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🌟Autora Independente do Cosmos🌟

Finalizada em: jul/2024.

Quando foi no finalzinho da manhã, acordei revigorada, mas sem entender nadinha de nada. Meu cérebro demorou a computar a informação de que eu não estava no meu dormitório, muito menos no quarto de Jenna. Estava na república dos meninos. Olhando ao redor, me localizei ainda no quarto de .
Eu dormi na cama de .
Como não fiz um grande caso disso?!
Assim que pus os pés no chão, senti uma pontada irritante de dor na cabeça, e, então, finalmente os primeiros sinais da ressaca me fizeram entender. Os flashbacks da noite anterior foram se apresentando como um filme na minha memória.
Tentando afastá-los, olhei para a janela. O céu estava nebuloso e uma chuva torrencial caía lá fora. Gotas grossas batiam contra o vidro, fazendo um barulho particularmente delicioso para meus ouvidos. Dava vontade de me deitar na cama e dormir de novo.
Mas me situei.
Catei minhas roupas do dia anterior, que estavam dobradas sobre a mesinha de cabeceira, e me dirigi ao banheiro, torcendo para que ninguém me visse no corredor vestindo aquele pijama nada a ver. Assim que me troquei e escovei os dentes só com o dedo lambuzado de Colgate, desci até a cozinha, de onde eu podia ouvir as vozes de todo mundo conversando.
Encontrei , PJ e Lori Lynn comendo cereal na pequena mesa de jantar da sala. Lori estava radiante como eu; os outros dois estavam com a cara toda amassada, cabelos bagunçados e olheiras gigantescas. Evidentemente, este havia sido o preço pago pela cortesia de terem dormido nos sofás.
Depois de nos cumprimentarmos, eles me olharam de cima a baixo, e, por um segundo, não entendi o porquê. Mas os culpados eram meu vestido tubinho e meus acessórios místicos de Sabrina Spellman. Contudo, para meu rápido alívio, reparei que Lori vestia sua fantasia de ontem assim como eu.
— Ainda bem que você também dormiu na república, — ela disse, bem-humorada. Sorri de volta, enquanto me sentava na última cadeira vazia ao lado de . — Se eu fosse a única a passar a noite aqui depois de um encontro, estaria super envergonhada.
— Espera, o quê? Encontro? — dei a risada mais nervosa e desengonçada da minha vida. também riu, mas provavelmente de mim.
— Ah, vocês dois não estão…?
— Não, não é nada disso — respondi, quase ofegando. — Somos amigos.
— Mentira — ele contestou na maior calma, fazendo graça. — A gente se agarra de vez em quando.
— Isso não é verdade, Lori — falei rapidamente, exasperada.
“Ah, mas você queria muito que fosse”, ecoou a vozinha safada da minha consciência.
— Ah, entendi — a garota concordou. Porém, seu olhar curioso definitivamente ainda expressava uma certa dúvida.
Dei um tapa no ombro de , que continuou rindo.
— Ei… — ele me chamou, dando sua última colherada de cereal. — Tá chovendo muito, quer que eu te deixe no Belva Hall?
— Oh, vou passar lá daqui a pouco, quando eu for embora — Lori interveio. — Se quiser, posso te deixar lá, .
— Claro, se não for incômodo.
— De jeito nenhum. Vou só terminar de comer e saímos.
Assenti com um sorriso. Enquanto esperava, fiz uma rápida checagem mental para ver se eu não estava me esquecendo de nada na república, quando, de repente, me lembrei do casaco de Nate DeWolff que havia ficado comigo na noite passada.
Gelei.
Mas… não me lembro de tê-lo visto em mais nenhum lugar depois que voltamos da festa. Ele não estava no quarto… Estava?
, acho que deixei uma coisa no seu quarto — falei baixo, meio empalidecida.
— Que coisa? — ele perguntou, com um leve tom de preocupação na voz. — Pode ir lá pegar, não tem problema.
— Eu não… Eu…
Dominada por uma estranha aflição, simplesmente me levantei da mesa e subi as escadas, deixando a frase no ar. Não muito tempo depois, pude ouvir os passos de atrás de mim. Entrei disparada em seu quarto novamente, direto para a mesa de cabeceira.
— Onde essa merda foi parar?! — bufei.
Me agachei sobre o carpete e olhei debaixo da cama. Engatinhei para o lado e procurei mais uma vez, quase me deitando sobre o chão. Até que vi o tecido de linho escuro atrás do móvel, ainda exalando o perfume forte do babaca.
— ACHEI!
— Que caralhos você tá fazendo? — quando ergui o queixo e olhei para cima, vi escorado no vão da porta, me observando naquela posição ridícula.
— Isso — levantei-me e mostrei a ele o casaco —, ficou comigo ontem. Nate me emprestou.
— Você pretende devolver?
— Claro. Aliás, se houver um ritual de magia negra que eu possa fazer e entregar esse lixo radioativo como oferenda, vou considerar.
— Você está encarnando demais a sua personagem — ele riu.
— E se eu arrebentasse esse casaco e o devolvesse todo fodido e rasgado? — dei um sorrisinho malicioso e, bastante animada, fui andando até a porta. Mas impediu minha passagem e parou na minha frente.
, controle seus instintos assassinos-vingativos por um minuto — ele pediu e eu apenas obedeci; seu olhar calmo e atencioso fazendo evaporar todos os meus planos diabólicos. — Se eu fosse você, evitaria encontrar com o DeWolff agora. Não quer pedir pra alguém devolver isso no seu lugar?
Fiquei pensativa por um segundo antes de responder:
— Mas como eu vou perder essa chance fantástica de tirar satisfações com ele?
— É exatamente isso que eu tô pedindo pra você não fazer.
— Mas…
— Acredite, evitar o confronto é a melhor escolha que você pode fazer em qualquer situação que envolva esse cara.
Então, me peguei olhando com mais sensibilidade para o hematoma na lateral de seu rosto. Ainda estava roxo e um pouco avermelhado, mas significativamente menos inchado que o dia anterior. Uma coisa era certa, devia estar dolorido pra porra.
Fiquei com uma imensa vontade de passar minhas mãos em torno de e abraçá-lo. Bastava eu dar um passo.
— Você tem razão — admiti, encarando meus sapatos. — É só que… ainda é difícil de acreditar que Nate seria capaz de uma coisa dessas. Ele foi uma pessoa totalmente diferente comigo.
— Eu sei que ele foi.
— No fundo, eu só queria enfrentá-lo. Ver com meus próprios olhos.
— Eu sei que você quer.
— Não farei isso — afirmei, decidida, apesar de ainda secretamente querer muito uma oportunidade para falar umas poucas e boas para o cara e colocá-lo em seu lugar. Mas o medo e a incerteza eram, de fato, bem maiores nas circunstâncias atuais. — Não vou enfrentar o Nate e, infelizmente, não sou como a Jenna… Não consigo confiar que o destino ou o Universo vá se encarregar de trazer alguma justiça ou coisa do tipo. Na verdade, o Universo não tá nem aí pra ninguém. Você não se incomoda com isso?
— Já me incomodei, mas hoje eu tento agir como o Universo. Não tô nem aí. Que se foda o que o DeWolff faz ou deixa de fazer. Não me importo.
— Você se importou ontem — falei e, instantaneamente, o olhar dele mudou.
— Eu me importei com você. Não com ele.
Abri a boca para responder, mas perdi a fala. Pensei que eu tivesse algo para acrescentar, mas travei a mandíbula e perdi também a linha de raciocínio.
continuou:
— Olha, eu sei que ele merece uma punição justa, mas isso não vai acontecer. A verdade é essa. As autoridades daqui abafam todo tipo de merda que esses jogadores se envolvem, caso contrário, a Oyster teria a reputação destruída, perderia um número imenso de matrículas e todas aquelas doações milionárias pra arrecadação de fundos.
— É… Sim. É uma luta desanimadora, mas necessária — falei, depois de refletir um pouco. — Eu não consigo denunciar nada porque não tenho provas. Mas, se Nate já é conhecido por fazer esse tipo de coisa, claro que ele vai continuar procurando por mais vítimas. E eu... não posso deixar isso acontecer. Detesto sequer imaginar o que poderia ter acontecido comigo ontem. E se você e o PJ não tivessem ouvido o imbecil e os outros três capachos comentarem que iam drogar as bebidas? E, ainda, como se isso só fizesse parte uma “zoação”? Eu não posso esperar por um resgate toda vez, . Nenhuma garota pode. A gente tinha que depender mais de nós mesmas, sabe. Não de outros caras. Tínhamos que ter a capacidade de nos defender sozinhas, mas é muito difícil. Muito mesmo. Parece que ninguém dá crédito pra gente. Parece que nossa voz é só um pio de passarinho. Será que vai existir um tempo em que seremos mais ouvidas? Não sei, não. Ah, esse mundo é uma merda mesmo. Por isso eu queria ser mais positiva como a Jenna de vez em quando, mas é impossível.
deu um longo suspiro.
— Eu concordo com você, . Sabe de uma coisa? Não se desanime. Você poderia conversar com outras garotas ao invés de enfrentar o DeWolff diretamente.
— É… Pode ser. E alertá-las sobre a coisa toda, talvez... Elas sim iam me ouvir. Eu acho.
— Exatamente. Talvez esse papo já role entre elas, mas se até hoje não chegou em você ou em Jenna, com certeza precisa ser ampliado. Na real, aposto que se você falasse o que pensa pro DeWolff, ele voltaria pra casa chorando com o pau preso entre as pernas. Ele gosta de se gabar só entre outros homens. Tudo é uma maldita competição pro cara. Mulher, pra ele, é só… só o segundo sexo.
— Engraçado... Eu achava que o Finnegan quem fosse assim.
— E ele é. Mas ele é burro. Por isso é detestado, e o DeWolff é amado. O filho da puta sabe fingir, mas ser humilhado… isso ele não admite. Não aceita nem fodendo ficar por baixo. Finnegan, por outro lado, não leva as coisas tão a sério. É um moleque que vive deixando pra amanhã o dia de amadurecer. Há tempos ele tá preso nesse loop, não percebeu?
— É verdade — concordei, rindo.
Fiquei ainda mais reflexiva depois daquela conversa. Porém, logo fui desperta por Lori chamando pelo meu nome no andar de baixo. Então, deu um passo para o lado e me deu passagem, mas não me movi. Com o casaco de Nate enrolado nos meus antebraços, pensei em dizer alguma coisa antes de descer as escadas. Não queria me despedir com meu característico sorrisinho amarelo e desajeitado de sempre.
… Obrigada — dei um passo à frente e me inclinei para dar um beijo em sua bochecha, no lado ileso de seu rosto, claro. Um beijo bem rápido e suave, mas que o pegou de surpresa.
Senti um inesperado frio na barriga quando ele olhou para mim com uma curva descarada no canto dos lábios.
— Desistiu de fingir que eu não tenho chances? — provocou. Revirei os olhos, ficando ainda mais nervosa. O que ele fez foi rir da minha cara, pra variar. — Não se preocupe, . Ah, quase ia me esquecendo — tirou do bolso da calça de moletom uma foto e me entregou.
— Oh! Essa é Lassie? E você?!
— Aham.
Parei para admirar a fotografia de uma enorme vira-lata com traços de Rottweiller, deitada em frente à uma lareira, com um adolescente sentado de pernas cruzadas ao lado dela. O cabelo dele estava mais claro, os traços do rosto bem mais angelicais. Havia algumas espinhas ao redor de seu queixo e nariz, e o sorriso… estava igual. Largo, charmoso e totalmente adorável.
— Ai, meu Deus... Lassie é a coisa mais linda, fofinha e gigante do mundo! — elogiei, e ele sorriu de lado, orgulhoso. — E você, quantos anos tinha aqui?
— Uns dezesseis… Dezessete, talvez.
— Hmm… Início dos anos noventa, tempos remotos do ensino médio. Meu Deus, olha esse colar ridículo de dente de tubarão no seu pescoço! Nossa, como você era um mauricinho nessa época — logo após meu comentário, ele imediatamente rolou os olhos. — Sério, olha só esse bíceps! É, , hoje você tá bem acabado — dei uns tapinhas em seu ombro, devolvendo-lhe a foto e saindo do quarto.
— Como você é atirada — ele veio atrás de mim. Descemos as escadas em meio a risadas. — Agora é sua obrigação me mostrar uma foto na próxima vez que eu for ao Belva Hall.
— Isso nunca vai acontecer.
— Hmm... Como será a do ensino médio? Tô curioso.
— Pode guardar sua curiosidade num cofre e nunca mais abrir. A do ensino médio usava aparelho. Sem chance.
Ele deu uma risada alta.
Na sala, encontramos Lori e PJ nos esperando na porta.
— Vamos? — ela olhou para mim.
— Sim, vamos — respondi.
— Como você tá, ? — PJ me perguntou quando passei por ele. — Já vi que vocês dois se acertaram. Ainda bem.
— Tô ótima — falei, mas devolvendo o olhar para . Ele havia acabado de parar ao lado do amigo e cruzar os braços, relaxado. — me explicou tudo o que rolou ontem. Tá tudo bem agora. Quero dizer, não foi tão fácil digerir.
— Faço ideia — PJ respondeu, compreensivo. — Desculpa qualquer coisa, ... Foi uma merda ver você tão confusa e não poder falar nada naquela hora. Acho que nos desesperamos e… só queríamos ajudar.
— Não, relaxa, eu entendi tudo depois. Não se sinta mal. Obrigada, PJ.
— Obrigada por nos trazerem aqui ontem, meninos — Lori complementou.
Eles assentiram com um sorriso nos lábios, e, logo em seguida, PJ foi se despedir de Lori com um selinho. Um selinho que acabou se transformando em vários outros beijos, deixando eu e olhando um pra cara do outro durante longos segundos desconfortáveis. Mas ele rapidamente tratou de reverter aquela situação e me fazer rir – fechou os olhos e pôs a língua para fora, fingindo beijar seu par invisível. Assim que o casal se separou, ele voltou ao normal como se nada tivesse acontecido, me fazendo rir mais ainda.
De repente, eu não queria mais ir embora. Queria ficar ali, passando o resto dos dias do recesso na companhia dele, falando bobagens, rindo à toa e… Que nada, eu só queria beijar aquela boca até cansar.
Meu Deus. Era exatamente por isso que eu precisava ir embora.

Com urgência.


🙂🙃🙂


— Nate DeWolff é o maior narcisista da história — Lori Lynn dirigia tentando controlar a própria raiva. Ela disse que PJ havia lhe contado tudo o que tinha acontecido enquanto estava apagada ontem à noite. — Nada consegue derrubar essa minha teoria. Pelo contrário. A cada ano que passa, mais ela ganha força.
— O que mais você sabe sobre ele? — indaguei.
Aquela carona estava sendo mais do que útil. Sentada no banco do passageiro do Kadett preto, aproveitei para conversar abertamente com Lori sobre o assunto. Ela parecia entender muito mais sobre a real personalidade de Nate do que qualquer outra pessoa.
— Minha melhor amiga passou pela mesma coisa. Tem pouco tempo, foi durante a festa de Halloween do ano passado. Argh. Tenho nojo só de me lembrar. Por sorte, ela terminou a noite longe dele assim como você, porque acabou mudando de ideia e o rejeitou. Nate ficou muito puto. Sério, eu não suporto macho que fica espumando quando leva um fora. Mas a gente custou a acreditar que ele faria uma coisa dessas.
— É… Ele não parece do tipo que quer se aproveitar de mulheres. Talvez um pouco, porque só convive com cara idiota, mas nada alarmante ou muito grave. Por isso fiquei tão assustada.
— Sim, pelo contrário! Ele parece ser o tipo cavalheiro, não é? Que vai te afastar de todos os outros predadores...
— Exatamente. Foi o que senti ontem. Me senti desarmada e confiei nele muito rápido. Ele é tão inteligente, parecia me entender tão bem quando eu reclamava sobre o insuportável do Finnegan...
— Argh. O Finnegan é outro loser que não tenho a menor paciência pra lidar — ela levou dois dedos em formato de L à testa. — Mas ele é burro, então é mais fácil de identificar a babaquice e se afastar.
— Foi o que me disse hoje — suspirei.
— Hmm… E esse casaco? É dele? — Lori sorriu de lado, intrigada, apontando com o queixo para a peça de roupa em meu colo.
— De quem, ? Não! É do DeWolff, acredita? Ainda tenho que encontrar o infeliz e devolver essa merda. Só não tenho ideia de como farei isso.
Ela riu.
— Quer que eu devolva pra você? Posso entregar ao meu irmão, ele também fica na mansão.
— Jura?! Seria perfeito.
— Vamos passar lá agora e acabar com isso. O que acha?
— Acho maravilhoso. Eu realmente não queria ter que levar isso pro meu quarto.
— É melhor mesmo você não ter que encontrar Nate pessoalmente outra vez.
também me disse isso — uni as sobrancelhas e fiquei mais desconfiada do que nunca. — Então é real esse lance de ter que evitá-lo a todo custo?
, deixa eu te contar como funciona a cabeça de Nate DeWolff. Sei disso porque minha melhor amiga é um pouco assim que nem você, não aceita tão fácil as coisas. E é basicamente isso que o atrai. Engano nosso achar que ele procuraria uma pessoa que demonstra fragilidade, porque, sei lá, seria mais fácil manipulá-la. Na verdade, Nate fica doido por garotas que parecem mais duronas e persistentes, mas num sentido perverso, sabe? Eu acho que, para ele, é muito mais divertido derrubar mulheres que se impõem. Assim o desafio é maior. Por isso tem tanto anseio por dominá-las... e meio que um prazer em humilhá-las também. É a forma dele de se manter superior. É tentando tirar alguma vantagem que ele consegue inverter quem está no “controle”. Entende o que quero dizer?
Quase me afundei no banco do carro. Precisei respirar fundo antes de afirmar que sim com a cabeça. Logo pensei em Renée e percebi que seu padrão também se encaixava nas explicações e opiniões de Lori.
Ela continuou:
— Por isso suspeitamos na hora quando você disse que Nate te convidou pessoalmente. Sabe o que aconteceu? Finnegan fisgou você e Jenna pra ele. Tava na cara!
— Meu Deus… — expirei o ar pesadamente. — Sério, eu não fazia nem ideia. Nem passou a possibilidade na minha cabeça que uma coisa dessas estava por trás de tudo isso. E sabe o que é pior? Eu achei que era ele quem estava interessado em mim. Nate quem estava dando todos os sinais, ficava me encarando, flertando toda hora. Mas, na cabeça dele, eu que era a otária que estava “dando mole”. Inacreditável.
— É por isso que eu digo que Nate é um narcisista. Nunca viu a ex-namorada dele por aí antes, a Carly Sims?
— Carly Sims? A que se formou em Medicina Veterinária ano passado? Tá brincando que aquela menina é a ex dele?!
— Seríssimo. Eles namoraram por uns dois anos.
— Meu Deus. Sei quem é. Ela tinha uma voz maravilhosa. Lembro de vê-la cantando no karaokê lá de Bricktown uma vez. Foi impressionante.
— Pois é. A Carly era um raio de luz e saiu totalmente murcha da Oyster. Nate fez da vida dela um inferno depois que finalmente recebeu um pé na bunda bem dado. Mas dizem que ela está bem melhor hoje, graças a Deus. Está super feliz trabalhando em uma clínica no Queens.
— Nossa... Não sei nem o que dizer. Aliás, ainda bem que ela superou seja lá o que tenha passado nas mãos desse egomaníaco — esbravejei. — Sabe, Lori, até que sua teoria faz todo sentido.
— Total. Se Nate pudesse, colocaria uma escultura de ouro do próprio pau no meio do hall daquela mansão.
Começamos a rir.
Por um momento, voltei a planejar alguma forma de revidá-lo. Eram pensamentos inevitáveis que faltavam explodir junto com minha revolta. Então, perguntei:
— E a sua melhor amiga? Ela chegou a tirar satisfação com o idiota?
— Não. Ela até queria, mas… olha o tamanho do cara. Dá um medo de ele tentar fazer alguma coisa, né? Sei lá.
— É… Sim.
Suspirei profundamente. Que situação de merda.
Assim que chegamos na mansão da fraternidade, Lori Lynn estacionou o carro no canto da rua e foi correndo até a porta, se protegendo da chuva com o casaco sobre a cabeça. Fiquei observando tudo da janela, a uma certa distância.
Vi um frat boy qualquer atendê-la, e, em seguida, seu irmão apareceu depois de ser chamado. Os dois eram tão parecidos que cogitei serem gêmeos. O garoto recolheu o maldito casaco, falou várias coisas e, poucos minutos depois, ela voltou com a missão cumprida. Fiquei tão imensamente agradecida que tive vontade de chorar.
Eu estava mesmo muito estressada.
Lori só riu e me entendeu, contente em ter ajudado. Logo depois, me deixou no alojamento.


🙂🙃🙂


Assim que pisei em meu quarto, me surpreendi ao encontrar Jenna no sofá, me esperando. Ela se levantou como um furacão e parou na minha frente, sacudindo meus ombros.
— Oh, ! Você tá bem?! Como você está? — ela me abraçou com força. Assim que me largou, juntou as palmas das mãos em frente à ponta de seu nariz e suplicou, atormentada: — Me perdoe! Eu não te achei de jeito nenhum lá na cozinha… Fiquei um tempão te procurando, depois desisti e subi de novo. Não queria ter te abandonado. Jamais! Nossa, eu fiquei louca. Aqueles drinks estavam uma delícia... O álcool tava meio batizado, você não acha? Estive pensando sobre isso– Ai, meu Deus! Eu quero QUEBRAR a cara do DeWolff!!!
— Calma, Jen. Tá tudo bem agora.
— Desculpa por não ter voltado no carro com você, meu chuchuzinho! PJ me disse que que Nate estava tentando te importunar, mas eu não tinha sacado que a situação era tão grave. Meu Deus, eu tava muito louca. Nunca serei capaz de me perdoar.
— Jenna, relaxa. Eu também acabei ficando bastante bêbada. Procurei por você na cozinha e no hall, mas não te achei. Acabei extrapolando nosso horário combinado, deve ser por isso que nos desencontramos.
— Ainda bem que PJ e estavam lá no porão com você — ela me deu outro abraço, e eu retribuí. — Está tudo bem mesmo?
— Sim. Foi bom passar a noite na república. Dormi com uma calça do seu pijama, sabia?
— Ai, meu Deus! — ela riu. — Eu sempre esqueço alguma coisa lá. Pelo menos dessa vez foi pra um bom propósito. Tá vendo? Não foi por acaso.
Por trás do ombro de Jen, vi Sadie sentando-se lentamente no sofá com um copo de café nas mãos. Com as bochechas rosadas, ela nos observava um pouco inquieta.
— Jenna me contou tudo — disse, o rosto coberto pelo vapor da bebida. — Desculpa por ter te expulsado daqui ontem. Se eu soubesse… teria deixado você voltar pra cá.
— Tá tudo bem, gente — falei, me jogando ao lado dela. — Já passou. Eu só nunca mais vou a uma festa da fraternidade. Não tão cedo.
— Julgando pelos poucos meses que te restam até a graduação, não vai nunca mais mesmo — Sadie pontuou, prática. — Sempre te disse que essas festas são horríveis.
— Pela primeira vez vou concordar com você.
— Eu também não vou a mais festa nenhuma — Jenna sentou-se na poltrona. — E, se depender de mim, nenhuma outra garota também vai. Não sem saber a verdade sobre esses abutres que frequentam a mansão.
— Não são só os atletas que fazem esse tipo de coisa — Sadie reforçou. — É bom se lembrarem disso.
— Você tá certa — Jen suspirou. — Putz, é foda ser mulher, né? Ainda bem que não dei papo pra nenhum homem ontem.
— Espera aí… Como? — perguntei, juntando ao menos duas engrenagens da minha memória falha. — Pensei que estivesse curtindo até. PJ disse que você tava no meio de um beijo triplo quando foi te chamar.
— E eu tava mesmo.
Quase dei um berro, mas me controlei. Obviamente, eu era a última pessoa que deveria ficar surpresa com aquela informação. Já Sadie foi incapaz de acompanhar o que estava acontecendo, e ficou aflita para descobrir:
— Você…? Você…?
O som do clique em seu cérebro quase foi audível. Nenhuma pergunta mais foi necessária; Jenna só deu um sorrisinho que respondia tudo.
— Cheguei preparada pro século vinte e um — brincou ela, fazendo pose. — Vocês ainda estão muito atrasadas. Precisam pegar o próximo trem e chegar na estação bissexual.
— É, estou precisando mesmo. Seria maravilhoso — Sadie confessou, me fazendo girar o pescoço bruscamente em sua direção.
— Nem em um milhão de anos imaginaria você dizendo uma coisa dessas — falei, me aconchegando ainda mais no sofá, enquanto a chuva diminuía lá fora. — Por que isso agora? O que aconteceu, hein? Como foi a noite de ontem?
— Ah… Foi legal. Ele é legal, de verdade, mas…
— Mas…? — eu e Jenna pedimos em uníssono.
— Mas ele simplesmente fez tudo errado. Sabe… Desde as preliminares até… Simplesmente tudo.
— E você não o corrigiu? — Jen indagou. — A melhor hora de ensinar uma pessoa a fazer do jeito que a gente gosta é quando ela faz tudo errado.
— É, na verdade, eu só esperava que ele soubesse. Quero dizer, ele deveria saber.
— Também acho que deveria — acrescentei, pensativa.
— Sério? Então as senhoras nasceram sabendo fazer boquete ou o quê? Quero esse dom emprestado.
Começamos a rir, eu principalmente.
Jenna continuou:
— Isso não existe. Quem tem que saber tudo sobre nosso corpo somos nós. Às vezes, um cara só tá acostumado a fazer do jeito que outra pessoa gostava, não do jeito errado. Acontece a mesma coisa com a gente também.
— É, você tem razão — admiti. — Eu já tive esse pensamento um dia, mas... Por exemplo, toda vez que eu pedia pro Blaze ficar só mais um pouco lá embaixo, ele reclamava que estava com a língua dormente. Isso depois de ficar no máximo, o quê? Um minuto?
Jenna revirou os olhos, enquanto Sadie ria.
— Não acredito que era por esse folgado egoísta que você estava se acabando de tanto chorar lá no píer de Bricktown, quando te conheci.
— Sim, era — respondi simplesmente, rindo do meu próprio passado amoroso e ordinário.
— Mas quer saber? Não seja por isso. Eu já transei com um cara que mordeu meu clitóris — ela revelou.
— Puta que pariu.
— Sério mesmo.
— Isso me lembra… — a voz de Sadie surgiu, retraída. Ela se interrompeu com um riso baixo. ― E eu que já até pedi pra enfermeira do Campus verificar se eu tinha mesmo um clitóris?
― O quê? Por quê?! ― arregalei os olhos, soltando uma gargalhada completamente incrédula.
― Um cara me ignorou depois que eu não tinha conseguido ficar molhada na noite anterior, então achei que eu fosse sexualmente deficiente ou algo do tipo.
― Ah… Sei bem ― comentei. ― Tem uns caras que acham mesmo que o pau deles é um presente de Deus na Terra. Acham que, no minuto que entram na gente, vamos ter uma experiência de outro mundo, gritar o nome deles e gemer igual loucas. Ou apertam nosso clitóris como se fosse um botão de ligar e desligar.
― Ou como se fosse uma droga de uma campainha ― Jenna completou, nos fazendo rir ―, e ficam o esfregando como se estivessem tentando tirar a mancha de um tapete. Porra! E ainda esperam que a gente goze um jato que atravesse o quarto, como se fosse um filme pornô. Dá pra identificar na hora os caras que assistem pornô demais...
― É verdade. Esses acham que somos só uns brinquedinhos pra realizar suas fantasias sexuais. Fazem tudo direto, sem preparação, sem aviso. Penetração? Dedada? Estão nem aí, já chegam com tudo, porque acham que já nos ligaram pelo botão de energia.
— Acho que já aconteceu uma coisa comigo que vocês também vão achar péssimo ― Sadie falou, segurando com dois dedos a ponte de seu nariz.
— O quê, o quê? — eu e Jen quisemos saber.
, lembra daquele meu último namorado?
— Qual? O que usava sandalinhas de Moisés?
— Não, o outro.
— O que vivia dizendo “éééé, veja bem” antes de qualquer frase?
— Ele mesmo. O palerma me falou que eu não precisava me masturbar mais, já que eu estava com ele. Como se ele fosse o único permitido a me dar prazer — à medida que ela falava, os olhos azuis de Jenna iam se esbugalhando feito um Pug. — Eu, burra, acabei me privando mesmo, porque acreditei que fosse verdade. Eu acreditava em tudo que ele falava, porque, pra mim, ele tinha o conhecimento supremo sobre sexo e todas essas coisas. Eu não sabia quase nada. Achava que o papel de um namorado era me mostrar mesmo.
— Meu… Deus… — Jen gaguejou. — E o conhecedor supremo de sexo também parou de se masturbar ou só proibiu você?
— Não, ele disse que também ia evitar. Que isso era o certo.
— “Evitar” — repeti, cuspindo uma risada sarcástica. — Sadie, esse cara bateu punheta todos os dias da semana, pode acreditar.
— É mesmo, né?
— Óbvio. E o que ele dizia pra você? “Éééé, veja bem, quem manda na sua boceta agora sou eu”?
— Pois é, só faltou ele dizer isso.
Enchemos a sala de gargalhadas.
— Sadie, se quer saber — Jenna chamou sua atenção —, acho que você poderia dar uma nova chance pro seu paquera. Sabe, ensinar seus desejos mais safadinhos ao novo aprendiz. Se ele ficar muito igual ao ex da , pode jogar fora e trocar por outro. Se for um grande imbecil igual ao seu, já pode mandar ele–
— Se foder — finalizei. — Não que o meu ex também não mereça isso.
— Aproveitando — Jen continuou —, você também pode falar com ele sobre o que não gosta. É uma ideia.
— Nossa, é mesmo — agora mais à vontade, Sadie estava descoberta de timidez. — Tem coisas que eu detesto e algumas amigas amam...
— Eu também! — falei, fazendo o olhar dela se aliviar por completo. — E tem coisas que eu quase morro de tesão e outras odeiam.
— É normal, gente — Jenna, um ser livre desde que chegou ao mundo, terminou de nos encorajar. — Sexo não tem fórmula. Se joguem.
— Ok, meninas. Eu estava mesmo pensando em fazer acontecer um segundo encontro, só pra garantir. Mas, agora, vou levar tudo isso mais em conta.
— Então? — preparei para fazer a pergunta que não queria calar. — Qual o nome do sortudo?
— O nome dele? — Sadie sorriu, boba, para não dizer apaixonada.
— É mesmo, ainda não sabemos!

— O nome dele é Alex.



Eu não me permitia olhar para o calendário durante o Spring Break. Só queria ficar no meu limbo perdido de paz e descanso de todas as chateações e responsabilidades acadêmicas. Metade do recesso já havia se passado, e eu estive por todos os dias e noites no dormitório de Jenna, bem longe das aventuras sexuais da minha colega de quarto e do cara que eu beijei no Ano-Novo.
Não tinha como não ser o mesmo Alex. Em toda a Oyster, só existia um cara que andava pra cima e pra baixo com uma bandana vermelha e óculos escuros no topo da cabeça – exatamente como Sadie também havia o descrito, com corações no lugar dos olhos. Logo não me restaram dúvidas, muito menos para Jenna, mas acabamos não comentando nada a respeito. Nem deu tempo. Naquele dia, Sadie desembestou a falar sobre Alex como se ele fosse o último floco de neve do inverno.
Sexo também foi um assunto que não saiu da nossa boca por todo esse tempo, principalmente nos dias que passei no quarto de Jenna. Ela vivia umas histórias malucas toda semana. Eu lhe pedia para me contar sobre suas experiências, e ela, as minhas. Era sempre um papo libertador, reconfortante, didático, saudável e, acima de tudo, engraçado. Nunca tive liberdade de compartilhar tantos detalhes pornográficos sem medo de ser julgada com nenhuma outra amiga antes. Afinal, na minha cidade, o “santa na rua, puta na cama” era um dos ditados – ou sentenças – que nos regia inconscientemente desde novinhas. Era difícil se sentir confortável ao abordar qualquer assunto parecido, principalmente porque, depois da puberdade, meus laços de amizade se tornaram verdadeiras competições, onde o centro de tudo era algum garoto a quem queríamos impressionar.
Engraçado como, inclusive, Allison se comportava ainda hoje de um jeito muito parecido.
Na quinta-feira, Jenna tinha um encontro marcado com uma das garotas que havia beijado na festa, mas não quis me contar muitos detalhes. Foi finalmente o motivo maior para eu sair de seu casulo e voltar para o meu.
Na sexta, Sadie também tinha um encontro. Foi com Alex passar a tarde em Bricktown, e só assim me caiu a ficha que todos à minha volta resolveram encontrar o amor nessa primavera.
Antes que o tédio me consumisse por completo, resolvi curtir a minha própria companhia naquele dia. Cansada de filmes, séries, músicas e Windows 98, fiz a coisa mais surpreendente e inédita de todas: peguei uma folha e comecei a desenhar. Lembrei de todas as aulas de Tipografia do meu querido Bobby Blockbuster e desenhei palavras e letras, incorporando-as nas mais diversas formas, proporções e perspectivas diferentes, brincando com os pontos de fuga e rabiscos fortes para definir as sombras.
Foi divertido. Deu até para me esquecer de merdas que ainda insistiam em me assombrar, tipo o sorrisinho do Nate DeWolff para mim, com aquele mix pavoroso de perversão e sedução. Aquilo sim me causava arrepios e tirava minha paz mental. Por isso mesmo usei o resto da minha tarde numa cara – porém necessária – ligação interurbana.
Liguei para minha mãe. Falei com meu pai, meus avós, Jackel, Lizzie e até com o marido chato de Lizzie. Ouvi os latidos dos cachorros e falei com minha mãe de novo por quase duas horas.
Quando finalmente desliguei, tive vontade de olhar pela primeira vez para o calendário: faltavam ainda dois meses e meio para as férias de verão. Aquilo fez uma estranha ansiedade tomar conta de mim. Estava chegando a hora de voltar para casa… sem próximo semestre, sem próximas férias. Dessa vez, voltar para me despedir de verdade e ingressar na vida adulta.
… Me despedir de verdade?
Abafar sentimentos ruins era comigo mesmo. Escondi tudo com a força do pensamento e me obriguei a focar em outra coisa. Tipo... dormir.
Não.
Eu precisava sair, dar uma volta, que seja. Escapar do limbo, tomar um ar fresco, sentir o pólen irritar minhas narinas e espirrar até morrer, sei lá, dar uma variada.
Calcei uns chinelos, desci para o pátio e fui até o bicicletário. Saí para pedalar pelas calçadas completamente vazias, não fossem pelas borboletas rodopiantes em seus voos livres. Para minha incrível surpresa, nem senti falta do meu discman. Os últimos raios do sol poente atravessavam as nuvens cinzas e carregadas, criando uma iluminação deslumbrante pelos jardins do caminho.
Passei pelo último bairro até decidir voltar num ritmo mais rápido, antes que eu me molhasse com a chuva que estava por vir.

AVISO DE GATILHO

De volta ao alojamento, estacionei a bicicleta e me senti mais leve. Um sentimento que durou pouco, quando percebi que mais alguém dividia aquele espaço comigo. De relance, vi um cara alto e forte, de braços cruzados, escorado na parede de tijolos do Belva Hall. Pior foi quando notei que ele estava observando todos os meus movimentos.
― Você sumiu ― a voz masculina disse, grave e sedutora. ― Aconteceu alguma coisa?
― Não ― respondi, mantendo a distância, mas encarando-o nos olhos. ― Desculpa por ter ficado com o seu casaco. Vejo que o recebeu de volta.
Ironicamente, Nate DeWolff havia escolhido a maldita peça de roupa preta para se agasalhar hoje. Ou deveria dizer... propositalmente?
― Quanto a isso, tudo certo. Obrigado ― ele agradeceu, educado, dando uns passos em minha direção e puxando as abas do casaco para ajeitá-lo no corpo. Seu perfume estava intacto. ― Falando nisso, estava passando por aqui pra devolver uns livros a uma colega de Direito Civil. Você também fica nesse dormitório?
― Erm… Sim ― dei uns passos para trás.
― Calma ― ele deu uma risadinha, ignorando meu recuo e chegando cada vez mais perto. ― Eu não mordo. O que acha que vou fazer? Sou só um fullback aposentado.
― Nada. Só tô com um pouco de pressa. Vai cair uma chuva daquelas.
― Oh. É mesmo ― Nate finalmente parou e olhou para o céu nublado por alguns segundos. ― Foi bom te encontrar, . Que coincidência ― ele desceu os olhos frios e azuis-escuros para mim, enquanto um sorrisinho galanteador dançava em seus lábios finos. ― Estávamos nos divertindo naquela festa, não estávamos?
― É… Sim.
― Eu estava pensando… Na verdade, fiquei intrigado pelo resto daquela noite toda e, já que nos encontramos agora, não posso evitar a pergunta… Por que você sumiu daquele jeito?
― Bem… Desculpa, eu… Minha amiga acabou passando muito mal. Me chamaram e eu fui ajudá-la, não deu tempo de te avisar. Acabamos indo embora depois ― falei, a mentira fluindo como um rio. Nate mantinha seus olhos vigilantes sobre os meus sem o menor pudor. Indignada, dei um pigarro e desviei o olhar, porque não aguentava ser analisada daquele jeito. ― Você sabe… Aquelas bebidas estavam mesmo deliciosas. Tava fácil perder o controle... Sabe como é. Talvez elas tenham sido alteradas, não sei.
Ouvi seu riso alto e descontrolado, quase maléfico, o que me fez voltar a olhá-lo um pouco mais assustada. Em seguida, ele deu um passo adiante e me encurralou contra um banco de madeira próximo das bicicletas.
― Qual a graça? ― perguntei, agora comedida.
― Nada. Você se acha muito esperta, não é?
― Como é que é? ― dessa vez, eu quem dei um passo à frente.
― O que te fez pensar nisso? ― ele inclinou o rosto, e assim ficamos bem próximos. Dava para ver algumas gotículas de suor brotando em sua testa. ― Acha mesmo que faríamos uma coisa dessa com nossos convidados?
― Seus colegas, não sei. Já você… Hmm. Também não sei ― balancei os ombros, tentando me fazer de tonta ao insinuar aquilo. ― Foi só uma hipótese.
De repente, me assustei quando Nate lançou os braços para frente e minimizou ainda mais o espaço entre nossos corpos. Num rápido reflexo, tentando me afastar, caí sentada no banco atrás de mim. Ele prendeu uma mão de cada lado do encosto, destruindo qualquer possibilidade de eu sair dali.
― Não sabia que você ficaria tão ofendido só com uma hipótese ― falei, com a última gota de valentia que ainda restava em mim.
― Quem te contou isso? ― ele fumegou, o tom de voz austero.
― Me contou o quê?
― Quem te contou isso?
― Do que você tá falando?
― Quem te contou?!
― Eu não sei do que você tá falando, Nate.
Ele tinha aquele olhar no rosto: olhos ressentidos e zangados, fixados em mim de um jeito desafiador. Então, como se já estivesse perdendo o autocontrole, ele deu um grito explosivo bem na minha cara:
― Quantas vezes eu vou precisar repetir, caralho?! Não me faça de idiota! Quem foi o filho da puta que esparrou sobre isso?!
Meu corpo inteiro gelou. Prendi a respiração e me encolhi no banco, como se ainda fosse possível me afastar mais.
― Não vai responder? ― ele insistiu, agora num tom de voz normal. Como se nem tivesse soltado os cachorros em mim meio minuto atrás. ― Vai continuar interpretando esse papel de bobinha desentendida?
― … Então você sabe o que fez.
― Eu não fiz nada, garota. Alguém inventou isso e eu quero saber quem foi. Tô farto dessas mentiras que inventam sobre mim, porra.
Então o que ele fazia era mesmo algo recorrente, e a possibilidade de já estar na boca do povo era muito grande. Quanto cinismo. Quanta cara de pau para um homem só.
Num minuto de vacilo, deixei escapar toda a minha raiva:
― Acha mesmo que vou acreditar num babaca escroto feito você?! Eu sei que não é a primeira vez que você tenta dopar uma garota.
― Que porra você tá falando?! ― agora ele tinha o olhar amedrontado. ― Cala a boca!
― Você deveria ter vergonha de si mesmo. Deveria se envergonhar de andar por aí fingindo que não fez nada de errado ― disparei, lançando cada palavra como uma bomba. ― Tá difícil carregar o peso dos seus erros?
― Cala a boca. Agora ― demandou, trincando os dentes. Até que, com sua mão gigante e pesada, ele agarrou minha mandíbula e espremeu minhas bochechas. Arrependi imediatamente de ter dito qualquer coisa. Fiquei paralisada de medo, com dificuldade para respirar. ― Escuta aqui. Eu sei que você tava doida pra eu te foder naquela festa. Conheço muito bem vagabundas atrevidas que nem você. Ficam com essa cara de medo, que nem você tá fazendo agora, mas gritam alto quando eu meto bem fundo. Do jeito que vocês gostam. Pagam de sabichonas, acham que são melhores que todos os homens, mas não passam de umas putinhas choronas. É isso que vocês todas são. Vocês vivem pedindo por isso. Pra serem fodidas por mim ― ele largou meu rosto com rispidez e colocou o braço na posição que estava antes, enquanto dava um sorriso cínico e nojento. ― É isso mesmo. É essa carinha de choro que eu gosto de ver. Vai, chora. Chora pra mim. Chama por ajuda.
Eu estava ofegando. Meus olhos estavam arregalados, minha mandíbula completamente travada, e meu peito subia e descia. Com o coração quase parando, senti a ardência queimar meus olhos e as lágrimas cheias de pavor embaçando a minha visão. Mas decidi reunir todos os pedaços estraçalhados do meu controle emocional e fazer o maior esforço possível para não chorar.
Quando levantei o pescoço para olhá-lo, Nate DeWolff finalmente parou de me encurralar e esticou o tronco para cima, vitorioso. Ele deu uma risada carregada de desdém e completou:
― Não vai falar nada? Não é você que sempre tem algo na ponta da língua?
Meus dentes rangiam tamanha foi a dificuldade de permanecer em silêncio. Foi quando me lembrei de Lori dizendo que tudo o que Nate queria era estar no domínio. Quem sabe então se, naquele momento, ao invés de me exaltar, eu pudesse agir com um pouco mais de diplomacia e dar a ele uma ilusão de controle. Só assim, naquele caso, ele me deixaria em paz.
― Quero ficar sozinha ― murmurei. ― Por favor, vá embora.
― Que se foda. Tudo o que eu consegui foi desperdiçar a porra do meu tempo com você, sua puta ingrata ― ele esbravejou outra vez. ― Quer ficar sozinha? Vai ficar. Pro resto da sua vida.

Nate finalmente se virou e foi embora, me deixando petrificada no mesmo lugar, não ousando a me mexer um centímetro. Só quando o perdi de vista que o ar enfim voltou a encher meus pulmões. Um relâmpago iluminou o céu, e o trovão que veio logo em seguida bastou para me despertar do choque.
Corri para a porta do Belva Hall e subi os dois primeiros lances da escadaria em velocidade e tempo recorde. Entrei em meu quarto e tranquei todas as fechaduras da porta.
― Sadie? Você tá aqui? Sadie! ― chamei inutilmente por ela, que, óbvio, ainda não tinha voltado.
Disparei para o telefone ao lado da minha cama e liguei para Jenna. Esperei, esperei e esperei chamar, mas a ligação caiu na caixa postal.
Desliguei.
Tirei o fone do gancho de novo e pensei em ligar lá para casa, mas eles se preocupariam demais. Só de ouvir a voz da minha mãe, eu ia desmoronar de tanto chorar. Além de tudo, outra ligação interurbana ficaria tão cara que não compensaria outro estresse.
Merda.
Merda, merda, merda!
Meu choro estava entalado, rasgando minha garganta. Senti falta de ar outra vez. Senti muitas saudades de casa e do amparo da minha família. De repente, me vi completamente sufocada pela distância e pela súbita sensação esmagadora da solidão.
No desespero e, de certa forma, no impulso, tirei da gaveta aquele conhecido papelzinho amassado e disquei o número da república. Enquanto ouvia os toques da chamada, pressionei o telefone contra meu ouvido e fui deslizando pela parede até me sentar encolhida no chão. Tentei controlar a respiração, mas não deu muito certo.
Alô?
― Quem tá falando?
Peker.
― Oi, P-PJ?
Sim, sou eu. ? É você? Tá tudo bem?
― Erm… Tá. Sim.
… Tem certeza?
Fechei os olhos e dei uma pausa. Então, comecei a tremer. Tremer sem parar, da cabeça aos pés.
― Na verdade… M-Mais ou menos… Por acaso… a Jenna está aí?
Não, não tá. É urgente?
― Sim… Um pouco.
Espera só um segundo. ! Viu a Jen por aí? ― de longe, pude ouvi-lo responder que não. ― É, não sabemos onde ela está ou o que anda aprontando dessa vez.
― Tudo bem, então... eu… posso… posso falar com o ?
Pode. Ele acabou de chegar aqui ― PJ se interrompeu e se dirigiu a ele mais uma vez. ― É a ... Ela quer falar com você. Parece que tem algo errado.
Quando ele pegou o telefone, meu coração finalmente bateu um pouco mais devagar. Quase me desmanchei ao ouvir sua voz do outro lado da linha, o som mais próximo de familiar que eu teria naquele momento.
Oi, . O que houve?
― É… É o… É o Nate. Ele…
DeWolff? O que ele fez?! Você encontrou com ele?
― Eu… Não, ele… ele apareceu aqui.
O quê?!
― Meu Deus, eu tô tão… Ah, merda. Tô tão nervosa ― fiz outra pausa. Minha voz chorosa estava começando a aparecer. ― Não consigo ligar pros meus pais agora. Sadie não tá aqui. Tentei ligar pra Jenna, mas–
Você tá sozinha?
― Sim...
Quer que eu vá até aí?
― Não, não precisa se preocupar comigo. Eu tô bem. Eu só–
Sem essa, . Chego aí em cinco minutos.
― E-Espera! Espera ― tampei o microfone para tentar recuperar minimamente a minha respiração. ― ?
Hmm?
― Se você vier… pode trazer… um… baseado? Se ainda tiver.
Ele demorou alguns segundos antes de responder:
Posso. Tenho ainda, mas preciso bolar. Faço isso aí. Tem problema?
― Não. Nenhum.
Depois que desligamos, olhei para o relógio: já eram pouco mais que sete horas. Em apenas alguns minutos, a chuva e o vento chegaram com toda força, então me levantei depressa para fechar todas as janelas e as persianas da sala. Liguei a TV e, mesmo que num volume baixo, deixei o barulho de um canal aleatório substituir o sossego do ambiente.
Enfim me sentei no sofá e tentei mais uma vez regularizar minha respiração para a ansiedade passar. Fiquei nessa por mais uns cinco minutos.
Mesmo aguardando sua chegada, quando bateu na porta, meu coração quase saiu pela boca. Levantei-me para abri-la e o encontrei com o rosto ensopado, roupas respingadas e o capuz de seu moletom cobrindo sua cabeça.
― Vim de bicicleta ― ele se justificou, vendo minha cara de confusão. ― Não achei que essa chuva fosse me pegar.
Fiz menção para que ele entrasse e, então, tranquei a porta.
― Espere aqui ― pedi, andando em direção ao meu banheiro.
Entre minha toalha de coelhinhos dependurada no box e as de e gatinhos guardadas no armário… eu não tinha muitas opções. Apanhei uma qualquer das prateleiras e, de volta à sala, arremessei-a para , que agradeceu e pegou-a no ar. Ele deu uma breve analisada na estampa fofa antes de tirar o capuz e secar seu rosto e cabelos.
Me joguei novamente no sofá.
― Ei… ― ele sentou-se na outra ponta, virado para mim, com a toalha cor-de-rosa ao redor de seu pescoço e os cotovelos apoiados nos joelhos. ― Me fala o que aconteceu.
― Aconteceu que você tinha toda a razão ― comecei. ― Eu não fazia ideia de quem Nate DeWolff era.
― Por que caralhos ele apareceu aqui? Foi aqui dentro ou lá fora?
― Eu tinha acabado de dar uma volta e fui estacionar minha bicicleta lá embaixo. Ele estava lá, como se estivesse me espreitando ou algo do tipo ― gesticulei com as mãos, deixando a tremedeira mais do que visível. logo percebeu. ― Disse que veio devolver um livro pra alguém. Acha que ele estava falando a verdade?
― Não sei ― respondeu, tirando do bolso da calça um dichavador e um saquinho plástico com a erva verdinha.
― Não lembro mais de como tudo chegou ao ponto que chegou, . Só sei que foi horrível. Nunca passei por nada parecido na minha vida. Eu não disse nada de mais, juro, não falei nada sobre você nem de PJ. Ele só queria saber o tempo todo por que eu desapareci da festa. Inventei uma desculpa qualquer, mas ele não engoliu. E talvez eu tenha… dado uma pista sobre saber da droga nas bebidas, mas… Merda. Ele ficou muito desconfiado. Muito mesmo, como se tivesse sido pego em flagrante. Então eu acabei o afrontando. Eu sei, eu sei, foi tudo culpa minha, sei disso. Eu deveria ter ficado quieta, só isso! Pode me dar o sermão que você quiser...
. Calma. Respira fundo. Não vou te dar sermão nenhum, o ponto não é esse ― ele parou de dobrar e enrolar a piteira e olhou para mim. Respirei fundo umas três vezes. ― Agora… Que porra esse filho da puta fez pra te deixar nesse estado?
― Eu não sei… ― minha voz ficou embargada de novo. ― Só sei que ele tentou me humilhar… da pior maneira possível. Me disse um monte de coisas horríveis… Disse que sabe qual é meu tipo, que... não suporta vagabundas iguais a mim e… Eu não consigo me lembrar mais… Aconteceu agora mesmo, como eu não consigo me lembrar de mais nenhuma palavra?!
― Não precisa se lembrar. Nem deve, porque nenhuma palavra é verdade. Ouviu? Vai com calma ― ele pediu pausadamente, e eu só balancei a cabeça. ― Tem mais alguma coisa?
― Ele me deixou encurralada, . Falou que eu pedi por isso, que eu quis tudo isso… Sei lá… Ele… Ele agarrou meu rosto bem forte assim e… continuou me pedindo pra chorar…
― O quê?! ― seu rosto inteiro se retorceu numa careta de repulsa.
― Ele queria muito que eu chorasse. E chamasse por ajuda ― continuei. Verbalizar tudo aquilo era ainda mais difícil do que ter só as cenas passando pela minha cabeça. Tornava tudo mais real.
― Puta merda,
― Droga. Eu não queria chorar. Eu não quero chorar ― joguei a cabeça para trás, tentando forçar minhas lágrimas voltarem para dentro dos meus olhos.
Depois do silêncio que se formou, consegui me concentrar e ficar um pouco mais calma. Mas só um pouco.
― Desculpa ter te ligado ― encolhi meus joelhos e olhei para frente. ― É que…
― Não precisa se justificar, para com isso. Eu tô aliviado que você me ligou. De jeito nenhum eu ia te deixar aqui sozinha.
― Obrigada, . Sério — olhei rapidamente para ele, mas bem rápido mesmo, morrendo de vontade de abraçá-lo. — Mas… sabe o que é pior? Mesmo com você aqui, é assim que tô me sentindo ainda.
― Como? Sozinha?
Só murmurei e confirmei com um aceno de cabeça, encarando a televisão.
― Ei… ― ele chegou um pouquinho mais perto de mim no sofá e abaixou o queixo, buscando minha atenção com o olhar. ― Eu sei que você sente falta da sua terra encantada no Alabama. Mas logo, logo você vai vê-los de novo, sua porrada de irmãos e cachorros.
Um sorriso involuntário se formou no meu rosto. Segundos depois, quando resolvi observá-lo por mais tempo pelo canto dos olhos, encontrei-o meio distraído, ainda tenso, encarando um ponto fixo no chão.
― O que foi?
― Nada, eu só… estava pensando ― ele saiu do transe e se esticou para alcançar a seda na mesinha de centro. ― Eu sabia que aconteceria de novo. Uma hora ou outra isso ia se repetir com outra pessoa.
Também parei para refletir por um momento, tentando entender o que ele realmente queria dizer com aquilo.
― Você… tá pensando na Renée? ― perguntei. girou o pescoço para me olhar e só fez que sim com a cabeça. ― O que aconteceu exatamente?
Ele respirou fundo antes de começar:
― Rennie disse que ficou tão bêbada nesse dia que o DeWolff se ofereceu pra ajudar a levá-la de volta ao Belva Hall. Mas ele não fez isso. Levou-a pro quarto dele e se trancou com ela lá dentro. Só sei que duas amigas apareceram a tempo, esmurraram a porta, chamaram a atenção de todo mundo e a tiraram de lá. Claro, tinham notado o sumiço repentino dela. Rennie perdeu a consciência assim que terminou de descer as escadas da mansão pra ir embora, quando ainda estava recebendo apoio das duas pra andar. Foi o que ela me disse. Até hoje não sei muito bem o que aconteceu exatamente naquele quarto com o DeWolff. Rennie demorou a me contar tudo isso, mas lembro de ter ficado muito abalado quando soube. Mas eu era um idiota, só fiquei cobrando por quê ela não tinha me contado antes e toda essa bobagem. Ela sentia muita vergonha, dizia que não queria que eu a olhasse com outros olhos... e eu... só queria muito ajudá-la. Ela disse que não achava que eu poderia, me pediu várias e várias vezes pra me esquecer dessa história. Mas... eu nunca consegui.
Ele interrompeu o contato visual. Um músculo de sua mandíbula travou. Então, seus ombros foram caindo, e a angústia foi nublando suas feições.
― Ela não denunciou na época? Nem reportou a ninguém?
― Não. Foi uma das coisas que eu vivia insistindo pra ela fazer, mas Rennie sempre dizia que não valia a pena. Primeiro, ela me garantiu com todas as letras que o DeWolff nem chegou a se despir, e que disso ela tinha certeza. Mas nunca se esqueceu das coisas que ele falou e de como ele a tratou… como uma puta, nas palavras dela. Rennie só queria esquecer e deletar tudo da cabeça. E insistia que nunca mais aquilo aconteceria de novo, então, por isso, eu não deveria me preocupar. Mas eu sabia… Esse tipo de coisa, essas conversas entre caras… Elas acontecem com uma frequência muito maior do que vocês garotas imaginam. E eu sabia que aconteceria de novo. E de novo. E de novo. Caras assim não mudam. Eles precisam responder pelo que fizeram. Rennie começou a acreditar que foi tudo culpa dela e que mereceu passar por isso, até porque eles estavam juntos na época. Ou seja, era mais difícil ainda desconfiar dele. Mas não, foda-se, ela não mereceu. Então, , por favor… ― ele virou o rosto para o meu e olhou por alguns instantes no fundo dos meus olhos, como se estivesse garantindo que eu absorvesse tudo. ― Nunca diga que o que aconteceu hoje foi sua culpa. Nem pense nisso também. Não se culpe por ter agido por sua própria conta e risco.
Deixei o silêncio tomar conta de novo, não fosse pela melodia vindo de longe da TV. Tomei aquele tempo para absorver tudo pela segunda vez.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Only Happy When It Rains – Garbage

