Revisada por: Sagitário♐
Última Atualização: 24/03/25Passaram-se anos, e nós dois fomos incapazes de marcar um encontro naquela época. Todos da internet criaram ships, seus amigos diziam que nosso namoro não ia dar certo, entre outras coisas que dou risada só de lembrar.
Mas é inevitável lembrar de nossas calls da madrugada ou nossas mensagens. Dou replay em cada áudio e fico sorrindo como idiota!
E agora, como você deve estar? Realmente não posso mais deduzir.
Mesmo assim, agora percebo o quão fui burra em ter deixado você ir.
Seria impossível reconstruir isso.
(Lydia Ribeiro)
“Em outra vida, eu seria sua garota
Nós manteríamos todas as nossas promessas, seríamos nós contra o mundo.”
The one that got away — Katy Perry
Nós manteríamos todas as nossas promessas, seríamos nós contra o mundo.”
The one that got away — Katy Perry
MIGRAR PARA OUTRO ESTADO ERA NOVIDADE. Lydia amava ser paulista, mas seus planos e vivência tornaram-se insignificantes. Desde a saída da casa dos patriarcas, a experiência da transição de menina para mulher adulta se complicou.
Ocasionalmente, lembranças de cinco anos atrás ressurgiam no subconsciente. Lily tinha dificuldade para esquecer 2017, porque seu ex-namorado de internet — Victor Schiavon, conhecido por sua alcunha, Gemaplys — fora um homem carismático e inesquecível.
Uma curiosidade interessante: deram o apelido de “Lily” justamente por causa dele e brevemente o utilizou, homenageando outra e melhor personalidade. A Ribeiro de 2022 nunca mudara: tons escuros avermelhados de seu totalizante, outrora madeixas castanhas e onduladas, agora alisadas e tingidas por um vermelho RBD, por conta da personagem Roberta na terceira temporada da novela.
Os relacionamentos eram extremamente maçantes neste século da putaria. A porcentagem de caras inconvenientes era imensa! Metade daqueles com quem ela havia saído queriam sexo casual, contendo sempre fotos íntimas arquivadas de 200 mil outras mulheres nas suas galerias. Estava cansada! Embora tenha namorado, ficado, conversado, não mais reconheceram o sentimento amoroso nela.
Nenhum deles tinha o sorriso de Victor! Nenhum deles era sensato, sequer cantavam músicas decentes. A paulistana queria ter a possibilidade de enxergar seu reflexo nas íris verde-escuras, carinhosamente afagar os cabelinhos negros e mergulhar em seus lábios sob uma noite fria, sendo declarada ao som de “Quinto elemento” — ela ouviu tantas vezes Trashtalk no Spotify, segurava-se para não chorar enquanto assistia os clipes na TV.
Apesar de nunca tê-lo encontrado pessoalmente, a personificação criada do gaúcho a fazia imaginar um namorado perfeito e, consequentemente, sua excelente companhia durante os momentos de tédio lhe salvava. Contudo, naquela época tê-lo fisicamente era impossível. Porque a ruiva quase não viajava e sequer tinha amigos. Foi sair do ensino médio que decolou seu mundo.
Morava no interior e passava metade do dia estudando para a faculdade, era tão distante da civilização até para buscar um simples pão. Nos intervalos, praticava teclado e mixava beats no FL Studio. Se juntasse dinheiro e obtivesse comissões, sairia de casa. Certamente, no futuro, poderia abandonar o lar.
Lily felizmente partiu quando dois anos se passaram. Ninguém negava o talento nato e empenhado dela para instrumentais — conseguiu vender 38 beats em menos de uma semana.
Saiu de uma casa para novamente sair de outra, relembrando da convivência na metrópole, só se estressando com a linha vermelha, linha azul e linha amarela da CPTM. Andava pela Liberdade, por vezes na Faria Lima e sempre se localizando no Ibirapuera. Típica mina de Sampa: livre, leve e solta, sua praia eram pistas de skate e rolês alternativos. Confessava estar sentindo falta disso.
2019 havia sido uma surpresa quando Victor viajou a São Paulo. Aquele vlog do primeiro encontro dele com seus amigos de muitos anos na BGS, sentindo emoção e euforia, aguentando dor e angústia por saber que não estava ali. Por outro lado, Ribeiro ficou contente. Jean e Leandro sempre respeitaram a mulher, e quando soube que ele tinha ido embora… Perdeu a oportunidade de encontrá-lo.
Maldita época que a aprisionaram no meio do mato. Lydia faria tudo por Victor, até cavalgar em cima de um jegue. Mas não! Escolheu chorar no escuro, tendo só a claridade do notebook reproduzindo o bendito vídeo onde seu ex zoava com os amigos, comia em algum restaurante japonês do centro e entoava “Razões e emoções” do NX Zero coletivamente no karaokê.
Por que eles terminaram? O que realmente houve para isso acontecer?
Primeiramente era um webnamoro, relacionamentos a distância eram impossíveis de darem certo! Muitos julgariam, mas na geração dos celulares e aplicativos sobre amizades e bate-papo, inevitável era acreditar que isso era considerado genuinamente comum. Segundamente, aumentaram as chances de levar pares de chifre e nascimentos de raízes baseadas em mentiras, enquanto mensagens e ligações eram enviadas e realizadas no passar dos meses.
Talvez tivesse sido carência acumulada nos dois lados, igual no lançamento de “Polaroid”… Lydia queria saber de quem caralhos ele estava falando na canção, mas o gaúcho nunca tocou no assunto.
Quando chegaram outras amizades no ciclo social deles, essa conexão se iniciou por meio de uma chamada de voz num grupo individual no Discord. Jean contou uma história de infância sobre o famigerado jogo de PlayStation 2, Playboy: The Mansion. O primo e ele acharam um CD “diferente’’ no tocador e quando viram que era um jogo pornográfico, ficou traumatizado.
Victor havia assumido que Lydia era sua namorada. Leandro, que também estava na call, deu uma risada estridente, depois se recompondo em respeito ao amigo. Ignorando as risadas, ela se envergonhou, continuando a prestar atenção na história que o outro youtuber estava contando.
Após isso, Carteiro apresentou a ROM baixada do jogo com o trio e Lily. Dava para soltar umas gargalhadas e zoar, enquanto bonecos pixelados transavam no sofá. Ela admitia ser uma das calls mais resenhas daquele ano.
Jean e Leandro eram muito conectados com Schiavon. Lily amava a companhia do palhação cósmico, e foi assim que eles se conheceram e inesperadamente se uniram.
Lydia Ribeiro e Jean Dias de Paula eram quase como irmãos de outras mães, quão ele citava termos e palavras erradas, caretas exageradas. Ao conhecer a persona "O Carteiro Cósmico", havia ficado impressionada. Desde quando adolescente era idiota e soltava absurdos como no primeiro canal, Jean Xeroso. Graças a proximidade deles, mantinham contato até naquele ano recente. Todavia, nem Jean ou Leandro falavam sobre Victor para Lily por questões de privacidade.
Na pandemia, assim como na vida de todos entre esse período, novamente se aprisionou no quarto, mas avançando na carreira de streamer e youtuber de músicas e type-beats. A ruiva era extremamente gentil com seu público, além de atenciosa e criativa. O chat era mais ativo, arrecadando boas quantias graças aos pix e donates. Criou uma comunidade, assim alcançando mais pessoas em seu caminho online.
Rebobinando um pouco o tempo, a primeira conversa entre Lily e Gemaplys ocorrera em 30 de abril, numa tarde friorenta de sábado — acompanhada por biscoitos e achocolatado — durante uma call em um servidor relacionado a artes. O gaúcho mencionou para a paulista que desenhava na faculdade, que aceitou de bom grado ver os rascunhos dele. O rapaz enviara uma carpa desenhada perfeitamente em caneta preta. Ela ficou encantada pela beleza dos traços, quase semelhantes aos de mangaká.
Schiavon compartilhava assuntos variados com ela e desenhava seu aspecto, dono de olhos pesadamente escuros por maquiagem preta, e delineados simples. Íris castanhas, pele sob tons de oliva, cílios longos e ampliados. Os cabelos dela, abundantes e caídos pelas camadas dos ombros. Enquanto o homem tinha uma aparência jovial, magníficos olhos esverdeados, curtinhos e negros cabelos, óculos quadrados e o queixo oval.
Lily, perplexa com a boniteza do gaúcho, descobria o porquê de as fãs o chamarem de senpai. Os moletons que vestia aparentavam ter cheiros agradáveis, embora fossem teorias dela mesma.
Além disso, eles trocavam recomendações de vídeos e músicas. O vínculo cresceu ao longo das calls e mensagens e decidiram, então, progredir para um relacionamento romântico, complicando ainda mais os sentimentos da mulher.
Por volta de 2017, terminado definitivamente em meados de 2018. Lydia e Gema comprometiam seus futuros, chamando-se de marido e mulher, a brincadeira de outrora havia se transformado num afeto constante.
Porém, nem tudo eram flores, pois uma briga acabou levando ao rompimento abrupto de seu relacionamento. Lydia queria saber porque eles passaram por aquela situação. Victor havia mandado um áudio completamente raivoso e hostil para a garota. Ela tentou se desculpar, mas não adiantou! Ele a tinha bloqueado de suas redes sociais privadas.
Embora agora se arrependesse de suas ações, Ribeiro imaginava o quão solitário e chateado Victor devia ter se sentido nos anos que se seguiram. Era mesmo culpa dela? Se processasse o cérebro para relembrar do motivo da briga, nunca mais ficaria insegura e cheia de sentimentos presos.
Nenhum outro homem era Victor deitado em sua cama. Lydia ficou com loiros, ruivos, asiáticos e pardos. Já tinha sido pedida em namoro e os abandonado… Aquele amor incompreendido não saía de sua cabeça nem com reza brava.
No auge de seus 24 anos, deixaria finalmente o passado morrer na zona central, ante aos cracudos da República e Praça da Sé. Mudou-se para o Rio Grande do Sul, esforçadamente recebeu uma bolsa de estudos na melhor universidade de Pelotas. Cursaria artes cênicas de maneira convencional.
Calçando os Converse e amarrando os cadarços, a ruiva enrolava o longo cabelo em um coque desgrenhado. Carregou suas malas, despedindo-se do apartamento alugado. Seus móveis já haviam sido transportados e entregues.
No momento que aguardava o Uber para seguir ao aeroporto de Guarulhos, seu Motorola vibrou nos bolsos da calça jeans. Lily desbloqueou a tela do aparelho celular, deparando-se com a 15ª mensagem de sua amiga e futura colega de apê, Gabriella Valadares, que aguardava ansiosamente para morar com ela. Mais abaixo, havia uma mensagem de Jean lhe desejando boa sorte na mudança.
"Ei, quando você chegar, lembre-se que vou te dar um abraço bem grande!"
Leu a mensagem de Gabi enfeitada por um emoji de luazinha. Lydia respondeu com um simples: “Haha, beleza”, prosseguindo com atenção na rua, paralisada frente ao portão do condomínio.
Tão estranho prescindir do estado de onde nasceu, relembrar dos pais e suas vivências. Todas elas foram contadas em diferentes cidades do mesmo estado deprimente, agitado e poluído.
Seus olhos averiguaram pedestres nas ruas e os mesmos vizinhos do bairro. Sentando-se nas escadas do portão, selecionou um álbum aleatório de Gorillaz, estourando as faixas em seus AirPods.
Lily verificava outras mensagens no WhatsApp, lentamente rolando nos contatos, quando algo chamou sua atenção. A mulher fora nas conversas arquivadas encontrando um número bloqueado, sendo o contato nomeado “Vitey, meu amor”. Por que ela não havia deletado o histórico de conversas? Encontrando uma mensagem específica, ficou melancólica:
Lydia
“Fala uma coisa que eu não sei!”
“Fala uma coisa que eu não sei!”
Victor:
“Ah, cara, eu te amo.”
“Ah, cara, eu te amo.”
Lydia repetiu aquilo em voz alta. Ela não pôde deixar de perguntar se Victor estava rindo sobre tudo o que havia acontecido entre eles. Percebendo que estava falando sozinha, limpou a garganta, tentando se recompor enquanto aguardava a chegada do Uber.
Finalmente, entrou no veículo, pedindo ao motorista que colocasse suas bagagens no porta-malas. Lily apertou o cinto de segurança, continuando a escutar suas músicas fechando os olhos. Tinha consciência que reler mensagens sobre os dois era prejudicial. Deveria aceitar que nunca conheceria Victor pessoalmente.
Eles não estavam juntos e ele não fazia mais parte de sua vida! No entanto, a pergunta persistente grudava na sua mente: “Em alguma outra vida, eu seria novamente a garota dele? Havia uma chance de se encontrarem novamente?’’
A ruiva certamente não previa o futuro, nem qualquer taróloga meia-boca de lives no TikTok revelaria o destino daquele finado casal. Sua vida renovada estava prestes a começar. Tudo mudaria a partir daquele momento em diante.
“Seremos donos do nosso amanhã se estivermos unidos
Em sintonia com os nossos sonhos
Mesmo se não formos iguais
Pois não somos iguais”
Dona do meu pensamento — Charlie Brown JR
Em sintonia com os nossos sonhos
Mesmo se não formos iguais
Pois não somos iguais”
Dona do meu pensamento — Charlie Brown JR
O EMBARQUE FINALMENTE TERMINOU. Lily respirava fundo, marchando com seus tênis para fora do aeroporto, sorrindo animada e satisfeita. Antes fora obrigada a pegar mais um Uber, mas foi um percurso tranquilo. Carregava suas malas sozinha, sentindo o ar fresco de Pelotas, juntamente com a beleza arcaica dos prédios históricos.
Era diferente da poluição e sujeira contaminada do inferno que a República costumava ser, onde era complicado andar naquelas ruas: drogados, prostitutas, mendigos, malucos, policiais rondando em cada avenida. As taxas de crimes e homicídios mais aterrorizavam os moradores. Lily demorava para cair na real… Ninguém mais sobrevive em São Paulo!
Todos os dias, lutava contra uma fobia social — tinha medo de ser assaltada ou levar uma facada de um esquizo. Contudo, era necessário e obrigatório pegar o metrô nas questões de tornar-se freelancer e participar das aulas reconfortantes de dramaturgia.
Os habitantes daquela nova cidade aparentavam ser tranquilos. Ansiosamente, parou na faixa de pedestres quando o semáforo transicionou para o verde. Os carros passavam lentamente, sem trânsito ou engarrafamento. Sentiu-se a princesa do sul, mal parecia ter saído de uma cidade aglomerada e triste.
Chegando sem demoras em uma praça local, Ribeiro avistou sua melhor amiga. Acenou para Gabriella e, inesperadamente, se abraçaram eufóricas por terem se encontrado pessoalmente após um ano ter se passado.
Gabriella era dona de uma pele leitosa salpicada por minúsculas pintas, olhos verdes e curtas madeixas castanhas-escuras, descidas até o fim das orelhas com algumas camadas descoloridas, que pertenciam a uma franjinha reta cobrindo sua testa. Uma mulher alta e curvilínea, vestindo jaqueta colegial preta com listras horizontais, costurada com um logotipo de alguma marca não identificada. As coxas grossas e joelhos rosados reluziam na verde saia xadrez, curta e farfalhante de tecido fino. Digna de uma amante de jogos eletrônicos, usava uma camiseta branca escrita firewalk with me, claramente uma referência ao ship Amberprice de Life is Strange.
Lily e Gabi haviam se conhecido no Instagram. Ela e a gaúcha trocavam várias ideias sobre literalmente qualquer assunto, uma sempre apoiando a outra. Felizmente, se encontraram de verdade quando Gabi ganhou uns ingressos para o Anime Friends, dançando no Just Dance e tirando fotos com cosplayers.
Melhores amigas compartilhavam segredos. Entretanto, Lydia nunca mencionou o relacionamento com Victor. Apostava consigo mesma que nem ela o conhecia. Pois ela se enganou feio!
— Menina, finalmente saiu daquele caos! Já ‘tava na hora, viu? — debochou da amiga com as mãos na cintura, o semblante feliz e a voz tranquila — Quais as novidades?
— Nenhuma… mas espero várias daqui pra frente — disse convencida, abanando os braços — Conseguiu ajeitar meu cantinho? Não mereço viver no meu palácio sem minhas paradas. — Lydia tinha suplicado para a Valadares colocar todos os seus móveis em seus devidos lugares, foi um trabalho fácil.
No apartamento de Lily, tinha apenas as peças de seu setup, o computador, televisão, instrumentos e o restante deu para manter dentro das seis bagagens. Sua cama e guarda-roupa, felizmente, foram montados graças a um vizinho de Gabriella, que trabalhava nas Casas Bahia.
— Relaxa, está tudo montadinho. — Riu jocosa, pedindo para carregar algumas malas. — 'Cê vai amar o apartamento, amiga! Bom, quer dizer… Só ignore quando alguns vizinhos chatos e meus amigos vierem nos encontrar. Eles são malucos e capazes de se tornarem seus parças também.
— Quanto a isso, não me surpreende. Paguei caro pra caralho nessa passagem, nessas malas. — Realmente os custos brasileiros não perdoavam. — Aff, tenho sorte em ser subcelebridade.
— Amiga, ninguém pode negar o quanto tu é diva! — Gabi contrapôs sinceramente, dando um suspiro prolongado — Bora esperar o Henrique chegar. Ele se ofereceu pra te levar.
— Vocês continuam namorando?
— Fazer o quê? Ele vai estar me aturando até ficarmos dois velhos caquéticos.
“Uau, como queria ter a vida perfeita da Gabi! Totalmente o oposto. Se em toda minha vida os relacionamentos fossem duradouros, não estaria guardando mensagens do homem com que sonhava ter um futuro assim”, pensava Lydia neutra e inquieta com os sentimentos, balançando as cruzes góticas dos brincos que adornavam suas preciosas orelhas.
Durante alguns papos relacionados aos fatos históricos e atrações turísticas da cidade, o famigerado Henrique parou o Nissan prateado. Gabriella reconheceu o automóvel de seu namorado e conduziu a melhor amiga para onde estava parado o carro, quase próximo de um poste de luz.
As duas e belas jovens mulheres seguravam as malas pesadas nas costas, e o homem, querendo deixar de ser folgado, abriu a porta do motorista para ajudá-las a superar os pesos, rindo da cara fofinha e brava da namorada.
Henrique Soares era curitibano, tinha se mudado para o sul quando criança. Quando ele e Gabi se cruzaram, foi amor à primeira vista. Lydia não negava que Henrique era atraente e qualquer sonho de garota. Era um padrão de elegância — rapaz simples que se vestia bonito, possuindo cabelos loiros encaracolados, óculos redondos e belos lumes azuis — relativamente baixo perto da gaúcha. Quem fitava o casal os achava graciosos.
Gabriella abriu a porta malas e guardou uma das bagagens de Lydia, tentando encaixar e dar espaço para as outras.
— Oh, louco! Você tá trazendo seus materiais de crime, doidona? — caçoou da ruiva, que balançava a cabeça descontraída.
— Ela fez o certo! — exclamou a namorada.
— Deu pra ver.
Uma quarta pessoa apareceu, saindo do veículo do curitibano. Era uma mulher branquíssima, esbelta, reta e atraente. Dona de escorridos cabelos castanhos-claros, sobrancelhas alinhadas, testa pequena e lábios carnudos — pintados seus contornos de tons nudes, destacando-se suavidade perante ao delineado de seus luzeiros âmbares —, braços longos e pescoço adornado por correntes de ouro. Um estilo simplificado composto por calças jeans pantalona, sandálias de salto, cropped branco.
A moça aproximou-se daquele trio, mãos nos bolsos e sorriso cordial. Lydia a observava com distância, tinha certeza que havia cruzado com ela em algum lugar. Gabi intimamente a cumprimentou. Ah, então conhecia o casal? Eram amigos de longa data?
— Posso ajudar ‘ceis também? — ela perguntou.
— Fica a vontade, Alessandra! — Rique abanou as mãos, notando sua amiga se aproximar das outras garotas.
— Pera aí? Alessandra? — Após o trabalho de encaixar sua penúltima mala, Ribeiro indagou surpreendida. — Há quanto tempo vocês se conhecem?
Uma extravagância no semblante foi caricata. O indicador estava girando assim como os quadris, tanto para a Valadares, quanto para a outra mulher mais nova.
Gabriella deu risada sem humor, sentindo vergonha alheia da paulista. Lydia parecia uma criança aprendendo a interagir com pessoas, não era conveniente abordar Alessandra daquele jeito.
— Oh… desculpa não me apresentar — Alessandra se recompôs, segurando-se para não xingar a nova moradora.
Ela tinha ciúmes da Gabi para agir assim? Definitivamente não!
— Sou a Alessandra, amiga da Gabi! Estudamos na mesma faculdade. — Uma voz feminina e bonita era ouvida. Lily desconfiava de algo, porque aquela mina nunca fora mencionada antes.
— Prazer, sou a Lydia — disse seca, ambas dando um cumprimento formal — Lily, para os mais íntimos.
— Hm… Lilygothbeaatz? — Ergueu o cenho, agora fazia todo sentido. Lily era uma das beatmakers de quem seu namorado tinha comprado os type beats para um EP futuro — Então… foi você que trabalhou com o meu namorado no ano passado, né?
— Seu namorado é quem?
— O nome dele é Luan… tá começando a fazer uns projetos mais pessoais.
Lydia num súbito empalideceu, boquiaberta e perdendo fôlego. As pessoas da internet mais foram reveladas, se apresentando diretamente para ela!
Era uma sensação cômica mas inesperada, parecendo estar dentro da tela do computador, viajando numa dimensão onde quem estivesse conversando consigo na internet morava há cinco metros de distância. A morena estava falando do Launzera? O que trabalhou no Bonda 2? Óbvio que mencionava ele indiretamente! Portanto, Lydia, se recusava a pensar que fosse mesmo esse Luan.
Engolindo em seco, perguntou:
— Er… que Luan? O Launzera?
— Isso mesmo! — confirmou Alê.
Ela não precisava adivinhar essa informação, porque Luan estava querendo iniciar uma carreira musical e, na época, era quem mais trabalhava com originalidade!
Ribeiro usufruía da mixagem consistida em solos de pianos e guitarras. Ela não tinha somente boombap ou underground, Lydia era obcecada por emo-trap e love-songs, um dos estilos mais pedidos para seu público.
Entretanto, naquele lançamento do segundo álbum shittrap Bonda, tomara um susto quando encarou o nome Launzeraaa na produção de algumas músicas. Caralho! Então… Alessandra além de ser namorada dele, provavelmente era também amiga ou conhecida de Victor!
— Mentira que você trabalhou pro Luan! — Gabi e Henrique exclamaram em uníssono.
— Sim! — gaguejou nervosa, tossindo, virando o pescoço em ambos lados.
— Nossa. — Riu a mais nova, não mais chateada, agora estava felizarda por conhecer pessoalmente uma das produtoras de Luan. — Garota, você é muito foda! Sinceramente tu devia participar na produção de um amigo meu.
— O Vito ia amar conhecê-la. — Valadares apoiava a mão nos ombros da melhor amiga, que faltava esconder a cara dentro de um buraco. — E cadê aquele vagabundo?
— Sei lá, deve estar perambulando no centro — comentou Lessandra, indiferente e não muito entusiasmada — ‘Cê tá ligada né? Tá ficando velho cada dia que passa.
— Beleza, gatinhas, precisamos ir! — Henrique fechou o porta malas, causando um leve estrondo — Daqui a pouco tenho que trabalhar.
— Vamos, amor. Lydia precisa descansar! — Gabi abria a porta de trás para que a paulista pudesse entrar — Lily, você tá bem? Lily? — Reparou no semblante cabisbaixo da ruiva.
“Puta que pariu! Esse é o pior dia da minha vida não é possível”. Batia os tênis na calçada, piorava cada vez mais! Victor estava em sua vida novamente e não mais no Discord ou no WhatsApp… Ele existia!
Na terceira vez que a gaúcha chamou sua atenção, Lily voltou para a terra.
— Oh… ‘Tô bem! — Deu uma risada, coçando a cabeça — Beleza, vambora!
— Ok… Se é assim, me dá espaço!
Gabi esperou a melhor amiga sentar e ir para a direção da outra porta, sentando-se no banco confortável do Nissan. Tinha cheiro de limão, devido a um tipo de perfume apropriado para carros.
Alessandra precisava voltar para casa, já que suplicou ajuda do curitibano em algumas compras básicas do mercado. Luan tinha um compromisso e iria passar uma noite de jogos com os garotos.
Sintonizando uma estação de rádio local, “Bem-me-quer" de Rita Lee tocava, animando o percurso da curta viagem para o apartamento novo. O trio dinâmico cantarolava, o horizonte sulista demasiadamente pacífico, contemplando os pássaros voando nas matizes azuladas do céu.
Lydia rangia os dentes, decidindo ficar calada e avistar as lojas na janela meio embaçada. Realmente o mundo dá voltas insanas!
Schiavon editava alguns vídeos para uma nova série do “JogandoFoddaci”. Infelizmente, o antigo membro Leandro — conhecido também como Bife — saiu, tendo a participação de Saiko no lugar.
Por um lado, era divertido e legal ter a companhia de Rodrigo — afinal, Carteiro e Saiko sempre se deram muito bem, mas alguma coisa o incomodava desde semana passada. Victor só queria compreender o porquê.
A vida não era justa com ninguém mesmo! Victor reconhecia que sempre teriam angústias para lidar, eram muitos canais de músicas vazadas roubando seu trabalho ou gente escrota sendo esquisita em seu servidor do Discord.
Embora a comunidade fosse somente dos inscritos da Twitch, sempre vinha maluco falar assuntos podres. Desde os lançamentos dos primeiros Bondas, babacas e degenerados levavam as piadas como ensinamento.
Certamente, isso era ridículo! Odiava manter contato com um público medíocre e inconveniente. Fora isso, alcances das reviews, músicas, desenvolvimento de seus jogos indies, melhoraram. Nada muito relevante para as chateações, e o youtuber precisava de descanso.
As íris esmeraldas balançavam no visor do computador, cortando e editando as partes dos vídeos, ocasionalmente gargalhando de alguma frase dita pela nova dupla de palhaços. Quando deu uma pausa, decidiu repousar, pegando o celular e respondendo mensagens alheias.
— Estampas novas, projetos engavetados. Porra, só vivo cheio de coisa pra fazer! — reclamava sozinho, olhando para o teto.
No entanto, batidas na porta o distraíram, fazendo-o levantar da cama, caminhando até a sala, abrindo a porta de sua casa. Era sua namorada, vestida com seu moletom “É a potência”, que ficava simplesmente bonitinho e largo nela.
— Oi amor, como ‘cê tá? — Se abaixou para beijar a testa de Flora, que reservou um tempo para sair da faculdade e visitá-lo.
— Ah… estou bem — Aquela voz finíssima e gostosa de ouvir. Flora podia ser baixinha, mas ficava uma graça usando suas camisetas ou moletons. — Não quero ficar sozinha, decidi te ver!
— Entendi — O gaúcho sorriu contente, deixando com que a garota entrasse em sua casa. — Aí, gata, só não repara a bagunça! Se eu tivesse planejado antes, não estaria assim.
