus instintos. É só que… qualquer pessoa está sujeita a ser enganada por um manipulador. Você não é burra. Não era algo que estava no seu controle.
Deixei aquelas únicas lágrimas caírem e enxuguei minhas bochechas logo em seguida. E, então, levantei o queixo para olhar diretamente para . Percorri meus olhos por todo o seu rosto, agora completamente liso e limpo – exceto pelo machucado no lado direito. Tinha até me esquecido por um momento de como ele ficava sem barba. Os olhos azuis esverdeados estavam cravados nos meus, preocupados; as sobrancelhas, juntas e levemente inclinadas para cima. Ele me olhava com a expressão mais angustiada do mundo.
— … — murmurei. — Acho que te devo uma.
— Não — ele afirmou, calmo e categórico, balançando a cabeça. Então, respirou fundo. — Na verdade, eu queria me desculpar.
— Por quê?
— Porque agi no desespero, na fúria. Eu, que estava evitando drama, acabei causando um. PJ e eu… não deveríamos ter te tirado de lá daquele jeito. Eu sei que você merecia explicações. Pensando agora, aquilo foi muito errado e eu fui completamente injusto com você. Desculpa. Não pensei direito, só coloquei a sua segurança como prioridade e liguei o foda-se pra todos os meios e consequências.
— Tudo bem… Não tinha a menor condição de vocês me explicarem tudo isso no meio daquela festa. Me conhecendo bem, ou eu não teria acreditado e negado de todas as formas, ou teria enlouquecido com a informação e feito um escândalo. Eu estava um pouquinho alterada — falei, dando um sorriso suave, ainda triste. fez o mesmo. — Além do mais, imagina só, Nate ia voltar pra me encontrar a qualquer momento e arrumaria outra cena infernal depois que soubesse do seu envolvimento. Eu entendi o que você quis fazer... Me tirar do caos iminente. Mas me tirou sem me dar nenhuma justificativa, e, naquela hora, foi muito assustador. Então, sim, foi errado. Mas você está perdoado. Pelo menos descobri sobre essa merda num lugar seguro. E estou segura agora.
Ele continuou com o sorriso fraco enquanto me ouvia atentamente. Em seguida, acrescentou, ainda abatido:
— … Desculpa também por ter gritado com você no carro.
— Sobre isso, nunca vou te perdoar — brinquei, mas ele acreditou. Esbugalhou os olhos e ficou terrivelmente amedrontado, o que me fez rir. — Relaxa, . Não tô falando sério.
Levantei-me dali e andei até a porta. Ele me acompanhou.
— … Você vai ficar bem?
— Vou — respondi, em meio a um suspiro que não revelava tanta certeza assim. — Só preciso… descansar.
— Vou pegar outro travesseiro pra você — ele abriu a porta do banheiro e me guiou de novo até seu quarto.
Entrando lá, foi direto ao armário enquanto eu me sentava em sua cama. Ele me arremessou um enorme travesseiro fofo, e eu o peguei no ar.
— Melhor, Alteza? — perguntou, enquanto aproveitava para vestir uma camiseta. Infelizmente.
— Tá brincando? Muito melhor — falei, me aninhando entre as cobertas e finalmente deitando minha cabeça numa superfície alta e macia. — Não sei como você prefere o seu. Horrível.
— Não fale assim dele — pegou de volta seu travesseiro em forma de tábua e se dirigiu novamente até a porta. — Tá tudo bem mesmo? — ele repetiu, quase sussurrando, tentando me tranquilizar.
— Não tá, mas vou ficar.
— Me chama lá embaixo, qualquer coisa.
— Tá bom.
— Boa noite.
— … Espera — pedi, antes que ele pudesse fechar a porta. — Eu… Erm… Você pode ligar a TV antes de sair, por favor? Não quero ficar sozinha com meus pensamentos hoje antes de dormir.
— Claro — ele caminhou até a estante. — Qual canal?
— Qualquer um.
— Deve tá passando Beavis and Butt-Head agora — pegou o controle remoto e mudou para a MTV. — Viu? Na mosca.
— Não tem um desenho mais inocente? Tipo Rugrats?
— Toma — ele riu, me entregando o controle —, pode mudar pra Nickelodeon.
Ergui o braço para fora do edredom e mirei para trocar de canal.
— Tá passando Os Castores Pirados. Já vi esse episódio umas trinta mil vezes — bufei, estalando a língua. — ... — olhei para ele — … se não te incomodar, você pode ficar aqui e me dizer coisas idiotas até eu dormir?
Sinceramente, eu não queria repassar aquele mundo de informações de hoje em forma de cenas na minha cabeça. Ia acabar chorando de nervoso e ensopando todo o travesseiro. Ainda não tinha digerido tudo completamente, e cada pedaço parecia fazer parte de um pesadelo surreal. Além de tudo, eu não era uma daquelas pessoas que conseguia dormir num estalar de dedos, quando tinha vontade. Meu cérebro costumava trabalhar até pifar.
não disse nada, só me deu um breve olhar doce e compreensivo. Ele logo puxou a cadeira giratória de sua escrivaninha para perto da cama e sentou-se do jeito mais largado possível. Cruzou os braços contra o peito, estirou as pernas e apoiou os pés descalços na beirada do colchão. A luz foi apagada e só a TV ligada iluminava o quarto.