― Como ela está hoje? ― perguntei. ― Está melhor?
― Está indo bem, me parece. O maior problema que ela enfrenta hoje é com a família, que está há anos em uma briga judicial que você não pode nem imaginar. Mas, agora, Rennie vai todo fim de semana até Manhattan fazer consultas com um psicólogo.
― Que ótimo.
― Eu sei. Foi difícil. Ela vivia sobrecarregada sentimentalmente, mas acreditava que não precisava melhorar. Aliás, nem queria. Dizia que não se imaginava sem essa dor e sofrimento, que não se conhecia assim, e isso a assustava pra caralho. Lembra quando te falei que ela é apegada aos próprios problemas?
― Sim, lembro.
― Rennie meio que se achava indigna de ser feliz, ou alguma coisa inexplicável do tipo. Ela já era uma pessoa ressentida antes, mas eu fui entendendo aos poucos. Uma vez, ela me disse que momentos felizes desapareciam rápido demais, e os tristes eram sempre mais… estáveis. Eu sei, não vai fazer o menor sentido pra você. Eu sei que você deve estar pensando, “como alguém gosta de ser infeliz?”, mas, acredite, não é bem isso.
Na verdade, revendo todas aquelas informações, as coisas agora pareciam fazer muito mais sentido.
― Não, eu acho que entendi sim ― comentei. ― Parando pra pensar… Tem gente que acaba se sentindo mais confortável assim, na própria melancolia, mas não recebe nenhum tipo de orientação saudável ― suspirei, em meio à clareza que mais pessoas com esses sintomas também já passaram pela minha vida, mas nem consideraram um tratamento graças ao estigma social idiota dos outros. ― Nossa… Complicado.
― Como eu sempre te falei ― ele deu um sorrisinho.
Sorri de volta.
voltou a espalhar a ganja na seda com cuidado, e eu fiquei observando todos os passos que ele fazia. Logo me vi absorta em pensamentos. Ele parecia ser do tipo que lutaria contra o mundo se alguém tentasse machucar as pessoas que amava.
Acho que agora eu finalmente entendia tudo. Ou parte de tudo. Renée fazia mal para , mas, talvez, ele não podia suportar deixá-la porque estava com muito medo do que ela faria, não para ele, mas para si mesma. Por isso deve ter sido tão difícil. Por isso houve tantos términos e tantas voltas. Por isso levou tanto tempo para ambos amadurecerem todas essas questões, cada um no seu ritmo.
― Sabe de uma coisa? ― ajeitei minha postura com uma incrível determinação. ― Foda-se. Eu ainda vou até a reitoria relatar o que aconteceu. Não sei quando, mas vou, assim que eu tiver forças.
Ele fez uma expressão incerta, porém surpresa.
― Tem certeza?
― Tenho. Essa merda toda ainda vai afetar minha cabeça por uns tempos. Eu me conheço. Não posso deixar que isso passe despercebido, ainda mais sabendo que é recorrente. Eu sei, eu sei, as chances de absolutamente nada acontecer com o DeWolff e ele ser acobertado são altas. Mas eu só preciso falar. Preciso fazer alguma coisa pra tirá-lo debaixo desse manto protetor do silêncio. O problema é que… Não sei... O problema mesmo é o Nate vir atrás de mim e querer se vingar de algum jeito se for questionado pelo reitor ou pela polícia do Campus.
― É mesmo algo que você deve pensar mais a respeito. Mas priorize a sua segurança, . Por favor. Sei que você tem seus ideais e tudo, mas eu realmente acho que… ― inquieto, ele se interrompeu de repente e passou uma das mãos pelo rosto e cabelo, jogando-o para trás. ― Esquece. Essa decisão é sua. Deixa eu pensar… Você reparou se mais alguém estava no pátio? Alguém passando ou olhando pela janela?
― Não… Tá tudo deserto aqui nesse Spring Break. Não tinha ninguém. Quer dizer, não que eu saiba.
― Então, talvez, eles não dêem nenhum prosseguimento à condenação do DeWolff por falta de provas. É capaz que ele nem fique sabendo. Faz a denúncia anônima só pra deixar registrado.
― Caramba… Já pensou se ele tivesse um monte de denúncias registradas? Tipo dezenas?
― Tipo centenas, você quer dizer. Aí sim a Oyster sofreria uma pressão fodida pra começar uma investigação de verdade. Não que isso fosse muito exemplar da parte da Universidade.
― Exatamente. Uma única denúncia deveria fazer o trabalho todo. Pra você ver como o mundo é uma desgraça infernal. Esse maldito ciclo infinito de merdas.
― Toma aqui, niilista ― dando risada, terminou de bolar o baseado e me entregou um cone perfeito. ― Hora de relaxar.
Um pouco sem jeito, levei o cigarro à boca. Ele tirou seu isqueiro do bolso, acendeu-o na minha frente, e eu dei o primeiro, profundo e longo trago.
― Wow ― falou, espantado. ― Achei que essa fosse sua primeira vez... Estou muito enganado.
― Só faço isso em ocasiões extremas ― soprei a fumaça para cima.
― Quando foi a última?
― Hmm… Há pouco mais de um ano.
― E o que aconteceu?
Hesitei por um momento. Aquele era um assunto muito frágil para mim, que eu falava abertamente só com Jackel e olhe lá. Mas, se eu respondesse rápido, não ia doer tanto.
― Meu avô ficou muito doente e teve que ser intubado no hospital. Mas não se preocupe, ele tá bem hoje. É só que… vê-lo daquele jeito me deixou extremamente ansiosa. Lembro que eu e meu irmão fumamos escondido no estacionamento, mas pra mim funcionou mais como um ansiolítico que surtiu o efeito contrário. Ou seja, não funcionou.
― Sei como é ― ele me deu um olhar tão calmo e acolhedor que era como se tivesse se identificado de alguma forma. ― Por que não usa pra se divertir? Talvez desvie sua memória ruim pra outro lugar.
― Já tentei fazer isso, principalmente nos meus primeiros meses em Nova York. Mas, hoje, acho péssimo. Nunca gostei de fumar. Odeio esse gosto que fica perdurando na boca por horas.
Ele riu.
― Então você devia experimentar os brownies do Alex.
― Hmm ― sacudi os ombros. ― Não é uma má ideia. Quer um trago?
― Não. Ele é todo seu.
― Deixa disso. Eu te dou o último.
Depois de tragar bastante, olhei para e comecei a rir incontrolavelmente.
― O quê? Já bateu? ― ele também riu, como sempre, contaminado pela minha gargalhada.
― Não sei… Eu só tinha me esquecido que você ainda tá com minha toalha rosa de coelhos feito um xale.
Rapidamente, ele tirou-a de seus ombros e colocou-a no topo da cabeça, fazendo pose.
― Assim tá melhor pra você?
Ri mais ainda.
Então, se levantou e começou a caminhar pela sala, me perguntando onde poderia guardar a toalha. Indiquei o pendurador do meu banheiro e ele foi dar sua voltinha pelo quarto. Assim que retornou, sentou-se ao meu lado de novo, com os cabelos loiros ainda úmidos e um sorriso mais tranquilo no rosto.
― Obrigada por ter vindo. Sério ― falei, convicta. ― Espero que você não pegue um resfriado por minha causa.
― Relaxa.
― Eu estou relaxada ― com uma convicção maior ainda, reafirmei, enquanto sentia minhas pálpebras cada vez mais pesadas e todo o meu corpo sendo sugado pelas almofadas do sofá. ― Acredite.
― Eu acredito. Na verdade, estou vendo ― ele sorriu de lado.
Ainda bem que ele não sabia que eu ficava totalmente maluca por aquele sorrisinho de lado.
― Oh! Quase me esqueci ― exclamei, me ajeitando no assento. O beck já estava chegando na metade. ― Desculpa por fumar o troço quase inteiro sozinha. Toma, não quero mais. Fumei muito. Pode ficar com o último trago, eu insisto.
Estiquei o braço e estendi a mão para pegar o baseado, mas ele não o fez. Só inclinou o pescoço para frente e foi aproximando o rosto da minha mão, devagar, sem nem piscar ou tirar os olhos dos meus. Ele puxou um trago do cigarro ainda preso entre meus dedos, a milímetros de encostar seus lábios neles.
Quando se afastou e soprou a fumaça para o lado, ainda manteve os olhos pregados em mim. Entrei num estado de hipnose quase de forma automática, enquanto retribuía seu olhar com a cabeça nas nuvens.
Levei o baseado à minha boca e traguei de novo.
― Achei que tivesse sido o último ― ele provocou.
― Hmm… Eu menti ― dei de ombros, fingindo indiferença. Mas não por muito tempo. Adotei o meu sorrisinho de lado e mirei para ele.
Agora seus olhos ficaram tão impenetráveis que era impossível adivinhar no que ele estava pensando, o que era raro. Aquilo me deixou aflita.
― Não quer ir amanhã à noite lá pra república ao invés de ficar sozinha aqui? ― sugeriu, de repente. ― Vamos chapar e jogar uns jogos de tabuleiro.
― Só vocês três?
― Sim, mas agora eu acabei de estragar todo o plano. Você e Jenna podem aparecer lá também.
― Era pra ser a “noite dos caras”? ― dei uma risadinha.
― Mais ou menos isso ― ele admitiu, também rindo. ― PJ e Lori discutiram ontem e ele tá pra baixo o dia inteiro.
― Jura? Ah, não! Lori é tão legal... Espero que eles se resolvam logo ― lamentei, comovida de verdade. Eu tinha adorado aquela garota. Então, todos aqueles novos e breves relacionamentos me fizeram pensar em Sadie. Foi quando resolvi jogar o verde: ― E o Alex? Como ele tá? Faz tempo que não o vejo.
― Acho que ele tá saindo com uma garota aí. Nada sério.
― Hmm. Entendi.
Então ele ainda não sabia da novidade. Eu não ia dizer nada, assim como não queria que Sadie soubesse da minha queda abismal por . Era melhor deixar o tempo fazê-lo descobrir por conta própria.
― Bem… Podem curtir sozinhos ― falei, por fim. ― Eu e Jenna podemos ter nossa “noite das garotas” também. Vou ficar bem, juro.
Ele fingiu uma cara de aborrecimento completamente exagerada e me deu uma cotovelada no braço.
― Puta merda, , você só me rejeita.
Comecei a rir pelo que parecia ser a milésima vez.
― É sério ― reforcei, fazendo a educada ―, não quero atrapalhar.
― Eu também tô falando sério. Aproveita que você se transformou numa maconheira temporária e vai lá amanhã comer os brownies do Alex.
― Ok… ― ri mais uma vez. ― Tá bom. Eu vou.
Ele deu um sorrisinho satisfeito.
― Agora… O que acha de ligar aquele Nintendo pra gente jogar Mario Kart enquanto você tá chapada?
― Essa é a ideia mais inteligente que você já teve em toda sua vida, sabia disso?
― Eu costumo ter ideias inteligentes, .
― Só fica esperto porque eu sou a rainha invencível do Mario Kart. Essa é a realidade que o mundo precisa engolir.
Enquanto anoitecia, eu ficava cada vez mais despreocupada com tudo e entregue ao momento, rindo e enchendo de perguntas sobre um assunto mais aleatório que o outro – isso quando eu não me esquecia do que estávamos falando de dois em dois minutos. Ele estava longe de acompanhar meu raciocínio, mas se divertia quase como se estivesse tão alto quanto eu.
Mesmo quando a chuva passou, ficamos mais algum tempo naquele escurinho aconchegante do dormitório, travando uma disputa entre Donkey Kong e Peach; a preguiça reinando e não deixando ninguém sequer se levantar do sofá para acender uma luz. Xinguei todas as trezentas vezes que passei por cima das cascas de banana que ele deixava na pista ou dos cascos azuis da morte que ele lançava para o meu carrinho explodir sem escapatória. Acabei ficando em quinto lugar em todas as corridas, o que foi a deixa para ele fazer hora com a minha cara por tempo indeterminado – como me obrigar a repetir em voz alta que eu era a pior jogadora de Mario Kart do mundo.
Não tinha a menor condição de jogar aquilo chapada.
Demorei um pouco, mas, depois de todo aquele tempo, entendi o que ele estava tentando fazer: me distrair. Eu poderia até tentar alternativas, mas nada se comparava à leveza de sua companhia. Àquele ponto, eu já estava me tornando uma especialista – para não dizer cansada – em controlar meus próprios hormônios perto dele.

, por sua vez, um verdadeiro mestre em arruinar tudo.



― Geladeira de república é sempre uma tristeza ― Jenna reclamou, fechando a porta branca de inox. ― Nunca tem nada. Só uns ovos, queijos mofados e engradados de cerveja barata.
Da mesa onde estávamos, PJ a observava com um ar irredutível de aborrecimento. Até que resolveu dizer:
― Isso porque você não viu os bolinhos que deixei descongelando na bancada.
Logo em seguida, Jen foi conferir e deu um berro.
― AH! Você vai fritar falafel? Maravilha, maravilha, maravilha! ― ela correu até ele e o enforcou num abraço, enchendo-o de beijos pelo rosto.
Após uma rodada de Banco Imobiliário e outra de Detetive, nosso estômago começou a roncar. Momentos antes, tínhamos resolvido jogar War, porém, nem meia hora de jogo depois, eu já tinha apelado e desistido. Meu objetivo era conquistar os vinte e quatro territórios, e Alex já tinha fodido com todo o meu exército de pecinhas amarelas na Ásia e na Europa.
― Tô com fome... ― falei, manhosa, fazendo PJ finalmente se levantar e ir para a cozinha esquentar o óleo na panela.
― Já tô na maior larica ― Alex disse enquanto terminava de fumar seu haxixe. Ele era o único chapado constante ali. ― Vou aproveitar e assar os brownies, . Cadê o ?
― Foi trocar de camisa ― Jenna respondeu. ― Você derrubou uma lata inteira de Coca-Cola nele, esqueceu?
― Ah, é ― ele soltou uma risada alta, lerda e debochada. ― Na verdade, não tem graça. Quem vai na lavanderia essa semana sou eu.
Meu pescoço automaticamente girou quando apareceu nas escadas. Enquanto descia os degraus, ele ainda passava pelos braços uma camiseta branca onde se lia a frase “Well, fuck America”, e eu só aproveitei cada milésimo de segundo até a malha cobrir seu peitoral e tórax. Por cima, ele ainda jogou uma larga camisa xadrez com os botões abertos.
― Que cheiro bom é esse? ― perguntou, indo parar direto ao lado de PJ, que fritava os bolinhos no fogão. ― Falafel?
― Aham.
― Aí sim. Alex?
― Já tô indo ― ele se levantou e também foi para a cozinha, enquanto foi se sentar na cadeira da ponta da mesa, exatamente na minha diagonal.
― Porra, tá faltando uma música aqui ― Jenna reclamou. ― Sabe o que tô com vontade de ouvir?
― Eagles? ― sugeri, sarcástica.
― Não. Fleetwood Mac. PJ, você ainda tem o vinil aí?
― Não, levei lá pra casa no Natal. Acho que o tem um.
― Tenho só o Rumours ― ele respondeu. ― Tá aí na estante. Olha na terceira gaveta.
― Ótimo!
Jen se levantou e foi até a estante procurar pelo LP na gaveta indicada. Depois, foi para o tocador de discos, onde posicionou a agulha para reproduzir a segunda música.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Dreams – Fleetwood Mac

― Vou acender um baseado só pra gente ― ela piscou para mim ao voltar para a mesa, sentando-se ao meu lado. ― Eu te ensino, você quer?
― Ensinar? ― riu pelo nariz. ― dá aula, Jenna.
― O quê? Você fuma, chuchu?! Não imaginava.
― Só de vez em quando… ― poupei longas explicações. ― Mas sim, podemos fumar um juntas. Aproveita que hoje eu tô animada.
Ela comemorou, dando gritinhos e batendo palmas. Então, tirou um beck do bolso e esticou o braço para acendê-lo com um isqueiro, que também aproveitou para começar a fumar o seu. Jen me passou o baseado depois de dar a primeira tragada. Fomos compartilhando o fumo, e, de repente, aquela sala virou pura fumaça.
― É a última vez que estamos fumando uma erva tão verdinha ― ela lamentou. ― O esquema do acabou de vez, como já era eventualmente de se esperar.
― Perdas e ganhos ― ele só balançou os ombros, meio triste também, mas como se já tivesse superado aquilo há mais tempo.
Depois de tragarmos mais algumas vezes, a música ainda rolava e Jenna me chamou para dançar – ela me puxou até o centro da sala e eu não tive muita escolha. Àquela altura, PJ e Alex já comiam os petiscos prontos na mesa e continuava a fumar. De alguma forma, senti que os três nos observavam.
Estávamos de mãos dadas, ainda dividindo os últimos tragos, dançando num ritmo lento e divertido, acompanhando o compasso leve e gostoso da música. Com os pés descalços, usávamos também uns shorts jeans curtinhos e blusas largas de malha em tie-dye, que uma pegou emprestado da outra. Sutiã? Nem sabíamos o que era isso.
Desliguei minha cabeça e entrei naquele conhecido mundinho prazeroso do descontrole, que girava e girava à minha volta, me enchia de devaneios improváveis e me proporcionava uma lombra das boas.
De repente, no meio da nossa brisa, Jen pisou sem querer no meu pé e desembestou a rir. Riu tanto que caiu no chão e, como não soltava nem fodendo a minha mão, acabou me puxando junto. Ficamos as duas rolando no carpete, rindo até a barriga doer.
― Alguém AJUDA! ― ela gritou, quase sem ar, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Então, só vi um par de tênis brancos e surrados da Nike se aproximando, e eles pararam exatamente entre nós. ― , ajuda a gente.
Olhei para cima e o vi com uma bituquinha presa entre os lábios e as duas mãos estendidas. Jenna agarrou uma e eu a outra, e ele levantou nós duas ao mesmo tempo.
― Já vi que os brownies vão ficar pra mais tarde ― ele me encarou, tirando o cigarro da boca.
― Calma, … ― sorri, ainda segurando a mão dele, bem louca. ― Ainda dá tempo de fazer tudo o que a gente quiser.
Ele levantou uma sobrancelha e deu um sorrisinho safado, se divertindo:
Tudo?
― Jen o chamou em um tom repreensivo, percebendo a conotação. ― Para de encher o saco, a já tá a finzona de outro cara aí.
Naquele momento, eu quis matá-la.
― É mesmo? ― ele ficou curioso. E o pior era que nenhuma desconfiança estampava seu olhar divertido, apenas curiosidade. Tentei soltar sua mão, mas ele a apertou, me obrigando a ficar ali e a passar aquela vergonha. ― E qual o nome do cara?
― Não sei. Ela não quis me contar, é um mistério. Mas acho que é o Derek. Admite, .
― É, é o Derek ― menti, piscando os olhos um monte de vezes. A pior mentira da história. ― Pronto, admiti. Tá feliz?
― Não disse?! ― ela comemorou. ― Eu sa-bi-a!
parecia ter um detector de mentiras deslavadas implantado na cabeça, porque disparou a rir da minha cara, nem um pouco convencido. Uma gargalhada cheinha de sarcasmo.
Puta merda.
Ele sabia a verdade? Estava tão na cara assim?!
― Hmm. Derek, o nome dele ― repetiu, me provocando com o olhar. ― Boa sorte com o Derek, ― ele levantou o dorso da minha mão e deixou um beijo ali, demorado e um tanto quanto desafiador.
Meu Deus.
Ele sabia.
Ele acabou de jogar na minha cara que sabia toda a verdade. A verdade que eu sempre custei tanto para esconder, ou, ao menos, manter no nível platônico. E era exatamente por isso que ele vivia me atormentando com aquele tipo de gracinha dos infernos.
Jenna estava lerda demais para perceber qualquer coisa, então só voltou para a mesa como se nada estivesse acontecendo. Ainda bem. Antes que meu coração saísse pela boca, soltei minha mão da dele num movimento rápido. Ergui o pescoço e, com um pouquinho de esforço, levantei o olhar para encarar no fundo daqueles olhos miúdos e avermelhados.
― Você é irritante. Pra caralho, .
Ele só riu mais alto ainda.
A maconha não ajudava em nada, porque eu também só tinha vontade de rir, mas mantive a pose séria e resolvi ignorá-lo pelo resto da noite. Se pelo menos eu tivesse o talento da discrição e do flerte desde o dia um, nada disso teria acontecido.
Algum tempo depois, quando todos já havíamos devorado os bolinhos fritos de PJ, o clima naquela mesa ficou um pouco esquisito e silencioso. Eu tinha me sentado bem longe da cadeira onde estava antes, mas ele fez o favor de mudar de lugar e se sentar de frente para mim.
Entre assuntos casuais e piadas internas, o papo ficou mais sério de repente. Alex e Jenna entraram numa discussão enquanto conversavam sobre a crise existencial que chegava para todos com o fim da faculdade:
― Se eu não conseguir minha carta de recomendação pra trabalhar como assessor de imprensa em West Village, naquele trampo que te falei… sei não ― ele comentava, ansioso. ― Depois da Oyster, meu caminho pertence a Deus.
― Tenta se arriscar como freelancer, Alex.
― Não tenho disciplina pra isso. Talvez como redator publicitário? Não sei...
― Pelo menos eu pretendo pegar uns freelas. Quero ir pra Califórnia.
― Eu quero ir pra onde estiverem contratando. Na verdade, qualquer lugar menos Connecticut.
― E ganhar um salário merda enquanto é explorado?
― É a realidade, Jenna.
― Não, eu passo. Preciso lutar por reconhecimento. Não fiz essa bagaça de faculdade à toa.
― Você acha mesmo que o mercado tá ligando pra sua luta pelo reconhecimento e valor social?
― E daí? Você quer que eu simplesmente aceite o sistema como ele é?
― Não foi isso o que eu quis dizer.
PJ pigarreou, cortando o debate:
― Vocês sabem que não temos muito do que reclamar além da nossa própria mediocridade, né?
E aquela verdade lançada bastou para todos ficarem calados e reflexivos.
― Eu me imaginava diferente com essa idade ― confessei. ― E vocês?
― Diferente como? ― Jen quis saber.
― Sei lá… Mais madura. Mais segura sobre minha profissão. Menos assustadoramente ordinária.
Eles riram.
― Te entendo ― ela deitou a cabeça em meu ombro. ― Acho que eu tô enfrentando uma crise de identidade todos os dias nesse último semestre também.
― Chega dessa bad trip ― Alex bateu com os dois punhos fechados na mesa. ― Vamos jogar alguma outra coisa.
― Tipo... ― PJ bocejou, pra variar. ― Tipo o quê?
― Sei lá, qualquer jogo. Vamos fazer as coisas ficarem mais divertidas, tô cansado desse papo escroto sobre o futuro.
― Oh! Tem aquela garrafa vazia de Everclear aqui que eu sei ― Jenna sugeriu ―, ou vocês já jogaram ela fora?
― Não, tá lá no quintal. O que você tá pensando em fazer?
― Podemos jogar Verdade ou Desafio.
Literalmente todo mundo começou a rir e a zombar da cara dela.
― Não, obrigado ― PJ recusou ―, não quero voltar ao ensino fundamental.
― Não, obrigada, eu já beijei duas pessoas dessa mesa ― falei, sem nem pensar.
― Putz, é verdade ― ele me respondeu, ainda sonolento. ― Alex fez uma excelente propaganda, inclusive.
― E como fez ― acrescentou. ― Ninguém aguentava mais ouvir falar nisso. Foi o assunto de um mês inteiro nessa casa.
― Não é?! ― PJ voltou a rir. Alex nem tentava interromper os dois, só observava tudo na maior paz. Ele não era muito de se sentir constrangido por nada quando não estava sóbrio. ― A propaganda foi tão excelente que eu até toparia jogar uma rodada. Vai, Jenna, traz o Everclear pra gente.
― Eu posso falar, a propaganda procede ― ela completou, se retirando da mesa para buscar a maldita garrafa.
Levei minha mão à testa, desconcertada. Além da vergonha máxima, eu estava sentindo o peso do olhar de sobre mim o tempo todo.
Jen logo voltou com a garrafa de vidro vazia e a posicionou no centro da mesa. PJ deu o primeiro giro, e eu só cruzei os braços. E não é que a droga da garrafa parou entre nós dois?
― Wow! ― ele exclamou. ― Olha só. Isso foi real?
― É o destino ― Jenna deu sua habitual justificativa.
― Sem essa ― contestei. ― A gente não tá levando isso a sério mesmo, tá?
― Tudo bem, tudo bem, foi só uma brincadeira… Meu coração é da Lori… ― ele se debruçou sobre a mesa, choramingando. ― Vou te poupar, . Tô morrendo de sono e chapado para um caralho.
― Também tô querendo dormir ― Alex se levantou e foi caminhando até o sofá. ― Mas, antes, vou ver um pouco de TV. Quer, Jenna? Ontem teve show do Korn em Seattle.
― Quero! Põe aí na MTV pra ver se eles vão reprisar hoje.
― Acho que vai rolar uma entrevista com os integrantes daqui a pouco.
― Melhor ainda!
E os dois foram para a sala, me deixando sozinha com e um PJ apagado sobre a mesa, parecendo um sapo morto. Pelo menos a televisão ligada no canal de videoclipes deu conta de preencher a tensão e o silêncio opressor.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Butterfly – Crazy Town

Respirei fundo e mordi o lábio, ainda me sentindo observada. Queria fazer qualquer coisa, menos retribuir aquele olhar. Não tive nem tempo de repensar na minha vida e em minhas escolhas – de repente, estar ali com ficou sufocante demais para meu pobre coração exposto.
― Você sabia que uma hora ou outra isso ia acontecer ― ele disse, com a voz arrebatadoramente rouca.
― Isso o quê, ?
― Ficar sozinha comigo. Não é o que sempre acontece?
― PJ tá aqui.
― PJ tá em outro mundo ― falou, despreocupado. Então, casualmente pegou a garrafa e a girou.
― O que você pensa que tá fazendo? ― finalmente olhei para ele. Aquele sorrisinho imbatível pregado em seus lábios me fez borbulhar por dentro.
― Só vendo no que vai dar.
A garrafa parou entre eu e uma cadeira vazia. Então, determinada, peguei aquela merda e girei eu mesma, dessa vez parando entre ele e outra cadeira vazia. não desistiu e rodou-a pela segunda vez. Não dando em nada de novo, passou a vez para mim.
E assim ficamos uns bons minutos.
Ele girava.
Eu girava.
A garrafa sempre parando em espaços vazios.
― Chega ― esfreguei as mãos pelo rosto. ― O que estamos fazendo?!
Ele não respondeu, só se levantou e foi abrir a geladeira, tirando de lá a última latinha de Coca-Cola. Depois de tomar uns goles, cruzou os braços e apoiou a lombar na bancada, de frente para mim. Em seguida, apontou com o queixo para a Everclear estacionada na mesa.
― Não quer girar isso só mais uma vez?
Balancei os ombros e fiz o que ele pediu, como se não fosse nada de mais.
Então, fiquei chocada. Fiquei boquiaberta e agoniada quando a garrafa finalmente parou entre e eu. Mas ele não estava mais sentado em seu lugar, então... ficamos alguns segundos nos entreolhando.
― Não me venha falar que essa rodada não valeu ― ele disse, o sorriso malandro e os olhos atentos na minha reação.
Enchi a cozinha de risadas e escárnio:
― Mas não valeu mesmo!
― Acha mesmo que é você quem decide as regras?
― Óbvio. Fui eu quem girei a garrafa.
― Nada disso. Você sabe o que tá me devendo agora.
― Então agora é você quem decide as regras?
― A regra é... Quando a garrafa parar entre duas pessoas, elas têm que–
― Não! Você não tava aqui. Foi levantar pra beber refrigerante e perdeu.
― Lógico que eu tava aí. Esse é o meu lugar. Onde você leu nas regras que eu preciso estar materializado no meu lugar?
Bufei.
Lutei com todas as forças do mundo para me manter firme e séria. Cobri minha boca com a mão, me recusando a deixar um mínimo sorriso visível para ele, mas eu tinha certeza que as maçãs do meu rosto estavam me entregando.
Eu não ia concordar com aquilo.
me encarava, completamente orgulhoso. Metido. Convencido da cabeça aos pés.
― Eu só vou repetir uma coisa ― falei, depois de inspirar e expirar o ar umas duas vezes. ― Você é muito, mas muito irritante.
― Só porque eu sei que você não tá nem aí pro tal do Derek?
― Meu Deus. Eu não aguento mais você ― empurrei a cadeira e saí dali com pressa, me juntando a Jenna e Alex no sofá da sala.
Os dois estavam super empolgados com a entrevista que começou a passar na MTV da banda que gostavam. Eu não conseguia prestar atenção em absolutamente nada. Devo ter ficado plantada ali, totalmente aérea, por pelo menos vinte minutos.
Não conseguia parar de pensar em .
Em certo momento, até me virei para trás, verificando se ele ainda estava na cozinha. Mas tinha sumido. Até PJ ainda estava dormindo sobre a mesa e tinha sumido.
Quando começou a passar o intervalo comercial na TV, Jenna se levantou e me chamou para ir até a cozinha com ela.
― Vou fazer um chá. Quer, ?
― Chá de quê?
― Um de hortelã mesmo. Vai querer, Alex?
― Hã? ― ele respondeu de olhos fechados, praticamente cochilando. ― Não… Obrigado…
Então, fomos para o fogão ferver a água e procurar pelas caixinhas de sachês nos armários. Cinco minutos depois, Jen preparou o chá e o despejou em duas canecas de porcelana. Ela correu de volta para a televisão quando o programa que estava assistindo voltou dos comerciais.
Entediada demais para aquilo, tive uma ideia melhor e resolvi sair para o quintal com minha caneca na mão. Lá fora não havia nada além de uma churrasqueira elétrica e uma mesa comprida com dois bancos de madeira. Sentei-me em um deles, passando pela grama verde já coberta pelo orvalho da madrugada. A iluminação fraca vinha só dos cômodos acesos da casa.
Finalmente fiquei em paz. Aproveitei a solidão e o silêncio dos meus pensamentos, enquanto bebericava aquele chá quentinho e saboroso. Relaxei meus músculos, que eu nem sabia que estavam tão tensionados. Minha lucidez e autocontrole retornavam aos poucos, me permitindo apreciar pela primeira vez o ar fresco e puro daquela noite.
Até eu ouvir o barulho da porta de correr.
― Tá fazendo o quê sozinha aqui fora? ― fechou a porta atrás de si e desceu alguns degraus, pondo os pés na grama.
Revirei os olhos e respondi:
― Fugindo de você.
Não tinha mais o que esconder dele, tinha? As cartas estavam todas na mesa e não dava mais para voltar atrás.
― Ainda bem que admite ― ele riu e se sentou no banco à minha frente.
― O que mais você quer que eu admita? ― fuzilei-o com o olhar. ― As coisas já não estão explícitas o suficiente pra você?
Ele deu de ombros.
― Pra mim, elas sempre foram implícitas. Não tá feliz que agora se tornaram explícitas?
Desviei os olhos pra outro canto, sentindo o rosto completamente ruborizado. “Elas sempre foram implícitas.” Eu devo ter respirado fundo pela octogésima vez naquele dia, numa tentativa inútil de exterminar o friozinho na boca do meu estômago.
Ouvi a risadinha debochada dele.
― Depois de todo o consumo de drogas você vem pro quintal tomar chá, ? Quer também um livro e uma cadeira de balanço?
― Quer mesmo que eu repita pela terceira vez que você tá irritando?
― Não. Eu quero que você me pague o que tá me devendo.
Olhei imediatamente para ele.
― Chega de gracinha, .
― Você acha que eu tô brincando?
― Você tá falando sério?!
― Claro que eu tô.
Fiquei imóvel, enlouquecidamente sem reação, com os olhos também ainda parados nos dele. Parecia que estávamos fazendo uma competição para ver quem conseguia encarar o outro por mais tempo. Em meio ao nosso pequeno silêncio, só se podia ouvir o canto dos grilos.
― Vem cá ― ele disse. ― Vamos fazer isso.
― O quê? Não, , não! Aquilo foi um jogo. Um jogo que a gente nem tava jogando direito–
Ele estalou a língua, meio impaciente.
― E daí, . E daí?
Eu não sabia o que responder. Lógico que eu queria beijá-lo, mais do que tudo nessa vida, mas nunca esperei, nem em um milhão de anos, que esse dia fosse hoje e assim, desse jeito. Meu cérebro entrou em pane.
― Tô começando a ficar chateado ― ele atiçou. ― Não quer me beijar?
Puta merda. Ele sabia me levar ao limite da provocação. Continuei paralisada, com as bochechas quentes e os olhos vidrados, sem saber o que dizer. O “sim, quero, pelo amor de Deus” não querendo sair, porque seria patético demais para o meu orgulho suportar.
Percebendo minha hesitação, se levantou do banco e parou em pé ao meu lado, estendendo a mão para mim.
― Vem, ― ele chamou mais uma vez, usando o apelido apelativo a seu favor.
Estava funcionando.
― Você sabe que em jogos de girar a garrafa as pessoas só dão selinhos, né? ― falei, levantando uma sobrancelha. Afinal, aquele era um jogo para pré-adolescentes. Ele rolou os olhos e bufou alto. ― Você não quer jogar de acordo com as regras? As regras são essas.
― Tá bom, tá bom. A gente dá só um selinho.
Tive vontade de rir, mas só fiquei olhando para ele e sua mão, ainda esperando que eu a pegasse.
― Só um selinho mesmo? ― perguntei.
― Sim, só um selinho. Vai ser rápido.
― Hmm…
― Caralho, eu vou ter que me ajoelhar e implorar?
Não aguentei e comecei a rir. Eu não tinha a menor dúvida que ele era capaz de fazer isso mesmo.
― Não, não precisa. Você já passou por essa humilhação uma vez.
Finalmente coloquei minha mão sobre a dele, que a segurou firme sem qualquer intenção de soltá-la tão cedo. Sua expressão foi de aliviado para vanglorioso num piscar de olhos. foi andando de costas enquanto me puxava lentamente para trás, até pararmos num canto sem nenhuma iluminação.
― Pensei que seria rápido ― comentei.
― Vai ser.
― Então por que estamos no escuro?
― Pra evitarmos comentários.
Sua outra mão colou em minha cintura e ele me puxou para mais perto de si. Vi seus olhos descerem imediatamente para minha boca.
Meu Deus. Aquilo ia mesmo acontecer.
. Espera ― pedi, com o batimento cardíaco meio acelerado demais. ― A gente parou pra pensar sobre as consequências disso?
― O que quer dizer? ― ele murmurou baixo.
― Você sabe que esse é o fim da linha, né? Acabou nossa amizade. Eu não sei nem como vou olhar pra você depois disso. Vai ser estranho demais.
Em resposta, ele só me puxou para mais perto ainda.
― Eu não sei por que você tá tão preocupada por causa de um selinho. Vai durar só dois segundos...
― Eu tô falando sério ― falei um pouco rígida, e isso finalmente chamou a atenção dele para meus olhos de novo.
Acho que nunca tínhamos nos encarado tão de perto antes. E ele estava tão lindo que eu poderia morrer e cair dura no chão a qualquer momento.
― Eu também tô falando sério. Amanhã vamos acordar e vai ser tudo igual. É só um selinho ― ele insistiu. ― A gente não vai se beijar de novo, é só dessa vez. Dívida de jogo. Vamos prometer ― ele ergueu o dedo mindinho. ― Assim vai ficar menos estranho pra você.
― Fala sério ― olhei para seu dedo com desconfiança. ― Vamos mesmo seguir uma promessa de mindinho?
― Quer promessa de cuspe? ― ameaçou, arranhando a garganta e juntando saliva.
― Não, pelo amor de Deus! ― protestei, e em seguida, começamos a rir. Então, tomada por aquele momento descontraído que sempre acontecia entre nós, senti que, talvez, um beijo não fosse realmente atrapalhar a amizade. ― Ok… É só a porra de um jogo da garrafa.
“Ou só a desculpa perfeita”, pensei.
Entrelacei meu mindinho no dele e os apertamos, fazendo a promessa. Depois, ele segurou minha mão de novo. A dele estava quente, e a minha, totalmente gelada de nervosismo.
― Dois segundos? ― perguntei, receosa.
― Dois segundos ― ele assentiu, sem rodeios, já com o rosto perto demais.
Fechei os olhos e, no instante seguinte, senti pegar meus lábios com os dele.
Um.
Dois.
Pronto, acabou. Passou. Por que fiz tanto drama, mesmo?
Abri os olhos devagar e só consegui enxergar sua boca entreaberta, ainda muito perto.
Sem mais nem um segundo de hesitação, ele me pegou com os lábios de novo e me beijou, dessa vez com a língua. Tão rápido que foi como se quisesse garantir que eu não fosse escapar. Tão forte que meu corpo até cambaleou um pouco para trás. Ele soltou uma das minhas mãos e levou-a ao meu pescoço, enterrando os dedos em meu cabelo, e, com a outra, apertou minha cintura, me puxando de volta para ele.
Foi quando percebi. Eu tinha caído direitinho em sua armadilha.
A cada gesto, o beijo se aprofundava e eu relaxava mais. Envolvi minhas mãos em torno de seu pescoço e o beijei com a mesma vontade, com todo aquele maldito tesão reprimido. Ele começou a mordiscar e a puxar meu lábio, acabando com o meu fôlego. O jeito delicioso que passava a língua pela minha… O jeito que me prensava contra seu corpo… Meu Deus, tudo me fazia amolecer. A pegada dele tinha tanta firmeza e desejo que eu ansiava por mais a cada segundo que passava no relógio.
Um calor insuportável começou a me queimar devagar. Só conseguia pensar em como eu estava completamente surpresa com aquele beijo. Porra, que beijo.
Surpresa uma ova, aquilo tudo já tinha se transformado em puro tesão há muito tempo. Eu não queria que parasse nunca. Nem conseguiria parar.
Fiquei na ponta dos pés e me inclinei um pouco mais. Passei as unhas pelo cabelo de sua nuca, retribuindo algumas mordidinhas em seu lábio. Também passei a controlar o ritmo. A mão dele, que antes apertava minha cintura, agora escorregava sorrateira para a minha bunda. Afastei minimamente o rosto para respirar, mas ele não deixou – pendeu a cabeça para o outro lado e me puxou para o beijo de novo, me fazendo ofegar contra sua boca.
Aquilo foi um pouco estimulante demais. Precisei controlar alguns impulsos e vontades desesperadas, tipo empurrá-lo para um sofá e arrancar aquelas roupas.
Até que, lá de dentro da casa, eu ouvi uma voz abafada que fez meu estado de alerta voltar à tona.
? ! Alguém viu ela por aí?
Fui retomando a consciência aos poucos e me separei bruscamente de , que acabou soltando um gemido sufocado. Ele me olhou, atordoado.
― Volta pra mesa. Agora ― ordenei.
Andei vários passos apressados e me sentei sobre o banco de madeira outra vez, agarrando a caneca de chá com as duas mãos e fingindo o máximo de normalidade que consegui. veio logo atrás e, sem pressa nenhuma, sentou-se na minha frente.
Meus lábios estavam formigando. Quando olhei para os dele, inchados e brilhosos, rapidamente limpei os meus com a barra da minha blusa, tentando tirar qualquer vestígio da loucura que tinha acabado de acontecer.
Jenna não demorou até aparecer ali. Ela abriu a porta de correr e parou em um dos degraus.
― Ah! Vocês estão aqui… Procurei por todo canto dessa casa.
Eu e só olhamos para ela sem dizer nada.
, vamos embora? Tá todo mundo morto ali dentro.
― Sim... Vamos ― respondi, enquanto me levantava.
, pode levar a gente, por favor? ― ela pediu. ― Quero dizer, você já tá de boa pra isso? Pode dirigir?
― Sim... Eu levo vocês.
Andei até Jen e ficamos paradas ali, na soleira da porta de correr, esperando por ele.
― Você vem ou não? ― ela questionou, sem paciência.
― Vou, Jenna. Me dá só um minuto ― ele devolveu o mesmo tom irritadiço.
Foi impossível conter meu sorrisinho, quase uma risadinha indecente.
Jen revirou os olhos e me perguntou:
― Ai, meu Deus, ele tá chapado até agora, não tá?
Só balancei os ombros, me fazendo de desentendida. Empurrei-a para dentro da casa e me virei para olhar para .
― Te esperamos no carro ― avisei, rápido demais, sem nem dar tempo de olhá-lo nos olhos.
Jenna foi juntando suas coisas pela sala e eu calcei meus sapatos. Fomos para a garagem enquanto ela cantarolava alguma música do Korn, animada e elétrica daquele seu jeito de sempre. apareceu um minuto depois, girando o chaveiro do Indiana Jones entre os dedos. Ele entrou na Chevy e destrancou a porta do lado passageiro para nós.
Como eu tinha certeza que não aguentaria a tensão prestes a brotar entre a gente se eu me sentasse bem ao seu lado, rapidamente abri a porta e dei passagem para Jenna.
― Pode entrar primeiro ― ofereci, e ela só aceitou e entrou.
Durante todo o caminho, Jen tagarelou sobre um assunto interminável de bandas de rock underground e o movimento grunge. Como a minha especialidade era boybands e divas do pop, fiquei o tempo inteiro calada sem dar uma opinião sequer. Sem outra alternativa, ela se virava para falar com , bem-humorada, mas ele estava super quieto, sério e monossilábico. Seu semblante estava totalmente apático – o que não combinava nada com ele.
Comecei a ficar estranhamente preocupada. Muito preocupada. Será que ele tinha odiado? Se arrependido? Achado o beijo uma merda?
Não, não era possível. Claro que ele tinha gostado. Nem se tentasse ou quisesse – ele nunca conseguiria esconder a ereção que pressionava contra mim, bem próxima do meu umbigo, durante quase todo o tempo que nos beijamos.
Mas… será que tinha se arrependido?
Quando chegamos, estacionou exatamente entre o Belva e o Capper Hall. Eu não fui capaz de pronunciar uma palavra sequer quando saí da picape. Jen se despediu dele e de mim e seguiu tranquila para seu dormitório.
Na calçada, eu estava caminhando para o meu também, na direção oposta, em passos meio vagarosos e um pouco vacilantes. Ainda preocupada demais com o que poderia estar pensando. Preocupada demais com o que seria da gente.
Eu sabia.
Sabia, sabia, sabia que as coisas ficariam estranhas.
Até que percebi a Chevy acelerar devagar, começando a me acompanhar lentamente próximo ao meio-fio. Assim que parei de andar, ela também parou. Reclinei o corpo e olhei desconfiada para dentro da cabine.
Olhando de volta para mim, ele logo me chamou com o dedo indicador. Dei alguns passos em sua direção e parei na frente da porta do lado passageiro, apoiando os braços sobre a janela aberta.
― Não vai se despedir de mim? ― ele provocou. ― Você já foi mais educada.
Quase suspirei. Nunca fiquei tão aliviada na vida por uma de suas provocações.
― Despedir como? ― arqueei uma sobrancelha, desafiando-o. ― Com um selinho?
― Pode ser. Um selinho rápido, de dois segundos, no máximo.
Desviei o olhar, soltando uma risada pelo nariz.
― Não posso ― levantei os ombros, fingindo pena. ― A gente prometeu, lembra? Não sou de descumprir promessas.
― “Fala sério” ― ele fez uma voz fina, tentando me imitar. ― “Vamos seguir uma promessa de mindinho?”
― Pois é, . Sabe o que você é? Um grande mentiroso.
Ele deu uma gargalhada.
― E você? Vai esconder da Jenna que tá a finzona de mim até quando?
― Cala a boca! ― espremi os olhos, sentindo o peito esquentar. Passei as mãos pelos cabelos e apontei o dedo para ele, enquanto tentava segurar mais uma risada. ― Não vou contar, porque essa é outra mentira.
― Sua cara nem arde, né?
― Ela já me fez admitir e eu já disse ― falei simplesmente, como se fosse óbvio. ― É o Derek.
― Como é mentirosa... ― me acusou, dando o sorriso mais triunfante e irresistível do mundo.
Só rolei os olhos e dei as costas.
― Ei, ei, ei. Espera ― ele chamou e eu me virei para olhar. ― Peguei lá na cozinha pra você. Fica com eles.
me entregou um embrulho de pano azul, e eu quase ri daquela ironia. Ele nem precisaria me explicar o que tinha ali dentro.
― Obrigada.
Dei uma piscadinha para ele e voltei ao meu caminho para o Belva Hall, lutando contra a vontade de olhar para trás. Mas não o fiz. Só quando atravessei os portões de entrada que escutei a picape dando partida e indo embora.

Quando entrei no silêncio do meu quarto, pude ouvir as batidas do meu coração quase infartando.



— Então, que novidade você me conta? — perguntei, calçando as meias e o tênis.
— Comprei um CD novo e tô totalmente viciado nessa música — Mike me mostrou o encarte de Oops!... I Did It Again e eu o agarrei, encantada, quase afundando o nariz sobre a caixinha acrílica. — Já viu o clipe?
— Lógico! Tem vez que eu espero passar na TV só pra assistir de novo.
— Pois é, menina, no próximo Halloween eu já quero vestir um catsuit de látex vermelho — ele jogou para trás uma mecha imaginária de cabelo.
Enquanto eu terminava de alongar os braços e as pernas nas barras em frente ao espelho, trocamos uma ideia sobre a nova princesinha do pop e o quanto ela vinha surpreendendo. Achei que Britney seria só mais uma one-hit wonder depois do último álbum, mas Mike tinha certeza que ela ainda ia causar muito nesse mundo.
Ele foi colocar o CD no aparelho de som e logo voltou para se posicionar ao meu lado. O salão vazio do Clube de Teatro estava mais do que perfeito para treinarmos uma nova coreografia.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Oops!... I Did It Again – Britney Spears

— Começando com uma perna de cada lado, afastadas, assim — ele foi dando as primeiras instruções. — O braço direito dá um soco no ar em um e dois, girando, três e quatro. O pé direito também dá um passo pra frente. Isso, garota. Cinco, olha os ombros, seis, braços ao redor do coração e sete, girando, oito.
— Espera, você gira com a perna esquerda ou com a direita? — perguntei, tentando acompanhar seus movimentos pelo reflexo.
— Com a esquerda. Agora um passo pra frente, bombeando o coração e um, bombeia, dois, bombeia mais uma vez e... Isso mesmo! Viu como é fácil?
— Ainda não acabou, né? — eu já estava começando a ofegar. Meu corpo gostava mesmo era da inércia, mas a dancinha até que era muito divertida.
— Ainda não, sem moleza. Vamos continuar — ele voltou à posição inicial. — Agora você vai dar um passo pra trás com a mesma perna, e quatro, aponta pro lado, cinco, os dois braços juntos, seis, joga os dois pro ar e dá outro passo pra trás, sete, soco no ar outra vez e oito. Olha pra frente, faz carão. Andando, um pé na frente do outro, e um, dois, três e quatro. Para. Rostinho pro lado, jogando o cabelo e… volta.
— Meu Deus do céu… — falei, depois de repetir tudo com um certo delay.
— Calma. Vamos fazer os passos mais algumas vezes. Na terceira você já pega, quer apostar?
— Será? Vamos ver.
Dançamos exatamente mais três vezes até eu sincronizar meus passos com os de Mike. Claro que dei todo o mérito a ele, um professor maravilhoso, mas ele também gostava de puxar o meu saco.
Após mais algumas horas insistindo naquela dança, o exercício aeróbico já comprimia meus pulmões e queimava meus músculos. Mas todo o esforço compensou quando acabei decidindo aprender a coreografia completa. Assim que terminamos de treinar pela última vez, a música foi colocada no volume máximo, explodindo o eco da sala de dança e elevando nossa animação até o céu. Era assim que eu e Mike sempre entregávamos as divas dançarinas que existiam em nós: estourando nossos tímpanos.
Dançamos tanto que era como se estivéssemos dentro do clipe.