— Relaxa.
Mesmo sendo nova demais para ele, Flora era uma das melhores namoradas que poderia ter! Cozinhava, era independente, cinéfila, streamer, museóloga, cuidadora de gatos e pianista. Com apenas vinte anos, era a mais inteligente! Era carinhosa com o mais velho e, diferente de outros relacionamentos, Flora gostava de Gemaplys verdadeiramente.
Ela, com sua jovial aparência de olhos castanhos, lábios rosados e tatuagens fofas. O que Victor mais gostava nela, eram as madeixas cor de cenoura. Principalmente sua maneira de sorrir e ficar pequena quando os braços enormes dele a abraçavam. Desprovida de altura, Flora veementemente chegava com os sapatos nos pés dele, beijando-o.
Porém, Victor não conseguia olhar para aqueles cabelos sem se lembrar de sua namorada virtual. Lydia era rebelde, pretensiosa e ácida. Já Flora era boazinha, carinhosa, talentosa e afável demais. Ambas tinham muito em comum, mas não conseguia distinguir qual das mulheres era mais intensa. Mesmo nunca tendo a visto pessoalmente… Lily ainda mexia com ele!
— Já estava com saudades. — Amoroso, segurava a mão delicada da mais nova, trazendo-a mais perto, fechando a porta de sua casa. — Sei lá, estou cansado e querendo dar uma pausa.
— Nem me fale… O tanto de museus que fui ontem à noite. A semana vive corrida.
Chegando ao sofá, o casal se sentou, a cabeça do gaúcho apoiada nas pernas finas de Jerozolimski, que afagava seus dedinhos nos cabelos negros juntamente aos fios brancos.
Engraçado pensar que sua barba ainda espetava seu rosto enquanto ele a beijava. Ela inocentemente sorria para o homem melancólico… Assim como seu namorado, a ruiva também estava cansada. Ela também adorava fazer vlogs e lives, mas devido às suas aulas da faculdade, o tempo não era mais o mesmo. Sentia falta de conversar no chat e fazer receitinhas.
Muitos lhe perseguiam, querendo saber realmente se namorava um youtuber, até sair o vídeo de viagem para Curitiba. Era nítido reparar nos dois sempre juntos, e muitos fãs começaram atacá-la, sendo que fora das câmeras era diferente.
— Mas tu acha que eu devia mesmo fazer uma pausa? — perguntou à namorada, cravando seu olhar para o dela, que brincava com seus fios descoloridos — Cara, nem compensa mais trabalhar. O pai aqui ganha easy com a monetização do YouTube!
— Você tá no auge, querido — disse ela, pousando as mãos no rosto do mais velho — Olha o sucesso que você conquista! Não tem motivo para ficar triste.
— Verdade, pior que você tá certa. — Anuniu retirando e colocando os óculos, pesadamente respirando. — É foda, nem sempre o mundo é justo, tá ligado? Tipo, você, Jean, Arthur, Luan e meus outros amigos de anos… sinto que irei perder todo mundo, mais cedo ou mais tarde.
— Ué, como assim? — Ela não entendeu.
“A verdade é que… sonhei com ela novamente. Pensar que “break up álbum”, foi justamente pra alguém que quebrou minha confiança”, pensava aflito, cruzando as pernas.
— Acho que nem eu mesmo sei — desabafava, passando os dígitos nas camadas dos dedos magros da ruiva. — Devo estar chapando e querendo realmente imaginar estar sobrecarregado.
— Esquece essa merda um pouco. — Selou seus lábios nos dele, os fios de seu rabo de cavalo caindo sobre ele. — Que se foda, é parada da cabeça.
Victor sorriu levemente e suplicava mais um beijo de Flora, ajeitando-se no sofá para que ambos se mantivessem mais confortáveis.
— Um beijinho dessa beldade logo de manhã? — Puxou-a em sua direção, soltando um pequeno grito dela. — Porra, ganhei mesmo na loteria!
— Ah, que isso. — Jerozolimski tampava a boca, ajeitando a armação dos óculos. Apertando um pouco o nariz do mais velho — Você merece mais do que mil beijos.
— Te digo o mesmo!
— Nada melhor que ter você por perto, né?
— Ah, ‘cê sabe! É a dona do meu coração.
O beijo entre o casal unia-se para algo mais amoroso, os braços tatuados de Schiavon puxavam o pescoço da namorada, lhe trazendo uma ternura intensa. Sentada ao seu lado, conseguiu transmitir o contato íntimo, lidando com mãos enormes, desmanchando os cabelos outrora presos.
Pequenos gemidos saíam dela. Na evolução dos beijos estalados, foi inevitável que Flora sentasse no meio das pernas de Victor. Ele agarrava suas costas, sentindo o tecido do moletom grosso. Flora sucumbiu em seu perfume, deslocada nos encantos do gaúcho.
Ela demoradamente o deitou no sofá, ficando por cima de Schiavon, bagunçando as madeixas curtas e negras do homem. Entretanto, o momento de intimidade iria mais além… chegando a devorar os lábios e o pescoço da mais nova, o youtuber imaginava outra mulher e não sua namorada.
Carinhosamente tocando nos fios ruivos, eles tornavam-se escuros. A voz de Flora não pertencia a sua alma, um timbre grave e sombra mais alta. Como holofotes e luzes neon vindas de balada, piscavam-se as imagens de Lydia, visualizando uma figura alternativa. Flora havia evaporado.
O youtuber perdeu os pensamentos mais puros, quando na fantasiosa imaginação romântica, sua ex-namorada tomava o controle de sua mente. Aquele beijo doce tornara-se ardente.
Victor encostava os polegares nas têmporas da mulher, perplexo naqueles brincos góticos que sua ex usava. Em várias fotos do Instagram, Lydia usava os benditos anéis e brincos preto-vermelho. As unhas compridas reluzindo o esmalte descascado, ponderando a cabeça para trás. O gaúcho empurrou seu peso contra a namorada, pensando em Lydia.
Tateando os lábios grossos do homem, Victor agarrou seus pulsos levando-os para cima. A invasora, de outra dimensão, deu gemidos sôfregos dançando com o gaúcho, deixando de segurar sua onda e alcançar seus dedos nos dela.
Ele recusava sua quimera e xingava mentalmente para a ex-namorada partir, mas não conseguia. O teor sexual era viciante, atravessando suas mãos dentro do tecido, querendo causar atrito. Mas Schiavon resmungava, o fantasma dos cabelos cereja e maquiagem gótica os observava.
Enquanto as pernas de Flora circulavam nos quadris de Gemaplys, algo inesperado ocorreu, deixando-a magoada:
— Lily… — O gaúcho quebrava o clímax, sem querer falando o nome de outra pessoa, a mulher que nunca mais viu. — Vai embora garota… vai! — Parando de beijar a Jerozolimski, saiu da terra dos sonhos, contudo desligado.
— Quem?! — Um grito fino saiu da namorada e, no mesmo instante, ela abriu seus olhos genuinamente espantados, empurrando-o para longe dela. — Victor, que porra foi essa? Quem é Lily?
— Hã? — Ele despertou alarmado.
Victor ficou sem chão quando saiu de seus devaneios, abrindo os olhos, fechando as pernas e se contendo, após se distanciar da verdadeira namorada, demorando para retornar a realidade.
— Espera, amor. Eu não… Eu não quis! — Se enrolou, a vendo sair do sofá, andando até a porta, apressadamente pegando suas coisas — Pera aí, Flora. Não me deixe sozinho, cara!
As lágrimas dela escorriam em seus olhos. Não queria saber ou imaginar que Victor trairia a garota, depois de quatro anos em um relacionamento com ele.
— Me fala! Quem é Lily?
— Eu devo ter errado seu nome, sei lá — tentava explicar, mas não ajudava. — Por favor, linda… Volta aqui!
— Mano? — indagou nervosa, de braços cruzados — Você me beija e pensa em outra ao mesmo tempo, e ainda quer que eu fique com você?! — esbravejou indignada, batendo os pés. — Nem fodendo que isso seja verdade. Você tá relembrando de alguém do passado, só pode.
— Nada a ver, Flora! Eu só…
— Sério, Victor, me dá um tempo, eu… eu… Me deixa em paz!
A porta fez um estrondo barulhento e a garota saiu chorando… Puta merda, que ramelada!
— Caralho… O que deu em mim?! — Escorou a cabeça na parede, o coração batendo forte e uma ansiedade lhe invadindo. — Tô sonhando com essa mina acordado… Por que, Lydia?!
Victor lentamente jogava-se contra o chão em posição fetal. Lydia retornou dos mortos e agora tinha que lidar com as consequências. Dizia que odiava a outra ruiva, mas esqueceu sua existência do mundo e ela voltou para assombrá-lo.
“No silêncio psíquico,
Eu estava procurando por
Algum outro tipo de atrativo
Voe para fora do marasmo
E se lembre do registro
Do início do banco de dados
Do seu amor ”
Oil — Gorillaz ft. Stevie Nicks
Eu estava procurando por
Algum outro tipo de atrativo
Voe para fora do marasmo
E se lembre do registro
Do início do banco de dados
Do seu amor ”
Oil — Gorillaz ft. Stevie Nicks
CHEGANDO NO ESTACIONAMENTO DO SUBSOLO, Henrique desligou o rádio, girando por fim a chave de ignição. Deixou seu precioso Nissan em uma vaga espaçosa, longe de outros carros desconhecidos. Alessandra, horas antes, os agradecera pela carona. Todavia, uma figura ruiva sequer papeou, estando de boca fechada e cara de bunda.
Gabi sacudiu devagar os ombros da amiga sonolenta, que acordou de supetão, coçando os orbes preguiçosos, soltando bocejos roucos e grunhidos. Julgava a si mesma por não dormir o suficiente no avião: Lydia saiu às 2h da manhã, que se tornaram 8h54. Nem os ponteiros do relógio lhe compensaram!
A paulista checava os arredores do subsolo, uma seleção de carros simples e blindados preenchidos no espaço. Típico de condomínios bem-sucedidos, acessíveis com sala de jogos e piscina aquecida.
Uma sinfonia de portas abrindo e fechando, apertando o alarme, trancando as portas e lidando novamente com as bagagens pesadas, Valadares avistou um carrinho diante ao elevador. A gaúcha dos cabelos pretos e mechas descoloridas ia apressadamente correndo, o barulho áspero das rodinhas.
Tacando o foda-se para seu coque desmanchado, Lily puxou brutalmente o elástico, soltando sua juba despenteada. Jogou as camadas para trás, visivelmente selvagem e rebelde.
As pupilas dela ardiam por estar desacostumada com ar puro, e superava uma combustão exaustiva acalorada dentro de seu âmago. Sentia-se uma adolescente à beira de hormônios libertos à flor da pele — aquela sensação de medo e descontrole das emoções, fazendo merda e reconhecendo as ações só futuramente. Oficialmente virou pelotense, familiarizou com o efeito sulista que transmitia. Fora ter concluído a razão do youtuber novamente retornar e lhe entregar dores de cabeça, ainda era cedo.
Rique solicitou amparo das mulheres, três malas gigantes com mini-malas dentro não eram suportáveis de carregar. Lily agradecia mentalmente pelos benefícios que o Mercado Livre entregou: centenas de objetos — exceto os que levou para o caminhão de mudança — estavam armazenados com precaução e cuidado. Suas pranchas de cabelo, secadores, maquiagens e acessórios obtinham claramente significados emocionais. Ribeiro colecionava seus tesouros, assim como um pirata dos sete mares.
— Cacete, essas malas são da Hermione para guardar tantas coisas nela? — Valadares gargalhou, fazendo uma alusão a Harry Potter, jogando as malas no carrinho. Uma em cima da outra.
— Imagine o trabalho que tive pra despachar! — O aeroporto de Guarulhos naquela madrugada estava aglomerado e ensurdecedor. — Agradeço pela viagem não ter durado uma eternidade.
Lydia comprou um saquinho com pães de queijo que custaram um rim! Depois, pagou por um suco natural de acerola, ansiosamente temia gastar dinheiro mais do que devia. Foram exatamente seis horas de viagem, acompanhadas por sonos desregulados, passageiros insuportáveis e, sentado ao lado de Ribeiro, um menininho birrento no colo da mãe, pedindo histericamente para jogar no celular. Para piorar… o jogo era Subway Surfers! Ainda estava com a música irritante nutrida em seu subconsciente.
— Você está segura, mulher! Chegou inteira — o paranaense de cabelos encaracolados se entrosou no papo descontraído das garotas, conduzindo-as, no elevador — Torcer agora para o caminho liberar!
— Tadinho do Alone, deve estar morrendo de fome — comentava a outra mulher, preocupada com seu peludinho gato preto. — Esqueci de alimentá-lo, deve estar batendo o pote igual um escravo na Idade Média.
— Dei comida pra ele amor, não se preocupa. — A porta do elevador abriu, por sorte manteve-se vago — Ufa, menos trabalho. Chega aí, Lily! — Segurava para não fechar, distanciando-se para a melhor amiga entrar com o carrinho pesado.
Após o trio pressionar o botão do sétimo andar, automaticamente a visão escura do subsolo desapareceu. Enquanto os números do painel iam subindo em ordem crescente, Lydia se encarava de relance no espelho, o semblante exausto, repleto de olheiras roxas e profundas.
De fato, seria inevitável postar uns stories no Instagram. Desbloqueou seu Android, liberando a câmera, fazendo uma pose mostrando a língua, animando o clima do rosto. “9h da manhã e querendo uma tentativa de livrar o encosto de SP”, anunciava a legenda. Seguidores iriam à loucura, Lily saiu da toca!
Mesmo possuindo tamanha sensatez e carisma, não se considerava fielmente uma streamer renomada, nem sequer influenciadora digital com grande visibilidade. O processo de constituir sua fanbase não foi rápido. Antigamente, só a reconheciam como beatmaker, isso quando Bife e Carteiro pediram para ela se esforçar e assim organizou um cenário atrativo: luzes vermelhas neon, plantinhas artificiais na estante e a cama perfeitamente alinhada com pelúcias da Sanrio no seu dormitório.
A primeira livestream de Lily conquistou no mínimo nove pessoas. Inicialmente, os programas eram gameplays de survival-horror da Puppet Combo que rendiam ótimos sustos para os espectadores cliparem. Quando revelou seu rosto misterioso após três meses de live, o público aumentou e, graças a produção do EP de Launzera, Lydia vendeu muitos beats. Grata e satisfeita.
E quanto ao servidor de artes de que ela participava? Bom… esse assunto consistia em inúmeras nuances toxicas! A paulista estava em um grupo de amigos e Victor era o único que sabia disso.
Longe de sua fama através das gameplays e reviews engraçadas… As pessoas daquela época desconfiavam que o gaúcho e a paulista eram webnamorados — nem falavam em público a respeito — porque ambos zoavam implicitamente por flertes e elogios.
Retornando ao momento atual, o casal destrancou lentamente a porta do apartamento de número 409. A sala era deslumbrante, com um desmesurado tapete cigano encobrindo o assoalho cinza, divã marrom escuro, televisão Smart de 26 polegadas em cima de um rack comprido. As janelas eram cercadas por grades e redes, evitando que o felino caísse ou se acidentasse.
Gabi agachava para dar colo ao bichinho de estimação — escuro e comprido, olhos verdes, patas gigantes e felpudo. Lydia, que carregava suas maletas, as colocou no chão. Henrique decidiu entrar no apê de sua namorada um pouco antes de ir trabalhar.
— Oi, Alone. — A ruiva brincava carinhosamente com o bichano, que bronqueou um miado virando a cabeça para a dona. — Ah, esqueci que ele só tem olhos pra ti.
— Igualzinho o pai dele. — A Valadares riu, observando o companheiro, assistindo um seriado genérico do Warner Channel. — Amiga, fique à vontade, tá? Depois irei pedir comida, estou indisposta pra cozinhar.
— Beleza… Acho melhor organizar minhas tralhas e dormir. — Esticava os braços, piscando descontroladamente as retinas castanhas. — Puta merda, tenho coisa pra caralho!
— Vai lá… O quarto está te aguardando! — Gabriella exclamou de mãos na cintura. — Planejei exclusivamente pra você, nem parece o mesmo de antes.
“O quarto muda… agora, minha cabeça, nem fodendo! Primeiro: aquela mina ser namorada do Luan. Segundo: minhas costas estão me matando! Agora, em terceiro: Victor mora aqui e ele nunca me contou! Jurava que era distante ou em qualquer outro lugar de Pelotas… Mas não! Ele está próximo dos meus amigos. A chance de essa merda piorar? Nem eu sei!”. Revirou os olhos e aspirou prolongadamente. As concepções dela lhe importunavam. Restou, no fim, arrastar suas bagagens com ambas mãos para dentro de seu quarto.
Principiando sua jornada no quarto lindamente organizado — imaginando estar em casa —, viu seu guarda-roupa montado no devido lugar. Os papéis de parede vermelhos com detalhes góticos e imensa cama enfeitada por um colchão macio mereceram a vibe caótica da ruiva. Brilhavam suas íris análogas ao um personagem de anime quando avistou o majestoso setup, reino de seu PC gamer.
Tocou no monitor e cadeira confortável, crescendo a vontade de acessá-lo e ficar aprisionada como nos tempos de outrora, portanto não era mais adolescente. As obrigações de adulta impediam seu lazer. Ainda era terça-feira, mas parecia domingo. Um outono amalgamado na longitude do inverno.
Deitando e abrindo o zíper das malas, tirou calmamente os equipamentos de som, microfone e headset — eram úteis e nunca os abandonaria. Muitos fios de eletrônicos embolados, que puxou sem nenhum risco de quebrarem, e colocou todos atrás de si. Abrindo a primeira mala menor de dentro da grande, retirou suas figuras de ação embaladas junto aos videogames portáteis. Algumas histórias em quadrinhos de Sandman e Demolidor foram enfileiradas.
Numa posição de lótus no chão gelado, agarrava os objetos e sorria para eles. Lily colecionava diversos tesouros, nunca se livraria deles! Cinco minutos se passaram, ela havia posicionado seus pertences em devidos lugares: figures de Sailor Moon e Evangelion na estante com seus quadrinhos, headset apoiado na tela do computador e microfone conectado.
Logo após, atenciosamente cuidou dos trajes dobrados, pendurando as camisetas em determinados cabides, meias e roupas íntimas nas gavetas. Outros itens não muito relevantes foram também guardados e terminou a organização maçante. Era hora de fazer cosplay de bicho-preguiça, então se livrou dos tênis e da cinza blusa de frio, deitando a cabeça no travesseiro, jogando o corpo brutalmente.
No âmbito de tweets e vídeos engraçados, uma chamada de vídeo foi realizada. O contato do homem de cabelos longos e óculos transparentes e redondos mostrava em seu celular, Jean queria saber das novidades da amiga. Lydia atendeu a ligação procurando uma posição reta, cruzando as pernas:
— Fala, piranha!
— Oh, e aí, gatona? Chegou viva aê? — A qualidade da câmera era baixíssima, o aspecto do Dias de Paula se mantinha pixelado, mas dava para visualizar os arredores de sua cozinha e ouvir um chiado da panela de pressão do outro lado. Provavelmente, a matriarca de Carteiro estava fazendo sua clássica e saborosa carne de panela. O homem mais novo perguntava, não deixando as caretas de fora. — Vish, pelo jeito… — Notava sua carranca aborrecida.
— Viva só na hora de sair, agora estou falecendo. — Balançava a cabeça sob um sorriso ladino — Tá maluco! Foram seis horas de viagem e gastando dinheiro. Ia dormir, né? Mas você ligou agora.
— Pô, foi mal… tava preocupado contigo — disse Jean simpático, a voz arrastada e suave. — Pelotas é maneiro, pode ficar tranquila. — Ajeitava os óculos, virando os orbes castanhos para os lados. — Se vier filho da puta te assaltar, use as técnicas ninjas que ensinei — deu o conselho, se gabando.
— Esquece Jean… Eu não sou o CJ. — Uma gargalhada zombeteira saiu da boca de Lily que o viu fazer o mesmo — Meu apavoro nem são assaltos, capaz de ser outra adaptação mesmo.
— Ah, pode crer. — Anuia enfatizando sua fala — Não posso opinar porque, cê sabe! Nunca me graduei, minha praia são os games. — Ele sabia muito bem como fazer a ruiva gargalhar.
— Verdade, nunca errou. — Entreteve-se com o youtuber. — Diz aí, o que tem feito?
— Gravando uns vídeos pro JogandoFoddaci e, nesse momento, ajudando a minha mãe. — Mostrou a mais velha usando uma touca na cabeça, jogando alho e óleo na panela. Estava cozinhando arroz. — A Lydia aqui, mãe! Manda beijos pra ela, acabou de se mudar.
— Beijos, querida! — Rapidamente, a senhora mandou um beijo para a ruiva do outro lado da tela. — Que você seja muito feliz aí no Rio Grande do Sul. — Carteiro virou o celular diretamente a mãe, revelando um avental colorido, que voltou a prestar atenção ao fogão.
— Oi, tia Rose, saudades! — Ela também mandava beijos. — Igualmente.
O homem puxou uma cadeira da mesa, se sentando para conversar mais com sua amiga. Lydia deitou um pouco a cabeça, ficando desconfortável pela postura desengonçada. Ela tinha ouvido falar do canal de longplays que o paulista mencionou. Viu algumas séries clássicas enquanto Leandro ainda era membro e se recusava a chorar nas vezes em que o ex-namorado ria ou fazia piada, um comportamento que ambos por vezes se apresentavam nas calls. Schiavon e Ribeiro… Quase unilaterais.
— Agora me diga, quais seus planos? — devolveu a pergunta de Lily.
— Mano… acho que, nesse momento, vou dormir e deixar rolar! — Riu, dando piscadelas para o amigo. — Os sulistas me deram essa bênção por enquanto. — enunciou com sarcasmo.
— Ui, vai então! Terei que desligar, me atualize quando der. — A ligação e as mensagens desesperadas no grupo privado de Victor eram alarmantes, o gaúcho precisava de ajuda. — Fica bem, abraços.
— Beleza, gatinho! Fique bem também. — Desligaram a chamada.
Lily apoiou o Motorola no criado-mudo em frente a cama, cochilando, pois a vida continuaria.
Victor não costumava ficar choramingando por motivos idiotas, mas a namorada favorecia esse poder nele. Diziam que os homens apaixonados faziam loucuras, mas no caso do youtuber… era meio-termo, faria Jerozolimski perdoá-lo após o incidente de amassos — lembrando de outra — quentes. No entanto, isso adiantaria de nada! A marcante citação do fantasma de cabelos vermelhos-escuros lhe perturbou, onde caralhos estava com a cabeça?
Qualquer pessoa naquela situação ficaria com um pé atrás. Tinham seis anos de diferença e mesmo assim o Schiavon vacilou. Brigou consigo mesmo, sentiu-se o adolescente emo que arruinava seus casos amorosos. Tinha que concordar… ele era um bobão.
Havia mandado áudios para Leandro e Jean que, imaturos e filhos da puta, deram risadas zombando da cara do melhor amigo. Eles não estavam errados, afinal, o gaúcho mostrava ser fiel à Flora. Porém, quem explicaria o motivo de ele imaginar estar transando ou reencontrando uma ex-namorada nunca vista pessoalmente? Honestamente, nem ele próprio assimilava os erros de seu alvoroço.
Um homem de 27 anos, relembrando de um passado não resolvido. Se culpava, enquanto semicerrava os olhos em uma fotografia antiga de Lydia, ocultada em sua pasta secreta, ao lado de um desenho que fez de ambos — Victor abaixando a cabeça e abraçando os joelhos e Lydia com as madeixas longas presas, os dedos dela no rosto dele. Embora fosse um retrato, aquele desenho tinha vida. Jean disse o óbvio: “pensar em ex é escusado”, mas em uma pronúncia errada e atrapalhada, a palavra saiu como “esculachado”.
A verdade era que ninguém comandava as normas do coração ou fantasias concretas do cérebro. O cara em toda sua vida dedicou-se à música, tinha que ao menos saber daquilo na hora de compor a maioria de suas letras. Impaciente, ele resolveu descansar a mente andando na praça Coronel Pedro Osório, contemplando a fonte das Nereidas. A fonte de estrutura grega, os cavalos e filhas do Deus Nereu glamourizando o ambiente, colibris voavam nas estátuas. Uma sequência aquática, erguendo no ar.
Para seu azar, muitos casais passavam de mãos dadas e sorrindo. Ele balançou os quadris, ajeitando os fios emaranhados da juba escura, cobertos por uma touca cinza. Sentindo-se em um videoclipe do The Neighbourhood, Schiavon encontrou um banco vago e automaticamente se sentou, reflexivo.
Não era surpresa que alguns conhecidos ou fãs o cumprimentariam de longe, a sociedade pelotense sempre amigável. Jogando a cabeça para cima, o homem encarou folhas das árvores, mais verdes que o comum. Elementos da natureza certamente eram terapêuticos e espirituais. Lembranças e memórias referentes a Lily batiam em sua porta. Victor amava detalhadamente seus cabelos, toda estilosa e diferente!
Lydia desabafava sem medo com o gaúcho, mas naquela época, parou de confiar nela.
Em um dia fatídico, os ex-amigos de Lydia criaram um grupo no WhatsApp. Eles eram demasiadamente babacas, e no entorno de uma brincadeira, eles haviam mandado Victor se matar, quatro vezes! A mulher cometeu o erro de não o defender e após aquilo… ambos ficaram sem conversar por dois meses.
Lydia e aqueles caras diariamente conversavam sobre qualquer merda. Quando isso se resolveu, o gaúcho e a ruiva voltaram a se falar. Porém, o contato da Ribeiro com os outros caras não havia acabado.
Ela permitia que falassem mal de Victor, ria das piadas escrotas deles… Até Leandro vir e conversar sobre isso com ele. O homem descobriu e decidiu terminar com Lily, nunca mais saber dela. Cortaram laços amorosos, doeu tanto para ela, quanto para ele. Enganaram-se aqueles que achavam Lily a errada da história — Victor também piorou a situação, caçoando dela e dizendo que não passava de uma fodida carente. Os dois foram babacas, mas quem sofreu obviamente foi Lydia.
Os idiotas que ela chamava de “amigos’’ a expulsaram do ciclo social deles, absorvendo conselhos de que a ruiva deveria parar de relacionamentos e procurar um homem de verdade para trepar. Quando seu emocional mais se afetava, começava ser inconveniente e assim tornando-se uma famigerada escrota.
Depressão é um veneno, dependência emocional sufocava. Lydia queria esquecer do trauma e mostrar para seus antigos companheiros que mudou, mas não era assim que funcionava. Ela sucumbiu à tristeza, solidão, apenas solidão. Viveu num servidor de Discord, se contradizendo, se humilhando e falando de sua vida. Uma das coisas mais perigosas de se fazer, pois se arrependia e mais colocavam a culpa nela.
Profundamente, o youtuber gostaria de voltar no tempo e tirá-la dos problemas insalubres que a capturaram durante cinco anos, a angústia renunciou. Quiçá renascia em Victor empatia dentro de si. Ele queria saber da Ribeiro… Olhar para ela, poder fisicamente aconchegar-se nos seus encantos.