— O que Fozzie e Gonzo vão fazer hoje de manhã, em Livingston, quando acordarem? — ele perguntou.
Sorri sonhadoramente, contemplando a noite nublada através da janela no teto oblíquo. Como se, por ali, a alguma distância imaginária, eu pudesse enxergar os campos dourados, os salgueiros e os charmosos chalés da minha pacata cidade.
Na pergunta de só poderia caber uma resposta nostálgica. Toda vez que metade da primavera passava, as férias de verão pareciam mais palpáveis e eu me pegava com saudades de casa.
Por pouco, meus olhos não se encheram d’água outra vez:
— Ah, meus dois ursões… Provavelmente, vão arranhar a porta da cozinha até meu pai descer com a comida... Depois, Gonzo vai deitar na sombra da laranjeira lá do quintal e Fozzie vai brincar no lago do brejo. Vai voltar imundo, sujar todo o piso e receber broncas eternas da minha mãe.
— Sua casa fica numa terra encantada ou o quê?
Sabia que não ia demorar até eu dar uma risada. Então, falei, ao mesmo tempo em que me rendi a um longo bocejo:
— Você só deve ter se esquecido de como é a vida longe do concreto, sabia? Como vai Lassie?
— Tenho uma foto dela aqui — ele também bocejou. Um bocejo contagioso. — Vou achar e amanhã te mostro.
— Me conta algum caso sobre ela?
— Algum caso?
— É, tipo a história de quando ela chegou na casa da sua avó pela primeira vez. Me conta.
— Eu virei seu contador de histórias de ninar, por acaso?
— Isso mesmo. Virou. Ainda bem que entendeu rápido.
Ele riu alto, jogando levemente o pescoço para trás. Então, depois de alguns segundos pensativo, começou a falar baixinho:
— Antes de Lassie, tivemos um Rottweiler macho chamado Bordo. Ele também seria um cão de guarda, mas morreu de leishmaniose quando ainda era filhote.
— Oh! Coitadinho!
Ele me deu um cutucão com o pé no meu joelho, por cima do edredom.
— Ssshh. Concentre-se na minha história.
— Ok, desculpe.
— Minha avó ficou muito, muito triste. Até hoje ela se lembra dele. Então, algumas semanas depois, sem ela saber, voltei à casa do dono que estava colocando para adoção os filhotes da cadela vira-lata em sua primeira cria. Quando cheguei lá, Lassie escapou do cercado num pulo só e veio correndo até mim. Os outros ficaram lá, observando e choramingando. Ela já era bem grandinha pra uma filhote. Você tem que ver o tamanho dela hoje. Quando voltei pra casa, com Lassie agitada numa coleira, minha avó ficou muito surpresa. No início, me xingou pra caralho, mas depois até chorou de emoção quando segurou-a pela primeira vez no colo. Minha avó tentou fazer de tudo pra Lassie se comportar e começar com o adestramento, mas ela era um furacão. Destruía os móveis, roubava toda a comida da despensa, corria atrás de gambás, cavava buracos no jardim até estourar o encanamento… Uma vez, ela mastigou a metade da porta da garagem. Ela divertia muito a gente. Ainda diverte, mesmo velhinha. Hoje, ela é mais dengosa que tudo. Não pode ver uma pessoa que a primeira coisa que faz é se deitar de barriga pra cima. E fica desse jeito, o tempo que for necessário, até receber a droga de uma afagada. Acho que Lassie não sabe nenhum truque. Ah, só um. Uma vez, ensinei ela a coçar as minhas costas. Sabe, naquele ponto onde a gente nunca alcança com a mão. É só eu me sentar na mesa de pedra do quintal e assobiar que Lassie vem correndo arranhar as minhas costas. Ela também adora água. A melhor coisa que tem é ligar o irrigador giratório do jardim, Lassie fica maluca. Eu e minha irmã temos feito isso todo verão… Isso quando ela vai passar as férias na casa da minha avó, e não num acampamento como minha mãe a obriga de vez em quando. Ainda bem que ela não fazia isso comigo, na minha época. Porra, se tem uma coisa que odeio é acampar. Ah, você também odeia, não é? Lembro quando falou disso uma vez. Minha irmã já até participou de um grupo de escoteiras... as Honey Bees de… sabe a caixa de biscoitos quando… ela sempre soube que… de vez em quando, lá em Boston… nunca deu pra perceber… aqueles não…
De repente, comecei a perder partes do que falava. Suas palavras foram perdendo sentido e se transformaram em apenas sons enquanto eu fechava lentamente os olhos. Relutei para me manter acordada, porque eu gostava tanto quando ele me contava sobre sua vida, mas... caí no sono. Um sono profundo e pacífico.
Daqueles que nem um trovão estrondoso seria capaz de me despertar.