🙂🙃🙂


Um céu nublado me recebeu quando finalmente saí do prédio de Artes Cênicas. Por cima do top esportivo, vesti uma jaqueta corta-vento com cores super vibrantes e resolvi correr até o prédio de Artes e Design, só para aproveitar meu pique de endorfina. E o que me esperava lá, em exatamente meia hora?
Uma aula de Modelo Vivo.
Suspirei.
Tentei concentrar meus pensamentos apenas no musical que Mike apresentaria em alguns dias, cogitando arrastar Jenna comigo. Da última vez que reparei na estante em seu quarto, vi uma fita VHS de Grease numa edição especial para colecionadores. Claro que ela não teria coragem de recusar o meu convite.
— Oi, gata! — ouvi uma voz conhecida me chamar. Dei um sobressalto quando Derek começou a correr ao meu lado na calçada, assim, sem mais nem menos. Quase como se soubesse que aquela era uma coincidência engraçada. — Não sabia que você também corria.
— Ah, não corro — expliquei. — Tô só aproveitando o traje pra chegar mais rápido até o prédio de Design.
— Também tô indo pra lá. Tem aula de quê agora?
— Modelo Vivo. E você?
— Materiais e Processos — respondeu, simpático. Enquanto falava e corria, a respiração dele se mantinha intacta, bem ao contrário da minha. Apesar de um pouco hiperativo, hoje Derek estava incrivelmente calmo. — Como foi o Spring Break?
— Foi ótimo.
— Visitou a família?
— Não, fiquei por aqui. E você?
— Dei uma passada na casa dos meus velhos — ele deu de ombros. Depois, sua voz adquiriu um tom sério e preocupante: — Escuta… .
Lá vinha bomba.
— … Sim?
— Aquele dia, na casa do Will… Foi mal por ter te largado sozinha.
— Você… Hã? — demorei um pouco a fazer a associação. — Me largado sozinha?
— É, depois que a gente... saiu do banheiro...
— Ah… sim — o constrangimento até veio, mas logo foi embora. Passei a considerar o episódio engraçado acima de qualquer coisa e decidi colocar meus arrependimentos para hibernar. — Você não me deixou sozinha, Derek. Blaze estava lá.
— Justamente. Eu sabia que vocês tinham terminado, então deveria ter ficado lá com você ou qualquer coisa.
Olhei para ele, desconfiada:
— Não há nada para se preocupar. Esquece tudo, ok? Sem estresse.
Aquele era um trato justo, pelo menos na minha cabeça, embora Derek também tenha concordado quando acenou positivamente. Só não sabia se ele tinha pegado as entrelinhas quando eu disse para ele se esquecer de tudo.
— Então… — balbuciou, parecendo interessado em dar voltas no assunto. — Depois daquele dia, vocês… voltaram?
— Não — afirmei, orgulhosa com a rapidez e a firmeza daquele “não”. — Foda-se o Blaze. Não o vejo desde aquele dia.
— Sério? Erm… Então...
— Derek, aonde você quer chegar com esse papo?
Ele parou de correr de repente. Quando notei, já havíamos chegado ao pátio do nosso prédio, então comecei a andar também. As nuvens já estavam se dissipando pelo céu, e o sol começava a aparecer.
— Ah, olha só quem tá ali! — ele apontou, frenético.
Tive até medo de olhar, mas era só um cara com o cabelo todo tingido de verde – nada incomum pelos arredores do prédio de Artes. Os fios estavam melados em gel e esticados em uma porção de espetos, parecendo a cabeça da Estátua da Liberdade. De algum jeito, aquele maluco me parecia familiar.
— Esse não é o…?
— Sim, é o Will Sanders. Ele mudou o cabelo. Ele muda toda vez — Derek foi caminhando até seu amigo, que se encontrava sentado debaixo de uma árvore em um canteiro. Acabamos parando embaixo da sombra fresca também. — Ei, Will! Faz aquela mágica pra gente?
— Que mágica? — deixei a pergunta no ar, porque ninguém se importou em me responder.
Sanders deu um sorrisinho malicioso e tirou seu baralho do bolso. Ele dividiu o bolo de cartas em dois: um pequeno e um grande. Em seguida, ofereceu para Derek sortear uma carta do pequeno. Do grande, eu sorteei outra.
— Não mostrem as cartas escolhidas pra mim — avisou o nosso mágico excêntrico. — Mas podem mostrar um pro outro.
Revelei para Derek o meu Oito de Espadas. Ele me mostrou seu Rei de Copas, e, de repente, eu não sabia mais o que eu estava fazendo com a minha vida naquela manhã.
Enfim Will colocou o bolo de lado e recolheu nossas únicas cartas, separando-as e grudando-as com as faces viradas uma para a outra, sem olhar. Depois, fez vários giros com as mãos ao redor delas, como se estivesse colocando um feitiço no ar.
— Com vocês, diante de mim… — disse ele, conduzindo o suspense. Então, estalou os dedos e habilmente revelou nossas cartas transformadas: um Rei e… uma Rainha de Copas? — O par perfeito.
— O quê?! Como– Não acredito nisso, Derek — segurei uma risada de raiva e olhei para ele, depois para Will. Eu também não estava acreditando que Jenna tinha dormido com aquele cara. — Sanders, você não tem um truque do sumiço perfeito pra me fazer desaparecer agora?
Revirei os olhos e saí andando.
— Espera aí, gata. Espera aí — rindo, Derek deu uma corridinha atrás de mim. Quase me desviei quando vi sua mão lentamente se aproximar do meu rosto, mas era só ele tentando fazer uma mágica e fingindo tirar de trás da minha orelha um Bubbaloo de tutti-frutti.
Hoje deu pra todo mundo bancar o ilusionista?
— Boa tentativa — falei, pegando o chiclete da mão dele. — Mas, quando eu disse pra você se esquecer tudo, é tudo mesmo. Passado e futuro. Entendeu agora?
Ele entortou a boca, contrariado.
— Não posso nem te ligar?
— Só se for pra me contar que o Sr. Henshaw foi demitido da agência — desembrulhei o Bubbaloo e o coloquei na boca.
— Claro. Se você não resolver me ligar primeiro, como foi da última vez — ele deu uma piscadela.
Soltei uma única risada de puro ódio. Derek era metido num nível inconveniente.
— Vamos ver — pousei minha mão em seu ombro e me virei outra vez para deixar o meu ex-Pau Amigo para trás.
Não muito longe dali, vi de relance PJ e sentados de um jeito típico e super despojado em cima do encosto de um banco. Aquele mesmo banco que era a vista perfeita da janela da minha aula de Gestão de Projetos.
Apesar de estar completamente alheio ao movimento de qualquer pessoa ao seu redor, nem deu tempo de fingir que eu não o tinha visto. PJ logo me deu um tchauzinho e me chamou. Em seguida, deu uma cotovelada em , fazendo-o levantar os olhos de seu sketchbook e olhar para mim.
De repente, lá estava eu numa pilha de nervos. Só me restou constatar o que eu já sabia: não tinha me recuperado nem 1% daquele beijo. A vontade era de dar um tapa na minha própria cara.
, por favor — PJ foi dizendo quando me aproximei —, você pode convencer o que fazer uma fogueira naquela praia lá embaixo do penhasco é a maior furada que você já ouviu falar?
— O quê? Onde? — dei uma risadinha e estreitei os olhos, desconfiada. ― Oakwood?
— A fogueira foi ideia da Jenna, não minha — se explicou, enquanto seu amigo rolava os olhos.
— Pois eu não vou nem fodendo — PJ já estava com a cara amarrada. — Agora você também é minha testemunha pra quando a Jenna vier me aborrecer, .
— Por quê? Vocês brigaram? — eu quis saber, porque ele parecia realmente chateado com alguma coisa. Então, pensei mais um pouco. — Oh… Você e Lori ainda não…?
— Não — respondeu, meio puto, meio amargurado. Bem diferente de seu humor dois dias atrás na república.
Esperei por mais alguma explicação, mas, pelo visto, eu só teria aquele “não” seco.
— Converse com ela, PJ — aconselhei. — Tenho certeza que vão se entender. Lori é super tranquila.
— Se fosse tão simples assim… Essa porra de mundo caótico…
— PJ, larga de drama — o repreendeu. — Você tá precisando aceitar as pessoas como elas são. A Jenna tá fazendo o que pode, aliás, além do necessário. Qual o problema de ir até lá? Vamos beber e relaxar, que é o que você precisa. Não é, ?
Definitivamente havia algo estranho no ar. Alguma coisa aconteceu e eu não estava sabendo.
— Bem, e-eu… — gaguejei.
Ele cochicou só para mim:
— Vai, fala que vai.
— Eu tô bem aqui, — PJ reclamou.
— Ok, eu vou — falei. Até parece que eu seria capaz de recusar aquele convite. — Que dia?
— Quinta-feira. Depois de amanhã — me respondeu. — Ninguém tem nenhuma aula importante na quinta.
— É, eu também não — tentei, mas não consegui olhá-lo nos olhos por muito tempo. Então, me virei para PJ outra vez: — Vamos, vai ser bom pra você. Oakwood não é tão ruim assim. Ficar sozinho é pior pra cabeça, pelo menos no seu caso.
Ele ficou olhando para nós por um momento. Dava para ver que estava relutando muito, por sei lá qual motivo. Aquelas sobrancelhas grossas formavam um V sinistro no meio de sua testa.
— Tá bom, foda-se… — falou, por fim, dando um salto para sair do banco. — , você vai pra biblioteca que horas?
— Depois da aula de Modelo Vivo — ele fechou seu sketchbook e se levantou, parando ao meu lado. Foi quando reparei, um segundo antes, na quantidade de desenhos técnicos naquelas páginas. — Daqui a uma hora, mais ou menos.
— Beleza. Falou, . , se você se atrasar… — meio ameaçador, PJ o encarou enquanto se afastava.
— Não vou — ergueu os dois braços.
Quando enfim ficamos sozinhos, nos entreolhamos por míseros instantes. “Não é o que sempre acontece?”, a fala dele de sábado rodeava minha cabeça, e eu não tinha mais saída. A partir dali, seguiríamos o mesmo caminho. Enfiei as mãos no bolso da minha jaqueta, um pouco apreensiva, e começamos a andar lado a lado pelo pátio até os corredores, sem muita pressa.
— Veio correndo? — ele quebrou o breve silêncio.
— Sim. Na verdade… Posso te contar isso — parei para soprar uma bolha de chiclete até estourá-la. — Eu estava praticando meu talento secreto.
— Sério? Onde?
— Lá no prédio de Artes Cênicas. Ah! Adivinha quem me encontrou no caminho?
— Não faço ideia.
— O Derek. Não é uma puta coincidência?
— Claro que não… — ele riu. — Você não sabia? Tem gente que aparece se você contar uma mentira três vezes com o nome delas — disse, na maior naturalidade. Dei uma gargalhada alta e pensei em empurrá-lo com o braço, mas me contive. Ele continuou: — Ei. Tenho uma novidade que você vai adorar.
— Qual?
— Tolbert te liberou pra fazer o exame final adiantado.
— JURA?! — parei de andar na mesma hora.
voltou alguns passos e se aproximou até parar bem na minha frente. Estávamos quase chegando na porta da sala de Modelo Vivo.
— Sim, na próxima semana eu te passo o teste.
— O que ela vai pedir pra eu desenhar?
— Não sei ainda. Vou tentar descobrir.
Putz. Como estava difícil olhá-lo diretamente nos olhos. Os meus passeavam por todos os detalhes de seu rosto, menos por aqueles olhos azuis esverdeados que me encaravam sem receio algum. Nem parecia que um dia eu tive que me policiar bastante para não me vidrar neles por tempo demais. Agora, aquilo era a última coisa que eu deveria fazer.
Voltamos a andar e, antes de abrir a porta, parou.
— ele me chamou, um pouco mais sério. — Eu sei que você disse que não conseguiria nem olhar pra mim depois do que aconteceu. Mas, se eu fosse você, daria um jeito nisso logo — foi abrindo um sorrisinho de lado —, porque eu não vou sair do seu pé tão cedo.
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, ele foi logo entrando na sala e me deixou plantada ali, atônita. Fiz de tudo para impedir que meu sorriso estampasse minha cara, mas, por fim, acabei desencanando.
Várias pessoas começaram a chegar e a ocupar todos os lugares. Para variar, fui até minha mesa isolada na maior lentidão. Me joguei na cadeira e, por um tempo, fiquei imóvel como um poste; até a Srta. Tolbert brotar ao meu lado e me despertar para a realidade.
— Boas notícias, — ela me entregou várias folhas em branco. — Outros dois alunos meus do segundo ano farão um exame especial na próxima semana. Se sentir que está preparada, posso aplicar o exame final pra você no mesmo dia.
já me contou a novidade — falei, me sentindo abençoada por uma infinidade de anjos tocando harpas. — Estou preparadíssima.
— Pois é. Acho bom você treinar os efeitos de luz e sombra hoje. Pegar pesado mesmo, .
Impressionante como ninguém acreditava que eu estava preparada. Só eu mesma.
— Você vai colocar aquela acrobata de novo pra gente desenhar?
— Não. Mudei os planos. Mas fique tranquila, não será tão difícil dessa vez. Entretanto, também não será fácil — ela me deu aquele olhar intimidador por cima dos óculos vermelhos.
Quando saiu de perto, bufei. Em vez de desenhar alguma coisa, fiquei brincando de furar minha borracha com a ponta do lápis. Então, olhei ao redor. já estava ocupado, ajudando aquela tal menina que tinha comprado todos os materiais do estoque da papelaria.
Bufei outra vez. Tolbert voltou para colocar numa mesinha à minha frente alguns cubos, xícaras, frutas de plástico e um ferro de passar de uns cem anos de idade.
— Quero ver empenho nessa iluminação, hein? — ela me alertou. — Não se esqueça de usar o branco do papel para a luz direta. Nem de suavizar os traços no meio-tom. Esquecer de fazer a sombra projetada, nem pensar! Capriche.
Não sei o que deu em mim, mas simplesmente peguei o lápis e comecei a desenhar tudo aquilo sem nem choramingar. Fiquei tão concentrada que, dentro de poucos minutos, eu já não ouvia mais as conversas de todo mundo do outro lado da sala. Naquele momento, era só eu e o papel.
Desenhar objetos era muito mais fácil do que pessoas para mim. Portanto, não demorou muito até eu rascunhar todas as formas e ajeitar suas proporções no espaço limitado da folha em branco. Levei mais tempo para dar o tratamento de luz e sombra, porque fui extremamente meticulosa. Queria criar a ilusão perfeita de volume em cada detalhe da porcaria daquelas tralhas aleatórias.
Quando eu já estava sem paciência nenhuma para a curva da alça cilíndrica do ferro, ouvi o barulho de uma cadeira ao meu lado sendo arrastada no chão. puxava-a com cuidado para não me atrapalhar. Então, sentou-se, na mesma distância de todas as outras vezes.
De repente, aquele espaço entre eu e ele se tornou longe demais.
— Você é ótima com observação de objetos — comentou, surpreso.
— Eu sei.
— Modesta também.
Dei uma risadinha, voltando minha atenção para o papel. Do nada, fiquei chocada e olhei para ele:
— Já parou pra pensar que essa é minha última aula com você?!
— Vai chorar de saudade?
— Não sei nem como vou me recuperar.
Ele riu.
— Escuta — comecei a sussurrar —, já deu uma sondada na Tolbert e descobriu o que vou ter que desenhar no exame final?
— Já. Acabei de fazer isso.
— E…?
respirou fundo, abriu um baita sorriso orgulhoso e apoiou os cotovelos nos joelhos, se inclinando um pouco mais em minha direção:
— Ora, ora... Parece que eu tenho uma informação que você quer muito.
Revirei os olhos automaticamente.
, você vai me ajudar antes do exame. E essa não é uma pergunta.
Ele levantou as sobrancelhas, fingindo se importar com minha ameaça. Mas não durou muito, quando riu mais.
— O que você quer em troca? — perguntei pausadamente, mas estava frenética mascando meu Bubbaloo.
— Tá com medo do que eu vou pedir?
— Pra falar a verdade, sim. Você é direto demais e eu fico sem saber onde enfiar a cara.
Ele riu outra vez, um pouco mais alto que o normal.
— Um de nós precisa ser direto, não é mesmo? Caso contrário, você ainda estaria aí, sonhando em me beijar.
— Meu Deus. Era exatamente disso que eu tava falando.
disparou a rir. A sorte dele era que, quando ria muito, não emitia som algum. Só jogava a cabeça pra trás e espremia os olhos, quase me fazendo rir junto.
— Olha, tudo bem — pigarreei, chamando sua atenção de novo. — Já sei o que você vai me pedir. Pode deixar, eu entendi. Vou fazer questão de manter nossa promessa de mindinho e não te beijar nunca mais, ok?
— Ah, você não se atreva — ele apontou o indicador para mim.
— Ou o quê? — soprei uma bolha bem na cara dele, plena e satisfeita de ter virado o jogo.
nem disse nada. Só esticou ainda mais o dedo, e minha bolha de chiclete fez um pop. Aquela goma pegajosa e cor-de-rosa foi parar em todo o meu queixo e nariz.
— Eu não acredito que você fez isso — falei, um pouco embasbacada, mas tentando parecer brava.
— Você ainda tem tempo de mudar de ideia sobre a promessa, — ele deu de ombros. Depois, jogou o corpo para trás no encosto da cadeira, levando as duas palmas das mãos até a nuca. — Mas vou fingir que ainda não sei o que você vai decidir.
Senti minhas bochechas esquentarem enquanto tirava o resto de chiclete grudado no meu rosto. Nem respondi nada. Nem poderia, se eu ainda quisesse que meu orgulho sobrevivesse a mais uma provocação de .
Ele deveria ir preso.
Quando a aula finalmente acabou, entreguei minhas últimas folhas para a Srta. Tolbert, que nem se deu ao trabalho em me dar qualquer feedback ou sinal de reconhecimento, só me desejou sorte para o exame. saiu apressado para encontrar PJ na biblioteca; eu, sem mais nenhuma responsabilidade naquela manhã, fui direto para a lanchonete tomar um café e recuperar minhas forças.


🙂🙃🙂


— Quem? A de boina rosa?
— Não, a da frente, com umas presilhas no topo da cabeça — respondi, indicando o assento de Allison para Jenna. — O altão ao lado dela é o novo namorado.
— Coitado de quem tá sentado atrás dele.
Estávamos no auditório esperando o musical começar. As luzes ainda estavam acesas, e as cortinas do palco, fechadas. Antes de entrarmos, enquanto eu ainda esperava por Jenna do lado de fora do prédio de Artes Cênicas, Ally fez questão de me cumprimentar e me apresentar seu par naquela noite: um estudante do primeiro ano aspirante a músico. Ele tinha uma carinha de ingênuo, mas disse ser vocalista em uma banda de garagem de death metal. Fiquei chocada. Quando soltou que odiava country com todas as forças, fiz questão de despertar meu sotaque adormecido e dizer que nenhum cantor de metal teria a voz melhor que a do Johnny Cash, só para irritá-lo.
Maturidade pra quê?
A cara dele foi impagável. Ally quis me matar e, naturalmente, acabou desistindo da ideia de sentarmos juntas durante a apresentação.
— O que aconteceu com a amizade de vocês, hein? — Jen quis saber, cutucando meu ombro.
— Acho que a vida atrapalhou, como de costume. Sei lá, a intimidade que a gente tinha diminuiu de um nível oito pra um nível... três.
— Sei. Bem… Eu tenho amigos de todos os níveis de intimidade, mesmo aqueles mais superficiais. Acho que faz parte. Nem vale a pena se frustrar com isso, sabe por quê? É bem possível que, daqui a um ou dois anos, você e Allison subam pra um nível dez de novo, sabia?
— É… Quem sabe. Mas não consigo enxergar isso agora. Nossas vidas estão indo pra direções diferentes, e eu nem vi isso acontecendo, o que é o mais engraçado. Já faz um tempo que não conseguimos mais concordar sobre várias coisas, é um pouco decepcionante.
Relax, . Isso acontece com literalmente todo mundo. Acho que é normal que muitas amizades durem apenas enquanto você tiver algo em comum com a pessoa.
— Às vezes, o que me incomoda é justamente isso. Quando ficamos limitados com alguns amigos só ao que temos em comum, ao invés de compartilharmos coisas novas. Falando agora até, sei lá, das minhas amigas da oitava série. Já cansei de ficar relembrando com elas os mesmos casos de novo e de novo, sabe? Toda vez que a gente se encontra é a mesma coisa. Chega a ser cansativo, apesar de ter uns três anos que eu não as vejo. E sabe de uma coisa? Eu nem sinto falta dos nossos encontros e das nossas conversas. Não é triste?
— Também tenho amigos que não troco uma ideia há tempos. Eu tive uma amiguinha na infância e a gente era um grude que só. Não fazíamos nada separadas. Até que ela simplesmente mudou de escola e fingiu que eu não existia mais. Dá pra acreditar? Mas não me sinto mal, acho que criei uma visão diferente sobre isso hoje.
— Sério? Que visão?
— Tipo… Mesmo que você e Allison nunca construam novas memórias juntas, o que vocês têm em comum é algo que nunca poderão ter com outra amiga.
― E o que é que temos em comum?
― O tempo que tiveram. Vocês compartilharam um período único e insubstituível na vida. E isso não tem como mudar.
Fiquei parada na cadeira, deixando meus pensamentos fluírem ao ouvir aquilo. Jenna tinha mesmo o poder de açucarar minha visão amarga sobre algumas coisas.
— Já parou pra pensar numa outra coisa? — ela perguntou, se remexendo no assento e segurando meu braço.
— O quê?
— Já parou pra pensar que, no futuro, pode ser que eu e você só teremos assunto sobre a faculdade? Sobre o que estamos vivendo agora?
Fiz um beiço do tamanho do mundo quando pensei sobre a realidade brutal daquela perspectiva.
— Jen, por favor, não vá pra Califórnia — quase me joguei em cima dela, apertando-a em um abraço. — Não quero que nosso nível de intimidade caia pro nível três. Nunca!
— Eu também não! — riu, com a voz espremida. Soltei-a dos meus braços e ela olhou nos meus olhos. — O que tiver que acontecer, vai acontecer, chuchu.
— Viu? Eu já não concordo com isso. Acabamos de cair pro nível nove.
Jenna riu outra vez.
De repente, todas as luzes se apagaram e uma música instrumental ecoou alto pelo ambiente. Os holofotes iluminaram as cortinas, e, atrás delas, Mike apareceu e introduziu seu espetáculo: O Mágico de Oz. Era a segunda vez que ele coreografava aquela peça. Na primeira, lembro que houve uma repercussão super negativa entre os professores, graças à menina que interpretou Dorothy ter feito um espacate no meio da estrada de tijolos amarelos. Uma atriz novata fazia seu papel agora, o que era mais seguro. Ainda era cedo para qualquer calouro resolver causar no palco.
Morri de rir na cena do embate entre a Bruxa Má do Oeste e a Bruxa Boa do Sul. A música tinha uma letra adaptada tão engraçada que fez a rivalidade entre as duas parecer boba. O menino que fez o Espantalho tinha uma voz lindíssima. O Homem de Lata usava um funil de metal maior que a própria cabeça, e o coração que ganhou no final foi aquela almofada brega, com braços de pelúcia vermelhos e um “I Love You” bordado em letras cursivas. E o Leão Covarde apenas me causou uma crise no meio do teatro. Por mais óbvia que sua lição de moral na história sempre foi, acabei me identificando com ele de uma forma surreal pela primeira vez.
O Leão Covarde era cheio de medos e se sentia muito mal por isso. A única solução que ele sempre esperou para seus problemas era encontrar o bendito Mágico para finalmente lhe dar coragem, quase como se ele sentisse que só faltava isso para sua vida começar de verdade. E era algo que ele, definitivamente, não poderia conquistar sozinho. Claro, o que um medroso feito o Leão Covarde poderia conquistar... sozinho? Se ele se safou de algum perigo, claro que teve sorte. Se tinha chegado até ali, claro que seus amigos o ajudaram em todos os momentos. Mérito próprio era simplesmente algo negado pelo próprio Leão.
“A verdadeira coragem não é não ter medo de nada, e sim enfrentar o perigo mesmo com medo”, proferiu o Senhor Mágico de Oz para a de oito anos, assistindo ao filme em casa numa TV de doze polegadas. E ela tinha entendido tudo. Ela entendeu que a coragem estava com o pobrezinho do Leão o tempo inteiro. Ele não precisava de mágica coisa nenhuma! Quem precisava ter medo do escuro e de ir ao dentista, mesmo?
“A verdadeira coragem não é não ter medo de nada, e sim enfrentar o perigo mesmo com medo”, proferiu o Senhor Mágico de Oz para mim, agora, a pessoa mais aterrorizada do mundo com o futuro. Um futuro inevitável que estava ali, só me esperando para alcançá-lo. Vivê-lo. Me guardando as maiores decepções e perdas que eu jamais senti um dia. Quando é que alguém poderia me dar um pouco de coragem para encarar tudo isso, mesmo?
Pois é. Aquela peça havia acabado de me lembrar o significado do que era mesmo a coragem. E eu deveria parar de esperar por ela.

Crescer é uma merda.



— Essa não é a casa da Mary Lou, tenho certeza. É outra. Não tinha esse tanto de entulho nela — Jenna não parava quieta. Enquanto andava de um lado para o outro naquele cômodo minúsculo, ela batia os pés no assoalho de madeira velha e apodrecida. E isso só significava uma coisa: os ácaros gigantes poderiam se despertar a qualquer momento de algum esconderijo. Eu estava enlouquecendo. — Pode me emprestar a câmera, ? Vou até aquela outra casa ali fora.
— Não. Espera só um minuto, por favor.
— Você já tirou a foto do jornal antigo que você queria!
— Eu ainda não sei se ela ficou focada! Preciso testar outro ângulo pra garantir. E você precisa ficar quieta no lugar, ou não vou conseguir me concentrar. Já tô toda cagada de medo aqui.
— Já te falei, esses crustáceos são inofensivos. Eles não vão fazer nada com você.
— Jenna, eu não quero eles no meu campo de visão, de audição e nem da imaginação. Entendeu? Pode me esperar agora? — bufei, me agachando um pouco para mirar a câmera mais uma vez em meu artefato arqueológico.
Quando finalmente dei o clique, Jen nem me esperou. Tomou a máquina fotográfica da minha mão e saiu correndo até a outra casa, onde supostamente era seu ponto de encontro com um fantasma. Então, bufei outra vez. Bati as mãos para limpar a poeira do meu macacão jeans e dei passos extremamente calculados até a saída do bangalô abandonado. Passei pela varanda prendendo a respiração, olhei ao redor em trezentos e sessenta graus. Dessa vez não queria fazer nenhum escândalo se eu desse de cara com uma surpresinha de milhões de patas e duas antenas.
Um pouco mais relaxada, fui descendo a escadinha que me levava de volta à segurança: a areia. Não que ela não estivesse repleta de bichos também, mas, pelo menos, ali era mais fácil de visualizá-los e adquirir distância.
De repente, pisei com a maior confiança num degrau inexistente e afundei com força meu pé num buraco. Sem entender nada, pirei. Dei um berro que ecoou pela praia inteira – eu tinha caído na maldição daquele degrau solto e quebrado. Lá de longe, logo ouvi uma risada. Aquela risada.
— Não foi por falta de aviso, foi? — veio andando na minha direção.
Eu tentava tirar minha perna dali, afundada até o joelho, mas alguma coisa estava prendendo meu macacão jeans. Além de toda aquela merda, bateu um desespero de ter algum bicho asqueroso ali embaixo da escada, só esperando para subir no meu pé preso.
— Pelo amor de Deus — choraminguei. Tentei me alavancar dali e puxei minha perna bruscamente, mas parei no lugar quando ouvi o tecido se rasgando. — Alguma coisa entrou no meu jeans. Pelo amor de Deus!
— Cada vez que você vier aqui vou ter que prestar socorro? — ele se abaixou e chegou bem perto para analisar o estrago. — Deixa eu ver isso.
Inclinei o pescoço um pouco para baixo e, morrendo de vergonha, fiquei observando-o agachado sob meus pés. Tendo outros tipos de pensamentos.
— É uma ferpa grossa. Espera aí, não se mexa — ele avisou, erguendo o olhar para mim por um breve momento.
Só voltei a olhar para frente e fiquei quieta. Esperei até que ele removesse a ferpa, o que não demorou muito. Em seguida, se levantou e estendeu a mão para mim. Torci o nariz e dei minha mão para ele, me apoiando para sair dali com cuidado. Depois, girei o corpo para olhar para a dobra atrás do meu joelho – até que o rasgo no meu jeans não tinha sido tão grande.
― Cadê a Jenna? ― ele perguntou.
― Hmm?
― Ela não tava com você?
― Ah… Ela foi capturar a alma da Mary Lou em algum lugar com a minha câmera.
começou a rir.
― Vamos voltar pra lá logo ― ele pediu. ― A maré tá subindo muito rápido já.
― Eu não sei em qual dessas casas a Jenna entrou.
Ele simplesmente levou dois dedos à boca e deu um assobio bem alto. Jen também sempre fazia isso para chamá-lo, era algo deles. Ela logo apareceu de novo e veio correndo até nós.
― Acho que seu filme acabou ― disse, devolvendo minha câmera.
― Que ótimo ― ironizei. ― Espero não encontrar nenhum espírito quando eu mandar revelar essas fotos.
― Isso eu não garanto.
revirou os olhos e empurrou a amiga pelas costas, apressando-a.
O céu mostrava seus minutos finais de tons rosados e laranjas. A última mancha do sol se punha na linha do horizonte no oceano. A brisa ficava cada vez mais fria, e o mar, cada vez mais agitado. Caminhamos pela curva da ilha até chegar à outra ponta da praia, mais próxima da Oyster. Lá, PJ e Alex haviam acabado de acender uma fogueira, e estavam acomodados sobre algumas das toalhas tribais de Jenna estendidas sobre a areia branca.
Com um baseado na boca e um violão no colo, Alex dedilhava alguns acordes aleatórios. Ao seu lado, PJ parecia introspectivo enquanto bebia uma lata de cerveja. Assim que nos aproximamos mais, Jen foi correndo para se sentar ao lado dele.
Num piscar de olhos, o céu já tinha escurecido e a luz da fogueira cintilava mais forte.
― Ei ― cutuquei de leve o braço de , falando baixo. ― Tem alguma coisa acontecendo com o PJ?
Surpreso com a minha pergunta, ele desviou um pouco o olhar e deu um suspiro pesado.
― Bem… sim.
― O quê?
Ele só indicou com a cabeça para que eu o seguisse. Então, fomos nos sentar do lado oposto da fogueira, mas não tão longe de Alex e sua musiquinha acústica.
― Até onde você sabe? ― perguntou, virando o rosto para mim.
― Não sei de nada, pra variar. Sou a novata nesse grupo.
― Você sabe por que ele e a Lori não estão saindo mais?
― Não. Por quê? Ela deu um fora nele, é?
― Basicamente.
― E daí? Ele era tão apaixonado por ela assim?
― Digamos que a Lori trocou ele por outra pessoa.
― Ahhh… ― ponderei por alguns segundos. Aquilo realmente feria mais o ego do que um simples fora. ― Mas ele tá demorando um pouco a superar isso, não? Quero dizer, ele parece pior com o tempo. Eles não saíram juntos só por alguns dias?
! ! Vão querer? ― Alex parou de tocar e nos interrompeu, tirando uma cerveja de um cooler.
negou com a mão.
― Mais tarde ― respondi. Então, de repente, tomei consciência que eu e estávamos sozinhos de novo. E aquilo era a coisa mais normal do mundo, mas… agora era diferente. Principalmente porque ele parecia sempre inabalável, e eu, a única ansiosa. ― Quer saber? Deixa pra lá. Não tô a fim de falar dos problemas amorosos do PJ.
― Isso mesmo. Você tem coisas mais importantes pra se preocupar ― ele me olhou de soslaio, divertido, usando um tom de voz um pouco mais grave.
Eu sabia muito bem sobre o que ele estava falando. Mas eu não ia dar meu braço a torcer.
― Exatamente ― falei, posando de tranquila. ― Uma dessas coisas é o meu exame final. Olha que engraçado.
soltou uma risada sarcástica, mas claramente frustrada. Abri um sorriso de orelha a orelha, porque conseguir provocá-lo era uma vitória para mim. Aquele placar nunca ia se igualar mesmo.
― Depois eu que sou o irritante pra caralho ― ele disse, puxando seu sketchbook no meio de suas coisas ali na toalha. ― Toma. Vou te falar o que a Tolbert vai pedir.
Ele colocou o caderno em meu colo e começou a apontar seu lápis de carvão com a lâmina de um estilete. Fiquei simplesmente hipnotizada ao vê-lo fazer aquilo. Caí num limbo quando reparei outra vez em cada detalhe de suas mãos, admirada, e só fui desperta quando parou e me entregou o lápis apontado. Ele também mudou de posição, sentando-se bem na minha frente.
― Tem algumas folhas ainda em branco no final ― falou, gesticulando para eu avançar as páginas.
Desci o olhar para seu sketchbook e hesitei antes de abri-lo. Parecia que eu não tinha permissão para fazer aquilo. Eu sabia como desenhos podiam ser coisas absolutamente íntimas e, mesmo já tendo bisbilhotado alguns de seu quarto, eu não queria invadir a privacidade de . Porque aquele caderno era diferente. Aquele caderno estava sempre com ele. Era como olhar para seus segredos.
― E-Eu… ― murmurei.
― Vai, pode abrir ― ele me encorajou, dando um sorriso calmo.
Folheei rápido até as últimas páginas, encontrando finalmente uma em branco. Eu ainda teria tempo para perguntá-lo sobre seus outros desenhos.
― É o seguinte ― ele começou, cruzando as pernas e colando os joelhos no peito. ― A Tolbert vai mandar uma modelo se sentar lá no meio com os cotovelos apoiados na mesa e o queixo apoiado nas mãos. Assim ― ele imitou a posição que tinha acabado de descrever, só que apoiando os cotovelos nos próprios joelhos. As mãos apertaram suas bochechas e enrugaram a própria pele do rosto. ― Você só vai precisar enquadrar a cara dela.
― O quê?! Tá brincando? Isso é bem mais difícil do que eu imaginava.
― Já fizemos isso antes com aquele professor substituto, lembra? Quando estudamos sombreamento em dobras de panos e tecidos. É mais ou menos o mesmo raciocínio. E desenhar aquilo era bem mais difícil, você não pode reclamar.
― Aquilo era extremamente difícil, agora é só difícil. Grandes merdas.
― Pode começar ― me ignorou, falando com a voz abafada pelas bochechas espremidas. Comecei a rir da expressão engraçada dele.
― Bom… pelo menos só vou ter que desenhar o rosto mesmo, né?
― Sim. Relaxa, você vai dar conta. O problema é a luz e a sombra das dobras da pele. Acho que ela não vai avaliar a expressão facial, então nem precisa dar muita atenção pras sobrancelhas, emoção dos olhos, essas coisas.
― Bem que aquela demônia me avisou pra eu praticar mais luz e sombra.
― E chegou sua hora privilegiada de praticar com o mestre ― ele deu uma piscadinha.
Rolei os olhos, segurando o riso. Foi então que percebi uma nova melodia das cordas do violão de Alex Rose, que chegou aos meus ouvidos da forma mais graciosa possível, ainda que bem baixinha e distante, se misturando com o som das ondas do mar.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Bullet Proof… I Wish I Was – Radiohead

Ajeitei minha posição, cruzei as pernas e, com o sketchbook ainda em meu colo, respirei fundo antes de começar a traçar a primeira linha na página vazia. Assim que delineei o rosto de , minha consciência me alertou outra vez sobre o que estava acontecendo. Estávamos ali, um de frente para o outro; ele olhando para mim o tempo inteiro, e eu com uma licença poética para analisá-lo o quanto quisesse. Minhas mãos começaram a ficar um pouco trêmulas. Engoli em seco, tentando fazer aquele nervosismo desaparecer. Eu precisava de concentração.
É isso. Eu precisava me concentrar.
Sem querer, deixei o lápis se desequilibrar da minha mão e cair sobre o papel. deu uma gargalhada. Eu odiava como ele sabia exatamente quando eu ficava nervosa por sua causa. Pensei que eu ficaria mais ainda, mas a risada dele acabou quebrando o gelo. Apesar de tudo, consegui desenhar traços mais certeiros e, quando seu rosto foi tomando forma, percebi que, com um pouco mais de autoconfiança e paciência, até que eu poderia mandar bem naquilo. Então, me concentrei o suficiente para que nem uma mosca me atrapalhasse.
O som do violão de Alex foi se afastando, as vozes de Jenna e PJ foram sumindo. A lenha crepitava ali perto, e a meia-luz do fogo que iluminava ia causar um efeito legal no desenho. Além de, claro, deixar seus olhos azuis esverdeados num tom ainda mais quente, lindo e profundo.
Àquele ponto, depois de vários e longos minutos, parecia perdido em pensamentos, mas focado – não se mexia, não desviava o olhar por nada. Embora eu estivesse ali, compenetrada e observando todos os seus detalhes, era eu quem estava me sentindo devorada pelo seu olhar.
― Ah, não… ― reclamei, pendendo a cabeça para o lado. Vi que tinha traçado uma linha completamente torta e fora de perspectiva. ― Você tem uma borracha aí? Preciso consertar uma coisa.
― Você não pode usar borracha, .
Bufei. Não era difícil saber por quê eu havia sido reprovada naquela matéria.
Entrei em foco absoluto quando comecei a desenhar os olhos de , e ele logo percebeu. Não tinha como não perceber. Usei um círculo de cada lado da linha do nariz para determinar a posição e o ângulo deles em seu rosto; depois tracei as pupilas, as íris, os globos oculares e, em seguida, as pálpebras. Nas pálpebras inferiores, tive que prestar mais atenção nos pequeninos músculos que se curvavam levemente para cima. Embora a expressão não fosse avaliada no exame, eu queria me desafiar naquele ponto. Por fim, desenhei seus longos cílios, adicionei um sombremaneto simples nos cantos e, utilizando o branco do papel, destaquei alguns pontos de suas íris para torná-las mais claras e brilhantes.
Aquele não era um desenho com tratamento completo, lógico. Era um esboço rápido e imperfeito, mas carregado de detalhes, principalmente de luz e sombra. E, por incrível que pareça, estava ficando melhor que muitos outros desenhos que eu já tinha feito nessa vida. Eu até arriscaria admitir que estava me sentindo orgulhosa dele.
Em certo momento, percebi que moveu os olhos para baixo e os manteve fixos ali por algum motivo, acompanhado de um sorrisinho irritante. Aquilo tirou totalmente a minha concentração.
― Quer parar de olhar pro meu desenho?
― Não tô olhando pro seu desenho.
Vi se tinha alguma coisa na minha roupa, mas nada. Quase achei que a alça do meu macacão tivesse se desabotoado sozinha, mas estava tudo no lugar, inclusive o meu top. Então, entendi tudo. Quanto mais eu me inclinava, mais meu decote ficava evidente. E até que meus peitos estavam um arraso naquela roupa mesmo.
― Você é inacreditável ― falei, agora tendo a certeza que aquele sorrisinho era, na verdade, indecente. O nervosismo voltou outra vez, mas ainda bem que eu já estava terminando. ― Já chega. Não vou dar tratamento no seu cabelo, minha mão tá doendo ― suspirei, largando o lápis no meio das páginas gastas.
Na mesma hora, desfez sua posição e voltou a se sentar ao meu lado. As bochechas dele já estavam vermelhas de tanto tempo que foram apertadas por suas mãos. Sorri, achando graça.
― Não vai falar nada? ― perguntei, vendo sua expressão indecifrável ao olhar para o meu esboço.
Ele riu.
― Tô impressionado.
― Mesmo? Impressionado em qual sentido?
― Porra, num bom sentido.
― Você só tá dizendo isso porque tava com expectativas muito baixas.
― Não, tô falando sério ― ele riu outra vez.
― Sei.
― Tô parecendo um personagem de HQ, mas considere isso um elogio.
― Merda ― cobri minha cara com uma mão. ― Eu disse que era péssima com realismo. Tolbert sempre reclama que meus desenhos são cartunescos demais.
tirou seu sketchbook do meu colo e assoprou a poeira do carvão da página aberta, ainda encarando o meu desenho. Depois, tirou minha mão do meu rosto.
― Foda-se. É o seu estilo. Eu falei pra você considerar isso como um elogio. Já passamos dessa fase de ter que agradar professores pra sentir que temos algum valor profissional ― ele disse com segurança e fechou o caderno com o lápis dentro. ― Relaxa, você vai conseguir essa dispensa.
Suspirei mais uma vez, pensando em ligar o foda-se para aquilo também.
― Pelo menos agora você tem uma obra de arte minha aí dentro ― brinquei.
― É verdade. Só faltou o autógrafo.
abriu o caderno de novo e estendeu-o para mim. Peguei o lápis, assinei um “* e escrevi a data, pensando se algum dia ele ainda se lembraria de hoje.
Um breve silêncio se instalou e eu fiquei desconcertada. Me liguei ao redor e observei Alex entrando no papo ainda sério entre Jenna e PJ. Só queria que eles fossem embora para eu poder dar uns beijos em em paz.
― Ei ― chamei-o. ― Sei que eu disse que não queria falar mais disso, mas…
― Eu sei, curiosa ― ele revirou os olhos. ― Pode perguntar.
― O cara que a Lori tá saindo agora é… mais… mais… ― eu não poderia dizer “gostosão” ou algo do tipo. Afinal, era do amigo dele que estávamos falando. ― … Mais diferente da fisionomia do PJ?
riu, entendendo aonde eu queria chegar.
― Aí é que tá ― ele respondeu.
― O quê? O cara é mesmo bem gato?
― Lori não tá saindo com um cara. Tá saindo com uma mulher.
Meu queixo foi ao chão. Eu estava mesmo sempre por fora das fofocas dessa universidade.
― Meu Deus. E o PJ não tá aceitando isso? Por quê?!
… Pensa um pouquinho.
― Pensar em quê?
Por que eu sentia que as coisas eram tão óbvias para todo mundo, menos para mim?
Então, olhando para os três, meu cérebro lentamente começou a ligar os pontos. A conversa entre eles estava ficando cada vez mais alterada, e as expressões não estavam muito alegres. Porém, ainda assim, me recusei a acreditar na primeira teoria que se formou em minha cabeça.
Mas… era a única possível.
― Não… Sério? , você tá falando SÉRIO?!
Ele só balançou os ombros, como se estivesse cansado de se envolver naquele drama.
― Por que… Por que ela não me contou? ― perguntei mais para mim do que para ele, ainda em choque e até um pouco decepcionada.
― Ela também não contou pra gente. Foi o PJ que descobriu. Pra ser sincero, acho que ela ficou com muito medo de ser julgada.
― Jenna? Jenna com medo de ser julgada?!
― Pois é. Eu também não esperava.
Jenna estava saindo com Lori. Jenna estava saindo com Lori. Jenna estava saindo com Lori.
Aquilo ficou rondando meus pensamentos por alguns segundos até tudo fazer sentido. A menina que Jenna beijou na festa foi Lori. A menina com quem ela estava se encontrando era Lori. Mas Lori estava saindo com PJ. Lori deu um pé na bunda do PJ para ficar com Jenna? E Jenna quis reunir todos em Oakwood hoje para… PJ ficar bem?
Um parafuso não estava entrando.
― Não, chega, eu já cansei dos seus papinhos ― PJ falou um pouco mais alto, chamando nossa atenção. Jen respondeu alguma coisa, mas não conseguimos ouvir. Ele tentou se levantar, mas Alex se esforçou para segurá-lo. ― Me solta, porra. Já deu. Eu não preciso passar por isso. Vai se foder, Jenna! VAI SE FODER!
Totalmente enfurecido, PJ se levantou, arremessou longe uma latinha de cerveja, marchou pela areia até alcançar sua bicicleta e enfim foi embora. Ficamos observando a cena, perplexos. De repente, ouvi o choro de Jenna. Ela se levantou também e saiu correndo na direção oposta.
Nem pensei. Só me levantei rápido e saí correndo atrás dela.
Corri, corri e corri.
― Jen! Jen, espera! ― gritei, mas ela começou a correr ainda mais rápido. Tive que tomar um fôlego para acelerar minha corrida também, e o vento gelado e salgado cortando meu rosto só piorava as coisas. ― Jenna, pelo amor de Deus, para de correr!
Chegamos mais perto de onde havia um monte de rochas imensas pela areia, então ela finalmente parou. Ofegante, fui andando com um pouco mais de calma até ela. Estava tudo tão escuro; tínhamos nos afastamos demais da fogueira.
― Eu não sei mais o que fazer ― disse em meio ao choro, cobrindo os olhos com os dedos e limpando as lágrimas que não paravam de cair. ― Desculpa por tudo isso.
― Isso o quê?
― Isso… Eu não queria magoar o PJ. Queria que hoje fosse um dia legal pra todo mundo ― ela se embargou ainda mais no choro. ― Desculpa também por… por não… Quer dizer… Você não deve tá entendendo nada, né... Desculpa...
― Jenna. Calma ― tirei suas duas mãos do rosto e as segurei firme, entrelaçando nossos dedos. ― me contou o que tá rolando, mais ou menos. Não se preo–
― Ai, meu Deus! Coitado do . Ele já se indispôs com o PJ por minha causa. Ontem eles brigaram bem na minha frente lá na república, porque foi tentar me defender… É por isso que eu queria tanto que a gente fizesse alguma coisa legal juntos... Eu cansei de toda essa negatividade. Tô me odiando muito por todo esse transtorno que causei. Eu não queria ser assim, … Poxa, se o PJ não quer lidar com isso, imagina eu?!
― Não, não chore… ― puxei-a para um abraço apertado, e ela desabou a chorar mais ainda. Senti seus braços me envolvendo com força, e algumas de suas lágrimas molharam meu ombro. ― Deus do céu, desculpa...
Eu não fazia a menor ideia do que era sentir aquele peso que ela estava sentindo. Acabei chorando também, porque não estava aguentando vê-la daquele jeito.
― Desculpa pelo quê? ― Jenna levantou a cabeça por um momento para me olhar.
― É que… Você sempre me deu conselhos tão maravilhosos e… agora que precisa de mim, eu não sei o que te dizer.
― Você tá aqui comigo. É isso que importa ― ela riu e voltou a me abraçar. ― Você foi uma das melhores coisas que me aconteceu nos últimos meses. Eu sempre tô rindo com você. E não se engane, eu também aprendo muito quando estamos juntas. Você nem faz ideia.
Meus olhos se encheram ainda mais de lágrimas. Estávamos como duas loucas abraçadas e aos prantos, no meio de uma praia deserta.
― Jenna, por favor, não liga pro PJ ― olhei para ela. ― É o ego dele que tá abalado. Tudo que fere o ego dói mais. É o orgulho masculino que tá afetado, só porque ele tem medo de ser zombado por outros caras, tenho certeza. Tem coisa mais previsível do que isso? Vai ser difícil no início, mas daqui a pouco passa. Fica tranquila. Só o deixe tomar o tempo dele, ok?
― Vou deixar agora.
― E é você quem também merecia compreensão, mas nós duas sabemos que não vai adiantar nada falar com o PJ naquele estado. Ou mesmo fazer qualquer coisa por ele, como você tá tentando. Ele não vai enxergar coisa alguma agora. E por favor, não deixe de sair com quem você gosta por causa dos outros. Por causa da régua moral dos outros, seja lá o que PJ tenha te falado. Você e a Lori formam um casalzão.
Ela riu de novo, um pouco mais felizinha com o meu comentário. Então, nos desfizemos do abraço e limpamos nossas lágrimas. Começamos a fazer o caminho de volta à fogueira com os braços entrelaçados e os passos sincronizados, assim como no dia em que nos conhecemos.
― Eu não sabia que a Lori tava saindo com ele naquele dia, . No dia da festa. A gente se beijou só de palhaçada no início, mas depois nos beijamos de verdade, eu e ela. E aí… ela sumiu. Eu juro que não sabia que ela tava com o PJ. Até bebi mais e tentei me distrair, fiquei louca e dei um beijo triplo com umas colegas minhas de Design de Moda. A gente sempre faz isso, nada de mais. Mas foi nessa hora que o PJ veio até mim pra falar de você e o DeWolff.
― Você já explicou isso pra ele?
― Sim, umas duzentas vezes. Ele não aceita. Inclusive, no começo, ele achou que era brincadeira o rolo entre eu e a Lori. Porque, segundo ele, eu sempre faço isso pra “aparecer” e “querer chocar os outros” ― ela fez aspas com os dedos, fazendo uma careta. ― Sabe, não é a primeira vez que eu escuto esse tipo de coisa. Aliás, esse tipo de comentário sempre chega aos meus ouvidos. Eu posso até brincar às vezes, , é o meu jeito. Mas o que eu sou não cabe a ninguém definir. E isso é muito sério. São coisas completamente diferentes.
― Porra… Eu não sabia que o PJ te julgava desse jeito.
― Mas não foi só isso. Ele ficou tão puto que desceu o nível e chegou a me ofender pessoalmente. Por isso o interferiu. Mas é o que você disse... É uma questão de ego. Ego de macho, como diz a Lori.
Ri, me lembrando do jeito da garota falar.
― Falando nisso, a Lori me ajudou muito com o Nate — comentei. — Foi ela que me deu uma carona até o Belva Hall depois da festa. Ela também passou a noite na república comigo.
― Jura?
― Aham. Ela é muito fofa, muito esperta. Eu adorei conhecê-la.
― Sim, ela é! Que bom que vocês já se conhecem. Eu não fazia ideia ― Jenna comemorou. ― Mas está um pouco difícil ainda, sabe, . Ela ainda tem muito medo. Quando nos encontramos, temos que nos esconder de Deus e o mundo, se não ela surta.
― Talvez seja por isso que ela não se abriu antes com o PJ, e vocês dois acabaram ficando nessa encruzilhada.
― Exatamente. Eu acho que ela tava com medo do que sentia por mim, e ficou cozinhando o bunda mole ignorante– quer dizer, o coitado num canto até se decidir de verdade. É isso. Foi isso o que aconteceu.
Dei uma risadinha que não era pra ter saído tão alta, mas que ecoou nos quatro cantos de Oakwood. Arrependi na mesma hora, e Jenna ficou rindo comigo.
De volta à fogueira, já quase no fim da lenha, encontramos Alex vidrado na brasa que ainda queimava.
― Eu acho que… não tô muito bem… ― ele murmurou.
― Meu Deus, Alex, o que você fez? ― Jen foi logo socorrê-lo. ― Fumou aquele haxixe horrível de novo? Vem, levante-se.
― Acho que vou morrer…
― Vamos embora. Cadê o ?
― Foi pra lá.
― Pra onde? ― perguntei.
― Ali na frente, perto do mar… atrás daquela pedra… Ele me abandonou…
― Chega, Alex ― Jen puxou-o do chão pelo braço. ― Vem, me ajuda a catar essas coisas pra gente ir embora. , você pode ir chamar o ?
― Sim, vou lá. Podem ir, a gente alcança vocês de bicicleta depois.
― Ok.
Dei meia-volta e fui em direção ao mar, deixando os dois para trás. Quando os perdi de vista, apressei o passo até a pedra que Alex tinha mencionado. Foi onde encontrei, atrás dela, deitado sobre um enorme pedaço de tronco, provavelmente de um carvalho caído que tinha rolado até a areia molhada. Com a nuca apoiada no antebraço, ele parecia admirar as estrelas; entre seus dedos, brincava de girar um cigarro de palha apagado.
Fui andando devagar e, quando me aproximei o suficiente, arranhei a garganta para chamar sua atenção. Ele inclinou o pescoço para trás e, assim que me viu, abriu um sorrisinho de lado quase imperceptível. Aquele tipo de sorriso só para eu ler nas entrelinhas.
― Conversei com a Jenna. Tá tudo bem agora, por enquanto ― fui chegando mais e mais perto. Em silêncio, ele me acompanhava atento com o olhar. ― A gente já tá indo embora, mas eu vim aqui antes pra… quebrar uma promessa idiota.
levantou o corpo, sentando-se com uma perna de cada lado no tronco. Me sentei ao lado dele, mas com as pernas viradas para frente. Ele colocou o cigarro que segurava atrás da orelha e continuou olhando para mim.
― Sabe, não foi tão fácil tomar essa decisão quanto você pensa ― menti, tentando provocá-lo, mas só conseguindo arrancar dele mais uma risada sarcástica. ― E você continua irritante.
― Esse posto eu não pretendo largar.
Quando aproximei o rosto, ele já estava encarando minha boca. Fechei os olhos e meus lábios roçaram os dele, suavemente, apenas o tempo suficiente para que eu pudesse sentir o calor de sua pele. Quando sua língua invadiu minha boca, devagar, minhas mãos ansiosas agarraram sua nuca. A carícia dos lábios dele era a coisa mais gostosa do mundo.
A ventania aumentou e quase atrapalhou o beijo, fazendo meus cabelos se agitarem de repente. Mas foi mais rápido – seus dedos se embrenharam por entre os fios, afastando-os de uma vez do meu rosto. Seu corpo avançou um pouco mais na minha direção enquanto nossas línguas se enroscavam uma na outra, trocando um desejo tão intenso que estava começando a me deixar molhada. Sua outra mão tocou meu pescoço, depois foi descendo até meu ombro e, então, escorregando tortuosamente até minha cintura descoberta, graças à abertura lateral do meu macacão. E ali ela ficou, enquanto nos beijávamos com uma tentação cada vez mais árdua de ser contida.
Aquela mão não demorou até deslizar para cima de novo, passando por minhas costas e deixando um rastro de arrepios por minha pele. Ela se enfiou para dentro do meu top e foi fazendo a curva, bem devagar, querendo chegar na parte da frente. Quando senti seu polegar pressionar a lateral do meu seio, mordi o lábio dele.
Afastei o rosto lentamente, sem querer que aquele momento parasse ainda, mas preocupada com o nosso atraso pra voltar para a Oyster.
O que era pura mentira. A real preocupação era com o que a minha excitação estava implorando para as mãos de fazerem, quando eu já estava praticamente no colo dele.
Minhas bochechas coraram. Soltei as mãos de sua nuca e desviei o olhar para o mar noturno por um instante, pensando na enrascada que eu estava me metendo se permitisse levar aquele desejo adiante. Já me fodi tanto nessa de ficar alucinada por um cara que o mínimo que eu precisava fazer era me proteger. Ou tomar um tempinho para pensar duas vezes.
Ele também parou de me tocar, mas chegou um tanto mais perto de mim.
― O que foi? ― perguntou, no pé do meu ouvido.
Respirei fundo.
― Você não facilita as coisas.
― Eu?! ― ele riu, aproveitando para colocar uma mão embaixo da minha coxa e virar meu corpo de volta para o seu. ― Só eu?
Lutando para resistir, continuei olhando para frente, com a cabeça a mil por hora, fingindo para mim mesma que não ceder era a decisão certa a se fazer. Mas levou um dedo até meu queixo e tentou me fazer olhar para ele de novo. Depois, levou outro. E mais outro.
Eu disse.
Ele não facilitava as coisas.
Era inútil tentar seguir o que meu lado racional me alertava.
Num impulso, virei o rosto para outra vez, e a ponta dos nossos narizes se esbarraram. Sua boca já estava me esperando. Ele me beijou com tanta avidez que eu não pensei em absolutamente mais nada, só no momento. Só no agora. Me desliguei de todo o resto e retribuí seu beijo delicioso, que eu nunca deveria ter parado.
Em poucos segundos, estávamos nos devorando de novo. Será que ele também não parava de pensar em como aquele beijo estava – puta merda –, muito bom? Ainda melhor que o último, que eu achei que dificilmente seria superado?
Passei uma das minhas pernas para o outro lado do tronco, espelhando sua posição, aproveitando para subir um pouco mais em seu colo. Senti sua excitação na minha virilha, o que bastou para uma onda de calor imensa descer para o meio das minhas coxas. Estiquei minha coluna para conseguir me prensar mais contra seu corpo, e agora eu só não estava me jogando em cima dele porque suas mãos firmes se apossaram da minha bunda. Uma delas resolveu trilhar novamente o caminho até a frente do meu top, e logo senti um dos meus seios envolto pela mão grande de . Ele soltou um gemido estrangulado contra minha boca enquanto usava o polegar para brincar com meu mamilo sensível por baixo do tecido.
— Porra, como eu odeio esse seu top apertado — resmungou, com a voz rouca e arrastada. Ele tentava enfiar os dedos por baixo do elástico.
— Mas eu fico com um decote bonitão com ele — sorri, travessa, e me afastei só um pouco para observá-lo.
— Você fica uma delícia de tantos jeitos que eu já me perdi nessa conta há muito tempo — ele finalmente invadiu meu top e apalpou meu peito por baixo da roupa. Comecei a rir quando um suspiro pesado saiu de sua garganta. — Não é engraçado. Eu tô duro pra caralho agora.
— Eu sei — além de visível, eu podia sentir sua ereção encoberta latejar contra minha virilha. — E é isso que tá uma delícia, sabia?
Antes de voltar a beijá-lo, contive um grito – apertou minha bunda muito mais forte, me fazendo calar a boca e deixá-lo conduzir o beijo dessa vez, com meus lábios curvados em um sorriso.