— Hm… mas que viadão bonito! — Um segundo homem abordando-o com um meme, parou na direção dele. Schiavon parou para observar e percebeu que era Luan.
Luan era dono de uma pele enevoada em tons de oliva, sobrancelhas grossas, cílios curtos e íris ônix. Um físico esguio e magro, os braços e mãos compridas. Uma cabeleira volumosa e cacheada, barba e bigode raso. Assim como Yung Li, o Pires tinha um alter ego, Liwan.
— Oi, mano — cumprimentou, sem alegria. — Hoje não ‘tô muito legal, releva!
— Ih, que aconteceu? — o cantor quis saber. — Alguém morreu? — Seu cenho erguido demonstrando incertezas.
— Pior… — Remexeu os tênis. Encostou o dorso da canhota em sua bochecha — Me desentendi com a Flora, só isso.
— Ah, tá. — Se segurou para não rir, as notícias corriam rápido graças a boca grande do Jean. — Então é verdade!
— Qual foi, cara? Me zoa não! — Se incomodou, tentando amenizar desavenças. — Mulher é foda! Posso tá com outra, mas penso na guria de anos atrás.
— Ok, mas você gosta da Flora? — Não compreendia de fato os sentimentos do amigo. — Se está pensando em outra é porque não gosta verdadeiramente dela!
Luan definitivamente estava certo! Era nítido que Victor não sentia atração pela mais nova — sempre foi amorosa e legal; contudo, lhe aprisionou numa relação monótona. Diariamente ambos viviam ocupados, o máximo de tempo livre era em finais de semana ou gravações de vídeos. O que eles mais gostavam de fazer era comer e assistir filmes de comédia pastelão, depois conversavam e dormiam, um do lado do outro.
A imagem da museóloga adormecendo, era quase uma pintura renascentista para o youtuber. As camadas cor-de-cenoura, rente aos seus olhos e um sorriso contagiante… mesmo desacordada, era linda. Jamais esqueceria aqueles eventos.
— Sei lá — falava o mais baixo que conseguia. — Nunca pensei isso antes.
— Você é o cara que tem um compilado só falando das decepções amorosas, e não sabe se gosta dela? Qual é? Não fode! — exclamava o amigo, levemente irritado — E quem é essa mina? Nunca a conheceu pessoalmente, é passado!
— Era pra me deixar melhor? — indagou áspero, os cotovelos no joelho, evitando contato físico com o cantor. — Cara, essa mina é passado, mas hoje ela retornou do nada! E não sei o porquê…
— Sabe o nome dela? — interrompeu.
— Lydia — revelou, as letras saídas na ponta da língua — Ela se chama Lydia.
O cantor encarou seu amigo, surpreso. A garota mencionada era a mesma que sua namorada havia dito? A beatmaker de São Paulo? Pires não esperava que ela fosse morar em Pelotas. Através das palavras de Lessandra, a ruiva era um pouco antipática. Tampouco nenhuma razão verdadeira — com certeza é uma informação real!
— Olha, cara… Não gosto de ver essa tristeza em você! — Foi direto ao ponto. — Esquece essa porra aí! Bora ir comigo no Infinity Burger a noite? Vou rever uns colegas e jogar uma sinuca depois!
— Tá, pode ser. — Decidiu aceitar o convite de Luan. O gaúcho precisava extravasar, nenhuma situação amorosa atrapalhava uma diversão entre amigos. — Me manda mensagem e passa na minha casa.
— Assim que eu gosto! — Os dois se levantaram, se despedindo. — Vou buscar a Alê. Tchau, Vito!
— Tchau! — Victor andou em um lado paralelo. Indo para sua casa, felizmente matando sua fome, após notar um restaurante e comprar uma coxinha no decorrer do caminho solitário.
Impregnava-se os arredores da sala com incenso, um aroma de canela e cravos. Gabi havia se alimentado e Lily abocanhou um sanduíche de quinze centímetros do Subway, bebendo uma latinha de Fanta Laranja. Teve um cochilo maravilhoso e, no final, acabou tomando um banho e trocando suas peças de roupa, compostas por uma branca regata do álbum White Pony de Deftones e um short curto esportivo.
Henrique não morava com Gabriella, ficaria liberta e sossegada quanto a isso. Na beira do tédio, colunas se deitaram no tapete cigano, brincando com o mascote do apartamento, sacudindo um sininho para o gato correr de um lado para o outro. A paulista, no entanto, parou o que estava fazendo.
Divertindo-se na sala perplexa em seu mundo, os pensamentos em Victor mais eram contínuos. Imaginando naquele cenário, o ex a jogando em cima dele, se beijando e correndo até a cozinha.
Lily resmungou sozinha, evitando novamente sonhar acordada. Fungando o nariz e pressentindo o cheiro, ela virou para trás e observou sua melhor amiga com um baralho em mãos. Valadares era wicca, uma bruxa de conhecimento e atitude. Não uma bruxa malvada de contos infantis, mas sim a mestra do tarô e baralho cigano! Lily confessava não acreditar muito em astrologia ou qualquer coisa relacionada a isso, porém quando se tratava da amiga… Era difícil não confiar nas previsões dela.
Abstraída e obtusa, levantou-se e conduziu na mesa redonda da gaúcha, embaralhando suas cartas, bem concentrada. O que ela mentalizava?, Lily se questionou, cruzando os braços e encarando distanciadamente. Gabi em um semblante entusiasta, solicitou a companhia da ruiva. Dado ao pedido, segurou a cadeira, ficando sentada a observando. Conectada com as energias de suas deusas.
Inspirando e fazendo uma reza, Gabriella voltou dar atenção para uma Lydia confusa:
— O futuro clamou por você, madame Valadares?
— Engraçadinha! — Organizou a franja para os lados, batendo as unhas no encosto da mesa. — Vou começar abrir vagas de consultas, como não tenho trabalho fixo… minha opção seria trabalhar com o universo.
— Interessante. — Fez um biquinho, ponderando a cabeça — Se bem que precisava de um sinal — murmurou, escorando os ombros na mesa. Infelizmente, Gabi ouviu.
— Um sinal, é? — Viu sua amiga hesitar, encaixando o indicador no queixo, repuxando um riso maroto. — O que está pensando amiga? Algum boy? — inquiriu maliciosamente. — Aposto que sim! — Indicou positivamente, reconhecia uma desilusão sem precisar analisar.
— Er… não! Que isso, nada a ver! — Gesticulava constrangida, cruzando suas pernas e mordiscando a boca. — Nenhum macho quebrou meu coração nos últimos tempos, o único que fez isso…
— Ah, olha só! Um amor do passado, isso que está fortemente me interessando. — Bateu palmas orgulhosa. Aquele momento era dela. — Vamos lá! O que gostaria de saber?
— Como assim? — A ruiva não queria falar. — Isso é ridículo, Gabi. Ninguém volta com ex em pleno 2022. — Afirmou. Engraçado que criticava, mas não percebia sua doce hipocrisia.
— Quem falou pra você reconciliar com ex, mulher? — retrucou, estreitando os olhos nos dela. — E sequer me contou que havia namorado. A única conversa sobre relacionamentos que tivemos foi quando aconselhei não ir na casa de homem justo no primeiro date.
Lydia abdicou nos sites e aplicativos de relacionamento quando se mudou para o centro de São Paulo. Um dos primeiros encontros foi com um rapaz da zona norte. No final, Gabi pediu que Lydia não fosse, porque quando um cara te chama pra ir na casa dele de madrugada, significa que vai usar e esquecer você no dia seguinte.
— Verdade, nem me recorde disso — enunciou sem graça. — Enfim, qual pergunta deveria fazer?
— A mais essencial, explorar os pensamentos dele sobre você — sugeriu. — E aí? Topa saber?
— Mas e se você não acertar? — desafiou.
— O tarô não mente, princesa! — rebateu, aproximando o baralho de belíssimos detalhes dourados. — Relaxa que na minha tiragem, nenhum nome será dito. Mentalize ele e irei pegar sua energia.
— Ótimo, assim melhora e protege minha privacidade — aceitou a proposta da amiga. — Estou pronta.
— Certo… feche os olhos e estenda suas mãos rente as cartas.
“O que passa na sua cabeça quando meu nome surge na sua mente, hein?” Escutou sussurros de Gabriella, mexendo e trocando as cartas. Algumas delas caíram verticalmente na mesa, enquanto sua melhor amiga organizava as outras na mesa. A gaúcha autorizou que Ribeiro abrisse os olhos.
Aprofundando e interpretando as cartas fixamente, seu entendimento pela situação do casal instigava. A primeira carta era um anjo dourado segurando cinco espadas e uma criança olhando para ele, em um cenário de céus e terra. A segunda, o desenho de um cavaleiro montado num corcel, segurando uma espada. E a última, céu iluminado por estrelas e uma lua cheia. Gabi absorveu rapidamente o ritmo desastroso e confuso de Schiavon. Ele gostava de Lily, mas com uma pontada de dor.
— O que está dizendo? — perguntou a ruiva, atentamente maravilhada com os detalhes de sua leitura. — Deu merda né? Me diz que sim! — Não muito esperançosa, achava que os sinais do futuro não ressuscitariam amores incompreendidos.
— Vocês namoraram e magoaram um ao outro?
— Sim, vacilei pra caralho.
— Ixi, então tá explicado — analisou e começou explicar o entendimento que suas cartas trouxeram. — O cinco de espadas indica conflitos e desentendimentos. Muitas vezes, sensações de derrota. — Apontou para a primeira carta. — Ele está muito ressentido e magoado, mas reflete muito sobre o passado de vocês e as dificuldades no relacionamento. — Começou a fazer sentido. — Pelo que entendi, ambos foram responsáveis por uma relação distante, você e ele… nunca terminaram o ciclo realmente. A história que terão se iniciará brevemente.
— Eita, porra! — Se assustou, a garota parecia ter invadido sua psique. — Ele pensa o quê? Além disso?
— Independente do que você tenha feito, causou muito estresse e sensação de perda, nele — Foi sincera, guiando acerca da espiritualidade. — Ele pensa muito ao seu respeito, angustiado, mas pensa.
— Ou seja, me perdeu e ficou chupando o dedo, fatos! — Ácida e rebelde, retorquiu. — Esse é o ponto!
— Ainda não acabou, calma! — O inesperado foi jogado em sua cara. Gabi explicou a penúltima carta. — O cavaleiro de espadas simboliza movimento rápido e comunicação. Apesar das dificuldades que vocês tiveram… — Demoradamente voltou a explorar mais a mente de Victor e achou um detalhe interessante — Estou vendo aqui, que ele pensa em te encontrar pessoalmente. Amiga, ele me traz uma aura tão melancólica, pai amado! — Tampou a boca, chocada — Uma energia muito impulsiva, claramente indica esse boy estar te ansiando demais.
O amor renascia sem querer, não é mesmo? Lydia se impressionou com as entrelinhas da vida amorosa. Sentimentos nunca morriam, surgiam do nada por nenhum aviso prévio.
Ela teorizava consigo que o youtuber, embora chateado pelas merdas jogadas no ventilador… desejava e implorava para Lily retornar e existir somente para o homem. A mulher, ciente de seu histórico depreciativo, destruiu seu coração por conviver com amizades errôneas. Manifestava remorso e bloqueio emocional.
Honestamente, o problema de cabelos vermelhos rubi fatiava corações em pedaços sem ver, apontava que as consequências de suas ações não eram boas. Vendo neste ponto, aquela distopia machucava, lidava com gatilhos e embrulhos no estômago, sensações aparentemente asfixiantes e destruidoras.
Lily não queria mais sofrer, não queria sucumbir ao desgosto. Em contrapartida, feridas de anos se abriram, buracos profundos sendo acolhidos na alma rancorosa. As cartas mostraram que Schiavon pensava na Ribeiro, mas seus pensamentos marcavam complexidade e um entendimento confuso. Gabi segurando a terceira carta pronunciou o ultimato:
— A lua está associada ao inconsciente e sonhos, mas nesse caso representa confusão e dúvidas. — Segurou rente aos olhos castanhos e sobressaltados da paulista, que encostava os dígitos e unhas constantemente. — Querida, os sentimentos dele por você são abundantes, mas, ao mesmo tempo, nebulosos. — Nossa, Lydia não estava mais surpresa? — O cara tenta lutar para entender que está sentindo, mas você… Não sai da cabeça dele!
— Posso considerar que seja verdade. — Um semblante orgulhoso em meio a um riso debochado. — Sou irresistível — Ribeiro se gabou.
— Discordo, reencarnação de Lilith — Gabriella ignorou a última parte da argumentação da ruiva. — Garota…tudo está baseado em potencial e reflexão. Tu não saiu da mente dele. Num futuro próximo, os dois vão se encontrar provavelmente em um confronto intenso e… cheio de mágoas, mágoa pra caralho!
Terminando sua tiragem, a dupla de melhores amigas conversava sobre aquela previsão. Gabriella resolveu pedir licença, porque atenderia seus clientes online. Respeitando a gaúcha, Lily decidiu fazer outra coisa e perambular no laranjal.
Algumas obrigações seriam cumpridas, contudo reservava um tempo de distração. Morava quase em frente a praia. Uns pelotenses diziam que o laranjal era um local sujo e perigoso, mas a paulista queria se arriscar. Se fosse para chorar, que as lágrimas caíssem nas praias sulistas!
Inalando o sabor da canela arvorando na sala, no reflexo da janela era possível admirar o pôr do sol, eram 17h37.
“Os nossos destinos estão interligados, Victor? Já que você não sai da minha cabeça e também não saio da sua?” suspirou com seu pensamento. Chegou no térreo e dando passos rápidos, o porteiro destrancou a porta do condomínio.
A ruiva esperou os carros passarem e atravessou para chegar no laranjal. Felizmente, a orla se manteve vazia, sem nenhuma gentalha intrometida. Antes de pisar os pés na areia, conduziu-se ao pier. Observou o horizonte alaranjado e o som das ondas, invadindo os seus sentidos.
— Mas então, o que nós somos? Namorados? Ah cara… Me sinto idiota. — A voz inconfundível e a risada docemente gostosa de se ouvir. Ela reproduzia o áudio do gaúcho. — Sabe, ‘cê mexe comigo. Se eu morasse perto de ti, beijaria e mandaria esses otários tudo irem a merda!
Uma lágrima descia no rosto dela ao ouvir um áudio em que ela dizia que faria o mesmo.
— Na moral, Lily… promete que a gente um dia vai se encontrar? Se isso rolar, nunca vou esquecer. Sério mesmo! — Victor continuou falando em seu ouvido. — Porque terei a chance de dizer que te amo.
“Dói te amar
Mas eu ainda te amo
É só o jeito como eu me sinto
E eu estaria mentindo
Se eu continuasse escondendo
O fato de que eu não consigo lidar com isso”
13 Beaches — Lana Del Rey
Mas eu ainda te amo
É só o jeito como eu me sinto
E eu estaria mentindo
Se eu continuasse escondendo
O fato de que eu não consigo lidar com isso”
13 Beaches — Lana Del Rey
AFUNDARAM-SE OS DELICADOS PÉS NA AREIA ÚMIDA DO LARANJAL, como se buscassem um abrigo secreto no ventre da terra. O zéfiro noturno sussurrava histórias antigas, embalando a quietude que a envolvia. Com a ponta de um galho fino, encontrado por acaso, ela traçava círculos e flores na areia, seus gestos tão leves quanto um suspiro. Os céus, tingidos de laranja e cravejados de estrelas, um dos maiores cúmplices de sua contemplação. Lydia sentou elegantemente na toalha esticada, em conjunto com sua bolsa, a postura ereta semelhante à de uma estátua viva.
Livrou-se do vestido turquesa florido de verão, deixando suas alças escorregarem pelos ombros. A esvoaçante carne cor de mel, combinando com seu biquíni dourado magenta. O vento fustigava seu rosto, pairando brutalmente sua juba retocada e escorrida. Ali, entre o céu e a terra, ela parecia flutuar entre o presente e o eterno.
Anestesiada de lástimas e ressentimentos, buscava purificar fibras de seu intrínseco misantropo, convertendo o espiritual ferido mergulhado sob a densidade escura da laguna fria. Lily deu sorte porque ninguém aparecia naquele horário, finalizando as ilustrações espirais, batendo e desmanchando suas obras de artes que nunca seriam exibidas nos museus da cidade. Dobrou a toalha, socorreu sua bolsa de furto e colocou as mechas rubi atrás das orelhas, oscilando as camadas no ombro direito.
Ribeiro fitava o píer em silêncio, o olhar perdido no horizonte enquanto a mão esquerda repousava sobre o rosto, quase como quem busca ocultar uma insegurança. Seus pés afundavam no solo arenoso da laguna, as águas mornas beijando-lhe as canelas num encontro suave e contínuo.
A ruiva estava ali, indefesa, testemunhando beleza e serenidade das ondas dançando lentamente. Sua sombra, alongando-se na luz do entardecer, transformava-se em um breu indistinto. Enquanto seus braços se erguiam, a água límpida da laguna alcançava sua cintura, envolvendo-a em um abraço líquido e silencioso.
Bloqueando as narinas e fechando as órbitas, mergulhou de cabeça, atravessando as ondas e ignorando as alternâncias climáticas do contratempo. Reinava o luar azulado, enquanto Lydia sacudia a cabeça torcendo as madeixas molhadas, sentindo o vento no rosto. Quase se tornava uma sereia de conto de fadas nas terras gaúchas, mas sem príncipe à vista. Limpou infelicidades e abrangeu positividade, o que facilmente duraria pouco.
Um gostinho de infância e nostalgia, repensando naquela vez que montou um desengonçado castelinho na areia com suas primas na praia dos pescadores em Itanhaém. Elas admitiam para o público que eram caçadoras de tesouros e conchas, pagavam sorvetes com o dinheiro emprestado dos seus tios e jogavam vôlei. Uns dos momentos mais gostosos e divertidos de sua vida que mereciam um replay.
Os parentes dela, em outros tempos, eram unidos e jamais deixavam de se reunir nas datas festivas ou em compromissos importantes. Contudo, uma desavença problemática acabou abalando a harmonia da família Ribeiro.
Cecília e André, pais de Lily, não escondiam sua insatisfação com as amizades da primogênita. Convencidos de que uma das primas era uma "má influência", decidiram afastá-la dos tios, impondo limites que acabaram por fragmentar os laços familiares.
Na adolescência, Lydia e Sabrina — a prima em questão — frequentavam festas de música eletrônica com outros amigos. Curiosa e ingênua, Lily experimentou LSD em uma dessas ocasiões. A substância percorreu seu corpo, deixando-a amolecida, atormentada por alucinações, náuseas e uma fraqueza que parecia dominar todo o seu organismo.
Foi sua primeira experiência com drogas ilícitas, mas, ao contrário do que os rumores sugeriam, não fora por influência da prima. Lydia tomou a decisão por espontânea vontade, movida por um misto de curiosidade e impulso juvenil — o que, infelizmente, acabou se tornando o pretexto para o distanciamento entre os familiares.
Naquela noite fatídica, a ruiva chegou em casa mais descontrolada que o habitual. Cecília, uma mulher que jamais aceitava opiniões contrárias às suas, não conseguia tolerar ver sua filha de quatorze anos trilhar caminhos destrutivos.
A matriarca, tomada pela raiva, gritou com severidade, insultando a jovem e ordenando que nunca mais buscasse abrigo na casa de seus tios. Sabrina, nervosa e agitada, tentou argumentar, mas Cecília acabou se exaltando, esbofeteando as duas adolescentes. Lily, por sua vez, nunca havia chorado tanto; consumida pela culpa, responsabilizava-se por tudo que acontecera.
Vocês devem estar se perguntando: por que Lydia fez aquilo? Qual seria o motivo? Tudo começou quando ela teve uma crise de raiva na escola, provocada pelos constantes episódios de humilhação e bullying que sofria dos colegas.
Problemas de socialização e traumas são algo que muitos de nós enfrentamos, mas quem poderia explicar isso em uma sociedade brasileira marcada por um ensino público negligente, que mal dispunha de recursos para computadores ou livros didáticos? Os professores focaram sua atenção no desempenho acadêmico dos alunos, mas nenhum deles oferecia apoio quando se tratava de questões como saúde mental, violência moral ou psicológica!
Lily não discordava sobre ter virado uma adolescente complicada e agressiva, mas parando pra pensar, imoralidade e desordens na adolescência eram um refúgio de “liberdade” o que, de longe, nunca foi e nunca seria! Meninas no oitavo ano já namoravam, usavam blusinhas curtas e pintavam o cabelo. Lydia só conseguiu tingir os cabelos aos dezessete anos. Enquanto a modinha era Justin Bieber, Restart e novelas da Record, a modinha da paulista era de videogames, animes, comunidades do Orkut e Rita Lee.
Os meninos eram safados e misóginos, querendo assediar garotas. Alguns deles se reuniam para assistir vídeos pornográficos e imaginar suas professoras sem roupa. Lily odiava suas turmas e imergiu no ódio dentro de si. Ninguém queria sua amizade, saber do que ela gostava… porque Lydia era uma “louca”, uma “careta”. Sua cabeça queimava e chorava inesperadamente sem hesitar.
Desconectando-se da realidade que a envolvia, ela mergulhou na aglomeração eufórica. Perdeu-se entre os holofotes e as festas, tentando ser a garota “normal” e “descolada” que desejava parecer. Sabrina queria ter ido embora antes que o incidente acontecesse — Lily estava infectada, parando de respirar e deixando para trás os vestígios de noites insalubres. Mesmo que lhe desferissem um golpe no rosto, ela não sentiria nada, anestesiada pelo efeito dos entorpecentes.
Supuseram que a paulista sofria de transtorno de estresse pós-traumático. Pesadelos constantes e flashbacks de eventos traumáticos no colégio a atormentavam, tornando difíceis a comunicação e os relacionamentos amorosos. O maior medo de Lydia não era apenas a solidão, mas também a incapacidade de sentir algo genuíno novamente, como já havia sentido por Victor.
Ela evitava falar sobre sua vida escolar ou às vezes em que havia se drogado. Os traumas cresciam, e, na transição para a vida adulta, surgiram novos desafios. Lily foi obrigada a cursar faculdades que não faziam sentido para ela, apenas para atender às expectativas irreais de um futuro planejado por seus pais.
Cecília e Lydia romperam o contato desde que ela saíra de casa. A primogênita foi julgada e insultada, pois seus pais não aceitavam a ideia de ela trabalhar com arte ou investir em uma carreira na internet. Ainda assim, ela optou por conquistar sua independência e seguir seus próprios sonhos, já que eles naquela altura do campeonato, estavam pouco se fodendo para a garota, desejando seu sumiço.
Saindo da laguna onde se refrescava, com o corpo encharcado e tremendo de frio, a paulista notou os matizes escuros no horizonte. Enquanto murmurava para si mesma, refletia sobre as previsões feitas por Gabriella. O futuro místico podia ser surpreendentemente certeiro quando se tratava de relacionamentos não correspondidos. As respostas do Cavaleiro de Espadas e da Lua eram muito interessantes! Victor estar lidando com sentimentos inertes sobre Lydia, ansiando consequentemente a mulher nunca vista.
Enquanto secava os cabelos, o corpo estremecendo com a brisa noturna, a mulher agachou-se para pegar o vestido que estava jogado na areia. Limpou o tecido fino antes de vesti-lo e calçou os chinelos, pronta para retornar ao apartamento. No entanto, foi surpreendida por uma figura indesejada. O semblante pecaminoso e o sorriso hediondo do intruso deixaram-na paralisada de incredulidade.
Lily desprezou o homem que a cobiçava. Ele parecia ser apenas um bêbado, conhecido por importunar moradores ou pedir trocados. Apesar de tentar evitá-lo, o medíocre insistia em segui-la. O temor de ser atacada naquela escuridão a assombrava. Não era a primeira vez que vivenciava algo assim, especialmente porque, em seu estado anterior, a violência contra mulheres e os assédios aconteciam com assustadora frequência.
Com um pé atrás, a ruiva buscava desesperadamente uma rota para fugir do estranho. No entanto, ele foi mais rápido e a agarrou, deixando-a sem reação. Aquilo nunca havia acontecido antes, e o impacto foi devastador. Sentia-se vulnerável, algo que odiava com todas as forças. Que merda! Parecia que, ao sair de uma cidade perigosa, os maus elementos dela haviam se instalado em Pelotas.
Desesperada e amedrontada, ela tentou enfrentar o agressor. No entanto, pela sua voz arrastada, evidentemente pareceu que ele não tinha plena consciência do que fazia. Enquanto isso, devaneios e risos associados a outras lembranças traumáticas de Ribeiro se infiltraram em sua mente, aprofundando ainda mais o caos em sua psique, vagando nas profundas camadas quebradiças.
— Ei, gatinha, não vai embora não! — O homem tinha cabelos despenteados e hálito de cerveja batizada e maconha, chegava ser mais fedido e esquisito que o Bluezão. — A noite nem começou. — Puxou o antebraço da ruiva que deu um grito estridente. Bem que as lendas estavam certas, olaranjal era um lugar perigoso.
— Sai daqui, cara! Você tá bêbado. — Saracoteou as pernas e tirou as mãos dele de si. Ela não voltaria sozinha tão cedo para o laranjal! — Me larga, senão vou chamar a polícia.
Infelizmente o corpo pesado do desconhecido a derrubou.
Ele tentou segurar suas pernas e puxar as raízes escuras de seu cabelo. Lily gritava por ajuda, mas ninguém veio em seu socorro. O pânico ameaçava dominá-la, mas uma onda de raiva percorreu suas veias, fazendo seu sangue ferver.
Assim que conseguiu libertar o braço, desferiu um soco firme na boca do estômago do agressor, conseguindo afastá-lo de cima dela. Ainda assim, o homem, enlouquecido, tentou agarrá-la novamente. Em meio a um frenesi, ela protestou com determinação:
— Falei para me soltar, seu arrombado! — Empurrou o bêbado contra a areia e desferiu um chute em suas costas. Sem perder tempo, decidiu correr para o outro lado da rua. Ainda assim, o homem continuava a persegui-la, segurando firme a garrafa vazia de Pitu. — Socorro, um cara está tentando me atacar! — Pegando seu celular e bolsa, velozmente correu, olhando para os lados.
Tentando despistar o maluco bêbado, com o coração disparado e tomada pelo pavor, Lydia, sem olhar para frente, acabou colidindo com outra pessoa. Ambas caíram no meio da calçada, batendo as testas uma na outra no impacto.
O boné caiu de sua cabeça, e a longa cabeleira ocultava seu rosto. Lydia encontrava-se na mesma situação, levantava-se trêmula e descontrolada. Com os braços cruzados sobre o rosto, os cabelos úmidos, as alças caídas do vestido e o chinelo havaiana arrebentado completavam o cenário de desamparo.
— Ei! Perdeu a noção do perigo, garota? — Uma voz tonalizada por um sotaque catarinense indagou desdenhosa. Quando o rapaz retirou a franja comprida da cara, acabou reconhecendo a vítima. — Espera… Eu te conheço? — Ela, decidindo olhar para o jovem, se surpreendeu.
Levantando-se da calçada, revelou-se um jovem aparentando cerca de 23 anos. De estatura mediana, ostentava volumosos cabelos castanhos que caíam até os ombros. Sua pele clara, marcada por acnes, contrastava com os lábios rosados e as sobrancelhas finas.
Vestia uma simples camisa preta com estampa do anime Naruto, calças largas e tênis vermelho e preto. Suas mãos longas, com dedos grossos, ajustavam um boné na cabeça, deixando-o inclinado para a frente. Era Gustavo, conhecido por internautas como “Umild”, vagando pelas ruas de Pelotas.
Gustavo, com as mãos nos bolsos, tentava ajudar a alma desamparada, cujas pernas bambas denunciavam o quanto ela tremia. O garoto nunca tinha encontrado Lily pessoalmente. Assim como a maioria das pessoas, conhecia a ruiva apenas como uma streamer de pequeno alcance na Twitch.
Ela admitia nunca ter imaginado que toparia com alguém que acompanhava sua rotina pela tela do computador, refletindo a velha analogia da vida: qualquer figura pública prefere manter-se a uma distância segura de cinco quilômetros.
— Umild? — Com lágrimas escorrendo pelo rosto alarmado, a mulher agradecia ao youtuber por salvá-la, embora ainda demonstrasse uma ponta de insegurança. — E-eu estou… Porra, não esperava ver você assim…
— É… também não — disse em voz alta para a mulher. — Aluguei um Airbnb por aqui, estava precisando descansar minha cabeça, dei um rolê… Pá! Tombei com uma figura da internet.
— Mano, acho que não era hora de conversarmos sobre isso. — Sua garganta parecia estar cheia de pregos e o peito acelerado, aquela falta de ar… — Olha o meu estado! Coisas espalhadas, chinelo quebrado, falando contigo em uma situação de risco. — Atropelava as palavras, recolhendo suas coisas, batendo o pé direito descalço. — Por que comigo?!
Antes de ouvir sua conhecida de internet, sendo gentil e sensível, o catarinense a abraçou. Mesmo tendo acabado de conhecê-la há apenas dois minutos, sentia empatia pela mulher.
— Calma, o que aconteceu? — pediu uma explicação, sobrancelhas em interrogação, e a destra sob o queixo da ruiva. — Jurava que você nem existia! Me deparei contigo aqui, sem rodeios. — Se expressava desentendido — Primeiramente, ’cê tá aqui por quê? — Deu liberdade para Lydia, percebendo ela se afastar dele.
— Eu resolvi abandonar São Paulo e morar aqui! Mas fui aproveitar um pouco a praia e um tarado bêbado tentou me… — Respirava pela boca, chorosa e descontrolada — Ele tentou…
— Caralho! Tudo bem, entendi — Umild tranquilizava a paulista, abafando seus gritos e choros dolorosos. — Relaxa, estou aqui! — Foi a acalmando, segurando suas mãos. — Poxa, que parada sinistra para um dia de mudança, Brasil tá perdido — Comentou, não perdendo sua sinceridade.
Aquele abraço tinha algo de desarmante. Era genuíno, carregado de um calor que Lydia nunca tinha experimentado antes. Sentia-se acolhida de um jeito inesperado por um cara que parecia tão simples e, ao mesmo tempo, tão legal.
Ele sempre acreditou que Lydia era apenas aquela figura sarcástica e espirituosa que via nas lives, alguém difícil de decifrar. Mas ali, conhecendo-a de perto, começou a perceber camadas mais profundas — um lado sensível, quase secreto, que ela parecia guardar para poucos.
Victor, por sua vez, era um enigma à parte. As fofocas dos amigos pintavam-no como alguém que evitava falar de Lydia, especialmente quando o assunto era seu namoro com Ribeiro — um segredo dividido apenas com os mais próximos. Todavia, não era difícil notar que ele conhecia Lydia de um jeito que ninguém mais parecia compreender.
Enquanto o mais baixo observava a garota, ela finalmente se afastou do abraço, deixando no ar uma sensação que ainda não conseguia decifrar. Gustavo teve uma ideia.
— Lily, sei que parece estranho, mas… Quer companhia para voltar?
— Acho melhor. — A proposta naquele momento era irrecusável. Confiava em Gustavo, por mais que ambos só tivessem mandado memes e reels um para o outro. — Eu tô morando aqui perto.
— Então vem! — Pegou sua mão, olhando os dois para a rua agitada, notando os carros e casas iluminadas. — Me mostra a sua rua que te levo até lá.
A bola vermelha caiu no buraco, e a animação no ambiente contagiou os rapazes. Enquanto isso, Schiavon, afastado da multidão, sorvia pequenos goles de Coca-Cola, com um semblante depressivo e em silêncio. Luan tentou animar o amigo, insistindo para que se enturmasse. O gaúcho, então, cumprimentou os demais e fez algumas piadas, mas o clima logo se tornou monótono.
Victor, por sua vez, havia enviado nove mensagens para a namorada, que não respondia, limitando-se a visualizar. Desanimado, ele permanecia com os joelhos juntos e os braços cruzados, encarando a luz ofuscante do salão de jogos.
Com as mãos nos bolsos e assobiando, o homem se deixava levar pelo som de alguma música da cena underground. Imerso no caos sonoro ao redor, ele batia os sapatos no assoalho, acompanhando o ritmo grave, enquanto coçava os olhos e limpava as lentes dos óculos. Suas íris, de um verde intenso como esmeraldas, pareciam ganhar ainda mais brilho sob as luzes do ambiente, perdido na sinfonia do doomshop.
O youtuber cantarolava tranquilamente em seu espaço, até que, de repente, percebeu a chegada de Umild — que parecia estar no mesmo estado descontraído. Ele se sentou ao seu lado, acomodando-se na cadeira de madeira encostada em uma parede amarela, onde estava pendurado um quadro com a frase “Quanto mais trabalha, melhor você fica”. Uma máxima que, convenhamos, não é cem por cento verdadeira quando se tratava de CLT.
Gustavo, aliviado, conseguiu acompanhar Lydia até o apartamento. Ela parecia mais tranquila após o choque no laranjal, mas ainda carregava um semblante triste que despertava a compaixão dele. Havia algo em sua expressão que clamava por um amigo.
Enquanto isso, o catarinense digitava uma mensagem, perguntando se Lydia estava se sentindo melhor. Lily respondeu afirmativamente, mas mencionou que precisava conversar sobre o ocorrido com alguém de confiança.
Saindo de seu próprio mundinho, o gaúcho pegou um copo de refrigerante, chacoalhou-o levemente e o ofereceu ao outro youtuber:
— Valeu, mano, mas tô de boa — Umild recusou a bebida com um sorriso de canto. — Pô, nem te cumprimentei direito! E aí, Vito, como cê tá? — Endireitou a postura, parecendo mais animado.
— Ah, tô tranquilo! — mentiu, coçando a nuca de leve. Na real, estava ansioso e ainda meio abalado, mas não queria entrar nesse papo agora. — A viagem foi longa? — tentou puxar assunto, cruzando as pernas.
— Nada comparado ao busão cheio de mosquito que peguei pra Curitiba, dessa vez foi de boa — respondeu com um gesto exagerado de quem afasta insetos. Os olhos castanhos se estreitaram em direção ao amigo. — Cheguei ontem, graças a você. Precisava mesmo de um canto mais sossegado.
— Sossegado? Aqui? Tá zoando, né? — retrucou Vito, com um tom cético e meio insatisfeito. — Mas vai, dá pra quebrar um galho.
— Se você tá falando... acredito. — Suspirou, pensativo, com Lydia passando pela cabeça. Realmente, o sulista sabia o que dizia quando o assunto era cidade agitada. — Por que você não tá se divertindo com o pessoal?
— Uma parada chata rolou e não estou muito feliz, vim mais pelo Arthur e o Luan — disse sem muitas emoções. — A Flora está de mal comigo, daqui a pouco nós dois fazemos as pazes. — Era possível sentir dores no coração pela pessoa errada? Afinal… Flora era mesmo, de fato, a pessoa errada? O homem se questionava no avassalador salão de jogos. — Quer dizer, eu espero.
— Puta merda! — exclamou o mais novo — Que eu saiba, vocês nunca brigaram.
— Pois é, mano — concordou. — Não quero conversar sobre isso, melhor eu ir tomar um ar.
— Tudo bem, cara, lembre-se que você pode contar comigo. — Demonstrou sua confiança no amigo, arrumando o boné na cabeça. — Também aconteceu uma parada triste horas depois, encontrei uma amiga da internet mas ela deve estar bem. — Acreditava que Lydia precisava de muita ajuda.
— Amiga da internet? Quem? — Instigado em saber, Victor permaneceu estático olhando para Gustavo.
— Uai, se eu falar o nome dela, tu fica incomodado. — E ele ficava mesmo! — Ela se mudou pra cá hoje.
— Ah, espera… — Empalidecido e impressionado, cogitava que fosse o fantasma de cabelos vermelhos — Aquela streamer? Que trabalhou num projeto do…
— Sim, a Lilygothbeeatz! — interrompeu o mais velho, confuso. — Você conhece ela, Vito? Deveria conhecer pra deixar de ser chato! — argumentou, porém… uma expressão espantosa surgiu no gaúcho.
— …Nem fodendo — murmurou boquiaberto. Recompondo-se, pediu licença para o catarinense. — Desculpa, cara, mas tenho que respirar. Sério mesmo — Deixou o youtuber e atravessou a multidão agitada, Gustavo não entendia nada.
Fechando a porta do salão de jogos do condomínio, Schiavon caminhava desesperado pela área comum, procurando um lugar onde pudesse desabar em lágrimas. Lydia Ribeiro era real, não mais um nome distante. Agora, ele precisava enfrentar aquilo. Com a respiração ofegante, lutava para conter a ansiedade. Victor raramente ficava nervoso, mas, naquele momento, fazia todo sentido. Tampouco ignoraria o que sentia.
O celular vibrou no bolso da bermuda — um tremor discreto, mas impossível de ignorar. Victor tirou o aparelho com as mãos trêmulas, o coração disparado enquanto lia a mensagem. As palavras da namorada pareciam ecoar dentro de sua mente: Eu... Preciso de um tempo pra pensar. Quando formos conversar... Peço que seja sincero.
Por um instante, o mundo parou. As lágrimas pesadas caíram, borrando o brilho da tela. Ele não conseguia responder, nem mesmo pensar em algo que pudesse dizer. A dor tomava conta, crua e paralisante, enquanto o silêncio ao seu redor parecia gritar em seus ouvidos.
Enquanto isso, a quilômetros dali, Lily tentava lutar contra a avalanche de emoções. Deitada em sua cama, forçava os olhos a se fecharem, mas o sono não vinha. Cada pensamento era um golpe, cada lembrança, um peso que a impedia de respirar fundo.
— Esse dia foi uma merda! Quero esquecer… quero esquecer tudo — confessou à melhor amiga, a voz embargada e quase inaudível.
Gabi, sempre prática, trouxe um copo com água e açúcar, insistindo para que Lily bebesse, como se aquilo pudesse aplacar a tempestade dentro dela. Valadares fortemente abraçava sua melhor amiga sentada no sofá, dizendo que aquilo passaria e que muitos problemas vêm e vão. Após a ruiva sair dali, deu boa noite e deixando doer aquela lembrança para a vida continuar. Tínhamos muitos dias ruins — certamente, o seguinte não seria.
No quarto escuro, o ar parecia denso. Os cabelos de Lily estavam espalhados pelo rosto, os olhos vermelhos de tanto chorar. Mesmo com a companhia de Gustavo, alguém que genuinamente a fez sorrir por momentos breves, não era o suficiente. Ele nunca seria o suficiente.
Em lados opostos, Victor e Lily sentiam a mesma dor. Ambos estavam presos nesse ciclo de amor e ausência, feridos pela dúvida e pelo peso de suas escolhas. Ainda que oferecessem ou recebessem afeto de outras pessoas, o que sentiam um pelo outro era como uma ferida aberta, impossível de ignorar.
Agora, restava a eles lidar com o que eram, o que ainda sentiam, e o que poderia ou não existir no futuro.
“Não adianta eu chorar por meses, às vezes
Melhor mudar o jeito da minha percepção
Mas tudo bem, eu aceito a condição
Não adianta eu chorar por meses, às vezes
Melhor mudar o jeito da minha percepção”
Cê me viu ontem — Jovem Dionísio
Melhor mudar o jeito da minha percepção
Mas tudo bem, eu aceito a condição
Não adianta eu chorar por meses, às vezes
Melhor mudar o jeito da minha percepção”
Cê me viu ontem — Jovem Dionísio
ERA UMA MANHÃ AGITADA EM PELOTAS E UM SATISFATÓRIO INÍCIO DE QUARTA-FEIRA. Na percepção da mulher de cabelos avermelhados, nada parecia ser desgastante. Ela se espreguiçava na cama, tocando os calcanhares no tapete macio, enquanto piscava os olhos e bocejava com a boca entreaberta. Ao mesmo tempo, o gatinho de Valadares dormia tranquilamente sob os pés de Ribeiro, que acariciava o pequeno felino. Ele ronronava, e seus olhos preguiçosos se fechavam aos poucos.
Nada melhor do que receber um bom dia de uma criaturinha peluda, esticando suas patas no tapete e miando.
Contendo a visão no criado-mudo, Lydia tirava o carregador da tomada e desbloqueava a tela do smartphone, notando uma mensagem de Umild: Tá melhor?
Aproximando a digital no detector, abriu o WhatsApp, escrevendo o seguinte: Acho que sim… Ontem estava em pânico, mas o importante é que pelo menos me defendi. Obrigada por se preocupar comigo, de verdade!’
Durante as mensagens e áudios, os dois fluíam o contato. Era engraçado conversar com ele, mesmo que não fossem grandes amigos. O catarinense havia tomado seu apoio e tempo para acudir a garota, levando-a para casa na noite anterior, tremendo-se e a distraindo com assuntos divertidos. Ela, no entanto, impedia dificilmente as situações intrusivas do ocorrido — amálgamas com as de infância — recente.
Lily desejava não mais retornar ao laranjal, nem sequer ir acompanhada àquele lugar, razões que a avisaram para voltar com os seus antidepressivos. Estavam escondidos em uma de suas bolsas. Passando na cozinha, abriu a torneira da pia, pegando o copo de vidro e enchendo de água. Aquela pílula amarga na língua se juntou ao líquido, dissolvendo em sua garganta.
De repente, a ruiva notou um bilhete pendurado acima da mesa redonda da cozinha, algo que parecia um lembrete. Ao pegá-lo, suas órbitas se moveram levemente enquanto lia o recado de Gabi: Amiga, tive que sair cedo para resolver umas pendências da minha matrícula. Espero que tenha melhorado depois da noite de ontem. Deixei pedaços de torta de frango no micro-ondas para você, assim pode tomar café. Beijinhos!
Após ler a mensagem, Lydia seguiu o conselho e decidiu tomar café, já que não havia comido nem jantado devido ao choque que a havia transtornado. Ligou o eletrodoméstico, ajustou o tempo e esperou o prato de torta girar sob a luz piscante. Quando o tempo se esgotou, o micro-ondas apitou e ela retirou o prato. Pegou um dos pedaços e, com as mãos, começou a comer, mastigando lentamente. Encheu o copo de suco de laranja, adoçado na medida certa. O frango desmanchava, o gosto estava na medida certa, não muito salgado, e temperado.
Ninguém ousaria criticar as criações culinárias de Gabriella: ela era uma verdadeira artista na cozinha, capaz de transformar ingredientes simples em delícias irresistíveis. Em meio a tranquilidade do seu refúgio, Lydia se permitiu um momento de satisfação após o café da manhã, saboreando os minutos de tranquilidade que a cercavam. Com o passar da noite anterior, decidiu que era hora de ignorar e cuidar de si mesma, de se olhar no espelho com novos olhares.
A torneira chiou ao ser aberta, e ela deixou a água fria escorrer por suas mãos, antes de lavar o rosto com um sabão suave. Delicadamente, aplicou uma base que realçava os tons naturais de sua pele, sentindo-se mais confiante a cada gesto. Era um ritual que a conectava com sua essência, um mínimo ato de amor-próprio, que preparava a mulher para o dia que se desenrolava à sua frente.
Assim como sua melhor amiga, Ribeiro sabia que precisava colocar suas pendências da faculdade em dia. Suas aulas começariam amanhã, e algumas documentações ainda precisavam ser anexadas a sua ficha. A ansiedade pulsava dentro dela, uma mistura de nervosismo e empolgação por finalmente se dedicar ao que realmente amava: as artes cênicas.
Lembrava-se das aulas básicas de teatro que havia feito, um esforço para vencer a timidez que a acompanhava desde sempre. Agora, Lydia sonhava em se tornar uma atriz renomada, ou, pelo menos, ser reconhecida nos palcos. Para ela, o que importava era sua paixão pela atuação, e o resto, era apenas um detalhe.
Ao olhar para o espelho, captou, em um relance, as imperfeições de seu corpo ectomorfo: braços longos, cintura fina. As pernas, que muitos consideravam maravilhosas segundo os padrões de beleza, contrastavam com seios que não se destacavam, refletindo uma luta interna constante. Embora se alimentasse de forma saudável, a insatisfação com seu corpo a acompanhava como uma sombra.
Ninguém parecia compreender a dor de sentir-se inferior em um mundo que glorifica a magreza. Quem poderia explicar como lidava com unhas quebradiças ou cabelos ressecados? Quando vestia sua roupa favorita e percebia que não ficava bem em seu corpo, por não ter as curvas que a sociedade valorizava. A frustração a consumia. Muito se falava sobre aceitação corporal, mas pouco se discutia — independentemente do biotipo —
como era se sentir diminuída.
Lydia não se sentia diferente de muitas mulheres, também lutava com questões relacionadas ao seu corpo. Embora tentasse deixar esse assunto de lado, havia momentos em que se sentia bem ao ouvir suas amigas elogiando sua beleza, dizendo que fariam de tudo para serem tão magrinhas quanto ela. Por um lado, isso a fazia sentir-se segura, mas, por outro, a deixava confusa.
Era chamada de "tábua" e, mesmo assim, muitos a procuravam e a elogiavam. Por que essa contradição? O que realmente significava ser vista dessa forma? Essas perguntas a acompanhavam, revelando a complexidade de sua autoimagem e a luta interna entre a aceitação e a crítica.
Ela desejava ter as belíssimas curvas de Gabi, com quadris largos e um busto proporcional. No entanto, assim como Gabi, muitas mulheres eram vistas como objetos de prazer. Será que alguma mulher realmente encontra paz em meio disso? No fundo, todas buscavam liberdade, mesmo que isso significasse ignorar comentários machistas e seguir em frente.
Sua melhor amiga, por outro lado, era verdadeiramente amada — respeitada por um homem que não se importava com seu corpo, mas sim, seu coração. Essa amizade a inspirava, mostrando que o amor genuíno ia além das aparências.
Deixando aquele pensamento distante para trás, ela deu início ao seu dia. Precisava se arrumar e enfrentar mais uma batalha. Arrastando a porta de seu imenso guarda-roupa, afastou os casacos e camisetas e pegou do cabide um conjunto que adorava: uma jaqueta de couro preta atemporal, com pequenos spikes nos ombros, uma camiseta branca com listras vermelhas e pretas, e uma saia plissada. Agachando-se para encontrar seus sapatos, escolheu uma sandália de salto médio Vizzano, que combinava perfeitamente com a jaqueta.
Livrando-se da camisa larga que a envolvia como uma tenda, Lydia se despedia da imagem preguiçosa que a incomodava. A peça caía de forma desleixada, revelando seus seios arredondados e a silhueta retangular sob a luz suave do sol da manhã.
Ela procurou uma lingerie bege, acompanhada por uma toalha de banho, decidida a se livrar daquela sensação de cansaço. Seus cabelos, sempre perfumados, não eram motivo de preocupação.
Caminhando sem camisa e vestindo apenas um short, dirigiu-se ao banheiro. Com um movimento ágil, fechou o box do chuveiro e girou a válvula, ajustando a temperatura até que a água morna começasse a escorrer, envolvendo-a em um abraço reconfortante.
Ensaboou o corpo com sabonete artesanal de lavanda, descendo em cada camada das pernas, coxas, clavícula e braços. Sentindo o calor da água purificar seu rosto e escorrer pelos ombros, Lydia se deixava levar por um momento de sonho acordado, um sorriso suave nos lábios.
Enquanto se lavava, sua mente vagava, imaginando-se sendo tocada e celebrada por alguém especial. Fazia tempo que não se permitia esse tipo de intimidade, mas, por ora, decidiu ignorar suas fantasias eróticas, preferindo se perder na sensação holística da água morna.
Victor ocupava sua mente, mas logo era substituído por Gustavo, que a ajudara naquela noite. Os dois haviam se dado bem, trocando mensagens durante a madrugada triste, mas isso era tudo. Por que ele continuava a aparecer em seus pensamentos? Lily não tinha ideia! Muita novidade para dois dias.
Ao terminar seu banho, abriu a porta do box e pegou a toalha pendurada. Secou o corpo nu e vestiu suas roupas íntimas — a calcinha subindo até os joelhos e o sutiã sendo abotoado, com as alças ajustadas com cuidado. Ao tirar a touca, suas ondas vermelhas caíram em cascata pelas costas.
Ela se perfumou e aplicou creme no corpo, sentindo-se orgulhosa e feliz, com um semblante despreocupado e a autoestima nas alturas. Com os dentes escovados e os cabelos perfeitamente alinhados, ela adornou as orelhas com brincos prateados em forma de cruz e usava uma gargantilha com um guizo que tilintava suavemente ao se mover.
Os olhos, destacados pelos tons ébano do lápis e um delineado ousado, revelavam a essência de uma mulher poderosa e alternativa.
Suas meias escuras subiam até as coxas, e a camiseta justa acentuava seu busto de maneira encantadora. Com um movimento confiante, subiu a saia e vestiu a jaqueta, calçando as sandálias fechadas.
Era uma versão mais alinhada de si mesma, pronta para explorar os arredores de Pelotas com muito estilo, determinada a construir um futuro promissor.
Quando estava pronta para sair do apartamento, seu celular vibrou. Uma ligação de Umild, que a ruiva deslizou para atender:
— Oi, estou saindo do condomínio agora. — As unhas compridas, apoiadas na capinha, destrancou a porta de seu apartamento, possivelmente dando para ouvir as chaves — Tá, precisando de algo? — Encostou o telefone em seu ouvido, guardando as chaves dentro da bolsa.
— Ah, nada demais! — respondeu o youtuber do outro lado da linha. Rente a janela da casa que estava hospedado, dando para ouvir crianças brincando em um parquinho. — Eu fui convidado pra uma festa e queria saber se… tu quer ir comigo? Se não quiser, beleza, acho que estou sendo muito rápido.
Sério mesmo que estou sendo convidada para uma festa em plena quarta-feira?, pensou confusa e sem entender muito. Tentava imaginar o porquê do catarinense convidá-la sem cerimônias.
— Que tipo de festa? — ela perguntou enquanto adentrava no elevador, descendo para o primeiro andar. — Olha, pretendo organizar alguns beats novos mais tarde e talvez abrir uma live à noite, acho que não preciso muito de festa. Quer dizer, não depois da merda de ontem — inventava algum pretexto, achava que não era momento para novamente enlouquecer e se embriagar numa aglomeração.
— Entendi. Verdade, né? Você precisa de um tempo para focar nas coisas que gosta. — Umild estava ciente que era meio cedo para se enturmar com a streamer, não querendo deixar seu interesse aparente. — Bom, não sei muito bem que tipo de evento é esse, mas se quiser ir, me avisa! O convite vai estar de pé — declarou, cruzando as pernas na poltrona.
— Certo. Enfim, te aviso quando tiver disponível para isso. — Andava no corredor, parando no portão do prédio. — Até mais tarde, Umild. Ou quer que eu te chame de Gustavo?
— Pode me chamar dos dois, me incomoda não. — O rapaz riu. — Tchau Lydia, fica bem aí.
Guardando o celular e fechando a bolsa, a paulista decidiu seguir em frente. Não era momento de pensar em besteiras, seus planos profissionais a chamavam.
Eles decidiram se encontrar em uma padaria, bem antes de Flora começar suas aulas. Schiavon aguardava seu misto quente, enquanto sua namorada sugava o canudo de seu copo de café com leite. O clima era estranho, mas aparentemente silencioso. Muitos poderiam achar a situação bizarra ou sem sentido, mas para a jovem, era uma traição. Ela se sentia humilhada por atrair outra pessoa em momentos que deveriam ser prazerosos ao lado do namorado.
As pessoas ao redor, despreocupadas, serviam lanches e cuidavam de suas próprias vidas, enquanto o casal enfrentava uma DR que poderia levar a uma reconciliação mais natural, mas que, na verdade, se baseava apenas em conversas e pontuações.
Flora encarava Victor com as mãos nos bolsos de seu moletom cinza listrado, observando a garçonete entregar o pedido de ambos. Cruzando as pernas e largando o celular de lado; a mais nova decidiu garfar o pedaço de bolo, mastigando devagar, ignorando o aguardo de uma resposta, Victor pronunciou primeiro:
— Ei? Tá podendo falar?
— Como te falei, eu estou pensando… — Em dificuldade, a ruiva digeriu o pedaço, seguidamente voltando ao assunto. — Em dar um tempo.
— Isso cê realmente falou. — O gaúcho encarava a museóloga cética, ignorando manter contato visual. — Mas cara, eu quero muito poder me explicar, quero mesmo.
— Oras, explique, Victor! — Flora pediu rispidamente, a boca trêmula e uma consciência pesada. Procurando comer as fatias do bolo, no intuito de não discutir feio com seu namorado — Quem é essa Lily? E por que, quando estávamos no nosso momento, lembrou dela?
Por que ela havia se lembrado de sua ex? Não fazia ideia, assim como nunca imaginou que aquela pessoa estivesse em Pelotas, quase em seu caminho, mesmo que o gaúcho não tivesse cruzado com ela. A noite de jogos com os rapazes e quando Umild alegou ter encontrado Lydia, deixaram o homem completamente desacreditado. Fielmente, descobriu que a pessoa de suas memórias vagava sozinha.
Engolindo em seco e tirando o capuz que cobria seus cabelos negros, ele batia os tênis nervosamente embaixo da mesa, desejando confessar à namorada que, desde muito antes, uma mulher desconhecida da internet havia roubado e destruído seu coração. Queria contar a Jerozlimski que compôs as letras do Break Up Album para Lily, mas as palavras não saíam. Ele não queria estragar tudo, queria consertar os erros.
— Ela foi... — Cruzou as pernas, tentando controlar o tremor, e terminou de engolir os pedaços de pão que ainda mastigava. — Uma ex que eu nunca conheci de verdade. Sabe, numa época meio zoada.
— Quê? — A surpresa transpareceu em sua voz, e ela começou a suspeitar que Victor havia se envolvido em um relacionamento virtual. Era algo tão estranho, especialmente porque ele nunca havia mencionado esse detalhe antes. — Victor, você tem quase trinta anos! Querer beijar sua namorada enquanto pensa em alguém que nunca viu fora da internet é a situação mais escrota e babaca que um homem pode enfrentar.