Nem sei quanto tempo se passou. Sei que só paramos quando o atraso pra voltar para a Oyster realmente virou um problema.


🙂🙃🙂


No final de semana, eu estava bebendo no Millard’s. O lugar estava cheio de balões e decorações festivas no teto e nas paredes. Eles estavam fazendo uma promoção maluca de chopp em dobro, antecipando a comemoração de cinquenta anos do bar que ia acontecer em breve na praia de Bricktown. Anúncios sobre o luau estavam por toda parte – as arrecadações estavam abertas para quem quisesse doar uma grana para a contratação de bandas melhores e para o aumento do estoque de bebidas.
Eu nunca tinha visto o Millard’s tão lotado como naquele dia. A noite estava animadíssima. Todas as mesas estavam cheias, e as pessoas não paravam de berrar e transitar de um lado para o outro. Eu estava ali marcando presença num aniversário de uma colega de curso, que também reuniu umas dez meninas do Belva Hall. E arrisco dizer que umas oito já estavam caindo de bêbadas.
Inclusive eu.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Just A Girl – No Doubt

Oh, I’m just a girl, all pretty and petite ― comecei a cantar a música que tocava na jukebox. ― So don’t let me have any riiiiiights...
OOOOOOOOOOOOHHHH ― Erin, a garota ao meu lado, usou um copo vazio como microfone e se juntou a mim. ― I’VE HAD IT UP TO HERE!
Todo mundo da mesa começou a olhar para nós. Desembestamos a rir. Até que ela me chamou para ir ao banheiro, e eu aceitei na hora. Não ia perder a chance de passar pelo barman por nada naquele mundo.
Blaze estava fazendo hora extra hoje, com certeza estava sobrecarregado. Bem feito. Eu ia passar por ele desfilando e jogando meu cabelo no ar. Mas, antes, tive que me entediar em pé na fila do banheiro, então aproveitei para observar brevemente as pessoas ao redor. Por um segundo, jurei que tinha ouvido uma voz familiar no meio de tantas outras, mas nem dei muita importância. Àquele ponto, eu não podia dar tanta confiança para as minhas percepções aleatórias assim. Mas se parecia muito com a voz de , e aquilo só provava o quanto eu já estava ficando alucinada por ele.
Eu sabia que isso ia acontecer.
Porém, acabei escutando a voz de novo. Então, procurei outra vez por ela… até avistar o próprio. Lá estava numa mesa próxima, do lado oposto de onde estava a minha. Levei um susto e cobri minha boca com a mão.
― O quê? O que foi? ― Erin quis saber. ― Viu alguém conhecido?
― Vi. Mas não quero que ele me veja agora. Vem pra cá ― segurei os ombros dela e a posicionei na minha frente.
Putz. estava absurdamente lindo, do nível de tirar o fôlego, e eu não fazia a menor ideia que ele também viria para o Millard’s hoje. Ele estava numa mesa com vários amigos que eu não conhecia, rindo à beça de alguma coisa. Todos estavam super agitados e falando muito alto.
― Vai, , é a nossa vez.
Fui empurrada para o banheiro, e a porta foi fechada. Finalmente respirei. Enquanto Erin foi fazer xixi, aproveitei para me olhar bem de perto no espelho, onde meu reflexo só me dizia uma coisa: “você tá mais bêbada que um gambá”. Dei uns tapinhas na minha bochecha e limpei uma mancha de rímel no canto do olho.
Erin saiu da cabine e parou na pia ao meu lado para lavar as mãos.
― Toma, passa um batonzinho ― ela tirou da bolsa alguns acessórios de maquiagem e me emprestou o tal batom, da cor vinho escuro. Por um milagre na Terra, passei-o nos lábios sem borrar. ― Ficou ma-ra-vi-lho-so. Agora sim, pode ir lá fazer o Blaze chorar.
Comecei a rir.
Saímos juntas do banheiro e enfim separamos nossos caminhos. Fui me sentar em uma das últimas banquetas vagas do bar, me debruçando ligeiramente sobre a bancada. Joguei o cabelo para trás e cruzei as pernas. Fazer um charme era uma habilidade rara e apenas possível quando eu estava bêbada.
Vi o meu alvo com um paninho branco no ombro e as mangas da camisa dobradas até os cotovelos. Ele estava igual uma barata tonta atrás da bancada, dividindo o serviço só com outra pessoa para atender umas trinta. Fiz a distraída quando percebi que ele se aproximava.
― Oi, .
― Oh… Oi, Blaze ― encarei-o fatalmente no fundo de suas íris castanhas. Ele olhou super rápido para meu decote, depois voltou-se para mim. Aquele cara de pau. ― Pensei que começaria com um novo emprego na primavera.
― Pois é… Tive que postergar alguns planos e continuar na rotina.
― Não deve tá sendo fácil, né. Você que odeia tanto a vida monótona com compromissos.
― Pois é ― ele repetiu, meio desconfortável. Porém, logo depois, apoiou as mãos na bancada para se inclinar um pouco mais na minha direção. ― Mas, então… acabo o serviço aqui às onze. Vai fazer alguma coisa depois?
— Não sei — dei de ombros, rindo por dentro. Homens eram tão previsíveis. Desde que eu parecesse disponível, Blaze sempre arrastaria a asa para mim, já que eu estava em seu cantinho preferido: o escanteio. Mas só na cabeça dele. — Nem pensei nisso. Tô pensando é em pedir alguma coisa pra beber.
— Hmm… Posso te dar uma ideia depois–
― Collins! ― alguém o repreendeu. Tive que segurar a risada. ― Agiliza aí!
Quando girei o pescoço para ver a mulher que estava dando aquela bronca, simplesmente acabei vendo, por total reflexo, um cara vindo se sentar discretamente na banqueta bem ao meu lado.
Era . Como quem não queria nada.

Meu corpo ficou congelado no lugar.

* Pra quem lê com os nomes originais: quando a Ems assina o próprio desenho no caderno do Jayden, na verdade assina como “M&M's”.



― Deixa pra lá. Depois a gente conversa ― Blaze lamentou, se afastando devagar. ― O que vai querer, ?
― E-eu… Eu vou… Erm…
― Dois Brambles, por favor ― pediu. ― Os dois na minha comanda.
― Ok… ― Blaze olhou desconfiado para ele, depois para mim, marcando o pedido no papel. Então, foi atender outras pessoas antes de ir lá para o fundo preparar os drinks.
― Achei que eu fosse te ver de novo só no seu exame final. .
Revirei os olhos, ainda com o coração acelerado.
― Eu vou te processar, . Já bebi demais. Vim aqui fazer uma gracinha e você me atrapalhou.
― Pode continuar com a gracinha ― ele cruzou os braços, prendendo um sorrisinho nos lábios. ― Eu vim aqui pra assistir.
― Você não vale nada mesmo ― reclamei, ainda esperando Blaze voltar.
― Dois Brambles ― outro barman, que eu nunca tinha visto na vida, trouxe as bebidas e logo se retirou, apressado.
Fiquei boquiaberta. Blaze obviamente foi mais esperto e resolveu desaparecer. disparou a rir da minha cara de descrença.
― Pronto. Tá feliz? Já pode voltar pra sua mesa e seus amigos ― apontei para trás com o polegar, na direção exata de onde eu sabia que ele tinha vindo.
franziu a testa, enquanto erguia o copo com o drink avermelhado.
― Você sabe onde eu tô sentado, por acaso?
― Não ― arregalei os olhos. ― Só chutei.
― Achei que eu tivesse te visto primeiro... até agora. Você me viu antes? ― ele arqueou uma sobrancelha, abrindo um sorriso torto tão convencido e charmoso que quase me fez cair da banqueta.
― É você quem tá dizendo isso. Dá pra gente mudar o assunto? ― virei uns quatro goles de uma vez daquela bebida. ― O que é isso? Gim com amora?
Ele fez que sim com a cabeça e também tomou alguns goles.
― Hmm. É bom. Eu gostei ― falei, tentando ser sutil ao me aproximar mais dele. Pude sentir o seu perfume, e era tão gostoso que por pouco não entrei num delírio. ― Boa jogada, . Da última vez que um cara pagou uma bebida pra mim nesse bar, eu fui parar na–
Ele ficou só me observando, meio inquieto, ansioso para que eu completasse a frase. Comecei a rir sozinha, mas me afastei e bebi mais um pouco.
― Nada não ― desviei a conversa mole ―, tô falando demais.
― Vai, fala.
― Não. Você me estressa.
Ele deu uma gargalhada alta. Então, me fisgou com aquele olhar cheio de vontade e, muito astucioso, terminou de encurtar um pouco mais a distância entre nossos rostos. Parecia que queria me dizer algo, ou me beijar, eu já não sabia mais.
— Às vezes eu acho que você não faz a mais puta ideia do quanto é gostosa, .
Santo pai amado. Eu não estava na menor condição de me controlar naquele momento.
― Escuta — avisei —, se você me beijar agora, eu nunca mais vou te perdoar.
― Por quê?
― Porque você sabe exatamente no que isso vai dar.
― Não tenho nem noção do que você tá falando ― ele balançou os ombros, se fingindo de desentendido.
Meu Deus. Que raiva.
Caramba.
Aquele homem podia fazer o que ele quisesse comigo.
… ― inspirei todo o oxigênio existente na atmosfera antes de falar. ― Eu tô muito bêbada. Tô pensando em muita coisa agora, mas sabe o que vai acontecer quando eu acordar amanhã se a gente...?
― Alguém tá preocupada com o futuro de novo.
Fiquei sem resposta. Ele tinha razão, mas… eu também tinha razão.
Ele continuou:
― Esqueceu que você tá vivendo agora o futuro que se preocupou tanto aquele dia lá na república?
Agora só ele tinha razão. Achei que realmente as coisas ficariam estranhas entre a gente, mas olha só onde estávamos.
― Tá. Tá bom. Concordo com você ― falei, porém só uns 10٪ mais convencida. ― Mas eu não–
De repente, todas as meninas que estavam comigo antes passaram ali atrás e foram se despedindo rapidamente de mim, uma a uma. Erin ainda tocou meu ombro e, por cima da música, berrou no meu ouvido sobre como era gato. Depois, foi embora.
Fiquei com a maior cara de sem saber o que fazer.
Dei o último gole imaginário na bebida, porque só restaram as frutas e o gelo. Bati o copo na bancada com uma força desmedida, sentindo uma tontura maior ainda depois de piscar os olhos algumas vezes. Talvez fosse o sinal de que eu também precisava ir.
― Vamos ― ele riu e se levantou, me puxando levemente pelo braço. ― Não precisa se explicar, . Relaxa, pode ir. Eu espero um táxi com você lá fora.
Me levantei também e fui guiada por até a saída, que caminhava atrás de mim com uma mão espalmada no fim das minhas costas. Quando passamos próximo à mesa onde ele estava antes, todos os seus amigos começaram a fazer barulhos para nós. Ou seja, um bando de homens altamente alcoolizados que regrediram alguns anos até a escola. Faço ideia o estrondo que causariam quando voltasse a se sentar lá.
Assim que finalmente paramos na calçada, me virei de frente para ele:
― A gente pode voltar a ter essa conversa depois que eu passar no meu exame final?
― Quando você quiser.
Ficamos nos olhando por um tempo; as incertezas e a antecipação do momento acabando comigo.
— Você é um perigo, sabia disso? — soltei, falando meio embolado.
— Por quê? — ele riu, mas nós dois sabíamos que sua pergunta tinha um único intuito: me atiçar mais.
— Você sabe por quê, caramba. Tô quase te puxando pra dentro do banheiro feminino do Millard's, e eu nunca fiz sexo em público na minha vida.
deu uma gargalhada.
— O quê, você já fez? — perguntei.
— Já.
— Onde? — semicerrei os olhos e cruzei os braços.
— No terraço do Belva Hall.
Meu queixo caiu no chão. Na verdade, ultrapassou o solo.
— Não acredito. Eu devia estar um andar abaixo no momento que isso aconteceu.
— Na verdade, dois — ele me corrigiu, e tinha razão. Sabia que eu ficava no segundo andar, não no terceiro.
— Mesmo assim — fiz uma careta escancarada. Odiava imaginar ele e Renée fazendo qualquer coisa, e agora aquelas imagens estavam invadindo minha cabeça. — Acho que eu não queria saber disso. Me arrependi. Podemos voltar no tempo?
— Por quê?
Dei um tapa em seu peito, o que só o fez rir mais.
— Quer parar de me perguntar o porquê de tudo?! Não gosto de pensar em você com sua ex, por favor.
— Quem falou que foi com ela?
Fiquei em silêncio e arregalei os olhos, balançando a cabeça de um lado para o outro, o condenando através da minha encarada letal.
— Quer dizer então que você passa o rodo nas meninas do meu dormitório...
— E você só é minha próxima vítima.
Dei uma risada mais alta que o normal. era especializado em me desarmar com suas gracinhas.
— E aí? Foi de dia ou de noite? — continuei com as perguntas masoquistas, enquanto ele ria e revirava os olhos. — Quer dizer, você teria coragem de fazer isso à luz do dia?
— Foi à noite, — agora o tom de sua resposta foi mais repreensivo. — Até parece que você também não estava bem ocupadinha no seu quarto um ano atrás.
— Meh… — balbuciei, ao mesmo tempo que lembranças desagradáveis de Blaze me vinham à mente. levantou as sobrancelhas, surpreso e interessado numa explicação. — Olha, eu tinha muito tesão no cara, mas sinto que desperdicei meu tempo. Sinto que não gozei o suficiente, a verdade é essa. Agora, se você perguntar o mesmo pra ele… a resposta vai ser bem diferente. Porque esse imbecil preguiçoso gozou muito mais do que o suficiente comigo. E como. O desequilíbrio dessa relação não era só sentimental, . Eu sou a maior otária que você já conheceu — dei uma espiadela em sua reação. Ele estava bastante concentrado no que eu dizia, mas meio indecifrável. Talvez estivesse segurando outra gargalhada. — Putz, eu sempre falo demais quando tô bêbada.
— Eu gosto quando você fala demais, — um sorrisinho solene iluminou seu rosto, nem um pouco preocupado em esconder que apreciou cada segundo da minha língua solta.
— Eu não — fiz um bico do tamanho do mundo.
— Não? Ainda quer voltar no tempo? — ele se aproximou mais de mim, encaixando as duas mãos na minha cintura. Até que percebi que aquela pergunta poderia me vir a calhar.
— Na verdade, quero. Mas quero voltar um pouco mais atrás.
— Hmm. Pra quando você quer ir?
— Quero saber que dia você sacou que eu tava “a finzona” de você — depois de evidenciar as aspas com os dedos, descansei minhas mãos em seus bíceps e usei a embriaguez para ter coragem de encará-lo outra vez.
Ele vagou os olhos claros pelo céu estrelado e pensou por um momento antes de responder:
— Tive uma ideia no dia da festa de Ano-Novo, quado você deu em cima de mim do jeito mais descarado possível… mas achei que fosse coisa da minha cabeça. Você tava loucassa.
— Tava mesmo. E não errou. Foi quando reparei melhor na sua gostosura, mas… — fiz uma pausa quando percebi que, na verdade, eu já tinha reparado em antes mesmo de colocar uma gota de álcool na boca durante aquela festa. Diante do meu pequeno bug mental, ele apenas jogou o pescoço pra trás e soltou uma risada alta, o que fez meus pensamentos voltarem ao presente. — Tá, mas quando você teve certeza?
— Em Oakwood.
— Em Oakwood?! — repeti, impressionada em como aquela resposta estava na ponta de sua língua.
— Naquele primeiro domingo do ano, dois dias depois da virada do milênio. Você tava igual uma árvore de Natal com aquele gorro vermelho na cabeça e cismou em ir até a casa abandonada, mas te convenci a ir embora. Lembra?
— Lembro — choraminguei, querendo evaporar dali. — Não sei se quero que você continue. Já sei como essa história termina.
— Então — ele me ignorou e prosseguiu assim mesmo —, joguei no ar o lance que aconteceu na festa pra ver sua reação. Achei mesmo que você só ia tratar normalmente ou fazer alguma piada comigo, e todos seguiríamos em frente, mas… — ele começou a rir da minha cara de novo. — Você ficou igual tá agora. Sem graça pra caralho e “a finzona” de mim.
— Eu não fico sem graça, fico vermelha porque você realmente me estressa — tentei pagar de impassível, mas minhas bochechas deviam estar que nem dois tomates. — Sério, o que é o estresse da faculdade comparado ao que você me faz passar?!
— Vai por mim, você fica ainda mais sexy tentando negar.
Abri a boca para responder, porém nada saiu.
Bufei. Não estava conseguindo processar o fato de que fazia tanto tempo assim que ele sabia de tudo. E não poderia estar mais certo – daquele dia em Oakwood em diante, tudo que vivi foi um exercício mental constante de negação. Porra, até o crime de transar com o Derek para superar minha queda por eu fui capaz de cometer.
— Você fica cada dia mais insuportável — minha fala só causou mais um sorriso de lado naqueles lábios irresistíveis. — Sorte que é um lindo, por isso eu aguento.
Salva pelo gongo, o táxi enfim chegou, mas não largou as mãos da minha cintura.
— Preciso ir — apertei levemente os músculos de seus braços. Então, dei mais um passo à frente e subi na ponta dos pés. Estalei um beijo rápido na trave de sua boca e outro mais demorado na curva de seu pescoço, só porque ele estava cheiroso demais. — Olha só, deixei duas marquinhas com meu batom — sorri satisfeita e hasteei o indicador na frente de seu nariz. — Nada de limpar. Quero você voltando praquela mesa de machos no bar e ficando vermelho com o escândalo que eles vão fazer quando virem. Quem sabe assim ficamos quites, não é?
Seu sorrisinho ficou ainda mais ladeado, mais aberto, e quando ele lambeu o lábio inferior para ganhar tempo e pensar, não desgrudei os olhos de sua língua. Caramba, eu consegui deixá-lo sem resposta. Hoje poderia virar um feriado nacional.
Quis chorar quando senti o calor de suas mãos em minha cintura indo embora.
— Ok. Deixa comigo — ele disse por fim, dando uns passos lentos para trás para voltar ao Millard’s. Ganhei um sorrisinho cúmplice de volta, e com ele fiquei na cabeça até chegar ao meu quarto.

Depois de um banho, caí no sono sem conseguir parar de pensar no maldito.


🙂🙃🙂


Os dias seguintes foram um completo porre. Voltei à realidade acadêmica preferindo a morte. Aquele arrependimento de ter acumulado um monte de trabalhos para fazer no fim do prazo bateu, e bateu com força total. Eu estava vivendo um dia após o outro numa ressaca infinita.
No dia do meu exame final, pelo menos, fui capaz de regular o sono na noite anterior. Porém, assim que terminei aquela merda e entreguei meu desenho pronto para a Srta. Tolbert – que concluí sem muitas dificuldades, graças à minha “prática” da semana passada –, saí para o pátio e me deitei debaixo da sombra da primeira árvore que vi. Tampei meus olhos com a manga de um casaco que achei dentro da bolsa e dormi em menos de cinco minutos. Estava tão cansada mentalmente que nem deu tempo de ponderar sobre nada. Eu também não era a única estudante exausta que tirava cochilos sem dignidade ao ar livre por aí, por isso nem me preocupei.
O resultado do exame sairia em uma hora, e, mesmo se atrasasse, eu esperaria por ele na força do cansaço e do ódio.
Não sei quanto tempo se passou quando fui acordada. Meu sono foi tão profundo que eu tinha até sonhado, mas não me lembrava de coisa alguma. Senti algo cutucar meu pé várias vezes, então abri os olhos e tirei meu casaco da cara. A primeira coisa que vi foi o par de tênis brancos e surrados da Nike. Tentei olhar para cima, mas a claridade estava incomodando, e o meu pescoço começou a doer horrores.
se agachou ao meu lado, estendendo um papel para mim. Ele estava com um boné virado para trás.
― Hmm? O que é isso? ― me espreguicei, ainda acordando para a vida. Ajeitei minha coluna e me sentei sobre a grama.
― Lê.
Peguei o papel e corri os olhos por aquele enunciado formal com a assinatura do coordenador no rodapé. Quase achei que tivesse cometido um crime. Então, li em voz alta:
― “Certificamos que está dispensada da discipli–” AH! Meu DEUS! Eu consegui?!
Ele riu, balançando a cabeça positivamente.
― Caramba, eu tô livre! ― continuei comemorando, aliviada. ― Um peso a menos nas minhas costas. Nem acredito!
― Não falei que você ia conseguir?
Finalmente reparei em sua expressão, e em como ele parecia estar tão cansado quanto eu. Ou, talvez, até mais. Aquele último semestre estava tirando a paz de todo mundo.
― Isso me lembra… ― comentei. ― Achei que você estaria lá na hora do exame.
― Eu ia, mas precisei trocar meus horários... Estive ocupado. Passei lá na sala agora pra saber seu resultado.
― Tudo bem ― falei, bocejando. Pisquei os olhos algumas vezes e vi PJ a alguns passos de distância, meio que esperando por . ― Precisa ir agora?
― Sim ― ele suspirou, também olhando para trás. Então, se levantou e enfiou as mãos nos bolsos da calça jeans.
Foi a minha deixa para juntar minhas coisas e me colocar de pé:
― Também vou indo. Preciso terminar uns trabalhos.
― Eu te ligo mais tarde ― ele falou mais baixo, dando uma piscadinha. Uma daquelas piscadinhas despretenciosas, mas que não custou nada para me revirar do avesso.
Só concordei com a cabeça e acenei para eles, que enfim foram embora.

Não tinha um dia que eu me encontrava com e não percebia que estava cada vez mais fodida.


🙂🙃🙂


― Comprei mais macarrão instantâneo pra gente ― Sadie entrou no quarto com uma sacola de papel pardo cheia de compras. ― Umas frutas também, tipo maçãs e um abacate pra gente fazer guacamole.
Saí da escrivaninha e fui até ela para ajudar a guardar as coisas.
― E aí, como vai com o... Alex? ― cantarolei o nome dele.
― Razoável. Melhorando aos poucos. Ele é meio abestalhado, mas eu gosto do menino. Vamos juntos ao luau do Millard’s, você também vai? Finalmente vão poder se conhecer — ela fez uma dancinha com as sobrancelhas, sugestiva.
― É mesmo… Devo ir. Tá todo mundo indo, né?
― Sim, pra variar. Não entendo essa empolgação toda. Mas é engraçado como esse ano tá cheio de festas, não acha?
― É, mas não é uma coincidência. Na faculdade, tem dois anos que são cheios de festas: o primeiro e o último.
― Pode ser. O início e a despedida…
Sadie podia ser totalmente alheia a algumas coisas, mas era muito esperta para outras. Eu só custava a admitir que, no fundo, gostava bastante dela. Não foi brincadeira o número de vezes que brigamos por causa de farelos de biscoito no sofá, música alta, falta de papel higiênico e multas atrasadas na videolocadora. Sem contar a nossa competição idiota no Mario Kart.
Meu Deus. Eu ia sentir falta de dividir o quarto com aquela maluca.
Meu Deus. Eu já estava em clima de despedida por quê?!
― Você devia ir tomar um banho, ― ela me alertou. ― Você tá com um cheiro esquisito.
― Não sou eu ― coloquei as mãos na cintura e a encarei com uma raiva sem tamanho. ― É o iogurte vencido que você deixou no frigobar.
― Eu já joguei ele fora semana passada.
― Jogou nada.
― Joguei sim.
Fui até a lixeira e dei um pisão no pedal para abrir a tampa.
― Jogou fora mas esqueceu de tirar o lixo! ― retruquei.
― Era a sua vez de tirar!
Bufei alto e puxei a sacola dali, amarrando as alças e marchando para fora do dormitório. Eu não ia sentir falta de Sadie coisa nenhuma.
Ok, talvez só um pouco.
Quando voltei, me enfiei para dentro do meu banheiro e levei o aparelho de som junto. Liguei-o na tomada e coloquei meu CDzinho novo do *NSYNC para tocar. Desculpa, Backstreet Boys. Mamãe ama as duas bandas igualmente.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Bye Bye Bye – *NSYNC

Meu Deus, finalmente eu poderia ouvir aquela música quando eu quisesse, sem precisar esperar que fosse tocada nas rádios – como se ela já não tocasse o suficiente o dia todo. Mas eu não era uma pessoa normal que enjoava de boybands.
Devo ter ficado alguns minutos a mais no chuveiro, sem sombra de dúvidas. Talvez também tenha me enrolado na toalha e demorado um pouco em frente ao espelho embaçado, fazendo uma performance básica da coreografia que eu me lembrava do clipe. Mas tudo valeu a pena.
Levei um susto quando ouvi o telefone tocando, então abaixei o som e corri para o quarto. Claro, hesitei antes de puxá-lo do gancho, para não parecer uma desesperada. Poderia ser quem eu queria que fosse.
― Alô?
Alô?
Essa mania infernal de me responder com outro “alô”.
, vou desligar na sua cara.
Pude ouvir a risada dele do outro lado da linha.
Tá ouvindo Backstreet Boys? Que novidade.
― Não, é o *NSYNC ― expliquei, como se aquilo fosse fazer a mínima diferença para ele. ― E esse Nirvana aí no fundo? Que novidade — devolvi o tom irônico.
É o Soundgarden ― ele me corrigiu, como se aquela também fosse uma informação muito importante para mim. Dei uma risadinha. ― Como tá a sua semana? Correndo muito?
― Sim, contra o tempo. E a sua? Pior que a minha?
Eu entrei num buraco negro de trabalhos e obrigações.
― Deu pra perceber pela profundidade das suas olheiras hoje mais cedo.
Falou a noiva do Chucky desmontada lá na grama do pátio.
― Meu Deus, eu vou te matar ― falei, enfurecida. Ele só riu mais. ― O que é que você tá arrumando, afinal de contas? É alguma coisa com o PJ, é? Vocês estão fazendo algum trabalho importante juntos?
É, a gente começou semestre passado fazendo um projeto prático interdisciplinar. Era pra um professor que queria muito investir em um novo software pra uma empresa nova no mercado que fabrica telefones e celulares. Ele deu a orientação, PJ começou com um protótipo… depois me chamou pra participar, num dia que eu tava puto com essa faculdade.
― Ele também já sabia que você tinha um pé em Computação?
Já, já sabia. Por isso topei. Eu tinha facilidade com programação e como funcionam os fluxos de dados. Achei que seria algo divertido e leve no início, mas agora a coisa ficou bem mais séria. Esse professor, o Sr. Baxter, não sai do nosso pé nem fodendo. Ele tá vendo um futuro promissor nesse projeto e faz novos planos toda semana.
― Esse professor quer vender a ideia de vocês pra essa empresa?
Mais ou menos isso. Ele quer apresentar tudo pessoalmente pros mandachuvas do negócio. São conhecidos do cara. Eles começaram a fabricar uns celulares de custo bem mais baixo agora, e o Baxter tá empolgado pra oferecer um modelo diferente de interface pra eles concorrerem com outras empresas internacionais. Inclusive o software, mas o PJ já tirou isso da cabeça dele. Ainda bem. Só vamos fazer uns aprimoramentos.
― Uau! Então a coisa é séria mesmo. E super importante. Você acha que vai dar certo?
Ah, … Sei lá... Vou te falar, tô tão cansado que, no momento, só tô obedecendo ordens. Minha criatividade tá indo pro espaço.
― Eu sei o que é isso ― vendo que o papo ia durar, apertei a toalha no corpo e me sentei na cama. Aproveitei também para me encostar na cabeceira e esticar as pernas. ― Dá uma descansada, . Esse projeto pode ser importante pra você. Se der certo, vai te dar muita visibilidade. Quer dizer, se você realmente seguir carreira nisso.
Também tem essa questão.
― Eu acho que tem tudo a ver com você. Design de Produto pode ser o melhor dos seus dois mundos, sabia?
Ele deu um suspiro e uma pequena pausa, parecendo pensativo.
― Vem cá, você tá desenhando um protótipo de interface pra um celular com flip? ― perguntei. ― Eu sou doida pra ter um celular com flip. Posso ser seu teste de usuário?
Pode ― ele riu. ― Mas celulares assim são muito mais caros. Não é o nosso foco ainda.
― Ah… ― lamentei. ― Mas tira uma folga disso, pelo menos por um dia. Você vai voltar com a cabeça melhor.
Foi o que eu fiz durante todo o Spring Break. Não adiantou porra nenhuma. Mal se passaram duas semanas e eu tô aqui, acabado de novo.
― Você não tá se sentindo muito pressionado? Como o PJ tá?
Ele já se desesperou também, mas não agora. Agora ele tá mais tranquilo, mas não para de me cobrar. A verdade é que o PJ adora puxar o saco do Baxter, e eu bato mais de frente com ele.
― É… Lidar com os outros sempre é uma merda. Mas essa é uma merda momentânea. Essa experiência pode ser muito boa pra você no futuro, . Mesmo se não der certo. Essa área de tecnologia tá crescendo demais.
Sim... eu sei. Tenho que me lembrar disso.
― Meu Deus, ainda bem que eu já cumpri essa parte da minha vida com meus estágios.
É mesmo, onde você trabalhou?
― No início, em um estúdio de protótipos como você, mas com mais estudantes. A gente atendia empresas pequenas e algumas demandas pontuais. Era legal, mas não era remunerado. E mesmo tendo uma bolsa que cobre uma parte dos custos, eu precisava da grana pra pagar minha dívida estudantil. Depois, fui parar em mais dois estúdios de criação e uma agência. Deu pra acrescentar uns dígitos na minha poupança, pelo menos.
Caralho, é muito tempo trabalhando direto. Eu lembro que você sempre cochilava antes das aulas do Bobby Blockbuster começarem. Já imaginava que sua vida era corrida na época.
― Sim. Aqueles cochilinhos eram tudo na minha vida ― sorri ao me lembrar. Não que fosse uma lembrança agradável; estava feliz porque aquela fase tinha passado. ― Eu chegava tarde no Belva Hall e ainda tinha coisa pra fazer. E a aula de Tipografia começava cedo pra burro. Não tinha como.
E ainda conseguia se dar muito bem nessa matéria. Filha da puta.
― Pois é. Fazer o quê ― tirei onda, rindo. ― Só agora dei uma pausa pra focar nessas matérias que acumulei no último semestre. Imagina repetir as aulas da Tolbert, reclamando sobre minha técnica infantil de ilustração e sei lá mais o quê, e depois ouvir um chefe berrando na minha cabeça sobre clientes reais? Só os fortes aguentam. Me recusei. Eu sou fraca pra porra.
começou a rir.
Tenho certeza que você vai conseguir um trampo bom aqui em Nova York depois da formatura.
― Será?
Claro que vai.
― Sabe, às vezes acho que não sei. Muita gente rala pra caramba também. Muita gente tem bons contatos, e eu só conheço gente aleatória dessa universidade, que só vou ver de novo daqui uns dez anos num daqueles reencontros de ex-alunos. Se você for parar pra pensar, tem pessoas que nem estão aqui se formando com a gente e queriam muito estar. É uma competição injusta demais. E eu só sou... mais uma aqui no meio.
E daí? Todo mundo é só mais um. Ninguém é especial. Só confia mais no seu próprio taco, , porque seu problema é esse. O resto, você nem precisa se preocupar.
― … Você é muito relaxado.
Ele riu.
Pra quê vou esquentar minha cabeça com possibilidades que estão fora do meu controle? Não tem como a gente saber o que vai acontecer amanhã. Imagina se eu me preocupasse com o futuro desse projeto que eu tô, que põe em cheque uma porrada de certezas sobre a minha profissão que eu achei que já estivessem formadas, imutáveis? Depois de anos tentando acertar, mudando de curso, mudando de cidade... e se eu errar? Não. Um dia de cada vez. Se eu pensasse igual a você, já teria pirado a cabeça.
Fiquei em silêncio. Aquelas palavras confrontavam diretamente o meu sofrimento por antecipação por tudo. Eu sabia que aquilo me prejudicava e que, no fim das contas, não adiantava de nada. Tudo sempre acabava saindo do rumo das minhas expectativas. E eu não dava ouvidos quando meu pai ou minha mãe me falavam que eu ia dar certo na vida. Pais e mães nunca têm credibilidade quando acreditam na gente ou nos fazem elogios, coitados. Damos mais crédito para quando pessoas de fora nos dão um toque.
Acontece que, naquele momento, percebi que nunca foi uma questão dos meus pais puxarem o meu saco ou cumprirem sua obrigação social de apostarem na minha educação. Eles acreditavam mesmo em mim. Assim como . E eu não ia me jogar do penhasco para onde a insegurança estava me empurrando. Nem esperar ninguém para me impedir. Aquilo dependia só de mim.
― Sabe… ― falei, depois de divagar por pensamentos. ― Talvez eu precise um pouco mais de otimismo.
Talvez você precise um pouco mais de maconha.
Dei um berro e uma gargalhada.
― Você é ridículo, . Por que nunca puxou um papo comigo nas aulas de Tipografia?
Por que essa responsabilidade passou a ser minha, de repente?
― Porque eu estava muito ocupada tirando oitenta e sete na nota final.
Agora ele quem deu uma gargalhada, derrotado.
Não tô me incomodando de tirar o atraso agora.
― Eu perdoo seu atraso. Quem sabe tudo teria sido diferente…
Quem sabe…
Fechei os olhos por um instante e, com o telefone grudado no ouvido, desejei me teleportar para o lado dele. Bendito seja o dia que eu passei meu número para . Fiquei imaginando como ele deveria estar em casa agora. Se estava no sofá da sala ou na cama de seu quarto, se ainda vestia aquele boné virado para trás, se usava uma camisa ou não…
No que você tá pensando?
Fui desperta do meu transe da pior maneira possível.
― Eu? Nada.
Em mim? ― ele insinuou, naquele tom convencido que sempre me desmascarava.
― Em como você é insuportável, nada novo — disparei, mas só ouvi risadas do outro lado da linha. ― E você? Tá fazendo o quê, além de ouvir a doce e meiga voz de Chris Cornell? ― ironizei.
Ouvindo a sua voz estridente e desafinada nesse telefone.
― Entendeu como você é, de fato, insuportável?
Começamos a rir. A vontade agora era de me teletransportar para jogá-lo da janela.
Hmm. Pelo menos eu sou o insuportável que não sai da sua cabeça.
― Sabe, eu não sei de onde você tira tanta certeza assim ― afirmei, mesmo com o sangue quente nas bochechas, porque ele não havia dito nenhuma mentira. Mas eu estava pronta para desafiá-lo. ― Tô começando a achar que é o contrário...
Ele demorou a responder. Nunca me senti tão orgulhosa em toda a minha vida.
É uma boa teoria ― ele nunca admitiria. Nunca. ― Inclusive, estou pensando em você agora. Se vai aparecer no luau do Millard’s.
― Hmm… ― dei um sorrisinho, tentando conter minha surpresa. ― Será que eu devo?
Baladeira do jeito que você é? Acho que já sabemos a resposta.
― Então por que perguntou?
Só queria fazer você me dizer em voz alta mesmo.
Bufei, precisando de muita concentração para segurar a risada.
― Eu vou. Nesses quatro anos, nunca deixei de ir em nenhum luau. Não pretendo quebrar a tradição no meu último semestre ― discursei, entregando o que ele queria. Então, fingi total indiferença quando falei: ― Se você der sorte, vai me ver lá.
Ah, eu não vou precisar contar com a sorte. Porque tenho certeza que você vai me ver primeiro.
― Não vou nada.
Vai. Vai me ver e falar, “porra, , você tava certo. É impossível te tirar da cabeça...”
― Só por causa disso, agora eu faço questão de te ver primeiro e alterar esse seu roteiro.
Ele riu, se deleitando com o fato de eu sempre insistir em contrariá-lo nessa guerra perdida.
A ligação ainda durou mais tempo do que eu poderia esperar. Pelo menos, não era novidade para niguém que eu adorava conversar com . Só desligamos quando o sono bateu, o que também não demorou muito. Fui dormir com a voz dele ecoando pela minha cabeça.

Se eu acordasse de algum sonho erótico no dia seguinte, não me chocaria nem um pouco.


🙂🙃🙂


Havia uma fila de retratos emoldurados naquela parede comprida. Uma típica exibição dos reitores que um dia regeram essa universidade, num intervalo de pelo menos um século. As fotos eram em preto e branco até a década de sessenta, mais ou menos. A partir da década de setenta, ficavam coloridas. Na falta do que fazer, fiquei lendo o nome de todos aqueles homens, um por um, nas letras miúdas gravadas em plaquinhas metálicas. Coloquei minhas mãos para trás e dei um passinho para o lado toda vez que passava para o próximo quadro, seguindo a ordem cronológica.
Demorei bastante no último. Nosso reitor era um mistério. Ele tinha uma cara de apresentador de telejornal sensacionalista, vivia com o buço suado e tinha uma careca meio franciscana. Fiquei pensando se este era o homem que ia ouvir meu relato e engavetar a minha denúncia anônima. Ele não me transmitia nem um pingo de confiança. Ele, que já tinha uma simpatia gratuita por Nate DeWolff, o ex-jogador do time de maior prestígio da Oyster. Ele, que já chamou Monica Lewinsky de “vagabunda gorda e cafona” quando deu seus dois centavos sobre o escândalo sexual do Bill Clinton para o programa de rádio universitário. Ele, que estava me fazendo mofar naquela sala de espera por mais de uma hora.
Este homem certamente não ficaria feliz em receber um golpe em sua reputação com o barulho que eu estava prestes a fazer.
Olhei para trás e, depois de pensar muito, caminhei até a secretária.
― Acha que eu tenho alguma chance de ser atendida em cinco minutos?
Ela subiu o olhar para mim, odiando desviar sua atenção do joguinho de Paciência no computador.
― Não sei, querida… ― a mulher me respondeu, voltando a dar vários cliques no mouse com aquela unha vermelha e pontuda. ― Pode ser que ele te atenda em cinco, dez, trinta minutos…
Agora eu tinha que lidar com estimativas de tempo tiradas da bunda dela.
― Tenho aula daqui a pouco, preciso ir ― falei, sem nem me preocupar se estava sendo ríspida demais. ― Pode riscar o meu nome daí, cansei de esperar.
― Ok, querida…
Saí da sala com pressa e de saco cheio daquela indiferença. Passei pela fila de quadros na parede de novo, com vontade de derrubar um por um. De repente, fiquei com raiva de absolutamente tudo. Vários questionamentos agora perturbavam minha mente.
Para começar, me senti uma completa idiota de ter perdido meu tempo por causa de um merda feito o Nate. Mais uma vez.
Em segundo lugar, me senti frustrada. Talvez uma denúncia realmente não fosse a melhor opção. Quem eu achava que era? O que me fez pensar que eu ia mudar o mundo tão fácil assim? Que bastava eu me indispor com um monte de autoridades que, no fim das contas, pouco se importariam em me ouvir; quem dirá tomar providências?
Era inútil. Tão inútil que quase cheguei à conclusão que o melhor era permanecer na inércia, comportada e calada, como o mundo bem queria que eu fizesse. Mas alguma coisa ainda me deixava inconformada.
Sempre me deixava.
Talvez eu não devesse esperar que a mudança viesse de cima. Talvez, ela começaria de baixo: onde todas as outras inconformadas como eu estavam. Éramos impotentes sozinhas. Juntas, era outra história.


🙂🙃🙂


Estávamos na arquibancada de madeira do campo de beisebol, eu e Jenna. Ela terminava de dar tratamento com um lápis roxo e um azul em alguns de seus croquis. Jen parecia concentrada, mas estava dividindo sua atenção a todo momento entre o papel e Lori, que treinava arremessos com o time feminino de softbol alguns metros à nossa frente.
― Como estão as coisas entre vocês? ― eu quis saber.
― Casuais.
― E isso é… bom ou ruim?
― Hmm… bom. Melhor do que eu esperava.
Eu sentia que a relação das duas já tinha começado meio abalada e cercada de dramas. Pelo menos, agora eu estava sendo incluída neles. Até Lori, que há até pouco tempo atrás não fazia a mínima ideia que PJ e Jenna eram amigos.
― Ah, … ― ela suspirou. ― Não queria soar como uma apaixonada precipitada, mas será que Lori é minha alma gêmea?
Quase cuspi meu café.
― Por que você acha isso?
― Sei lá, tá sendo diferente. Acho que nunca me senti assim antes.
― Assim como?
― Eu sinto um carinho tão grande por ela, uma conexão tão... profunda... Será que eu a conheci em vidas passadas?
― Não sei, Jenna. Não sei nem o que aconteceu antes do Big Bang.
― Eu sempre penso sobre isso. Acho que fui uma sacerdotisa japonesa em uma das minhas vidas passadas ― ela me ignorou totalmente e começou a sonhar. ― Ou uma cientista do Alasca. Ou uma navegadora da Polinésia...
― Acho que eu fui um Tiranossauro Rex.
Jen me deu uma cotovelada no braço, me fazendo rir.
― Mas falando sério ― ela continuou. ― Tem uma coisa me preocupando muito. Lori se convenceu que todos vão super rejeitá-la pelo que ela é. E anda bem frenética com isso, ultimamente. Por isso a gente não pode ser vista em todos os lugares por aí, sabe. Principalmente os que a fraternidade frequenta, por causa de seu irmão. Eu só queria que ela entendesse que esse medo que ela criou tá impedindo de vivermos várias coisas legais...
Fiquei um pouco reflexiva, me sentindo meio mal. Lori não tinha culpa alguma de se sentir assim. Afinal, as pessoas sempre estavam prontas para rejeitar ou criar descaso com quem não coubesse nos moldes das imposições sociais. Nossa sexualidade, então, era o assunto preferido dos fiscais da vida alheia. O julgamento era real, pesado e, infelizmente, todos achavam que tinham um passe livre para praticá-lo.
― Eu sei, ela precisa levar as coisas no próprio ritmo ― Jenna continuou, suspirando e guardando os lápis. ― Eu mesma já tive que fazer isso no passado. A maior parte dos nossos medos só estão na nossa mente, mas não adianta eu falar. Quando ela enfrentar tudo isso e ver que não é esse bicho de sete cabeças, ela vai ver.
― É, você precisa ter um pouco mais de paciência. Eu mesma nunca escuto o conselho dos outros. Às vezes a gente acaba aprendendo as coisas pelos nossos próprios passos, Jen.
― Isso mesmo ― ela concordou, apoiando o rosto sobre uma das mãos. ― Tô tentando convencê-la de ir ao luau. PJ não vai, mesmo... Menos uma dor de cabeça. Você vai?
― Vou. Espero ver vocês duas lá.
― Vocês duas quem? ― ouvimos uma voz se aproximar. Era o assunto da conversa subindo os degraus da arquibancada e parando na nossa frente, um nível abaixo.
― Nós duas, Lori Lynn ― Jen respondeu. ― Nós vamos ao luau de cinquenta anos do Millard’s.
― Vamos? ― ela retirou a luva de couro da mão direita, ainda recuperando o fôlego.
― Sim, vamos.
Era estranho vê-la em um contexto completamente diferente agora. Mas eu estava feliz que as duas tenham se encontrado no meio daquilo tudo. Elas tinham tudo a ver.
― Os meninos da república do PJ vão, Jenna? ― Lori perguntou, receosa. ― e o… Como ele chama?
― Alex.
― Ele mesmo.
― Devem ir. Não conversei com nenhum deles essa semana. Estão todos ocupados.
De repente, senti o peito esquentar só de ouvir o nome de naquele papo. Às vezes eu me esquecia totalmente que ninguém daquele círculo sabia ainda o que estava rolando entre a gente, ou nem ao menos desconfiava. Meu Deus, eu tinha que me comportar como um agente duplo.
― Hmm… Então… ― Lori olhou para mim, muito sugestiva. Na mesma hora, eu soube exatamente o que estava por vir. Desde o início, aquela garota tinha batido o olho em mim e em e sacado tudo. ― Você também vai ter uma boa companhia lá, não é, ?
― Como assim? O Derek vai, ? ― Jen perguntou, na maior inocência.
Quase soltei uma risada de nervoso, mas me contive. Só desconversei o mais rápido possível. Já estava ficando craque naquilo.

Eu só tinha que me lembrar que, se eu mentisse mais três vezes sobre o Derek, ele apareceria.



Sadie abriu a porta do meu quarto, fazendo a luz da sala entrar e quase queimar meus olhos.
, tem certeza que não quer ir com a gente?
― Tenho ― murmurei, colocando um travesseiro na minha cara. ― Vou mais tarde.
― Tá bom.
Ela saiu e deixou a porta aberta. Quis chorar.
Aquele era um sábado à noite de merda. Minha cabeça estava latejando sem parar há algumas horas, o que atrapalhou todos os meus planos. Fazia uns dez minutos que eu tinha engolido um comprimido e tomado um chá de camomila, então me escondi no escuro do meu quarto para esperar a dor passar.
Pude ouvir Alex entrar no dormitório, mas ele não tinha me visto. Queria muito chocá-lo com o fato de euzinha ser a colega de quarto da sua nova namorada, e claro, chocar Sadie com o fato de eu saber quem Alex era. Mal podia esperar para protagonizar aquele espetáculo de reviravoltas, mas parece que hoje não era o dia para isso.
Obrigada, enxaqueca.
Depois que o casal foi embora, esperei mais um bom tempo até me sentir um pouco melhor. Numa hora dessas, todos já deviam estar no luau, se embebedando e se divertindo. E eu aqui, enfurnada no quarto, querendo afundar meu corpo na cama até atravessar outra dimensão. Quase desisti de sair, mas minha alma baladeira nunca ia me permitir cometer uma atrocidade dessas. Já fui ao Club USA umas duas vezes com diarreia, por que uma dor de cabeça ia me impedir de marcar presença no último luau da minha vida universitária?
Nem fodendo.
Escorreguei para fora do colchão e comecei a me arrumar. Queria me sentir confortável e gostosa ao mesmo tempo, será que era possível? Essa conta fechava?
A gaveta do meu armário com roupas de sair estava ficando cada vez mais vazia. Eu estava precisando fazer umas compras. Por fim, vesti um top lotado de brilho e uma saia longa e preta com duas fendas enormes nas laterais. Não queria, mas acabei colocando um sutiã só para realçar e empinar o meu decote, foda-se. Fiz uma maquiagem um pouquinho mais elaborada nos olhos, borrifei um perfume e calcei os meus sapatos.
Que preguiça eu tinha de me arrumar, mas hoje eu estava de parabéns. Fiquei posando para o espelho me achando a última bolacha do pacote. Ótimo. Objetivo cumprido. Não sabia se ia sustentar todo aquele glamour por muito tempo, mas o negócio era causar um impacto. Ninguém precisava saber que eu era uma esculhambada na vida real.
Quando desci para a calçada, custei a achar um táxi – todos já deviam estar acumulados em Bricktown. Acabei entrando em um sozinha, que passou depois de vários minutos terríveis de espera. Para completar, o motorista não passava dos cinquenta quilômetros por hora. Meu atraso estava se tornando um evento por si só.
Paguei aquela tartaruga no volante assim que o carro estacionou em frente ao Millard’s. Caminhei pela orla e dei a volta no bar, chegando até a areia. O luau acontecia num deque lá atrás, na praia, onde havia também um palco com uma banda tocando rock. Várias lâmpadas decorativas estavam dependuradas nas palmeiras, e tochas de bambu iluminavam a trilha até o show ao vivo. A estrutura estava impecável, fiquei surpresa.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Mary Jane’s Last Dance – Tom Petty and the Heartbreakers

O mar estava calmo e quase não ventava. Alguns barcos ancorados próximos do píer estavam com as luzes de suas cabines acesas, deixando a festa ainda mais bonita. De longe, pude observar muita gente aglomerada no deque curtindo a música. Ao redor dele, as pessoas estavam mais dispersas pela praia. Enquanto eu avançava, avistei um pequeno quiosque redondo mais isolado de todo mundo, bem ao lado de uma duna de areia cheia de plantas rasteiras. Um grupo de caras bebaços fazia o maior escândalo ali.
Eu tinha que passar por lá de todo jeito para chegar ao outro lado, onde a festa estava mais cheia. Descendo a duna, reparei melhor nos quatro rapazes sentados nos bancos de frente para a bancada de madeira. Eles berravam, riam e se embolavam em uma contagem regressiva para virar um shot de tequila cada um. Eu até passaria reto, mas todos usavam perucas coloridas e extravagantes. Aquela cena estava peculiar de se ver.
De repente, o cara com a peruca prateada, prestes a virar seu copinho, parou bem na hora que me viu. Ele ficou meio paralisado igual uma estátua, e, quando um de seus amigos percebeu, teve que estalar os dedos na frente de seu nariz.
Levantei uma sobrancelha e semicerrei os olhos, forçando a vista.
Não era possível.
?! ― comecei a rir sem parar, terminando de chamar a atenção de todo o resto daqueles homens.
finalmente se despertou de seu transe. Estava usando uma calça jeans preta e uma camisa floral com todos os botões abertos. Ele estava uma figura com aquela peruca, e eu não conseguia parar de rir.
― Gostou? ― ele sacudiu a cabeça, fazendo todos os fios longos e metalizados se mexerem. Então, finalmente virou o seu shot atrasado.
Olhei para o amigo dele, tão engraçado quanto, que usava um moicano artificial amarelo.
― O que é isso? Estão dando perucas aqui? ― perguntei.
― Connor ― o chamou ―, empresta uma pra essa deusa do Olimpo aqui, por favor.
Ri mais ainda. Ele estava mais bêbado que tudo.
Connor se debruçou na bancada e ficou vasculhando uma caixa de papelão.
― Tem essa sobrando ― ele tirou de lá uma peruca chanel rosa-choque e me entregou. ― Tem uma outra vermelha aqui, mas tá fedendo cerveja.
― Não, essa é perfeita ― falei, prendendo meu cabelo num coque. Coloquei a peruca e ajeitei os fios sintéticos em torno do meu rosto. Todos ficaram em silêncio, me observando. ― E aí? Como estou? ― apoiei o queixo sobre as palmas das mãos e abri um sorrisão, piscando os olhos várias vezes.
… ― falou arrastado, erguendo seu copinho no ar. ― Você tá linda pra caralho.
― Garota, qualquer dia desses você ainda mata o ― um outro cara comentou.
Aquilo foi um prato cheio para o meu ego, não vou negar. Dei um sorriso de lado e mandei um beijinho no ar para eles, só para fazer graça.
― Foi legal encontrar vocês ― falei com pressa, voltando a seguir meu caminho para o deque. ― Agora já vou. Tô indo dançar, porque já perdi tempo demais.
― Opa, espera aí ― protestou. Em seguida, pegou outro copo vazio igual ao dele e se virou para o amigo com o moicano amarelo. ― Enche mais um desse pra mim?
Connor pegou a garrafa de tequila e encheu o copo sem a menor coordenação motora. Encheu tanto que fez a bebida transbordar, e eles começaram a rir daquilo que nem uns bestas. voltou a olhar para mim e me chamou silenciosamente com o dedo indicador. Quando me aproximei, ele me entregou o copinho, ainda tentando equilibrar o líquido para não passar da borda. Então, foi encher o seu também.
― Prontos? No três ― Connor falou, e os outros dois caras começaram a bater com as mãos na bancada para dar ritmo à contagem. Eu e nos olhávamos apreensivamente. ― Um… dois… TRÊS!
Virei meu copo inteiro sem drama. Tão rápido que a ardência nem me abalou, o que era raro. terminou de virar o dele meio segundo depois, o que deu brecha para todos os seus amigos fazerem um escarcéu. Era berro pra todo lado. Comecei a rir de novo, principalmente da cara de puto que ele fazia com aquela peruca ridícula na cabeça.
Dei mais um passo e me inclinei na sua frente de forma proposital, só para devolver o copinho na bancada bem atrás dele. já nem se preocupava em esconder – ele me olhava totalmente hipnotizado. Aproveitei que os outros estavam distraídos, se preparando para mais uma rodada de shots, e resolvi provocá-lo:
― E agora? Quem viu quem primeiro?
Ele deu uma risada alta.
― Você sabe, … Você sabe…
― Tecnicamente, fui eu. Mas você me reconheceu primeiro.
― Sabe do que eu gosto? De focar nos termos técnicos.
― Você só quer me ouvir dizer o que estava no seu roteiro, não é?
― Por favor.
― Como é mesmo? Blá-blá-blá você estava certo, blá-blá-blá eu não consigo te tirar da cabeça?
― Isso mesmo ― ele abriu um sorriso safado e vitorioso, girando o pescoço e apontando para o próprio ouvido. ― E eu quero que você me fale aqui.
Entortei a boca, me sentindo completamente na palma da mão dele. Que ódio. Eu ia mesmo matá-lo qualquer dia desses.
Acontece que estava mais do que óbvio quem é que estava babando por mim ali.
― Eu que estava certa, ― comecei, falando em seu ouvido. ― A verdade é que tá impossível me tirar da sua cabeça, não é?
Ele voltou a olhar para mim com a expressão transformada. Menos o sorriso, que continuou safado.
― Você tá fodida comigo ― disse, num tom baixo e rouco.
Dei uma risadinha satisfeita e me afastei um pouco, mas ele segurou meu pulso.
― Calma ― falei, achando graça. ― Não falei que se você der sorte vai me ver por aí?
finalmente me soltou, meio contrariado, deslizando sua mão pela minha.
― Vai lá dançar logo ― ele murmurou. ― Só lembra que a sorte tá a meu favor hoje.
Claro. Ele tinha que dar uma piscadinha provocante. A cartada final para me desestabilizar. Era quase como se soubesse que, mesmo com aquele cabelo prateado, ele ficava lindo para um caralho.