— Também não precisa me xingar — ele respondeu, tirando os pedaços de pão da boca e mastigando devagar, com os braços esticados. — Aconteceu, é normal.
— Normal? — indagou, alarmada, quase sentindo o pescoço apertar sob o peso da decepção. — A única explicação para isso é que você não gosta mais de mim. Não sei o que vocês dois tiveram, mas saber que estou sendo trocada me entristece profundamente.
— Mas, amor... eu amo você. O que aconteceu foi escroto, eu sei, mas não é culpa minha que lembrei dela assim.
— Uau, que bela contradição.
Flora terminou de beber seu café, a amargura da bebida refletindo o que sentia por dentro. Pegou a bolsa encostada na cadeira e se levantou, deixando alguns reais sobre a mesa para que o gaúcho pagasse. Mas, no fundo, ela não sabia se queria realmente terminar ou apenas dar um tempo no relacionamento.
— Aonde você vai? — Ele segurou sua mão, fazendo-a se virar para ele. — O que será de nós dois?
— Preciso de um tempo. Não consigo lidar com isso agora. — Ela se afastou, a voz embargada. — Me esquece um pouco, tá? Vou me atrasar. Tchau.
No meio da aglomeração da padaria, Flora desapareceu, chorosa e magoada, como uma sombra que se esvai. Victor, com os dedos estalando nervosamente, sentiu o peso da culpa e da tristeza. Ele sabia que precisava seguir em frente, mas a ideia de encontrar Ribeiro finalmente parecia distante, quase como um sonho que se desfazia a cada instante.
“Tem pessoas que a gente
Não esquece nem se esquecer
O primeiro namorado
Uma estrela da TV
Personagens do meu livro de memórias
Que um dia rasguei do meu cartaz
Entre todas as novelas e romances
De você me lembro mais”
Minha Vida — Rita Lee
ANOS ATRÁS…
LYDIA DIGITAVA INCESSANTEMENTE NO TECLADO DO COMPUTADOR, animada ao som de suas músicas ecoando em seus fones de ouvido. Escutando mais um beat concluído em seu canal do YouTube, submersa em sua fantasia dentro do quarto escuro posterizado. Ela havia feito outras amizades queridas — por meio de uma sub-celebridade que acompanhava quase no fim da era vazia — e simpáticas.
Uma mensagem de @vitongemaplys notificou em seu Discord, chamando-a para uma call com seus outros amigos, enquanto papeava com os outros membros de seu servidor fechado com os amigos da época, reclamando da moderação incompetente. Algo que era relativamente comum, pois no universo do Discord, o que mais existia é gente maluca e degenerada.
Ligou sua webcam na chamada entre Jean, Leandro e Victor. O trio de youtubers acenava para a paulista, naquela aparência meio apática e sonolenta, os cabelos amarrados de um jeito caído nas orelhas e a blusa de frio, fabricada em um tecido de lã extremamente quente. Desenhadas no tecido várias estrelas, o zíper meio aberto mostrando uma camisa surrada, com a estampa de algum desenho animado. Ela sorriu juntamente a um riso jocoso, encostando as costas na cadeira confortável.
O assunto daquela call consistia em músicas e piadas estúpidas de Carteiro Cósmico. Manteve-se em silêncio, até que num instante a mulher resolveu interagir, segurando-se para não rir do homem de cabelos curtos, franja cobrindo testa e óculos maiores que a cara, acompanhado por um bigode e cavanhaque.
— Vai abrir um stand-up vagabundo? — Elevou a voz com as mãos na cintura, expressando um semblante irônico.
— Ih, Jean… — Victor segurava-se para não rir — Stand-up, quando?
— Ah, qual é! Não tenho culpa de ser o rei da comédia, gata. — Atravessou os braços em sarcasmo. — Mas enfim, como vocês estão?
— Na mesma, criando músicas e desenhando — falou Lily. — E vocês?
Leandro tinha finalmente ligado a câmera, seus cabelos Black Power, pele branca e sobrancelhas grossas. Usava camiseta branca e jaqueta colegial, extremamente larga em seu corpo. O carioca brincava com os fios de seu headphone, aproximando da câmera e revelando o quarto desorganizado. Naquela época, o rapaz morava com sua avó, que muitas das vezes aparecia para falar algo aleatório ou dar broncas em seu neto por comer muito pouco.
O cenário de Victor era um quarto arrumado e de cama gigante, porém escuro por conta das janelas que nunca abriam devido à chuvarada e ao frio. Ele usava uma camiseta vermelha, óculos de lentes quadradas, seu cabelo penteado e a franjinha emo. Realçavam os olhos verdes, que eram genuinamente atraentes. Os braços tatuados, com a SEELE de Evangelion, o inventário de Castlevania Symphony of the night e o Akira. Dignas figuras de um nerd, fascinado por cultura pop e vídeo-games de gente velha.
Jean usava uma acinzentada touca na cabeça e uma blusa de frio com mangas compridas azuis. Seu quarto, entre todos daquela ligação, estava demasiadamente bagunçado e com várias coisas jogadas em cima da cama. Lydia não podia negar, o quarto dela também estava horroroso, centenas de roupas para dobrar e as paredes molhadas devido ao temporal congelante.
— Perdi a conta de quantas vezes, sumi e esqueci do meu canal — enunciava Bife, coçando os olhos. Ele vivia estudando muito devido ao seu curso técnico. — Acho que estou melhor do que gostaria, papo reto.
— Nem me fale, fiz uns trabalhos para a faculdade e estou morto. — Schiavon mexia as camadas da franja, piscando os olhos excessivamente. — É aquilo, né? Vem e acaba.
— 'Ceis tão com nada! Negócio é os games — Dias de Paula enfatizou com sarcasmo, deixando novamente o grupo ficar gargalhando. — Brincadeira, mano, se estiver dando certo, precisam se preocupar não.
— Ah, mas vocês saem de casa e conseguem ver outras pessoas! — reclamou Lily, com uma expressão fechada que refletia sua frustração. Naquele período, ela deixava raramente o quarto, e a única interação que conhecia era a convivência com a família, em um terreno isolado, longe da civilização. — Minha faculdade é online, meus amigos são online, até minha fama é online. Desisti da vida social.
O mundo de Lydia parecia um eco vazio e desanimador desde que terminou o ensino médio. Acordava às seis da manhã, esperava um ônibus escolar que nunca chegava a tempo, suportava o frio cortante e as conversas inconvenientes que a cercavam. Era um sufoco lidar com rostos novos a cada mudança de cidade, sempre se adaptando a um ambiente que nunca parecia acolhedor.
Os amigos que fez na infância se foram, e ela se viu esquecida, sem uma mensagem ou uma ligação que a lembrasse de que um dia pertencera a algo. Durante todo o ensino fundamental e médio, viveu em um silêncio ensurdecedor.
Diziam que a adolescência era mágica e inesquecível, mas para Lydia, foi um período de traumas e desarmonia. Suas primas se afastaram, e seus pais, com o passar do tempo, tornaram-se cada vez mais intolerantes e ríspidos. A casa, que um dia poderia ter sido um lar, agora era apenas um espaço onde a solidão se instalava como uma velha conhecida.
Cecilia acreditava no potencial da filha, mas sua forma de expressar isso era equivocada, apenas intensificando o medo que Lily sentia em relação ao futuro. Ignorando as dificuldades emocionais da primogênita, tratava-a com uma dureza que beirava a crueldade, uma atitude arrogante e irresponsável.
Muitos pais sonhavam com um futuro promissor para seus filhos, mas quem poderia entender a dor de uma alma triste que saía de casa para se consultar com psiquiatras ou participar de terapias? Raramente Lily encontrava fotos que não fossem de seu rosto maquiado, capturado em um cubículo escuro e gelado, onde as paredes úmidas e deterioradas contavam a história de um lar negligenciado.
Os pais haviam investido uma fortuna em um terreno isolado, cercado por vizinhos que disputavam a escassa água e reclamavam da falta de iluminação e poços próprios. Isso forçava Lily a sair de sua caverna para abrir o registro, arriscando levar um choque elétrico, ou a arrastar uma mangueira para encher uma piscina que ninguém usava durante as tempestades de inverno. O interior da casa era tão sombrio e frio que parecia uma cidade de vampiros.
Essa rotina era maçante e dolorosa. Lily desejava conhecer pessoas na cidade, queria recomeçar suas aventuras. Sua única diversão era visitar as vizinhas, jogar no Xbox ou beber shots de Askov — exceto pela ressaca que a acompanhou semanas atrás.
Lydia sentia uma pontada de inveja dos amigos virtuais, sonhava abraçá-los e viver em uma república com todos eles. Quase se tornaram sua família, e ela agradecia diariamente por essas amizades — que, ela sabia, poderiam acabar a qualquer momento — sempre cheias de confiança e humor.
Mas ao conhecer Gemaplys, algo diferente começou a brotar dentro dela. Ao contrário das críticas sarcásticas sobre os jogos ou das letras ácidas das músicas, Victor revelava uma sensibilidade que ela nunca havia notado antes.
— Morar na floresta amazônica tem suas consequências — zombou o gaúcho, observando sua namorada estender o dedo do meio e sorrir de forma torta. Durante algumas noites de insônia, Lydia havia enviado fotos da vista de sua janela para Victor, onde as árvores se aglomeravam, o chão era um lamaçal e a neblina se estendia no horizonte. — Pô, Lily, você podia muito bem começar a vender seus beats e desenhos. Já pensou nisso? — Ele sorriu, reconhecendo que a ideia era realmente boa.
— Ela só não consegue ser melhor que o Bife — Jean interveio, ironizando de maneira exagerada e intencional. — Vai me dizer que não?
— Qual é, Carteiro? Competir com o Leandro? Não dá! — Ela gesticulava, chamando o mais novo do grupo pelo apelido, concordando com a ideia de Schiavon. — Bom… essa possibilidade não parece tão ruim, acho que vou tentar.
— Isso aí! — Victor se encheu de orgulho pela namorada. — Você vai conseguir, gata! Confio em você.
A ruiva, tímida e sem jeito, balbuciou algo enquanto ria sem graça. Victor a fazia se sentir mais confiante do que nunca.
— Ih, começou a viadagem. — O carioca fez caretas, feliz pelo relacionamento virtual do melhor amigo, mas sabia que aquilo não duraria muito. Ele conhecia as pessoas com quem ela conversava. — Se casem logo, porra! — ele disparou.
— Um dia, a gente vai — Lily entrou na brincadeira. — Vocês vão ver. O casal mais lindo do Brasil.
— Sim — disse Victor, coçando a nuca envergonhado, mantendo o olhar na garota do outro lado da tela. — Você é tudo pra mim, Lydia.
— Aí, que lindo! — Jean exclamou, emocionado. — Nosso casal.
Lily puxou o capuz para cobrir a cabeça e desligou a câmera. Ficou em silêncio, mutada durante a call, enquanto respondia às mensagens carinhosas de Victor. Mas uma notificação de outro amigo a fez parar: "Garota, até quando você vai parar de ser tão burra? Arruma um cara de verdade!"
Ela suspirou fundo, insegura. Não estavam errados em dizer isso, mas… quem, naquela situação, a fazia feliz além de Victor, a quilômetros de distância?
Uma lágrima se atreveu a escorregar pelo seu rosto. A dor de não conseguir se desconectar da internet era quase insuportável. Ela não queria complicar as coisas, mas lembrava da última vez que viu o gaúcho magoado devido às bobagens que fizeram com ele. Por que não cortava os laços de uma vez?
— Lydia, sai um pouco desse computador — ordenou o pai, com uma expressão austera e autoritária. — Em vez de estudar, fica conversando com esses desconhecidos. O que vai ser de você assim?
— Eu serei tudo, menos você — retrucou, girando a cadeira para encarar o pai. Ele era um homem de estatura média, com cabelos bagunçados e pele clara. André parecia gostar de ser insignificante nos momentos errados. — Eles pelo menos me respeitam e me tratam como uma pessoa, não como você e minha mãe, que insistem em me encher o saco.
— Isso é jeito de falar com o seu pai? — indagou, nervoso, com as sobrancelhas erguidas. — Você pode se achar adulta, mas isso não justifica ser uma vagabunda. Cumpra com os seus estudos.
— Vagabunda, eu? — ela hostilizou, levantando-se da cadeira e tirando os fones, afastando-se dele. Quem se atreveria a xingá-la sem motivo? — O único vagabundo nessa merda de lar é você! Que bebe igual a um mendigo e nem consegue conversar direito com a própria filha, só sabe gritar e xingar.
André era o típico patriarca narcisista e descontrolado. Quando se casou com Cecília, tudo parecia perfeito: flores, presentes e promessas de um futuro radiante. Mas à medida que Lydia crescia e enfrentava as desgraças do cotidiano, o homem se entregou ao álcool e ao fumo.
O cheiro de tabaco impregnava suas camisas sociais, e sua voz rouca era um eco de suas noites mal dormidas. Os Ribeiros enfrentavam crises financeiras desde que venderam a propriedade onde moravam, obrigando-se a alugar várias residências até chegarem àquela casa caótica. Cecília não trabalhava, presa à rotina desgastante, enquanto André passava horas no trânsito, lutando para manter um emprego que mal conseguia sustentar a família.
A vida de trabalhador era realmente estressante, mas Lydia, que havia saído do colégio há poucos anos, se esforçava para se manter firme em suas paixões. No entanto, a realidade era cruel. Viver em uma casa vazia, repleta de gritos e tensão, estava afetando seu psicológico de maneiras que ela mal conseguia entender.
— Lydia… não vou repetir isso — disse André, com um tom autoritário.
— Eu sei muito bem o que é bom para mim e não preciso dar satisfações — respondeu ela, mantendo uma postura indiferente, ignorando o pai embriagado. — Posso não estar seguindo o seu caminho, prestando concursos públicos, mas com minha arte, eu consigo escapar daqui.
— Isso ainda é uma perda de tempo. — André soltou uma risada estridente, como se a filha tivesse contado uma piada. — Continue papeando com esses malucos, mas não espere chegar a algum lugar.
— Foda-se, não preciso da sua opinião, pai! — ela gritou, trincando os dentes e protegendo os braços. — Você deveria parar de ficar tão nervoso comigo. Sinto muito se o seu casamento não está dando certo.
— Eu só queria ter uma filha decente! Alguém que procurasse uma alternativa e saísse dessa casa! — ele disparou, a frustração transbordando.
— Mas eu ainda tenho dezenove anos, pai. O que mais você quer de mim?
— Se você não trabalhar ou estudar, vai passar fome! Garota, será que você nunca vai acordar? — ele a sacudiu, a raiva estampada no rosto, esbravejando tão perto que ela podia sentir seu hálito. Aquela cena a assustava. Ela odiava, mas, ao mesmo tempo, sentia medo daquele comportamento dele. Não conseguia distinguir se André estava bêbado ou só furioso. — Estamos no Brasil, filha! — gritou, puxando sua orelha e dando uma bofetada em seu rosto, o que a fez gritar de dor.
Lily caiu no chão, com marcas avermelhadas nos braços, resultado dos apertos do pai. Quando ele tentou se acalmar, ela o empurrou para longe, chorando descontroladamente.
— Louco do caralho! — O grito escapou de seus lábios como um choque elétrico, um reflexo do terror que a dominava. Aquela reação era familiar, um eco de um passado que nunca a deixava em paz. Mesmo com a medicação, a tempestade dentro dela não se acalmava. Os traumas a assombravam, como sombras que se arrastavam, relembrando o momento em que apanhou com um cinto de couro, em cima da cama, por derrubar café com leite no chão. — Saia daqui! Não encoste em mim, filho da puta!
O homem se afastou, lutando contra o impulso de agredi-la novamente. Ele não via que ela era uma alma indefesa, que precisava de amor, não de agressões. Cecília, por sua vez, apenas escutava a discussão, como uma espectadora silenciosa, sem se intrometer.
Lydia se levantou com dificuldade, a respiração acelerada e entrecortada, sentindo a tosse se acumulando na garganta. Gritava consigo mesma, um grito silencioso que ecoava em sua mente. Enquanto isso, do outro lado da tela, risadas e alegrias ressoavam, um contraste cruel com a tempestade que se desenrolava dentro dela.
Ela se sentia mutada, presa em um mundo onde a dor e o medo eram seus únicos companheiros.
Existiam lembranças que nunca conseguimos esquecer, mesmo quando tentávamos apagá-las da nossa mente — de alguma forma, elas sempre voltavam. O ano começava de maneira diferente, mas flashes do passado giravam em sua cabeça, como os cavalos de um carrossel.
Lily adentrou a faculdade, admirando a entrada arcaica e atemporal do instituto federal. Sorridente e maravilhada, seus passos ecoavam no assoalho com o som dos saltos de suas sandálias.
Era uma universidade única e personalizada, com enormes corredores e amplas salas dedicadas a diversos cursos. Provavelmente, ela se apresentaria no Teatro Guarany, encantando um público acomodado em belíssimas cadeiras aveludadas, enquanto dançava e interpretava um personagem trágico.
Chegou à secretaria para confirmar sua matrícula e inscrição, finalmente os trâmites estavam se encerrando. No entanto, ao sair da sala, notou uma jovem garota cabisbaixa, sendo acalmada por uma mulher, ambas sentadas em um sofá de couro. O rosto choroso da menina preocupava a mulher mais velha, que arqueava as sobrancelhas, questionando-se quem poderia ser aquela jovem.
A mulher era dona de cabelos ruivos-cenoura, estatura baixa e seus olhos castanhos estavam com as pálpebras avermelhadas. Ela tirou os óculos, temendo sujar as lentes, e se aproximou mais. Lydia reconheceu sua melhor amiga, tentando acolher aquela ruiva atormentada.
Abstraída pelo estilo da garota, que usava uma camiseta delicada com os ombros à mostra, calças jeans dobradas e mary janes com meias brancas decoradas com flores, Lydia notou a madeixa caída sobre a feição da desconhecida, o que a deixava extremamente preocupada.
Gabriella olhava para frente, surpresa ao encontrar sua amiga em um momento tão desesperador. Os braços da mulher mais nova estavam presos ao corpo, lutando contra crises de choro. Gabi decidiu tranquilizá-la, pedindo uma explicação. Quando a moça respirou fundo, engolindo o pranto, voltou a encarar Valadares.
— Poxa, Flor! Por que você está assim? — Pressentindo suas energias, percebeu que provavelmente havia alguma discussão relacionada ao namoro dela com Victor. — Você e ele brigaram?
— Ele… Ah, não sei! — O tom agudo e choroso da museóloga ecoou pelo corredor imenso. Gabi se perguntou quem era o cara que havia feito aquilo. — Eu decidi dar um tempo, mas… É difícil saber que ele não gosta mais de mim. Acho que estou cercada de mentiras.
— Ih, envolve macho — resmungou a paulista, evitando olhar para a garota chateada. — Desculpa te encontrar assim, Gabi. Se quiser, posso falar com você quando chegar em casa.
— Relaxa, amiga, você não me incomoda — foi sincera, voltando a dar atenção para Flora. — Não fique assim, querida. Se essa decisão foi sua, então não precisa ficar frustrada.
— Desculpa me intrometer na história, mas… — Lydia ficou com os braços para trás, encarando o chão e depois a dupla em melancolia. — Talvez eu possa ajudar você também. Sei como são as dores amorosas.
Valadares achou a ideia boa, mas se sentia dividida, como se estivesse assumindo um problema a mais para resolver — dessa vez com uma Jerozolimski chorando por um homem, enquanto Lydia sofria por esse mesmo homem há anos, sem nunca ter contado a ela. Precisava dar apoio; no mundo feminino, eram unidas, independente da situação, seja em relacionamentos ou em dias ruins. Garotas se ajudavam.
Flora cismava com a desconhecida, pensando que ela era alguém nunca vista, mas cheia de segredos. Desde quando uma mulher daquelas se importaria facilmente? Olhando para a ruiva de tons escuros, não podia negar seu bom gosto para roupas, a maquiagem bem feita e o esmalte brilhante reluzindo nas unhas grandes. Porém, ninguém em sã consciência acreditaria em alguém tão inesperadamente.
Lydia, por sua vez, lembrava daquele rosto de algum vídeo que assistira ou de uma recomendação de live, mas ficava incerta se era a mesma garota. Não! Ela estava apenas viajando na percepção: aquela ruiva era muito diferente da internet, impossível que fosse ela. Queria desacreditar nessa possibilidade.
— Pode confiar! — Gabriella incentivou a outra amiga. — Estamos aqui para te ouvir.
— Beleza. — Suspirou pesadamente, ajeitando a postura no sofá. Arrumou os cabelos, tentou se recompor. — Meu namorado anda pensando em outra garota e sequer me falou sobre isso. Daí, quando me disse, não acreditei.
— Puta merda, que situação! — exclamou a paulista, lutando para não rir, mesmo sabendo que se tratava de uma traição. A imaturidade sempre tomava conta nesses assuntos; afinal, ela escutava em calls histórias de namoros que deram errado e havia sido amiga de um idiota que zombava da sua vida amorosa, embora tivesse se recusado a tomar providências. — Mas assim, vocês estão juntos há muito tempo? — perguntou, curiosa.
— Quatro anos — sibilou Jerozolimski, a dor evidente em sua voz. — Amo tanto ele que machuca.
— Você e ele sempre foram um casal lindo — elogiou Flora, mexendo nas mechas descoloridas do cabelo curto. Com as pernas cruzadas e o semblante apático, ela continuou: — Nunca imaginei que o Vito faria isso.
O nome revelado fez Ribeiro engolir em seco. Victor estava namorando outra pessoa depois que eles terminaram em 2018? Pelos cálculos de Lily, quatro anos era o mesmo tempo em que fora deixada pelo gaúcho.
Que porra é essa? Desde quando ele namorou outra após deixá-la? Lydia estava paralisada, tentando pensar em outro cara; não podia ser o mesmo Victor.
Sem reação, suas sandálias pareciam coladas ao chão. Começou a suar, rangendo os dentes e lutando contra uma crise de ansiedade que ameaçava surgir, temendo que isso piorasse ainda mais seu estado mental.
Puta que pariu, o cara pegou duas garotas com o mesmo tom de cabelo, mas com personalidades tão distintas!
— Eu também não. Mas… aconteceu sem eu perceber — desabafou Flora, a voz amena e diminuída, como se estivesse se sentindo incompreendida. — Tudo o que vivemos, nossas viagens, nossos beijos, os momentos divertidos...
— Calma, Flor! — Gabi acariciou seu rosto, limpando as lágrimas que escorriam. — Isso vai passar.
— Vocês vão se acertar — disse, tentando fingir empatia pela mais nova, enquanto seu coração batia forte, atormentando seu peito. — Er… e quem foi essa pessoa? Tipo, qual o nome dela? — hesitou em questionar, a curiosidade misturada com um medo crescente.
— Não precisa ser invasiva, Lily — repreendeu a paulista. Mas quando a gaúcha pronunciou o nome em voz alta, Flora se arrepiou, seus olhos expressivos quase saltando do rosto.
— O quê? Seu… seu nome… — Tremendo e embasbacada após a revelação, Flora apontou diretamente para a figura alternativa. — Você…
— Oi? — Lydia também ficou surpresa: agora tudo fazia sentido. A previsão de Gabi estava se concretizando. — Sim, meu nome é Lydia. O povo da internet me chama de Lily, é normal. — A expressão espantada da mais nova deixava a mais velha ainda mais confusa.
— Desculpa, mas eu preciso…
— Flora? Tá tudo bem, amiga?
— Me deem licença, caralho! — Impulsiva e descontrolada, ela gritou, saltando do sofá e deixando Gabi e Lydia perplexas. O que foi isso? — Tchau, esse papo… acabou.
— Espera, Flor… — Gabi tentou ampará-la, mas Lydia entrou na frente.
— Deixa comigo. Vou falar com ela — anunciou, decidida a resolver a situação por conta própria.
“Mas que porra está acontecendo? Mercúrio nem está retrógrado”, a mulher de cabelos pretos pensava, aflita e boquiaberta. Tentava decifrar os sinais do universo, teorizando que Victor estava no meio daquele turbilhão emocional.
Jerozolimski correu pelo corredor vazio, percebendo que aquela mulher era o fantasma dos pensamentos de Schiavon. Estava tão nervosa que queria quebrar tudo ao seu redor. Sentia-se tola e infantil, mas a vontade de esganar a ruiva a consumia, achando que ela era a responsável. Aquela moça por quem Victor ansiava durante os anos em que esteve com Flora.
Lydia precisava conversar e descobrir a verdade, então se lançou atrás da outra ruiva. Gabriella ficou sem reação, sem entender nada do que estava acontecendo. Lydia queria admitir, mas sua mente bagunçada não ajudava em nada.
Quando finalmente chegou até Flora, percebeu que havia perdido o rastro dela, infelizmente se deparando com outra pessoa no caminho. Ao ultrapassar sua sombra, ela se virou para ele, incrédula.
Diante dela estava o homem que tanto admirava, mas nunca havia conhecido pessoalmente: Victor.
Suas pupilas quase não se dilataram diante daquela visão; não podia ser real. Achava que era um devaneio, mas não era. E isso tornava a situação ainda mais fodida.
O gaúcho estava ali, uma figura bem vestida fora das telas de seu computador. Um pouco abaixo de sua altura ideal, o youtuber queria trocar algumas palavras com ela, mas as palavras pareciam ter desaparecido.
Lily o investigou, agora três anos mais velha, observando seu corpo um pouco acima do peso, os braços grossos e a barba por fazer. Os luzeiros esverdeados de seus olhos brilhavam por trás das lentes, enquanto ele vestia uma blusa de frio cinza listrada, calças beges sob medida e tênis Adidas.
Memórias não eram apenas lembranças, eram vidas passadas colidindo.
Aquele casal se encontrou com maestria, mas antes do sol, a lua continuava a tomar seu lugar. O cavaleiro de espadas indicava a princesa perdida, saindo de sua torre e cruzando o reino pelotense.
Victor gesticulava algo, mas Lydia se sentia sem palavras, segurando as lágrimas que ameaçavam escapar, desejando salvar aquela museóloga de si mesma.
— Vito? — A voz dela saiu com dificuldade, enquanto encarava a alma dele, que parecia tão distante.
O homem queria falar, mas as palavras não vinham. Então, pronunciou algo sem querer, como se estivesse se convencendo de sua própria loucura:
— Ah, devo estar maluco, foda-se. — Ele a ignorou, passando reto, culpando-se mentalmente.
Lydia o viu se afastar, esquecendo completamente o que acabara de acontecer. Ele a notou de um jeito esquisito, um primeiro encontro preenchido de mágoas. O que os aguardava? As estrelas diriam.
Enquanto Flora era encontrada por Lily em um lugar isolado, a museóloga tentava se aproximar, mas foi impedida quando Victor a abraçou, superando o pranto, suas mãos acariciando os fios de cabelo cenoura. Ele implorava por seu perdão, enquanto a mulher de cabelos vermelhos escuros observava a cena de camarote.
Droga! Por que ele fez isso? O youtuber não pensava direito, com os olhos fechados, entregando-se ao momento com sua namorada.