🙂🙃🙂


Eu estava amando o meu novo visual com aquela peruca rosa. Ela me deixava mais desinibida do que nunca. O show da banda ao vivo havia encerrado e um DJ começou a tocar umas músicas que sempre ouvíamos em toda festa, tipo qualquer porcaria divertida dos Vengaboys. Enquanto eu dançava até cansar no deque, alguns caras me deram o maior mole. Meu ego agradeceu mais uma vez, mas não dei muita corda pra ninguém, só quis saber de dançar. Queria muito que o Mike também estivesse no luau naquela hora. Ele até devia estar por ali em algum lugar, mas estava difícil demais encontrar um rosto conhecido no meio de tanta gente.
Minha salvação foi ter visto Jenna e Lori assim que saí do deque e voltei a pisar na areia, toda suada e desfalecendo de tanta sede. Acabamos indo nos sentar numa mesinha alta onde Alex também estava. Quieto e introspectivo, ele bebia uma cerveja direto da lata.
― Ei, cadê a… — quase pronunciei o nome de Sadie e acabei com a surpresa. Jen olhou para mim, confusa. Alex nem se mexeu. ― Cadê a sua namoradinha? ― perguntei, enfim tirando minha peruca e soltando o meu cabelo.
― Nos perdemos ― ele deu um suspiro mais pesado que o normal, intensificando o drama. ― Ela disse que ia ao banheiro e nunca mais nos vimos.
― Tem quanto tempo isso?
― Uns vinte minutos.
― Você acha que ela te deu um perdido? ― Jenna ponderou. ― Mas a S–
Dei um cutucão na perna dela por baixo da mesa. Como Alex ainda estava vidrado, sussurrei rapidamente para Jen:
― Ele ainda não sabe que a gente conhece a Sadie. Nem ela sabe ainda que conhecemos o Alex.
― JURA?!
― O que vocês estão cochichando? ― ele olhou para nós, erguendo as sobrancelhas.
― Nada ― Jen respondeu. ― Eu só ia dizer que acho que a sua namorada não é de fazer essas coisas.
― É verdade ― reforcei, conhecendo a cabeça de vento. ― Ela realmente deve estar perdida. E como deve…
― Ela não é minha namorada. Ainda.
― Ah, que fofo ― Lori comentou. ― Você pretende pedi-la em namoro quando?
― Ia pedir hoje.
― Não, não faça isso ― me apressei em falar. ― Quero dizer, não numa festa. Por que você não tenta algo mais romântico, tipo… uma serenata?
― Uma serenata?
― É, tipo tocar uma música do Bon Jovi na janela do quarto dela.
― Pode ser uma boa ideia, se ela gostar dessas coisas… ― Lori falou outra vez. Em seguida, começou a rir. ― Se não, é um tiro no pé.
― Não, não vai ser. Eu sei, é brega, mas confia em mim, Alex ― olhei no fundo dos olhos dele, quase em súplica.
― Sim, pode confiar na ― Jenna segurou sua mão. ― Depois a gente te ajuda a procurar sua futura namorada por aí. Fica tranquilo, ela não se perdeu de propósito.
Depois do momento reconfortante, resolvi me levantar para buscar uma água e, lógico, um copo bem cheio de álcool. Minha cabeça tinha parado de doer, mas tudo indicava que, quando eu acordasse amanhã, ela ia latejar de novo. A do futuro que lide com seus problemas.
Assim que voltei e me sentei novamente, vi os três olhando para um mesmo ponto à nossa esquerda.
― O que vocês estão vendo? ― perguntei, procurando alguma coisa de especial naquela mesma direção.
― Um reencontro que não deveria estar acontecendo ― Jen respondeu, irritada.
Foi então que eu identifiquei o que era. Vi e Renée conversando, não muito distante dali. Senti uma breve onda gelada passar pelo meu corpo, mas me forcei a ignorá-la. Ele estava sem camisa e com um colar havaiano cheio de flores de plástico no pescoço. A camisa estava dependurada no bolso de sua calça, e, na cabeça, agora usava uma peruca preta estilo o cabelo do Alice Cooper.
― Ele endoidou de vez ― Alex comentou, revirando os olhos.
Lori caiu na risada, mas tampou a boca com a mão logo em seguida, quando percebeu que continuávamos sérios.
De repente, Renée se virou de costas e abaixou o cós da calça, mostrando alguma coisa para ele. arregalou os olhos e riu, super animado. Depois, ela se virou de frente para ele de novo e disse alguma coisa que o fez dobrar os joelhos para ficar na altura dela. Renée se aproximou bastante e segurou o rosto dele com as duas mãos.
Ok, agora uma nevasca acontecia dentro de mim.
Ela, então, começou a passar um lápis preto abaixo da linha d'água dos olhos dele. Quase suspirei de alívio, mas as ondas geladas ainda não paravam de se espalhar pelo meu corpo.
Depois da maquiagem feita, várias outras garotas se juntaram aos dois para tirarem uma foto. ficou no meio de oito mulheres, contando com Renée. Quatro de um lado e quatro de outro. Todas elas se viraram de costas e abaixaram o cós da calça, empinando a bunda para a foto. Ele era o único virado para frente, sorrindo com a boca aberta e a língua para fora, fazendo chifres com os dedos igual um rockstar. Só vimos o flash da câmera piscar algumas vezes, e eles enfim se despediram com sorrisos e mais sorrisos, se separando logo depois.
Não queria nem imaginar a cara que eu estava fazendo agora.
― O bonito acabou de me ver. Tá vindo pra cá ― Jen avisou e, em seguida, acenou para ele.
se aproximou, encarnando 100% o seu personagem metaleiro, fingindo tocar uma guitarra com os braços e fazendo a maior cena.
― Me empresta essa peruca? ― Alex pediu, empolgado.
― Toma aí ― ele tirou-a da cabeça e passou as mãos pelo próprio cabelo, jogando-o para trás.
― Que porra você tava fazendo ali? ― Jenna tirou as palavras da minha boca. ― Por que elas estavam mostrando o cofrinho pra você?
começou a rir.
― Rennie faz ilustração de tatuagens ― ele explicou. ― Tava me mostrando a tatuagem que fez no cóccix. Ela e as amigas tatuaram igual.
Do nada, todos da mesa ficaram em silêncio, sem mais nada a dizer. A única coisa que pôde ser ouvida foi o barulho insuportável do canudinho que eu estava usando para sugar o resto da minha bebida, o que atraiu os olhares de todo mundo.
― Elas tatuaram o quê? ― perguntei, fingindo que absolutamente nada estava acontecendo.
Pela primeira vez, ele olhou só para mim.
― Umas constelações. Cada uma tatuou uma constelação estelar ― respondeu, dando de ombros. Então, puxou um banco e veio se sentar bem ao meu lado.
Eu estava com vontade de pegar aquele lápis preto da Renée e escrever “cara de pau” bem no meio da testa dele. Percebi que Lori Lynn estava de olho em nós dois, Jenna estava odiando profundamente aquele assunto, e Alex, muito entretido com sua nova peruca para se incomodar.
― Já volto. Vou buscar mais bebida ― me levantei.
― Também vou.
― Você não cansa de beber, ? ― Jen o repreendeu, mas de nada adiantou. Ele já estava vindo atrás de mim, todo animado.
Andei mais rápido. Pude ouvi-lo chamar meu nome várias vezes, rindo à toa e se embolando cada vez mais nas palavras. Me enfiei no meio de um bolo de pessoas e até desviei o caminho para tentar confundi-lo e desaparecer na multidão.
Deu certo.
Continuei andando depressa até parar do outro lado da praia, completamente oposto ao do bar onde pegaríamos mais bebidas. Cheguei longe o suficiente para conseguir respirar de novo. Ali, uma área mais vazia e calma, foi onde aproveitei para observar com mais atenção o mar escuro que refletia a noite. Só se enxergava o branco da espuma das ondas. Bem próximo de onde eu estava, vi algumas garotas de mãos dadas, brincando de pular aquelas primeiras ondinhas que quebravam na beira-mar. Tive a mesma ideia e fui até lá para molhar meus pés.
Depois de uns dois minutos, uma delas me chamou:
? O que você tá fazendo aqui?
Olhei para a minha direita e vi Erin.
― Sinceramente? Sei lá ― respondi, meio desligada.
Ela riu e se aproximou de mim, andando pela água.
― Aconteceu alguma coisa?
― Sim. Uma constatação.
― De quê?
Olhei para ela com uma cara de sofrimento e desespero, apertando minhas próprias têmporas com os dedos. Eu não queria falar aquilo em voz alta.
― Ai, merda...
― Constatação de quê, ?
― Acho que tô me apaixonando por um idiota sem camisa com um colar havaiano.
Erin disparou a rir, se apoiando em seus joelhos. Ela também não estava nada sóbria.
― Quem? ― perguntou. ― Não me diga que é aquele gato que tava conversando com você outro dia no Millard’s?
― Sim. É o gato que tava conversando comigo no Millard’s.
― Então vai lá e beija ele.
― Já beijei.
Woo-hoo! ― ela ergueu meu braço e fez uma comemoração. ― Agora vai lá e transa horrores com o gostoso sem camisa do colar havaiano.
Dei uma risada sem muito ânimo.
― Se apaixonar e transar são duas coisas que não combinam ― falei, meio que pensando alto.
― Caramba, claro que combinam. Inclusive, só melhoram as coisas.
― Mas… Mas e se–
― PARA de ter medo, ! Se joga, porra! ― ela deu um berro na minha cara, me fazendo dar um pulinho para trás. ― Esse é o nosso último ano da faculdade, garota… Foda-se tudo! Não é hora pra se preocupar com sentimentos. Vai gozar, vai viver!
Comecei a rir mais. Todo mundo que me conhecia já estava farto das minhas neuras.
― Tá ― falei, balançando a cabeça. ― Eu sei. Preciso me lembrar diariamente que a resposta pra tudo na vida é “foda-se”.
― Isso aí!
Erin me puxou e me levou até suas outras amigas, que continuavam pulando as ondas e quase caíam de tão tontas. Ficamos ali, nos divertindo e fofocando uma para a outra sobre bobagens sem sentido. Elas nem me conheciam, mas já se sentiram à vontade para compartilhar detalhes sórdidos de suas vidas. Foi um tanto engraçado.
Quando me cansei, talvez pouco mais de meia hora depois, voltei sozinha para perto do deque, me guiando pelas chamas das tochas de bambu. Eu segurava meus sapatos nas mãos, sentindo os grãos de areia grudando em meus pés e calcanhares molhados. Me sentia mais leve; porém, um medinho irracional ainda martelava na minha cabeça. Medo de não ser correspondida. Medo de me jogar. Medo do amanhã e do que vinha depois disso.
Mas, naquele exato instante, enquanto eu andava sem rumo por aquela areia escura e cheia de lixo de festa, fiz um trato sério comigo mesma. A partir de hoje, eu não ia me preocupar com mais nada. Ia viver o momento, custe o que custasse. Ia me atirar no acaso. Ia adquirir a sabedoria de dizer “foda-se” e não ia mais olhar para frente, nem para trás.
Era o único jeito.
Passei pelo deque e cheguei ao outro lado da praia de novo. Olhei ao redor e tentei encontrar alguém, mas sem sucesso. Resolvi continuar sozinha e deixar a sorte me encontrar.
Estava tão distraída que, no meio do meu trajeto aleatório, pisei numa canga listrada e nem percebi. Quase pedi desculpas, até ver quem estava sentada nela.
! Você sumiu ― Jenna sorriu, olhando para mim. ― Senta aqui com a gente!
Lori estava ao seu lado, e as duas estavam grudadas uma na outra, com as mãos entrelaçadas. Fiquei feliz por elas, de verdade. Me sentei ao lado de Jen, um pouco mais afastada, com os joelhos dobrados e o olhar um pouco perdido. Aproveitei também para calçar os meus sapatos.
― Alex encontrou Sadie lá na puta que pariu ― ela comentou.
― Sério?
― Viu ela de longe, pouco depois que você saiu, e foi correndo até lá. Ela estava perto daquelas barracas de comida lá do outro lado.
― Meu Deus, eu estava lá perto agora mesmo.
― Foi fazer o quê, chuchuzinho?
― Ah, tô bêbada. Me perdi ― dei de ombros.
― Ah. Achei que estivesse com .
― Não! ― até me assustei com a forma que neguei aquilo. ― Sei lá onde esse idiota se meteu.
Jenna começou a rir.
― Finalmente alguém que me entende ― ela disse, toda alegre, bebendo um golão de sua cerveja. Jen sempre se irritava com como se ele fosse seu irmão mais novo que precisasse andar na linha e de um pouco de proteção. Exatamente como eu agia com Jackel. ― Também não o vi mais. Deve estar por aí fazendo alguma merda. Acho que nunca vi ele tão louco igual hoje.
― Acho que já sei onde ele está ― Lori falou, apontando para trás.
Giramos o pescoço e olhamos ao mesmo tempo no sentido que ela indicava. Uns seis caras desciam a toda velocidade por toda a extensão de areia, gritando e correndo em direção ao mar. Enquanto corriam, tiravam a própria roupa e as largavam no meio do caminho.
― Meu Deus do céu ― Jen deu uma gargalhada escandalosa e cobriu a boca com as mãos. ― Não tô acreditando! Olha só pra isso ― ela cutucou meu ombro.
Só fiquei parada, boquiaberta, agora olhando para frente. tirou a calça, ficou só de cueca boxer e pulou no mar com os outros pirados. Eles deram um mergulho e ficaram lá, na maior algazarra, atraindo a atenção de todo mundo que ainda curtia o luau como bêbados mais civilizados.
Do nada, para completar, umas duas garotas também tiraram as roupas e entraram no mar só de calcinha.
― Quanta coragem ― Jenna comentou, abismada. Depois, se animou e bateu palminhas. ― Vamos também, Lori?
― Tá doida?!
As duas riram juntas, e não demorou para começarem a falar baixinho uma com a outra e, claro, se beijarem. De longe, continuei observando atentamente a cena dos malucos dentro daquela água gelada. Uma das meninas e um dos caras acabaram se agarrando loucamente no meio das ondas, só pararam quando tomaram um belo de um caldo.
já estava saindo do mar, caminhando no raso e bagunçando o próprio cabelo molhado.
— Jesus amado — murmurei sozinha.
Quem diria que eu ia cumprir meu trato tão rápido e fácil assim? Pois foda-se tudo. Eu só conseguia pensar em uma única coisa naquele momento.
Ele começou a procurar pelas próprias roupas no meio da areia, mas não estava achando. O tal do Connor estava com elas penduradas na cabeça, brincando e tentando irritá-lo. Para minha infelicidade, tampou a frente da boxer preta com as duas mãos e saiu correndo atrás do amigo, que ria debochado. Acabei rindo também.
Quando finalmente conseguiu suas roupas de volta, ele vestiu a calça dando uns pulinhos e continuou andando lentamente na direção de onde eu estava. Ainda não tinha me visto, mas ia acabar vendo. Ah, se ia. Eu o encarava de cima a baixo sem o menor pudor.
abotoou a calça e fechou o zíper. Ele ainda passava a camisa floral pelos braços quando me viu. Deixou os botões abertos e, então, veio confiante até mim.
Putz. Eu estava perdida.
― Levanta daí e vem dançar ― ele me chamou enquanto se aproximava. Só então prestei atenção na música que tinha começado a tocar.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Smooth (feat. Rob Thomas) – Santana

― Nem pensar. Meus pés estão doendo.
― Porra, ... Para de ficar aí de vela e vem dançar comigo.
Olhei para o lado e vi que Jenna e Lori estavam no maior romance. O mundo podia cair em volta das duas – elas iam demorar uns cinco minutos para perceber.
… Você tá completamente encharcado.
Ele ignorou totalmente a minha reclamação, levantou a gola da camisa e começou a dançar sozinho, fazendo graça.
Man it’s a hot one ― cantou, fazendo do punho fechado um microfone. Com o outro braço esticado, ele apontava para o horizonte. ― Like seven inches from the midday sun.
Quase tombei para trás, morrendo de rir com aquela performance.
Well, I hear you whisper and the words… melt everyone, but you stay so cool… ― ele continuou e, dessa vez, estendeu a mão para mim.
Peguei-a sem pestanejar. Como esperado, a mão dele ainda estava molhada e gelada pra cacete. me levantou e foi me puxando para trás, nos afastando dali e indo em direção ao deque, onde uma galera também dançava.
My muñequita ― ele deu uma piscadinha. ― My spanish harlem Monalisa… ― desfez o microfone e segurou suavemente a minha outra mão. ― You're my reason for reason… the step in my groove…
Subimos os dois no deque de madeira. Sem soltar minha mão direita, ele esticou o braço e me fez girar. Então, me puxou agilmente de volta para si e, antes de quase chocar meu corpo contra o seu, me prendeu firme com sua outra mão em minha cintura. Foi um movimento perfeito. Nossos narizes por pouco não se encostaram; meus olhos estavam arregalados.
Ele foi subindo suas mãos pela lateral da minha cintura e fez com que meus braços, que estavam estirados sobre seu peito, deslizassem até seu pescoço e contornassem sua nuca, nos aproximando ainda mais. Eu já sabia que ele tinha uma boa pegada, mas para a dança também?
Aquele era o meu fim.
― Nossa... Nada mal ― falei, sem esconder minha surpresa. ― Mas agora quero ver você me acompanhar.
― Isso é um desafio?
Nem respondi, só comecei a conduzir a dança dessa vez. Ele entrou no meu ritmo e assim ficou durante todo o refrão. Meu corpo estava colado no dele, e eu ainda sentia um choque de temperatura que era impossível ignorar. Nossas pernas se cruzavam e se entrelaçavam a todo momento, e nossos passos estavam tão sincronizados que nem precisei me preocupar se ele ia pisar no meu pé. Não demorou até voltar a me guiar e me fazer rodopiar algumas vezes de novo. Simplesmente deixei o ritmo vibrante da música assumir o controle dos meus movimentos e me joguei naquela dança.
Eu não parava um minuto de sorrir. Nunca tinha me divertido tanto dançando um ritmo latino. Em certo momento, até ensinei alguns passos diferentes para , que pegou tudo super rápido e ainda ficou tirando onda comigo. Eu estava impressionada. Além de gostoso, ele tinha um puta gingado – e sabia perfeitamente improvisar e se divertir ao máximo com aquilo.
Quando a música estava bem próxima de acabar, ele espalmou uma mão sobre minhas costas e me jogou para o outro lado, fazendo meu corpo se inclinar para trás. Quase dei um grito, achando que eu fosse cair no chão; no entanto, a única coisa que consegui fazer foi morrer de rir e agarrá-lo pelos ombros, tentando não escorregar. Mas me preocupei à toa – me segurava firme em seus braços. Ele também ria, ainda feito um bêbado alegre, mas do mesmo jeito leve, despreocupado e adorável de sempre. Até que me colocou de pé outra vez. Ficamos um de frente para o outro, nos olhando sem dizer nada, apenas tomando aquele tempo para regular nossas respirações e acalmar nossas risadas enquanto o som da música ia sumindo.
Eu não queria soltá-lo, mesmo sabendo que era a hora de fazer aquilo. Estavam todos se separando ao nosso redor. Fiz o contrário – avancei mais um passo, o único que faltava para me grudar nele de novo. A música tinha acabado e nenhuma outra tocou no lugar.
ganhou um olhar sóbrio de repente, vendo o que eu tinha acabado de fazer. Seus lábios lentamente foram suavizando a curva de seu sorrisinho, mas ele continuava lá, pregado em seu rosto. Suas íris azuis se moviam de um lado para o outro, focando em cada um dos meus olhos. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas aquele contato visual prolongado estava me fazendo ficar sem ar outra vez.
Fui eu quem desci o olhar para a boca dele primeiro. Estava maluca de vontade de beijá-lo, e não sabia se ia conseguir controlar aquele ímpeto por muito tempo. O sorriso dele mudou no mesmo instante, deixando transparecer exatamente as intenções que ele também tinha. Até fiquei na dúvida se eu o beijava ali mesmo ou o puxava para um canto.
Até que, de repente, um cara subiu no palco e ficou dando tapinhas no microfone, levando meu clima embora para duzentos quilômetros de distância. Todos pararam de fazer o que estavam fazendo para prestar atenção no que o sujeito tinha a dizer, inclusive as pessoas fora da pista. Num impulso, eu e finalmente nos afastamos e nos viramos para olhar naquela mesma direção.
― Boa noite, pessoal. Gostaria de agradecer a presença de todos aqui hoje ― o homem disse, um pouco tímido. ― Obrigado também aos que puderam encher a caixinha de doações pra fazer esse luau acontecer da melhor forma possível ― várias pessoas assobiaram e bateram palmas brevemente. ― Mas, hoje, eu também gostaria de fazer um agradecimento especial em nome do meu pai, o Sr. Millard ― alguns aplausos mais altos o interromperam de novo. ― Sim, sim, o grande Sr. Millard... Gostaríamos de agradecer aos alunos da Oyster, que há tantas gerações vêm encher o nosso bar de alegria, encontros, abraços, beijos… choros, brigas, gritaria e vômitos, que, inclusive, gostaríamos muito que fossem dentro das privadas dos banheiros ― literalmente todo mundo começou a rir. ― É isso aí. Momentos inesquecíveis. Estamos muito felizes de fazer parte da vida de todos vocês, porque vocês também fazem parte da nossa. Aproveitem bastante essa fase. E aos que estão se formando agora, a turma de 2000, não fiquem tristes de saudades. Estaremos sempre de portas abertas!
A praia inteira se encheu de aplausos e berros animados, que duraram por um tempo considerável. Até que alguém ali perto puxou um “Parabéns Pra Você” bem alto, e logo a cantoria tomou conta do lugar. O cara no palco ficou super feliz e emocionado. Confesso que quase chorei junto, porque eu estava sensível demais à toda aquela história de fim de ciclos e tudo mais.
― Viva os cinquenta anos do Millard’s! ― ele comemorou, por fim, fazendo todos também gritarem “viva” em resposta.
Em seguida, alguns fogos de artifício explodiram atrás de nós, próximo à beira do mar. As pessoas se viraram de novo para o outro lado para olhar, inclusive eu, ainda assustada com os estouros. estava bem ao meu lado, observando em silêncio o espetáculo multicolorido no céu. Quero dizer, uma completa algazarra havia se instaurado à nossa volta, mas ambos estávamos quietos, como se não fizéssemos mais parte da festa. Eu estava quieta só por fora, já que meu coração faltava bater asas e sair voando. Ele, por sua vez, estava tranquilo feito um buda.
Girei levemente o pescoço e, cedendo à minha própria vontade, olhei para ele de novo, analisando seu perfil. Dois segundos depois, percebeu e abaixou seu olhar para mim, o mínimo sorriso de antes voltando a se formar em seu rosto. Ele gostava de me provocar, mas gostava mais ainda quando eu finalmente me rendia. Era nítido. Em minha defesa, não era lá a coisa mais fácil do mundo tentar me esquivar quando ele me olhava daquele jeito. Engano meu pensar que eu poderia mesmo lutar contra tudo aquilo.
― Eu não sei o que você tá fazendo comigo ― falei, meio nervosa, erguendo uma sobrancelha ―, mas tá difícil me segurar.
Com aquele olhar tentador intacto no rosto, não parecia nada surpreso em ouvir aquelas palavras. Pelo contrário, ele parecia se sentir cada vez mais satisfeito e orgulhoso, levantando ainda mais seu sorrisinho implícito em um só canto dos lábios. Eu tinha certeza que ainda me arrependeria de ter confessado aquilo.
Por um breve momento, deu uma espiadela misteriosa nas pessoas ao nosso redor e, depois, deu um passo calmo para trás. Depois outro. E mais outro. Antes de se virar completamente de costas para mim, ele buscou minha mão e a apertou contra a sua, me puxando de um jeito determinado. Demorei um pouco a despregar os pés do chão, ainda sem entender nada, mas comecei a segui-lo, com minha mão ainda envolvida pela dele.
Descemos do deque, passamos pela areia e nos desviamos rapidamente de algumas pessoas agrupadas pelo caminho. manteve-se firme em seu trajeto, andando sempre em linha reta, paralelo ao mar. Ainda num pequeno transe, eu observava suas costas enquanto ele me guiava; a brisa sacudindo sua camisa floral e balançando os fios loiros de seu cabelo, já quase totalmente seco. Aos poucos, fomos chegando num pedaço mais deserto da praia – dessa vez, oposto ao que eu estive antes quando encontrei Erin. Agora, estávamos próximos do píer.
Logo à frente, pude avistar as grandes estacas de madeira fincadas na areia, sustentando a comprida passarela acima de nós. As ondas estavam agitadas àquela hora da madrugada, mas quebravam mais calmas quando chegavam na costa. Só se podia ouvir o som delas, já que o barulho da festa ficava cada vez mais distante.
foi diminuindo a velocidade dos passos até pararmos exatamente embaixo do píer. Me posicionei na frente dele e, ainda segurando sua mão, fiquei encarando-o sob a penumbra azul do céu noturno. Seus olhos esverdeados continuavam brilhantes, lindos, fixos nos meus como ímãs.
Eles estavam me tirando de órbita.
Ali, naquele esconderijo com , eu apenas me senti segura. Não houve mais dúvidas, preocupações ou hesitação. Simplesmente agarrei-o pela gola da camisa aberta e o empurrei sem nenhuma delicadeza até uma estaca de madeira, apressando o inevitável. Ele soltou uma risada em meus lábios, já quase colados nos dele, enquanto trombava com as costas no pilar. Fechei os olhos, subi na ponta dos pés e me inclinei para beijá-lo logo. Talvez o beijo que mais esperei dar em toda minha vida.
Nem meio segundo depois, senti uma de suas mãos agarrar suavemente a lateral do meu pescoço, mas com firmeza. A outra já estava me puxando pela cintura, até encaixar meu corpo no vão entre suas pernas. Ele retribuía meu beijo com curiosidade e um pouco mais de autocontrole do que eu – pelo menos, a princípio – e, então, com uma voracidade crescente. Aquele se tornou um beijo molhado, quente, com muita língua. A verdade era que eu nunca ia superar aquela pegada, nem a maciez e o gosto de seus lábios, nem o desejo que inflamava dentro de mim.
escorregou sua mão da minha cintura e foi descendo pela lateral do meu quadril, percorrendo minha coxa até encontrar a fenda da minha saia. Então, rapidinho deslizou os dedos para dentro, passeando lentamente por minha pele e indo para a parte de trás, cheio de suspense. Aquilo me causou um arrepio imenso. Me fez sentir cócegas e uma expectativa tortuosa. Quando sua mão finalmente apertou a polpa da minha bunda, soltei um suspiro pelo nariz que o fez parar o beijo por um milésimo de segundo, apenas para verificar a expressão que eu fazia. Ele deu um rápido sorriso de lado.
Mais safado impossível.
Em seguida, tornou a me beijar, dessa vez um pouco mais devagar, puxando ainda o meu lábio inferior com seus dentes. Quando o soltou, eu já não perdia tempo – deslizava minhas mãos por seu peitoral, aproveitando cada toque, descendo com as unhas até seu tórax e abdômen. Senti seus músculos enrijecerem e os pelos de sua pele arrepiarem. deu outro apertão na minha bunda, apenas para soltar e apertá-la de novo com ainda mais intensidade. Então, ele trocou nossas posições, me prensando avidamente contra a estaca onde ele estava segundos antes.
Num reflexo, coloquei minhas mãos em seus braços para me apoiar, segurando seus bíceps contraídos. roçou os lábios entreabertos bem na linha da minha mandíbula, descendo vagarosamente até a curva do meu pescoço. Eu sentia em minha pele a respiração quente que ele soltava pela boca. Devo ter saído do meu próprio corpo naquele exato minuto. Ali, ele foi deixando alguns beijos molhados só para me distrair – foi tarde demais quando percebi sua mão encaixada na dobra do meu joelho, aproveitando mais uma vez a fenda lateral da minha saia e levantando minha perna descoberta para fora da roupa. Logo a enrosquei nos quadris dele.
começou a acariciar minha coxa desnuda, e eu sabia que aquela mão não ia ficar quietinha no lugar. Para incentivá-lo a continuar, embrenhei meus dedos em seu cabelo e puxei os fios com força para trás. Ele finalmente desenterrou o rosto do meu pescoço e voltou-se para mim. Beijei-o de novo, mais forte, envolvendo ainda mais meus braços ao redor dele. , então, continuou o caminho com sua mão audaciosa até a parte interna da minha coxa. Quanto mais ele avançava para o meio das minhas pernas, mais aquela onda de calor crescia. Não demorou até ele encontrar minha calcinha, onde tocou gentilmente com as pontas dos dedos e, óbvio, sentiu a umidade por cima do tecido.
parou de me beijar só por um instante, abrindo preguiçosamente os olhos para me encarar. Dei um sorrisinho provocante, quase como se o desafiasse a prosseguir. A cara de excitação que ele fez foi incomparável. Porém, abaixei a perna antes que ele pudesse voltar a se aventurar – ao mesmo tempo, enfiei as duas mãos nos bolsos traseiros de sua calça e puxei seu tronco um pouco mais para perto de mim. Depois, tirei-as de lá e fui contornando sua pele com as unhas, até chegar na parte da frente de novo, parando no cós de sua calça. Nossos lábios e narizes roçavam um no outro. Segurei firmemente seu jeans e enfiei só a ponta dos dedos ali dentro, devagar.
fechou os olhos outra vez.
Depois de sua respiração lenta e profunda, continuei descendo, dessa vez atravessando o elástico da boxer; os dedos da minha mão direita quase esbarrando em sua ereção.
― Meu quarto ou seu quarto? ― ele perguntou, a voz arrastada, a testa colando na minha.

― Meu.



De tanto rir, eu não tinha forças para subir aquela maldita duna de areia e chegar até a calçada. Lá de cima, tentava estender a mão para me ajudar, mas ele também ria feito um lunático. O álcool ainda corria em nosso sangue, lógico, e aquilo não estava facilitando nada o nosso caminho para pegar um táxi e ir ao meu quarto no Belva Hall.
Depois de escorregar trezentas vezes e quase matar com falta de oxigênio de tanto gargalhar, consegui alcançar a calçada e me manter de pé. Ele me abraçou de lado, e assim fomos cambaleando até o meio-fio. Estávamos tão dispersos que não vimos quando o primeiro táxi passou, avançando pela avenida em alta velocidade e deixando um rastro de vento por nós. Pelo menos fiquei mais atenta e, assim que vi outro, dei sinal. Até estranhei a lentidão que o carro se moveu até parar para entrarmos. Uma lentidão bem familiar.
E não é que era ele mesmo? O taxista de antes, que tinha me trazido ao luau?!
Eu e nos acomodamos no banco de trás, e ele indicou ao motorista para onde estávamos indo. O carro começou a andar em seus tradicionais cinquentinha quilômetros por hora, até que acabou parando um pouco mais à frente, onde outras três garotas também pediram para ser levadas ao alojamento feminino. O motorista deu um xingamento passivo-agressivo de praxe, mas, apesar da falta de capacidade, as três o ignoraram e entraram no veículo. Eu, que estava na janela do lado esquerdo, tive que me encolher quando passou para o meio e deu espaço para duas meninas se sentarem ao seu lado, uma no colo da outra. A terceira foi na frente, no banco do passageiro.
Notei como as três ficaram rindo e cochichando, olhando para ele.
Putz.
Eram as garotas da foto, certeza. As garotas das tatuagens no cóccix. Só poderiam ser elas.
Forcei um pouco mais a vista e… sim, eram. As amigas da Renée.
Que climão desgraçado.
― Que coincidência, ― uma delas falou, cutucando-o no braço.
― Com certeza ― ele começou foi a rir mais, aposto que da situação.
Eu soltei um “rá-rá-rá” casual, quase mandando o motorista acelerar pela força do pensamento. Mas isso não ia acontecer, claro. Naquela velocidade, íamos levar o dobro do tempo necessário até chegarmos aos dormitórios.
― Pra onde estão indo? ― a menina no banco da frente quis saber. Claro. Coletando informações do ex para a amiga. Não a culpei, eu faria a mesma coisa.
― Pra Oyster ― respondeu, dando uma de doido. ― E vocês?
― Nós também, né ― ela riu e revirou os olhos discretamente. ― Você também fica no Capper Hall? ― agora, seus olhos curiosos se direcionaram a mim.
― Não, fico em outro ― me limitei a dizer, já experiente com perguntas investigativas daquele tipo.
― Ah… entendi ― ela sacudiu os ombros, voltando a se virar para frente.
Quase dei um suspiro alto de alívio.
Após um tempo, as três garotas começaram um falatório animado entre si e não pararam mais. já tinha jogado a cabeça para trás, no encosto do banco, e continuou em silêncio. Parecia ter voltado ao seu estado normal: relaxado. Fiquei olhando pela janela, distraída, com o cotovelo descansando no apoio de braço da porta do carro e uma pulga atrás da orelha com aquelas meninas.
Eu só queria chegar logo.
Poucos minutos depois, senti algo cutucar minha outra mão, a que repousava em meu colo. Quando olhei de soslaio, vi o dedo de tentando alcançar os meus. Ele continuava parado, na mesma posição – só sua mão se movia.
Sorri sozinha.
Então, comecei a brincar com os dedos dele, fazendo movimentos aleatórios. Brincando de entrelaçá-los desajeitadamente, depois soltá-los, depois juntá-los de novo. Numa dessas, até grudamos nossas mãos e começamos uma lutinha de polegares. Não sei nem por que me esforcei a competir com aquela mão bem maior que a minha, mas fiquei feliz quando venci uma partida – se é que ganhei mesmo, sem ter recebido uma trégua.
Quando finalmente chegamos ao Capper Hall, as garotas pagaram uma parte da corrida e desceram. Elas se despediram de fazendo o maior alarde, animadas e cheias de gracinhas misteriosas. Ele deu uma risadinha educada e fez uma continência com dois dedos para elas. Pedi ao motorista para nos deixar bem na porta do Belva Hall, para evitar um show ainda maior. Afinal, aquele também era o dormitório onde Renée ficava. Então, momentos depois, pagou aquela tartaruga de Galápagos sem muita cerimônia, e enfim descemos do veículo.
Sob o vento que soprava frio, seguimos nosso caminho lado a lado com um pouco de pressa – ele com as mãos nos bolsos; eu me abraçando e esfregando meus próprios braços para me aquecer. Logo entramos no alojamento, subimos dois lances de escada e atravessamos o corredor. Não tinha como negar: a todo momento, eu sentia uma tensão que fazia meu coração palpitar um pouco.
Ao destrancar a porta do meu quarto, torci para que Sadie nem estivesse ali. Quando encontrei o cômodo absolutamente escuro e vazio, só faltou levantar minhas mãos para o céu. Não tinha ninguém.
entrou, tiramos nossos sapatos imundos de areia e eu tranquei a porta. Fomos para o meu quarto particular, e resolvi girar a chave fixa na maçaneta para trancá-lo também, só para garantir. Com as luzes apagadas estava difícil enxergar, então ainda fiquei ali, de costas, verificando a fechadura meio emperrada mais algumas vezes antes de decidir me virar para ele de novo. Até que o ouvi arranhar a garganta de propósito para chamar minha atenção. Foi quando me virei, sentindo a tensão de antes crescer.
Encontrei parado, ainda com as mãos enterradas nos bolsos da calça, a uns cinco e longos passos de distância de mim. Naquele momento, eram as luzes dos postes lá de fora que se encarregavam da pouca iluminação no quarto, passando ligeiramente pelas frestas da persiana na janela.
― Vem aqui ― ele pediu, quase num sussurro. Mas o ambiente estava tão silencioso que era como se ele tivesse falado em meu ouvido.
Demorei alguns segundos antes de me mexer. Fui dando um passo de cada vez até parar em sua frente, sem nem ousar a quebrar o contato visual. umedeceu os lábios, já tirando as mãos do bolso e cravando-as em minha cintura.
― Eu tô morrendo de vontade de você ― ele murmurou com uma voz grave, rouca, quase contida.
Agora meu coração batia umas cinco vezes mais rápido. Aproximei o rosto, e, por reflexo, ele também – mas parei no meio do caminho, só para olhá-lo nos olhos pela última vez. Mandei meu último pingo de autocontrole pro espaço e o beijei com mais urgência do que antes, se é que era possível. Queria beijá-lo até perder o fôlego.
Fui passando minhas mãos por seu peito e ombros, por baixo da camisa toda aberta, empurrando o tecido para trás até deixar sua pele totalmente descoberta. Sem parar de me beijar, movimentou os braços para terminar de se livrar de sua camisa. Em seguida, colou uma mão na minha cintura de novo, e a outra, na minha bunda. Assim que subiu o toque para as minhas costas, senti o cós da minha saia se afrouxar de repente.
Ele tinha aberto meu zíper. Tão rápido e habilidoso que foi como se já tivesse calculado exatamente o que faria antes mesmo de eu ter me aproximado.
Minha saia simplesmente caiu no chão, formando um círculo ao redor dos meus pés. Dei um passo para frente, então mais outro... e mais outro. Comecei a empurrar , que foi dando passos cegos para trás até esbarrar com as panturrilhas na lateral da minha cama. Interrompi o beijo só para terminar de empurrá-lo. Ele caiu sentado no colchão, com os olhos pregados na minha calcinha, e eu posicionei um joelho de cada lado de seu corpo para ficar por cima dele na cama. À medida que eu ia engatinhando em sua direção, ele ia reclinando o corpo para trás e se apoiando mais nos cotovelos.
Parei em tempo para tirar o meu top, erguendo o tronco e os braços para passá-lo por cima da cabeça. Joguei a peça em qualquer canto do quarto, e agora eu estava só de calcinha e sutiã em cima de . Foi o que bastou para seu olhar lascivo descer para cada pedaço do meu corpo naquela posição.
No instante seguinte, abaixei novamente o tronco, empinei a bunda e me inclinei para frente, fazendo-o se deitar de vez no colchão. Ele agarrou os fios do meu cabelo e os puxou para um só lado, voltando a encaixar nossos lábios. Aproveitei para escorregar meus beijos até a base de seu pescoço, onde pude sentir seu perfume ainda um pouco misturado com o cheiro de mar. Passei a ponta do nariz por aquela curva, então a enchi de beijos molhados, lentos, ardentes, coisa que eu sonhava em fazer há muito tempo. Pude ouvi-lo prender a respiração, depois soltar o ar pesadamente. Em seguida, dei algumas mordidinhas no lóbulo de sua orelha, onde ele mais arrepiou a pele. Enquanto isso, minhas nádegas foram agarradas outra vez, com ainda mais força, mais vontade, mais tesão. Ele estava se divertindo horrores com a minha bunda.
Dei um sorrisinho.
Abaixei mais um pouco o quadril e me sentei bem em cima do volume debaixo de sua calça, só para provocá-lo. Na mesma hora, ele pressionou meu corpo ainda mais contra sua ereção e me fez roçar devagar por cima do jeans. Nossos narizes se esbarravam, as respirações se misturavam, e eu ainda sentia uma tentação muito forte de voltar a beijar sua boca, mas me contive. me fez empinar a bunda de novo e me trouxe mais para perto. Suas mãos, muito ágeis e astuciosas, deslizaram da parte de trás das minhas coxas para o meio das minhas pernas. Eu estava praticamente de quatro por cima dele, o que lhe deu livre acesso para me tocar o quanto e onde quisesse. Senti dois dedos acariciarem minha boceta por trás, para cima e para baixo, suavemente – ainda por cima da calcinha, mas estava uma delícia. Soltei um suspiro pesado, quase inaudível, e rebolei um pouco mais sobre eles, que logo me tocaram com maior intensidade e velocidade. Pensei que não fosse possível, mas ficou ainda mais duro. Estava faltando um milímetro para ele enfiar um dedo para baixo do meu elástico.
Resolvi prolongar o suspense e me afastar, só de sacanagem. Por puro prazer.
Passei a sustentar meu peso com um só braço para poder tocar seu abdômen. Então, deslizei os dedos por sua pele e desci com pressa até os pelos do caminho da felicidade, finalmente alcançando o botão de sua calça para desprendê-lo. Em seguida, abri o zíper e, sem rodeios, segurei as duas abas soltas do jeans e as separei, puxando-as só um pouquinho para baixo. Fiquei louca quando vi seu pau duro por baixo da boxer, e agarrei-o no mesmo minuto. Ouvi respirar fundo, uma, duas, três vezes, quanto mais eu o acariciava e o apertava em minha mão, alternando a pressão.
Resolvi provocá-lo um pouco mais e abaixei o rosto, dando uns beijinhos por toda sua extensão ainda por cima a boxer, desde a base até a cabeça, onde uma mancha de umidade já estava evidente. Ele ergueu o pescoço para me olhar, segurou meu queixo e levantou meu rosto.
― Volta aqui ― pediu, enquanto me puxava para ficar por cima dele de novo, com nossos rostos próximos. ― Se tá achando que eu vou deixar você fazer isso vestida assim ainda, você tá muito enganada ― enfiou os dedos por baixo das alças do meu sutiã, fazendo elas caírem dos meus ombros. O bojo continuou no lugar, mas suas mãos já estavam percorrendo as minhas costas, procurando pelo fecho.
Dei um sorrisinho contrariado, fingindo que eu não estava completamente rendida por ele. Quando senti que o fecho foi aberto, mesmo assim segurei o bojo com as duas mãos, prendendo-os no lugar. No mesmo instante, ergui o tronco, me afastei e me apoiei novamente sobre meus joelhos.
― Vem aqui você ― falei, levantando uma sobrancelha e sorrindo de lado. ― Vem aqui tirar.
arfou, devolvendo o sorriso e me fazendo estremecer com todo aquele desejo e indecência escorrendo de seus olhos. Ele levantou o corpo lentamente até se sentar na cama, por baixo dos meus joelhos abertos. Suas mãos subiram pela lateral da minha cintura, e ele foi dando beijos calmos, quentes e molhados na minha barriga, subindo cada vez mais. Era cada beijo gostoso que eu quase tive um troço.
De repente, ouvi algumas vozes distantes e baixas conversando ao fundo. A princípio, pensei que estivessem vindo do quarto ao lado, afinal, as paredes eram muito finas. Por esse motivo, não dei tanta importância e voltei a me concentrar, passando os dedos por entre os fios do cabelo de com a minha mão livre.
Até que ele também parou e afastou brevemente o rosto, levantando o pescoço e olhando para mim, assustado.
― Não parece a voz do Alex?! ― perguntou, um pouco alto demais.
Numa fração de segundo, minha ficha caiu e eu tapei a boca dele. As vozes foram ficando mais e mais altas, mais e mais próximas. Já era certeza que eles estavam ali dentro. Pela fresta da porta, pude ver a luz da sala acesa. Agucei os ouvidos e encarei com os olhos arregalados e todos os músculos retesados, quase tentando me transformar numa estátua. Ele me olhava sem entender coisa alguma.
― O que-
― Sshhh! ― pedi, tentando fazer com que o mais absoluto silêncio fizesse Sadie desistir de abrir minha porta para verificar se eu estava ali.
De nada adiantou. A maçaneta girou uma vez. Depois, mais umas quatro, mais frenética e impaciente. Naquele momento de total apreensão, mantive um braço segurando meu sutiã e uma mão ainda tapando a boca de . Eu olhava para ele como se um serial killer estivesse tentando arrombar a porta do outro lado.
Depois de um longo minuto, tudo ficou quieto outra vez. Foi quando finalmente relaxei.
― Pronto ― sussurrei, destapando sua boca. ― Ela desistiu. Não vai mais incomodar a gente agora.
― Que porra foi essa? ― ele sussurrou de volta, franzindo o cenho. ― Por que ela ia querer entrar aqui?
― Porque ela queria saber se eu estou aqui ― dei de ombros, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Porque era. Eu tinha uma colega de quarto futriqueira que apenas não conseguia transar com ninguém se houvesse outras pessoas no mesmo recinto.
― Caralho, ela precisa te ver aqui dentro pra perceber isso?
― A Sadie é meio sem noção ― dei a explicação mais simples, enquanto levava minhas mãos para as costas e prendia de volta o meu sutiã. ― Bem-vindo à vida dos dormitórios.
― Ei, ei, ei ― ele se zangou, falando baixinho e me segurando pelo pulso. ― O que foi isso? Você faz alguma ideia do crime de guerra que acabou de cometer?
― Eu? Não fui eu que assassinei o clima.
― Sem essa, ― ele estalou a língua, meio irritado. ― Tem como perder o clima com você desse jeito na minha frente? ― ajeitou a postura e foi inclinando o corpo na minha direção, até me fazer deitar na cama. Fiquei por baixo, sem conseguir prender um sorriso nos lábios, vendo-o devorar meu decote com os olhos. ― Ou você tira isso de novo, ou…
― Ou…?
― Não. Sem “ou” ― ele se corrigiu, sem paciência. ― Só tira isso logo, vai.
― Hmm… Entendi. Você manda e eu obedeço agora?
tombou a cabeça e começou a rir.
― Porra, como você é atirada. Já te disse isso, não disse? ― ele reclamou, me fazendo gargalhar. Na mesma hora, sua mão tapou minha boca. ― Não. Sua risada é a pior coisa que pode acontecer agora. Tem pelo menos uns quinhentos decibéis acima do normal.
Ri mais ainda, com o som sendo abafado pela palma da mão dele. também se segurava para não vacilar.
Porém, ninguém precisou mais se conter no barulho – completamente do nada, o alarme de incêndio disparou. Levamos tanto susto que por pouco não caímos da cama. Meu corpo inteiro gelou, minhas mãos tremeram, meus tímpanos estouraram, e eu quase tive uma parada cardíaca.
Por cima dos apitos estridentes e incessantes do alarme, ouvimos aquelas vozes de novo vindas do outro cômodo.
De repente, veio a fúria. percebeu que eu queria me levantar, então saiu de cima de mim e só se jogou no outro lado da cama, ainda confuso e ofegante com o susto. Sem nem me preocupar em me vestir, saí igual um furacão em direção à porta, destranquei a fechadura e apareci na sala.
O chuveirinho automático que ficava em cima do micro-ondas estava ativado, esguichando água pra todo lado. O cheiro horrível de queimado estava impregnado no ambiente, e uma fumacinha branca saía do eletrodoméstico velho, que já tinha pifado de vez.
― O QUE FOI QUE VOCÊS FIZERAM?! ― berrei.
― ALEX COLOCOU UMA LASANHA NO MICRO-ONDAS NA POTÊNCIA ALTA SEM TIRAR A TAMPA DE PLÁSTICO ― Sadie berrou de volta, completamente histérica, as veias saltando da testa.
― EU NÃO– ?! ― ele ficou pálido quando me viu.
Pronto.
A madrugada dos desastres estava completa.
― O que ela– O que v-você tá fazendo aqui? ― Alex indagou, com os olhos inquietos.
, você tem verme na cabeça?! VAI VESTIR UMA ROUPA!
A sessão de gritos não parava, o alarme não parava, e nenhum dos dois se prestava para desligá-lo. Eu era um vulcão em erupção.
― SADIE, DESATIVA ESSA MERDA.
― EU NÃO SEI COMO!
Saí marchando até eles e atravessei aquela sala minúscula igual uma formiga atômica, em seguida subindo num banquinho que tinha ali perto. Me estiquei até alcançar o detector de fumaça no alto da parede e tirei-o de lá, virando o objeto ao contrário para encontrar um botão silenciador ou qualquer coisa do gênero.
Não tinha nenhum.
Num ato de desespero, abri um pequeno compartimento que havia ali e removi a bateria. O negócio finalmente parou de apitar, e o chuveiro eventualmente também se desligou. Desci do banquinho e bufei bem alto, fuzilando os dois com o olhar. Suas roupas estavam todas respingadas, e eu também acabei me molhando.
O silêncio era mortal.
― Surpresa! ― falei, abrindo os braços. ― Eu sou a colega de quarto da Sadie.
― Eu vou te matar ― ela disse, atordoada. O gato tinha comido a língua do Alex, mas seus olhos estavam esbugalhados. ― De onde vocês se conhecem, posso saber?
― Ele é amigo da Jenna.
― Sério?! ― por um momento, ela pareceu eufórica com a revelação, mas logo voltou a enrugar a testa. ― , eu tô muito puta com você. Por que não me disse nada antes?!
― Eu quis deixar rolar!
― Rolou. Rolou você pelada na nossa frente e quase um incêndio.
Bufei pela segunda vez, mais alto que a primeira.
― A culpa do incêndio é do Alex Rose ― dei meia-volta e comecei a seguir para o meu quarto. ― Tô indo botar uma roupa, já que vocês foram capazes de arruinar minha noite.
― O quê? Volta já aqui! ― Sadie ordenou, ainda alterada. Parei no meio do caminho e me virei, cruzando os braços. ― Agora eu quero saber a história toda.
― Que história?
― Alex, se pronuncie! ― ela pediu.
― Puta merda. Puta merda. Puta merda ― ele deu um sobressalto e esfregou o rosto, olhando para um ponto fixo atrás de mim. Depois, coçou a cabeça. ― Ok, e-eu… preciso confessar… Não tô nem um pouco surpreso.
― Surpreso com o quê? ― perguntei, também olhando para trás.
Encontrei escorado no batente da minha porta, com a calça já abotoada e a barra da cueca aparecendo, observando tudo como se fosse um membro de uma plateia. Ele parecia sério, até abaixar a cabeça e soltar uma risada anasalada.
― Alex… ― seu tom era ameaçador.
― Cara, eu não acredito que vocês… que vocês dois estão–
― Você acabou de dizer que não tava surpreso ― cortei-o, nervosa.
― É, eu não tô ― ele ruborizava o rosto toda vez que olhava para mim. ― Não tem muito tempo desde que comecei a desconfiar, mas ninguém nunca me dá moral, caralho! PJ jura que vocês são só amigos, Jenna nem cogita nada… nem se fala. Esse filho da puta só faz hora com a minha cara o tempo todo. Putz, é louco demais ver que eu tava certo.
― Esse é um dos caras que mora na sua república, Alex?! ― Sadie interferiu, atônita, e ele confirmou com a cabeça. ― Caramba… É bem sua cara mesmo, . Deixar a bomba explodir no último minuto.
deu uma gargalhada. Em seguida, caminhou até o sofá, se esticou para pegar uma manta ridícula de crochê que tinha sobre o estofado e a enrolou em volta do meu corpo. Ele foi me empurrando pelos ombros em direção ao meu quarto, mas antes apontou o dedo indicador para o amigo.
― Vai se foder, Alex. Eu nunca vou te perdoar por isso.
― Desculpa... ― ele deu um sorriso amarelo, mostrando todos os dentes. ― Mas, se te deixa menos puto, não foi só a sua noite que eu arruinei.
― Sadie, dá um jeito nessa bagunça ― gritei para ela, já passando pela porta. ― E vão tomar um banho vocês dois, ou vão pegar um resfriado! E fica de bico fechado sobre o que você viu, Alex! Você também, Sadie! Tô falando sério!
enfim fechou a porta atrás de si, e eu fui me sentar na beirada da cama, cabisbaixa, ainda enrolada no crochê. Ele se aproximou de mim e se agachou na minha frente. Fiquei reflexiva e, de repente, ansiosa. E quanto mais ansiosa eu me sentia, mais neurada eu ficava.
― Desculpa por tudo isso e... meu Deus, por toda essa loucura ― falei, envergonhada. ― Se você quiser voltar com nossa promessa de dedinho e ser amigos de novo, eu vou entender.
― Não sabia que você falava mais merda do que eu quando bebe ― ele me encarou, repreensivo. ― Por que isso agora?
― Porque… ― porque eu achava que ele ia embora e desistir, uma hora ou outra. Porque eu achava que ele só queria um sexo casual numa noitada, e eu também queria, mas agora ele ia mudar de ideia. Porque, de repente, tudo aquilo começou a parecer um delírio da minha cabeça, já que estava bom demais para ser verdade, então a realidade tinha que ser completamente diferente. E a realidade envolvia outras pessoas fora nós dois, e, dentre elas, eu não fazia mais ideia de qual era o meu lugar para . ― … Não sei.
― Tá preocupada? ― ele apoiou os braços sobre a cama, um de cada lado das minhas pernas. Só respondi que sim, num murmúrio. ― Com o quê?
― Não sei.
― Com… Alex e Sadie descobrirem sobre a gente?
― Mais ou menos…
― Com… outras pessoas descobrirem?
Só fiquei em silêncio. Nem eu sabia verbalizar aquilo direito.
― Com a Jenna descobrir? ― ele continuou, e eu só neguei, balançando a cabeça. ― PJ?
― Não.
abaixou o rosto e encarou o chão, bastante pensativo. Demorou um pouco até olhar para mim de novo.
― Com… ― ele começou, mais receoso. ― Com a Rennie?
― Eu só não quero ficar no meio de nada ― disparei, sem nem calcular as palavras e os pensamentos. E eu odiava como ele ainda a chamava pelo apelido carinhoso. ― Bateu um medo de… de como vou ficar nisso se… se eu deixar acontecer.
― O que quer dizer?
― Vocês ainda têm um lance, não têm? ― questionei, já certa da resposta. Mas ele me olhou com a maior cara de interrogação. Então, começou a rir.
― Não, . Com isso você não precisa se preocupar. Eu tô mais é preocupado quando o PJ descobrir… ― ele tomou um impulso e se levantou dali, começando a andar pelo quarto.
― Por quê?
― Ele tem uma queda por você ― catou sua camisa do chão e parou em frente ao espelho para vesti-la. ― Desde que a Lori meteu o pé pra ficar com a Jenna.
― O QUÊ?
― Você nem imaginava? ― ele riu, olhando rapidamente para mim pelo canto do olho enquanto fechava os botões. ― Já era de se esperar.
― Eu que tinha uma queda por ele, sabia? Quando nos conhecemos ― confessei, ainda chocada.
― Ainda bem que isso mudou em questão de dias, não é mesmo? ― disse ele, totalmente sugestivo e metido.
Que ódio.
― Quem te garante?! ― alcancei um travesseiro e tentei arremessá-lo em sua direção, mas ele o agarrou no ar. A manta que me cobria acabou caindo no colchão. ― Você não sabe de nada, .
Ele arqueou uma sobrancelha, me olhando.
― Você é a pior pessoa do mundo pra esconder esse tipo de coisa.
― Como?! Eu nunca faço nada de mais ― reclamei, realmente indignada. ― Eu não sei o que eu faço pra dar tão na cara assim toda vez.
― Você é muito expressiva, … ― ele se aproximou lentamente, me puxando para ficar de pé. ― E isso torna tudo tão mais fácil… Você não faz ideia ― ele me segurou pela cintura e grudou nossos corpos, escorregando sutilmente os dedos de uma mão pela lateral do meu quadril, para baixo do elástico da minha calcinha. Se ele fizesse só um pouquinho de força, ela iria para o chão.
― Por outro lado, você só dificulta as coisas ― murmurei. ― Já te disse isso.
deu um sorriso torto e malandro, e, com a outra mão em garra, segurou meu queixo, erguendo meu rosto para olhá-lo nos olhos.
― Eu juro por Deus ― ele disse baixo, com aquela voz arrebatadoramente grave e rouca outra vez. Eu sentia o sopro de sua fala em meus lábios. ― Eu te levaria comigo agora pra república.
― Hmm… PJ e Alex vão estar lá? ― perguntei, hesitante, embora já totalmente extasiada em seus braços. ― … Acordados?
― Uhum.
― … Eu não sei ― procurei pela mão boba dele, quase adentrando minha calcinha pela frente. Segurei firme seu pulso e o ergui até a altura do meu rosto. ― Acho melhor a gente... deixar pra outro dia ― falei, roçando as pontas de seus dedos pelos meus lábios. ― Quando estivermos sozinhos ou… quando os outros estiverem ocupados ― percebi que ele mantinha os olhos cravados em minha boca, enquanto eu falava aquelas palavras sobre seus dedos. No entanto, continuei: ― Não acho que vou conseguir me sentir à vontade hoje, pelo menos.
― Ok… ― ele sussurrou.
― Mas… se você não for embora logo, eu vou mudar de ideia ― avisei, dando um beijinho na ponta de seu dedo anelar. Depois passei para a ponta de seu dedo médio, onde dei um beijo mais molhado, chupando-o de leve, do jeito mais vagaroso possível.
respirou fundo, soltando um gemido sôfrego.
De repente, alguém bateu na porta. Com certeza não era Sadie.
? ― ouvimos a voz abafada de Alex perguntar do outro lado. ― Eu tô indo agora. Vai passar a noite aqui?
― … Não ― ele respondeu, quase vacilando o tom de voz. ― Também tô indo. Espera um minuto.
É claro que eu queria transar com ele naquele exato segundo, se minha colega de quarto não ficasse bisbilhotando todos os meus movimentos enquanto eu estava ali dentro. Nunca liguei quando ela fez isso enquanto estive com outros caras, mas com era diferente. Agora, ela poderia fofocar o que bem quisesse para Alex. E Alex, além de ser seu amigo próximo, morava com ele.
Na república, então, não havia a menor condição. Eu não estava nem um pouco preparada para ser avaliada pelos comentários de Alex Rose, muito menos de PJ – agora com aquela nova informação de sua quedinha por mim. Eu só queria paz e conforto e, naquela noite, essas duas coisas não existiam em nenhum lugar. E eu não ia desperdiçar um sexo como aquele deixando o impulso e o desespero passarem na frente.
― Vou tomar um banho ― me afastei, indo em direção ao armário para buscar uma toalha. Então, enrolei-a ao redor do corpo e acendi a luz do banheiro, parando na soleira da porta. continuou imóvel, me observando. Quando vi o volume em sua calça jeans, dei um sorrisinho malicioso.
Como a última provocação, desabotoei meu sutã e passei meus braços pelas alças. Tirei-o por baixo da toalha e lancei-o sobre a cama logo em seguida. Fiz o mesmo com a calcinha, puxando-a para baixo e deixando-a cair sobre meus pés.
engoliu em seco. Sua boca ficou levemente entreaberta.
Mantive a toalha presa no corpo, me escorei no batente e tive outra ideia.
― Alô? ― levei o polegar ao meu ouvido e o mindinho próximo à minha boca, fingindo ser um telefone. ― ? ― imitei a voz dele.
Ele também sorriu, copiando o meu gesto.
― Tô aqui, ... ― respondeu, mais pausadamente. ― Tô aqui, sendo gostosa pra caralho. O que você quer?
― Quero que você me ligue essa semana. Mesmo bitolada de trabalhos e coisas pra se preocupar. Vai lembrar de me ligar, ?
― Que pergunta. Eu já não te enlouqueci o suficiente hoje? ― ele arqueou exageradamente uma sobrancelha, me fazendo rir. ― Não acho que você vai conseguir pensar em outra coisa nos próximos dias, . Ou na próxima década.
― Porra, você tava certa… É impossível te tirar da cabeça ― debochei, imitando sua voz grossa e usando a frase dele como triunfo mais uma vez. Ele riu, abrindo aquele sorriso lindo.
― Vou desligar agora... Tô prestes a entrar no banho, e é em você que eu vou pensar. Ah, mas eu tenho certeza absoluta disso ― ele deu uma piscadinha e abriu um sorrisinho endiabrado.
Revirei os olhos, ficando vermelha. Aproveitei e desfiz o telefone, levando minha mão até o nó da toalha em meu peito.
― Você e suas certezas ― entrei no banheiro e comecei a encostar levemente a porta. ― Cuidado pra não subir pelas paredes quando chegar em casa.
― Isso eu já tô ― ele foi andando de costas, em direção à saída do quarto. Antes de ir, me mandou um beijo no ar. Só então fechou a porta.
E eu fechei a minha, colando as costas na madeira. Tive que me concentrar muito para não cair com as pernas moles e a excitação pulsando daquele jeito.

Porque era nele que eu ia pensar mesmo.



. . . . .
Meu cérebro tinha um novo assunto favorito.
Não consegui prestar atenção em uma mísera palavra do que aqueles três garotos falavam sobre o trabalho de Gestão de Projetos. Estávamos reunidos na biblioteca para tentar ao menos dar o primeiro passo e desenvolver alguma coisa. Formávamos o típico grupo improdutivo: o desinteressado, que só estava ali esperando a atitude dos outros; o mandão, que não fazia nada além de definir o que os outros iriam fazer; o lerdo, que não sabia nem que tinha um prazo e foi agregado ao grupo de última hora e, não menos importante, a avoada, com a cabeça vivendo integralmente em outro planeta. Eu.
Não que eu também não me encaixasse na categoria do desinteresse.
― Já temos esses dois livros da bibliografia que o professor indicou ― o mandão era o mais empenhado a não empurrar tudo com a barriga como o resto de nós gostaria. ― Faltam esses outros dois e mais esses artigos da lista que eu anotei.
― Quais são eles?
― Bom… Temos “O design e o pós-modernismo”, “Como preparar imagens e mídia para web”, “As revistas femininas americanas sob aspectos históricos, técnicos e semióticos”, “Noções básicas sobre princípios conceituais e técnicas práticas para criar soluções de design exclusivas e efi--”
― Tá, posso procurar e tentar reservar alguns ― empurrei minha cadeira para trás e tomei um impulso preguiçoso para me levantar. ― Me passa a lista, por favor?
O garoto arrancou com brutalidade uma folha de seu caderno e me entregou como se quisesse deserdá-la.
― Qualquer coisa é só fazer uma consulta online do acervo ali no computador.
― Tá bom ― olhei para aqueles títulos imensos e tive vontade de dormir. ― Me esperem aqui.
Deixei-os para trás, no meio daquelas mesas compartilhadas cheias de gente concentrada e com cara de enterro. Afinal, ninguém era feliz quando os exames finais estavam se aproximando, principalmente na parte da manhã. Enquanto relia o papel em minhas mãos, fui me afastando até me enfiar num dos longos corredores entre as extensas prateleiras de livros, ansiosa para acabar com aquilo logo – mesmo sabendo que não seria um trabalho fácil.
Eu sussurrava para mim mesma os nomes daqueles livros e artigos repetidas vezes enquanto os procurava. Empilhei alguns nos meus braços à medida que fui os encontrando e, no final, eu já estava carregando uma torre de uns dez andares.
Nenhum dos quinze minutos que se passaram foram suficientes para distrair minha cabeça. Eu só pensava em , puta merda.
― Pós-modernismo, pós-modernismo, pós-modernismo…
Quando finalmente achei o último, puxei-o da estante e acrescentei-o à minha pilha de livros, deixando um espaço vazio na prateleira. Através daquele vácuo, pude ver uma figura conhecida do outro lado, no corredor paralelo. Tomei um susto gigantesco. Eu nem sabia que era possível ter uma reação tão dramática só de ver o PJ.
Tentei disfarçar e acelerar o passo para que ele não me visse e me pegasse de conversa. Porém, enquanto eu dava uma corridinha, as capas moles dos artigos encadernados em meus braços escorregaram e caíram direto no chão, fazendo um barulho alto demais para uma biblioteca. Engoli trocentos palavrões antes de me agachar para pegá-los, e duas vezes mais quando ouvi outros passos em minha direção. Catei tudo rapidamente e me levantei, virando o corpo para conferir quem se aproximava.
― Tsc, tsc ― ouvi PJ estalar a língua. ― Que raridade te ver por aqui, ― ele pegou um dos artigos que eu nem vi que havia caído mais longe e estendeu-o para mim.
― É… ― fiz menção para que ele colocasse o caderno na pilha que eu carregava, e assim o fez. ― Aqui é o último lugar que eu penso em dar as caras na Oyster.
― Comigo é o contrário. Aqui é o lugar que você sempre vai me encontrar.
Ai, Senhor… Por que eu sentia que ele estava flertando?
Merda. tinha plantado aquela ideia na minha cabeça e agora ela estava dando frutos de paranoia.
― Por causa de um projeto que você faz, né?
― Sim, que eu faço com o . Mas consigo ficar ainda mais tempo aqui, porque esse idiota sempre se atrasa ― ele conferiu o relógio de pulso. ― Inclusive, está atrasado agora.
― Ele deve estar por aí comprando uma lata de energético e um copo de café ― falei, fazendo-o rir e concordar. ― Bom, preciso ir agora. A gente se vê por aí, PJ.
― Ei, espera ― chamou, e eu me virei outra vez para olhá-lo. Ele pigarreou antes de prosseguir: ― Nessa sexta à noite vou comemorar meu aniversário na república, lá pras nove horas. Se quiser aparecer…
― Ah! Ok, claro! Posso chamar a–
― Alex vai levar sua outra amiga, a Sadie.
E naquela fala eu entendi tudo. Ele não ia convidar a Jenna, o que me deu uma baita vontade de dar um soco no meio de sua testa.
― Ah… ok… ― falei com a cara murcha.
― Olha ― ele tocou meu braço e, no segundo seguinte, recolheu a mão, meio hesitante. ― Eu sei que você gosta muito da Jenna, tá legal? Eu também, é só que… ainda não me sinto preparado.
“Ainda não consegue aceitar”, foi o que pensei.
― Tudo bem, PJ. Eu apareço lá. Não ia deixar de ir no seu aniversário ― dei um sorrisinho fraco, mas amigável. ― Jenna também não perderia. Tenho certeza que ela vai te ligar no dia pra te desejar parabéns.
Pelo seu olhar incerto e vazio, percebi que minhas palavras não iam causar efeito algum nele – pelo menos, não tão cedo. PJ só me devolveu um sorriso frouxo e nos despedimos com um aceno de cabeça.
Quando retornei ao meu rebanho e soltei aquela pilha de livros sobre a mesa, cada um dos garotos deu um pulo em suas cadeiras, assustados. Os próximos quarenta minutos que se sucederam foram resumidos em cansaço intelectual, pequenas discussões e um trabalho maçante quase concluído. Precisaríamos nos reunir mais uma vez em algum momento para finalizar aquela droga.
A biblioteca começou a encher de estudantes quando me levantei para ir embora. Eu tinha um tempo livre antes da próxima aula, então havia combinado de encontrar Jenna para irmos ao laboratório analógico do prédio de Artes e revelar o filme da minha máquina fotográfica. Assim que passei pela saída da biblioteca e cheguei ao jardim externo, avistei Jen acendendo um cigarro enquanto esperava por mim; o corpo encostado na parede e os cabelos amarelados balançando com a brisa morna da primavera.
― Bom dia! ― a costumeira felicidade em seu sorriso não me contagiava nem um pouco. Nada era capaz de melhorar o meu humor pela manhã. ― Conseguiu fazer tudo?
― Mais ou menos ― respondi, bocejando e cruzando os braços, parando na frente dela. ― Seu colega conseguiu liberar o laboratório pra gente?
― Sim! ― Jen soprou a fumaça para cima, os olhos claros brilhando contra a luz do sol. ― Vou só esperar o meu café chegar, então podemos ir.
― O quê?
Não entendi nada do que ela disse. Por um segundo, pensei que estivesse esperando um barista trazer um expresso para ela ali mesmo, o que não faria o menor sentido. Até que a vi ajeitando a postura e olhando por cima dos meus ombros. Também me virei e olhei para trás, curiosa, vendo então se aproximar com dois copos grandes de café, cada um em uma mão, além de seu sketchbook debaixo do braço.
Assim que pus os olhos nele, vestindo aquela roupa casual e os tênis do Forrest Gump, o olhar doce e tranquilo de sempre, o cabelo também bagunçado pelo vento e aqueles olhos azuis esverdeados grudados em mim, quis cancelar todos os meus planos e me jogar em seus braços. Mas tentei frear o sorriso involuntário que se formou em meu rosto e, com sucesso, voltei a usar a carranca de antes.
parou ao lado de Jenna, que o agradeceu e começou a bebericar seu café quente. Era engraçado como os dois tinham quase a mesma altura.
― Não aguento conversar com vocês assim ― reclamei. ― Meu pescoço começa a doer de tanto olhar pra cima.
Eles riram.
― Você é tipo nossa mascote ― Jen falou, afagando o cabelo no topo da minha cabeça. Em seguida, tragou e soprou a fumaça na cara de , que nem se abalou. ― Então, PJ tá aí dentro?
― Provavelmente ― ele respondeu, tomando sem pressa nenhuma um gole de seu café.
― Sim, está. Encontrei com ele agora há pouco ― direcionei meu olhar para . ― E está esperando por você, resmungando sobre o seu atraso.
revirou os olhos e maneou a cabeça, sem perder um pingo de sua paciência sagrada.
― Deixa ele achar que é meu chefe ― disse, sem a menor intenção de sair dali.
― Vocês já estão com esse projeto bem avançado, não? ― Jen indagou.
― Sim. Mas temos uma apresentação importante essa semana, no dia do aniversário do PJ, aliás.
― E ele vai fazer alguma coisa na república pra comemorar…?
Ambos ficamos em silêncio, mas quem sentiu uma pressão maior para dizer algo:
― Ah, Jenna, sei lá… Acho que vai ― ele não se segurou e deu uma olhadinha de soslaio para a amiga. Ela deu uma cotovelada forte em seu braço, fazendo-o rir, o obrigando a contar a verdade. ― Ele vai, ele vai. Vamos reunir algumas pessoas na república. Não te chamou, né?
― Não ― pela rispidez, Jen estava bastante puta e desapontada; porém, fez uma cara de quem não estava nem um pouco surpresa com aquela atitude de PJ. ― Deixa ele achar que não é meu amigo mais ― ela imitou a frase de .
― E ele te chamou, ?
Imediatamente após aquela pergunta, os dois apontaram os olhos aflitos para mim, apenas aguardando minha resposta. Cada um com sua aflição particular, eu sabia disso. Ergui as sobrancelhas e engoli em seco.
― Erm… Chamou.
― Sabia ― balançou a cabeça de um lado para o outro, sorrindo ironicamente, mas quase se divertindo. ― PJ é um belo filho da puta.
― Disso estamos carecas de saber ― Jen apagou seu cigarro e o arremessou numa lixeira próxima. Acho que ela não estava entendendo nem um pouco o que realmente quis dizer. ― Vamos, . Esse assunto causa rugas e faz nascer cabelos brancos.
Soltei uma risada, mas fui logo puxada pelo braço para longe dali. Jenna marchava enquanto se afastava e me trazia em seu encalço, ainda reclamando da situação. Tentando despistá-la, resolvi olhar só mais uma vez para trás, só para encarar uma última vez. Vi quando ele fez a própria mão de telefone e balançou-a próximo do rosto, como se me lembrasse de cumprir o combinado e ligar para ele. Não teve como – abri um sorrisinho secreto e completamente idiota.

E eu jurando que era impossível sentir o mínimo de entusiasmo de manhã.


🙂🙃🙂


A escuridão total daquela salinha me deixava meio agoniada. Eu não enxergava um palmo sequer à minha frente. Nem um alfinete. Nem um cisco. Se uma aranha ou ums lagartixa resolvesse cair em cima da minha cabeça, eu nem saberia. Só pude respirar quando Jenna finalmente ligou a luz vermelha.
Saí explorando cada canto daquele laboratório, perguntando a funcionalidade de cada aparelho para ela. Jen me respondia tudo pacientemente enquanto desenrolava o filme da bobina.
― Como você sabe de todas essas coisas?
― Sempre acabo trabalhando na revelação de fotos que as modelos tiram com nossos figurinos.
― Chique ― comentei, parando atrás dela. Jen estava sentada em um banco e havia acabado de pegar uma tesoura. ― E agora, o que está fazendo?
― Espera ― ela inclinou o corpo, bloqueando um pouco a minha visão. ― Tô cortando uma parte defeituosa do negativo.
― Sério?! Não acredito. Eu comprei um rolo com 36 fotos e uma delas não prestou?
― Relaxa, isso acontece às vezes. Você deu azar, chuchu ― ela guardou o pedaço cortado em um dos mil recipientes naquela bancada. ― Deve ter pegado muita poeira ou algo assim. Ou a máquina teve um vazamento de luz, super normal.
Não entendi como aquilo poderia ter acontecido, mas relevei. Jenna quem tinha mais experiência sobre as técnicas da fotografia analógica e todos aqueles materiais químicos.
Passado algum tempo, lá estávamos nós no processo de lavagem das fotos, submersas em largas vasilhas com a água corrente que eu havia tirado de uma pia ao meu lado. Enquanto eu balançava-as de um lado para o outro lentamente, Jenna pegava algumas fotografias prontas para a secagem e as dependurava num varal com pregadores de roupa. Apesar do sono, eu estava morrendo de curiosidade para vê-las finalizadas. E quem sabe conhecer o rosto de Mary Lou.
― Como ela é? A sua amiga fantasma ― perguntei, ainda observando as ondinhas de água que eu provocava com o balanço. À medida que a imagem ficava mais nítida, até eu tentava detectar qualquer tipo de vulto, espectros e formas estranhas. ― Já viu ela antes?
― Não, nunca. Minha esperança é vê-la pela primeira vez em alguma dessas fotos. Dizem que ela tem os olhos brancos e brilhantes, afundados em órbitas escuras. Sério, não tem erro.
― Olha, tem uma foto aqui com um borrão claro...
― Onde? Deixa eu ver! ― ela se aproximou de mim, mais ansiosa que tudo.
― Mas só é um fantasma se você tiver muita imaginação ― dei uma risadinha. ― Talvez você tenha sacudido a câmera antes de dar o clique.
Com a boca torta para um só lado, Jenna claramente já estava convencida do meu argumento. Porém, ficou alguns segundos ainda verificando cada milímetro da imagem, provavelmente tentando transformar o borrado em uma figura humana em sua cabeça.
― Eu queria tanto poder fotografar o espírito de Mary Lou… ― confessou, tristonha. ― Tanta gente já conseguiu fazer isso. Já viu aquelas fotos antigas e famosas de aparições? Também queria dar essa sorte. Ou ter esse tipo de dom…
― Olha, eu já li sobre um cara do século dezenove que se especializou nisso. O safado virou um fotógrafo espiritual ― olhei para ela, que, enquanto me ouvia atentamente, levava as últimas fotos molhadas para o varal.
— Conta mais.
— Bom… — comecei. Terminada minha função, resolvi me sentar em um dos bancos ao seu lado. ― Depois da Guerra Civil Americana, muita gente perdeu amigos e entes queridos. Essa galera ficou doida pra fazer algum tipo de conexão espiritual com eles, o que foi um prato cheio pro tal fotógrafo lucrar. Até a viúva do Abraham Lincoln pagou pra tirar uma foto em que o ex-marido pudesse voltar do mundo dos mortos e reaparecer pra consolá-la e esse tipo de coisa. E foi o que aconteceu.
― Você viu essa foto?
― Vi.
― Onde?!
― Estava ilustrada num livro que li uma vez, sobre o Ghost Club de Londres — dei de ombros, lembrando-me da ocasião em que eu e minhas amigas resolvemos nos aventurar naquele assunto nos tempos da sétima série. — Mas não se anime, eles eram uma organização de investigação paranormal que surgiu na mesma época.
― E como é essa foto, pelo amor de Deus?
― A mulher tá sentada, e a silhueta tranlúcida do Lincoln aparece logo atrás, olhando pra ela, com as mãos sobre seus ombros. Sabe, como se estivesse a protegendo. Quase uma visita fantasmagórica que durou poucos segundos, como se só a câmera tivesse sido capaz de capturá-la. Quando você olha pra essa foto, custa a acreditar no que seus olhos estão vendo, porque não pode ser real. Mas é. É tipo… a própria forma do mistério bem na sua frente… um mistério indecifrável… ― fiz uma longa pausa proposital enquanto me segurava para não rir da cara de choque e deslumbre que Jenna fazia. ― Mas era um fraude, lógico. Uma técnica fotográfica de dupla exposição. O cara foi exposto, acusado, julgado no tribunal e tudo. Ele foi absolvido, mas não passou de um charlatão. E todos acreditando que ele era um milagroso e solidário com a dor dos outros… No fim, era só um aproveitador. Um aproveitador do luto e da crença popular.
Jen soltou um longo e profundo suspiro.
― Será que desde que a câmera foi inventada, fantasmas aparecem nas fotos? ― ela indagou. ― Mas, na verdade... todos eles podem ser atribuídos a alguma técnica fotográfica? Sabe de uma coisa, não precisa nem responder. Eu já sei a sua resposta.
― Eu não sei a resposta pra isso ― comecei a rir. ― “Todos” é certeza demais.
― Então você admite que é possível capturar o espírito de Mary Lou.
― Erm… “Improvável” é a melhor palavra.
― Então é isso, ? Estamos ambas presas nesse limbo da dúvida?
― Tô surpresa, Jen. Eu achei que você tivesse convicção, não dúvida. Temos um progresso?
― Regresso. Minha convicção diminuiu depois de não ver nada de anormal nessas fotos. E depois da sua história sobre charlatães vitorianos também ― ela fez uma careta engraçada, me provocando, como se preferisse que eu nem tivesse dito nada para continuar acreditando que ainda encontraria Mary Lou. ― Você por acaso sabe como “minha amiga fantasma” foi morta?
― Sei. me contou.
― Hmm ― ela me olhou rapidamente de soslaio. ― Aposto que contou a história toda errada. Ele é chato igual a você– Igual não, desculpa. Infinitamente mais chato. O que ele te disse?
― Que Mary Lou foi assassinada pelo padre da vila de Oakwood.
― Só isso?
― E que... um outro padre coincidentemente morreu num acidente com um ônibus na rodovia perto da Oyster.
― E ele te falou quando foi isso?
― Aham. Falou que foi numa noite de Halloween.
― Pois é. Coincidências não existem, … ― ela ergueu o dedo indicador e o sacudiu algumas vezes próximo do meu rosto. Soltei uma risada de seu tom ameaçador, como se tivesse me alarmando de algum perigo.
― Agora fiquei interessada. Qual é a história de Mary Lou?
― Eu não sei se você tá preparada pra ouvir isso.
― Anda, Jenna! Conta logo.
― Tá bom… Vamos voltar umas décadas pra trás também, então ― ela pigarreou antes de começar. ― Tinha um garotinho que morava na vila praiana de Oakwood, e todos sabiam que ele adorava visitar o antigo matadouro. Ele ia lá sempre que podia depois de suas aulas no seminário, porque sua verdadeira fascinação era assistir de perto a matança e dissecação de animais. O passatempo dele era caçar lebres e esquilos, pra degolá-los e guardar suas cabeças decepadas dentro da própria boina na cabeça. Diziam que o menino fedia a carne em decomposição. Seus cabelinhos viviam com manchas escorridas de sangue seco.
― Que porra é essa? Não mandaram exorcizar essa criança?!
― O garotinho cresceu, cumpriu seus anos como seminarista e finalmente se tornou um padre. Era a esperança da vila pra que ele se endireitasse e deixasse aquela fase de interesses mórbidos pra trás... mas ele viveu uma vida dupla a partir dali — completamente envolvida no próprio conto, o rosto de Jenna ficava cada vez mais sombrio. O olhar excruciante, atormentado, ainda mais sendo refletido pela iluminação avermelhada daquela salinha. — Ele era inteligente demais. Aprendeu tudo que as pessoas gostavam de ver e ouvir, e assim se tornou o padre mais popular da região. Por outro lado, mantinha um relacionamento secreto com a filha de um pescador de ostras… Mas não era qualquer pescador. O homem tinha ficado milionário quando encontrou não só uma, mas duas pérolas raras poucos meses antes. Não demorou até ele descobrir que a filha estava tendo um caso sério com o padre, então proibiu os dois de se encontrarem para sempre. Não queria que ninguém jamais ameaçasse sua reputação e fortuna.
― Jenna, Jenna... Aonde isso vai dar?
― Calma. Espera eu terminar de contar ― ela tocou meu braço; suas mãos estavam geladas. ― Quando finalmente notaram o desaparecimento da filha do pescador, as buscas policiais começaram. Até que o antigo cheiro de carne podre voltou a pairar por toda a vila… e ele não vinha do matadouro dessa vez. Vinha da capela.
― E aí? O que aconteceu?! ― perguntei, meio agoniada, sentindo um verdadeiro arrepio na espinha.
― Encontraram os restos da mulher no porão da capela, logo abaixo do assoalho… com o corpo sem a cabeça.
― E onde estava a cabeça?!
― Encontraram numa noite de Halloween, dias depois, enrolada numa rede de pesca dentro do barco de seu pai. Mesmo com estágio de decomposição avançada, seu rosto pálido ficou congelado numa expressão de horror. A boca aberta, a testa franzida e… duas pérolas no lugar dos olhos. Brancos e brilhantes. E é por isso que o vulto de Mary Lou é fácil de ser identificado, e até hoje ela clama por justiça.
Fiquei um bom tempo em silêncio, sem palavras, só olhando para Jenna. A imagem daquele cadáver maluco aterrorizou meus pensamentos, e agora ele era uma possível aparição tenebrosa que perseguia as pessoas por aí.
Um frio na minha espinha voltou a me atormentar.
Mas… eu não ia cair nessa assim tão fácil. Finalmente pude sentir meus músculos relaxarem ao ouvir o desfecho daquela espécie de folclore contemporâneo.
― Jen… Você sabe que isso é só uma lenda urbana, não é?
De repente, ela explodiu em gargalhadas. Ficou uns dois minutos só rindo de mim, com uma mão na barriga, e a outra, cobrindo a boca.
― Claro que é! Eu acabei de inventar tudo isso, caramba! ― ela ainda lutava contra as próprias gargalhadas, que continuavam invadindo o ambiente por completo. ― Você… Minha nossa, você tinha que ver a sua cara!
― Eu tô com vontade de enfiar sua cabeça debaixo dessa torneira ― falei com todo o ódio que me cabia. Mas também segurei umas risadas. ― Putz, não sabia que sua mente podia ir tão longe. Deus do céu…
― De qualquer forma, nada me tira da cabeça que aqueles casebres são mal-assombrados. Pode ter certeza disso.
― Tá bom, tá bom… Se você diz ― dei de ombros, de repente sentindo aquela sala escura sufocante demais. Meu cérebro havia chegado no limite da fadiga para continuar argumentando sobre aquele assunto. ― Escuta, tenho aula daqui a pouco. Consegue terminar tudo sozinha? Precisa de alguma ajuda?
― Não, pode ir. Relax. Depois te entrego suas fotos separadas num envelope, ok?
― Ok ― enfim me levantei e alcancei a porta. ― Você tá precisando parar de ver filmes de terror, Jenna. Vai assistir uns episódios de Ursinhos Carinhosos quando chegar no dormitório hoje, tá bom?
Ela só continuou rindo, e eu fechei a porta sem esperar por sua resposta.
Normalmente, eu acharia todo aquele papo divertido, mas, por algum motivo, todos os detalhes do conto mirabolante de Jen foram perturbadores demais para um dia cheio como aquele. Fiquei me lembrando dos velhos bangalôs de Oakwood e todas aquelas tralhas que entupiam os cômodos, mas eu não podia me dar ao luxo de pensar sobre nenhuma historinha sobrenatural. Ainda tinha muitas horas do dia pela frente, muita aula para encher minha cabeça e muito sono para ser combatido.

Só contei os minutos para anoitecer logo e chegar em meu quarto.


🙂🙃🙂


― Você vai no aniversário do PJ essa sexta, ? Vamos juntas? Que horário você acha o ideal para sairmos daqui?
Mal terminei de trancar a porta do dormitório quando cheguei e Sadie já me flechou com suas interrogações. Respirei fundo e, a caminho do meu quarto, respondi:
― Podemos ir juntas, mas não pretendo ser pontual.
― Você nunca é.
Fechei a porta e não me dei ao trabalho de irritá-la de volta. Tomei um banho e coloquei meu pijama, finalmente me sentindo confortável naquela noite. Me joguei de bruços na cama, pronta para tirar o telefone do gancho e fazer a ligação que tanto esperei, mas… Espera aí um minuto.
Eu estava prestes a fazer a maior burrada da história.
Aquele número era da república. E se PJ atendesse?! O que ele pensaria se eu pedisse para falar com dessa vez? Faltava muito pouco para ele descobrir o que estava rolando – meu Deus, faltava quase nada para ele sequer desconfiar –, e esse seria o pior momento e a pior maneira de toda essa merda acontecer. Ele não precisava saber sobre isso, não ainda. Não antes de seu próprio aniversário.
Corri para a sala e encontrei Sadie afundada no sofá, assistindo a um programa de talk show na televisão. Ela girou o pescoço em minha direção, transbordando tédio pelo olhar, como se soubesse perfeitamente que eu estava prestes a lhe pedir um favor.
― Me ajuda numa coisa? ― nem fiz questão de esconder meu sorrisinho amarelo.
― O que você quer?
― Ligar pro .
― E o telefone tá com algum problema...?
― Você já sabe quem mora na república com o Alex, né?
― Sei. Esse loirinho que você tá de rolo e o tal do libanês, “P” alguma coisa.
― Pois é. Eu não queria que o PJ atendesse, porque… ele ainda não sabe o que tá acontecendo entre mim e o loirinho. E não pode saber ainda. PJ tem… uma queda por mim ― senti um incômodo físico ao verbalizar aquilo. Sadie arqueou uma sobrancelha. ― O que não é exatamente um problema, aliás. A questão é que ele anda muito confuso e explosivo esses dias. Não quero que exploda comigo ou com por causa de uma merda ínfima dessas. Ele já está com amizades abaladas demais por enquanto... Tô tentando evitar um caos desnecessário.
― Entendi… ― ela se levantou do sofá, a desconfiança ainda evidente em seu tom de voz. ― E o que você quer que eu faça?
― Preciso garantir que o PJ não atenda minha ligação. Preciso que você ligue primeiro. Se ele atender, peça pra falar com o Alex, que ele passa o telefone pro . Se o Alex atender, peça pra falar com o . Se ele atender, só passe o telefone pra mim.
― Puta que pariu, olha o tumulto que você me mete.
Apesar da má vontade, Sadie simplesmente saiu andando e foi comigo ao meu quarto. Tirou o telefone do gancho e começou a discar os números que, para meu espanto, ela já sabia de cor. Os segundos subsequentes foram de completa tensão, enquanto pude ouvir os toques da chamada ainda em espera.
― Oi! Erm… Quem tá falando? Ah, PJ? ― ela olhou para mim, incerta, como se pedisse ajuda para o resto do improviso. ― Não… Não, é a Sadie… Ah... Aham… Sim, pois é! … Quero, quero sim. Pode passar pra ele, por favor? … Claro… Obrigada.
― Não falei?! ― sussurrei, erguendo as sobrancelhas. ― Eu sabia que a chance era grande de ele atender.
― Oi, Alex ― Sadie sorriu e me ignorou. ― É, na verdade, eu preciso de um favor seu… Não, não… É que a… quer falar com o , ele tá por aí? … Hã? Dormindo? Ah, tá… Espera aí, vou perguntar ― ela tapou o microfone. ― Quer que o Alex acorde o garoto, ?
Putz. Nem estava tão tarde assim. Ele devia estar mesmo exausto.
― Não... Pode deixar ― falei, sem conseguir esconder minha frustração. ― Diz pro Alex que não era nada importante, nem precisa deixar recado. Agradece ele.
― Alex, deixa pra lá, então. Você ouviu? Ela não– O quê? ― depois de alguns segundos tentando entender qualquer coisa, ela finalmente passou o telefone para mim. Eu só o segurei em minhas mãos, imóvel. ― Acho que ele acordou o garoto assim mesmo. Atende aí.
― O quê?! Não! Não era pra–
― Atende, ! ― ela quase socou o telefone no meu ouvido. ― Tchau, vou voltar pra minha TV. De nada.
Sem qualquer alternativa, só murmurei:
― A-Alô?
… Alô?
Dei um sorrisinho involuntário ao ouvir aquela voz, agora pelo menos uma oitava abaixo do que seu tom normal por causa do sono.
― Desculpa, eu não– Eu não queria ter te acordado, .
Eu sei. Foi o Alex ― fez uma pausa e deu um bocejo imenso. ― Ele entrou aqui e me falou que era você no telefone.
― Você… quer voltar a dormir? Eu desligo.
Não… Agora não é minha opção mais interessante ― pude ouvi-lo se remexer na cama. Sorri mais. ― Chegou só agora no Belva Hall?
― Aham. Tem pouco tempo. E você?
Também não tem muito tempo. Sei lá. Tirei um cochilo e parece que acordei setenta e duas horas depois.
Soltei uma risada alta, que acabou fazendo-o gargalhar também.
― Se quer saber, acho que eu preciso dessa exata quantidade de horas pra repor meu sono.
Não, não. Nada de dormir agora. Na verdade... — ele fez uma pausa para se espreguiçar. — De zero a dez, . De zero a dez, qual a chance de você vir até aqui, agora?
― O quê?!
Até aqui no meu quarto. Você entra pela janela se não quiser dar de cara com o PJ na sala.
― Você acordou surtado desse cochilo.
Pude ouvir uma risada exagerada do outro lado da linha. Aquilo me fez imaginá-lo deitado na cama, sem camisa talvez, com o cabelo bagunçado, aquela cara de safado e o sorriso mais lindo do universo para mim. Minha vontade de ir correndo até lá extrapolava qualquer escala que ele pudesse inventar. Mas sentir vontade era algo muito diferente de saciá-la na prática.
Vamos lá. De zero a dez.
― Zero. Tá achando que vou tirar meu pijama pra isso? E ainda escalar um telhado?
riu mais ainda.
Porra, não dava nem pra fingir um interesse?
― Você é idiota demais, sabia? ― fiquei balançando a cabeça, como se ele pudesse ver. ― E o que eu ganharia em troca por todo esse rolê Romeu e Julieta às escondidas?
O que você ia ganhar? Se eu te contasse, isso aqui ia virar pornografia por telefone.
Dei uma risada incrédula.
― Cuidado com o que você me promete como recompensa. Eu vou cobrar depois.
É só vir aqui.
― Eu vou aí no aniversário do PJ, .
Julieta, Julieta, por que me enrolas, Julieta? — a voz mais grossa acompanhava seu típico drama teatral, fazendo minhas gargalhadas tomarem conta daquela chamada. Deixei que meus joelhos cedessem e acabei caindo mole na cama; o fio espiral do telefone se enrolando todo no meu corpo enquanto também ria. ― Inclusive, teremos uma apresentação no mesmo dia do aniversário dele. Já comentei isso, né?
― Sim. Onde vai ser?
No auditório principal mesmo.
― Jura? Caramba, vocês estão ficando muito importantes com esse projeto.
Pois é. Uma banca avaliadora vai assistir, alguns professores além do Sr. Baxter também e outros profissionais da área, que estão sondando estudantes com novas propostas e soluções tecnológicas como a que desenvolvemos. Vai ser aberta ao público geral.
― Que massa! Que horas vai ser?
Cinco e meia da tarde. Se der pra você, aparece lá.
― Eu tenho uma aula nesse horário, mas tento sair mais cedo. Tô super curiosa pra ver você pagando de intelectual.
Vai se foder, ― ele riu. ― Se você for, te dou carona depois até a república pro aniversário do PJ.
― Aquieta sua ansiedade, porque eu definitivamente vou passar no meu quarto antes pra tomar um banho e me arrumar. Apareço lá mais tarde com a Sadie.
Não foi você que quis me ver subindo pelas paredes?
― E eu consegui, não é mesmo? ― usei o meu tom mais presunçoso possível. ― Vou dormir feliz sabendo disso.
Pois é. E ainda sou obrigado a ouvir reclamações.
― E eu a ouvir seus resmungos.
De você eu queria tá ouvindo outra coisa...
― Você tá mesmo empenhado em transformar isso aqui numa ligação de telesexo, né?
A qualquer momento.
― Vai voltar a dormir, .
Eu já estava ficando mais do que acostumada a ouvir as risadinhas orgulhosas dele. Ao menos era isso que ele parecia, orgulhoso, por me tirar o tempo todo do eixo. Era seu esporte favorito. A ligação ainda durou tempo o suficiente para jogar aquele jogo mais algumas vezes, até alguém bater em sua porta e chamá-lo para jantar.
Depois de desligarmos, decidi nem pensar muito. Sobre nada.

Se pensasse, eu iria enlouquecer.


🙂🙃🙂


As luzes do prédio de Artes e Design já estavam todas acesas, foi quando me toquei que a noite dava lugar ao dia muito mais rápido do que pude prever. Mesmo com mais de uma hora de atraso para a apresentação no auditório, estava fora de questão matar a aula de Transmídia agora. Eu era mestre em vagabundear todo início de ano letivo, o que sempre me deixava com a corda no pescoço na segunda metade dos semestres. Nunca tive tanta vontade de esganar a do passado como agora.
O professor ainda quis estender a aula por mais dez minutos intermináveis. Ele adorava emendar um caso trágico no outro: primeiro, o de sua tia que teve uma crise de bronquite asmática no meio de um velório; em seguida, o de seu Poodle que foi parar no veterinário semana passada depois de engolir uma meia. Assim que deu a notícia que todos ficaram bem no final, não teve um aluno sequer que não correu para fora da sala. A gente se espremia na porta, quase como se estivéssemos evacuando de uma sessão de tortura.
Fui direto para o banheiro dar uma checada no espelho e passar uma água no rosto antes de dar as caras numa palestra tão importante. Pelo amor de Deus, por que eu nunca tinha um rímel dentro da bolsa?! O jeito era dar uns tapinhas nas bochechas e forçar uma simpatia com meu sorriso, porque, depois das seis da tarde, disfarçar o cansaço dos olhos era impossível.
O hall do prédio principal da Oyster estava vazio e silencioso. Porém, quando abri os portões acústicos do auditório, meus ouvidos foram invadidos pelas vozes que saíam dos alto-falantes. Também me assustei com a quantidade de pessoas; de tão grande, aquele espaço raramente atingia sua lotação máxima. Quase não havia poltronas vagas. Me sentei sozinha numa das últimas fileiras, me esgueirando para não chamar a atenção de ninguém, porque estavam todos super concentrados no que acontecia no palco lá embaixo.
Quem falava ao microfone era um dos professores da banca avaliadora, provavelmente fazendo suas considerações finais. Fiquei meio triste de não ter conseguido assistir tudo, mas eu já sabia que isso aconteceria. Paciência.
Senti orgulho dos dois bonitinhos parados naquele tablado, com a apresentação já concluída, recebendo com muita serenidade todas as críticas que os avaliadores faziam. Em certo momento, PJ descruzou os braços para responder um questionamento que lhe foi feito, e foi a vez de sua voz ecoar pelas caixas de som. Ele vestia uma camisa social assim como , ao seu lado. Engraçado que, mesmo usando roupas mais formais, conseguia ficar muito mais despojado que o amigo. PJ estava mais engomadinho e umas dez mil vezes mais preocupado, em estado de alerta – mas só porque eu o conhecia o suficiente para perceber. Seu cabelo estava preso num coque alto e estiloso; sua expressão séria e dicção perfeita passavam credibilidade no que ele dizia.
Por outro lado, não precisaria muito mais do que aquela camisa social com as mangas dobradas até os cotovelos para fazer meu coração dar um pulinho. Um não, vários. Com uma mão no bolso, ele encarava o chão, compenetrado, como se aguardasse o fim do pequeno debate que tinha se instalado ali antes mesmo de eu ter chegado.
O homem chato da banca insistiu em pegar no pé do PJ, até que voltou suas atenções para ele e resolveu respondê-lo também. Pude ouvi-lo discorrer sobre vários detalhes técnicos e argumentos mais pragmáticos. Em menos de cinco minutos, o assunto sobre coisas tecnológicas que eu não entendia finalmente se encerrou.
Depois que o auditório se encheu de aplausos, aos poucos o pessoal começou a se espalhar em direção à saída. Fiquei parada no lugar, pregada em minha poltrona sem saber o que fazer. Resolvi esperar até que visse alguém conhecido, que obrigatoriamente passaria por mim para chegar aos portões logo atrás. Com aquela multidão em pé, não consegui enxergar mais nada à minha frente.
À medida que o auditório foi se esvaziando, percebi que as pessoas restantes subiam ao palco para cumprimentar os meninos e o Sr. Baxter. Uma pequena aglomeração de outros professores e alguns executivos se formou por ali, quase todos ao redor deles. Depois eu tinha que me lembrar de perguntá-los como tudo tinha ocorrido, porque definitivamente fiquei curiosa sobre o sucesso daquele projeto.
De repente, meu pequeno transe de tédio foi quebrado quando avistei uma garota caminhando até os dois. Não foi difícil notá-la – além de me parecer familiar, ela cumprimentou PJ com um aperto de mão, e , com um abraço. Nem parecia que era PJ o aniversariante da noite. E ela não era a Renée, eu tinha certeza. Se fosse, eu já teria atirado um sapato no meio deles naquele exato momento.
Mentira.
Eu me levantaria e iria embora, 50% derrotada e 50% de saco cheio. E, pelo tempo que eles ficaram abraçados, a minha vontade se tornou exatamente essa.
Juntei minhas coisas e realmente me levantei, girando os calcanhares para me dirigir à saída. Se tinha uma coisa que eu morria de preguiça era lidar com esses rolos vai-e-vêm inusitados do , muito menos estar no meio deles. Porque eu não conhecia quase nada de seus outros círculos de convívio fora o que eu estava inserida.
Agora eu era um desses rolos, não era?
, você também veio! — reconheci a voz de Alex e tive que me virar para olhá-lo. Ele vinha andando até mim enquanto se desviava de outras pessoas.
— É, cheguei no finalzinho... — não deu pra conter a minha cara de emburrada. — Você conseguiu acompanhar tudo?
— Mais ou menos, cheguei mais pro final também. Eu tava sentado aqui perto.
— Jura? Se eu tivesse te visto, teria ido até você.
— Nem se preocupe. Não tinha nenhum lugar vazio ao meu lado.
— Impressionante como aqui lotou hoje, não é?
— Pois é… — ele fez uma pausa para observar aonde eu pretendia ir: a saída. — Vou descer até lá, não quer ir também? — fez uma menção rápida para eu acompanhá-lo na direção contrária.
— Ah… — a pausa que fiz, por sua vez, foi puramente dramática. Eu estava um caco, nem chegava aos pés da tal garota que foi até lá dar um abraço caloroso em . Não vim preparada para abraçá-lo, muito menos estar sob os holofotes daquele palco. A verdade era que minha melhor posição era ficar bem ali onde eu estava: de longe. — Ah, agora não. Preciso voltar logo pro Belva Hall.
— Tem certeza…? — Alex deu uma risadinha estranha. — Acho que você não tem mais como fugir...
— Do que você tá falando?
Ele só indicou com o dedo lá para baixo, me fazendo girar o pescoço na mesma direção. Foi quando vi olhando diretamente para nós. Seus olhos, seu corpo, todos apontados para… mim? Àquela distância? Meu coração até parou de bater, porque era como se ele já tivesse me notado ali há muito mais tempo do que eu tinha imaginado.

Caramba. Me olhando daquele jeito, realmente não tinha mais para onde fugir. Fui até ele.