Ver aquele homem que tanto ansiava conhecer beijando outra pessoa era doloroso. Era quase uma cena de uma série genérica da Netflix, onde adolescentes estragavam qualquer roteiro com suas reações exageradas. Lydia saiu daquele espaço, buscando ar fresco fora da universidade. Precisava se distrair, foda-se o Victor! Foda-se todas as lembranças que a atormentavam!
— Gustavo, você… quer me buscar hoje à noite para irmos à festa? — Ligou para o catarinense, decidindo aceitar o convite. Segurando as lágrimas após a catástrofe que acabara de enfrentar, lembrou-se de que o youtuber havia se oferecido para acompanhá-la. — Ótimo, venha me buscar quando puder.
Desligou o telefone, saindo cabisbaixa, sentindo o peso do mundo em seus ombros.
Flora e Victor interromperam o beijo quando a garota foi, impedindo aquele contato íntimo. Ela se sentiu perdida no calor momentâneo, mas a realidade a atingiu como um balde de água fria. Ao empurrar Victor para longe, a insegurança tomou conta dela; sua aparição inesperada a deixou confusa. Precisava voltar para a aula e repensar tudo o que havia acontecido minutos atrás.
Schiavon recompôs sua postura, mas a imagem do fantasma de cabelos escuros ainda pairava em sua mente, aquele rostinho surpreso e inesperado que ele havia visto por acaso. Victor segurava as lágrimas, assim como a jovem museóloga, que agora cruzava os braços e se afastava dele.
— Eu odeio amar você, sabia? — indagou Flora, abraçando a si mesma, os braços tatuados expostos e a expressão tristonha. — Olha o que você fez comigo! E eu soube que a sua ex mora aqui.
As palavras dela cortaram o ar entre eles, e Victor sentiu o peso da culpa se instalar em seu peito. Ele queria explicar, mas as palavras pareciam ter desaparecido. O que restava era o silêncio constrangedor e a dor de um amor que parecia mais uma maldição do que uma bênção.
— Querida… — Victor abaixou e levantou a cabeça, absorvendo o peso dos erros que cometera. Ele queria falar com Lydia, mas decidiu ignorá-la, adotando um “foda-se” como se ela não existisse. Que atitude escrota! — Você sabe que isso não importa.
— Ah, é? — A ruiva colocou as mãos na cintura, desafiadora. — O que será que vocês fizeram, hein? Para ela ter decidido morar na sua cidade? — Ela queria mais argumentos para confrontar Schiavon, deixando-o surpreso e sem palavras.
O clima entre eles estava carregado, como se a tensão pudesse ser cortada com uma faca. Victor sentiu o coração acelerar, a mente girando com as possibilidades.
Ele sabia que não tinha como escapar das perguntas dela, e a verdade era que ele mesmo estava confuso. O que realmente havia acontecido entre ele e Lydia? E por que isso ainda o afetava tanto?
Flora o observava, os olhos brilhando com uma mistura de raiva e dor. Ela queria respostas, e ele sabia que não poderia se esconder para sempre. A batalha interna que travava era intensa, e a pressão de suas palavras o fazia sentir-se cada vez mais encurralado.
O youtuber se perdia em um turbilhão de lembranças, revivendo os ecos cruéis de palavras que o assombravam: os rapazes que, em um momento de desespero, lhe mandaram se matar, e o relato angustiante de Leandro sobre a participação de Lily com os amigos errados.
A dor pulsava do outro lado da tela, onde ele se permitia chorar e se estressar, um mar de emoções à flor da pele. Victor estava em um abismo: em meio a uma briga com uma ex que despejava mentiras sobre seu relacionamento no Twitter, ele se via cercado por comentários que o acusavam de crimes que nunca cometeu.
O que mais o revoltou foram as fotografias vazadas com aquela mulher, espalhadas pelo Pinterest, como se a internet fosse um campo de batalha onde ninguém estava a salvo.
No fundo, ninguém estava puro. Lydia lutava diariamente contra a culpa que a consumia por brigar com seu pai, sentindo que tudo estava se desmoronando ao seu redor. As lágrimas escorriam no escuro, enquanto ela desejava desabafar sobre o ódio e a tristeza que a cercavam.
Sua família se tornava um campo de guerra, repleto de discussões e fuzuês que a deixavam exausta. As noites mal dormidas se arrastavam, e a madrugada era marcada por vômitos, enquanto comprimidos tentavam aliviar os traumas, mas apenas a deixavam mais fraca, com olheiras profundas e um corpo que implorava por descanso, como se quisesse apagar tudo.
Victor, por sua vez, mergulhava em um mar de músicas e vídeos, sobrecarregado e sufocado pela pressão. Ele dizia a si mesmo que estava tudo bem, que estava tranquilo, mas essas palavras soavam vazias, como um eco distante.
Ele se xingava em silêncio, zombando da mulher que o amava de verdade, mesmo sabendo que ela sofria por sua indiferença. A verdade era que ambos estavam presos em suas próprias batalhas, lutando contra demônios invisíveis que os isolavam ainda mais.
“Eu te vi na minha frente e agora estou agindo do mesmo jeito com a Flora.” A culpa o consumia, como um veneno que se espalhava por suas veias, enquanto ele tentava entender a conversa que tinha acabado de ter com a namorada.
— Essa história de ela ter se mudado por minha causa, não dá pra confirmar. Você tá viajando — ele a interrompeu, indignado, a frustração transbordando em sua voz. — Nós dois fomos uns filhos da puta. Erramos, e pelo jeito, nada mudou.
— Isso explica tudo — respondeu Jerozolimski, retirando-se do lugar onde estava, a expressão no rosto misturando desdém e compreensão. — Ah, tchau! Vou pra aula.
— Espera, antes de você ir…
— Fala logo.
— Vem na festa do pessoal, pelo menos isso.
— Ok, preciso me distrair mesmo.
Ela se despediu do namorado, um turbilhão de sentimentos a consumindo: raiva, compaixão, uma confusão que a deixava tonta. O beijo que trocaram tinha sido magicamente perfeito, um instante congelado no tempo, mas agora ela precisava de mais. Precisava ouvir e ver a opinião de Lydia, precisava ter certeza de quem realmente era. A dúvida a acompanhava como uma sombra, e a festa parecia ser a única saída para clarear a mente.
Isso estava prestes a acontecer, e a expectativa pulsava no ar como um trovão prestes a romper o silêncio.
Maquiando-se rapidamente diante do espelho, com a ajuda de sua melhor amiga, Ribeiro enrolava os fios escuros no babyliss, cada mecha se transformando em ondas sedutoras. Ela admirava seu reflexo, tentando afastar os pensamentos sobre o episódio daquela manhã que ainda a atormentava.
A tarde havia sido medíocre, sem nada que realmente a fizesse sentir viva. Apenas se entregou ao almoço delicioso preparado por sua amiga, um momento de conforto que a fez esquecer, mesmo que por instantes, das preocupações. Depois, se dedicou às tarefas cotidianas — lavou e secou a louça, varreu o chão, organizou os móveis na sala — enquanto observava Valadares se arrumar para mais uma aula na faculdade.
O pescoço da ruiva brilhava com um pingente de morcego, pendurado em uma corrente prateada que refletia a luz de maneira hipnotizante. O acessório destacava-se de forma deslumbrante, com suas asas enormes que pareciam ganhar vida. O corpo de Lily estava envolto em um vestido tubinho, ricamente detalhado, em um tom carmesim que exalava sensualidade.
Ribeiro sentiu o toque suave do ombro da amiga de cabelos pretos encostar-se nela enquanto ajudava a modelar os cachos de Lily, que parecia perfeitamente divina, pronta para arrasar corações por onde passasse. O vestido, embora emprestado, não parecia tão bonito quanto em Gabi, e Ribeiro não pôde deixar de se sentir um pouco insegura.
Mas, através das palavras de Gabi, ela percebeu que o vestido não servia mais para ela, como se a beleza da amiga tivesse ofuscado a própria luz que antes brilhava em seu interior.
Uma dúvida pairava no ar, densa e inquietante: o que Lydia realmente sabia sobre Flora? A gaúcha se perdia em pensamentos, sua mente fervilhando com essa questão, enquanto Ribeiro hesitava em revelar que Victor havia sido seu namorado virtual. As palavras pareciam se enroscar em sua garganta, mesmo enquanto ela tentava decifrar as entrelinhas daquela história.
Lydia contornava os lábios com um batom escuro, criando um efeito matte que exalava confiança. O contraste entre a cor intensa e sua juba avermelhada, com ondas suaves nas pontas, era hipnotizante. Seu vestido, que abraçava seu corpo de forma sutil, deixava entrever um busto médio, enquanto as alças bem ajustadas escorregavam delicadamente por seus ombros.
Gabi, por outro lado, não poderia acompanhá-la na festa. Estava presa aos livros, esperando por Henrique, que parecia ter se tornado o centro de seu universo. Mas a verdade é que Gabi detestava segredos. A curiosidade a consumia, e a ausência de Lydia ao falar sobre Flora e Victor a deixava inquieta.
— Amiga, você tem certeza de que não tem nada a ver com a Flora? — Valadares se afastou um pouco, observando a mudança no semblante de Lydia, enquanto seus olhos castanhos giravam como um redemoinho. As mãos da ruiva se moviam nervosamente, alinhando os fios de cabelo que caíam sobre seu rosto. — O clima entre vocês me soa preocupante.
A tensão entre as duas era palpável, como se o ar estivesse carregado de segredos não ditos, prontos para explodir a qualquer momento
— Deixa disso, Gabi! — riu descontraída. Ajeitou sua postura e desligou a babyliss da tomada, o aparelho sobre o mármore da pia, em cima de uma toalha — Eu queria ajudá-la, por que isso soaria preocupante?
— O jeito que ela ouviu seu nome e surtou me soa preocupante — argumentou, dobrando as mangas da jaqueta marrom e ajustando o cinto dos shorts jeans que vestia. — Veja bem! Ela e o Victor estão juntos há anos, e nunca brigaram. Sinto a sua presença entre eles, especialmente depois da nossa tiragem de cartas ontem. Parece que as cartas revelaram os problemas que viriam. Ele foi seu ex? Pode falar, prometo que não conto para ninguém.
“Desvantagens de ter uma amiga cigana: é quase impossível mentir para ela. Ah, não tenho escolha! Preciso admitir essa merda. Ele simplesmente me ignorou e mandou um “foda-se”. Como um cara desses faz isso?’,’ grunhiu nervosa, sentindo o tapete áspero do assoalho sob seus pés descalços.
— Sim, ele foi meu namorado — disse, contra sua vontade, acenando a cabeça em um movimento afirmativo.
— Caralho, sabia! — bateu o punho na palma da mão, fazendo um estalo que ecoou entre elas. Gabriella estava certa, mas a frustração a consumia por sua melhor amiga não ter contado sobre isso. — Por que você nunca me disse? E quando vocês pretendiam se conhecer pessoalmente?
— Ah, além de sermos dois babacas, na época íamos nos encontrar — desabafou, contendo as lágrimas que ameaçavam escapar. Ele não merecia aquilo, não depois de tê-la ignorado. — Isso aconteceu muito antes de conhecer você. E hoje… diria que o encontrei, mas não da forma que gostaria.
— Vocês se encontraram? Oh céus! — Tapou a boca, os olhos arregalados. O universo sempre parecia ser uma caixa de surpresas. — Já sei, deu merda.
— Na parte dele ter passado reto e beijado a mina dele, com certeza — resmungou em um sussurro, Lily tentando afastar da mente a cena desnecessária.
— O que você disse?
— Nada, só pensei em voz alta por um instante — chacoalhou a cabeça, piscando os olhos para evitar borrar o delineador. Nesse momento, a campainha tocou, e o paranaense de cabelos encaracolados aguardava por sua namorada. — Acho que seu príncipe da Disney chegou.
O coração de Lily disparou, misturando ansiedade e expectativa, enquanto a porta se abria e a realidade se tornava ainda mais complicada.
Valadares soltou uma gargalhada, tentando não invadir o espaço da melhor amiga ruiva. Ela desejava que Lydia aproveitasse aquele último momento de festividade e diversão, porque não era justo desperdiçá-lo por causa de um macho barbudo que fazia videozinhos de gameplay. Afinal, eram mulheres adultas.
Enquanto isso, Henrique chegou, beijando amorosamente os lábios de sua amada e segurando suas mãos com ternura. Que inveja! O relacionamento deles parecia saído de um filme água com açúcar, uma fantasia que nunca se esgotava.
Lily calçou seus scarpins pretos brilhantes, de saltos altos, e se acomodou no sofá, tentando se distrair com a televisão. Minutos depois, seu celular vibrou: Umild havia mandado uma mensagem dizendo que já estava a caminho. Ela não queria ser apenas um candelabro para Rique e Gabi.
— Nossa, onde essa madame da noite vai? — Soares, sempre jocoso e simpático, elogiou a mulher, enquanto sua namorada também notava a ruiva se dirigindo à porta de entrada. — Em plena quarta-feira, saindo em busca de farra.
— Vou assombrar normies e beijar uns vampiros, obrigada por perguntar — respondeu, piscando para o casal e jogando beijinhos no ar.
— Ah… quase esqueci. Vai ter uma festa de alguns youtubers e influencers aqui em Pelotas — Henrique comentou, com um tom de desânimo. Ele havia recebido o convite, mas precisou desmarcar por conta do trabalho que o deixara exausto. — O Luan e a Alessandra me chamaram, mas nem vai dar para ir.
— Sério? Que chato — disse Gabi, percebendo Lydia carregando sua bolsa de alças de correntes e saindo para fora. — Ah não… Se for isso que estou pensando…
— O que, amor? — Henrique perguntou, confuso.
O ar estava carregado de expectativa, e a tensão entre eles crescia, como se algo estivesse prestes a acontecer. Lily hesitou na porta, sentindo que a noite ainda guardava surpresas, e a adrenalina pulsava em suas veias.
— Nada, esquece — murmurou, encostando a cabeça no peito do homem mais baixo, enquanto recebia um abraço acolhedor. — Cuidado, Lily, toma cuidado. — Ele diminuiu o volume da voz, a preocupação evidente em seu tom.
Lily caminhou até o portão aberto do condomínio, descendo cada degrau rapidamente, os ecos de seus passos ressoando na noite. Estava deslumbrada com as estrelas que brilhavam no céu e a iluminação vibrante de seu bairro. Ao olhar para Gustavo, notou que ele estava vestido de forma simples: bermuda que chegava aos joelhos, uma camiseta estampada com o logotipo de seu canal, mangas longas, tênis azuis e meias que cobriam suas canelas.
O jovem tinha os cabelos meio amarrados por um elástico, com alguns fios caindo suavemente sobre as orelhas. Ao vê-lo, Lily não pôde deixar de se impressionar com a beleza dos brincos e do colar de morcego que ele usava, um toque alternativo que o tornava ainda mais intrigante.
Umild envolveu a ruiva em um abraço caloroso, e ela retribuiu com um sorriso carinhoso, sentindo a conexão entre eles.
— Você está muito bonita, Lily — disse ele, com sinceridade, embora uma palavra diferente quisesse escapar de seus lábios. Mas ele decidiu guardar para si. — Poxa, se era para me vestir como um nobre, eu teria colocado calças.
— Relaxa, decidi me arrumar assim mesmo — respondeu ela, rindo orgulhosa, enquanto se aproximava dele e o abraçava por trás. — Bora?
A expectativa pairava no ar, e a noite prometia ser cheia de surpresas. Lily sentia a adrenalina pulsar em suas veias, pronta para se aventurar em um mundo que parecia tão vibrante e cheio de possibilidades.
— Claro, porra. — Ele sorriu para a ruiva, um embrulho no estômago o incomodando. Era uma sensação estranha, algo que geralmente não acontecia com ele. — O Uber chegou, boa.
Um Fiat Mobi parou em frente à dupla, e Lily abriu a porta do passageiro, enquanto Gustavo se acomodava no banco de trás. O motorista, educado, os cumprimentou e ligou o rádio, preenchendo o carro com uma música animada que parecia prometer uma noite cheia de surpresas.
Lily cruzou as pernas, seu olhar fixo no vidro da janela, observando as luzes da cidade se desfocarem à medida que o carro começava a se mover. A expectativa pulsava no ar; aquela festa prometia ser inesquecível, cheia de histórias para contar e segredos a serem revelados. Ela mal podia esperar para ver o que a noite reservava, sentindo que algo grande estava prestes a acontecer.
“Você magoou o meu coração
E agora no meu peito rola algo meio mau
Um pedaço de plástico pesado e azul
Depredando o meu miocárdio, tão sentimental”
Agora o meu coração é um lixeiro azul vazio escroto — Cidade Dormitório
E agora no meu peito rola algo meio mau
Um pedaço de plástico pesado e azul
Depredando o meu miocárdio, tão sentimental”
Agora o meu coração é um lixeiro azul vazio escroto — Cidade Dormitório
A FESTA BOMBAVA, PROPAGANDO SONORIDADE AGITADA. Gustavo segurava as mãos delicadas da convidada envolta naquele deslumbrante vestido, inertes na dimensão iluminada do salão, possivelmente animador e reconfortante.
Lydia cravava os olhos amendoados nos arredores e notava algumas celebridades da internet reunidas: influencers, tiktokers, youtubers e streamers, cada um em determinadas bolhas. Nervosamente, suspirava batendo os sapatos no assoalho, sorrindo de modo forçado para aqueles que a cumprimentavam. O homem mais novo conduzia a convidada a explorar o espaço.
Dançavam os integrantes do evento ao som de qualquer música do álbum plugs da nuvem do Big Rush estourando nas caixas de som, embora o aroma de uma essência, pertence à fumaça de narguilé, incomodasse suas narinas. Lily procurou sentar-se em alguma cadeira vaga. Umild encontrou alguns de seus amigos próximos acenando para ele.
O trio consistia em um rapaz de pele branca, alto, olhos castanhos, usando uma armação de óculos redondas, madeixas rosa choque, com as pontas desbotadas e querendo mínimos retoques, testa coberta por uma longa franja, unhas visivelmente pintadas com um esmalte preto fosco. Usava uma camiseta preta de jogo aleatório, piercing no septo e anéis adornados sob cada dedo e pulseiras enfeitando seus braços.
Ao seu lado, um rapaz de traços asiáticos, óculos quadrados, preenchido por bochechas de covinhas e rosto arrendondado, lábios rosados e cabelos negros esticados, estatura baixa e um físico não muito endomorfo.
O sentado na terceira cadeira era relativamente alto. Loiro, olhos castanhos, pele branca e tatuagens cobrindo metade dos braços. Bigode raso e sobrancelhas finas, combinando com seus tons claros e dourados, pele leitosa e sorriso alinhado, abrindo a boca em um bocejo, após tomar dois copos de cerveja Heineken da garrafa de vidro, acompanhados por uma porção de peixe frito.
Ribeiro conhecia Tiba e Scottonauta de alguns vídeos engraçados e participações no canal de seu amigo. Era honroso e maravilhosamente legal conhecer aquelas figuras carismáticas fora das telas.
Lily cumprimentou o japonês com abraços e beijos na bochecha, enquanto acenava para o sulista e aquele paulista que conhecera apenas em fotos e vídeos, eles nunca haviam conversado oficialmente.
— Caramba, por que vocês não me falaram que estavam por aqui também? — Gustavo indagava, de mãos na cintura, nada surpreso com os amigos em Pelotas. — Pensando bem, nem falei que estava por aqui, né?
— Ah, oras, tú avisou de última hora — asseverou o homem de cabelos rosados, logo após colocando sua atenção em Lydia. — E você, Lily? Foi convidada?
Imersa em seus pensamentos distintos e perplexas no ritmo das músicas, retornando finalmente a terra:
— O Umild me convidou, na real — disse a ruiva, sentando-se e apoiando seus cotovelos na mesa encoberta por uma toalha branca. — Para alguém que viveu dias no quarto, foi uma autoajuda.
— Jurava que você nem existia, anjo. — O japonês virava o rosto para ela, que sorria jocosa e feliz para ele. Vinicius era mesmo um amor de pessoa. Se não fosse por ele, Lydia teria menos fãs nas suas lives. — Olha para você, está toda poderosa.
— Que isso, Tiba! Gadando a garota de graça? — o loiro debochou, notando os outros rapazes dar altas gargalhadas — Ih, ah lá.
— Esqueci que o Tibinha adora as góticas rabudas — brincou a mulher, ajeitando os fios enrolados da juba que caiam sob seus ombros. — Gótica posso tentar ser, agora rabuda prometo nada.
— Viu? Até ela sabe — o catarinense enalteceu, deixando com que o clima ficasse mais descontraído. — Nem o Keller aguentou.
— Poxa, mal conheço ela também — argumentou o rapaz loiro tatuado.
— Qual foi, rapaziada? Elogiei a Lily porque gosto das lives dela. — Gesticulava envergonhado após o refutarem. — Enfim, como você saiu de São Paulo? Conta pra gente.
— Resolvi sair da toca e morar por aqui mesmo — foi sincera. — Ninguém mais sobrevive em Sampa.
— Papo reto, você fez muito bem em ter saído de lá. — Scott mastigava o peixe que comia, balançando a cabeça despreocupado — E daí, cê pretende voltar com a internet e tal?
Lydia tinha muitos planejamentos quanto à sua nova era de internet. Entretanto, torcia para os estudos não atrapalharem tais processos. Sua mudança propositalmente manteve essa confiança, acreditando sair das maneiras que imaginava. Naquela festa, os amigos de Umild prestavam atenção em suas palavras. A ruiva se divertia com Scott e os demais, em um ritmo ansioso e frenético devido às músicas do DJ.
— Isso mesmo. — anuiu com a cabeça, cruzando as pernas. Encarou outros convidados andando para a pista de dança e, na sua frente, alguns ficavam chegando ao bartender. — Afinal preciso ter os meus 24 anos de sucesso — gabou-se convencida, sorrindo em tremenda simpatia.
— Maneiro — O youtuber de cabelos rosados elogiou. — Enfim, o Keller e o Tiba vão comigo ali na pista, vamos deixar os dois à vontade, pode ser?
Os amigos se entreolharam por alguns minutos, recusando ceder suas intenções reais. Apesar de terem se visto pessoalmente somente um dia, aquela conexão parecia uma eternidade. Mexendo em seu celular, Gustavo virou para frente após ser cutucado no ombro pela ruiva. Scott claramente demonstrava incertezas sobre ambos. No entanto, Lydia acabou se importando menos.
— ‘Tava planejando dançar na pista também. — Riu a mulher de nervoso, querendo não piorar o clima. Nem fodendo gostaria de estragar toda a magia ficando sentada. — Bora, Gustavo?
— Bem que vocês podiam dançar mesmo, a música que gravei com o Vito daqui a pouco toca — afirmou o japonês, deixando os óculos no lugar, pois se atreviam a cair. — Ele veio, inclusive?
— Sei lá, mano, acho que deve estar por aí — O catarinense deduziu, sabendo que provavelmente seu amigo gaúcho estaria naquela festa. Enquanto verificava os arredores do salão, notava alguns conhecidos e o casal Flora e Victor andando de mãos dadas. — Ah, chegou.
Aquele casal quebrado tinha de aparecer justamente agora? E principalmente na mesma sintonia agitada! O homem de cabelos negros — diferente do que costumava ser — estava muito bonito e bem trajado com terno, a gravata realçando sua camisa e aqueles olhos esmeralda em um labirinto místico aglomerado por muitos fãs de seu trabalho e conhecidos das mídias sociais. Sua companheira estava envolta em um vestido branco rendado até o início dos joelhos, cabelos ruivos duplamente trançados, sapatilhas delicadas.
Lydia negava, mas uma pontada de ciúmes retornava das trevas para lhe atormentar e fazê-la trincar os dentes de ódio. Ora essa, como um merda que a rejeitou voltaria a aparecer? Deve ser praga! Engolindo em seco, a paulista então teve uma — estúpida — ideia. Levantou de onde se manteve sentada, agarrando o ombro do mais novo, pedindo para que ele fosse dançar com a mulher na pista.
— O que você falou, Lily? Desculpa, não prestei atenção — baldado em meio aos seus falatórios, o rapaz perguntava à mulher, sobrancelhas levantadas em dúvida, sentindo aquelas unhas em si.
— Dançar com o pessoal, vai ser divertido, poxa — ela incentivou o youtuber, embora a situação tenha se mostrado uma ação desconfortável, vinda de Ribeiro. Ela não queria realmente se divertir, mas sim, complicar. — Eu tô dentro.
— Beleza, eu topo — disse sem muitas convicções — Não se tem festas assim todos os dias.
— Boa! — alegrou-se o outro sulista. — O importante é vocês dois estarem com a gente.
— O Keller sabe muito — Umild ironizou, encostando sua mão nas costas da convidada, algo que lhe fez se acomodar. — Enfim, bora.
Luzes coloridas invadiam e consequentemente a sonoridade irritava certas pessoas no local. Na verdade, Flora estava meramente desconfortável na presença de Victor. Alessandra e Luan riam e jogavam conversa fora, enquanto o outro casal deliberava em antipatia e desânimo. Havia mesmo aceitado o convite, mas nem queria estar daquela forma. O namorado sequer olhava para seu rosto, deixando o clima sem graça.
Bebia um drink vermelho com morango e notando mais um amigo querido na mesma sintonia, foi inevitável cumprimentá-lo, pois veio de muito longe para aquele evento. Davi Freire — conhecido por Raposito, do canal ’’toca do foxy’’ — animou-se por reencontrar Schiavon pela segunda vez naquele ano. O carioca possuía uma cabeleira encaracolada, pele branca, olhos castanhos e um bigode engraçado. Geralmente Raposito vinha acompanhado de Bife que, naquela ocasião, acabou não indo.
O rumo de Freire era mais especializado em reacts e pequenas reviews de jogos, enquanto seus outros amigos viviam normalmente na vida adulta. Aquele evento começava entreter cada pessoa do grupo. Embora Victor estivesse devastado com os problemas surgindo, passavam na cabeça do gaúcho várias respostas e broncas. Queria poder se desculpar com Lydia e superar as mágoas, mas o que fazer quando se gosta de outra pessoa? Perplexo na mistura de ritmos e luzes, esperava com que chamasse sua atenção, até que num instante, Luan o tirou dos devaneios, sorrindo sem humor.
Schiavon gesticulava algo e recompôs sua postura, definitivamente melhor e menos fingido. Tomava sua atenção em seus amigos da mesa, ocasionalmente conferindo sua namorada presa na tela do celular vendo alguma postagem do Instagram. O grupo quase ficava próximo à pista e o DJ queria deixar um Victor com os ouvidos doloridos após aquele som intenso e ensurdecedor.
— Deixa de ser velho, rapaz! — Dedos magros puxavam seu moletom, sentindo aquelas mãos esqueléticas do cantor sob o tecido. Virando o rosto para frente dele, havia revirado os olhos tediosos — Curte o som, mano!