Eu ainda estava me sentindo meio avacalhada, mas não era como se já não tivesse me visto assim antes – muitas vezes, inclusive. O problema era que ele estava lindo pra porra com aquela camisa social branca. Ele estava pronto para ir à cerimônia do Oscar, enquanto eu estava perfeita para uma feira de domingo.
Com Alex em meu encalço enquanto descíamos os degraus, pude interrogá-lo sobre a garota ao lado de , que eu jurei já ter visto de algum lugar. Acontece que ela era a tal amiga da Renée que pegou o táxi com a gente. Tess, o nome dela. A investigadora de ex-namorados. Ou seja qual for o rótulo irrelevante daquele relacionamento problemático, graças ao céus bem estacionado no passado.
A garota tinha o cabelo loiro escuro e escorrido; os olhos eram pequenos como o resto de seus traços irritantemente delicados. Suas roupas estavam formais como o evento pedia, mas ela nem era uma palestrante ou coisa do tipo – só fazia parte da plateia, assim como eu. Ela parecia uma primeira-dama com aquela camisa social pra dentro da calça e um cinto afivelado. A cópia de uma Barbie executiva.
Tess agora batia um papo com PJ e, quando subimos no tablado e nos aproximamos dele, ela se afastou para que pudéssemos cumprimentá-lo também. Dei-lhe um abraço rápido, desejei parabéns e aquela coisa toda. Ele estava muito eufórico, trêmulo, distraído. Me agradeceu falando cinquenta palavras por segundo, além de quase me esmagar quando retribuiu meu abraço.
Quando o deixei conversando com Alex, finalmente caminhei sozinha até , logo atrás. Ele já estava com aquele sorrisinho filho da mãe no canto dos lábios, me esperando. Estava muito enganado se pensou que eu ia lá puxar o saco dele ou qualquer coisa do gênero. Parei em sua frente e cruzei os braços.
— Tô terrivelmente atrasada, eu sei... Acabei de chegar, então não faço ideia do que rolou aqui hoje — sacudi os ombros —, ou o que todos esses professores e empresários disseram. Tenho certeza que vocês arrasaram, mas eu detesto ficar paparicando.
Ele soltou uma risada alta e trocou o peso dos pés. Seus olhos eram meus cúmplices, o suficiente para eu saber que podia ser sincerona com ele à vontade. Algo me dizia que também sabia que Tess estava de orelhas bem atentas naquele momento, porque ela era a única pessoa que eu ainda podia ver pela minha visão periférica.
— Quer dizer então que sua agenda anda muito lotada pra mim? — perguntou mais baixo e levantou o queixo, fingindo ser a pessoa mais importante daquele lugar.
— Pois é, eu ainda vou ter que checar se tem uma vaga pra você hoje à noite.
— Ah, claro. Posso até imaginar — ele ironizou com força total. — Quem será que tá disputando essa vaga comigo? Eu, eu, eu e um monte de coraçõezinhos?
— Você quer um soco na cara ou um pisão no pé? — tentei segurar, mas acabei deixando meu sorriso contrariado aparecer. já estava rindo de novo. — E pra sua informação, minha agenda não tem seu nome reservado em todas as páginas.
— Tem em uma, pelo menos? Na data de hoje, mais especificamente?
— Tem, mas tá escrito “insuportável irritante” nela. Sem corações.
Como eu odiava quando ele ficava me testando daquele jeito.
“Odiava”.
O pior era que ele também me testava sem nem perceber – tipo quando abria um sorriso convencido e desviava o olhar lentamente, como agora. Além de dar mais um passo adiante, seus braços também se cruzaram na frente do peito, o que me fez levantar um pouco o pescoço para olhá-lo nos olhos. Ficamos os dois naquela posição defensiva sem motivo nenhum. Talvez cientes do duelo idiota que sempre criávamos e preenchia o ar.
Eu ainda me segurava para não quebrar minha pose e rir da situação, mas acabei relaxando os ombros e passando as mãos pelos cabelos. Afinal, era muito merecedor de todo aquele reconhecimento, e minha vontade mesmo era estourar um champanhe e fazer um estardalhaço em comemoração, mas eu ainda estava muito contida. Dava para ver naquela carinha linda o seu olhar de alívio, de dever cumprido. Todo o estresse tinha valido a pena, e eu sabia desde o início que valeria.
— Olha, desculpa mesmo por aparecer aqui tão tarde — soltei a frase junto com uma grande quantidade de ar, assumindo uma franqueza repentina. — Tive uma aula que não deu pra faltar. Eu juro que queria estar pelo menos mais apresentável agora, porque-
— Obrigado por ter vindo, — ele me cortou, com mais seriedade na voz. Seu olhar era tão doce e sincero que eu me amoleci por completo. Tive a segurança que, para , minha aparência naquele momento era um detalhe sem a menor relevância.
— Bom… Eu disse que não ia perder você dando uma de intelectual hoje — dei uma piscadinha rápida —, e agora de roupa social. Nunca teria me perdoado se eu desperdiçasse essa oportunidade.
— Hmm… — ele sorriu de lado, nem um pouco impressionado. — Bom saber, porque tem uma outra oportunidade que você tá jogando fora nesse exato momento — descruzou os braços e encurtou ainda mais a distância entre nós. Entretanto, por puro reflexo, dei dois passos para trás.
— Eu até te daria um abraço — sussurrei —, mas temos uma agente do FBI bem ao nosso lado.
nem se preocupou em olhar para a direção à qual eu me referia, onde Tess estava plantada. Deve ter entendido de imediato. Ele simplesmente manteve os olhos em mim, em silêncio.
— Então vai logo pro Belva Hall, antes que eu te leve pra república agora mesmo.
Depois daquela exigência disfarçada de pedido, saí praticamente rebolando do auditório, vestindo nos lábios um sorriso presunçoso maior do que minha própria cara.

Quem diria que ele estaria muito mais ansioso do que eu.


🙂🙃🙂


Deus sabe o quanto demorei no meu banho. Deus e Sadie, que já estava berrando lá da sala sobre como eu estava atrasada. Nem me preocupei, porque apenas ela tinha se comprometido com um horário de chegada que ninguém combinou.
Quando finalmente terminei de me arrumar, não eram nem nove horas da noite e minha colega de quarto estava tirando um cochilo no sofá enquanto me esperava. Só acordou quando eu balancei as chaves do dormitório próximo ao seu ouvido.
— Aleluia! — Sadie se pôs de pé e veio até mim, quase como uma múmia levantando da tumba. — Hmm… Você até que tá bonitinha, .
— Você também não está nada mal, chatinha — fiz uma careta para provocá-la.
— Vamos logo, porque meu fuso horário é o oposto do seu — ela foi me empurrando porta afora. — Quero voltar cedo.
Eu ainda tinha que conviver com as vontades de uma idosa.
Assim que descemos para a rua, pegamos um táxi que cumpriu sem delongas o curto trajeto até o bairro das repúblicas. Ali, já em frente à casa dos meninos, pudemos ouvir várias vozes exaltadas vindas lá do quintal, onde provavelmente estavam todos reunidos. Mas a primeira coisa que senti foi o cheiro delicioso de carne defumada.
Antes de tocar a campainha, dei uma última ajeitada no meu vestido preto e curtinho que coloquei por cima de uma T-shirt branca. Ele era leve e casual, com alcinhas finas e a barra na altura dos joelhos. As mangas da camiseta por baixo estavam frouxas demais, então pedi para Sadie dobrá-las duas vezes. Quando ela chegou perto de mim para fazer isso, também encheu meu perfume de elogios.
Hoje ia chover canivetes.
Quem atendeu a porta foi Alex, que mal gastou dois segundos para olhar para mim – suas atenções foram todas direcionadas à garota ao meu lado. Depois que nos deu passagem para entrar, ele e Sadie se fundiram num mundinho particular depois de se cumprimentarem.
Fui ignorada por completo.
O pior é que eles nem se encheram de beijos nem nada. Os dois só ficaram vidrados um no outro e engataram uma conversa aleatória. Eles tinham assuntos infinitos, principalmente sobre filmes de ficção científica, política internacional e lasanha. Eram apaixonados por lasanha. Sadie nunca mais calou a boca sobre a lasanha de frango do Alex desde que começaram a sair.
A radiola na estante da sala já estava rodando um disco de vinil, e a música que tocava poderia ser a trilha sonora daquela república. A casa respirava rock n’ roll dos anos setenta, principalmente as clássicas de bêbados.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Psycho Killer – Talking Heads

— Ei, ! — vi PJ me chamando da cozinha. — Chega mais!
Atrás da bancada que dividia os dois cômodos, avistei em seu habitat natural: jeans, camiseta de malha com alguma estampa grunge e uma blusa xadrez de flanela por cima, com mangas longas e os botões abertos. Estava distraído enquanto conversava com Tess, do outro lado da bancada, de frente para ele.
Me aproximei apenas de PJ, já sentindo um pouco da minha paciência decolando para o espaço.
— Ei, feliz aniversário de novo — falei, já que ele estava com os braços abertos em minha direção. Quando me abraçou, até tirou meus pés do chão. Estava todo felizinho com a conclusão de seu projeto no mesmo dia que completava mais um ano de vida. — E parabéns por hoje!
— Obrigado! — ele me soltou. Em seguida, me guiou até a geladeira. — Olha, pode escolher o que quiser e aproveitar. Não é todo dia que essas prateleiras carregam tanto peso.
Quando abriu a porta para mim, orgulhoso do que tinha ali dentro, vi uma imensa quantidade de latinhas de cerveja, energéticos e gins tônicas. Até tentei escolher alguma, mas não consegui prestar atenção em nenhum rótulo – meu radar estava antenado demais no papo entre Tess e , e eu estava me odiando totalmente por isso. Acabei pegando uma lata de qualquer coisa e me virei outra vez.
— Vem cá pra você ver isso aqui também — PJ abanou a mão para me chamar, então segui para onde os três estavam. — Olha só o puta presente que ganhei.
Ganhamos o corrigiu, enquanto desenroscava a tampa de um potinho de vidro e o aproximava do nariz. Ele inalou o cheiro daquilo e, extasiado, fez uma cara de quem tinha chegado nas nuvens.
Eu não precisava nem enxergar para saber o que tinha ali dentro.
— Tentem não deixar num ambiente muito úmido — Tess explicou. — Esse foi um cultivo especial. São buds* lindos, frescos e saudáveis. [Buds são as flores da maconha, ou seja, é mais pura e artesanal. Foi autocultivada, logo não foi prensada, por isso é mais cheirosa, forte e pode proporcionar uma experência mais... interessante.]
PJ tomou o vidrinho da mão de e fez o mesmo: sentiu o cheiro e só faltou gemer.
— Vamos bolar um agora mesmo? — ele sugeriu, e o encarou com uma sobrancelha arqueada.
— Se você não tivesse quebrado a porra da minha piteira de vidro, a gente estaria chapado há muito tempo.
— Nhé-nhé-nhé. Fresco do caralho.
— Ah! Pode ficar com a minha — a loira prontamente tirou uma de seu bolso, dentro de um case. só olhou para ela. — Vamos, pode pegar.
— Não, não precisa, eu não falei sério-
— Sem essa! — Tess colocou o negócio na mão dele. — É só mais um presente meu por hoje.
Ele balançou os ombros e finalmente aceitou, guardando a piteira no bolso de sua camisa de flanela. Pelo visto, aquela garota estava cheia de presentinhos para distribuir hoje. Pois eu não acreditei nem por um minuto naquela generosidade toda. Essa Mamãe Noel de araque estava recheada de segundas intenções, e não era burro o suficiente para não perceber.
— E você? Quem é? — demorei a me ligar quando ela finalmente colocou os olhos em mim. — Amiga do PJ?
— Essa é a — o dito-cujo passou um braço ao redor dos meus ombros. — Encontramos ela perdida em Bricktown ano passado e resolvemos adotá-la para sempre.
Forcei um sorriso, rezando para que fosse suficiente. Não consegui pensar em nada para completar aquela resposta.
— Ah! Eu lembro de você no luau — Tess levou um dedo ao próprio queixo, pensativa. — Você tava no táxi com a gente, não tava?
— Aham — foi só o que consegui dizer. Ainda estava receosa com a nova sessão de perguntas que estava por vir.
— Eu lembro de você no luau... — ela repetiu, viajando na maionese, como se estivesse revendo a cena em sua cabeça. — Você tava super linda! Ei, vem cá.
De repente, a garota deu a volta na bancada, agarrou minha mão e me puxou para um outro canto da sala. Sem dizer uma palavra, ela simplesmente parou ao meu lado e começou a desdobrar uma das mangas da minha camiseta. Depois, parou do lado oposto e fez a mesma coisa com a outra manga.
Só fiquei estática, sem mover um músculo ou fio de cabelo. Meu corpo não conseguiu produzir uma reação sequer diante de um combo tão grande de folga e audácia em uma única pessoa.
— Pronto, agora sim — ela se pôs na minha frente, limpando uma mão na outra. Estava satisfeita em ter invadido meu espaço pessoal e mudado o jeito que eu tinha escolhido deixar a minha roupa. Foda-se a noção. — Eu faço Design de Moda aqui na univesidade e sou consultora de imagem e estilo nas horas vagas. E deixa eu te contar… mangas dobradas é tão ano passado, amiga... Desse jeito ficou bem melhor. Você ficou mais linda ainda!
Se eu estivesse com um copo de vidro na mão, ele se estraçalharia em mil pedaços agora mesmo.
— O-Obrigada…
“Vai se foder, Tess.”
— E-Eu vou…
“Vai se foder, Tess.”
— Eu vou me lembrar disso da próxima vez. Obrigada, Tess.

Eu acabei de levar a porra de uma multa da polícia da moda?!


🙂🙃🙂


Liberdade. Deslizei aquela porta de correr que dava para o quintal da casa como se eu estivesse diante do meu caminho para a liberdade.
Depois de ter me alugado por mais de trinta minutos, Tess foi buscar algo para beber na cozinha. A sessão de perguntas veio exatamente como previ, e não consegui de jeito nenhum espantá-la para longe com minhas respostas curtas e genéricas. Ela queria mais. Essa garota não ia sossegar enquanto não descobrisse alguma coisa bombástica sobre minha vida para contar para a Renée.
Que pena. Meu auge foi ter almoçado um Big Mac na semana passada. Era essa a manchete que ela teria, porque sobre eu não ia revelar nada.
Jurei que fosse impossível me livrar da falazada daquela ditadora de looks, que aproveitou cada oportunidade para fazer um comentário sarcástico sobre algo que me tornava diferente dela. Como se tentasse me superar em uma simples conversa. E ela não precisava dizer nada explicitamente; eu podia, sem dúvida, sentir seu julgamento ou olhares de desaprovação. Allison me deixou craque em perceber esse tipo de coisa depois de bons quatro anos.
Lá fora, a maior parte das pessoas estava reunida nos bancos em torno da comprida mesa de madeira. PJ e uns amigos estavam grelhando espetos na churrasqueira elétrica, e uma galera mais tímida estava dispersa no gramado. Uma delas era Sadie, que ainda estava de conversinha com Alex. Porém, quando me viu, ela abanou a mão para me chamar de um jeito meio desesperado.
Caminhei até o casal e parei na frente deles.
— seu rosto se aproximou um pouco do meu, a voz saindo num sussurro exaltado. — Por que raios aquela garota tá fingindo que é sua amiga?!
Dei uma espiada por cima do meu ombro e vi Tess ali fora também, passando direto por nós e indo se sentar com os meninos na mesa. Suspirei, sentindo minha irritação se transformar em cansaço.
— Sei lá. Eu não tô entendendo mais nada.
— Alex, sua vez de sanar nossas dúvidas — Sadie se virou para ele. — Quem é ela, hein?
Foi a vez de Alex soltar um suspiro muito parecido com o meu.
— Nem precisa responder — falei antes dele. — Eu tenho uma teoria e quero que você me comprove.
— Ok, vai em frente — ele deu de ombros.
— Tess é amiguinha da Renée que eu sei. E também sei que essas garotas ainda são próximas do , porque eu vi todas de gracinha com ele no lual. Ele me fala que não tem nada a ver, mas eu realmente não sei se...? Enfim, isso não vem ao caso. A gente pegou um táxi juntos de volta pra Oyster, super do nada, e a Tess estava lá, nos fazendo perguntas sem parar. Muito curiosa pro meu gosto. Ela tá investigando o que o tá fazendo pra contar pra Renée, disso eu tenho certeza. Esse tipo de serviço que fazemos pra amigas é comum, mas não tão descarado igual ela faz. É isso que tá me tirando do sério.
— Não... Nada disso! — Alex quase engasgou quando riu. — A Tess é interessada no mesmo. Sempre foi. É meio que um conhecimento geral de todos, inclusive da Rennie. Provavelmente- Quero dizer, obviamente ela ficou sabendo que a Rennie ficou fora da jogada e agora reapareceu pra tentar uma aproximação com o de novo.
… Putz.
Eu sempre me esquecia da existência de amigas fura-olho. Eu mesma já tinha levado esse golpe antes e fui incapaz de pensar na hipótese.
— Então… não tem nada dessa história de ela averiguar o território pra Renée...?
— Nah. O território é pra ela mesmo.
— E por que ela tá colada em mim, caralho? O que ela ganha com isso? Não faz o menor sentido.
, sabe aquela frase… — Sadie cutucou meu braço de leve. — “Se não pode com eles, junte-se a eles”? É mais ou menos por aí.
Caramba, quando ela me disse aquilo, tudo finalmente ganhou o mínimo de coerência. Então, meu último fio de paciência se rompeu. Um dinamite explodiu dentro de mim. Eu não queria lidar com essa merda. Eu não tinha que lidar com essa merda.
Não falei mais uma palavra e saí marchando pelo gramado, me afastando cada vez mais deles. Fui em direção à mesa de madeira, agora com raios laser saindo dos meus olhos, que torravam uma pessoa em específico no meio daqueles caras risonhos e escandalosos: .
Ainda bem que não precisei chegar mais perto – por coincidência, ele também se levantava do banco para fazer alguma outra coisa. Com uma lata de Red Bull na mão, parou de andar assim que me viu.
— Posso falar com você? — questionei sem cerimônia.
— Hmm? — ele tomou um gole e continuou seu caminho até mim. — Tem algo errado?
— Tem — suspirei, agora consciente da minha nítida cara de enfezada. Me lembrei de como ele sempre notava isso. — É mesmo impossível esconder alguma coisa de você, não é?
— Essa culpa é sua, lembra? — sorriu, o que por um triz não me tirou do foco.
— Pois é. Lembra quando eu também te disse que eu não queria ficar no meio de nada? — fui bem séria e enfática. E esperei que ele entendesse que com “nada” eu queria dizer “ninguém”.
— Você não-
De repente, um cara aleatório surgiu atrás dele e simplesmente pulou em suas costas, jogando todo o peso do corpo em e enroscando os braços ao redor de seu rosto e pescoço. perdeu o equilíbrio e acabou derramando toda a bebida de sua lata no meu vestido, o que me fez querer estrangular o maluco em cima dele. Por puro reflexo, até recuei alguns passos, ainda assustada – mas o estrago já tinha sido feito.
— Puta merda, Connor! Vaza daqui, porra! — ele ficou cada vez mais puto enquanto se contorcia e tentava tirar o amigo de cima. Connor caiu de pé no chão e começou a rir feito um doido. — Olha o que você fez. Qual seu problema?!
Então, quando achei que nada poderia piorar, Tess se teletransportou de onde estava e apareceu ao meu lado, com todo aquele alvoroço.
— Meu Deus! O que fizeram com você? — e, mais uma vez naquela noite, ela me agarrou pela mão e começou a me puxar para dentro da casa. — Vem cá, vou te ajudar.
Não tive tempo de reagir. Não tive tempo de pensar. Não tive tempo de fazer nada.
Quando vi, estávamos as duas dentro do banheiro social do primeiro andar. A loira fechou a porta atrás de si e pegou uma toalha de rosto, embolando a ponta do tecido em uma das mãos.
Depois de molhá-la debaixo da torneira, se agachou na minha frente e começou a esfregar a barra suja do meu vestido.
Aquele banheiro era tão pequeno quanto o do meu dormitório; dividir o espaço com Tess o tornava menor ainda. Mesmo se eu quisesse sair correndo dali, teria que brincar de pula-carniça para ultrapassar a garota. Segurei minha própria cabeça e joguei o pescoço para trás, mas não consegui conter meu estresse acumulado.
Bufei feito um leão indomável.
— Eu sei, , eu sei… Sei como manchar a roupa pode ser o fim do mundo.
Quando a ouvi falar, nem acreditei. Até me preparei para o que vinha a seguir, mas por algum motivo fui tomada por uma súbita paz. Uma estranha calma. Uma plenitude inesperada. Como se eu tivesse atingido uma falha de sobrecarga, e o que veio a seguir foi um estado de emoções nulas. Meu lado racional tomou o controle total e passou a governar meu corpo.
— Connor é a pessoa mais desastrada e inconveniente que existe, não tem jeito — ela continuou a comentar e, diante da minha falta de resposta, ergueu o olhar para mim e verificou minha cara de nada. Apenas minhas duas sobrancelhas estavam levantadas. — Você não conhecia o Connor? Ele é, tipo, o melhor amigo do . Achei que soubesse disso.
— Achei que fosse o PJ — devolvi.
— Não… Os dois vivem discutindo. São muito diferentes — Tess voltou a se concentrar no trabalho em meu vestido.
— Tá legal, vamos ser honestas agora — comecei, olhando fixamente para ela, mesmo que não estivesse mais me retribuindo naquele momento. — O que você tá tentando fazer?
— Tô te ajudando, oras — soltou uma risadinha nasalada.
— Não. O que realmente você tá tentando fazer.
Por um breve instante – um segundo apenas –, Tess parou com o esfrega-esfrega. Um segundo insignificante, mas o destruidor de seu ritmo tão metódico. Havia um abismo ilógico entre a tranquilidade de suas palavras e suas ações.
— Você tá saindo com o ? — ela disparou, o que, para falar a verdade, me pegou de surpresa. Achei que aquele jogo seria jogado por muito mais tempo. Até demorei um pouco para responder.
— … Tô.
A garota voltou a friccionar meu vestido com a toalha, dessa vez com um pouquinho mais de força. Alguém do lado de fora deu toques leves na porta, mas nenhuma de nós se atreveu a direcionar nossa atenção para ruídos externos.
— Mais um rolo dele, que novidade… — o desdém era nítido, e ela ainda carregava um ar de superioridade e convicção no que dizia. — Mas tudo bem. Eu sei que não é nada sério ou relevante, ainda mais agora.
Os toques na porta começaram a ficar mais altos.
— Como você fala com tanta propriedade sobre uma coisa que você não tem absolutamente nenhum conhecimento?
Os toques viraram batidas estrondosas.
— Eu não tenho conhecimento? — Tess finalmente me olhou de novo, dando outra risada indiferente. Em seguida, se levantou e ficou a uns dois palmos de distância do meu nariz. — Ele que me disse isso sobre vocês.
A porta, que já estava sendo praticamente espancada, por fim se abriu de supetão e revelou Sadie do outro lado, que chegou entrando ali dentro como um tornado. De algum jeito ela se enfiou no meio de nós e obrigou Tess colar as costas na parede de azulejos para lhe dar passagem.
— Dá licença e muito obrigada, eu acho que você já fez um excelente trabalho de limpeza por aqui — ela segurou minha mão, mas sem tirar os olhos furiosos da outra garota. Em seguida, me puxou para fora do banheiro tão rápido quanto entrou. Andamos um pouco pelo corredor, até Sadie abrir a portinha embaixo da escada e nos colocar ali dentro, praticamente o quarto do Harry Potter. O cômodo completamente escuro era menor ainda – um armário cheio de roupas e caixas que mal comportava nós duas, mas nem me incomodei. Pelo contrário, ali eu poderia hiperventilar sem precisar me conter. Durante o tempo que ficamos caladas, ouvimos Tess dando um clique no interruptor do banheiro e saindo de lá.
A porta do armário tinha frestas em toda sua altura, e eu só podia ver Sadie através da luz fraca que passava por elas. Ela começou a sussurrar:
— Pode me explicar que droga aconteceu naquele banheiro?!
— Também não tenho a menor ideia — eu cochichava, mas a vontade era de berrar. — Só sei que tô com vontade de enfiar minha sororidade no cu.
— O quê? O que é isso?
— Nada. Uma palavra que a Jenna me ensinou — enquanto eu falava, foi inevitável repassar todas as palavras de Tess na minha cabeça, e assim minha ansiedade atingiu seu pico. — Não tá dando, Sadie. Eu vou embora-
— Espera aí — ela me segurou pelos ombros antes que eu fizesse qualquer movimento para sair dali. — Você levou a sério o que essa aloprada te falou?
— Você ouviu?
— Cada vírgula.
— Pois é, não foi ela que disse tudo aquilo. Foi ele! — eu lutava para não elevar meu sussurro. — disse pra ela.
— Ela inventou isso, ! Acorda! Até parece que alguma palavra do que ela disse é verdade, sua idiota.
— E por que ela faria isso? Sair inventando essas coisas?!
— Pra ver se você desiste e caga com tudo! Pra ver se você mesma destrói o que tem com o e deixa a zona livre pra ela. Pelo amor de Deus, não cai nessa, né? Se ela já sabia que vocês estão saindo, então por que te perguntou? Ela só quer te atormentar! Você é uma cabeça oca mesmo, . Vai lá fora e veja com seus próprios olhos o garoto te procurando que nem um desesperado — ela girou a maçaneta e me deu um empurrão para fora. Em seguida, começou a dobrar de volta cada uma das mangas da minha T-shirt, assim como fez quando chegamos. — Pode deixar que eu vou pedir o Alex pra sumir com essa songamonga daqui. E se ela te encher o saco mais uma vez, eu venho correndo.
Pasma, só fiquei parada no meio do corredor enquanto Sadie dava seus passos marcados de volta para o quintal. No meio do caminho, inclusive, ela quase trombou com , que por acaso vinha na direção oposta e passava pela porta de correr naquele exato momento. Ela apontou com o polegar para onde eu estava, depois saiu; ele entrou na casa e ficou me procurando com o olhar.
Quando me encontrou, veio andando até mim na maior calma. A calma que eu precisava pegar emprestado todos os dias da minha vida.
— Tá fazendo o quê aqui? — ele riu e, mesmo quando chegou mais perto, não parou de se aproximar. — Desculpa por aquilo — deu um beijo na minha testa, me puxando de leve pela cintura só com uma mão.
Eu definitivamente não estava esperando por aquele gesto. Meu coração se derreteu com o imprevisto, o que me fez envolver os braços ao redor de seu tronco, só para não deixá-lo ir. deu outra risadinha, talvez até surpreso com minha atitude. Senti que ele tentou abaixar o queixo para me olhar, mas eu estava com o rosto enterrado em seu peito.
— O que foi, ?
— Nada.
Ele me abraçou de volta, e assim ficamos por alguns segundos em silêncio. Era engraçado como eu podia ouvir as batidas de seu coração e, ao mesmo tempo, sentir o meu desacelerar um pouco. Era simples como eu cabia em seu abraço, e inexplicável como seu cheiro não era mais só um perfume. Era estranho perceber que eu não sentia mais nervosismo perto dele, eu só sentia… conforto.
Algo que nunca senti antes.
— Se eu descobrir que você tá me fazendo de otária, eu quebro a sua cara, — minha voz saiu abafada, mas ele começou a rir baixinho.
— “Hmmph hmmph, hmmph hmmph, .” Foi isso que eu ouvi.
— Até parece — desfiz o abraço e ergui o olhar para ele. — Você ouviu bem.
— Eu sei o que tá rolando. Vai, me conta que minhoca a Tess tentou botar na sua cabeça.
— Deixa pra lá. Eu não acredito mais nela.
E não acreditava mesmo, o problema era que ela já tinha conseguido plantar uma sementinha do mal na minha cabeça: a autossabotagem.
— Escuta. Você não tá no meio de ninguém, . Pra ela, você tá — ele balançou os ombros. — Não pra mim.
Abri um sorriso discreto e silencioso. Assim como eu, era incapaz de esconder seu humor e, acima de tudo, sua sinceridade. Eu estava feliz que o único joguinho que existia entre a gente era o que sempre nos fazia rir, e não o tipo que gerava estigmas, inseguranças e carência.
— Pode voltar pra lá — avisei, empurrando-o de leve, mas não fez a menor diferença. Ele continuou imóvel. — Tá tudo bem, eu não me molhei tanto assim — quando percebi o que tinha acabado de dizer, já era tarde demais. A cara dele se tornou o espelho do caminhão de malícia que passou por sua cabeça. — SSHHH!
— Eu nem disse nada… — sorriu feito um anjo de candura, mas eu já o conhecia demais. Não havia um pingo de inocência em sua voz, muito menos em seu olhar.
— E nem vai dizer. Anda, seus amigos estão te esperando.
— E eu tô esperando eles vazarem.
Parei de tentar empurrá-lo quando deixei escapar uma risada. Fechei brevemente os olhos, depois o encarei de novo.
— Se quer saber, eu também tô — respirei fundo, fingindo impaciência enquanto soltava aquela verdade. — Não vejo a hora dessa festinha esvaziar e sobrar só… só…
— E sobrar só eu pra você, não é? — ele deu mais um passo na minha direção e segurou meu queixo com os dedos. — Eu tô cansado de você me pintar como o único safado entre nós dois aqui.
— Cansado, mas já? Eu mal comecei — tentei atiçar, mas, no próximo segundo, perdi toda a compostura quando ele colou o corpo outra vez no meu e ficou a milímetros de encostar a boca na minha.
— Ah, sei. Faço ideia quando começar, então — seu deboche veio como um sopro nos meus lábios. Seus dedos deslizaram até as laterais do meu pescoço, onde ele segurou com mais firmeza.
… — ameacei. — Eu vou te beijar.
— Faz esse beicinho pra mim de novo — sua voz ficou mais rouca do que nunca.
Minhas bochechas começaram a pegar fogo. Eu não queria acatar, mas o pedido dele teve o efeito oposto em mim: um beiço contrariado que foi parar no canto da minha boca. chegou ainda mais perto – muito perto – e mordiscou meu lábio inferior, depois afastou lentamente o rosto com ele ainda preso entre os dentes. Senti a carícia de sua língua, mas nem deu tempo de aproveitá-la. Ele soltou meu lábio tão de repente que me deixou atordoada.
— Não vai embora ainda, . Por favor…
Finalmente soltei o ar que eu nem tinha percebido que estava me faltando.
— Como… Como sabe que eu tava pensando nisso minutos atrás?
— Eu conheço essa sua cara de puta da vida.
Comecei a rir. Rir de ódio.
— Você me paga, .
— Pago. Do jeito que você quiser.
De repente, senti um volume engrossar atrás do zíper de sua calça. Lancei um olhar sugestivo para sua virilha na mesma hora.
— É impressionante como você transforma tudo em sexual — arqueei uma sobrancelha, mas eu gostava demais daquilo. — Daria tudo pra saber o que tá passando na sua cabeça agora.
— Não é tão difícil assim, . Ultimamente, a única coisa que eu penso é em como vou te fazer gozar.
Agora, meu rosto inteiro estava corando. Um arrepio quente me fez contrair as coxas.
— Eu já tenho uma ideia, não vou mentir — tombei a cabeça um pouco para o lado e pressionei minhas mãos ao redor de seus pulsos. — Mas eu não sou tão abusada que nem você pra te contar...
— Nem precisa — um dos cantos de seus lábios se curvou levemente para cima. — Vou deixar você descobrir que a gente pensou na mesma coisa.

Não sei como não me desmontei ali mesmo. Se aquilo era mais um teste, dessa vez eu tinha reprovado muito, pra cacete, pra caralho mesmo.



A mesa de madeira estava cheia de copos plásticos vermelhos, todos vazios. Peguei um deles e comecei a rasgá-lo em várias tiras, até se parecer com um solzinho. Celebrando o auge do meu tédio, fiz o mesmo com os outros ao meu alcance.
Muita gente já tinha ido embora da república, mas no quintal ainda havia um pessoal empolgado que aproveitava o resto dos comes e bebes. Eu estava conversando com Alex e Sadie, de frente para mim na mesa, mas eles rapidamente me excluíam do assunto e, depois de uns dez minutos, me incluíam de novo. Eu já tinha desistido de tentar acompanhar.
Tess resolveu alugar o PJ dessa vez, e os dois estavam mais próximos da churrasqueira, não muito longe de e Connor. PJ ouvia calado o monólogo da loira; estava quase chorando de rir de algo que o outro amigo lhe contava.
Resolvi me levantar e entrar na casa, quando me surpreendi ao ver que mais pessoas ainda ocupavam a sala naquele fim de resenha. Até pensei em pegar outra gim tônica da geladeira, mas decidi continuar sóbria o suficiente – caso contrário, terminaria dormindo em qualquer canto quando a madrugada chegasse. Então, me contentei com a última lata de Red Bull e fui me sentar no sofá.
De repente, a porta de correr se abriu de novo e praticamente todo mundo que estava lá fora também entrou, na maior correria. Tinha começado a chover.
Em meio a risadas, os meninos correram para fechar as janelas e se dispersaram pelos outros cômodos. Nem vi Sadie mais, e, agora que na sala havia um acúmulo de pessoas, pude ouvi-las fazerem planos para ir embora em breve. Só esperariam a chuva passar.
Virei alguns goles do meu energético e voltei minhas atenções para o cinza da televisão desligada na estante. Ao lado, a radiola nem tocava mais nada; ninguém se preocupou em trocar o disco. Até que um cara aleatório passou na minha frente e ligou o rádio comum na estação universitária, mas também nem prestei atenção na música.
Tentando ser discreto, ele se sentou bem ao meu lado com um certo receio. A única coisa que consegui fazer foi encará-lo com curiosidade.
— Oi, desculpa — disse, se apresentando. — Qual o seu nome?
.
— Posso sentar aqui com você, ?
— Pode — balancei os ombros, quase rindo daquela pergunta retórica.
— Hmm… Você tá bem?
— Aham. Só um pouco entediada.
— Oh! Você é de algum lugar do sul? — ele se animou quando percebeu meu leve sotaque. — Deixa eu ver, um lugar cheio de rednecks?
— Exatamente, com mullets e bermudas jeans.
O cara desembestou a rir do que eu disse.
— Massa… Então, você é amiga do PJ, nosso aniversariante?
— Sou.
— Prazer, meu nome é Paul. Sou da turma dele de Computação.
— Prazer, Paul. Quer um Red Bull? — ofereci o restante da minha lata, sendo bem à toa mesmo.
— Não, obrigado, já tomei muita cerveja hoje. Escuta, posso tentar te tirar do tédio?
— … Claro. Vai em frente — virei mais um gole e tentei me preparar para a cantada meia-tigela que vinha a seguir.
— Sabe… Eu estava te olhando desde que você chegou aqui na república e... Cara, eu tentei, mas não consegui te tirar da cabeça. Acho que eu não me perdoaria se fosse embora sem tentar falar com você antes. Tá sozinha hoje?
Caramba, em momento algum eu notei que alguém tinha tentado flertar comigo naquela noite toda, nem que fosse por olhares. Normalmente, era eu quem olhava para os caras… ou pelo menos era o que minha cabeça avoada acreditava.
— Ah, Paul… Sim… Sim, tô sozinha. Olha, você é uma graça, mas hoje me pegou num dia ruim. Tô com dor de cabeça, acho que também vou embora daqui a pouco.
— Ok... Ok, justo. É, valeu a tentativa — ele bateu nos próprios joelhos e enfim se levantou, até que hesitou por um momento. — Posso arriscar e pedir seu telefone?
Mais uma pergunta retórica.
— Erm… Você pode pedir ao PJ. Ele tem meu telefone.
Paul concordou com um sorriso e saiu andando, até se afastar de vez. Só esperei que ele tivesse entendido o recado na falta de entusiasmo da minha resposta.
Voltei a olhar para a TV e, durante um breve silêncio, pela primeira vez reparei na música que tocava baixinho.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
I Want You – Third Eye Blind

Entrei num transe inacreditável, agora vidrada no chão e pensando na minha burrice. Eu odiava ser péssima em captar sinais de flerte. Quantas oportunidades já perdi por causa disso? Eu merecia um prêmio, ser ovacionada pela lerdeza tão grande.
O silêncio não durou muito, e o movimento de pessoas ali dentro ia diminuindo cada vez mais. Minutos depois, percebi a aproximação de alguém pelo canto de olho.
— Oi, qual seu nome?
Identifiquei a voz de imediato e olhei para , que parou de pé bem na minha frente. O que eu tinha de lerda, ele tinha de espertinho. Comecei a rir antes de responder:
.
, posso sentar aqui com você?
— Claro — assenti, sem conseguir parar de sorrir. O safado tinha visto toda aquela cena anterior?
— Prazer, meu nome é .
— O prazer é meu, .
Ele se sentou ao meu lado, mas um pouco afastado, a pelo menos duas almofadas de distância. Como um bom ator que sempre foi, se manteve dentro do personagem com uma seriedade impressionante. Eu era a única que segurava para não rir.
— E aí? Tá tudo bem, ?
— Hmm, um pouco entediada.
— Esse sotaque… Por acaso você é do Alabama?
Soltei uma gargalhada e estiquei o braço para dar um empurrão no ombro dele. finalmente deixou escapar um sorrisinho sacana.
— Posso te tirar do tédio? — perguntou, virando o corpo na minha direção.
— Por favor.
— Vou te dizer o que você vai fazer — ele também esticou o braço e o apoiou em cima do encosto do sofá. Então, alcançou a alcinha do meu vestido e ficou brincando com ela entre os dedos. — Só não olha pra trás agora, deixa que eu lido com isso.
Sem entender coisa alguma, juntei as sobrancelhas e continuei olhando para ele. Então, seus olhos subiram para observar alguém que de repente chegou atrás de mim.
, onde você guarda o cinzeiro?
Tess.
Eu juro que ela tinha um poder de teletransporte.
— Tem um lá fora.
— Não, ele tá todo molhado de chuva.
— Ah, é. Deve ter outro em alguma gaveta ali da cozinha — ele indicou com o queixo, os dedos discretamente ainda presos na alça do meu vestido. Mesmo assim, Tess não se moveu para ir até lá. — Pergunta pro PJ que ele deve saber.
— Ok, obrigada.
Pude sentir o ventinho da virada brusca que a garota fez para sair dali, bem atrás de mim. Girei um pouco o pescoço e a vi na cozinha, bastante concentrada enquanto remexia as gavetas. Um pessoal na sala estava se despedindo de PJ e Alex, mas ainda havia gente o suficiente naquele ambiente para passarmos despercebidos com tranquilidade.
— Onde eu estava…? — arrastou a voz, agora levando as pontas dos dedos até a base do meu pescoço. Me arrepiei com o toque. — Hmm, na minha parte favorita do plano. Você vai subir pro meu quarto, .
— Agora? — quase sussurrei.
— Agora. Você sobe primeiro… e eu vou depois. Me espera lá — ele deu uma piscadinha lenta e preguiçosa, com um sorrisinho malandro no rosto. — Não vou demorar.
Olhei para por mais alguns instantes, me perdendo inteiramente naqueles olhos tão expressivos. Ele também encarava os meus, sem perder tempo, como se pudesse ler meus pensamentos do início ao fim através deles.
Respirei fundo e me levantei sem dizer mais nada, ainda com a latinha de energético na mão. Contornei o sofá e segui em direção à escada, pedindo licença para algumas pessoas no meio do caminho. No primeiro degrau, virei rapidamente o rosto para trás e flagrei ainda me encarando.
Meu Deus. Estava difícil me manter calma, porque meu tesão já estava nas alturas. Dei um último sorriso de lado para ele, depois continuei a subir as escadas.
Entrando no quarto, acendi a luz do abajur ao lado da cama e fechei a porta atrás de mim. Inalei e soltei o ar algumas vezes, só então aproveitei a quietude daquele ambiente para relaxar. Observei com muita atenção todos os detalhes ao meu redor, de novo, porque da última vez que estive ali eu não estava com a cabeça no lugar. Então, a mesa de desenho foi a primeira coisa que me atraiu, exatamente como antes.
Chegando mais perto, apreciei os desenhos de , coisa que eu nunca me cansaria de fazer – nesta ocasião, quase todos que preenchiam a superfície eram técnicos. Como era possível um olhar tão expressivo, sensível e cheio de nuances para paisagens e, ao mesmo tempo, um tão calculado e rigoroso para a geometria dos objetos? Eu não sabia ser tão versátil assim, cheia de contrastes interessantes nas minhas habilidades. E era por esse e outros motivos que hoje fui capaz de suportar uma festinha chata até o final.
As coisas que eu fazia por um orgasmo.
Se é que eu teria um mesmo.
Passados mais de dez minutos, que duraram uma vida, comecei a divagar por muitos tópicos. Inclusive sobre a demora de , que eu já estava começando a estranhar. Só me faltava aquela garota ter pegado-o de conversa e feito algum plano maquiavélico para empatar minha foda. Eu já estava começando a me estressar, só de pensar em infinitas possibilidades.
E se Alex Rose estiver desatualizado sobre o que aconteceu e, mesmo que faça sentido, nem tudo que ele me disse seja totalmente verdade? E se e Tess já tiveram algo rolando? E se eu realmente não tiver tanta importância assim para ele agora?
Quando finalmente ouvi o som da maçaneta girar, dei um sobressalto. Olhei por um segundo naquela direção, depois voltei meu foco para a mesa e esperei se aproximar, sem conseguir olhá-lo nos olhos. Escutei o barulho da porta sendo fechada e, em seguida, seus passos cada vez mais próximos. Entretanto, permaneci estática no mesmo lugar, rezando para que minha súbita tensão não transparecesse.
Por fim, ele parou atrás de mim, a ponto de notar que eu segurava a latinha de Red Bull com força numa droga de um vacilo inconsciente. Então, sua mão agarrou a lata e colocou-a com cuidado sobre a mesa de desenho.
… — murmurei. — Sabe o que eu te disse lá embaixo?
— O quê? — ele aproximou o corpo ainda mais, seu peito sutilmente colando em minhas costas.
— Sobre… Sobre você me fazer de otária, e essas coisas.
— ele foi mais impositivo, agora tocando minha cintura com a mão direita. Os dedos da outra mão buscaram os fios do meu cabelo e os puxaram para trás, deixando livre toda a lateral do meu pescoço. Então, seu rosto chegou mais perto. — Quando você vai cair na real… — seus lábios roçaram em minha pele — … e perceber… — ele foi subindo a boca, mais e mais, até chegar em meu ouvido — … que eu sou louco por você?
Precisei de um segundo para assimilar aquelas palavras.
Talvez dois.
Ou três...
Respira, .
E foi em três segundos que eu liguei o meu velho amigo foda-se.
Devagar, virei apenas o rosto para , fazendo a ponta dos nossos narizes se encontrarem. Logo depois, ergui o braço e alcancei sua nuca com uma mão, puxando-o para ainda mais perto de mim. Seus olhos estavam entreabertos, e eu terminei de fechá-los quando beijei sua boca.
Os toques entre nossos lábios começaram lentos, macios, suaves. Eu estava concentrada no caminho que a mão dele fazia, da minha cintura para o meu ombro, contornando gentilmente minha silhueta. Seus dedos se enroscaram na alcinha do meu vestido de novo, só para empurrá-la para baixo com mais urgência. Sacudi levemente o braço para tirá-la de vez, e a mão dele foi ágil em invadir a nova área livre, passando por baixo da minha blusa. Senti seu toque agora na minha barriga, subindo e subindo cada vez mais.
Quando chegou na parte inferior do meu peito, a respiração dele ficou presa na garganta assim que notou que eu estava sem sutiã. Então, partiu o beijo e me olhou com um sorrisinho surpreso, quase secreto, embora tenha desviado o olhar curioso para baixo por um segundo. Aquilo me fez inclinar o rosto um pouco mais, e, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, pegou meus lábios em outro beijo lento e ardente.
Sua mão envolveu meu seio e o apertou de leve primeiro, o que de imediato me fez arrepiar inteira. Foi aumentando a força à medida que ia descobrindo cada curva, cada pedaço de pele ainda não tocado. Seu polegar brincava com meu mamilo, e eu já podia sentir a protuberância se formando por baixo da sua calça jeans, bem no fim das minhas costas. Minha mente quase se desligou por um momento. Aquilo era relaxante e excitante demais ao mesmo tempo.
Levei minha mão até a dele, por cima da blusa, só o tecido separando o contato direto. Ele aproveitou para descer de novo por minha barriga, e eu continuei acompanhando seus movimentos com minha mão colada no dorso da sua. Quando ela já não estava por baixo da malha, desceu um pouco mais e se enfiou em minha calcinha, sem hesitar – como se aquela fosse uma chance que ele nunca mais teria de novo.
Uma trilha de calor foi descendo por meu corpo, conduzida pelo toque de cada vez mais insaciável. Novamente, sem nenhuma espera ou suspense – nem mesmo uma mínima pausa para o meu preparo psicológico –, seu dedo médio escorregou um pouco mais e se encaixou no lugar certo, mas pressionou minha pele apenas a milímetros do meu ponto sensível. Como minha mão ainda estava sobre a sua, acabei o guiando desesperadamente para a melhor posição. Mais confiante, ele começou a massagear a região do jeito mais delicioso possível: sem pressa, com delicadeza, tentando me torturar. Me explorar. E sentir seus movimentos através do meu tato era como se eu também pudesse ver o que fazia.
Instantes depois, seu indicador se juntou ao outro dedo e ambos deslizaram para baixo, como um V, envolvendo meu clitóris exatamente entre eles. E assim voltaram a deslizar para cima, depois para baixo de novo... e de novo, e de novo. Não pude evitar o gemido suave e abafado que saiu da minha boca, ainda ocupada demais beijando a dele. Enrolei meu braço em volta de seu pescoço e me perdi completamente naquele beijo, tentando ignorar a piscina de excitação que estava molhando os dedos dele e a minha calcinha. Meus joelhos estavam quase cedendo – foi quando parei de beijá-lo e tombei a cabeça para trás, apoiando minha nuca em seu ombro. Deixei que sua respiração quente e ofegante tomasse conta da curva do meu pescoço.
Fechei os olhos e inspirei fundo, então expirei todo o ar preso em meus pulmões. também parou por um momento, então segurou firme a minha cintura e, ainda atrás de mim, me guiou em cada passo até a cama. Quando paramos bem na borda, ele me virou de frente para seu corpo e terminou de baixar a outra alça do meu vestido. Por outro lado, eu só me preocupei em dar um fim naquela sua camisa de flanela e a blusa de malha que ele vestia por baixo. Enfiei minhas mãos sob o primeiro tecido e empurrei-o para trás; mesmo terminou de remover a peça, meio apressado. Em seguida, cruzou os braços na frente do abdômen e tirou a própria camisa, largando-a no chão.
Eu ia me afogar na minha própria baba.
Com aqueles olhos azuis esverdeados fixos nos meus, as pálpebras baixas e a boca entreaberta, sua respiração também começou a ficar mais pesada. No próximo segundo, seu olhar recaiu sobre meus seios ainda escondidos por baixo da blusa, que eu sabia que ainda contornava os meus mamilos. Entretanto, a sensação que me inflamava por dentro era de já estar completamente nua na frente dele.
Meu Deus. Eu não saberia descrever o tamanho da minha ansiedade para descobrir o que ele estava planejando fazer comigo logo a seguir.
Bastava um sinal e eu cairia para trás na cama. Era o quão rendida eu estava. E parecendo saber perfeitamente disso, aproximou o rosto e deu um simples toque com a ponta do queixo na minha testa, o que foi o suficiente para me fazer cair e deitar de costas na superfície macia, assim como antecipei.
Senti cada um dos lados do colchão afundar quando ele posicionou os joelhos em volta do meu quadril, um de cada vez, depois os punhos fechados ao redor dos meus ombros. Fiquei reparando em todos os detalhes de seu rosto, inclusive em seu cabelo todo bagunçado. Nem tinha percebido que fui capaz de deixá-lo naquele estado. Então, lá estava ele, já olhando para baixo outra vez. Sua mão voltou a passear por minha barriga, subindo junto com a camiseta, revelando cada vez mais o que seus olhos estavam afoitos para ver.
Eu estava pronta para entrelaçar minhas pernas ao redor do tronco dele, quando, de repente, pensei ter ouvido batidas contra a porta. E não fui a única, já que os olhos assustados de me encararam por um rápido momento de choque. Demorei a sacar o que estava rolando, até que as batidas ficaram bem mais altas e irritantes.
murmurou um palavrão e se levantou num pulo, correndo em disparada até lá; eu mais uma vez me atrasei no básico da reação, sem entender coisa nenhuma. Só quando o ouvi girar a maçaneta e a voz de PJ do outro lado que resolvi entrar em pânico. Empurrei minha camiseta para baixo outra vez e puxei uns lençóis para me cobrir, em completo desespero.
— O que você quer? — impaciente, bloqueava com seu corpo uma mínima fresta aberta.
— Nossa. Tô interrompendo alguma coisa? — pude ouvir a provocação do moreno, que já estava mais do que bêbado. Ele e Sadie poderiam dar as mãos, puta merda. Pelo menos um deles se dava ao trabalho de bater antes de entrar.
— Não, PJ... Você não poderia ter chegado numa hora melhor.
— Hmm, tá com uma garota aí? — o amigo pareceu espiar, já que tentou barrar ainda mais sua visão.
— Sim, tô com uma garota, porra. O que você quer?
— Cara, você viu a por aí?
— Não, não vi — ele tentou fechar a porta, mas foi impedido.
— Tem certeza? Eu não me lembro de ter me despedido dela.
Tive que segurar para não rir. Fingir normalidade já estava virando nossa rotina, e seria muito ingênuo da minha parte acreditar que aquilo ia durar por muito tempo.
Então, no meio da discussão deles, tive a mais brilhante das ideias. Primeiro, me descobri dos lençóis e me arrastei mais para o meio da cama. O vestido solto até agora circundava meu quadril, mas ergui um pouco as pernas e tirei minha calcinha enquanto ainda não voltava. Ela só não caiu no chão porque o elástico ficou preso entre os dedos do meu pé direito, o que na verdade foi super oportuno. Enquanto eu esperava o bate-boca terminar, mantive os joelhos grudados um no outro; os pés, baixos e encolhidos. Por pouco não alcançavam o carpete.
— Sei lá, PJ… Ela pegou um táxi e foi embora cedo, estava com dor de cabeça.
— Ah… Então tá bom. Vou dizer isso à colega de quarto dela. Sadie, não é? Sadie estava procurando por ela agora mesmo, está indo embora pro-
simplesmente fechou a porta na cara dele e girou a chave na fechadura. Em seguida, veio andando devagar até mim, meio derrotado. A cada passo ele parecia querer desistir de viver, prestes a soltar um berro gutural. Estava até engraçado vê-lo tão imerso em frustração, tão de repente – mas eu ia mudar aquilo rapidinho.
— Você não tinha trancado a porta antes? — perguntei baixinho.
— Não, esqueci totalmente — ele estava com uma cara de quem queria dar uma surra na parede. Tirou um momento e passou ambas as mãos pelo rosto e cabelo, então parou na lateral da cama, bem de frente para mim. — Desculpa por isso, … de novo.
— Isso o quê? — ao contrário dele, eu estava juntando todas as minhas forças para não deixar escapar um risinho divertido. — Esse quebra-clima que persegue a gente? — ainda com os joelhos unidos, estiquei uma perna e alcancei a sua. Coloquei o peito do pé na dobra atrás de seu joelho, obrigando-o a dar um passo a mais.
— Você gosta, por acaso? — suas sobrancelhas se ergueram, ao mesmo tempo que um meio-sorriso curvava o canto de sua boca.
— Na verdade, é uma droga mesmo, mas… não acho que quebrar o clima seja um problema pra nós.
— Hmm… e por que não? — ele já estava se animando outra vez, inclinando o tórax por cima do meu corpo. Foi quando encolhi a perna de novo na sua frente e fui mais rápida ao impedi-lo de se aproximar.
só olhou para meu joelho em seu peito nu, paralisado. Em seguida, levantei a outra perna ao seu lado e mostrei a calcinha presa na ponta do meu pé. Meus olhos estavam vidrados em sua reação, que foi imediata: o sorriso insolente se alastrou por seu rosto.
— Você… Caralho — ele mesmo se interrompeu. — Caralho, você deixa tudo tão mais difícil.
— Difícil? Eu acabei de facilitar seu trabalho.
— Mas eu já te falei… — depois de uma longa pausa, ele puxou a calcinha entre meus dedos, olhou para ela e a arremessou do outro lado da cama. — Já te falei — reforçou, voltando a olhar em meus olhos —, eu quero te fazer gozar primeiro. Mas puta merda, desse jeito tá impossível. Você quer me matar antes, não quer?
Dei uma risadinha safada.
— E por que fazer essa questão toda, ?
Não que eu estivesse reclamando. Eu estava adorando.
— Porque tem muito tempo que eu tô sonhando com isso. Porra, tempo demais — ele segurou meu calcanhar e moveu minha perna para o lado. Colocou a mão na parte interna da minha coxa e terminou de abrir minha outra perna, mas continuou olhando em meus olhos.
Eu estava aflita. Apreensiva. Louca para ele me chupar, mas, ao mesmo tempo, receosa. No fundo, eu ainda me perguntava se ele queria mesmo fazer aquilo ou só estava tentando me conquistar, jogar um charme.
Seu abdômen ainda estava um pouco inclinado na minha direção, o que me levou a jurar que ele voltaria a ficar por cima de mim – mas não foi o que aconteceu. se afastou um pouco e se ajoelhou no chão. Então, fixou as íris azuis na minha intimidade, totalmente despida para ele. Pude ver seu olhar gotejar desejo, um músculo pulsar no canto de sua mandíbula.
Enquanto ainda me admirava, ele enganchou seus braços em volta das minhas coxas, e logo minhas pernas enroscaram em torno de seus ombros. Aquele maldito suspense estava corroendo minhas veias. inclinou o pescoço para frente, e eu já não pude mais enxergar sua boca ou nariz. Agora seu rosto estava perigosamente perto da minha boceta. E que inferno, ele subiu o olhar por um instante só para ver minha reação.
Apesar de toda a espera, eu estava despreparada quando senti sua língua passando em meu clitóris. Meu corpo entrou em chamas. Minhas costas arquearam um pouco, fechei os olhos e joguei a cabeça para trás. Ele continuou me lambendo, para cima e para baixo, depois para um lado e para o outro, afundando cada vez mais o rosto entre minhas pernas enquanto vez ou outra transformava as lambidas em beijos suaves. Sua língua viajou até minha entrada, depois subiu de novo, deslizando por cada milímetro da minha pele e brincando um pouco mais com meu ponto sensível. Meu. Deus.
A sensação era opressora. Minhas coxas queriam se apertar, mas fiz o possível para me conter. Agarrei as raízes de seu cabelo e movi meu quadril devagar, o que me deixou maravilhada em como aquilo o estimulou. Carregando minhas pernas entrelaçadas em seus ombros, avançou o corpo para frente, fazendo o meu deslocar ligeiramente mais para cima na cama. Porém, como eu estava super inquieta de tanto tesão, acabei subindo mais e mais, até minha nuca se encaixar na borda do colchão do outro lado.
Eu estava quase de cabeça para baixo, ofegando alto enquanto o puxava pelos cabelos. Sua franja longa me deixava agarrá-lo e tê-lo o mais próximo possível de onde eu mais precisava de sua língua.
… Mais pra cima… — pedi num murmúrio sôfrego.
— Assim? — sua voz rouca e abafada só me deixou ainda mais excitada.
— Só… só um pouco mais pro lado…
Eu estava amando como ele se perdia no sentimento em apenas me dar prazer. Queria conhecer todos os meus pontos favoritos. Queria saber exatamente o que eu precisava que sua língua fizesse. Queria que eu me entregasse.
Eu também podia senti-lo ofegar algumas vezes, espalhando ainda mais calor onde sua boca se ocupava. Ele agora girava a língua em torno do meu clitóris num ritmo mais constante – e tão delicioso que me fez arranhar os lençóis com a outra mão.
— Não para, não para — eu estava praticamente suplicando.
— Ah, eu vou ter que parar…
— O quê? Por quê?! — reclamei, quase chorando quando senti sua boca longe. Tentei levantar o pescoço para enxergá-lo, mas eu estava sem forças, então desisti.
— O que essa blusa tá fazendo em você ainda?
— O quê? — soltei o cabelo dele, me apoiei nos meus cotovelos e, um pouco tonta, finalmente pude vê-lo.
Caramba. Senti o rosto ferver quando vi o brilho intenso que estava espalhado em toda sua boca e queixo, refletido pela meia-luz do abajur.
— Ah, … — sem desgrudar os olhos de mim, ele começou a acariciar minha panturrilha e dar beijos tortuosos na parte interna da minha coxa. — Você me deixou tão distraído que eu quase me esqueci desse detalhe… mas não vou deixar passar dessa vez, não mesmo. Vai, tira essa blusa pra mim.
Completamente desnorteada, apenas puxei minha camiseta para cima e joguei-a ao meu lado no colchão. Terminei de tirar o vestido pela cabeça mesmo e caí deitada na cama outra vez.
— Agora me pede de novo — ordenou, antes de enterrar o rosto no meio das minhas pernas outra vez, voltando a me chupar exatamente do mesmo jeito que ele sabia que estava me deixando louca um minuto atrás.
— Não para — repeti, gemendo baixinho. — Não para… Meu Deus, que gostoso…
E ele não ia parar. Estava apreciando cada segundo. Com gosto. Eu não precisava nem me preocupar se o tempo estava passando devagar demais para . Ele não tinha a mínima pressa.
E assim consegui permitir todos os meus sentidos se voltarem apenas para aquele momento, além de poder ignorar sua duração sem culpa alguma. Quando me faltou ar de novo, fechei os olhos e me concentrei em cada movimento que a língua dele fazia. Caramba, como eu queria ver. Resolvi encarregar minha imaginação de tudo, e pude visualizar perfeitamente quando, de repente, os lábios dele sugaram meu ponto sensível num ritmo mortalmente lento.
Senti uma de suas mãos apertar minha coxa, e a outra, subir devagar pela minha pélvis. Espiei aquela cena por um momento e, minha nossa, ver suas mãos grandes e firmes me agarrando daquele jeito, daquela visão, me fez delirar.
Quando me dei por conta, eu já estava totalmente entregue: arqueando as costas, bagunçando os lençóis outra vez, o peito subindo e descendo sem parar. Eu podia sentir meu ápice cada vez mais próximo, e aquela era a melhor parte.
O orgasmo me atingiu de forma tão avassaladora que tapei minha boca quando vi que não ia conseguir controlar meus gemidos completamente ofegantes. Senti meu corpo se contrair várias e várias vezes enquanto a sensação extasiante ainda me dominava. Precisei empurrar levemente a cabeça de para fazê-lo parar de me chupar. Ele se ergueu do chão e ficou me observando com um tesão que explodia de seus olhos. Eu estava naquele estado nebuloso e anestesiado, ainda tentando me recuperar do meu orgasmo. A passagem do tempo sequer existia mais.
Um barulho característico me chamou a atenção, até que o vi desabotoar a calça e abaixar o zíper. Ele deslizou o jeans pelas pernas e, em seguida, a única coisa que deslumbrou minha visão foi seu pau implorando para sair daquela cueca boxer.
Eu precisava muito dele.
Agora.
— Ah, merda… — murmurou, foi quando notei sua boca e queixo ainda mais molhados. Deus do céu. — Tô tão duro que chega a doer — ele se inclinou em direção à mesinha de cabeceira, abriu a gaveta e tirou um preservativo de lá. Prendeu-o nos lábios e, virando-se para mim de novo, abaixou a boxer.
Àquele ponto, eu estava hipnotizada. Ele segurou o pau longo e grosso com uma mão, e pareceu apertá-lo com força enquanto abria o pacotinho de plástico com os dentes. Ver tão excitado assim estava me causando arrepios infinitos, que iam e voltavam sem parar em meu corpo.
Quando terminou de colocar a camisinha, seus olhos recaíram direto sobre os meus, e ele deu um sorrisinho típico ao ver minha expressão torturada. Logo se ajoelhou na cama, apoiou um dos antebraços no colchão e ficou por cima de mim. Porém, dei dois toquinhos em seu ombro, minha voz quase falhando ao pedir:
— Deixa eu ficar por cima de você.
Sem pensar duas vezes, ele se jogou no meio da cama e, ainda sorrindo, deitou a cabeça num dos travesseiros, só me esperando. Engatinhei até me posicionar por cima de seu corpo gostoso. Então, com sua ajuda, finalmente o senti entrar dentro de mim.
Ele mordeu o próprio lábio e revirou os olhos até fechá-los. Eu estava me deliciando ao ver a cara dele se derretendo de prazer e desespero. Não que estivesse tentando se conter em qualquer momento daquela noite, mas saber que eu estava proporcionando tudo aquilo também me fazia sentir como a gostosa que eu raras vezes me enxergava.
— Você tá tão, tão molhada… — ele ofegou entre pausas demoradas, ainda de olhos fechados. — Por favor, não sai daqui nunca mais.
Dei uma risada, o que o fez olhar rapidamente para mim antes de me puxar pelo pescoço e me beijar como se o mundo estivesse acabando. Ao mesmo tempo, comecei a me movimentar devagar, aumentando o ritmo à medida que suas mãos agarravam minha bunda ou meus seios com ainda mais voracidade e desejo. Um desejo tão grande e incontestável que nem por um segundo me senti reprimida sobre meu próprio corpo, indecisa sobre meus sentimentos ou desconfiada sobre os dele. Pelo contrário – naquela hora, eu me sentia desprendida de tantas coisas… Foi quando percebi como minha autoestima esteve comendo merda no café da manhã por tantas vezes que acabei me acostumando.
Parei de beijá-lo só para ver sua expressão de novo, porque eu podia sentir sua respiração cada vez mais descompassada. Estava começando a achar que eu e tínhamos isso em comum – éramos muito visuais. Só de olhá-lo me enchia de tesão. E talvez eu tenha descoberto esse detalhe sobre mim só agora, porque me sentia livre como nunca antes. Livre para me expressar e fazer a porra que eu tivesse vontade. Caramba, aquele era de longe um dos melhores sexos que já tive. E como o óbvio sempre passa despercebido, nunca tinha imaginado até então que o simples fato de duas pessoas estarem em sintonia fosse tão ridiculamente importante.
Entre suas pálpebras pesadas, pude ver o olhar lascivo de sobre mim. As veias saltando de seu pescoço. O suor molhando sua franja. O rubor colorindo sua pele.
Quando o senti ainda mais fundo e forte, engoli um gemido e me desmontei em cima dele. Eu estava ofegando sobre um travesseiro, me movendo com dificuldade, mas retomou o ritmo e aumentou a velocidade. Me mergulhei por inteiro naquela sensação outra vez – quase entorpecente – enquanto ansiava por mais, e mais, e mais.
Virei o rosto e comecei a beijar a curva de seu pescoço lentamente, em uma disparidade deliciosa ao ritmo que seu quadril se movia contra o meu. Ele pareceu enlouquecer ainda mais com meus beijos e toques, soltando gemidos tão sensuais aos meus ouvidos que só me preocupei em agarrá-lo ainda mais. Não tinha nada melhor do que ouvir aquela voz grave e rouca se desfazendo de prazer comigo.
Eu também queria descobrir do que ele mais gostava, o que o fazia se esquecer de respirar. O que fazia chegar ao seu limite.
Não muito tempo depois, ele apertou minha bunda tão forte que eu soube que tinha terminado. Um gemido alto e estrangulado saiu de sua boca, e na mesma hora levantei o tronco outra vez para vê-lo. Ainda sem forças, acabei colando nossas testas, misturando nosso suor e respirações pesadas.
Estalei um beijo rápido em seus lábios entreabertos e, em seguida, ergui minha coluna. Observei seus olhos cansados passearem pelo meu corpo. As mãos ainda estacionadas na minha bunda. Um sorrisinho se abrindo em só um dos cantos de sua boca.
Tive que me segurar para não me declarar para ele como uma princesinha da Disney.
— Isso foi… — falou no meu lugar, mas fez uma pausa para recuperar o fôlego. Aproveitei para finalmente tirá-lo de dentro de mim, o que fez seu rosto franzir por um instante enquanto eu ria.
— Um dos melhores orgasmos que você já teve? — arrisquei, mas me arrependi logo em seguida. Me joguei ao seu lado na cama enquanto temia uma resposta sincera demais.
— Caralho… Sem dúvida nenhuma — ele inclinou o queixo ao olhar para baixo e tirou o preservativo. Estava amarrando a ponta em um nó, parecendo mais desnorteado do que eu.
— Hmm… Melhor que o sexo no terraço do Belva Hall?
A risada dele ecoou pelo quarto.
— Porra, o sexo no terraço foi uma das piores experiências da minha vida. Não dá pra comparar.
— É mesmo?! — dei uma risada exagerada de propósito, mas logo me censurou ao colocar o próprio indicador nos lábios. Eu sabia que ele estava me pedindo silêncio para ninguém me reconhecer ali dentro de seu quarto. — E por que foi ruim? Alguém te pegou no ato?!
— Não, — ele mesmo também prendeu uma risadinha, mas sem abandonar o olhar repreensivo. Então, se levantou para jogar a camisinha na lixeira ao lado da mesa de desenho. — É só que… nunca tente transar em público quando tá fazendo quinze graus lá fora.
Fiquei distraída demais ao vê-lo andar completamente pelado pelo quarto, sem nem se importar. Aquele devia ser o meu recorde – nunca babei tanto por um homem em um único dia. Até Tom Cruise, DiCaprio e todo o resto dos galãs de Hollywood e integrantes do Backstreet Boys ficaram para trás naquele exato momento.
Será que já poderiam me internar?
se deitou ao meu lado outra vez e me deixou estática quando passou um braço por cima de mim, procurando alguma coisa no meio dos lençóis. Logo depois, levantou a mão com minha calcinha dependurada nos dedos.
— O que foi que eu disse? — começou a rodopiá-la. — Você é safada demais pra achar que pode me acusar o tempo todo.
— Me dá isso! — tentei pegá-la de volta, mas ele foi rápido em desviar o braço e esticá-lo em uma altura inalcançável para mim.
Eu que não ia me levantar peladona da cama para buscar minha calcinha. Inclusive, já estava procurando minha T-shirt para vestir, mas ele a achou primeiro e foi mais ágil em escondê-la debaixo do travesseiro onde estava deitado.
— Que droga, . Você vai mesmo me fazer levantar daqui? — reclamei, já me virando para o outro lado para sair da cama. Tentei me enrolar em algum lençol, mas o peso de seu corpo não me deixou puxá-lo.
— Lógico — o ouvi dizer, convencido. Enquanto isso, caminhei até o pé da cama, onde achei meu vestido no chão. Meu Deus, minhas pernas estavam bambas. — Por mim, você só fica pelada nesse quarto a partir de hoje.
— Virou adepto ao nudismo agora? — provoquei, catando meu vestido com o pé para não ter que agachar. Comecei a vesti-lo e, ainda de frente para ele, ajustei as alcinhas nos ombros. Ele era justinho demais para usar sem uma camiseta por baixo; meus peitos estavam quase pulando para fora.
— Acabei de virar — entrou na onda. — Colocar esse vestido de novo foi a pior coisa que você fez até hoje. Mesmo você estando uma delícia com ele agora.
— Acontece que atravessar o corredor pelada pra ir ao banheiro não é uma boa ideia — andei até a porta e, no meio do caminho, encontrei sua cueca. Apanhei-a do chão e também a rodopiei entre os dedos. — Você nunca vai deixar de ser um insuportável, não é? — arremessei a boxer bem em cima do pau dele. — Um gostoso insuportável.
Destranquei a porta e o ouvi dar uma gargalhada. Depois de fechá-la, fui sorrindo sozinha até o banheiro – por sorte, vazio. Àquele ponto, eu estava extasiada demais para me lixar para as consequências se alguém me visse seminua fazendo a caminhada da vergonha pelo corredor escuro da república.
Poucos minutos depois, ainda dentro do banheiro, pude ouvir algumas tosses escandalosas e uns burburinhos vindos lá de fora. Assim que saí do cômodo, encontrei PJ de quatro no corredor e uma poça de vômito no chão em sua frente. Ele estava de costas para mim, e ergueu o olhar assim que – usando apenas sua cueca boxer – abriu a porta do quarto para ver o que estava acontecendo.
— Meu Deus, PJ, que porra é essa? — ele levou uma mão à testa, preocupado e impaciente ao mesmo tempo.
— Eu… achei o resto de um uísque asqueroso lá embaixo e… empurrei pra dentro…
O coitado ainda estava agonizando. Eu só pensava que, se ninguém limpasse aquele vômito logo, o carpete ia criar cogumelos.
— E agora jorrou tudo pra fora, parabéns — completou. — Vamos, levanta daí.
Com certa dificuldade, PJ ficou de joelhos. estendeu a mão para ajudá-lo e ele finalmente se pôs de pé, ainda meio zonzo. Por algum motivo, tinha um sensor na minha cabeça chamado “vai dar merda” e ele estava apitando sem parar. Aquele território estava perigoso demais para minha presença.
— Ui, gostosão — PJ deu um empurrãozinho no ombro do amigo, provavelmente notando só agora sua falta de roupas. — Cadê a garota sortuda que tava com você? Já foi embora?
— Não — respirou fundo umas duas vezes. — Ela tá aqui ainda. Tá atrás de você.
Ainda com a mão apoiada no ombro de , PJ virou o rosto lentamente para trás. Quando me viu, pude ver seus neurônios trabalhando a todo vapor – ele fazia uma careta diferente após a outra. Seus lábios perderam a cor quando finalmente entendeu que era eu.