— Vou pensar no teu caso. — Ela faltava querer roer suas próprias em nervosismo, no entanto, algo lhe impressionou. Reparando na pista de dança um pouco distante da mesa onde estava localizado, cabelos vermelhos escuros cercavam o caminho, guiada pelo catarinense. — Ah, cara, não fode…
Ela dançava loucamente conforme o ritmo, batendo as madeixas lentamente com pulinhos, cintura remexendo e braços jogados de um lado para o outro, fazendo passos agitados e malucos na pista. Enquanto o youtuber catarinense seguia e balançava os quadris, arrasavam naquele lugar, deixando o público animado bater palmas, mas Victor não se encontrava daquela forma, trincando os dentes e atravessando os braços.
Ele sabia fielmente que seu amigo e ela haviam se encontrado, porém se recusava ver com seus próprios olhos, tampouco aceitaria.
Lydia e Gustavo metamorfoseavam em parceiros de dança, aproveitando o ritmo de “Applause” da Lady Gaga, ninguém podia ignorar aquela belíssima mulher e seu vestido combinando naquela vibe tentadora dela. Todos queriam sair das cadeiras e dançar com ela, ou quem sabe, pagar um drink e ficar no sigilo!
Era possível conquistar inúmeras oportunidades naquele salão tão icônico. Alessandra notava a beatmaker colada com Umild. Eles se conheciam? A gaúcha questionava.
— Nossa, ela veio mesmo aqui? — perguntou surpresa, embora não soubesse que Lily era a ex-namorada de Victor — Queria falar nada, mas ela dança hein!
— Zero importância — murmurava a ruiva, rodopiando os olhos indignada em tudo à sua volta.
— Eu acho que conheço essa mina, não é aquela streamer de músicas? — Raposito sabia que conhecia aquela pessoa em algum lugar da internet, só não imaginava que ela estivesse ali, ao vivo.
— Ah, sinceramente cansei. — Victor insatisfeito e repleto de ciúmes deliberado, levantou-se da cadeira — Também vou dançar, esquecer essa merda.
Luan notou o gaúcho sair dali, mas num instante o pegou pelo pulso. Sabia que aquilo daria alguma merda, mas aquele youtuber sequer deu ouvidos.
— Calma aí, cara! O que você vai fazer? — Olhando para o mais novo, era possível sentir sua raiva crescente.
Ele não deu ouvidos, andando até a pista. O que ele faria?
“Ele apenas deixou eu acreditar em meu pecado.
Porque eu sei, amor de você então
Acabei de morrer, lembro daquele dia
Perdi a cabeça, senhor estou bem
Talvez com o tempo, você queira me pertencer”
El Manana — Gorillaz
Porque eu sei, amor de você então
Acabei de morrer, lembro daquele dia
Perdi a cabeça, senhor estou bem
Talvez com o tempo, você queira me pertencer”
El Manana — Gorillaz
ANOS ATRÁS…
OS DIAS NO QUARTO NUNCA PARECIAM SE ENCERRAR. Inteiramente, sua atenção estava focada na lâmpada ofuscante do teto sem cor de seu quarto, que enfeitava o travesseiro com fios avermelhados, desbotando-se ao passar do tempo. Juntando os dedos das mãos uns nos outros, insatisfeita por mais uma vez se aprisionar naquele quarto, ela se perguntou: já não bastava que, na última semana, o domingo friorento a impedisse de sair para o rodízio de pizza? Que mundo impiedoso do caralho! Toda vez havia uma barreira no caminho.
Esticando os músculos e se dirigindo à cozinha, Lily agarrou o cabo da caneca de alumínio, jorrando água quente em seu cup noodles de frutos-do-mar. Deixando a tampa do miojo fechada por três minutos, ela abriu brutalmente a gaveta e tirou um garfo, mexendo o macarrão. Olhou diretamente pela janela, para aquele temporal chuvoso e nublado, que era demasiadamente inquietante. Embora o gosto daquele miojo de frutos-do-mar fosse salgado, animava a paulista de qualquer modo.
Felizmente, ninguém a incomodava: os patriarcas haviam viajado para o Guarujá e voltariam em quatro dias. Eram os únicos momentos pacíficos em que ela poderia assistir a seus programas favoritos, praticar teclado e dançar animada. Era o segundo dia em que se mantinha distraída; ocasionalmente, torcia mentalmente para não dar um soco na cara de seu próprio pai, que vivia invadindo seu espaço com sua mesmice escrota e petulante.
Comendo moderadamente os peixes e bebendo o caldo, Lydia remexeu os dedos dos pés acima da cadeira. A tela do smartphone discava uma chamada de voz no Discord do gaúcho — utilizando uma metadinha de Spike Spiegel e Faye Valentine, de Cowboy Bebop — nomeado como "Vitinho", com emojis de corações duplos. Que bonitinho, não é mesmo? Ela não recusaria aquela ligação especial do namorado; era a terceira naquele dia.
Ouvir a suavidade de sua voz marcante, entonando inúmeras palavras carinhosas e risos descontraídos, era um prazer. Victor era consideravelmente incrível; ele representava a zona de conforto e bem-estar para Lydia. As conversas entre eles consistiam quase sempre em preferências de jogos e músicas. O youtuber havia enviado um álbum de sua autoria, Pintocóptero, de quando era chamado de MC VV. Ribeiro gargalhou, sem evitar zombar da cara do gaúcho: quem, em sã consciência, criaria um título desses? Posteriormente, Vito e Lily criaram uma matchlist, combinando suas canções do momento — de nu-metal e trap a músicas mais antigas.
Terminando sua refeição, Lydia ligou a câmera frontal do celular e procurou uma posição confortável para se sentar na cadeira. Verificando seu reflexo, com uma expressão de peixe-morto, disse:
— Então fica por isso. Meus pais decidiram me deixar em paz. — Limpou a boca, enquanto umedecia os lábios instantaneamente. — Você está como, gato? Fez algo legal?
— Nada relevante. — A webcam de Schiavon demorava para carregar, durante uns três segundos. A imagem de alta qualidade mostrava um aspecto jovem. Com aqueles óculos diferenciados e o bigodinho, ele era maravilhoso e fofo ao mesmo tempo, simplesmente lindo e engraçado. — Ah, mano, os dias sempre se mantêm nos padrões.
— Quase o mesmo que acontece comigo, pode crer — disse, convicta, enquanto suas delicadas pernas se cruzavam. — Poxa, mesmo vendo você curtindo sua cidade, ainda não consigo suportar essa distância.
A verdade resumia-se na possibilidade de que o casal, em um instante, se manteria afastado. Previamente, em outra chamada, Lydia escutou seus ex-amigos rindo e jogando partidas de Left 4 Dead entre eles. No entanto, continuavam as fofocas desagradáveis sobre terceiros. Após banirem mais um idiota que compartilhava opiniões controversas no chat geral, sinceramente, a ruiva se sentia cansada. Porém, como estaria sem aqueles amigos? Já que ninguém preenchia seu vazio interno? Alguém explicava?
No grupo de WhatsApp, havia áudios dela rindo e falando besteiras, enquanto ocultava suas brincadeiras de Victor. Realmente, a mulher estava completamente errada nessa história, mas ignorava esse fato. Lily respirava de mau jeito, sentindo o frio percorrer sua pele, encolhida no casaco de pele que vestia. O namorado superava ventanias calorentas e luzes douradas que invadiam sua janela. Olha que a região sulista costumava ser gelada!
— É, foda! — Suspirou, com um semblante exausto. Dava para compreender suas falhas e as olheiras pesadas. Certamente, o youtuber estava silenciosamente à beira de um sofrimento prematuro. — Pelo menos empresta esse friozinho. Aqui nem chega a ser calor, mas tá um puta sufoco.
— Imagino — respondeu, entusiasmada. — Amor, qual era o filme que íamos ver mesmo à noite?
A paulista guardava essa lembrança assim como uma criança guardava balas em um potinho de vidro. Quando Schiavon mostrou alguns de seus filmes prediletos — O Fantástico Sr. Raposo —, Lydia conhecia diretores e cineastas, mas nenhum conseguia instigá-la através da fotografia e do design de Wes Anderson. Havia estourado pipoca com manteiga de micro-ondas, rindo juntos em frente à tela do computador. Entretanto, nada conseguia ser mil maravilhas, devido a algumas mensagens de um ex-namorado do ensino médio. Ademais, que relacionamento era esse? Ninguém estava puro agora!
No último ano letivo, havia transtornado inúmeros estudantes: trabalhos, provas, aulas vagas e tempo integral. Na perspectiva de Lydia, era um inferno na terra! Diariamente, ela abdicava de medicamentos, vivendo em abstinência ou surtos quando eles acabavam. Graças a esses feitos trágicos, ninguém gostava de se aproximar da jovem, outrora de madeixas acastanhadas — uma das mechas vermelhas pelo tonalizante escuro — e vestimentas soturnas.
Contendo o frio de Itapecerica da Serra, Lily foi transferida para outro colégio. Em um infame e catastrófico dia, deparou-se com um grupo de músicos que, consequentemente, se incomodaram com sua presença naquele cantinho onde tocavam violão.
Em contrapartida, alguém havia notado Lydia, sentada em uma cadeira distante, mexendo no celular. Seu semblante exausto contrastava com o ambiente musical; eles se divertiam entre si, mas a jovem não. A figura que notara sua existência chamou sua atenção implicitamente, tocando uma canção desconhecida — para os normies da época — nas cordas acústicas.
Era uma das faixas mais tristes de Demon Days: "El Manana". Gostava do videoclipe, onde a Noodle ficava sentada olhando o céu. Embora a história fosse trágica, ninguém de sua turma gostava de rock. A grande maioria ouvia funk ou pagode: gente feia e arrombada que excluía os diferentes por terem mais cultura e bom senso. As meninas eram chatas e insuportáveis, enquanto o resto dos moleques nunca se desenvolvia. Caramba, nem no ensino médio! O brasileiro melhorava, hein? Adolescência era mesmo foda! Mas fazer o quê? Como foi mencionado outrora, as pessoas não eram mais puras, até mesmo Lily.
O único detalhe observado e admirado naquele garoto eram seus olhos azuis-acinzentados, que pareciam não conter vida. Entretanto, a tonalidade angelical de sua voz havia lhe sucumbido de uma forma tresloucada. Além de tocar sua canção favorita, Lydia criou uma ilusão em sua mente, onde ele seria seu primeiro — caos — amor.
Seu nome era Murilo Aranda, um verdadeiro queridinho entre as meninas do colégio. Com cabelos longos e cacheados, sua pele tinha uma tonalidade leitosa, e ele era imponente e robusto. Treinava na academia e anotava palavras secretas em um diário, que nunca mostrava nem aos seus amigos.
Murilo tinha um sorriso alinhado e branco, e seu estilo era complementado por camisetas de bandas e calças jeans adornadas com correntes. Infelizmente, estava namorando uma jogadora de futsal, Adrielle Silveira, uma típica garota que pegava vários rapazes no sigilo.
Ocasionalmente, durante os intervalos, conversava com uma de suas melhores amigas do colégio sobre o namoro deles. Sentada na arquibancada da quadra, avistou uma segunda pessoa se sentar próxima a ela. Era uma moça aparentemente de dezoito anos, com madeixas encaracoladas, alta, de quadris avantajados, pele negra e um piercing no septo; pesava cerca de 47 quilos e era relativamente bonita. Embora fosse um ano mais velha que Lydia, ambas se entendiam muito bem.
Daniela Rodriguez tocava guitarra e baixo nos horários vagos e possivelmente incentivou Lily a gostar de teclado. No entanto, também enfrentava sua vida amorosa, lidando seriamente com sua crush de sala, Pamela Cardoso. Tão graciosa e gentil quanto Daniela, Pamela, contudo, às vezes se mostrava uma chata, sendo racional e madura demais.
O relacionamento amigável entre Dani e Lily consistia em uma diversidade de assuntos interessantes, embora elas falassem diariamente sobre relações amorosas. Durante a polêmica de ter furado a bolha do colégio inteiro, ambas as garotas não paravam de comentar e opinar sobre o casal mais popular. Adrielle vivia maquiada, com cabelo hidratado e unhas feitas, usando sandálias e grampos coloridos na cabeça. Lydia se recusava a negar que aqueles opostos se atraíam. Em que mundo eles tinham algo em comum? Provavelmente, ela tomava controle sobre ele, pensava naquela oportunidade sacana.
Enquanto os pombinhos riam e conversavam descontraídos, a paulista certamente sentia um incômodo no estômago, algo repulsivo e desconfortável. A única a perceber isso foi a cacheada, que descruzou as pernas.
— Esquece, minha filha, ele nem se importa contigo — disse um vozeirão encantador e forte, impressionando o desespero de uma adolescente de mechas vermelhas. — Mas eles dois não parecem se gostar tanto assim.
— Será mesmo, Dani? — indagou, com um semblante obviamente chateado. Não era nada comovente descobrir que, naquele ensino médio, casaizinhos e panelinhas se reuniam ou compartilhavam mentiras. — Tenho uma puta certeza de que essa branquela anda sentando em outro pau.
Daniela não conseguiu segurar a risada estridente:
— Mano, esse cara parece um cachorrinho andando atrás dela, ridículo! — De fato, a jovem estava certa. Todavia, um segredo — um boato — precisava ser falado. — Rolou um "falaro" que o Murilo levou chifres no antigo relacionamento dele. E se ele tem fetiche nisso? ‘Cê tá ligada nessa história, porque vi suas mensagens trocadas com ele no Instagram.
Nos dias que se passaram, Lily tentava conversar com Murilo virtualmente, pois era a única maneira de conhecê-lo sem interromper quando o via se divertindo com outros amigos. Contudo, levando a situação emocionalmente, dissera ao rapaz: "As pessoas costumam me xingar e interpretar errado sobre mim. Olha, cara… sou completamente diferente, queria que fôssemos amigos." No entanto, o sujeito apenas visualizou, deixando a excluída do colégio desesperada e culpada. Que merda, hein!
Cada semana era monótona e sem graça. Por que, mesmo virtualmente e em sigilo, ninguém compreendia suas boas intenções? O que ela fez para merecer isso? Claro que simplesmente enviar uma mensagem de aviso era inconveniente, mas quais eram as chances de piorar? Nem ela mesma sabia.
As meninas torciam para namorar o Aranda; escondiam um segredo prestes a ser compartilhado, e disso elas queriam saber. Lydia gostou de saber que ele havia sofrido em seu primeiro relacionamento; havia se identificado. Paixões adolescentes sempre foram esquisitas, porque nessa idade ninguém se controla; os hormônios fervem e confundem a mente. No entanto, ninguém mais no terceiro ano era imaturo o suficiente; a maioria se tornara adulta — corrigindo, nem todos. Qualquer merda vinda do núcleo estudantil iria vazar; obviamente, não era surpresa para ninguém!
Suas inseguranças se contradiziam dentro de si, preenchendo-a de ódio e, instantaneamente, mudando para alívio. Murilo causava esse efeito transtornado nela; odiava saber de sua história, mas adorava notar que sua namorada fingia gostar dele.
— Fetiche não é para tanto, provavelmente, ele deve ter algum trauma — deduziu, sincera. — Viu minhas mensagens, né, sua pilantra? — Elevou o tom da voz, fazendo com que sua amiga olhasse com uma carranca envergonhada. — Difícil ter uma amiga hacker, sempre descobre minhas senhas.
— Dessa vez não foi culpa minha, o celular notificou — pronunciou Rodriguez. Elas haviam arquitetado essa mania de olhar o celular uma da outra, seja para ouvir músicas ou vasculhar fotos da galeria. — Acho que ele respondeu, mas apagou depois.
— Muito esquisito — falou, não muito contente. — Ele tem vergonha de mim?
— Talvez seja por estar namorando, oras — asseverou Daniela diretamente. — Vai dizer que não pode ser isso?
"Elas sempre ganham os melhores caras e nunca diferencio isso. Porra, quantas garotas no mundo sonhariam com o Murilo? Certamente ele seria o primeiro e único para mim!" Sua concepção tornava-se desequilibrada, e era impossível trocar de assunto naquelas horas torturantes, mesmo desesperada por uma resposta adequada dele. Ele sequer havia reagido àquela mensagem; isso certamente mostrava-se mais comum do que parecia.
Lydia gostava de imaginar viver eternamente com alguém que a amasse profundamente. Era a última garota que nunca havia beijado ou transado com um garoto — aos dezoito anos, continuava virgem. Questões sobre virgindade e relacionamentos eram bobagens, mas, quando estávamos deixando a adolescência, isso se tornava um problema sério. O mundo feminino, quando se tratava de sexo, não era diferente do masculino — dependendo da liberdade e de como se lidava naturalmente. Grande parte das conversas passava dos limites — até um moleque de quatorze anos falando de masturbação ficaria traumatizado se ouvisse.
Todo dia, sempre os mesmos papos sobre como, na transa, os caras nunca gemem, uns chupavam bem e outros mal. Lily revirava os olhos e se afastava dessas esquisitices quando a conversa escalava para um nível ilimitado. Era normal discutir e compreender a sexualidade; contudo, haja estômago e sanidade mental.
Ela notava aquelas garotas saidinhas e assanhadas, demonstrando espontaneidade para qualquer relação passageira, garantindo a possibilidade de um dia fazer aquilo. No entanto, buscava saber por conta própria. Dificilmente um garoto mostrava interesse na jovem paulista.
— Você está certa, nunca serei alguém para o Murilo. Não adianta esforço — respondeu, simplória, com as pernas saracoteando e os lábios trêmulos. Sentia uma vontade incontrolável de chorar. — Vou andar no pátio e me isolar, não estou me sentindo bem.
— Lydia… Essa é a quinta vez que você chora. Por que não procura deixar isso para lá? — A cacheada encostou a mão no ombro da colega. — Posso não gostar de homens, mas sei que existem vários melhores que o Aranda.
“Mas… como devo esquecer, sendo que meu cérebro está processando isso contra minha vontade?” murmurou, desajustada, enquanto continuava a reproduzir a playlist transtornada. Os fones ensurdecendo seus tímpanos, emoções e sentimentos se armazenavam em cada fibra de seu misantrópico ser.
— Mando mensagem pra ti quando chegar em casa — recusava os conselhos da melhor amiga, decidindo caminhar, aterrizando os coturnos nas escadas, despedindo-se da quadra.
31 de outubro. Meses haviam se passado na escola e nenhuma boa notícia referente à garota de mechas avermelhadas havia vindo à tona. Alguns trabalhos e atividades foram concluídos. Dani e Pamela finalmente começaram um namoro, enquanto outros alunos voltavam a ser, normalmente, burros e insuportáveis — nada relevante. Quer dizer, algumas garotas queriam emprestar suas maquiagens e gargantilhas para enfeitar suas fantasias genéricas e fúteis, mas, quando xingavam e insultavam, não pediam nada emprestado.
A decoração de abóboras e teias de aranha mantinha completamente a vibe do salão, onde os estudantes dançavam na sintonia do heavy metal, que estourava nas caixas de som. Alguns tiravam selfies fazendo caretas ou mostrando o dedo médio em sorrisos forçados — mordiscavam geralmente os lábios. Porém, enquanto ajeitava sua capa de vampira e retocava o batom preto diante do espelho quebrado do banheiro, choradeiras e sussurros eram audíveis na cabine próxima.
Era possível visualizar fios dourados de cabelo pertencentes a uma figura entristecida em posição fetal, reconhecendo os trajes de uma animadora de torcida americana, compostos por azul-turquesa e listras horizontais brancas. Aqueles tênis brancos e unhas coloridas… Que azar! Era a famigerada Adrielle sofrendo — por um homem que ela mesma traiu — na friagem do chão.
Profundamente, queria gargalhar e comemorar sua derrota. No entanto, havia limites, e não custava mostrar empatia aos desamparados. Após sua arrumação e retoques na maquiagem vampiresca e sombria, Lily amarrou os cadarços de seus Vans e se levantou, indo na direção da jogadora. Para surpresa de ninguém, tratou a paulista como uma aberração:
— O que você quer, intrometida? — A líder de torcida zumbi, com sua maquiagem deteriorada, agia com ignorância, relembrando daquele rosnar desagradável e da voz esganiçada. — Deve ter perdido o toba na minha cara, não é? Problema seu, não tenho culpa por você não ter amigos.
— Desculpa, eu só quis ajudar — falou a vampira tranquilamente, embora quisesse dar um soco naquela carinha mal-criada. — A única que se esconde para chorar no banheiro sempre serei eu. Então, quase ninguém entenderia seu sofrimento, por isso notei.
— Beleza, gosto de outro rapaz, mas o monstro do meu ex-namorado não larga do meu pé — desabafou, por fim, arfando de desgosto. — Todos falam que eu traí, mas ele também fez o mesmo.
"Que mentira lixo, todo mundo sabe que você fica sentando pra geral, garota." Ria internamente, desacreditando nas falácias dela. No entanto, estava mesmo errada? Questionava a Ribeiro.
A realidade era uma abertura futura e precisa. Mesmo odiando bastante, Adrielle sabia que a jovem estava sofrendo dolorosamente porque Murilo havia entregado flores e bilhetinhos amorosos nas últimas semanas em seu armário, beijando seu corpo, bochecha e lábios sigilosamente, afagando carinhosamente os longos e cacheados cabelos marrons dela, que desciam até os ombros.
Aquele encontro profano e íntimo dos namorados, investidos em fantasias, tirando roupas e suportando toques marcados na pele. Ela contornava os dígitos no abdômen definido e robusto, sentindo ousadia enquanto suas mãos eram puxadas para a região íntima proeminente dele. Definitivamente, a experiência mais quente e viciante, entretanto, durou pouco.
Deitados no quarto estreito e desordenado, aqueles instrumentos estavam em frente ao setup do computador. Na cama, ambos pelados, entrelaçaram os dedos das mãos, com Adrielle conectada a Murilo, seus braços em suas costas, aquele rosto rente ao peito dele. Tempos que pareciam nunca se finalizar.
Muitos sabiam que eles ficavam se pegando loucamente, possuíam carinho um pelo outro, mas e se eu te dissesse que essa merda inteira foi arquitetada? Você acreditaria? Enfim, Silveira errou por traí-lo, porém ela verdadeiramente conheceu quem era o monstro disfarçado de príncipe encantado.
O que rendeu um plot twist esquisito quando encontrou diversas fotografias de outras garotas na galeria de seu celular.
Durante a vivência de um relacionamento falso que terminou em apenas três meses, a loira encontrou um moço carinhoso e fiel. Ficando com ele em sigilo, acharam que Murilo se importou? Lógico! Ele pedia e enviava nudes para a ex-namorada, mandando textinhos eróticos — claramente tirados de algum livro genérico e broxante do Wattpad — ligando entre duas e três horas da manhã.
Voltando agora para o momento da festa, Lydia suspirou contra sua vontade, respondendo de imediato:
— Aham, como se você não pegasse geral nessa merda de escola também, né? — provocou, desacreditando na loira de olhos marejados de lágrimas. — Estou certa?
— Ele me traiu, na verdade… — Engoliu em seco, levantando-se do chão e ficando cabisbaixa. Teve receio de olhar para a vampira. — Murilo não era quem parecia. — murmurou, limpando o rosto, que se fechava em lágrimas.
— Eu não acredito.
— Um dia você vai acreditar. Ele já me disse que tem interesse em você. Já aviso: isso que pensam dele é pura ilusão!
O assunto havia se encerrado, e sequer houve explicação. Lily nunca havia esquecido daquele dia. Ela percebeu aquela aluna correndo e ficando isolada durante todo o evento, marchando com os calçados da jovem ao redor da festa entediante, que contava com gincanas e salgadinhos acompanhados de Coca-Cola e Sprite.
A paulista carregava sua mochila nas costas, andando em seu ônibus, quando, de repente, alguém a abordou inesperadamente, cruzando aproximadamente três metros de distância daquela paixão.
Então, Adrielle estava certa.
— Oi, desculpa não responder sua mensagem. — Hipnotizada estava a garota, quase vivendo em um sonho. Ela ouviu sua voz grave e ácida, aqueles olhos escuros encontrando os dela. Murilo vestia uma camiseta larga de um álbum aleatório do Asking Alexandria, generoso e bondoso. As calças rasgadas nos joelhos e o cabelo sedoso — Lydia, certo?
A garota empalideceu, boquiaberta e sem reação. Estava pouco se importando com as palavras da loira metida; percorria uma ansiedade e desespero porque quem desejava a procurou.
— Er… sim, sou eu.
As mensagens carinhosas e os flertes evoluíram para uma relação mais casual e carnal. Felizmente, seus pais permitiam que Lydia saísse com Murilo, e o primeiro contato deles… como poderia esquecer? Ela pegou o ônibus junto com o rapaz após chegar à sua residência, que ficava fora da civilização. Mas, antes disso, eles trocavam secretamente fotos e faziam chamadas de vídeo íntimas durante a madrugada.
Agora, com dezoito anos, Lily finalmente tingira seus cabelos de um vermelho fogoso e selvagem.
Ela planejava tê-lo para si; ambos gargalharam no shopping, assistiram a um filme no cinema e sentaram grudadinhos no banco da praça. No entanto, manter-se ao lado de Aranda, propositalmente, causava sonolência e exaustão mental.
Ao chegar na casa dele, Lydia entregou-se de imediato, como todo adolescente que desfruta da liberdade sem a presença dos pais. A liberdade para a safadeza garantia espaço. Devorando os lábios rosados da garota e roçando suas línguas em ferozes sintonias, eles preenchiam o desejo descontrolado que escondiam naquele sofá.
Sem saber como controlar a tentação, ela deixava que ele invadisse suas emoções e suas roupas. Fechando os olhos, via os beijos se intensificando para algo mais profundo. Ele selava lentamente as camadas da boca dela, arrancando risos.
O peito acendeu enquanto a mão esquerda dele passava por debaixo de sua camisa, invadindo o sutiã rendado. Murilo levemente apertava e massageava aqueles seios eriçados, inerte naquela tensão sexual. Dos lábios dela saíam afagos e gemidos sôfregos, puxando o corpo vulnerável diretamente para o seu colo.
Lily estava achando que, naquele ambiente, finalmente seria uma mulher amável e viciante, sempre recebendo mensagens elogiando seu corpo e cabelo. Pessoalmente, Aranda explorava sua diversidade sensual, orgulhando-se de vê-la se libertar. O roqueiro de cabelos escuros, por um instante, parou, fazendo com que a ruiva falasse:
— Poxa… isso está mesmo acontecendo? — Ela respirava descompassadamente, com o coração batendo acelerado em seu peito desprovido de sutiã. Sua camisa estava jogada em qualquer canto do chão, enquanto observava o mais alto ofegando e beijando seu pescoço levemente. — Oh, por favor, me diga que sim!
— Saiba que esperei muito por esse momento — sussurrou de maneira provocante e sedutora, fixando o olhar naquela alma insegura, virgem e pura. — Você é linda, perfeita pra caralho, Lydia. — O tecido da meia-calça fina tornava-se quente, sentindo suas partes íntimas úmidas, ficando excitada.
— Quando você iria dizer isso pra mim? — desconfiou, unindo as sobrancelhas. Mas recebeu um sorriso torto como resposta. Murilo brincava com aqueles cabelos flamejantes, enquanto ela encostava a cabeça no meio daquele busto. — Ultimamente, saímos pouco antes das férias começarem.
Isso era um detalhe interessante. Aranda e Ribeiro, desde a fatídica festa de Halloween, mantiveram suas relações de maneira virtual, enviando fotos e gravando vídeos. Haviam assuntos diferenciados sobre música; contudo, o rapaz novamente retornava com intenções maliciosas. Era isso que Adrielle tentou se referir?
— Não preciso dizer, sempre desejei você. — Encarou o rosto vermelho dela, depositando um beijo em sua testa. Abraçando ele, roçando unhas afiadas em sua nuca. — Me deixe cuidar direitinho, a partir de agora.
Lydia encaixava suas pernas sob os quadris do homem, guiando a ruiva em direção ao quarto escuro e desordenado. O efeito sonoro de selinhos e respirações abafadas preenchia o ambiente, enquanto ela movia a cabeça de um lado para o outro, jogando as costas na maciez do acolchoado. Arrastava o parceiro contra si, posicionando suas delicadas mãos no tecido da camiseta.
Erguia-se lentamente, manifestando a beleza de um abdômen definido e um peitoral tatuado, com camadas de fios cacheados obscurecendo metade dos mamilos e apresentando tufos nas áreas das axilas, semelhante a um guerreiro nórdico da mitologia.
Engatinhando até Ribeiro, de pernas abertas e puxando brutalmente suas meias junto à saia, Lily se apresentava como uma deslumbrante visão para o roqueiro, sentindo-se dentro de uma pintura renascentista, erótica e lasciva. Ela sorriu, abrindo a boca para que Aranda introduzisse sua língua, dançando em melancolia. Com os dedos grossos, ele explorou as curvas dela, pressionando-os profundamente no clitóris sensível — suplicando toques dentro da calcinha encharcada.
Nunca fora tocada; apenas ela mesma explorava sua intimidade. Ele deixava o clima ilimitado, tateando os lábios dela, piscando para os olhos, imaginando um cenário voluptuoso e turvo. Puxando o tecido íntimo, Murilo introduzia os dedos da mão esquerda, masturbando sua vagina e fazendo-a gemer baixinho. Lydia posicionava as unhas, cravando e arranhando profundamente sua carne, ilustrando suas marcas. Entre chupões, beijos, mordidas e toques repentinos, começava a surgir uma nudez selvagem. A cama se tornava um espetáculo libertino; primeiramente, despertava a curiosidade de tocar o íntimo pulsante dele, descendo seus jeans e boxer, revelando aquele membro comprido de glande rosada.
Tomava conta da maior parte do momento, a ruiva se mostrava submissa e vulnerável nas mãos de seu guerreiro. Ele puxava seus cabelos, enquanto seus joelhos se tornavam bambos e fracos, invadida por uma onda de desejo. Deitada com os braços para cima, arqueava as costas, estremecendo a cada beijo que ele lhe dava. Abrindo suas pernas, o moreno se posicionava entre elas, osculando suas coxas e beijando os grandes lábios que antes estavam sentados em seu rosto. Ele explorava sua zona erógena, provocando dela gemidos lascivos e descontrolados.
Quando o clímax, que normalmente era apenas o prelúdio, finalmente se transformou no grand finale, ambos se entregaram à paixão no quarto. Ela envolveu as pernas ao redor dele, recebendo-o dentro de si. Com os olhos fechados e segurando suas mãos, sentia a intensidade do momento. Ele a tratava com cuidado e delicadeza, e aquela primeira experiência se tornava a melhor de todas.
Voltando à dimensão onde Lily e Victor conversavam em outra chamada de vídeo, a garota se deitava em sua cama, no breu do quarto. Assistindo ao filme que haviam combinado, as mensagens de Murilo não paravam de aparecer. Ela queria esquecê-lo, mas era impossível quando alguém do passado a assombrava. Ele havia sido seu único e primeiro namorado, e quando se encontravam às escondidas, ele certamente se comportou como um filho da puta. Em 2016, ele a traiu. Ao ver os mesmos elogios que fazia para ela, aquela ousadia de pedir fotografias de madrugada, e nunca permitindo que ela falasse, a frustração aumentava.
Adrielle estava certíssima, enquanto Lydia permanecia cega em não acreditar. Os dois brigaram e nunca mais conversaram ou se encontraram sexualmente. Entretanto, que sentimento era esse? Qual o significado de um amor degenerado sucumbir? Sinceramente, Murilo não passava de um safado, mas, de certa forma, ainda era uma boa lembrança.
Gargalhando em algumas cenas em que o rato aparecia no filme, o casal virtual se entregava a piadas e bobagens. Victor amava escutar suas risadas, que eram diferentes da sua voz melódica e exausta. A ruiva também explorava mensagens de seu grupo privado com os ex-amigos, pedindo conselhos sobre outra pessoa. Usando principalmente o argumento: “Ora, vai com ele! Se for pra transar… tá apaixonadinha agora?” Com certeza, era uma frase escrota, mas, de fato, não estavam errados. Murilo a conhecia, já o gaúcho…
— Lily, você tá bem? Quase não falou durante o filme — Schiavon chamava por sua atenção do outro lado da linha, enquanto ela se desligava, ignorando o resto das coisas que ele mandaria para seu ex. — Se quiser dormir… não tem problema.
— Ah, eu… — tremia ao falar, encostando a cabeça no travesseiro e rolando os olhos em diversos lugares do quarto. — Sei lá, preciso dormir mesmo.
Ele se despediu da garota, saindo da chamada. Lily bloqueou o smartphone através da tela desligada.
“Oh, Murilo, por que você tinha que aparecer justo no momento errado?”, pensava, chorando e sentindo um incômodo no peito.
“Mas que desgraça
Paixão que não passa
Alguém tira ela da minha cabeça, por favor
Vem na minha casa
Sabe que me abala
Mas ela continua brincando com o meu amor
E essa filha da puta
Tem uma cara de princesa
Mas não para com a bunda
Dança até em cima da mesa”
Desgraça — Yung Li
Paixão que não passa
Alguém tira ela da minha cabeça, por favor
Vem na minha casa
Sabe que me abala
Mas ela continua brincando com o meu amor
E essa filha da puta
Tem uma cara de princesa
Mas não para com a bunda
Dança até em cima da mesa”
Desgraça — Yung Li
VICTOR ESTAVA PERDIDO, DESCOBRINDO UM CIÚME MORTAL, induzido a comandar os sentidos na mesma pista de dança. Acompanhado na festança agitada, fungava perfumes diferentes e afrodisíacos, enquanto notava aqueles bailarinos dinâmicos e sossegados no amplo e colorido recinto. A playlist eletrizante mudou para discoteca dos anos 80, tocando alguma música conhecida do Tim Maia, que Schiavon reconheceu devido a um dos samples que usou para um projeto engavetado. Mas o que, na verdade, o incomodava não eram os dançarinos, os rostos e as câmeras gravando, e sim a própria Lydia rebolando à sua frente.
Depois de Umild e Lily se cansarem de dançar com os outros influenciadores, decidiram voltar para onde estavam sentados. No entanto, algo havia deixado a ruiva totalmente sem reação: Victor, parado em um canto, com o semblante rígido e insatisfeito. Que porra era aquela? O que ele faria? A paulista engoliu em seco, virando a cabeça para os lados. Porém, o catarinense guiava sua amiga, sem entender nada.
O gaúcho, fingindo simpatia — claramente uma provocação disfarçada — cumprimentou educadamente o youtuber de cabelos longos. Vê-la naquele estado, sinceramente, o deixava em choque. Qualquer pessoa normal, com o mínimo de senso, acharia aquele comportamento infantil e inconveniente. Para Victor, no entanto, tornava-se reconfortante sentir o gostinho da raiva impregnada em seu âmago.
Gustavo encontrou inocentemente o amigo, sorrindo empolgado:
— Oi, Vito!
— Tudo bem, cara? Te vi ali dançando, caralho, o pai foi potente! — Ambos trocaram cumprimentos básicos, mas uma figura ruiva de pontas cacheadas não parecia contente. Ela torcia para não ser abordada pelo seu ex da internet. — Vai me apresentar sua amiga quando? — Victor, atrevido, colocou as mãos na cintura, esperando que ela o olhasse de volta. Sério isso? Tudo tem limites!
“Ah, cara… vai se foder! Por favor, que isso não esteja realmente acontecendo na minha frente, só pode ser uma brincadeira de mau gosto!” Rosnou, sem aparentar qualquer tipo de suspeita. Se tivesse a oportunidade, daria um tremendo soco na cara dele, quebraria seus óculos e usaria uma série de xingamentos pejorativos, batendo os saltos no assoalho, saracoteando os quadris.
Quando finalmente se encontraram pela segunda vez, exatamente no mesmo dia da semana, foi algo extremamente corajoso da parte dela, considerando aquele tornado de rancor e angústia que pairava no ar. Por ventura, ela gostava de testar paciências e mentes enfraquecidas, como um molequinho teimoso. Lydia sequer esboçou um sorriso ou qualquer sinal de positividade; desconforto e asco eram as palavras certas.
Schiavon aguardava que a mulher dissesse seu nome, encarando os olhos castanhos e a maquiagem pesada, que só havia visto em fotos de suas redes sociais. Contudo, quem resolveu abrir brechas foi Gustavo, lembrando da conversa que tiveram sobre a beatmaker e streamer que ele havia encontrado no laranjal.
— Ah, sim, essa aqui é a Lydia. Tu sabe, né? A streamer de que falei algumas vezes — o youtuber fabulava os acontecimentos, encobrindo a verdadeira conversa que teve com o gaúcho. — Conhece o Vito Gemaplys, Lily?
Palpitando e gritando internamente, ele queria dar um fim naquele pesadelo surreal. Ele implorava e suplicava constantemente para que ela falasse, reagisse ou manifestasse que o sentimento era o mesmo, porém… ela apenas disse, sem vergonha alguma, acreditando ser um fantasma:
— Não… — Assumiu para ele, como facas perfurando um coração. — Nunca ouvi falar. — Deixava claro, mesmo que fosse mentira ou uma forma de se livrar do homem que amava.
Dizer negativamente sobre sua existência acabara sendo um gatilho certeiro, fazendo parecer que a imagem dele evaporasse sem rodeios. Ao observar os movimentos dos lábios delicados, ficou abismado com a clareza do "não" de Lydia, que foi sinceramente venenoso e ardiloso, sem nenhuma vergonha de ser pronunciado.
Gustavo observava sua parceira de dança demonstrando indiferença. Ora, ela conhece seu amigo? Ah, se ele soubesse… ficaria sem entender absolutamente nada. De fato, alguns internautas faziam posts indiscretos no Tumblr shippando Victor com a streamer — qualquer foto genérica de uma ruiva do Pinterest servia para criar um casal vindo da mente dos internautas — ou era alguém parecida, vai saber.
O som de música popular brasileira ecoava naquela festança, mas quando outra figura ruiva decidiu largar a tela iluminada antes reproduzindo um vídeo aleatório na linha do tempo do TikTok, surpreendeu-se ao ver a ex-namorada do gaúcho diante dele. Agora ia ficar feio; a jovem sequer se mexia na cadeira.
— Sério? Também não conheço você. — A gravidade daquela voz, outrora ouvida constantemente em áudios e lembranças, tornara-se atormentada e insegura pessoalmente. — É uma surpresa dizer que nunca me conheceu, muitas pessoas sabem quem eu sou.
— Que pena! — falou, sem esconder a intenção, quebrando e disseminando sua acidez, sorrindo sem mostrar os dentes. Impressionada por seu ex não demonstrar nenhuma expressão de desdém, alfinetou: — Tem muita cara de ser flopado. — Seu semblante era hediondo e debochado.
— Caraca, nem imaginava que vocês dois nunca tinham se visto. — O catarinense havia entendido pouco, mas desconfiava do quanto eles tinham respostas grosseiras e sarcásticas um para o outro. Ela estava mentindo? Gustavo se questionava. — Enfim… é o que dizem: tudo na internet é diferente da realidade.
— Pois é. — Schiavon abanou as mãos, percebendo uma namorada ciumenta se aproximar, querendo cortar o contato entre Lydia e ele. — Ah, Flora! Resolveu curtir, gata? — chamou a atenção da outra ruiva, que usava seu vestido rendado. Ela não conseguiu disfarçar a raiva explícita, notando que sua outra personalidade era mais bonita que a dela.
Seus olhos acenderam fúria e indignação, devia ser uma merda reencontrar alguém que te ajudou e no mesmo dia saber que namorou seu homem! Flora agarrava o pulso de Victor, puxando-o para si e Lily riu silenciosamente — estava querendo socar um travesseiro e gritar. Que belíssimo casal trágico, ambos mergulhados na falsidade. Umild cumprimentava a mais nova, na mesma situação inocente.
— Oi, Umild! Quanto tempo nos vemos… Quer dizer, desde a viagem em Curitiba — Evitando conversar com a ruiva, abraçou o homem, aquela voz fina destacando alegria forçada — Amei ver a dança, enfim, nos dá licença? Precisamos de um tempinho juntos, valeu! — O casal afastou-se da dupla, mãos dadas e novamente trocas de olhares com os ex-namorados.
“Então, não sou mais uma lembrança para você? Beleza, que assim seja!" Os luzeiros esmeralda quase marejavam em lágrimas. Ele percebia nitidamente que Ribeiro havia inventado aquela resposta. Não! Nem ela, nem ele foram abandonados pelo tempo.
Flora, cabisbaixa, guiava o mais velho para um lugar isolado. Cometeria loucuras; no entanto, ao avistar um banheiro vazio, sequer interrompeu os favores descontrolados e ardentes de sua mente. Era um mandato de seu ferido e triste âmago: queria terminar a história deles de formas inesquecíveis.
Jerozolimski agarrou a maçaneta da porta do banheiro iluminado. Erguendo os pés nos sapatos dele e puxando sua gravata, depositou um beijo agressivo, impedindo que qualquer palavra saísse de sua boca. Victor, antes de corresponder aos encantos tresloucados da namorada, gemia e ficava sem ar. Sempre que a museóloga fazia isso, transformava assuntos sérios em bagunça.
Ele a impediu, quebrando o contato por alguns instantes, enquanto seu coração acelerava dentro do peito e o calor se acumulava sob as roupas.
— Que isso, porra! O que cê tá fazendo? Tá maluca? — falava ofegante, apressadamente, mesmo que sussurrasse para ela. No entanto, o dedo indicador da garota tocava seus lábios, mantendo-os calados.
— Eu consigo notar como você olha para ela, Victor. — Levando as mãos do gaúcho para longe da porta, ela adentrou o banheiro espelhado, cujas paredes eram azul-marinho e as luzes, douradas. Debruçando as costas na imensidão do cenário azul, Flora serpenteou até o homem, proferindo, com uma voz sensual, muito diferente da voz que ele conhecia. — Preciso mostrar para você… que teremos este último momento!
— Aonde você quer chegar, garota?
— Cala a boca!
Continuando a sussurrar baixinho, Jerozolimski inclinou o busto em direção a Schiavon. O semblante malicioso e as sobrancelhas levantadas, ela mirava suas íris amendoadas nas esverdeadas. Amava subir e descer os dígitos em sua face barbuda e áspera. Seu vestido tornava-se inútil, suportando o calor fogoso. Flora respirava sem jeito, mas as lágrimas do gaúcho transmitiam estranheza para ela.
— Ela te faz chorar? E quanto a mim, faço você ficar confuso? — perguntou. Com uma vozinha doce e íris brilhantes, Victor evitou replicar, pois, simultaneamente, o fantasma de cabelos escuros e flamejantes retornava para assombrá-lo, sua imagem desaparecendo novamente. — É isso?
— Eu… — sibilou, realmente sem saber como agir. Teria que deixar acontecer pela última vez. — Quero que ’cê termine aquilo que só tu consegue.
Victor finalmente correspondeu aos encantos da namorada sem pestanejar, emaranhado e acanhado naquela situação. Tinha esquecido que o garoto de quinze anos havia ressuscitado dentro dele; selando novamente os lábios nos dela, libertando o desejo incompreendido entre ambos.
As lentes de seus óculos embaçaram, mas isso era irrelevante; somente a museóloga conseguiria excluir tensões e aliviar inúmeros sentidos. Ele se livrou dos óculos redondos, apoiando-os em um canto da pia.
Os beijos do casal se desenvolviam no ambiente. Victor afagava os fios de cenoura — transformados em cereja — e o pescoço dela. Sua destra massageava os sedosos cabelos, enquanto ele a ouvia gemer, sucumbindo implicitamente por mais. O youtuber ousou descer a primeira alça do vestido dela, glorificando a beleza de seus largos e rosados ombros.
Indo se aproximar da imensa pia de mármore do banheiro da festa, Flora e Victor davam passos para trás, contínuos em seus beijos. As línguas criavam, veementemente, um abismo erótico, evoluindo cada vez mais.
As costas de Jerozolimski se debatiam contra a pia, e seu reflexo era explicitamente deslumbrante e afoito no espelho. O mais velho, abrindo suas órbitas, reparava nela, sedenta, agarrando firmemente as peças do traje social de seu namorado e deslizando-as para baixo.
Victor, bobo como era, fez a ruiva arquear suas costelas, inclinando a cabeça para trás, enquanto lambia seu pescoço e depositava beijos quentes e molhados.
Segurando sua cintura, depois de agressivamente abaixar suas alças e revelar os eriçados mamilos rosados, que ele estava cansado de ver sempre que transavam, o gaúcho sentou a namorada no mármore, com as pernas entreabertas. Tocando o seio esquerdo e direito chupando-os com a mesma intensidade, arfando, ela estava demasiadamente nua, ofegante e gemendo baixinho — embora fosse complicado.
A ruiva desabotoava a blusa do gaúcho, revelando seu físico desajeitado, que ela tanto amava. Apenas ela tinha os detalhes de sua autonomia, tocando seu peitoral com as unhas e desenhando raízes de pecados.
Victor, preenchido de tesão, estava inteiramente possuído e controlado pela namorada. Enxergava Lydia naquela situação, sem camisa e com os braços nus; reconhecidos eram os desenhos intrínsecos das tatuagens. O gaúcho ajoelhava-se perante a garota, massageando um dos seios desprovidos e livrando-se da peça rendada que outrora envolvia a amada, enquanto tirava seus sapatos.
— Tinha me esquecido de quão linda você é… — Ele parou, devido à combustão, visualizando-a, vulnerável e nua, do jeito que ele gostava.
“Que essa seja a única maneira de esquecer você… Imaginando apenas esta noite, que o corpo dela é o seu!” Pensou Schiavon, olhando para aquele fantasma de roupas íntimas, sorrindo lascivamente para ele. Flora, então, era uma cobaia.
Os dois queimavam, explorando suas intimidades. Propositalmente, Flora chegava mais perto do rosto dele, com a intenção de ser chupada e dançar na língua do homem. Como um convite, deslizava a lingerie rendada, deslumbrado com a visão erógena e profana da museóloga.
E começaria ali… Sem pausa alguma, inertes ao clímax.
— Me fode, Victor, por favor… — foi o que ela disse, por fim.
Sentindo o órgão pulsando dentro de suas calças, ele não hesitou em chupar sua intimidade. Os pés emaranhados em seu pescoço, invadindo o clitóris sensível e rosado. As mãos apertando suas coxas, ela balançava a cabeça de um lado para o outro, arfando e gemendo alto rebolando os quadris no máximo que pudera.
A extensão queimava, merecendo os mais ardilosos beijos. Flora encarava o teto iluminado, puxando os cabelos negros dele, desconexa com tudo ao seu redor. Ele sabia agradá-la, sabia fazê-la estremecer… sabia realmente foder quando as coisas pioravam. Afinal, sexo sem amor é muito melhor, não? Isso explicava o quão bom era ter seus dedos nas paredes da paixão dela.
Enquanto eles se entregavam às principais e calorosas preliminares, era a vez do youtuber receber o que necessitava. Pediu para que a ruiva abrisse sua boca e sugasse seu dedo, com uma expressão sexy. A língua para fora, ela chupava cada indicador, dando um selinho e levando os lábios ao choque, dividindo o pré-gozo.
Flora levantou-se diante dele, dominante, pedindo que ele saísse da posição em que se mantinha. Com as íris vibrantes e o semblante afobado, ela o empurrou contra a pia, tirando suas roupas de baixo agressivamente. Notando seu pau ereto e latejante, Jerozolimski o masturbava, acariciando toda a extensão — brincando carinhosamente com a glande e os testículos — uma perversão gostosa. Não demorou para elar com um oral! Flora parecia uma santinha, mas se enganava quem queria!
— Ah, calma… — gemia, após ser chupado da melhor forma possível. Victor tentava retornar à realidade, mas acabou falhando quando os brincos, o cabelo escuro e aquelas unhas ressuscitaram das províncias do subconsciente. Restava-lhe entrar nela e acabar logo com toda essa situação. — Gata, você nem sabe se tem…
— Relaxa, tomei remédio semana passada — ela foi direta ao ponto. Arfando e suspirando, não aguentava seu corpo trêmulo, agarrando sua bunda e encaixando-se mais perto dele. O youtuber fazia o mesmo, a moça tornando-se mais alta e sua voz mudando. — Acaba logo com isso!
“Tirem ela da cabeça, por favor…” Oh, paixão não resolvida que não passava, bem que sua própria música dizia.
Encaixando os corpos, o gaúcho se rendeu à sua fantasia. Levantando suas pernas e fazendo-a estremecer, mordia e beijava seu pescoço na medida das estocadas, fodendo-a e vendo-a gemer. Os dois, naquela situação, em um musical voluptuoso, sentia as curvas ampulhetas, o tórax delicado, as unhas arranhando todo o seu corpo. Ele sentiria falta daquela nudez de Flora: os seios médios, a bunda avantajada. Que bela foda de despedida!
No entanto, enquanto as estocadas aconteciam e ele penetrava delicadamente a namorada, não parava de lembrar da curta conversa com Lily. Queria que fosse ela, deixando o banheiro como mais um vazio para Schiavon. Estavam ignorando quanto demorariam lá dentro, loucos em prazer. Flora respondendo em gemidos sôfregos, a velocidade dos puxões de cabelo, entrando e saindo. Segurando seu pescoço e chegando ambos prestes a gozar.
— Victor… Eu…
— É, eu sei.
Eles haviam, então, terminado o que tinha que ser feito.
O grupo de amigos pertencente a Gustavo encontrava o carioca sentado, bebendo um copo de cerveja. Fazia três horas de conversa, e o anseio da noite estrelada nunca tinha um fim definitivo. Luan e Alessandra conversavam em pé; a conversa começou monótona e sem graça para a paulistana. Ela revirava os olhos, com os cotovelos escorados na mesa do bartender, tomando limonada gelada e cítrica, cruzando as pernas formalmente embaixo do banquinho.
Foxy e Scott iniciavam piadas que costumavam fazer nas chamadas do Discord. Quando desistiu de tomar o último resto da bebida, cutucou o japonês no ombro, tirando-o dos devaneios e preocupado com a figura ruiva, que, diferente dos outros, havia se cansado de interagir.
Tiba consolava a ruiva, sorrindo descontraído e importando-se com sua presença. Lily virou o rosto para ele, suspirando em seguida. A festança já estava se encerrando; ela voltaria para casa antes do sol nascer.
— Cansou? — puxou assunto. — Ou alguma coisa incomodou?
— Relaxa, Tiba, estou de boa — disse, convicta, mudando sua postura reta. Ninguém entenderia seus sentimentos, exceto ela mesma. Lydia gostaria de desabafar e se livrar do peso; no entanto, nenhum deles ficaria surpreso com aquilo. O casal de eras passadas alfinetava-se mutuamente. Isso certamente era infantil, mas quem disse que nossa racionalidade domina quando o emocional invade? — Acho que vou embora. Me diverti o bastante, e amanhã enfrento o primeiro dia de aula. Puta que pariu!
— Ah, não falei da Lily pra você, né, Davi? — Umild indagou ao moreno de bigode, interrompendo o assunto dos amigos repetidamente. O youtuber conhecia pouco sobre ela, mas ambos compreendiam de música. — Conhece o Raposito, Lily?
— E aí, mano? Tranquilo? — Ele apertou a mão dela como um cumprimento formal. Porém, desconfiava do porquê de Victor ter ficado aflito com ela e o catarinense dançando horas atrás. O sotaque gostoso e sua forma arrastada de falar eram iguais aos de um companheiro de outra vida. — Scott falou de você! Já vi alguns projetos seus; também sou cantor, sabia?
— Sei, sei, já assisti a algumas reviews suas — falou, meio desinteressada, por conta de seu cansaço. — Mas e aí? Resolveu pisar aqui de hora pra outra?
— Claro, amo viajar — ria o carioca, com as mãos nos bolsos do short. O semblante feliz. — Ia com o Umild, mas nem acabou dando.
— Entendi.
— Se desse, a gente dividia nosso Airbnb, sei lá… — pronunciou Tiba. — Onde vocês decidiram ficar?
— Tive alguns problemas me rondando e decidi ficar aqui, curtindo um tempinho com o Vito e os amigos dele mesmo — disse Raposito, acenando para o casal sulista. Lessandra deu uma piscadela para Lily, que desmanchava sorrisos. A beatmaker queria logo pedir licença. — Normal, vida adulta.
— Por falar em vida adulta: estou precisando abandonar tudo e cair na cama. Tô exausta pra caralho. — A ruiva se levantou de onde estava sentada. Não soube mais como estava se sentindo; precisava de espaço.
— Mas já? — o youtuber de cabelos longos questionou. Será que era justamente pela conversa ácida dela com Victor? — Nem deram 23h ainda! Se você quiser, posso te acompanhar até o seu apê.
Os problemas de raiva não sumiram dela; algo provavelmente esquentava sua cabeça, e a sonolência pesava em seu estado. Queria mandar todo mundo se ferrar e sumir de sua existência; os arredores chegavam a ser quase um circo de mágoas em tonalidades cinzas. As estrofes remixadas de "O telefone tocou novamente" eram uma avalanche de memórias ridículas. Atrás da janela, uma chuva caía do céu.
Subitamente, aquele casal de pombinhos estava separado, também saindo do salão. Victor de um lado e Flora de outro. Então… realmente acabou, não tinha mais jeito. Como Lydia reagiria? Foda-se, o problema era dele! Na verdade, deles!
— Obrigada, mas quero voltar sozinha! — despediu-se dos homens, cabisbaixa, remexendo os dedos das mãos descontroladamente. — Tchau!
Assim, saiu de lá, tomando chuva e esperando o Uber, com os sapatos pisoteando as poças d'água.
— Lily, fica, por favor! — Gustavo puxou sua mão. Ela virou-se para ele. — O que aconteceu? Foi o Victor, não foi? Relaxa, ele é assim…
Irracionalmente, notando as gotículas de chuva se debaterem contra seu corpo, com madeixas molhadas e lábios trêmulos, escolheu de maneira idiota fechar os olhos e puxar o catarinense para um beijo. Umild, de olhos arregalados, ficou assustado pela atitude de sua amiga. Ela parou de beijar o rapaz, se culpando.
— Desculpa… Mas não posso falar sobre isso.
Ela atravessou a calçada, sumindo e dizendo mais nada.