E assim a sessão de vômitos começou mais uma vez.



— Ei, acorda! Terra chamando! — eu sacudia PJ pelos ombros e estalava os dedos na frente de seu nariz. Ele estava mole feito um marshmallow, mesmo agora de pé. Eu tentava impedi-lo de escorrer pela parede enquanto limpava o carpete. — Ei, ei, ei! Não apaga agora, PJ!
— Eu… Eu… Você… , por que você fez isso, cara?
— Isso o quê? — eu mesma perguntei, agarrando o rosto dele para girá-lo em direção ao meu. Seu bafo de álcool estava insuportável, mas também me segurei para não trocar o foco da minha reclamação. — É comigo que você tá falando. Esquece o .
, olha, eu sei que o é um partidão e… e, porra, até um bocado inteligente, mas… mas… POR QUÊ?!
— Dá pra você formular uma pergunta que faça sentido?
— Paul me pediu seu telefone, … mas eu não dei. Me agradeça. Jesus… Falei que você tava interessada em outra pessoa.
— O quê? Interessada em quem?
— Em mim.
— O QUÊ?!
, eu não acredito que você fez isso — ele grunhiu, quase cuspindo a saliva acumulada no canto dos lábios. Em seguida, ergueu o indicador para acusar , mas eu abaixei sua mão na mesma hora. — Você me deixou te falar todas aquelas coisas sobre a , cara. Você me ouviu e não disse um pio. Meu Deus… Pisou na bola, hein, vacilão?! Eu não- Eu não- Eu não consigo nem pensar num insulto bom pra você, na moral. Eu nem tenho dedos do meio o suficiente nas minhas mãos pra usar agora. VOCÊ É A PORRA DE UM FODIDO!
Diante daquele berro explosivo, imediatamente bufou e parou de esfregar o chão para cortá-lo:
— Dá pra você falar mais baixo, seu idiota de merda?
— FODA-SE! EU SÓ TENHO AMIGOS FILHOS DA PUTA QUE SIMPLESMENTE NÃO ME DEIXAM SER FELIZ!
— PJ, se acalme — puxei o rosto dele outra vez para me olhar. — Para de gritar! Que escândalo chato!
— Ninguém me deixa ser feliz, … Puta merda, eu só me fodo… Primeiro a Lori, agora você… Eu sou uma desgraça. Não tenho amigo nenhum. Vocês são todos meus inimigos, é isso que vocês são.
— JÁ CHEGA! — sacudi seus ombros com mais brutalidade dessa vez. Ele até arregalou os olhos e parou de resmungar por um segundo. — Agora me explica você. Em que LUGAR do seu cérebro você inventou que tá a fim de mim, seu maluco? Porque eu sei que isso é papo furado! Eu sei que é, PJ. Você pode tentar enganar o , o Alex, quem quer que seja, mas não a mim. Se você quisesse mesmo, teria ficado comigo há muito mais tempo, não agora! Eu tive uma puta queda por você no minuto que te conheci, cacete. E não era muito difícil de descobrir.
— Mas eu-
— SSSHH! Presta atenção! Eu sei exatamente o que tá rolando. Você não superou a Lori até hoje. É, isso mesmo, não adianta revirar os olhos. Se bem que “superar” não é a palavra. Na verdade, você não aceita que ela tá super feliz com outra mulher.
— MAS ESSA MULHER É A JENNA!
— “Mas essa mulher é a Jenna”, meu Deus, que horror, que pesadelo. Foda-se! Do que adianta ficar bravo? Você ficaria de boa se fosse uma desconhecida? Duvido. Eu sei que não é só sobre a Jenna. Lá vem você tentando se enganar de novo.
, não… Para de falar… Minha cabeça tá doendo, caralho…
— Não, você vai ouvir! Você precisa ouvir. Sua cabeça tá doendo porque ela tá tentando processar todos os fatos pela primeira vez ao invés de continuar criando mentiras pra você mesmo. Larga dessa ilusão que você tá a fim de mim, porque sabe qual é o nome real disso? Carência. O auge da carência, porque a gente tá convivendo quase todo dia e você doido pra ter a Lori de volta sem poder fazer absolutamente nada a respeito. Porque você sabe que não pode simplesmente mudar a sexualidade de outra pessoa. É tão dolorido assim se sentir impotente nesse ponto, caramba? Ah, dá um tempo. Você tá sendo injusto com todo mundo! Acha que não sei o que é tentar procurar um substituto fácil pra apagar a dor logo? Pois pare de achar que eu sou essa solução, PJ! Se faça esse favor e seja honesto com você mesmo de agora em diante. Aceite o que tá acontecendo!
Ele só ficou me olhando, vidrado. Engoliu em seco umas três vezes enquanto eu disparava tudo de uma vez.
— … Não sei se a Jenna tá sendo honesta comigo — murmurou, o olhar subindo para o teto.
— E por que não? Ela não sabia que você e a Lori estavam saindo. E a Lori não sabia que você e a Jenna se conheciam e eram amigos.
— E quando souberam — continuou —, a Jen fez de tudo pra esclarecer as coisas com você. E adivinha? Você não quis. Ficou puto e não quis ouvir, saiu falando merda à toa pra ela.
— Foi HUMILHANTE! — PJ bradou de repente. — Foi humilhante demais ter sido trocado por uma garota, tá legal? — seu tom de voz virou um choramingo sofrido. Os dedos foram puxando as bochechas para baixo com tanta força que o branco de seus olhos se tornou visível. Eu estava presenciando a cena mais dramática da história. Parecia que alguém tinha morrido.
— Não entendi — continuou a rebater. — Se ela estivesse ficando com outro cara agora, por que as coisas seriam diferentes?
— Também seriam uma merda, mas uma merda menos pior.
— E por quê? — dessa vez, eu questionei.
— Porque é ridículo, porra! Imagina se o te desse um fora hoje e você ficasse sabendo que ele tá comendo outro cara amanhã, ?!
— E o que eu tenho a ver com quem o escolhe transar se ele me desse um fora?
— Beleza, mas suas amigas falariam o quê?
— Ah, então é isso — voltou a se pronunciar, cruzou os braços e parou ao meu lado. — Descobrimos agora. Você tá sendo ridicularizado por aí porque a Lori te chutou por uma garota, é isso?
— Vocês não fazem nem ideia… — PJ voltou a incorporar o drama. — Eu sou o menor dos problemas. O irmão dela virou um caso sério de chacota na fraternidade. Tem gente achando que ele também é gay agora que descobriram sobre a Lori. O cara tá mais puto ainda.
— O quê?! — franzi todos os músculos da minha testa. — E o que o cu tem a ver com as calças?
— Você não sabia? Eles são irmãos gêmeos.
— E daí que eles são gêmeos, porra? — levantou os ombros e enrugou a testa, profundamente inconformado com a burrice que estava testemunhando. A cara que ele fez foi tão engraçada que eu tive que me segurar para não rir naquele momento inapropriado. — Não acredito que você tá indo na onda desses caras, PJ. Sério, vai dormir. Esse uísque tá derretendo seu cérebro, principalmente sua memória das aulas de ciências.
— Tá bom, tá bom… Meu Deus do céu, TÁ BOM! — ele bateu um pé no chão feito uma criança birrenta. Em seguida, arrastou um olhar pidão para o meu, por sinal, completamente enfezado. — … Você tá chateada comigo?
— “Chateada”? — começou a rir. — “Putassa” é a melhor palavra.
— Não, PJ — falei, ainda o encarando sem a menor paciência. Mas com um pouquinho de solidariedade. — Não se você der um jeito e parar com essa bobagem toda logo.
— Tudo bem, eu concordo com tudo que você falou, não tenho medo de admitir. Ok? Vou consertar a merda que eu fiz. Prometo. Juro juradinho.
— Sabe quem tá chateada com você? A Jenna. Comece por ela.
Ele deu um tapão na própria testa. Tão forte que fez uma careta com a dor inesperada.
— Porra, é verdade…
— Amanhã você liga pra ela — o agarrou pelos ombros e foi empurrando o miserável pelo corredor. — Tô falando sério, você precisa dormir agora. Ninguém te aguenta mais.
— Ah, eu sei que você me ama, . Eu também te amo — ele ria travesso enquanto era arrastado para dentro do próprio quarto, o último do corredor. — Cara, você e a … Puta merda, , graças a Deus você largou mesmo daquela PÉ NO SACO da Renée. , MUITO OBRIGADO!
Comecei a rir de seus berros lá de dentro. Como sempre movida pela curiosidade, andei até seu quarto e parei de braços cruzados na soleira da porta, observando jogar o amigo bebaço numa cama desarrumada. Em seguida, agachou-se na beirada e tirou os tênis de PJ um por um após desamarrar seus cadarços.
— Cara, me desculpa, por favor… — ele voltou a choramingar, do nada. — Eu falei muita merda mesmo. Te considero pra caralho, irmão. Você me desculpa? Porra, eu te amo mesmo, . De verdade, não fica bolado.
— Relaxa, tá tudo bem. Só repete comigo, vai: “eu sou o grande vacilão da noite”.
— Eu sou o grande vacilão da noite.
— Isso. Agora vai dormir.
— Cadê meu COBERTOR?!
revirou os olhos e eu soltei mais uma risada, então descruzei os braços e resolvi ajudar. Quando encontrei um bolo de edredom amassado no chão, peguei-o e joguei em cima do PJ.
e … Quem diria — ele se aninhou entre os travesseiros e levou a borda do cobertor até o queixo, alternando o olhar entre nós dois. — Bem que o Alex falou… Caralho! Vocês combinam demais. Desde sempre, parei pra pensar agora. Tô mal pela confusão sinistra que causei. Vocês me perdoam? Você me perdoa, ? De verdade, , você tem que me perdoar.
— O perdão dela é bem mais importante, pelo visto — reclamou.
— Claro que é. Não foi você quem levou uma porrada dela no corredor ali agora, foi?
— Uma porrada merecida, não é?
— Não tô dizendo que não foi. Será que amanhã vou me sentir humilhado de novo pelo que rolou hoje? Vou, mas o que importa é o amor, cara. Você não entende isso. Eu gosto pra caralho de vocês dois. Hmm, se eu queria dar uns beijos na ainda assim, só pra me distrair desse romance das meninas? Talvez, mas eu sei que seria estranho. Porra, como seria estranho. Não se preocupe comigo, … Não vou fazer nada. Você é como uma irmã pra mim também, . Sejam felizes, vão curtir. Na moral. Quer dizer, já curtiram bastante hoje, não é? Puta merda… Vão dormir, então. Boa noite, seus safados do caralho.
Enquanto eu explodia o quarto de risadas, o que fez PJ rir também, começou a me arrastar para o lado de fora para deixá-lo quieto. Todos nós sabíamos que PJ finalmente apagaria e se transportaria para outro mundo se tivesse pelo menos cinco segundos de silêncio e drogas o suficiente em seu organismo.
— Eu vou embora, já tá muito tarde — falei assim que entrei no quarto de . Então, comecei a procurar pelo resto das minhas roupas enquanto ele me olhava com o corpo escorado no batente da porta.
— Por que não passa a noite aqui?
Soltei uma risada irônica com aquela pergunta. Ela parecia inocente, mas, vindo dele, eu sabia que não.
— Porque se eu ficar, vamos transar pela segunda vez. É uma matemática muito fácil.
Só ouvi sua risadinha enquanto eu continuava de costas, terminando de vestir minha blusa. como ninguém adorava apreciar esses momentos em que eu descarregava uma tonelada de sinceridade que poderia muito bem ter ficado apenas no silêncio da minha consciência.
— E você quer um motivo melhor que esse pra ficar? — ele foi se aproximando de mim.
Nem respondi nada. Me virei para ele e entortei a boca, porque aquele era mesmo um motivo contraditório: perfeito para eu ficar, perfeito para eu ir embora. E eu só iria porque já eram umas quatro ou cinco da manhã, o sono já estava batendo em mim e também impossível estar mais do que explícito na cara do .
— Tudo bem — ele me ajudou a recolocar as alcinhas do meu vestido em cada um dos meus ombros. — Tá bem tarde mesmo... e eu sei o quanto você odeia meu travesseiro.
Dei uma gargalhada e, no meio do riso, respondi:
— Pode ficar e descansar, eu pego um táxi rapidinho.
— Não, relaxa, eu te levo de volta. Espera só eu botar uma roupa, minhas chaves estão lá embaixo.
Ele vestiu uma calça de moletom qualquer e a camiseta que encontrou no chão. Em seguida, calçou uns chinelos e se dirigiu à porta; eu fui atrás. Quando descemos as escadas, nos deparamos com um breu fora do comum na sala. Tudo estava tão quieto e escuro que precisei segurar na barra da camiseta de para me guiar pelo espaço e não trombar em nada. Até que ele finalmente achou o interruptor e acendeu uma das luzes.
Parecia que ambos estávamos esperando encontrar o ambiente totalmente vazio, mas demos um sobressalto ao darmos de cara com Alex sentado no sofá parecendo uma estátua. Uma estátua não, uma maldita assombração. Um grande headphone prensava seus ouvidos, ligado a um aparelho de som portátil que tocava algum CD. Suas costas estavam eretas, o pescoço meio encurvado para baixo e o cabelo fino cobrindo toda a circunferência de sua cabeça. Eu estava diante de um guardião dos portões do inferno.
— Caralho, que susto, Alex — colocou a mão no peito, mas o amigo não se moveu um centímetro sequer. — Alex? Aleeeex… ALEX!
— O que é?! — ele arrastou um dos fones para trás e girou o rosto para nos olhar através de seus compridos fios de cabelo. Mal pude identificar a música que vinha do aparelho, mas era inegável que ele ouvia uma baladinha de rock.
— Por que diabos você fechou todas as janelas e cortinas?!
— Cala a boca, estou meditando.
Meditando?
— Preciso de silêncio e concentração. Caiam fora — impaciente, ele reajustou o fone na orelha e tornou a se virar para frente.
— … Pensei que você estaria no meu quarto com a Sadie agora — falei, mas Alex não me deixou terminar.
— É sério, vocês estão me atrapalhando. Te vejo depois, .
Eu e nos entreolhamos por um segundo estranho.
— Você mora numa república de completos malucos, sabia disso?
Ele só riu e concordou com a cabeça antes de dizer:
— Bem-vinda ao caos.


🙂🙃🙂


Foi difícil me despedir de na picape só com um beijo rápido, porque minha vontade era mais óbvia do que eu já tinha feito o favor de confessar. Ele nem me correspondeu direito, disse que aquela matemática na verdade terminaria no meu quarto se continuássemos. Então, em meio a ainda mais risadas, fui expulsa do carro em prol da nossa sanidade.
Teríamos outras oportunidades.
Assim que tomei um banho e vesti meu pijama, meu destino final foi apenas um: minha cama. Me joguei nela e fechei os olhos devagar, apreciando o calmo silêncio. Eu podia ouvir o canto de um passarinho ou outro por aí, mas nada que atrapalhasse aquela rara quietude. Devia ser mesmo umas cinco horas da manhã. Uma claridade bem frouxa invadia meu quarto, de um sol que ainda nem tinha aparecido para varrer aquela madrugada.
Meu Deus, que paz.
Meu corpo suplicava por um descanso, mas meu cérebro se negava a dormir, mesmo depois de quase vinte e quatro horas aceso. Eu não conseguia parar de pensar em tudo que tinha acontecido na república, de novo e de novo. Minhas bochechas já estavam até um pouco doloridas de tanto que eu sorria sem querer. Eu tinha tanto medo de me envolver emocionalmente com alguém outra vez, tentava tomar tanto cuidado para não cair em nenhuma cilada… Me proteger de uma decepção, me blindar da minha própria vulnerabilidade. Acontece que estive gastando energia demais tentando controlar meu coração, quando era pura bobagem sequer cogitar que isso seria possível com . Ele me fazia esquecer que eu não estava pronta para me apaixonar por ninguém de novo.
E talvez eu estivesse fazendo o mesmo com ele.
“Quando você vai cair na real… e perceber… que eu sou louco por você?”
Não sei como não liguei para a ambulância naquele momento. Ou agora. Na verdade, eu precisava ligar para Jenna com a maior das urgências assim que eu acordasse. Estava odiando o fato de ela ser a última a saber daquilo tudo, quando deveria ter sido a primeira desde o início. Pois agora eu iria contar tudinho, tim-tim por tim-tim.
E com aquela nota mental meu cérebro finalmente foi parando de trabalhar. Eu podia sentir um soninho dos deuses me dando a melhor das boas-vindas. Estava mais do que preparada para ter um descanso perfeito… e nada me faria levantar da cama agora.
Nada.
Nem se os Estados Unidos declarasse uma Terceira Guerra Mundial. Nem se Top Gun estivesse começando na TV. Nem se Madonna viesse pessoalmente me ensinar a dançar Vogue. Nem se ETs abduzissem Sadie no outro quarto.
… Mentira, eu ia correndo salvá-la.
Adormecer nunca foi uma tarefa tão árdua quanto naquele momento. Eu devo ter ficado mais umas duas horas ainda rolando pela cama, presa naquele limbo entre a consciência e leves cochilos que nunca se aprofundavam.
Num instante perfeito, quando senti que finalmente dormiria, um barulho estridente lá de fora me acordou. Tão de repente que minhas pálpebras simplesmente racharam ao meio; meus olhos quase pularam para fora da órbita.
This Romeo is bleeding… (Este Romeu está sangrando…)
Meu Deus… O quê? O que era aquilo? Não… Não poderia ser… Alguém estava cantando lá fora?
Meu quarto já estava preenchido pelo clarão daquela manhã ensolarada, o que me irritou mais ainda. Fui obrigada a me levantar e, com os olhos espremidos, caminhei até a janela, de onde vinha também um som igualmente estridente de acordes no violão.
I can't sing a love song… like the way it's meant to be! (Eu não consigo cantar uma canção de amor… do jeito que ela deveria ser!)
— É, nós sabemos! — umas garotas começaram a gritar. — BOOOO!
De repente, aquelas vaias contaminaram todos os andares do meu dormitório. Um descontentamento geral. Quando coloquei a cabeça para fora da janela, pude ver Alex Rose lá no pátio segurando um violão, olhando diretamente para o meu quarto, em toda sua soberania de um astro de rock. Com sua típica bandana vermelha na testa, ele protagonizava a maior serenata que aquela universidade um dia já viu, eu tinha certeza.
Não sei como, apenas tinha.

🎵 Pra você ouvir de fundo:
Always – Bon Jovi

Com meu sono arruinado, senti que eu tinha uma única missão agora. Corri até a cama de Sadie e quase infartei a garota quando sacudi seus ombros.
— Acorda! Anda, acorda!
— O quê, o quê, o que é? — ela se sentou no colchão em estado de alerta. — Puta que pariu, , hoje é sábado!
— Vai salvar seu namorado, Sadie!
— Como é?! Que namorado? Eu não-
Well, I guess I'm not that good anymore but baby, that's just me… (Bem, acho que não sou tão bom mais, mas baby, esse sou só eu…)
Finalmente ela ouviu a cantoria desafinada e ficou paralisada feito um monumento de pedra em cima do colchão. Claro que identificou a música de um dos seus ídolos favoritos. Um verdadeiro hino cafona, que ela ouvia incontáveis vezes no banho, lixando as unhas ou lavando a louça, agora sendo performada ao vivo e a cores por sua alma gêmea. Cinco segundos depois, Sadie me empurrou da sua frente e correu para a janela da nossa salinha, e lógico que fui atrás para assistir.
— AND I… WILL LOVE YOU! BABY… AAAAAALWAAAAAAYS! (E EU VOU TE AMAR, BABY… SEMPRE!)
Alex cantou o refrão inteiro aos berros, pouco ligando se estivesse destruindo suas cordas vocais ou errando as principais notas. Ele cantava com todo o ar de seus pulmões, com toda a paixão que transbordava de seu coração e com todo seu típico desajeito ao tentar encarnar o próprio Bon Jovi – o que não agradou nada a plateia feminina que ele atraiu, principalmente àquela hora da manhã de um sagrado final de semana.
De repente, objetos começaram a ser atirados em sua direção. O primeiro foi uma bolinha de papel, que não demoraram a virar duas, três, quatro, dez, vinte bolinhas pelo efeito manada das garotas. Outras começaram a atirar mais lixos, tipo embalagens de papel vazias e cascas de frutas. Alex só parou de cantar quando um pirulito redondo e vermelho saiu voando de alguma das janelas e foi parar direto em seu cabelo. Foi então que seu espetáculo passou de um grande estresse para uma grande diversão. De Bon Jovi ele virou um Ozzy Osbourne depois de cheirar uma carreira de formigas.
Eu já estava quase me mijando de tanto rir.
— EI! PAREM COM ISSO! — Sadie gritou para as outras, que finalmente identificaram a musa de Alex. — , você também, poxa!
— O que você quer que eu faça?
Nem deu tempo para ela elaborar uma resposta. Alex parou de tocar e, ofegante, segurou o violão apenas pela haste para abrir os dois braços. Todo mundo ficou em silêncio, na expectativa do que ele tinha a declarar.
— SADIE — berrou ele, com o pirulito ainda grudado em uma das mechas de seu cabelo —, QUER NAMORAR COMIGO?
Escutei um alto suspiro dela, a única chocada com aquele pedido.
— Minha nossa — sua voz estava trêmula, quase inaudível. — O que- O que eu faço?
— Desce lá logo e vai dar uma moral pra ele! — falei o óbvio.
Depois de hesitar um pouco – talvez calculando minuciosamente seus próximos passos –, Sadie se virou rápido e foi direto para a porta. Porém, antes de sair, ela fuçou em uma das gavetas da nossa escrivaninha e pegou algo que não consegui detectar. Só então correu lá para baixo, e eu continuei na janela, esperando como uma senhorinha pela próxima cena daquela novela.
Assim que a vi caminhando para fora do Belva Hall e alcançando Alex – até agora com os braços abertos feito o Cristo Redentor –, finalmente reparei no que estava em sua mão: uma tesoura. Com um pavor hilário nos olhos, ele recuou alguns passos e encolheu os ombros. Várias garotas em outras janelas arfaram em espanto, e logo um burburinho suspeito começou.
Eu estava tranquila. Conhecia bem minha colega de quarto, de serial killer ela só tinha cara. Ao contrário do que todos estavam imaginando, Alex estava fora de perigo.
Sadie delicadamente puxou uma mecha de cabelo dele – a que estava toda embaraçada em um grande nó e melada pelo pirulito – e cortou a parte que não tinha mais jeito de salvar. Em seguida, acariciou o rosto de seu amado projeto de rockstar e também berrou para que todos ouvissem:
— SIM! QUERO!
Alex rasgou um sorriso que não cabia em seu rosto, então seus braços novamente se abriram para recebê-la. Sadie pulou nele e os dois rodopiaram num abraço estabanado, porém emocionante. Todos que estavam presenciando aquele momento inusitado começaram a aplaudir e a soltar gritinhos em incentivo, até estudantes aleatórios que estavam só caminhando pelo pátio e pegaram a cena pela metade.
Eu estava eufórica. Talvez a pessoa que batia as palmas mais escandalosas entre as espectadoras das janelas do dormitório. Meu Deus… Como os acasos da vida eram engraçados. Ou o destino, como diria Jenna.
Jenna.
Eu precisava ligar para ela.
Mas não antes de dormir todas as horas que eu tinha direito. Meus olhos já estavam tão secos que estava difícil mantê-los abertos. Ainda com um sorrisinho feliz pelo novo casal oficial, me arrastei até meu quarto, fechei a porta e a janela, deitei na minha cama e instantaneamente apaguei.

Sumi do mundo.


🙂🙃🙂


— Boa noite, .
— Boa… Boa no- O quê?!
— Sim. Já são quase oito horas da noite — foi o que ouvi de Sadie quando pus meus pés para fora do quarto. — Comprei um suco de laranja, tá no frigobar. Quer?
— Quero… — ainda meio zonza, fui pegar a bebida e me juntei a ela na mesinha da sala. — Nossa… Dormi demais.
— Sim — ela deu um sorrisinho suspeito ao levar seu copo à borda dos lábios.
— Você ficou aqui esse tempo todo?
— Sim. Eu e Alex. Aproveitei enquanto você estava hibernando.
— Hmm… Finalmente! Mudanças! Pode casar com ele, você tem minha bênção.
— Calma lá… — ela riu, meio envergonhada como sempre, mas satisfeita. — É só porque eu realmente não resisti.
— Mas e aí, como está sendo sua nova vida comprometida, senhorita Rose? Já marcaram um jantar à luz de velas com lasanhas congeladas?
— Dá um tempo, .
Com uma risadinha, peguei meu suco e me levantei da mesa para voltar ao meu quarto. Lembrei que eu tinha uma ligação mega importante para fazer que não poderia ser adiada nem mais um minuto.
— Ei, espera aí — Sadie me chamou —, tenho só mais uma coisa pra te contar.
— Agora não, ok? Depois você me fala — continuei andando porque eu não tinha foco para nenhum pedaço de informação sobre outra coisa.
No instante em que terminei de discar os números do telefone de Jenna, senti um friozinho na barriga que fez um sorriso se alastrar pelo meu rosto. Eu ansiava pela reação dela mais do que qualquer outra coisa naquele momento. E talvez por isso os toques da chamada pareceram longos demais… ou até em maior quantidade. Quantos beeps ouvíamos antes de cair na caixa postal, mesmo? Porque era como se eu estivesse ouvindo uns noventa e sete.
Aproveitei para ensaiar, naqueles míseros segundos angustiantes, a primeira coisa que eu falaria. Minha mente estava acelerada.
“Jenna, estou saindo com o .”
Não. Direto demais.
“Eu e … vamos ter um bebê!”
Pausa para pensamentos totalmente intrusivos.
“Tem algo rolando entre eu e o …”
Ok, é um bom início.
“... E talvez eu esteja muito envolvida. Tipo, muito. Mesmo tomando cuidado, tentando não pensar nisso com frequência, não adianta nada. Cansei, já era. Eu tô apaixonada, caralho. Ou ficando louca? Não sei. Tem alguma diferença?”
As chances eram altíssimas de eu chegar nesse desabafo depois da revelação.
Depois de quinhentos toques em espera, Jen finalmente atendeu. Minhas mãos começaram a formigar quando ouvi seu “alô”. Aposto que eu não ficaria tão nervosa se estivesse esperando o “alô” do Tom Cruise, o que era motivo de desespero.
— O-Oi, sou eu.
Ah, oi, chuchuzinho! Desculpe a demora, eu tava na correria pra terminar de me arrumar. Vou ao cinema com a Lori agora. Inclusive, tô mais do que atrasada pra pegar a balsa das nove. A gente pode se falar depois? Juro que te ligo.
— Erm… — pensei um pouco. Aquilo me pegou desprevenida, mas era mesmo melhor falarmos sobre o assunto sem pressa. — Tá, pode ser. Que filme vocês vão ver?
As Panteras. Já viu?
— Não… Tem um século que não vou ao cinema. Tô até sentindo falta de assistir alguma coisa nova.
Pois é, bem que a gente poderia combinar de ir depois, né? Tá cheio de lançamentos legais. Mas preciso ir agora, sério, ou a Lori vai me matar. Mais tarde te ligo, ok? Prometo. Beijo!
Ela desligou, e agora eu estava mais maluca do que antes. Calcei umas pantufas e andei até minha colega de quarto com uma inquietação que já estava me dominando. Sadie estava no sofá com os olhos grudados na televisão, para variar.
— Tá bom, me fala o que você queria me contar — me sentei no braço da outra ponta do sofá. — Agora posso ouvir.
— E agora eu não posso. Tô vendo o Bush dando entrevista no David Letterman.
— E por que raios isso é mais importante?! — questionei, indignada.
— Óbvio que é mais importante, . Você já sabe em quem vai votar nas eleições desse ano?
— Não sei nem se vou votar.
— Vai, sim. Se não votar, outra pessoa vai tomar essa decisão por você. As eleições só são decididas pelas pessoas que saem da inércia e votam — ela me encarou por um segundo mortal, depois voltou sua atenção aos dois homens engravatados na TV. — Você tem que conhecer os candidatos e suas propostas.
— Ok, mas não num programa de talk show.
— Mas é divertido! Tá vendo? — ela apontou para o programa, que tinha a plateia aplaudindo e rindo horrores de alguma coisa. — Você me fez perder a piada. Fica quieta e me deixa ouvir.
Revirei os olhos.
— Vou ser obrigada a esperar esse negócio acabar pra saber o que você tinha pra me contar?
— Vai — ela deu um mini-sorriso triunfal, ciente do prazer que sentia em me irritar à toa.
— Ai, Sadie, eu não tenho a menor paciência pra você.
Tive que engolir minha curiosidade e, ainda meio relutante, esperar o momento certo para cobrá-la de novo. Talvez o momento em que seu cérebro não tivesse que sofrer minha interferência para tentar focar em duas coisas ao mesmo tempo. Decidida, eu já ia me levantar e sair dali, mas ouvi George W. Bush dizer algo que aguçou meus ouvidos. Resolvi ficar e prestar atenção, embora tenha pegado a conversa pela metade e sem o menor contexto.
“... Não, isso não deveria causar uma guerra, mas deveria haver repercussões. Precisamos enviar uma mensagem aos terroristas de que haverá um preço a se pagar”, ele disse, ao que Letterman concordou com um meneio de cabeça. Bush continuou, “se você mexer com os Estados Unidos e matar nossos cidadãos, haverá um preço alto a se pagar.”
— Do que ele tá falando? — eu quis saber.
— Do ataque que teve no Iêmen, .
— Mas-
— SSSHH!
“Você está falando sobre retaliação ou do processo legal?”, foi o que Letterman perguntou, causando risos na plateia e no próprio governador do Texas, agora candidato à presidência. Bush se endireitou na poltrona e retomou a seriedade na voz ao responder: “Estou falando sobre esclarecer todos os fatos, deixá-los saber que não admitimos isso e que haverá uma séria consequência. As pessoas precisam saber que nossos Estados Unidos são uma nação pacífica, mas se alguém explodir nosso navio e matar soldados, haverá uma séria consequência.” Ele teve que se interromper diante de tantos aplausos. Então, finalizou: “E agora vocês podem decidir que consequência será essa se eu for eleito o presidente.” A próxima coisa que ouvi foi David Letterman chamando os comerciais, ainda em meio às palmas incessantes e orgulhosas da plateia.
— Caramba… — Sadie pegou o controle remoto e diminuiu o volume da televisão. — Eu gosto do Clinton, mas o governo dele não fez muito pra punir os responsáveis…
— Tô totalmente por fora dessa coisa.
— Que novidade...
— Bom, não totalmente. Só sei que minha família simpatiza com qualquer republicano que aparece falando bonito na TV e exaltando nosso país, mas não confio mais tanto assim nessa opinião deles desde que vim sozinha pra cá.
— Eu tô é cansada desses ataques terroristas e ninguém fazendo nada a respeito por medo. Já teve um aqui em Nova York, lembra? Uns sete, oito anos atrás.
— Ah... — me rendi. — Foi mal, não tô lembrada.
Eu vivia numa bolha na minha cidade. Na verdade, pessoas rurais viviam muito mais numa bolha do que os eleitores urbanos e suburbanos. Depois de me mudar para uma megalópole com oito milhões de habitantes, isso ficou bem claro. Tipo, dolorosamente claro. Foi inevitável conhecer pessoas de todas as esferas da vida em uma escala muito maior do que se eu tivesse continuado a morar em Livingston. Lá, eu era totalmente alienada a questões sérias que aconteciam em qualquer canto do mundo ou dentro das paredes da minha própria casa. Só assistia a filmes e desenhos na época, nem o jornal local passava perto do meu interesse. Minha única preocupação era fazer o dever de casa, beijar meu namoradinho, não atropelar vacas na estrada dirigindo as caminhonetes do meu avô e não perder o próximo episódio de Barrados no Baile, mas eu não ia contar minha história triste de menina tonta e desinformada para Sadie.
— Meu Deus, . Foi um caminhão-bomba, não lembra? Matou seis pessoas, feriu umas mil. E tem pouco tempo que nossas embaixadas também foram atacadas no Quênia e na Tanzânia. E agora esse navio da marinha no Iêmen. Pra mim já deu. Chega. Ultrapassaram todos os limites, não acha? O que mais vão precisar fazer? Quantas vidas ainda vão precisar ser sacrificadas?
Eu aposto que ela e Alex ficavam horas se envolvendo nesse tipo de discussão numa sexta-feira à noite. Não sei como os dois ainda não fundaram uma ONG.
— Eu acho que tá parecendo o fim do mundo, isso sim. Falaram tanto dos computadores, que o bug do milênio ia ferrar com tudo, mas… que grande novidade, o extremismo que é a nossa própria ameaça.
— Pois é. Não falta muito pra eu perder o mínimo de esperança no ser humano.
— Eu até que gosto desse seu lado pessimista, Sadie. Penso igual.
Ela começou a rir. Pareceu até que se sentiu bajulada o suficiente e manteve o sorriso no rosto ao dizer:
— Certo, não vou te torturar mais. Olha ali em cima da escrivaninha, no lado esquerdo. Tem um envelope. É pra você.
— O quê?! Um envelope? Pra mim?! — já me levantei em estado de alerta e fui em direção ao local indicado. — Como assim, de quem?
— Da Jenna. Ela passou aqui hoje mais cedo te procurando, mas você ainda estava dormindo no seu sono reparador de rugas.
— Vai te catar — reclamei, já rasgando a abertura do papel. — Ah… São as fotos que a gente revelou outro dia.
Fui para o meu quarto, arrastei a bagunça da minha cama para o lado e me sentei no colchão com o bolo de trinta e cinco fotos no colo, porque queria olhar uma por uma. As primeiras do filme eu tinha tirado séculos atrás, quando saí com Allison e outras garotas para a piscina comunitária do campus. Algumas estavam muito engraçadas. Eu nem me lembrava que tinha um biquíni rosa de bolinhas brancas. Alguém tinha tirado uma foto minha fazendo bala de canhão enquanto saltava do trampolim. Que merda. Eu ia esconder isso.
Separei a foto e a enfiei debaixo do travesseiro para guardar depois.
Outras eram da minha ida a Manhattan com meu irmão. Ele tinha levado a própria câmera, gastou todo o filme e tirou mais algumas com o meu. Jackel era tão idiota que, na sua foto com a Estátua da Liberdade ao fundo, colocou a língua para fora de modo que parecesse que ele estava lambendo o sovaco dela em perspectiva.
Então, finalmente, as fotos que tirei em Oakwood. Meu Deus… Ficaram ótimas. Algumas não prestaram, mas tiveram duas ou três em que a nitidez do jornal antigo tinha ficado perfeita. Fotos inúteis, eu tinha que admitir, mas guardaria todas para recordação.
Em seguida, as fotos de Jenna, que eu só tinha visto no laboratório sob a luz vermelha. Não tinha nada de especial nelas, só clarões, borrões, tralhas dos velhos casebres… Nenhuma visita inesperada de Mary Lou e seus olhos brancos, enormes e horrendos. Ainda bem.
Quando cheguei na última, um post-it amarelo estava pregado bem no centro, ocultando quase toda a paisagem. Nele, a caligrafia incrivelmente delicada de Jenna dizia: “foto 36”. Fiquei feliz e surpresa, afinal, pensei que uma tinha se perdido no rolo. Ela mesma tinha cortado uma do negativo. Será que conseguiu recuperar?
Eu só não queria ver a tal da fantasma vingativa na minha frente.
Retirei o post-it e meu coração quase saiu pela boca. Comecei a tremer igual vara verde. Eu não podia acreditar no que meus olhos estavam vendo. Era uma foto minha e de . Em Oakwood. Naquele mesmo dia. Vistos de longe, um de frente para o outro. E embora meu sorriso estivesse escancarado, ele também sorria ternamente de volta para mim naquele momento, agora congelado para sempre numa fotografia.
Ainda sem acreditar na mera existência daquele pedaço de papel em minhas mãos, girei-o para analisar rapidamente o verso. Foi então que me deparei com outra surpresa. Entre alguns corações, florzinhas e estrelinhas à caneta, mais uma vez as letras de Jenna tinham um recado:

“EU SEMPRE SOUBE, CHUCHU!”



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